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I

- Compreenda, Mestre Gomintico, que não são as palavras em si mesmo que eu aqui busco.
As palavras, como o Mestre bem sabe, já eu as conheço extraordinariamente. Não há santo ao
qual não lhe conheça os actos de bondade e os milagres. Não há herói sobre o qual não
consiga discorrer, enaltecendo a sua bravura e as suas conquistas. Não há cientista ou filósofo
cujas ramificações da sua árvore de pensamento não me sejam familiares até à sua mais
efémera folha. Tudo isto eu sei, e voltei a saber. Não são as palavras que procuro, Mestre. O
que eu procuro é o salto. Sei de memória as palavras de todos os místicos. Sei e amo-as. Oh,
quando Ishdobar fala do momento em que o pensamento cessa, em que entendemos com a
alma inteira aquilo que vemos, ouvimos, cheiramos ou tocamos! Entendemos com a alma
inteira que tudo aquilo que vemos, ouvimos e cheiramos e tocamos são apenas imagens
distantes, memórias de um movimento de substâncias tão mais gigante e organizado e perfeito
do que aquilo que nós pensamos que somos! Sim, porque o que nós pensamos que somos
nada mais é do que um movimento pequeno de substâncias, uma réstia de lesma em
comparação ao mundo! Oh, tudo isto eu compreendo e amo, Mestre Gomintico! Mas não o
sinto… Eu procuro o salto, Mestre! O salto que me faça sentir o que eu sei!

Carregava há muito estas palavras comigo. Queria desabafar de forma simples e clara
sentimentos profundos que me têm sido difíceis de comunicar ao meu Mestre. Os aplausos
constantes que recebo na academia quando apresento os meus escritos, o título de estudante
mais promissor nas ciências modernas, os rumorejos que elevam a profecia de um futuro santo
a nascer entre eles; todas estas coisas me perturbam em segredo. Serei eu mesmo tudo aquilo
que eles dizem que eu sou? Todas as minhas leituras indicam-me, explicitamente ou
implicitamente, que as opiniões das massas servem apenas caprichos e desejos
momentâneos. Pouca ou nenhuma verdade se lhes pode descortinar, não devem ser tomadas
enquanto referencial para nenhuma cadeia de pensamento mais elevado ou espiritual. No
entanto, é aqui que as coisas se complicam: se eles dizem que eu sou tudo aquilo, e se eu
desconfio deles, então, estarei eu de facto a desconfiar de mim próprio? Talvez isso não esteja
totalmente inserido nas palavras e na sua lógica; mas é isso que eu sinto. E eu só de olhar
para os olhos calmos, serenos e jocosos do Mestre Gomintico consigo perceber profundamente
que ele percebe tudo isto sobre mim; sem eu ter que dizer nada! Mas, o salto! Eu quero sentir
aquilo que eu quero sentir! Eu quero saltar das palavras para o divino! Oh, mas como?

O Mestre Gomintico mexeu um pouco o seu cajado com ambas as mãos. Olhava com uma
alegria espiritual as árvores que nos cercam e com um desprendimento tal que convenço-me
na possibilidade do Mestre olhar a floresta sem os olhos! De que consegue de facto ouvir os
pássaros sem os ouvidos! De quem poderia tocar um homem sem o toque, e sem o homem!
Após o largo momento de contemplação, que lhe é característico, olhou na minha direcção e
proferiu as seguintes palavras:

- Nenhum de nós sabe quando morrerá. Nenhum de nós sabe com toda a certeza o que
acontece após a morte. Estas duas verdades são espirituais, porque são indestrutíveis. Com o
mesmo nível sagrado dessas duas verdades, digo-te meu jovem Udo: o dia chegará em que
todas as palavras terão para ti luz. Chegará esse dia se, e apenas se, realmente tiver que
chegar. Não deixes que a antecipação da espiritualidade, que o desejo de luz te perturbe.
Acredita apenas, com fé, que algumas palavras são eternas, e que há quem as esteja a
estudar com a mesma precisão com que tu estudas nas ciências modernas. Eu conheço-te
como ninguém te conhece Udo, nem tu próprio te conheces como eu te conheço. Vou longe o
suficiente para, na minha condição de mortal que aprendeu a elevar-se, profetizar que atingirás
a sapiência dos movimentos espirituais em idade precoce. Mas não deixas que isso te inquiete
por agora! Nas ciências modernas a escuridão é bem-vinda. Tu sabes, tu bem sabes que…

- ESCUMALHA! CABRÕES! PENSAM QUE ESTÃO ALUMIADOS PEL’S GÉMEOS?!?! OH,


QUANTOS CABRANETES NÃO DANÇAM CONVOSCO À NOITE!

As sábias palavras do Mestre Gomintico foram violentamente interrompidas por uma senhora
de meia idade que corria na nossa direcção. Tinha um vestido branco comprido, sujo e gasto.
Foi agarrada por um dos soldados que guardam o campo aberto da Academia de Ratson.

- O MEU FILHO! O MEU FILHO! EU QUERO VER O MEU FILHO!

Outros guardas apareceram, puxaram das suas espadas, defenderam a nossa posição com um
círculo e permaneceram vigilantes enquanto a senhora era arrastada aos berros para longe do
cenário. O Mestre Gomintico contemplou o espectáculo com a tranquilidade espiritual que
nunca o vi perder. Sentou-se, acendeu o cachimbo, e deu ao corpo a entretenga de baforar
para que pudesse permanecer totalmente alienado na sua alma. Eu não tenho as capacidade
transcendentes do Mestre, não sei saltar para a alma (quero aprender a fazê-lo) e neste
momento sentia-me genuinamente perturbado pelo acontecimento. O Mestre pressentiu a
minha ausência de calmaria, e disse com autoridade e serenidade:

- Jovem Udo, não aconteceu aqui nada sobre o qual tenhas sequer que pensar.

Fez uma pausa.

- Aconteceu uma de duas coisas: ou se trata do familiar de um dos objectos, e se for esse o
caso, a senhora foi bem recompensada em moedas. O objecto que nos vendeu, como bem
sabes, já não tinha o seu essencial; e nesse caso, são apenas as memórias e as saudades que
assaltam esta pobre senhora e a fazem actuar desta maneira. Se o acontecimento for esse, e
se existir um verdadeiro arrependimento desta filha dos Gémeos perante as suas acções
insultuosas e profanas, eu próprio actuarei junto da justiça para que a sua pena seja justa, mas
não excessiva.

Fez uma nova pausa, e a sua expressão facial avançou de serenidade plena para serenidade
assertiva, uma serenidade que inclui dentro de si todos os desdobramentos possíveis dos
humores da alma.
- Mas… Caso se trate de alguma inimiga da Academia com intenções que pouco se coadunam
com a propagação da boa palavra dos Gémeos, nesse caso, a justiça divina é a única
representante humana da vontade dos Deuses; e deverá actuar enquanto tal sem piedade.
Garanto-te, pelos raios que assombram as noites, ficará até por se decidir a salvação da sua
alma!

II

As palavras serenas do Mestre Gomintico muito contribuíram para acalmar as ânsias espirituais
decorrentes do comportamento herético daquela senhora. Mas nada fizeram para apagar a
chama da curiosidade. É o salto para além das palavras que persigo. Quero sentir o que sei,
saber o que sinto; e para o fazer, tenho que saber mais sobre aquilo que sei.

Assim sendo, e sem comunicar a ninguém, dirigi-me no mesmo dia à ala militar da Academia
de Ratson. Coloquei o meu capuz (apesar de aluno, já o posso fazer. A honra foi-me concedida
numa cerimónia solene da Academia) e juntei as mãos para passar pelos dois soldados que
guardam a entrada. Ambos bateram simultaneamente com as lanças no chão para sinalizar a
minha passagem pelo portão. Continuei a caminhar pela comprida entrada do edifício até
chegar à mesa onde um dos oficiais se sentava. Disse com altivez:

- Os gémeos dormem!

O oficial respondeu:

- Para que nós acordemos em sonho!

Era a primeira vez que entrava na Ala Militar, e via pela primeira vez a face deste oficial. Mas
percebi imediatamente que ele me reconhecia, talvez de algum dos meus sermões. Não deixei
que o seu reconhecimento, ou qualquer outra coisa, invadisse o silêncio que nos separava.

- Sei que foi detida esta tarde uma senhora junto do campo aberto por comportamento profano.
Gostaria de saber se me poderiam conceder a amabilidade de trocar umas palavras com a
alma em questão.

Vi alguma decepção formar-se na face do militar.

- Pelos gémeos, é com muita honra que o recebemos no nosso humilde edifício. A título
pessoal, permita-me confessar que é com muita honra que falo consigo.

O senhor fez uma pausa e olhou-me com alegria, antes de prosseguir:


- Infelizmente, não poderei da mesma forma honrar o seu pedido. A senhora em questão, de
nome Aldolina Iantes, já foi levada para o tribunal de Herdes para ser ouvida pelos anciães.
Posso, no entanto, encontrar quem escreva recomendação da Academia para que o
destacadíssimo aluno Udo tenha autorização para falar com com a senhora no próprio edifício
do tribunal, ou nos calabouços; caso já tenha sido enviada para lá.

- Qual é o seu nome?

- Sargento Albes

- Meu caro Sargento Albes, não esquecerei a sua bondade e disponibilidade. Mas tal
procedimento não se afigura necessário. Ficarei satisfeito caso possa falar com o militar que a
interrogou aquando a sua chegada a este edifício.

III

Tinha sido um soldado raso denominado Hictor. Estava sentado à minha frente, bastante
nervoso e irrequieto. Eu olhava-o com calma e serenidade, tentando-o acalmar através do
exemplo.

- É uma bênção, sagrado Udo, uma bênção sentar-me consigo!

Não era este tipo de vãs elevações, que tantas dúvidas me despertam, que aqui procurava.
Desviei a conversa na direcção correcta:

- Falou com a mulher que através das palavras profanou a minha quietude e, ainda mais grave
do que isso, visou também profanar a quietude do meu Mestre Gomintico. Foi você, o bom
Hictor, que ficou a cargo de perguntar sobre as razões desta mulher para actuar fora das
directrizes dos Gémeos. Pergunto-lhe: a que conclusões chegou sobre as motivações desta
endiabrada?

- Bem, bem… Eu não fiz muitas questões… Porque, sabe, não é a primeira vez que ela aqui
vem, e nós, hum… Nós já sabemos porque é que ela faz isto… A culpa destas acções, a culpa,
huh, não sei, quem sou eu para dizer culpas? Nós…

Interrompi o seu discurso pouco eloquente. O Hictor não deveria ter mais do que 30 anos e
notava-se falta de experiência na sua actividade. Deverá ter-se tratado de um acontecimento
sem importância, ou pelo menos comum, para colocarem alguém como o Hictor a tratar do
assunto. Parecia profundamento amedrontado, pensando com certeza que esta conversa
significaria algum tipo de punição. Procurei tranquilizá-lo em nomes dos Gémeos.

- Em nome dos Gémeos lhe garanto: não tem nada que temer, bom Hictor! A Ala Militar da
Academia faz o seu trabalho ao prender a senhora e enviá-la para cuidado dos anciães.
- Sim…, bem… A senhora é mãe de um dos… hm… ressuscitados. E já é a terceira vez que
ela vai até junto das grades do campo aberto para ver o filh… hmm… o, como posso dizer…

- O objecto.

- Sim, no campo aberto. Ela vai lá, agarra-se às grades, e grita e chora que o ama muito e que
venderia a alma para voltar atrás e… faz sempre um grande espectáculo, os objectos olham
para ela, hmm, olham para ela, ficam distraídos, os Mestres que trabalham com os objectos
também não gostam porque é profano, e nós fazemos sempre, sempre o nosso trabalho muito
rapidamente, sempre, garanto-lhe sagrado Udo! Estas palavras são simples, mas, uh, são
todas verdade!

E mais uma vez o Mestre Gomintico provou-se iluminado e certo. Vidente até dos
acontecimentos mais insólitos, como uma senhora vestida de branco, esfarrapada, a correr na
direcção da academia para gritar, chorar e profanar. De facto, a senhora é mãe de um dos
objectos de estudo na área da reanimação. Vendeu o cadáver do seu filho, tomou a decisão de
aceitar moedas pelo seu cadáver para que pudéssemos incluir o seu corpo sem alma nas
nossas experiências, e revela-se agora atormentada pelas memórias e saudades de mãe que
perdeu um filho; mas que se irrita, esperneia e sente as emoções erroneamente. A única forma
correcta de lidar com o luto da perda de um familiar é entregando o nosso pesar aos Gémeos.
Conto com a promessa do Mestre, que intervirá junto dos anciães para garantir uma pena justa
e que coloque esta pobre alma na ordem correcta do mundo dos humanos.

Decidi agradecer a sinceridade e admiração deste soldado movimentando as mãos e


abençoando-o com os dois círculos da Alma Segunda, sussurrando a frase:

- Os gémeos dormem para que tu possas acordar.

Hictor deixou-se cair da cadeira, aterrando de joelhos, com as mãos juntas e a face na direcção
do céu. Gemia um pouco, incrédulo perante a sagrada bênção que lhe tinha surgido, sem
quaisqueres presságios que a indicassem. O medo transformou-se em exaltação espiritual.
Existirá algo mais sagrado que essa transformação na substância da alma? Coloquei o capuz,
juntei as mãos e segui o meu caminho. Eram quase horas da aula de substâncias
reanimadoras.

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