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Não querem ver o nascimento de mais um universo?

Os jornais avançaram com duas razões diferentes para explicar o extravagante e sangrento
espetáculo público do professor Alquimiro. Em primeiro lugar, o seu conhecido histórico de
episódios psicóticos. Ao longo das décadas foram vários os episódios de loucura temporária do
professor, ainda que nenhum dos episódios tenha sido realmente violento. O segundo motivo
avançado foi o recente diagnóstico de leucemia em fase avançada, que terá atirado os
pensamentos do professor para lugares particularmente negros.

Estes dois fatores tiveram, com certeza, a sua importância no desenrolar dos acontecimentos.
Mas não explicam tudo. Não explicam o vigor poético e rigoroso das acções de Alquimiro. As
acções do professor, com toda a sua violência, revelaram um distinto sentido de racionalidade.
Fizeram jus ao esplendor teórico da interpretação dos múltiplos mundos de Hugh Everett, teoria
à qual o professor dedicou toda a sua vida.

Naquela fatídica manhã da sua última aula, o professor levantou-se à hora habitual, comeu
torradas com café como todas as outras manhãs, e leu calmamente um poema após o
pequeno almoço. O hábito de ler um poema de manhã começara cerca de sete anos antes,
poucos dias depois da sua mulher o ter abandonado definitivamente. A separação ocorreu na
sequência de um episódio psicótico especialmente grave. Alquimiro despertou uma manhã
absolutamente convencido que alguma coisa tinha mudado radicalmente na ordem do
universo. Este súbito convencimento colocou-o num frenesim imparável. Durante duas
semanas passou dia e noite na universidade a realizar inúmeros e elaborados testes nos
laboratórios. Parava os testes apenas para dormir (num saco de cama que levou para a
universidade) ou para dar aulas. Queria desesperadamente encontrar a mudança que
pressentiu: talvez alguma das invariáveis do universo tivesse variado inexplicavelmente, talvez
a equação de schrondigger já não explicasse a movimentação de partículas não observadas,
ou quem sabe a velocidade da rotação da terra se tivesse alterado subitamente... Alguma coisa
tinha mudado! Qualquer coisa!

Ao fim de duas semanas, não tendo encontrado nada de errado com o universo, chegou à
conclusão que a mudança súbita teria ocorrido provavelmente ​dentro de si​. Foi para casa a
pensar que queria perguntar à sua mulher “​meu amor, o que há de errado comigo?​”. Encontrou
a casa vazia.

A sua mulher lia bastante poesia, e, sem pensar muito no assunto, Alquimiro começou a ler
poesia na sua ausência. Na última manhã de vida, o professor Alquimiro escolheu ler o seu
poema preferido: “Correspondências”, de Baudelaire. O professor considerava que aquele
emaranhado de sensações em correspondência com algo que lhes é exterior poderia muito
bem ser uma descrição bela, ainda que pré-científica, dos mecanismos da decoerência
quântica (o processo através do qual o sistema perde informação essencial ao seu
funcionamento). Não é esta forma de observar o mundo de Baudelaire uma forma de
destruição através de uma descrição? Talvez. O professor rapidamente fugiu das ramificações
destes pensamentos para meditar, mais uma vez, na demonstração que iria fazer em aula, na
qual tinha trabalhado durante a última semana. Na verdade, não tinha pensado em mais nada
desde o penoso diagnóstico de leucemia.

Na aula de física teórica, os primeiros 45 minutos aborreceram bastante os alunos presentes. O


professor, com os seus movimentos desajeitados e padrões de fala algo incoerentes,
desenvolveu no quadro, mais uma vez, a matemática da equação da função de onda. Explicou
como a probabilidade na medição foi introduzida por Max Born, e indignou-se perante a ideia
de que a realidade está dependente de probabilidades. Referiu como surgiu historicamente a
ideia do colapso da função de onda, e porque é que a teoria de Hugh Everett explica os
aparentes paradoxos de forma mais simples que as explicações concorrentes.

Após uma longa e entediante introdução dos pressupostos teóricos do que iria acontecer, o
professor entrou no apogeu do seu espetáculo:

- Caros alunos, hm, e alunas, vocês, que são meus alunos há três meses, já me conhecem
bem o suficiente para saber o quão indignado eu fico quando alguém, hm, troça, goza com a
interpretação dos múltiplos mundos afirmando que se houvessem infinitos universos, tudo
seria, digamos, possível. - o professor pausou o discurso e olhou para os jovens alunos que
tinha à sua frente.

- Nem tudo é possível! Um eletrão nunca se transformará num protão, a luz nunca ultrapassará
a sua velocidade máxima, a lei de conservação da massa nunca será quebrada… Há coisas
que nunca vão acontecer em, hmmm, nenhum universo. O que acontece é simples: o universo
ramifica-se sempre que um sistema quântico em superposição se emparelha com o seu
ambiente.

O professor retirou um objeto de uma caixa que se encontrava em cima da sua secretária. Este
movimento agitou um pouco os alunos, na medida em que ficaram convencidos que o objeto se
parecia demasiado com uma pistola. O professor, com movimentos calmos e espaçados, ligou
o objeto a um cabo, e ligou o cabo a uma intrincada máquina a menos de três metros da
secretária. De seguida, explicou que dentro da máquina se encontrava um detetor programado
para averiguar o spin quântico de um protão. Relembrou os alunos que o spin se encontra em
superposição antes de qualquer medição e que, portanto, segundo a interpretação dos
múltiplos universos, sempre que a medição ao spin for feita, o universo divide-se em dois: um
com o spin negativo, e outro com o spin positivo. - São gerados dois universos distintos a cada
medição! - relembrou enfaticamente.
Para angústia dos alunos, o professor confirmou que, de facto, tinha na sua mão uma pistola.
Referiu que sempre que o gatilho da pistola for pressionado, a máquina faz a medição ao spin
do protão. Se o spin detetado pela máquina for positivo, cuja probabilidade é de 50%, a arma
dispara um tiro.

- Esta pistola não me pode matar. Eu sou, errrrr, imortal, posso-me tornar imortal, pelo menos
em relação a esta pistola, hm, entendem? Se a ​pistola disparar​ e a pistola ​não disparar​ estão
em superposição, o universo irá ramificar-se sempre em dois a cada medição, e eu estarei
sempre vivo no universo com o spin positivo, porque a arma só dispara no universo com o spin
negativo! Eu posso morrer, mas estarei vivo noutro universo, entendem? E quem sabe o que
acontecerá em todos os universos em que eu morrer, han? Talvez o meu, err, sacrifício pela
ciência inspire e desperte alguma das vossas entorpecidas mentes. Eu já ia morrer em breve,
de qualquer forma.

A apreensão na sala era visível. Existia burburinho, algumas gargalhadas. A excentricidade do


professor era conhecida, mas, até nas expectativas dos alunos, havia uma certa sobreposição
de estados: ele está a brincar, ou a falar a sério?

A resposta não tardou. O professor sentou-se, meteu a arma junto à cabeça, e disparou. Nada
aconteceu. - No outro universo que foi criado, morri, os meus miolos estão espalhados na sala,
- referiu com boa disposição e um sorriso rasgado. As reclamações dos alunos subiram de tom,
a piada tinha perdido totalmente a piada. Um dos alunos levantou-se e preparava-se para sair
da sala. O professor voltou a carregar no gatilho. Nada aconteceu. - Já morri duas vezes!, -
disse, e riu-se bem alto. - Já existem duas salas iguais a esta cheias de, hm, cérebro de
professor de física, - Alquimiro ria-se às gargalhadas com a sua piada. Mais alguns alunos
levantaram-se e começaram a dirigir-se para a saída com um ar indignado, mas andando
devagar, para terem tempo de ver mais um pouco do espetáculo. O professor levantou o tom
de voz, que ficou estridente, e gritou: - Não querem ver o nascimento de mais um universo?, -
riu-se, carregou na pistola, e ouviu-se um barulho ensurdecedor.

Noutras ramificações de universos, talvez a experiência tenha durado mais alguns disparos
antes do final. Noutras, talvez a experiência tenha sido parada pela intervenção de um aluno e
o professor tenha escapado ileso, em condições de continuar a ler poemas de Baudelaide.
Infelizmente, este não era o universo com o spin positivo, o que implicou que a arma
disparasse e a bala entrasse por um lado e saísse pelo outro da cabeça.

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