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FCSH-UNL Teoria da Cultura 2021/2022

José Candeias | nº52783

A naturalização do medium enquanto imediação transparente


Bolter e Grusin, na afamada obra Remediation (2000), avançam com o argumento de que o
progresso tecnológico das sociedades ocidentais se está a realizar com vista a um ideal de
imediação transparente. Apesar do argumento genealógico dos autores recuperar uma história
que se estende até à renascença, o principal foco empírico é referente à emergência das
tecnologias computacionais e das relações entre humano e interface digital. A este propósito, os
autores escrevem:

«A realidade virtual, gráficos tridimensionais, e o design da interface gráfica


procuram tornar a tecnologia digital “transparente”. Neste sentido, a interface
transparente seria uma que se apaga a si mesma, ao ponto de o utilizador não
estar consciente de estar perante um medium, mas sim perante uma relação
imediata aos conteúdos do medium» (pp. 23-24)1.

Esta tendência tem como o seu ideal último na actual episteme tecnocientífica a realidade
virtual. Na realidade virtual, a transparência do medium, entendida enquanto imediação, é vista
como total: as interações entre utilizador e medium fazem-se com o menor atrito possível da
interface, e, nessa medida, o medium retrai-se da consciência do utilizador. Idealmente, a
interface deixa mesmo de existir e o utilizador contacta directamente, através dos seus
movimentos corporais “naturais”, com um mundo virtual.

Porém, mesmo fora desta realidade virtual idealizada em que a interface desaparece quase
de forma literal, encontramos a procura da transparência nas actuais tecnologias digitais
enquanto métodos concretos para retrair a consciência da presença da mediação - ou, dito por
outras palavras, enquanto métodos para «naturalizar» o medium (Bolter e Grusin, 2000, p. 23).
Desde a utilização da perspetiva linear em jogos de first person shooter, passando pelo recurso a
remediações de media analógicos que estabeleçam efeitos de realismo, até ao progressivo
aumento do realismo dos gráficos digitais - com a sua procura incessante pelo designado
fotorealismo - em todos estes casos encontramos uma procura pela transparência a partir de um
conjunto de práticas e crenças instituídas tanto na perspetiva do sistema de produção e
distribuição mediático, quanto na perspetiva de recepção.

Bolter e Grusin sublinham, no entanto, que a forma como o medium desaparece da


consciência do utilizador e se naturaliza enquanto uma parte da corrente do quotidiano é uma
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Todas as traduções apresentadas são de minha autoria.

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forma codificada culturalmente (p. 21). Bolter (2000) concretiza afirmando que as propriedades
formais do medium são inseparáveis das questões materiais e económicas (p. 69). Neste sentido,
as propriedades materiais do medium não são conceptualizadas como diferenciadas - ou
diferenciáveis - daquilo que podemos designar enquanto os costumes culturais de uma
determinada época. Aqui, e sem cair necessariamente em nenhum tipo de determinismo
tecnológico, podemos afirmar que a influência é bidirecional. Autores como Kittler (1999)
documentam como o aparato tecno-mediológico de uma determinada época influencia as
tendências culturais da mesma, enquanto que autores como Feenberg (2017) colocam a tónica
na forma como os fluxos socioeconômicos de uma determinada época moldam as suas
tecnologias.

Por entre as infinitas danças e nuances que este jogo entre cultura e tecnologia faz emergir,
diversos autores têm documentado uma tendência para um imperativo de transparência nas
sociedades ocidentais contemporâneas que, sendo inseparável do sistema mediático, vai muito
para além do mesmo. A este propósito, Byung Chul-Han (2014), no seu estudo filosófico sobre as
diversas vertentes do imperativo da transparência nas sociedades contemporâneas, sublinha: «o
sistema social submete hoje todos os seus processos a uma coação da transparência que visa
torná-los operacionais e acelerá-los» (p. 12). A ideia base é que, para os processos do sistema
social se tornarem mais operacionais, necessitam de se tornar mais transparentes - isto é,
naturalizados através de lógicas que permitam o acesso e a quantificação de todas as vertentes
da vida.

A este propósito, Mark Nunes (2011) sublinha que a forma «como conduzimos negócios,
trocamos ideias, nos entretemos, e como participamos na política depende de fluxos de
informação fiáveis» (p. 3). Esta datificação de todas as vertentes do real não é apenas
conceptual: os sistemas de produção e distribuição económicos estão cada vez mais
dependentes dos sistemas de controlo digitais. Mark Nunes estabelece uma ligação direta entre
transparência e eficiência - os fluxos de informação precisam de se tornar transparentes para
que os sistemas de controlo possam processá-los e torná-los eficientes. Neste sentido, a questão
de naturalizar as mediações tem implicações que vão muito para além do momento de mediação
tecnológica, e o ideal de transparência tecnocientífico não se limita à transparência do medium.

Regressando à questão mais concreta da transparência do medium, importa sublinhar, para


os propósitos do nosso raciocínio, como a transparência do medium pretendida pelo progresso
tecnocientífico também corresponde, necessariamente, a uma certa dose de ofuscação. Se o
medium sai da percepção de quem o utiliza, se a mediação se esconde no próprio momento da
mediação, a transparência implica, por consequência, uma multiplicação do invisível. O caso da
realidade virtual é aqui paradigmático: ainda que o utilizador tenha uma experiência imediada e
transparente no processo de imersão no mundo digital, a mesma apenas pode ocorrer devido a
um aparato tecnocientífico que vai desde a distribuição de eletricidade até aos algoritmos que
geram o grafismo da experiência - uma rede de atores que inclui agências humanas e
não-humanas, na terminologia de Katherine Hayles (2020, p. 2). E é precisamente esse aparato
técnico que a transparência faz desaparecer da consciência. As implicações culturais e políticas
desta multiplicação de espaços invisíveis a partir da transparência naturalizada do medium são,
obviamente, vastas e profundas.

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A(s) estética(s) do ruído


Numa carta escrita em 1913, mais tarde conhecida enquanto a "A Arte dos Ruídos: Manifesto
Futurista", o futurista Luigi Russolo defende que num mundo onde as máquinas se multiplicam,
no qual os barulhos das máquinas ocupam cada vez mais espaço sonoro nas cidades, o ruído
reina em relação à «sensibilidade do homem» (1984, p. 23). A proposta musical do autor é criar
uma arte musical com combinações «dissonantes, estranhas e duras para o ouvido» com base
em sons considerados, por convenção, "ruído" (p. 24). Para o autor, esta integração do ruído na
música significa um alargamento das suas possibilidades sonoras. Encontramos em Russolo um
pioneiro de algo que se tornaria bastante mais comum na segunda metade do século XX, que viu
emergir diversos géneros musicais em que o ruído é parte integrante das composições -
encontramos aqui exemplos como as guitarras distorcidas do punk ou do heavy metal, ou o
experimentalismo de bandas do género industrial como os Einstürzende Neubauten ou os
Throbbing Gristle. O género musical noise, com todas as suas sub-divisões, é um exemplo
extremo desta tendência, ao colocar a produção de ruído enquanto o seu propósito primordial.

O que significa, no entanto, dizer que algo é ruído - em particular, no contexto da arte?
Douglas Kahn (1999) defende que definir o ruído «de uma maneira única para todos os
contextos só convidará o ruído em si mesmo» (p. 21). De facto, como veremos, aquilo que é (ou
pode ser) considerado ruído é vasto e inseparável de contextos históricos concretos. Isto não
nos impede, no entanto, de estabelecer uma tipologia analítica que permita gerar uma espécie
de constelação conceptual do ruído - no sentido que Walter Benjamin dá ao termo (1998, pp.
27-36). Fetveit (2013) estabelece e explora dois sentidos possíveis para o termo ruído. O
primeiro é sonoro - e adequa-se bastante bem aos exemplos musicais referidos. Neste sentido, o
ruído é um «distúrbio causado por sons» (p. 190). É possível estabelecer um princípio mais
geral a partir deste, que vá para lá da percepção sonora, segundo o qual o ruído corresponde a
«algo que perturba a percepção de outra coisa» (p. 190).

O autor refere, no entanto, que existe um segundo sentido que o termo ruído pode adoptar -
com possíveis aproximações e distanciamentos em relação ao primeiro. Este segundo sentido é
um sentido tecnocientífico e refere-se à elaboração do conceito de ruído na tradição da teoria
matemática da comunicação de Shannon e Weaver. Shannon e Weaver estavam preocupados
com a transmissão de mensagens através de aparelhos tecnológicos. Neste contexto, consideram
ruído todos os sinais que sejam transmitidos a mais do que aquilo que era a intenção de quem
envia. Escreve Weaver a este propósito:

«No processo de serem transmitidas, é infelizmente característico que certas


coisas sejam adicionais ao sinal que não foram intencionadas pela origem da
informação. Essas adições indesejadas podem ser distorções de som (na
telefonia, por exemplo) ou estática (no rádio), ou distorção de forma ou
sombreamento na fotografia (televisão), ou erros de transmissão (telegrafia ou
facsímile), etc. Todas essas alterações no sinal transmitido são chamadas de
ruído» (pp. 7-8).

No meio digital, poderíamos acrescentar os bugs ou os glitches a esta lista de Weaver. Da


citação, podemos retirar duas ideias-chave relevantes para o propósito do presente raciocínio.
Em primeiro lugar, que todos estes tipos de ruído referidos por Shannon já foram, de alguma
forma, aproveitados para desenvolver processos ou objetos artísticos. Podemos agregar esse

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conjunto de experiências e objetos numa sombrinha conceptual constelar designada de estética


do ruído. Em segundo lugar, Weaver refere que para cada medium, existe um tipo de ruído
específico. De facto, diversas experiências artísticas concentram-se especificamente nestas
relações entre ruído e o medium específico que lhe deu origem - a glitch art, que analisaremos,
corresponde a um movimento que se enquadra neste afunilamento particular de uma estética
do ruído.

A teoria da informação e a poiesis do espaço equivocativo


Não é necessário grande argumentário para afirmar que o ruído é genericamente visto como
algo indesejável, tanto no sentido de algo que perturba a percepção de outra coisa, como no
sentido tecnocientífico do termo. Podemos, aliás, ver esta conotação negativa explicitada nos
textos de Shannon e Weaver. Os autores classificam o ruído enquanto um aumento de
informação a partir de introdução de sinais na mensagem que o emissário não desejava enviar
(Weaver, 1949, p. 19). No entanto, apesar de ser informação indesejada, o ruído é informação.

Classificar o ruído como informação pode parecer algo contra-intuitivo. Sobre este ponto, é
preciso ter em consideração alguns pormenores. Apesar de reconhecerem perfeitamente que
existem vários níveis de problemas na questão da comunicação, Shannon e Weaver estavam
fundamentalmente preocupados com problemas técnicos (p. 4). Neste sentido, existe uma
separação - ainda que artificial - do conceito de informação de questões de significação. Como
Fiske (1990) sublinha, o problema em mãos dos autores trata de criar as condições para as
tecnologias de comunicação «serem usadas de forma mais eficiente» (p. 6). Neste sentido, a
informação é conceptualizada como um conjunto de bits quantificáveis. O problema
fundamental de Shannon e Weaver passa por maximizar a eficiência na transmissão destes bits
através de meios tecnológicos. É a partir desta premissa que os autores tomam a opção, em
contraposição com a tradição da termodinâmica e a tradição da cibernética de Wiener, de fazer
uma equivalência entre informação e entropia - a «escolha de Shannon», como a designa
Katherine Hayles (1991, pp. 31-60). Para a cibernética de Norbert Wiener, inspirada na tradição
da termodinâmica, um aumento de entropia corresponde a um aumento de desordem de um
determinado sistema. Já a informação corresponde ao seu oposto - à possibilidade do sistema se
organizar para contrariar as tendências entrópicas. A informação é, assim sendo, o «negativo da
entropia» (Wiener, 1970, p. 21). Para Shannon e Weaver, o problema surge ao contrário: a sua
preocupação é codificar a transmissão de mensagens no ponto A para que seja descodificada no
ponto B, partindo do pressuposto que existe um código partilhado em ambos os pontos. Este
código partilhado codifica um determinado número de possibilidades de transmissão - ou, dito
de outra forma, um determinado número de possibilidades informativas. Quanto mais
possibilidades estiverem contempladas na codificação, mais possibilidades informativas
existem, mais operações são necessárias para prever e descodificar a mensagem recebida e,
logo, mais entropia existe em potência no canal de transmissão.

Aqui, é importante deslindar a delicada dança entre entropia e ruído na teoria matemática
da comunicação. O ruído, sendo informação, é visto como um tipo particular de entropia - que
surge num espaço designado como equivocação (Weaver, 1949, p. 20). A equivocação é definida
especificamente como o grau de incerteza em relação à mensagem pretendida quando o sinal
chega ao receptor - ou seja, a equivocação corresponde à incerteza introduzida pelo ruído (p.
11). Assim sendo, neste modelo, um aumento de informação não corresponde necessariamente

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a algo positivo ou desejável. Todos os tipos de ruído que cada medium pode produzir - desde as
distorções de som até aos glitches informáticos - são classificados por Weaver explicitamente
como «incerteza indesejável» (p. 19). Aqui vemos uma clara aproximação daquilo que a teoria da
informação entende por ruído com o outro sentido que Fetveit descortina para o conceito:
enquanto algo que prejudica a percepção de outra coisa.

No entanto, apesar de separarem a questão da informação da questão da significação, e de


classificarem o ruído como algo geralmente indesejável2, este aproximar entre entropia e
informação no modelo de Shannon e Weaver produziu a necessidade de justificar a aproximação
entre o conceito de informação (por norma associado a ordem) e o conceito de entropia
(normalmente associado a desordem). Como Katherine Hayles sublinha:

«Pelo simples facto de usarem “informação” e “entropia” como se fossem termos


intercambiáveis, a escolha de Shannon deu lugar a décadas de comentário
interpretativo que procurou explicar porque é que informação deveria ser
identificada com desordem em vez de ordem» (1991, p. 51).

No contexto da teoria matemática da comunicação, um aumento de informação pode ser


entendido muitas vezes como um aumento de aleatoriedade - dependendo de diversas variáveis,
entre elas a intenção do emissário ou os problemas técnicos do canal. Em contraposição, e até
subversão, em relação aos propósitos de Shannon e Weaver, diversos autores que comentaram o
modelo descortinaram neste espaço de equivocação algo de potencialmente produtivo: «assim
que a aleatoriedade foi entendida enquanto informação máxima, foi possível imaginar o caos
(como Robert Shaw o faz) enquanto a fonte de tudo o que é novo no mundo.» (Hayles, 2001, p.
51).

Umberto Eco (1989), ao discutir a teoria de Shannon e Weaver na Obra Aberta (pp. 55-62),
chega a conclusões semelhantes. Shannon e Weaver dão-nos uma perspetiva da comunicação
como sendo algo permanentemente assombrado pela possibilidade da mensagem recebida não
ser a mensagem enviada - o tal espaço da equivocação. No entanto, quando os autores colocam o
problema do ruído como um problema de distanciamento entre essas duas instâncias
comunicativas, abrem igualmente a porta à ideia de um ruído produtivo - ou uma «poiesis do
ruído», como lhe chama Mark Nunes (2011, p. 4). O propósito de Shannon e Weaver seria,
através da aplicação rigorosa da estatística e da teoria das probabilidades a partir de um código
previamente definido, diminuir o espaço do ruído e da equivocação; mas, em contraposição, o
propósito da poética artística seria sustentar e expandir precisamente esse espaço. Escreve Eco:

«(...) a originalidade de um discurso estético envolve, até certa medida, a ruptura


(ou o afastamento) com o sistema linguístico de probabilidades, que serve para
transportar significados estabelecidos, com vista a aumentar o potencial
significante da mensagem» (p. 58).

Neste sentido muito concreto, e expandindo as ideias do autor na direção do presente


raciocínio, o espaço da arte pode ser conceptualizado como um espaço em que a eficiência ou a
transparência não são vistas como imperativos. Não parece de todo problemático afirmar que

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Shannon e Weaver reconhecem, no entanto, que uma pequena - e controlada - quantidade de ruído é necessária para
maximizar a eficiência do canal de transmissão.

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existem tendências fortes no campo da arte que procuram precisamente o lugar da


não-transparência.

Glitch Art: o colapso do medium enquanto a sua revelação


O modelo da teoria matemática da comunicação, ao pretender aumentar a eficiência do
medium tecnológico diminuindo o espaço da equivocação e do ruído, é enquadrável na procura
da imediação tecnológica descrita por Bolter e Grusin. Ao separar a informação da significação, e
ao procurar tornar o medium o mais eficiente possível, Shannon e Weaver procuram uma
neutralização do medium no seu contexto. Neste sentido, os primórdios da teoria da informação
estão embebidos de um desejo de retirar o medium da consciência do utilizador, tornando-o o
mais transparente possível para facilitar os fluxos de informação. Porém, como vimos, existe
uma tensão interna no modelo, que aproxima a informação da entropia e conceptualiza o ruído
como sendo informação (ainda que indesejável), tornando-o assim aberto a possíveis
subversões - tanto de índole conceptual como prática.

A artista/teórica Rosa Menkman enquadra-se nesta categoria de subversão a partir da teoria


da informação - a autora parte da conceptualização de ruído desta teoria, apesar de estabelecer
uma dialética de criação/destruição com a mesma (2011b, pp. 13-14). Rosa Menkman é uma das
artistas mais conhecidas do género conhecido enquanto glitch art, tendo escrito o influente
Glitch Studies Manifesto (2011a). Glitch art é um termo que, na sua acepção mais ampla, inclui
todas as manifestações artísticas que, de alguma forma, façam uso de erros ou ruídos de um
determinado medium para propósitos estéticos. Neste sentido amplo, incluem-se trabalhos tão
diferentes como os videoclipes Welcome To Heartbreak (2009) de Kanye West ou o Rock Me
Amadeus (2019) dos Front Line Assembly, as performances de noise dos 5VOLTCORE, passando
pelas modificações de videojogos como o Untitled Game (1996-2001) de Jodi, ou a estética do
Vaporwave. Apesar de ser
possível estabelecer uma
genealogia do género e dos seus
antecedentes que vai até aos
movimentos modernistas do
início do século XX, o movimento
glitch surge e ganha força no final
do século XX, início do século XXI
- acompanhando a progressiva
ubiquidade dos sistemas
computacionais. Sendo este
género, na sua acepção mais
ampla, realmente vasto, para os
propósitos do nosso raciocínio,
faremos um recorte de análise
que estabeleça contacto com a
questão da imediação e da
transparência - com foco

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sobretudo nas tecnologias computacionais, que são as predominantes neste movimento


artístico3.

A perspectiva teórica de Rosa Menkman é uma boa âncora para contextualizar, pelo
menos, uma parte da glitch art. Menkman cita e concorda com a proposta de Bolter e Grusin de
que o desenvolvimento tecnológico se está a efectuar na procura de uma transparência imediada
(2011b, p. 14). A artista descreve esta procura pela imediação enquanto a suposição de que a
tecnologia «não intervém no processo de enviar ou percepcionar informação» (2011b, p. 14). No
Glitch Studies Manifesto, Menkman classifica a procura da imediação da seguinte forma: «A
procura, dominante e continua, por um canal sem ruído tem sido, e será sempre, não mais do
que um dogma lamentável e malfadado» (2011a, p. 2).

Rosa Menkman propõe uma subversão da relação com o medium a partir de uma relação
igualmente subversiva com a teoria da informação. No seu método, a artista parte da separação
proposta por Shannon e Weaver entre informação e significado, olhando para os mecanismos
técnicos de um medium como sendo, passe a redundância, meramente tecno-informacionais. De
seguida, a artista cria as condições para que o medium produza alguma forma de ruído - sendo
que ruído é entendido aqui de forma idêntica à proposta pelos autores da teoria matemática da
comunicação. Aquando o surgimento de algum tipo de ruído, por algum motivo, considerado
relevante em termos estéticos, a artista procura capturar esse ruído e dar-lhe um novo contexto.
Nesta sequência, «(...) esses artefactos não são mais entendidos enquanto ruído com base na
teoria da informação, mas são elevados a objetos que encontram o seu significado dentro das
humanidades ou ciências sociais» (2009, p. 2). Rosa Menkman, como fica explícito nesta citação,
trabalha na intersecção entre arte e teoria - a artista procura gerar uma estética que esteja em
intersecção com o estudo teórico. Este não é, obviamente, o caso com todos os artistas deste
movimento. No entanto, a metodologia base é similar para a maioria dos artistas da glitch art,
pelo menos na sua vertente mais crítica; ainda que o objetivo não seja necessariamente
encontrar significado de uma perspetiva teórica, mas possa ser “apenas” encontrar um
significado estético no ruído. Como Tim Barker (2011) resume: «Neste tipo de obra o papel do
artista é impelir a que ocorra um erro ou um glitch no sistema específico, e depois reconfigurar
ou explorar as qualidades generativas do erro imprevisto» (p. 44).

Trata-se de tornar o ruído significante. Em sistemas computacionais, a glitch art recorre a


técnicas que podem ser enquadradas nas categorias gerais de databending e circuitbending. No
databending, o código que suporta um determinado conteúdo na interface é alterado/destruído
para produzir um determinado efeito. O Glitchbrowser (2005), dos artistas Beflix, Organised e
Dmtr, é aqui um exemplo relevante. Enquanto que um browser “convencional” procura tornar os
websites acessíveis e disponíveis de uma forma visualmente standard, o Glitchbrowser
encontra-se programado para ler a data do website, desfigurá-la e apresentar uma versão
“glitch” do mesmo. No circuitbending, o ataque ao medium é feito diretamente no hardware. As
técnicas de circuitbending envolvem alterações no hardware de um determinado sistema
computacional para gerar outputs novos e não pretendidos pelo design original - mas que, ainda
assim, se encontravam no leque de possibilidades do sistema. Podemos encontrar um exemplo
no artista noTendo, que faz circuitbending ao sistema de jogos Nintendo Entertainment System
(NES) para produzir visuais - e sons - glitch. Este possível e recorrente colapso entre visual e

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Existem antecedentes para as técnicas aplicadas na glitch art. Uma exploração destes antecedentes vai muito para
além dos propósitos deste trabalho, mas A Colour Box (1935), de Len Lye, e The Cut-Ups (1967) de Antony Balch e
William Burroughs, são nítidos exemplos.

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som não é acidental. Existe, de facto, uma certa tendência para os glitch artists trabalharem com
diferentes “tipos de media” - som, video, texto etc. Colocamos aqui “tipos de media” entre aspas
devido à questão em aberto nos estudos teóricos em relação ao colapso, ou não, dos diferentes
tipos de media em apenas um medium a partir da digitalização. A este propósito, escreve Kittler
(1997):

«A digitalização de canais e informação apaga as diferenças entre media


individuais. Som e imagem, voz e texto são reduzidos a efeitos de superfície,
conhecidos aos consumidores enquanto interface. [...] Dentro dos computadores
tudo se torna número: quantidade sem imagem, som ou voz. E assim que as
redes de fibra óptica tornem os fluxos de data anteriormente distintos em séries
de números digitalizados e standardizados, qualquer medium pode ser traduzido
em qualquer outro» (pp. 1-2).

Nesta sequência, os erros computacionais podem ser explorados em diversas modalidades


mediáticas - na medida em que o sistema computacional pode simular, ou remediar, qualquer
medium anterior, e qualquer destas modalidades mediáticas pode produzir bugs ou glitches.
Aqui é importante esclarecer que a maioria das práticas dos glitch artists não são, num sentido
técnico estrito, glitches. Menkman explicita a diferença entre glitch e bug como pertencente a
uma espécie de grau de conhecimento em relação à origem - o bug é um erro de código
perfeitamente identificado e enclausurado, enquanto que o termo glitch se refere a erros ou
problemas temporários e de origem incerta (2011b, p. 27). Ainda que os métodos concretos
artísticos nem sempre produzam glitches neste sentido mais estrito, os artistas deste
movimento consideram que este termo é o mais adequado para nomear a sua estética. A este
propósito, escreve Menkman:

«Um glitch é o artefacto de ruído mais intrigante, difícil de definir e encantador;


revela-se a si mesmo à percepção enquanto um acidente, caos ou laceração e
dá-nos um vislumbre da linguagem maquínica, por norma ofuscada. Ao invés de

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criar a ilusão de uma interface transparente e funcional em relação à informação,


o glitch captura a máquina a revelar-se a si mesma» (pp. 29-30).

Aqui entramos no âmago do propósito da metodologia proposta pela glitch art. A ideia de
Menkman, em sintonia com algumas ideias já previamente apresentadas no presente raciocínio,
é que o imperativo da transparência gera zonas de ofuscação gigantes - desde logo, ofusca a
consciência da própria mediação - sendo que a ofuscação tem um peso cultural e político não
negligenciável. Assim sendo, esta dialética que visa destroçar o medium para que o mesmo
produza ruído, para de seguida elevar o ruído a uma estética artística, pretende colocar o
próprio processo de mediação no centro da atenção e do pensamento. Nas palavras de
Menkman, a forma como um medium falha - o seu ruído - corresponde às suas «impressões
digitais» (2011a, p. 2). Na glitch art, o colapso do medium corresponde, portanto, à sua
revelação. É importante notar, no entanto, que tanto o conceito de ruído, como o próprio
conceito de mediação, ganham uma dimensão que vai para além do tecnológico. Na linha de
autores como Kittler ou Feenberg, o tecnológico não é visto como algo reificado, separado ou
separável das questões sociais e culturais:

«(...) a materialidade da glitch art não é (apenas) a máquina onde a obra aparece,
mas uma construção em constante mudança que depende de interações entre
dinâmicas textuais, sociais, estéticas e económicas e, claro, o ponto de vista a
partir do qual os diferentes actores criam significado» (p. 10).

Do ponto de vista maquínico, uma sequência de bits que é considerada ruído por parte do
utilizador, é apenas mais uma sequência de bits. Apenas mais um processo material como outro
qualquer. É no contexto dos padrões de produção, distribuição e utilização mediáticos,
historicamente localizados, que as fronteiras entre informação desejável e ruído são
estabelecidas. Estes padrões tecnológicos são, portanto, absolutamente inseparáveis dos
padrões económicos, sociais e estéticos nos quais emergem. Um dos principais problemas que
podem emergir de uma mediação transparente é a ofuscação não só do momento de mediação,
como também das estruturas de poder que a suportam. Na glitch art, estas fronteiras quebram -
e procura-se a possibilidade de gerar novos padrões e novos significados a partir de um
horizonte de destroços (p. 11).

Tensão entre processo e produto - a mercantilização da crítica


Não é apenas a teoria da informação que possui as suas tensões e paradoxos. A glitch art
também está repleta de tensões e contradições, algumas reconhecidas e teorizadas por Rosa
Menkman. Uma das possíveis contradições é, obviamente, a domesticação do ruído (2011b, p.
55). A partir do momento que um tipo de ruído é intencionalmente procurado e produzido, o
mesmo continua a ser verdadeiramente ruído? Como vimos, Menkman resolve esta contradição
remetendo para a inseparabilidade de conceitos como ruído e significado (e as suas fronteiras)
de redes tecno-sociais mais vastas e historicamente localizadas. Por outras palavras, elevar o
ruído para esse local de indefinição e quebra conceptual é, em grande medida, o objetivo da
glitch art como esta Menkman a entende.

Porém, surge aqui um segundo problema, adjacente a este, e que remete para uma divisão na
glitch art de um ponto de vista da sua produção - divisão essa que, como Menkman refere, pode
não ser perceptível de um ponto de vista da recepção. Trata-se da questão do método de

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produção do glitch. Uma parte da glitch art recorre a métodos de databending ou circuitbending
para forçar o medium a produzir bugs, glitches e erros em geral; e utiliza esses erros num
horizonte estético crítico. Porém, com o desenvolvimento de determinados «arquétipos de
glitch» (2011a, p. 7) - que correspondem a formas de ruído particulares que se tornaram, de
alguma forma, célebres ou culturalmente relevantes ao longo dos anos 10 do terceiro milénio -
surgiram também tendências sócio-culturais de simulação do glitch. Referimo-nos a filtros de
fotografias, disponibilizados por plataformas como o instagram ou o snapchat, para introduzir
ruídos específicos em fotografias - por exemplo, a simulação que a fotografia foi captada por
uma máquina analógica; ou ao já referido videoclipe de Kanye West, que recorre à estética do
glitch não com um horizonte crítico, mas enquanto mais uma forma de falar da sua vida amorosa
pessoal. Nestes casos, não só o ruído pode nem ocorrer de uma perspetiva técnica - apenas a sua
simulação - como o horizonte da sua utilização foi apropriado pelas lógicas da imediação. O
ruído passa a ser utilizado como apenas mais uma ferramenta da transparência.

Rosa Menkman, seguindo uma tradição modernista, faz uma separação relativamente rígida
entre vã-guarda e cultura popular, não deixando de referir a superioridade da primeira. Apesar
dessa separação, a autora sublinha que mesmo as simulações de glitch fazem parte da glitch art -
ainda que designe essa tendência enquanto «conservadora» (2011a, p. 7). A este propósito de
uma possível separação entre arte e cultura popular na glitch art, é importante sublinhar a
existência e circulação de obras híbridas que quebram sequer a possibilidade de conceptualizar
a separação. O também já referido videoclipe Rock Me Amadeus dos Front Line Assembly
apresenta uma estética glitch, embebida de diversas camadas irónicas e pós-irónicas, em que
elementos de pop culture e vã-guarda são misturados e remisturados ao som de uma nova
versão do clássico da pop culture alemã originalmente de Falco - que versa sobre a ideia de que
Mozart não foi mais do que uma pop star da sua época. Neste caso, estamos próximos de um
pastiche pós-moderno, em que qualquer fronteira que essencialize a arte deixa de fazer sentido,
sem que um horizonte crítico seja necessariamente perdido.

Ainda que a separação entre vã-guarda e cultura popular possa ser criticável, a tensão
referida por Menkman entre a produção crítica e a reapropriação mercantil continua a existir - e
a diluição da estética glitch em apenas mais uma forma de imediação é uma tendência que
ganhou fôlego. Esta possibilidade acaba por fazer sentido dentro da conceptualização da própria
Menkman: quando o ruído é elevado a novos tipos de significação, historicamente localizados,
nada garante que não serão mais horizontes de neutralização da consciência da mediação.

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O elogio do ruído
O futurista Luigi Russolo antecipou um cenário em que uma proliferação das máquinas
conduziria a um aumento generalizado do ruído sonoro, e a uma tendência das artes musicais se
apropriarem de sons dissonantes com vista a aumentar o seu leque estético. Hoje, perante uma
multiplicação de máquinas acentuada ao ponto de colocar vários tipos de dispositivos
computacionais nos nossos bolsos, não só nos deparamos com uma realidade em que se
multiplicam os possíveis ruídos, como se multiplicam também as suas possíveis tipologias. Nesta
sequência, multiplicam-se também as possibilidades artísticas da sua apropriação - que
podemos colocar à volta da constelação conceptual de uma “estética do ruído”.

A acompanhar a tendência da multiplicação dos dispositivos tecnológicos, em particular os


de mediação, ocorre igualmente uma tendência para os naturalizar nos fluxos sociais, culturais e
económicos quotidianos - torná-los transparentes, na terminologia de Bolter e Grusin. Os
autores procuram capturar esta tensão, aparentemente contraditória, do seguinte modo: «A
nossa cultura quer, ao mesmo tempo, multiplicar os seus media e apagar todos os traços de
mediação: idealmente, quer apagar os media no próprio acto de os multiplicar» (2000, p. 5).
Esta tendência de multiplicação e naturalização de tecnologias de mediação, segundo os autores,
está a ocorrer num ritmo mais acelerado do que aquele que as instituições legais, culturais e
educacionais conseguem acompanhar.

Movimentos artísticos como a glitch art procuram criar contra-tendências estéticas a este
imperativo de naturalização - espaços de hipermediação, nos quais a presença da mediação se
torne patente na consciência do utilizador. O potencial crítico do recurso ao ruído pode
facilmente ser diluído - constatação que pode ser feita em relação a qualquer recurso estético.
Porém, perante a multiplicação de zonas de mediação ofuscadas, o argumento de artistas como
Rosa Menkman é que a urgência de forçar a mediação a revelar-se nunca terá sido tão patente
como agora, e o ruído é um dos recursos estéticos mais adequados para o efeito.

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