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Alexander von Zemlinsky: Uma tragédia florentina, op.

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Texto publicado no Programa de Concerto da OSESP

Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, Julho de 2008

Considerando a notoriedade de seu círculo pessoal, Alexander Zemlinsky


ainda pode ser descrito como desconhecido e enigmático. Nascido em 1871, teve
contato direto com Brahms, personalidade musical dominante e grande influência
em suas obras iniciais. Em sua época de estudante foram estreadas no Musikverein
de Viena obras de Wagner, Verdi e Massenet, criticadas na imprensa pelo influente
Eduard Hanslick. Seu ambiente musical incluía o cunhado Schoenberg, de quem foi
professor por um breve tempo, Webern e Alban Berg, cuja Suíte Lírica lhe é
dedicada, Alma e Gustav Mahler (Foi Zemlinsky, professor de Alma e por ela
apaixonado, quem aproximou o casal Mahler), além de Schreker e Korngold, entre os
mais próximos. Apesar de ter recebido os mais altos elogios póstumos de Stravinsky,
não atingiu, como regente, a projeção de Otto Klemperer, Georg Szell ou Erich
Kleiber, seus contemporâneos, mas foi uma personalidade ativa como regente,
compositor e requisitado pianista.

Uma tragédia florentina data de 1916, durante seu período em Praga como
diretor musical do Landestheater. O tempo empenhado nas funções de regente e
administrador não permitiu uma produção mais numerosa, nesta época em que
escreveu as duas óperas de um ato a partir de textos de Oscar Wilde. Composta para
três personagens e ambientada em Florença, século XVI, a ópera apresenta um
cenário de infidelidade, morte violenta e reconciliação. Simone, um mercador, volta
de viagem e encontra a esposa Bianca com um jovem e rico príncipe, Guido Bardi.
Simone, que logo percebe a traição, finge tratar Guido como um cliente.

Musicalmente, Zemlinsky constrói um Allegro, com temas musicais


relacionados às ofertas de mercadorias por Simone e estabelece diálogos cheios de
jogos psicológicos entre as personagens. A tensão aumenta, até que Guido diz
comprar todas as mercadorias, se tiver Bianca em troca. Simone ordena que Bianca
teça alguma coisa, talvez uma mortalha. Na seqüência, diálogos sobre comércio,
sobre morte e moral expõem os diferentes universos culturais e morais das
personagens e anunciam um final trágico. Na próxima seção, Simone pede que
Guido toque seu alaúde, mas ele recusa. Ironia e ameaça crescem nas falas de
Simone, que termina a cena deixando o ambiente e abrindo espaço para um dueto
de amor entre Guido e Bianca. A fatalidade está posta, pois o triângulo não permite
uma solução feliz para todos os personagens.
O próprio Zemlinsky analisou a situação como trágica, uma vez que um
personagem precisa ser sacrificado para salvar os outros dois. A volta de Simone faz
a transição para o final, agora configurando um duelo. Apesar de ferido, Simone
consegue desarmar e matar Guido. Um glissando no violino marca o fim de Guido e
então, surpreendentemente, ocorre a reconciliação do casal. Bianca, que antes
pedira ao amante para matar o marido, agora pergunta: por que você não me disse
que era tão forte? E Simone: por que você não me disse que era tão bonita?

Oscar Wilde escreveu a peça em 1893, mas não chegou a terminá-la,


deixando em aberto justamente o início, que apresentaria uma cena de amor entre
Bianca e Guido, problema resolvido por Zemlinsky com uma abertura instrumental.
O deslocamento temporal e geográfico sempre foi um recurso seguro para o
exercício da crítica social e de costumes, e a Itália renascentista serviu de inspiração
para muitos artistas europeus do final do século XIX e início do XX. No universo da
ópera, além de Zemlinsky, a temática renascentista foi usada por Korngold, Schreker
e Schilling, por exemplo. Por outro lado, a escolha de uma obra de Oscar Wilde
também está relacionada ao sucesso de Salomé, de Richard Strausss, estreada em
1910, e ao impacto causado pela vida e obra de Wilde na intelectualidade européia,
após a sua morte em 1900.

Na Tragédia Florentina, Simone domina praticamente toda a ópera. O uso de


apenas três solistas é contrabalançado por uma orquestração grandiosa, opulenta,
detalhista, da qual Zemlinky busca o máximo de expressividade e dramaticidade. A
construção musical segue uma certa linearidade rumo ao clímax final, talvez
interrompida apenas pelo contrastante dueto de amor. Os dois temas musicais
preponderantes costumam ser vistos como temas da morte e do amor, mas não
chegam a se configurar em leitmotivs. O uso do Arioso oferece aos cantores um tipo
de construção vocal que passa facilmente de um perfil mais declamado para uma
construção mais puramente melódica e a orquestra, que anuncia os embates e as
disputas entre os personagens, nunca ocupa um papel secundário ou meramente
descritivo.

Uma das mais citadas frases de Zemlinsky é "meu tempo virá depois da
minha morte". Nos últimos anos de vida, em seu exílio nos EUA, não chegou a ser
reconhecido como compositor e, sofrendo com problemas cardíacos, morreu em
1942. O seu tempo pode estar finalmente chegando.

Susana Cecília Igayara

Musicóloga e Professora do Departamento de Música da ECA-USP.

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