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NATUREZA, CULTURA E IDEOLOGIA

Sobre isso, falamos quando refletimos sobre a questão Quem somos nós, do ponto de
vista da teoria marxista, lembra-se?
E, o mais importante, você pode se perguntar: Será que é possível conceber o ser
humano de modo a abarcar todos os seres humanos, independentemente da época em que ele
vive, da cultura em que é educado, das experiências que tem? Podemos dizer: o ser humano é
um animal racional - e isso serve para todo e qualquer ser humano, isto é, um sentido universal
do humano?
Bem, quando falamos da existência humana definida por questões históricas, sociais,
relações, valores, crenças, produções materiais e intelectuais, estamos situando nossa reflexão
no campo da cultura.
O que queremos dizer com cultura? Ou, simplificando a questão: O que é cultura?
Vamos retornar a questão da existência humana.
No mundo ocidental, costumamos afirmar que o homem - animal racional, animal
político, animal simbólico, animal histórico - como discutimos anteriormente, considerando
a contribuição de alguns pensadores, é um ser, e como todos os seres tem uma Natureza. O que
queremos dizer com isso?

De acordo com Abbagnano, em seu Dicionário de Filosofia (1988, p. 699), a


interpretação mais antiga e venerável de Natureza e que condicionou o uso corrente do termo é:
Natureza como princípio de vida e de movimento de todas as coisas.
Dessa forma, usamos o termo para dizer, por exemplo, "agir de acordo com a Natureza",
ou seja, movido pela força natural.
Outra definição de Natureza que se encontra nesse mesmo Dicionário, tirada da Física
de Aristóteles, é: a forma ou a substância, em virtude da qual a coisa se desenvolve e torna-se
o que é.
Aí, Natureza se refere à substância ou à essência necessária, ou, como o próprio
Aristóteles sintetiza: "Natureza é a substância das coisas que tem o princípio do movimento em
si próprias." (Metafísica, V).
Chauí (1994, p. 292) ressalta como um dos sentidos de Natureza "tudo o que existe
no Universo sem a intervenção da vontade e da ação humanas". Dizer-se que algo é
natural significa que não é criado pelo homem, não é artificial. Também, ela coloca outro sentido
de Natureza: conjunto de tudo quanto existe e é percebido pelos humanos como o meio e o
ambiente no qual vivem. conjunto de condições físicas onde vivemos aquilo que existe fora de
nós, mesmo que provoque ideias e sentimentos em nós.
E aí, retomamos o início de nossa reflexão: O que queremos dizer com a afirmação de
que o homem tem uma Natureza?
Que ele faz parte do mundo natural, que é um ser que se desenvolve naturalmente, que
faz parte da Natureza. Dissemos, acima, que o ser humano é um animal racional,
histórico, simbólico etc. Mas, por mais que tenhamos adjetivado o termo animal, não o suprimimos.
Essa é a dimensão natural do humano, não é? Racional, histórico, simbólico são da ordem
da cultura. É nesse sentido que afirmamos que ele se torna ser humano, na cultura e na
história. De tal modo, o cultural e o natural, no ser humano, estão relacionados, que quando
pensamos na natureza do humano já a pensamos na dimensão da cultura.

Por exemplo, dizer que uma pessoa está com fome, não significa, estritamente, que ela
está com uma fome determinada exclusivamente por processos fisiológicos. Significa que, graças
à sua educação, à sua rotina alimentar, suas práticas cotidianas, ela tem uma fome construída, ou
uma fome biológica e culturalmente determinada. Assim, tem fome em determinadas horas do dia,
dependendo de quando e como se alimentou, e do que Ihe é apresentado, despertando ou não
seu apetite.
Mafalda detesta sopa. Dessa forma, mesmo com fome, não sente 'fome de sopa'.
É nesse sentido que falamos em fome não exclusivamente fisiológica, ou em natureza
não exclusivamente natural, mas redefinida pela cultura.
Por vivermos no século XXI, temos consciência de que as concepções que
desenvolvemos sobre a Natureza e sobre o ser humano são construções criadas no campo da
ciência de nosso tempo. E, de acordo com o conhecimento que construímos hoje sobre o ser
humano, ele é: um ser natural e cultural ao mesmo tempo; uma natureza aprimorada ou
transformada pela cultura; um ser que, em sua experiência de vida, torna-se cultural; é educado;
insere-se criativamente na vida da comunidade, desenvolvendo sua subjetividade; aprende os
códigos de interpretação do mundo de sua cultura - as ciências, as artes, a religião, a Filosofia, as
práticas sociais.
É esclarecedora a contribuição de Chauí (1994, p. 292), sobre o sentido etimológico do
termo Cultura: Vinda do verbo latino colere, que significa cultivar, criar, tomar conta e cuidar.
Cultura significava o cuidado do Homem com a Natureza. Donde: agricultura. significava, também,
cuidado dos homens com os deuses.
Donde: culto. Significava, ainda, o cuidado com a alma e o corpo das crianças, com sua
educação e formação. Donde: puericultura (em latim, pueri significa menino; puera, menina). A
Cultura era o cultivo ou a educação do espírito das crianças, para tornarem-se membros
excelentes ou virtuosos da sociedade pelo aperfeiçoamento e refinamento das qualidades naturais
(caráter, índole, temperamento).
Com cultura queremos significar, portanto, o conjunto de práticas, processos, ideias,
valores, enfim, a dimensão da vida humana construída pelos próprios seres humanos.
No contexto dessa reflexão sobre cultura - colocamo-nos muitas questões, não?

Empreendemos uma viagem, investigando o sentido das palavras, as dimensões


históricas envolvidas na produção de concepções, construindo nosso próprio caminho,
enquanto caminhamos. Poderíamos ter consultado as obras de outros pensadores, dado
outros exemplos, dirigido de outra maneira nosso pensamento. De qualquer maneira, a reflexão
se dá no contexto da cultura.
Mas, há algo muito importante e de que ainda não falamos: o filosofar e o refletir são
processos que, além de procedimentos formais e relacionais de pensamento, incluem decisões de
quem participa deles. Dessa forma, podemos dizer que são nossas essas ideias, que as
construímos, recolhendo e nos apropriando de ideias de outras pessoas, no contexto cultural. O
filosofar requer escolhas de nossa parte.
Assim, podemos dizer: nós pensamos dessa maneira. E é essa autoria que nos legitima
a defender ideias, debatê-Ias, critica-las. Dizemos que estamos autorizados a lidar com
essas ideias, que temos sua autoria. Enfim, que somos autores(as) dessas ideias.

IDEOLOGIA
Retomando a questão Até que ponto podemos fazer escolhas sobre o que pensar, o que
sentir, como agir?, vamos investigar o conceito de ideologia, pois isso vai nos ajudar a refletir
sobre esse tema.
O conceito de Ideologia surgiu no final do século XVIII, início do século XIX, com um
grupo de filósofos, inspirados no Iluminismo Francês e, conhecidos, mais tarde, como
ideólogos, especialmente Antoine Destutt de Tracy (1754 - 1836), que escreveu Les éléments
de l'idéoIog¡e (1801 - 07). Os ideólogos queriam elaborar uma ciência das ideias, investigando
a origem e a formação das ideias do homem, além de tentarem relacionar as normas da vida social
à natureza humana. Helvétius (1715 - 71), no tratado De L'esprit (1758), sustenta que "nossas
ideias são a consequência necessária da sociedade em que vivemos". Ora, esse tipo de
pensamento valoriza muito a educação e o processo de socialização dos indivíduos.

Dessa forma, esses filósofos propunham que suas ideias fossem a base da
educação, promovendo, assim, uma reforma na sociedade, assentada sobre a concepção
Iluminista de que o conhecimento seria a luz a iluminar o real e a possibilitar à razão humana,
caracterizada como consciência individual, vencer as trevas, a ignorância, a superstição, e a
conseguir ter acesso à realidade e à verdade. A educação, assim, possibilitaria que o indivíduo
conhecesse as coisas, e agisse de forma autônoma, sem ter medo de estar pecando, ou sem
receber o conhecimento pronto de pessoas poderosas, como o rei ou o Papa, por exemplo. Por
meio da ciência, com seus métodos, qualquer pessoa educada poderia ter conhecimento do
mundo.
Nesse sentido original, Ideologia é o conjunto de ideias que aprendemos nas práticas
sociais de educação. Mas, no século XIX, Karl Marx e Friedrich Engels filosofam sobre essa
concepção de ideologia e propõem que ela seja olhada de um modo crítico - a ideologia é
conceituada por eles como: um conjunto de ideias que pretendem representar a realidade como
ela é, tomando ideias, sentimentos e ações como se elas fossem naturais, quando, efetivamente,
elas são econômica, social, cultural e historicamente determinadas.

Você está lembrado de que falamos que, para esses pensadores, o ser humano
desenvolve sua consciência em determinadas condições históricas e culturais? Até aqui, vimos
que seu pensamento é semelhante aos dos primeiros ideólogos. Bem, cada um de nós conhece
o mundo de acordo com suas experiências, com sua vida material concreta. Mas Marx
acreditava que não bastava nos libertarmos da religião, das superstições, para iluminarmos a
realidade e a vermos com transparência. Isso porque há outro 'véu' que encobre a realidade: a
ideologia.
A visão marxista, então, pergunta se acreditamos que todos conhecem a realidade como
ela é em si. E responde que não. Conhecendo a realidade a partir de sua experiência de vida,
as pessoas, que pertencem a classes sociais diferentes, por exemplo, interpretam-na de
maneiras diferentes. E a ideologia faz parecer que a realidade é interpretada sempre da mesma
maneira. Vamos tomar, como exemplo, a maneira como podemos pensar a condição da mulher
nos dias de hoje.

Até há poucos anos (e até hoje há pessoas que pensam assim) pensava-se que era
natural as mulheres ficarem em casa cuidando da família, enquanto os homens iam trabalhar e
eram provedores da família, pagando pelo alimento, a roupa e tudo de que a família necessitava
para viver. Ora, essa situação era considerada natural porque as mulheres desempenhavam
esse papel há muito tempo na história (embora não tenha sido sempre assim), por causa do tipo
de economia que sustentava nossa cultura.
Hoje, graças a mudanças econômicas, políticas e sociais, as mulheres já não ficam em
casa, podem estudar e são requisitadas a trabalhar em outros locais - empresas, escolas,
órgãos governamentais - e participam da construção da riqueza dos países, e não só administram
a aplicação do dinheiro pelas suas famílias, como faziam antes. Mudaram, assim, as
condições materiais e simbólicas da existência da mulher.
Entretanto, com todas essas mudanças, há aspectos dessa questão que exigem de nós
um olhar crítico: as mulheres saem para trabalhar fora, desempenham as mesmas funções que
os homens, ganham menos que eles, e continuam se responsabilizando pelo trabalho doméstico
e pela educação dos filhos.

Como, por meio da interpretação marxista, podemos ver o papel da ideologia nessa
situação, na condição da mulher em nossa sociedade? Como o véu da ideologia encobre os
múltiplos e complexos aspectos da realidade que sintetizam a condição da mulher?
Para a teoria marxista - diferentemente dos ideólogos do século XVIII, que chamavam
de ideologia o conjunto de ideias sobre a realidade naturalmente verdadeira - ideologia é um
fenômeno histórico-social decorrente do modo de produção econômico, e que mascara a realidade
para manter esse modo de produção.
Na Grécia de Platão, por exemplo, o trabalho manual era feito por escravos estrangeiros,
e o trabalho intelectual, e, especialmente a Filosofia (que conduzia à Verdade, ao Bem e ao Belo,
elevando o homem a uma condição de contemplação da realidade como ela é) era privilégio dos
homens (do sexo masculino) adultos.
A mulher, a criança e os estrangeiros (escravos) não eram cidadãos da democracia
grega. Então, a Ideologia, nessa época, segundo Marx e Engels, seria esse conjunto de ideias,
sobre o que é o Bem, a Verdade, a Beleza, de que os filósofos gregos falam como se fossem
naturais, iguais para todo e qualquer ser humano, sustentando que o cidadão deve ser virtuoso, e
buscar a verdade, que na pólis democrática deve reinar a justiça, quando, na verdade, a situação
social com suas contradições e desigualdades não aparece. Como a Ideologia é elaborada pela
classe pensante, dos filósofos, que têm um lugar privilegiado na estrutura econômica, e são
ligados aos governantes, esse grupo transmite essas ideias como verdades e elas se instituem
como se fossem a realidade para todos. O próprio Platão afirma que o filósofo é aquela pessoa
que consegue alcançar a verdade e contá-la aos outros, como ele relata no Mito da Caverna.

Agora, trazendo isso para os dias de hoje, de certa maneira nós também damos mais
valor ao trabalho intelectual, e reservamos o direito à educação a quem tem uma posição
privilegiada na sociedade e, que, portanto, pode ter mais condições de obter um trabalho com
melhor remuneração.
Em nosso cotidiano, convivemos com a situação de, dentro de nossas casas, termos
uma pessoa, geralmente mulher, que passa o dia todo dedicada a limpar, cozinhar, lavar, fazer
todo o trabalho que proporciona para nós e nossos filhos uma vida saudável, e que recebe um
salário baixo, não podendo, ela mesma, cuidar de sua casa.
Voltando à nossa reflexão: a ideologia, segundo Marx, determina, de modo não explícito
e, em grande medida, o que pensamos, o que sentimos, como agimos. Na sociedade de consumo
em que vivemos, os meios de comunicação ditam o que é bom para nós, o que devemos comer,
que roupa usar, como decorar nossas casas, de tal modo que as pessoas, mais ou menos
influenciadas por essas opiniões difundidas pela televisão, revistas, internet, sentem-se
compelidas a comprar coisas de determinadas marcas, trocar seus aparelhos eletrodomésticos e
carros, por exemplo, por outros mais modernos e eficientes. Dessa forma, são criadas
necessidades para nós, que, convencidos por propagandas, acreditamos sermos nós a sentir
essas necessidades.
A crítica da Ideologia permite que nos emancipemos, que tomemos consciência de que
somos determinados por nossa condição econômica, histórica, social e cultural e que o ser
humano não deve ser concebido como o Homem, entidade abstrata, mas nas condições objetivas,
materiais e simbólicas de sua existência.
Vivendo neste momento histórico e na cultura ocidental, até que ponto as mulheres
fazem a escolha de trabalhar fora, ou ficar em casa? A condição da mulher, tal como a ideologia
dominante a coloca, é de libertação, de emancipação? Como temos educado as crianças com
relação a esse tema? Como a televisão, por exemplo, exibe a mulher e o homem? Temos visto
propagandas que identificam cervejas com mulheres - as loiras - exibindo mulheres fisicamente
atraentes junto com uma marca de cerveja, e homens que cobiçam as duas. Pense sobre essa
cena que se repete, na TV, à sua frente, diariamente. A imagem de mulher tal como é divulgada
nessas propagandas é carregada de uma ideologia que tem sido chamada de machista,
e representa a mulher como objeto a ser comprado, ou conquistado pelo homem. Não é
interessante podermos problematizar as concepções de nossa época, entendermos como
surgiram, e todos os aspectos envolvidos na sua construção? Além disso, podemos fazer relações
entre o modo como concebemos as coisas, sentimentos e ideias, nossas maneiras de agir, e as
formas de viver de pessoas de outras culturas.

Se você tiver interesse em estudar mais sobre o tema ideologia, leia: O que é Ideologia
de Marilena Chauí, da Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense.
Nossa companheira Mafalda faz perguntas que embaraçam seus pais...
O pai da menina não entende por que ela quer refletir sobre a questão da igualdade,
tomada como algo natural, pela Ideologia.
Ora, a pequena tem razão de perguntar e insistir, não?

Vídeo sugerido: Questão comentada!


https://www.youtube.com/watch?v=dAalhgvObME#action=share

Educadora Glaucia Mazuline

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