Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Francesca da Rimini, op.
32 Texto publicado no Programa de Concerto da OSESP
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, Julho de 2008.
Tchaikovsky chamou Francesca da Rimini de “Fantasia Sinfônica a partir de
Dante”. O compositor propõe um título que sugere uma forma menos rígida do que a sinfonia, ao mesmo tempo em que valoriza a relação com o conteúdo programático, tal como no poema sinfônico, ao identificar a personagem Francesca e sua fonte literária. Mas, acima de tudo, nesta obra terminada em 1876, ele demonstra trabalhar com o componente da evasão e da descontinuidade presentes na fantasia, que neste momento já era um gênero estabelecido e que continuaria a ser uma alternativa composicional durante o final do século XIX e as primeiras décadas do XX.
No segundo círculo do Inferno, aquele onde estão prisioneiros os pecadores
da luxúria, Dante encontra Francesca e Paolo, os cunhados adúlteros de Rímini. O episódio localiza-se no Canto V do Inferno, na Comédia de Dante. A fuga de um modelo estrutural rígido não quer dizer que Tchaikovsky tenha trabalhado uma forma totalmente aberta. A obra tem um plano formal em três partes, um A-B-A no qual podemos perceber um jogo temporal e o aproveitamento dos contrastes para criar a narrativa musical. A primeira impressão na escuta de Francesca da Rimini é de que a música já começou. Ou talvez seja o drama que já tenha começado, uma vez que a tensão harmônica presente nos compassos iniciais causa uma imediata surpresa.
A primeira parte é movimento, fluxo, tudo é fragmentado e às vezes beira o
violento. Uma grande mobilidade do tempo leva a momentos de grande agitação e estabelece motivos musicais reiterativos, quase obsessivos. Uma verdadeira expressão trágica, como é a história em que se apóia. A parte central é um Andante Cantábile, que finalmente estabelece uma longa melodia, às vezes chamada de “tema do amor”. Neste ponto, talvez não estejamos mais com Dante e sim diretamente com Francesca, em suas memórias. “Não há tão grande dor qual da lembrança de um tempo feliz, quando em miséria”, Francesca conta “como quem chora e diz”. Tchaikovsky trabalha uma certa suspensão temporal, interrompendo o fluxo do discurso da agitação e angústia e cedendo lugar ao solo de clarinete desacompanhado e depois ao tema e suas variações. As idéias musicais vão se transformando à medida que são apresentadas pelos diferentes naipes da orquestra e a escrita torna-se mais transparente e evocativa. O final do Andante traz de volta a idéia inicial, fugaz, fragmentada. O tratamento da orquestra em direção ao clímax é um dos pontos fortes da escrita de Tchaikovsky, que no final cria um efeito de turbilhão e parece aludir a Dante, que se esvaiu de "pena e dor" e caiu “como corpo morto que cai”, diante da fatalidade do sofrimento eterno dos dois amantes no inferno.
*Nas citações de Dante, foi usada a tradução de Italo Eugenio Mauro, em
publicação bilíngüe pela Editora 34.
Susana Cecília Igayara
Musicóloga e Professora do Departamento de Música da ECA-USP.