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FERREIRA DA SILVA

UM CERAMISTA INTEGRAL

“O argumento não é o meu forte. O meu forte são os braços e as mãos”

Ferreira da Silva é um dos ceramistas portugueses que domina todos os processos cerâmicos
mais conhecidos, sendo já longa a sua actividade artística.

Ligado desde há bastante tempo ao Centro de Formação Profissional da Cerâmica e a várias


unidades industriais, tem um percurso interessante para deambular. Acaba de ser este ano
seleccionado para o Concurso Internacional de Cerâmica de Arte – Faenza 93, o mais
conceituado certame a nível mundial da cerâmica artística. Já outra vez havia sido
seleccionado nos anos 60 (para o 27º Concurso). A sua actividade artística funde-se em boa
parte com o desenvolvimento da SECLA e com a vida cultural nas Caldas da Rainha em certa
época. Aqui fica o seu testemunho.

Luís Ferreira da Silva é natural do Porto e filho “dum artista singelo e intimista que manuseava
as artes e as músicas”, que havia frequentado a Escola de Belas Artes e o Conservatório e que
exercia a profissão de pianista na orquestra sinfónica do Porto. A sua mãe, dona de casa,
exercia as funções de esposa e de mãe de três filhos. Os seus irmãos, dois rapazes e uma
rapariga também nasceram com algum talento nas mãos. A irmã tinha jeito para a costura e
para os bordados e o irmão para o desenho.

De vez em quando Luís acompanhava o pai para o campo ou para o interior de uma igreja
onde “pintava aguarelas dos pórticos ou dos púlpitos”. A educação artística que recebia do pai
despertava-o para a utilização do lápis e das tintas.

Mais tarde, os seus pais mudaram-se para Coimbra, onde passou a frequentar a escola
Comercial Brotero. Nesta escola “a sorte de encontrar bons professores de desenho e de
pintura cerâmica, como José Contente e António Vitorino” deu-lhe o impulso que lhe faltava.
“Acompanhava-os para o campo, levando-lhes o material, as tintas, o chapéu de sol”, recorda.
Ele próprio utilizava os materiais dos professores, pintores impressionistas.

Entre Luís e o seu pai existiam divergências de carácter temperamental. “Ele era
extremamente metódico e disciplinado e eu não. As minhas características eram diferentes, eu
tinha uma paixão pela descoberta. E ainda hoje tenho essa tendência pela descoberta, quase
infantil…”.

Ferreira da Silva é assim mesmo, um homem irreverente que busca apaixonadamente a


descoberta e a criatividade através duma forma muito própria de se exprimir. “A minha
maneira de me exprimir excedia aquilo que o meu pai entendia como regra de disciplina.
Quando estava só exprimia-me como me dava na real gana”.

Aos 15 anos foi para uma fábrica de cerâmica nas Lages, na periferia de Coimbra, onde
trabalhou durante dois anos. Nos tempos livres ia para o campo pintar. “Pintava com cores
muito vivas e violentas. Com roxos, com violetas, com carmins. Com cores muito puras,
mesmo na própria paisagem”. A informação literária a que tinha acesso era escassa. “O que
fazia era quase por instinto”. Tal dava aso a que seu pai, um impressionista muito académico,
se exaltasse com as suas pinturas. Enquanto o pai copiava o desenho, Luís Ferreira da Silva
“ponteava o desenho e depois aguarelava-o numa cor muito espontânea e viva”. As
dissidências familiares foram crescendo. Não eram só os seus desenhos e as suas pinturas que
incomodavam o pai, todo o seu comportamento o desgostava.

“Como eu era muito expressivo, naturalmente, a minha pintura integrava-se numa tendência
expressionista…sem eu saber.”

Aos 17 anos viu chegar a oportunidade de cortar o cordão umbilical. “Já tinha muita destreza e
ganhava para mim”. Mudou-se então para o Bombarral, passando a trabalhar numa fábrica de
cerâmica. Trazia muito conhecimento de desenho e algum de gravura.

Durante o dia trabalhava na fábrica de cerâmica e à noite, aos sábados e domingos dedicava-se
à gravura, utilizando uma prensa de gravura existente na velha fábrica. Um dos três sócios da
fábrica tornou-se seu amigo e companheiro de noites em redor da prensa de gravura. “Era um
homem dado às artes”, que também fazia gravura e baixos relevos em cobre, e que se dava co
artistas lisboetas “esteticamente revolucionários”. João de Almeida Monteiro foi esse “homem
dado às artes” que, sabendo da existência de Ferreira da Silva em Coimbra, o levou para o
Bombarral.

No Bombarral, Ferreira da Silva teve contacto com artistas como Júlio Pomar, Alice Jorge,
Vasco Pereira da Conceição e Maria Barreiro. Surgiu “a possibilidade de conhecer estes
indivíduos e de me conhecerem também a mim”.

Gostaram do seu trabalho e meses depois convidaram-no a expor no Salão Geral de Artes
Plásticas, espaço do movimento neo-realista da época, na Sociedade de Belas Artes em Lisboa.
Foi a sua primeira exposição colectiva. Estávamos no princípio dos anos 50.

“O Júlio Pomar e a Alice Jorge viram o trabalho que eu tinha em gravura e gostaram. Como eu
era muito expressivo, naturalmente e a minha pintura integrava-se numa tendência
expressionista…sem eu saber.” As leituras eram poucas e não havia a proliferação de revistas
que há hoje. Os conhecimentos adquiridos por Ferreira da Silva vinham das suas próprias mãos
e do contacto com outros artistas.

Mais tarde, esse grupo de artistas criou a Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses.
Mensalmente editavam-se as gravuras em grupos de quatro e as gravuras de Ferreira da Silva
foram das primeiras a ser editadas. Desta forma os artistas davam a conhecer o seu trabalho e
divulgavam algumas obras artísticas de forma rápida e económica.

Pintura, gravura e cerâmica artística continuaram a ocupar o seu tempo para além do trabalho
da fábrica. Com Maria Barreiro ganhou o gosto pela feitura de pequenas peças em cerâmica,
representando mulheres do campo ou da faina na sua possante forma.

Quando a fábrica do Bombarral ardeu, Ferreira da Silva mudou-se para Alcobaça. Na Olaria de
Alcobaça trabalhou para o Engenheiro Natividade e seu sócio, Silvino da Bernarda. Estes
gostaram do seu trabalho e deram-lhe liberdade para trabalhar como lhe desse “na real gana”.
Passou a fazer o trabalho da fábrica livre da produção do estilo da época. “Já fazia uma coisa
mais minha!”, embora com influências do século XVII, que depois actualizava tornando-as mais
a seu gosto.

Ao longo de todo este tempo a gravura não ficou esquecida e, tendo o antigo dono da
Cerâmica Bombarralense conseguido salvar a prensa, Ferreira da Silva passou a deslocar-se de
bicicleta para o Bombarral, todos os fins de semana. “Tinha um fascínio pela bicicleta. Tinha
um temperamento desportivo… e ainda hoje tenho. Sábados e Domingos fazia horas a
pedalar”. Estivesse ele em Alcobaça ou nas Caldas da Rainha, raro era o fim-de-semana em que
ele não pedalasse para casa do antigo patrão e de quem era amigo.

“Ter paixão pelo próprio objecto cerâmico”

As suas peças começaram a ser notadas fora do círculo circense e, após dois ou três anos,
Pinto Ribeiro e Ponte e Sousa convidaram-no a trabalhar em Caldas da Rainha. Na SECLA, “a
fábrica mais evoluída e moderna na época”, Ferreira da Silva passou a dirigir uma secção de
pintura cerâmica numa pequena oficina dentro da fábrica.

La conheceu Hansi Staël, uma ceramista húngara convidada a colaborar com a fábrica e que,
para além dos trabalhos em cerâmica, também fazia serigrafia. Foi com esta artista que
Ferreira da Silva aprendeu a serigrafar, a trabalhar com vidrados e engobes e a “ter paixão pelo
próprio objecto cerâmico”.

Esta fábrica dispunha de um grande laboratório, novas pastas, novos vidrados e novos engobes
e tal fascinou-o. “A técnica era muito superior ao que eu tinha tido até aí”.

No início dos anos 60, Staël regressou a Londres e Ferreira da Silva passa a ter um estúdio só
seu para trabalhar mais artisticamente. Nesse estúdio passou a contar com a colaboração de
três ajudantes: um na roda, outro a fazer os barros e um terceiro que executava pequenas
séries de peças marteladas sobre moldes de madeira, tais como azulejos e castiçais. Peças
únicas iam sendo criadas juntamente com as pequenas séries que os ajudantes executavam.

Falar com Ferreira da Silva sobre as suas peças e o que cada uma representava para si, é tarefa
difícil. Não se lembra de nenhuma que mais o tivesse marcado porque ele “não tinha uma
peça”. O que mais o marcou foi a possibilidade de ter um forno contínuo, de seis canais e
poder trabalhar nos fornos intermitentes de alta temperatura, que eram importados. Tal
possibilitava-lhe a feitura de uma chacotagem, a mais de mil graus, para uma pasta feldspática.
Com os ajudantes iniciou uma fase de misturas, em que barros vermelhos, chamotes e caco
moído permitiam a nascença de peças espessas e enormes que eram cozidas nos fornos de
alta temperatura.

Com Ponte e Sousa e Pinto Ribeiro teve um “belíssimo relacionamento”, pois estes davam-lhe
a possibilidade de na pequena oficina dar asas à sua criatividade.

Nos anos 60 já Ferreira da Silva era avesso aos grandes centros, por onde circulavam grupos de
artistas. Ainda hoje é! “Se vou a Lisboa ver uma exposição, um teatro, um ballet ou uma
conferência não fico lá, nem me vou relacionar com mais ninguém”. Mesmo nas exposições
colectivas o seu comportamento era idêntico. Chegava a levantar o catálogo da exposição sem
dizer que era um dos artistas. “Por timidez…não sei porquê…”.

“A cerâmica que eu fazia era puramente intuitiva”. Servia-se de todos os meios postos à
disposição pela SECLA, mas poucas ou nenhumas revistas da especialidade lia. Seguia a sua
tendência natural.

No barro gravava “de forma violenta e dramática” sob um suporte de barros vermelhos
chamotados e engobes branco, preto e vermelho. Cozida a peça, aplicava-lhe vidrados mates,
que o cativavam devido à sua capacidade de se alterarem. “Isto apaixonava-me e divertia-
me!”. Ia fazendo séries de peças até à exaustão, “até não ter mais para dar”.

Nesse ano era inaugurado o Café Central em Caldas da Rainha e, ainda hoje, lá se encontra o
mural de autoria de Júlio Pomar, que na SECLA executou outras peças. Tomás de Melo, Alice
Jorge, António Areal, António Quadros e Aurélio são os nomes de alguns dos artistas que
passaram pela SECLA e que contribuíram para a sua formação. “Foram pilares de uma época e
ainda hoje são”.

“Contou muito a experiência e tudo aquilo que vi, que discuti e que li. Mas, não foi uma
influência que me levasse a deixar de ser aquilo que era, para começar a ser outra coisa”.

Em 1967 Ferreira da Silva partiu para Paris com uma bolsa da Gulbenkian e com a promessa da
SECLA lhe arranjar um forno eléctrico com capacidade para 1300 graus. Durante os quase dois
anos em que permaneceu em Paris frequentou uma escola de artes que compreendia várias
áreas artísticas, desde a cerâmica, à tapeçaria, passando pelo estafe e pelo vitral. O curso era
muito intensivo e as aulas decorriam de manhã à noite e a frequentá-lo encontravam-se
essencialmente bolseiros vindos de todo o mundo, entre os quais Ferreira da Silva (o único
português).

Tempos conturbados passou na capital francesa. A influência Maoísta da escola que


frequentava fazia nela circular o espírito do “nouvelle humanité”. Sartre e Simone de Beauvoir
eram os autores das suas leituras. “Sou, por natureza, de esquerda e estive integrado em todo
aquele ambiente”, afirma Ferreira da Silva. O Maio de 68 passou-o em Paris e pouco tempo
depois teve de voltar para Portugal.

Em Paris conviveu com mestres, colegas e refugiados políticos portugueses. “Foram anos bem
passados. Contou muito a experiência e tudo aquilo que vi, que discuti e que li. Mas, não foi
uma influência que me levasse a deixar de ser aquilo que era, para começar a ser outra coisa,
embora tivesse tido influência de muita gente. Apaixonaram-no desde sempre, Kandinsky,
Cezanne, Mondrian, Picasso, Delaunay, Klee, Malevitch e Duchamp. Hoje apaixona-me Miró.
Todos eles me influenciaram e marcaram muito o meu estilo”.

Quando voltou à oficina, na SECLA, o seu trabalho ganhou uma nova onda de liberdade.
“Exprimia-me com toda a liberdade e com o meu ego”. No seu subconsciente muitas
experiências foram sendo armazenadas para mais tarde darem o seu fruto num objecto
cerâmico ou numa tela.
O mercado cerâmico iniciou uma fase de competitividade em finais dos anos 60. Passou a
existir a “necessidade de se ser cada vez melhor, de melhores preços, melhor qualidade,
melhor estilo”. A concorrência estrangeira aumentou, assim como a importação de gostos. No
meio de toda esta competitividade de mercado, o forno prometido a Ferreira da Silva foi
preterido em função de outros aspectos considerados prioritários pela fábrica.

Saturado dos muitos anos que já passara na SECLA e desiludido por não ter o forno prometido,
surge-lhe em 1970 a oportunidade de montar uma fábrica. Junta forças com António
Maldonado Freitas e um industrial e a ideia avança. Ferreira da Silva tinha muitas cartas na
manga a nível técnico devido aos conhecimentos adquiridos em Paris e em todos os anos de
trabalho na fábrica. Surgiu então uma pequena fábrica na Benedita para a qual passaram a
trabalhar cerca de 20 operários. Produção de loiça de hotel em grés fino, era o objectivo
definido para a fábrica. Contudo os objectos não se concretizaram como haviam sido
projectados, pois a fábrica foi á falência pouco tempo depois devido a “fraude administrativa”.

Entretanto nova possibilidade de trabalho se seguiu e Ferreira da Silva regressou ao Porto,


mais precisamente a S. Mamede de Infesta, passando a dirigir a secção técnica de uma fábrica
de candeeiros em grés. Nova “falha administrativa” se fez sentir e, assim que pôde, Ferreira da
Silva regressou às Caldas da Rainha. Estávamos já em meados da década de 80 e a SECLA
procurara-o novamente, desta vez para fazer trabalho de assessoria e design gráfico. O seu
regresso dava-se como definitivo para Caldas da Rainha e as pequenas edições de peças
artísticas recomeçaram.

Mesmo quando se encontrava longe, Ferreira da Silva não passava muito tempo sem vir a
Caldas da Rainha. “Havia alturas em que eu tinha necessidade de cá vir, como um rapaz
apaixonado por uma rapariga que, volta e meia, tem saudades e vai vê-la. Eu tinha que vir às
Caldas! Metia-me num comboio ou no carro e vinha. Estava aqui um dia, deambulava e depois
regressava ao trabalho”.

“A própria luz que Caldas tem, eu não encontro noutros lados”. E essa luz fascinara-o. “Parece
que me espevita, sobretudo para trabalhar”.

Entretanto, Vicente do Carmo convidara-o para o CENCAL, Ferreira da Silva passa então a viver
nas Gaeiras, aldeia do concelho de Óbidos, a poucos quilómetros de Caldas da Rainha.

Depois de tudo o que aprendera, lera e discutira, essencialmente da experiência de Paris,


chegara à conclusão que “a arte estava deitada num beco sem saída”. As galerias começaram a
proliferar por todo o lado, os galeristas aumentaram e os críticos de arte apareceram às
dezenas. “Tinha que sobreviver o galerista e o crítico de arte e por isso tinham que ser feitos
artistas muito rapidamente e divulgados como grandes fenómenos”. Resolveu nunca mais
expor.

No entanto, nos anos 80, artistas, galeristas e críticos de arte foram ficando pelo caminho
devido à recessão que atravessou esta década.

Em 1985, o ICEP, Manuel da Bernarda das Faianças S. Bernardo e a AR.CO, realizaram um


Simpósio Internacional de Cerâmica de Arte em Alcobaça. Entre artistas estrangeiros e
portugueses encontrava-se Ferreira da Silva.
“Era o meu grito!”

Nas décadas de 50 e 60, Caldas da Rainha era uma cidade com um grande movimento cultural.
“O teatro estava altamente integrado. Os artistas, os homens dos décors, da luz, do som, com
tendências modernas e, sobretudo, neo-realistas faziam parte desse movimento. Muita gente
interessada em teatro, cinema e leitura”. O C.C.C. – Conjunto Cénico Caldense – estava no seu
auge. “Gente dada a essas coisas das artes”. O próprio Ferreira da Silva fez alguns cenários
para os espectáculos e trabalhou com os encenadores.

Nessa altura fez ainda dois murais para uma casa particular e um mural para a Tertúlia Artes e
Letras, em espaço de convívio de intelectuais num primeiro andar da Rua Almirante Cândido
dos Reis. Este espaço pertencia a Carlos Manuel, “grande dinamizador cultural”, caldense
interessado pelas artes em geral e que permitia a realização de vários encontros na Tertúlia.
Escritores, actores e artistas em geral lá faziam encontros e colóquios sobre “personagens de
grande nomeada nessa época”. Escritores como Bernardo Santareno, Maestro Lopes Graça,
entre outros, eram lá discutidos.

O inferno da Azenha, e o Ferro Velho eram igualmente espaços de convívio “das gentes dadas
às artes”. Formavam um grupo de pessoas interessadas em variadíssimas actividades culturais
que se juntava para conviver.

A partir do momento em que Ferreira da Silva se começou a fartar do movimento neo-realista,


por o considerar “extremamente panfletário”, iniciou uma actividade artística, a par da gravura
e da cerâmica, ligada ao cobre martelado. Queria libertar-se do panfletário. A sua ligação a
estudantes das faculdades de Lisboa e Coimbra, e a actores do TEUC e do Teatro da Faculdade
de Direito de Lisboa envolveu-o em movimentos anti-salazaristas. Começou então a fazer
gravuras para os movimentos estudantis contra o Estado Novo.

A sua ânsia de liberdade crescia a todos os níveis. Iniciou então uma fase de criação de
objectos de ferro na sua oficina, na SECLA, utilizando sucata que comprava nas oficinas e em
sucateiros. “Como tinha muita sucata de automóvel fazia dela a escultura. Nessa altura fiz um
objecto só com tubos de escape e panelas de escape que depois foi cromado”. Com esta peça
original concorreu então num salão colectivo. A exposição colectiva intitulava-se “O Grito”, era
dedicada aos cem anos da arte portuguesa patente no 2º salão da Gulbenkian, na FIL. A
escultura de três metros de altura foi “muito revolucionária para a época. Esteticamente
chocou comos padrões a que as pessoas estavam habituadas” em meados dos anos 60.

“O escândalo pairou sobre Lisboa”, dizia um artigo numa revista de arte e arquitectura
parisiense a respeito da peça do escultor. “Era uma peça muito arrojada, sem dúvida. Er ao
meu grito. Para me libertar do movimento neo-realista”.

Em Caldas da Rainha conheceu por essa altura Luís Pacheco que apareceu para lhe fazer uma
entrevista para o Jornal de Letras e Artes. “Estava eu no passeio do Chiado, ao fundo da praça.
Ele tinha uma figura muito interessante. Cabelo penteadinho para trás, uns óculos de aros
pretos, muito magrinho, vestia um sobretudo preto e umas calças que deixavam ver os
tornozelos, muito brancos e esquálidos. Tinha uma figura característica que me impressionou.
Eu fiquei a olhar muito para ele e, por sua vez, ele a olhar para mim. Toda a minha concepção
estética também se reflectia na minha maneira de vestir e de estar. Até que ele subiu a praça e
dirigiu-se a mim. Disse quem era e que vinha à minha procura. Eu disse que era eu. Disse-me
que tinha vindo de Lisboa e que escrevia para jornais e queria-me fazer uma entrevista. Achei
muito estranho ele vir de Lisboa para me fazer uma entrevista. Eu não me considerava um
artista que fosse conhecido o suficiente para dar uma entrevista para um jornal. Ele ficou nas
Caldas uma grande temporada, ficámos amigos. Havia uma afinidade muito grande entre nós.
Ambos éramos artistas”. Passados dois anos saiu então a entrevista no Jornal de Letras dando
a conhecer Ferreira da Silva a um público mais alargado.

Caldas da Rainha era então uma pequena cidade provinciana com um relativo movimento
cultural, mas de mentalidade bastante conservadora. Ferreira da Silva era um artista, alguém
que fazia coisas estranhas e diferentes do que era habitual. Era visto como um artista um
pouco excêntrico. “As pessoas achavam-me uma pessoa estranha, mas aceitavam-me porque
ouviam outros dizer que era um artista e não um aventureiro. As pessoas do meu círculo
aceitavam-me como eu era e as outras pessoas achavam curiosidade”.

A sua forma de vestir é peculiar. Começou a usar calças de ganga quando viu o filme “Fúria de
Viver”, com James Dean como protagonista. Os jeans de James Dean fascinaram-no e assim
que teve oportunidade convenceu um amigo a trazer-lhe uns dos Estados Unidos. Com os
jeans passou a vestir uma camisa de xadrez vermelha e negra. “Para a época era uma coisa
altamente estranha e eu delirava com aquela roupa”.

Quem não gostou foi o seu pai, pessoa de costumes tradicionais que não se conformou com a
sua maneira de vestir e lhe disse que nunca mais o queria ver trajado daquela forma. Nunca
mais se viram.

Ainda hoje a sua imagem é a de alguém que veste de forma muito colorida e quase
“expressionista”. Camisas coloridas e cheias de flores, os jeans que nunca mais largou, e um
lenço ao pescoço ou à cabeça. É o seu estilo próprio.

“A minha formação como pessoa e como homem está a ser construída ao longo destes anos
todos. Estou em transformação.”

Ferreira da Silva não se limita, ainda hoje, só a trabalhar em cerâmica. A par da cerâmica tem
pintado e muitas das telas que fez não são conhecidas. Outro campo das artes a que se dedica
é a monotipia, que é uma das fases da gravura. Através desta técnica está a fazer um conjunto
de gravuras em ponta seca a que chama o “Ciclo Vicente”, baseado nos autos de Gil Vicente.

Exposições individuais contamos quatro na sua carreira artística, duas em Lisboa, na galeria
111 e na Y Grego, outra em Leiria, na galeria 4 e outra em Bruxelas na Galeria 18 na altura da
Europália.

Nos últimos anos, Ferreira da Silva tem feito peças de grande envergadura. O espaço onde tem
trabalhado para a feitura destas peças tem sido o CENCAL, devido às técnicas imprescindíveis
de que este centro dispõe. Um obelisco alegórico, com quatro metros de altura, considerado o
maior monobloco do mundo, é uma dessas peças. A curiosidade da execução desta peça deve-
se ao facto de ter sido construído um forno em seu redor. Esta escultura era para ser exposta
no Palácio da Ajuda, mas por razões várias acabou por ficar no jardim deste centro de
formação e o D. Luís que forma o complemento do obelisco ficará igualmente no Cencal,
quando estiver terminado.

Um mural para os Paços do Concelho de Caldas da Rainha, com fundo em azulejaria e com
figuras femininas em baixo relevo, simbolizando o ciclo mágico da água foi outra das peças
criadas há poucos meses.

Visando concorrer a uma exposição em memória de D. Sebastião, Ferreira da Silva criou uma
peça simbolizando o rei desaparecido em Alcácer Quibir mas, pela primeira vez na sua carreira,
viu a sua peça rejeitada. “Não fiquei muito pesaroso e aceitei. Escreveram uma carta dizendo
qual o conceito que prevaleceu à escolha. Eventualmente esta peça e outras não estavam
dentro desse conceito”. Em relação a essa escultura, Ferreira da Silva considera que apesar de
muito figurativa é “arrojada e talvez até a pudessem considerar ofensiva à memória do nosso
rei”. Trata-se de uma escultura construída com elementos tirados da roda de oleiro, incluindo
o próprio sexo do rei e em que a figura de D. Sebastião é vista tridimensionalmente de forma
simbólica.

Quando em 1990 o Papa João Paulo II visitou Portugal, a SECLA ofereceu-lhe uma pequena
escultura da autoria de Ferreira da Silva. Após a apresentação de vários projectos, finalmente a
SECLA e o Patriarcado chegaram a um acordo e aceitaram um. Trata-se de uma peça em que a
cerâmica se mistura com a pedra e com o bronze e que simboliza a Evangelização através dos
Descobrimentos portugueses.

Neste momento encontra-se a trabalhar em estudos para um monumento em honra a Fernão


Pó para a Câmara do Bombarral e num outro projecto para a Câmara Municipal de Rio Maior.
Para o novo Centro Paroquial de Caldas da Rainha já tem o projecto aprovado para as cinco
cúpulas octogonais, sob a temática da Cruz e da Humanidade, e para a capela desse mesmo
centro dedicada às Bem Aventuranças.

Cada vez mais, o artista procura que o sentimento de humanidade fique expresso nos seus
objectos.

“A minha formação como pessoa e como homem está a ser construída ao longo destes anos
todos. Estou em transformação.”

Assim o diz Ferreira da Silva e assim o revelam as suas obras. A arte ganha novas formas,
apesar destas nunca perderem a força e a expressão que o autor lhes dá.

Carla Tomás

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