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760 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

Direitos humanos nos Centros de Atenção


Psicossocial do Nordeste do Brasil: um
estudo avaliativo, tendo como referência o
QualityRights – WHO
Human rights in Psychosocial Care Centers of Northeast Brazil: an
evaluative study with reference to the WHO QualityRights

Ana Maria Fernandes Pitta1, Domingos Macedo Coutinho2, Clarissa Carvalho Moura Rocha3

RESUMO O artigo pretende avaliar as práticas dos Centros de Atenção Psicossocial no respeito
aos direitos humanos dos usuários, analisando suas percepções referentes às crenças, valores,
hábitos, preconceitos sofridos, reivindicações atendidas ou não e à participação comunitária,
como exercícios de cidadania. Através da análise de dados etno-epidemiológicos do Projeto
Avaliar-Caps Nordeste (Ministério da Saúde/2013), utilizando questionários e observação
direta, à luz do QualityRights, verificou-se que os Centros de Atenção Psicossocial influen-
ciam positivamente na vida dos usuários, ao estimular-lhes a autonomia, a corresponsabiliza-
ção no cuidado e o protagonismo sociocultural e político nos serviços e nas suas comunidades.

PALAVRAS-CHAVE Direitos humanos; Saúde mental; Serviços de saúde mental; Avaliação em


saúde.

ABSTRACT The article aims to evaluate the practices of Psychosocial Care Centers in respect
for human rights of the users, analyzing their perceptions concerning the beliefs, values, habits,
prejudices suffered, or not met demands and community participation, as concrete exercise of
citizenship. Through the analysis of ethno-epidemiological data of the Project Avaliar-Caps
Northeast (Ministry of Health/2013), using questionnaires and direct observation in the light of
QualityRights, it was found that the Psychosocial Care Centers positively influence on the lives of
the users, by encouraging their autonomy, the co-responsibility in the care and the sociocultural
and political leadership in services and in their communities.
1 Universidade de São
Paulo (USP) – São Paulo
(SP), Brasil. Universidade KEYWORDS Human rights; Mental health; Mental health services; Health evaluation.
Católica de Salvador
(UCSAL) – Salvador (BA),
Brasil.
ana.maria.pitta@gmail.com

2 UniversidadeFederal da
Bahia (UFBA) – Salvador
(BA), Brasil.
dmcoutinho@uol.com.br

3 Universidade Católica
do Salvador (UCSAL) –
Salvador (BA), Brasil.
clarissacmrocha@hotmail.
com

SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 39, N. 106, P. 760-771, JUL-SET 2015 DOI: 10.1590/0103-1104201510600030016
Direitos humanos nos Centros de Atenção Psicossocial do Nordeste do Brasil: um estudo avaliativo, tendo como 761
referência o QualityRights – WHO

Introdução Fica claro que essa nova organização da


assistência à saúde mental no País, de um
A partir dos anos 1970 o movimento da lado, busca garantir o acesso ao tratamento
Reforma Psiquiátrica Brasileira, cresce, so- na sua comunidade de referência, através do
bretudo, após as Conferências Nacionais de cuidado clínico, do uso racional de psicofár-
Saúde Mental (1987, 1992, 2001, 2010), a Declaração macos e programas de reabilitação psicos-
de Caracas (1992), as portarias ministeriais do social, objetivando enfrentar a experiência
Sistema Único de Saúde (SUS) e as leis es- psicopatológica e a marginalização, além da
taduais e municipais que culminam com a exclusão social dos usuários. Tudo isto passa
Lei Federal nº 10.216, de 2001. Os usuários a compor as diretrizes básicas do modelo de
passam a ser vistos como atores/sujeitos do atenção. Por outro lado, a sua implantação e
seu próprio tratamento e não mais como o desenvolvimento de ações demandam uma
meros objetos da violência institucional dos radicalização ética capaz de modificar as
manicômios. Tal fato se explica pela ten- organizações de serviços, os níveis de com-
dência antimanicomial da política de saúde plexidade tecnológica do sistema de saúde,
mental oficial, com a redução de leitos psi- as estratégias de racionalização dos custos
quiátricos e a simultânea implantação de e a reorientação da demanda, que ainda não
Centros de Atenção Psicossocial (Caps), conseguimos alcançar.
que visam prestar diversos tipos de serviços Dados da Organização Mundial da Saúde
aos usuários, nos territórios, assegurando- (OMS) estimam que, no mundo, uma em
-lhes direitos socios-sanitários antes não cada quatro pessoas sofre com transtornos
dispensados, estimulando-lhes a autonomia, mentais, o que significa que, no Brasil, cerca
a corresponsabilização no cuidado e no pro- de 47.500.000 pessoas sofrem ou sofrerão, ao
tagonismo sociocultural e político. Tanto é longo de suas vidas, algum tipo de transtorno
assim, que se caracterizam como missões mental, representando 12% da carga global
dos Caps: de doenças (WHO, 2001). Na região Nordeste, os
estados da Bahia, de Sergipe, de Pernambuco,
Prestar atendimento clínico em regime de de Alagoas e da Paraíba contam com uma po-
atenção diária, evitando as internações em pulação estimada em 32 milhões de pessoas.
hospitais psiquiátricos; acolher e atender as No limite, poderiam existir ali cerca de 3,5
pessoas com transtornos mentais graves e milhões de pessoas com transtornos mentais
persistentes, procurando preservar e fortale- e transtornos decorrentes de usos de subs-
cer os laços sociais do usuário em seu terri- tâncias psicoativas.
tório; promover a inserção social das pessoas Apesar dessa importante magnitude epi-
com transtornos mentais por meio de ações demiológica, o estigma que cerca histori-
intersetoriais; regular a porta de entrada da camente os transtornos mentais e o uso de
rede de assistência em saúde mental na sua substâncias psicoativas nas sociedades faz
área de atuação; dar suporte à atenção à saú- com que se invista pouco na promoção do
de mental na rede básica; organizar a rede de cuidado e do tratamento, e que se respei-
atenção às pessoas com transtornos mentais tem, menos ainda, os direitos dessas pessoas.
nos municípios; articular estrategicamente Desta forma, apenas uma minoria da popu-
a rede e a política de saúde mental num de- lação consegue acesso ao cuidado de que
terminado território; promover a reinserção necessita, e as instituições hospitalares que
social do indivíduo através do acesso ao tra- prestam esses cuidados têm se caracteriza-
balho, lazer, exercício dos direitos civis e for- do, em sua maioria, pela violação dos direitos
talecimento dos laços familiares e comunitá- humanos dessa população e pela baixa eficá-
rios. (BRASIL, 2004).  cia reabilitadora.

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No enfrentamento dessa realidade e assistência social, que incluem: a criação de


visando melhorar a qualidade e as condi- condições de vida segura e saudável em ins-
ções de respeito aos direitos humanos em talações e ambiente favorável à recuperação;
instituições psiquiátricas e de saúde mental, a implementação de cuidados baseados em
manicômios judiciários e serviços de assis- evidências para problemas de saúde físico-
tência social, a OMS desenvolveu o projeto -mental; com base no consentimento livre e
QualityRights, para capacitar os próprios esclarecido, em vez de coerção, a prática de
usuários e organizações da sociedade civil na tratamentos que aumentem a autonomia das
defesa dos direitos das pessoas com transtor- pessoas para se engajar em seus planos de
nos mentais e psicossociais (WHO, 2012). recuperação (recovery), onde a participação
O projeto caracteriza-se por um conjunto do usuário como condutor dos tratamentos
de propostas/ações/programas que defen- é a tônica; melhor suporte para ajudar as
dem os direitos das pessoas com transtornos pessoas a encontrar habitação, trabalho, edu-
mentais em diferentes países do mundo, cação e acesso a benefícios e serviços sociais;
incluindo o Brasil. Um grupo tarefa interna- e, finalmente, colocar um fim nas práticas
cional construiu um kit de ferramentas de de tratamento desumanas e degradantes ob-
garantia de qualidade de serviços e direitos servadas nas instituições sanitárias e sociais,
humanos dos usuários para ser utilizado, práticas essas tão difundidas em todo o
tanto em países de baixa, quanto de média mundo. Objetiva, ainda, a capacitação dos
e alta renda. Oficialmente lançado em 28 usuários do serviço, bem como de familiares
de junho de 2012, na cidade de Nova York e profissionais de saúde, para compreender e
(Estados Unidos), foi discutido e pactuado promover os direitos humanos e a recupera-
por entidades governamentais de muitos ção em transtornos mentais e abuso de subs-
países, em sua forma de utilização e imple- tâncias, desenvolvendo um movimento, na
mentação. A força do QualityRights reside sociedade civil, das pessoas com transtorno
na sua capacidade de avaliar e estimular mental, para prestar apoio mútuo, advogar
melhorias dos serviços na ponta, tanto na e influenciar as decisões políticas de acordo
sua execução, quanto no plano político de com as normas internacionais de direitos
conquistas de direitos. Ele analisa a quali- humanos e reformar as políticas e legisla-
dade da assistência e dos direitos humanos ções nacionais, em consonância com as me-
em serviços comunitários e hospitalares lhores práticas de tratamento nos padrões
através de uma abordagem participativa, internacionais de pleno respeito aos direitos
envolvendo técnica e eticamente pessoas humanos.
com problemas de saúde mental ou em uso É importante ressaltar que QualityRights
de substâncias psicoativas, seus familiares, é um movimento da sociedade civil capita-
profissionais de saúde e gestores. O progra- neado pela OMS, que advoga que usuários de
ma tem como principal benefício pôr fim às instituições psiquiátricas e de saúde mental
violações que acontecem em toda a gama de possam participar mais plenamente da vida
instalações de saúde mental e de assistên- da comunidade, ter acesso a oportunidades
cia social, e melhorar a qualidade do apoio de educação e emprego, contribuir ativa-
e dos cuidados prestados, proporcionando mente para processos de decisão sobre as
formação e desenvolvimento de habilida- questões que os afetam, e trabalhar para a
des para os profissionais de saúde e para as prestação de serviços de qualidade em saúde
pessoas com transtorno mental que estão mental nas comunidades onde vivem.
em tratamento. Sua implementação tem O Projeto Avaliar-Caps, por sua vez, traz
como objetivo levar uma série de mudanças uma prescrição inicial do Ministério da Saúde,
positivas ao interior dos serviços de saúde e referindo-se à utilização dos recursos para as

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ações de caráter operacional e aplicado, que ao respeito aos direitos dos usuários, des-
visam encontrar soluções para resolver os tacando-se: o respeito às crenças, valores
problemas que limitam a efetividade da saúde e hábitos; a realização de atividades que
e para desenvolver métodos e técnicas que reduzam o preconceito contra a loucura e o
ampliem a capacidade de intervenção nos pro- uso de drogas; a existência e a participação
blemas de saúde. Como justificativa para a sua em assembleias nos Caps como exercício
realização na região Nordeste teria: a que mais de cidadania; e, a atenção, o respeito e as
cresceu nos últimos anos e, por isso mesmo, devidas respostas às reivindicações feitas
necessita ações de fomento, pesquisa, capaci- pelos usuários.
tação e incremento da rede, em plena concor-
dância com a reforma psiquiátrica brasileira, Percurso metodológico 
particularmente a partir do advento da Lei nº
10.216/2001 (BRASIL; ET AL., 2011). Neste sentido, as O artigo utilizou dados parciais do Projeto
ações, os objetivos e as metas aqui propostos Avaliar-Caps Nordeste (2013), que aconteceu
pretendem não só incrementar e qualificar a em duas fases: Fase I – Conhecer para avaliar:
rede de Caps, como avaliar a função do disposi- utiliza um questionário estruturado, que,
tivo Caps na rede de cuidados de saúde mental por via eletrônica, busca alcançar um censo
e uso prejudicial de substâncias psicoativas, epidemiológico de todos os Caps existentes
em especial o crack. Buscava ainda, nos cinco estados abrangidos: Bahia, Sergipe,
Alagoas, Pernambuco e Paraíba, para conhe-
desenvolver pesquisas, avaliação e qualifica- cer suas características de estrutura, processo
ção da rede de saúde mental, álcool e outras e resultados. Já a Fase II – Estudo etno-epi-
drogas através do planejamento de cursos demiológico de avaliação da humanização
(extensão, aperfeiçoamento e especialização) e efetividade dos Caps: consistiu em obser-
dos atores envolvidos na área (profissionais, vações diretas de cinco Caps, de cada região
usuários e familiares), pesquisas de avaliação metropolitana, nos cinco estados estudados, e
(de serviços e de atores), realização de ativi- a aplicação de instrumento etno-epidemioló-
dades de divulgação (congressos, seminários, gico construído para tal fim, para cinco usuá-
palestras etc.) e publicações (livros, folhetos, rios, cinco familiares e cinco profissionais, em
vídeos etc.). (BRASIL; ET AL., 2011). cada Caps estudado nessa fase.
Utilizou-se uma sub-amostra por con-
A opção por colocar os direitos humanos veniência de 75 entrevistados em cada
como foco dessa avaliação foi uma proposta estado, com questionários e também rotei-
da equipe Universidade Federal da Bahia/ ros de observação direta, produzidos à luz
Universidade Católica do Salvador (UFBA/ do QualityRights (WHO, 2012), para cada Caps
UCSAL), pactuada pelos parceiros(as) e estudado nessa fase, através dos quais se
colaboradores(as), buscando responder à se- indagou especificamente sobre o respeito
guinte questão: Os direitos humanos funda- às crenças, valores e hábitos; a realização de
mentais de usuários, familiares e profissionais atividades que reduzam o preconceito; a par-
estariam sendo respeitados nas práticas coti- ticipação em assembleias; e, o atendimento e
dianas dos Centros de Atenção Psicossocial? as devidas respostas às reivindicações feitas
pelos usuários. Já havia sido iniciada tal ava-
liação quando, em julho de 2012, foi lançado,
Objetivos em Nova York, o WHO QualityRights, com
objetivos comuns ao estudo aqui desenvolvi-
O artigo objetiva avaliar as práticas dos do. A comparação de instrumentos já cons-
Centros de Atenção Psicossocial em relação truídos com as ferramentas do QualityRights

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revela inúmeros pontos de identidade entre pois isto necessitaria de outros recursos não
as duas iniciativas. Desde então, se con- priorizados na atual avaliação. Na sétima
siderou o estudo afinado ao Movimento dimensão está a Alimentação, da qual se de-
QualityRights – WHO, que se constitui em preende, nas observações diretas, que este
uma estratégia potente de avaliação e en- fator parece ser muito importante para o
frentamento do estigma, da qual tais usuá- padrão de vida dos usuários. Por fim, temos,
rios podem participar e se beneficiar. na oitava dimensão, o estudo das Relações
A abordagem QualityRights aplicada na Interpessoais, onde se verifica a qualidade
pesquisa avaliativa desenvolvida concentra- da comunicação da equipe entre si e com os
-se na observação direta de oito dimensões, usuários e familiares, pelas visitas nos Caps e
nos Caps escolhidos: a primeira dimensão pela análise das discussões de casos nas reu-
observa Estrutura Física, Acessibilidade e niões técnicas observadas, com avaliações
Ambiência, com pontos de análise sobre positivas ou negativas referentes às pergun-
limpeza, segurança, conforto, disponibilida- tas feitas a usuários, familiares e profissio-
de de espaços e barreiras de acesso, verifica- nais, nos questionários.
das também pelos questionários qualitativos,
particularmente nas dimensões de livre
circulação, de respeito à privacidade dos Resultados
usuários. A segunda dimensão concentra-
-se nas Atividades, analisando a admissão, Foram analisadas informações relativas à
o acolhimento, a identificação e a distribui- garantia dos direitos do usuário e sua cida-
ção das atividades em grupo realizadas em dania, nos questionários respondidos através
diferentes formas, tangenciando a presença da análise das percepções de usuários, re-
da ‘interdisciplinaridade’ no trabalho das ferentes às suas crenças, valores, hábitos,
equipes. A terceira dimensão corresponde ao preconceitos, reivindicações e participação
Projeto Terapêutico Singular, com observa- comunitária, e ao respeito à dignidade no
ções sobre formas de elaboração, execução, acompanhamento das ações desenvolvidas
participação dos usuários e familiares, sendo nos Caps dos cinco estados estudados.
feitas perguntas acerca dos aspectos da vida
fora do Caps (moradia, renda, trabalho, vín- Bahia 
culos sociais, família, lazer etc.). A quarta
dimensão analisa a Articulação em Rede, No que se refere à garantia de direitos
com observações diretas e questionários humanos, exercitada nas práticas cotidianas,
sobre integração no espaço territorial, apoio 88% dos usuários sentiram-se respeitados
municipal e/ou estadual, parceiros e identi- nas suas crenças, valores e hábitos; 83,33%
ficação dos obstáculos. Na quinta dimensão referiram que o Caps realiza trabalhos para
estão os Familiares e a Rede Social, com ob- diminuir o preconceito contra a loucura e
servações sobre o envolvimento dos familia- os transtornos decorrentes do uso de subs-
res e membros da rede social potencial dos tâncias. Ainda, 40% disseram ter feito rei-
usuários. A sexta dimensão corresponde aos vindicações e solicitações ao serviço. Dentre
Medicamentos, com algumas questões sobre estes, 44,4% obtiveram respostas positivas às
a disponibilidade destes, segundo usuários, tais reivindicações, e somente 44% dos usuá-
familiares e profissionais. Não está colocada rios referiram participar de assembleias nos
a avaliação da eficiência dos medicamentos, Caps (gráfico 1).

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Gráfico 1. Garantia de direitos humanos (crenças, valores, hábitos, preconceito, reivindicações e participação comunitária)
de usuários. Bahia, 2013

Nota: Elaboração própria

Sergipe  o preconceito. Dos usuários, 65% já fizeram


reivindicações/solicitações para o Caps; e
No estado de Sergipe, quanto ao respeito às 66,7% obtiveram respostas para suas reivin-
crenças, valores e hábitos, 83% dos usuários dicações. Ainda, 61% dos usuários participa-
afirmaram ter sido respeitados; 79% disse- ram de assembleias no Caps (gráfico 2).
ram que o Caps faz atividades para diminuir

Gráfico 2. Garantia de direitos humanos (crenças, valores, hábitos, preconceito, reivindicações e participação comunitária)
de usuários. Sergipe, 2013

Nota: Elaboração própria

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Alagoas  promovem atividades para diminuir o


preconceito; 48% já fizeram reivindica-
Verifica-se que no estado de Alagoas, ções/solicitações, das quais 46,2% obti-
88% referiram que a equipe tratou com veram respostas; e 56% desses usuários
respeito as crenças, valores e hábitos dos afirmaram não participar de assembleias
usuários; 95,7% afirmaram que os Caps (gráfico 3).

Gráfico 3. Garantia de direitos humanos (crenças, valores, hábitos, preconceito, reivindicações e participação comunitária)
de usuários. Alagoas, 2013

Nota: Elaboração própria

Pernambuco  Ademais, 60% participaram de assembleia


no Caps. Procurou-se saber a percepção de
No estado de Pernambuco, 86,4% dos usu- usuários quanto ao fato de ser tratado com
ários afirmaram que o Caps faz atividades respeito e dignidade, e, predominantemen-
para diminuir o preconceito e 52% já fizeram te, os usuários se sentiram satisfeitos (80%)
reivindicações/solicitações para o Caps, das quanto ao respeito às crenças, valores e
quais 61,5% obtiveram respostas às mesmas. hábitos (gráfico 4).

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Gráfico 4. Garantia de direitos humanos (crenças, valores, hábitos, preconceito, reivindicações e participação comunitária)
de usuários. Pernambuco, 2013

Nota: Elaboração própria

promovem atividades para diminuir o pre-


Paraíba  conceito; apenas 36% já fizeram reivindica-
ções/solicitações, dos quais 53,9% obtiveram
Também na Paraíba foram selecionadas resposta; e 80% dos mesmos afirmaram
cinco categorias para avaliarmos o respeito participar de assembleias. Uma cultura de
aos direitos humanos e ao exercício de ci- valorização de direitos humanos e participa-
dadania e autonomia dos usuários. Dentre ção de usuários se faz presente na localidade
os usuários, 80% afirmaram que os Caps (gráfico 5).

Gráfico 5. Garantia de direitos humanos (crenças, valores, hábitos, preconceito, reivindicações e participação comunitária)
de usuários. Paraíba, 2013

Nota: Elaboração própria

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Discussão a igualização de direitos em situações sociais


desiguais. Tem-se, assim, a disposição de
Embora tenha havido variabilidade entre atender igualmente o direito de cada um
os estados, e alguns tenham alcançado me- como uma adequada definição de equidade
lhores escores no exercício de cidadania do imprescindível para se pensar direitos e ci-
usuário, nos aspectos selecionados do estudo, dadania para os ‘diferentes’ e ‘para todos’.
o que pode refletir indicativos de gestão es- É neste contexto que se inicia a preocupa-
tadual e/ou municipal mais comprometidas ção com a cidadania para os ‘doentes mentais’
com a democracia nos serviços em alguns e ‘drogaditos’. Ao prestar o direito à saúde e
locais, temos ainda poucos elementos para assistência social a quem dela necessita, com
isto afirmar. Nestas últimas décadas regidas o objetivo de habilitar e reabilitar as pessoas
pela Constituição Cidadã de 1988, que marca em desvantagem psicossocial e promover
o ordenamento jurídico-político brasileiro sua integração à vida comunitária, o Estado
com uma nova visão democrática, temos as- brasileiro se propõe a assegurar o bem estar
sistido a uma progressiva institucionalização social de todos os indivíduos, iguais e dife-
e luta por direitos humanos no País. A Carta rentes (PITTA, 1992). É nesse espírito que a Lei nº
Magna torna essenciais a cidadania e a digni- 10.216/2001, amplamente debatida ao longo
dade da pessoa humana, elegendo os direitos de 12 anos, até sua homologação, traz para
e as garantias individuais e coletivas como a Reforma Psiquiátrica Brasileira o marco
núcleo intocável da Constituição. Acerca do legal que promove a cidadania ‘dos loucos’
binômio democracia e direito do homem, “o em uma ‘sociedade sem manicômios’, como
reconhecimento e a proteção dos direitos a regra legalmente prescrevera.
do homem estão na base das Constituições Assim, instituem-se serviços substituti-
democráticas modernas”, uma vez que “sem vos, tipo Caps, que são implantados segundo
direitos do homem reconhecidos e protegi- as decisões das políticas municipais e estadu-
dos, não há democracia” (BOBBIO, 2004, P. 93) . ais, e de acordo com critérios populacionais
Não obstante, a Carta de 1988 inova ao não (Caps I, Caps II e Caps III) e grupos de risco,
mais se limitar a assegurar apenas direitos in- tais como crianças/adolescentes e usuários
dividuais, alargando a dimensão dos direitos de álcool e drogas, respectivamente Centros
e garantias, e tutelando os direitos coletivos de Atenção Psicossocial Infantojuvenil
e difusos, isto é, aqueles pertinentes à deter- (Capsi) e Centros de Atenção Psicossocial
minada classe ou categoria social, e estes a Álcool e Drogas (Capsad).
todos e a cada um, o que a classifica como Quando da aplicação dos questionários e
uma Constituição Social. Atente-se ao fato das observações diretas realizadas, estáva-
de que, no intuito de reforçar a imperativi- mos no período eleitoral e muitos foram os
dade das normas que traduzem direitos e ga- serviços desativados, com coordenadores
rantias fundamentais, foi instituído também demitidos aguardando as novas gestões para
no texto de 1988 o princípio da aplicabili- se recomporem. A sazonalidade dos Caps é
dade imediata das normas definidoras de um lamentável fato, que impõe um esforço
direitos e garantias fundamentais (PIOVESAN, de estruturação e formalização institucional
2013). Neste sentido, os direitos sociais, como para se tornar um serviço ‘forte’ e permanen-
dimensão dos direitos fundamentais do te, capaz de acolher e cuidar das demandas
homem, são ações positivas proporciona- complexas de sua clientela, que não desapa-
das pelo Estado, direta ou indiretamente, recem a cada eleição.
enunciadas em normas constitucionais, que De acordo com a série histórica de im-
possibilitam melhores condições de vida aos plantação dos Caps no Brasil, o Nordeste
que mais necessitam, que tendem a realizar é a segunda região com maior índice de

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cobertura no País, perdendo apenas para a estar consolidado na democracia brasileira,


região Sul. Na região, se destaca o estado da o princípio da igualdade (todos são iguais
Paraíba, com o maior índice de cobertura perante a lei), é necessária a relativização
assistencial brasileira (1,5 Caps/100.000 do mesmo, já que precisamos respeitar as
hab.), seguido de Sergipe, com a segunda individualidades de cada um, tratando os
maior cobertura assistencial do País (1,28 iguais igualmente e os desiguais desigual-
Caps/100.000 hab.). A partir da análise dos mente. Por outro lado, surge, a partir de jul-
75 questionários aplicados, foram geradas gados do Tribunal Constitucional Federal da
informações sobre a percepção dos usuá- Alemanha, a Teoria da Reserva do Possível,
rios nos cinco estados da região Nordeste que foi rapidamente absorvida pelos gover-
estudados. Acerca da garantia dos direitos nos brasileiros, colocando-se em questão a
humanos e exercícios de cidadania ativa, suficiência de recursos públicos para a im-
verificou-se que os Caps influenciam positi- plementação das ações exigidas do Estado,
vamente a vida dos usuários, assegurando- por lei e por grupos de interesses, como os
-lhes atividades que reduzem o preconceito, enfermos mentais ou usuários de drogas.
incentivam a participação em assembleias, Torna-se uma restrição fática aplicável pelos
estimulam e respondem às suas reivindica- governos de municípios, estados e união
ções e realizam tratamentos com base no para se recusarem a dotar os territórios dos
respeito e na dignidade. Incluir a participa- dispositivos adequados à garantia desses di-
ção dos usuários na gestão de serviços é um reitos fundamentais, admitindo que o Estado
reconhecimento dos seus direitos na insti- poderá não atender às postulações de direi-
tuição. O estigma traz, sem a menor dúvida, tos sociais, se estiver diante de uma escassez
um peso importante na inclusão atual dos de recursos capaz de restringir a sua atuação
usuários do sistema na sociedade, e ter e, por consequência, a própria concretização
ações para coibir o preconceito é advogar desses direitos (MOREIRA, 2011).
em favor desses usuários do sistema. Desta forma, como garantir a concreti-
Neste sentindo, partindo da premissa de zação dos direitos sociais em um contexto
que ser cidadão é ser um indivíduo dotado com tanta iniquidade? Como se dá a inserção
de direitos que lhe permitem não só se de- social àqueles a quem se atribui um transtor-
frontar com o Estado, mas afrontar o Estado, no mental num país com baixa magnitude de
através do exercício pleno e do conhecimen- gastos sociais e de saúde, que assiste a um
to de direitos, bem como a capacidade de importante movimento de minimização da
reivindicar, caso esses direitos não estejam atuação do Estado em relação aos compro-
sendo respeitados, podemos dizer que os in- missos sociais com a sociedade? Em uma
divíduos com transtornos mentais e usuários sociedade neoliberal, quais os direitos que
de álcool e outras drogas estão se tornando estão compondo o exercício de cidadania
sujeitos e atores das suas próprias vidas. dos usuários de serviços de saúde mental,
Contudo, o conceito contemporâneo de como um Caps? A crise da cidadania no
cidadania, que compreende a indivisibili- Brasil pode ser percebida, quer seja devido
dade e a interdependência entre os direitos à ausência de atenção aos direitos humanos
humanos, caminha em constante tensão com pela maior parte da sociedade, quer seja em
as ideias de liberdade, de justiça política, razão de seu baixo grau de solidariedade or-
social e econômica, de igualdade de chances gânica, expresso nos ainda frágeis movimen-
e de solidariedade a que se vinculam, ocu- tos sociais (GUERRA, 2012).
pando um papel central na construção do Em um país com desigualdades acentu-
Estado Democrático de Direito (TORRES, 2001). adas, a cidadania e a qualidade de vida da
É preciso ter consciência de que, apesar de população constituem um desafio e uma

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questão social, na medida em que esse fundamentais de usuários e familiares.


binômio é representado por um contexto de Estratégias metodológicas inovadoras, que
dimensões variadas, no qual se incluem per- capturem a complexidade das suas práticas,
cepções, experiências de vida e oportunida- repercutindo em conquistas reais na quali-
des sociais, além de recursos socio-culturais dade de vida dos usuários e nas relações dos
e econômicos, que se refletem no acesso à seus vários atores foram dimensões buscadas
educação, saúde, transporte e habitação, no estudo. Entretanto, ainda se percebe a ne-
entre outros. cessidade de incorporação de instrumentos
que possam mais apropriadamente captar
a sua realidade, possibilitando a criação de
Conclusões e limitações do indicadores aceitos pelos governos e que, si-
estudo multaneamente, tragam contribuições para
a gestão desses serviços, ao mesmo tempo
Os limites já acontecem na implantação e em que propiciem o desenvolvimento de
na sustentação dos Caps, na quantidade e na práticas mais inclusivas e participativas
qualidade dos serviços prestados para uma para os usuários, e que contribuam nos seus
cobertura assistencial adequada, embora restabelecimentos para uma vida digna, em
se tenha expandido a rede de serviços na liberdade.
região. Um modelo contra hegemônico de Pode-se inferir que, dos avanços alcança-
base territorial em um país de forte tradição dos pelos usuários do sistema nessa transi-
manicomial e poderio do capital real e sim- ção de modelo assistencial do manicômio à
bólico vinculado às práticas manicomiais no comunidade, o direito humano de ir e vir, de
cuidado da loucura e suas derivações (lugar ser escutado nas suas diversas linguagens, de
de louco é no asilo), reforça seu estatuto de ser reconhecido nas suas experiências inter-
vulnerabilidade. Avança-se e recua-se a cada subjetivas de identidades e alteridades, con-
mudança política sazonal, a cada eleição. siderando suas crenças, valores e hábitos,
O Nordeste do Brasil tem especificidades e uma ética de solidariedade cidadã no en-
sociais e culturais que somente agravam os frentamento do preconceito e nas barreiras
problemas de implantação e gestão de ser- da exclusão são evidências que se constatam
viços que possam estar a favor da democra- no estudo, nas quais é preciso avançar e, se
cia e do pleno respeito a direitos humanos espera, que sejam irreversíveis. s

Referências

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Direitos humanos nos Centros de Atenção Psicossocial do Nordeste do Brasil: um estudo avaliativo, tendo como 771
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Recebido para publicação em setembro de 2014


PITTA, A. M. F. et al. Avaliação da qualidade do cuidado Versão final em novembro de 2014
Conflito de interesses: inexistente
em Centros de Atenção Psicossocial: Estados da Bahia,
Suporte financeiro: Ministério da Saúde do Brasil – FAPEX.
Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Paraíba no Nordeste Processo nº 110007.04
do Brasil – AVALIAR-Caps NORDESTE – Relatório
Técnico, Salvador, Bahia, jun. 2013.

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