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Abrindo a Caixa de Skinner

A C O R R I D A D E R AT O S D E B . F. S K I N N E R

B. F. Skinner, o principal neobehaviorista dos Estados Unidos, nasceu


em 1904 e morreu em 1990. É conhecido no campo da psicologia por
seus famosos experimentos com animais, nos quais demonstrou o
poder das recompensas e reforços para moldar o comportamento. Usando
comida, alavancas e outras sugestões ambientais, Skinner demons-
trou que o que parecem ser respostas autônomas são, na verdade, res-
postas sugeridas e, ao fazê-lo, ele colocou em dúvida a noção há
tanto tempo valorizada de livre-arbítrio. Skinner gastou boa parte
de sua carreira científica estudando e refinando o que ele veio a
chamar de condicionamento operante, os meios pelos quais os seres
humanos podem treinar seres humanos e outros animais a realizar
toda uma série de tarefas e aptidões por meio de reforço positivo.
Skinner defendeu que a mente, ou o que era então chamado men-
talismo, era irrelevante, mesmo inexistente, e que a psicologia deve-
ria se concentrar apenas nos comportamentos concretos mensuráveis.
Sua visão era construir uma comunidade em todo o mundo na qual
o governo consistiria em psicólogos behavioristas que condicionariam,
ou treinariam, seus cidadãos para se transformarem em falanges de
robôs benevolentes. De todos os psicólogos do século XX, é possível que
seus experimentos e suas conclusões sobre a natureza mecanística dos
homens e mulheres sejam os mais insultados e, ainda assim, continua-
mente relevantes para a nossa era cada vez mais tecnológica.

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Portanto, talvez seja esta a história. Existe um homem chamado


Skinner [“peleteiro”, “esfolador”], um nome feio em qualquer re-
lato, um nome com uma faca dentro dele, a imagem de um peixe es-
folado caindo sobre um tabuleiro, seu coração mal visível em seu
manto de músculos, cá-bum. Diga o nome “Skinner” a vinte pes-
soas com grau universitário e a maioria reagirá com um adjetivo
semelhante a “mau”. Sei que isso acontece, pois fiz a experiência.
E, mesmo assim, em 1971, a Time Magazine o considerou o
psicólogo vivo mais influente. E uma pesquisa de opinião de 1975
o identificou como o cientista mais conhecido nos Estados Unidos.
Ainda hoje, em todos os lugares, seus experimentos merecem a
mais alta estima.
Então, por que a infâmia? Eis por quê. Nos anos 1960, Skinner
deu uma entrevista ao biógrafo Richard I. Evans, na qual admitiu
abertamente que seus esforços em engenharia social tiveram impli-
cações para o fascismo e poderiam ser usados para fins totalitários.
Consta que B. F. Skinner desejava nada mais que moldar – e moldar
é a palavra operante aqui – o comportamento das pessoas sujeitadas
a engrenagens, caixas e botões, qualquer humanidade em que ele
tocasse se ossificando. Diz a lenda que ele construiu uma caixa de
bebê na qual manteve a filha Deborah por dois anos inteiros para
treiná-la, registrando o progresso dela num gráfico. Diz também a
lenda que, quando estava com 31 anos de idade, ela o processou por
abuso em um autêntico tribunal de justiça, perdeu a ação judicial e
atirou em si mesma numa pista de boliche em Billings, Montana.
Nada disso é verdade e, ainda assim, os mitos persistem. Por quê?
O que existe em Skinner que nos amedronta tanto?
Digite “B. F. Skinner” em sua ferramenta de busca na internet e
você obterá milhares de ocorrências, entre elas o website de um
pai ultrajado que amaldiçoa o homem por assassinar uma criança
inocente; um website com uma caveira e um texto de Ayn Rand
“Skinner é tão obcecado com o ódio e a virtude do homem, com um
ódio tão intenso e absorvente, que consome a si mesmo e, no fim, o
que temos são apenas cinzas e carvão malcheiroso”; um memorial a

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Deborah, que teria supostamente morrido nos anos 1980: “Deborah,


nossos corações se abrem para você.” E, então, um pequeno link
em vermelho com os dizeres: “For Deborah Skinner herself, click
here” [“Para acessar a página da própria Deborah Skinner, clique
aqui”]. Cliquei. Rolando a página para baixo, aparece a foto de uma
mulher de meia-idade, de cabelos castanhos. A legenda dizia que
aqui estava a própria Deborah Skinner, que seu suicídio era um
mito e que ela estava viva e bem.
Lendas. Mitos. Histórias. Histórias exageradas. Qual o ver-
dadeiro legado de Skinner? O desafio de entender o experimento
de Skinner será, talvez, principalmente discriminativo, separando
conteúdo de controvérsia, uma peneiração total. Escreve o psicó-
logo e historiador John A. Mills: “[Skinner] foi um mistério en-
volto em uma charada envolta em um enigma.”
Decido ir a fundo, lentamente.

Ele nasceu em 1904. É a única certeza. Além disso, porém, o que


encontro é um emaranhado de contradições. Foi um dos principais
behavioristas dos Estados Unidos, um homem verdadeiramente
austero, que dormia em um cubículo amarelo brilhante do Japão
chamado beddoe, mas que, ao mesmo tempo, não conseguia tra-
balhar a menos que sua mesa estivesse abarrotada, e que disse so-
bre o seu próprio percurso: “É incrível o número de acidentes
triviais que foram importantes... Não acredito que minha vida
tenha sido planejada em qualquer ponto.” Mas, então, ele escreveu
muitas vezes que se sentia um deus e “uma espécie de salvador da
humanidade”.
Quando era docente em Harvard, Skinner conheceu e se apaixo-
nou por uma mulher chamada Yvonne, que mais tarde se tornaria
sua mulher. Vejo-os nas noites de sexta-feira, dirigindo até o lago
das Gaivotas, em Monhegan, com a capota preta do conversível
dobrada para trás e alguma espécie de jazz melancólico tocando no
rádio. Uma vez no lago, eles se despem e mergulham nus, as águas

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salobras em seus corpos, o ar frio da noite, a lua apenas um buraco


recortado no céu. Leio num texto empoeirado no porão de uma
biblioteca que, depois das sessões de treinamento, ele costumava
levar para fora os seus pombos engaiolados e segurá-los em sua
mão imensa, afagando suas cabeças felpudas com o polegar.
Fiquei surpresa quando soube que, antes de ir a Harvard estudar
psicologia em 1928, a aspiração de Skinner era ser um romancista, e
que tinha passado os dezoito meses anteriores enfurnado no sótão
da casa de sua mãe escrevendo prosa lírica. Não ficou claro para
mim como ele foi da prosa lírica para os índices cronometrados de
reforço – como um homem pode dar uma guinada tão brusca. Ele
escreve que, quando tinha cerca de 23 anos de idade, deparou-se
com um artigo de H. G. Wells, na New York Times Magazine, no
qual Wells afirmava que, se lhe fosse dada a chance entre salvar a
vida de Ivan Pavlov ou de George Bernard Shaw, Wells escolheria
Pavlov, porque a ciência é mais redentora que a arte.
E, de fato, o mundo precisava de redenção. A Grande Guerra ti-
nha acabado uma década antes. Soldados atingidos por bombas
sofriam de flashbacks e depressões; os asilos estavam lotados; havia
uma necessidade urgente de algum tipo de esquema terapêutico.
Quando Skinner foi a Harvard, em 1928, como estudante de gradua-
ção, o esquema era basicamente psicanalítico. Todo mundo em todos
os lugares estava deitado em divãs de couro e pescando iguarias
efêmeras de seus passados. Freud dominava, juntamente com o
venerável William James, que escrevera As variedades da experiên-
cia religiosa, um texto sobre os estados introspectivos da alma, sem
nenhuma equação nele. Esse, de fato, era o estado da psicologia
quando Skinner chegou; era um campo sem números, que tinha
mais em comum com a filosofia que com a fisiologia. Uma pergun-
ta introdutória típica no campo poderia ser: “O que está dentro de
nós que vê, sente e pensa a todo momento quando estamos desper-
tos, desaparece temporariamente quando dormimos e desaparece
permanente ou instantaneamente quando morremos?”
Introspecção. Mentalismo. Eram esses os princípios nos quais
Skinner interveio, aquele jovem magro com um rígido elmo de

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cabelos puxados para cima em um penteado à Pompadour. Os olhos


eram de um azul intenso, como lascas de porcelana. Ele escreveu
que queria influir, sentir coisas palpáveis nas mãos e no coração.
Situado entre a Primeira Guerra Mundial e uma futura logo por vir,
Skinner pode ter intuído – embora rejeitasse uma palavra tão frágil
– a necessidade de ação, de intervenções e resultados que pudessem,
cada um, ser endurecidos, como balas.
Ele evitava, portanto, qualquer coisa “mole”. Começou no cur-
so de fisiologia de Hudson Hoagland, estudando reflexos de rã.
Dava uma picada na pele retesada da coxa de uma rã e media o
movimento espasmódico do animal e, depois, seu salto. As mãos
cheiravam a pântano e ele estava cheio de energia.
Certo dia, no início da sua carreira em Harvard, Skinner se de-
parou com a Oficina de Psicologia de Harvard, em Emerson Hall.
Viu uma série de instrumentos, peças em estanho-vermelho, cinzéis,
pregos e porcas em latas de cigarros Salisbury. Imagino que sentiu
uma comichão nas mãos. Queria fazer algo grande e sempre fora
habilidoso, empunhando tesouras e serras com precisão. Então lá,
naquela oficina minúscula, Skinner começou a construir suas fa-
mosas caixas, usando fios refugados, pregos enferrujados e brocas
escurecidas que encontrava.
Será que ele sabia o que estava construindo e os efeitos imensos
que isso teria sobre a psicologia norte-americana? Estaria ele perse-
guindo uma visão pré-montada ou simplesmente seguindo o lírico
vai-e-vem de um poema de estanho e fio, de forma que, no fim, o
que viu surpreendeu até mesmo a ele: uma caixa operada por ar
comprimido, um mecanismo silencioso de liberação, todas as enge-
nhocas e engrenagens, a caixa, um reles objeto que, como as escadas,
os espelhos e os gatos pretos, imediatamente adquiriram uma espé-
cie de brilho denso.
Sobre essa época, Skinner escreve: “Começo a ficar insupor-
tavelmente animado. Tudo em que toquei sugeriu coisas novas e
promissoras a fazer.”
Agora, tarde da noite em seus aposentos alugados, Skinner lia
Pavlov, com quem tem uma enorme dívida, e Watson, a quem deve

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menos, mas ainda uma dívida considerável. Pavlov, o grande cien-


tista russo, tinha praticamente vivido no seu laboratório, tal era sua
dedicação. Passara anos estudando as glândulas salivares de seus
adorados cães. Pavlov descobriu que a glândula salivar poderia ser
condicionada a vazar ao som de uma campainha. Skinner gostou
dessa idéia, mas queria ir além de uma pequena membrana mucosa,
queria o organismo inteiro; onde estava a poesia na saliva?
Pavlov descobriu o que é conhecido como condicionamento
clássico. Isto simplesmente significa que uma pessoa pode pegar
um reflexo animal preexistente, como piscar, assustar-se ou salivar,
e condicioná-lo de tal maneira que ele ocorra em resposta a um
novo estímulo. Daí a famosa campainha – um estímulo –, que os
cães de Pavlov aprenderam a associar ao alimento, salivando ao seu
som. Bem, isso pode não parecer uma grande descoberta para mim
ou para você, mas naquela época foi algo gigantesco. Foi tão ar-
rebatadora quanto a fissão do átomo ou a posição singular do sol.
Nunca, em tempo algum de toda a história humana, as pessoas ti-
nham entendido o quanto eram fisiológicas as nossas supostas asso-
ciações mentais. Nunca antes as pessoas tinham entendido a pura e
simples maleabilidade da imutável forma animal. Os cães de Pavlov
salivaram, e o mundo perdeu duas vezes o equilíbrio.
Skinner ficou maravilhado. Ele estava lá, em seus aposentos, e
tinha construído algumas de suas caixas ainda não-famosas, ou in-
fames, ainda vazias – e sempre havia esquilos logo embaixo, nos
jardins de Harvard. Ele observava os esquilos e se perguntava se se-
ria possível, digamos, condicionar a coisa toda, e não simplesmente
uma simples e tola glândula. Em outras palavras, poderia uma pes-
soa moldar um comportamento – aquilo que Skinner veio a chamar
um operante – que não fosse um reflexo? Condicionada ou não, a
salivação é, foi e sempre será um reflexo, uma ação inteiramente
formada que ocorre por conta própria, além de ser provocada por
uma campainha. Entretanto, quando você pula no ar ou canta
“Howdy Doodie” ou aperta uma alavanca na esperança de encon-
trar comida, você não está agindo reflexamente. Está simplesmente

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se comportando. Está operando em seu ambiente. Se é possível


condicionar um reflexo, não seria demais tentar dar mais um passo
à frente e condicionar movimentos acrobáticos ou outros movi-
mentos supostamente de forma livre? Seria possível pegar um mo-
vimento inteiramente aleatório, como virar a cabeça para a direita e
compensá-lo sistematicamente, para que, sem demora, a pessoa
fique olhando para a direita, o operante inscrito? E se isso fosse
possível, até onde seria possível ir? Que tipos de arco poderíamos
aprender para saltar tudo e com que tipo de desenvoltura? Skinner
se perguntou. Ele moveu, imagino, suas mãos para cá e para lá.
Debruçou-se no peitoril da janela e sentiu o cheiro de esquilos, um
odor almiscarado de noite e excremento, de pêlos e flores.
Em junho daquele ano, Skinner ganhou ratos de um estudante
de graduação que partia. Ele colocou os animais em uma caixa.
Então, começou. Depois de muito, muito tempo, de fato, anos, des-
cobriu que esses ratos, que têm cérebros não maiores que um feijão
cozido, conseguiam rapidamente aprender como apertar uma ala-
vanca, se recebessem comida como recompensa. Portanto, enquan-
to Pavlov se concentrou no comportamento do animal em resposta a
um estímulo anterior – a campainha –, Skinner se concentrou no
comportamento do animal em resposta a uma conseqüência após o
fato – o alimento. Foi uma nuança sutil e não tão excitante em re-
lação ao trabalho anterior de Pavlov e uma extensão ostensiva dos
estudos de Thorndike, que já tinha demonstrado que gatos em
caixas de ripa recompensados por pisar acidentalmente em um pedal
poderiam aprender a fazê-lo intencionalmente. Mas Skinner foi
mais adiante que esses dois homens. Depois de ter demonstrado
que seus roedores poderiam, por acidente, pisar na alavanca e soltar
uma bolota e depois transformar o acidente em intenção com base
em recompensa anterior, ele brincou de remover ou alterar a pro-
porção em que as recompensas ocorriam e, ao fazê-lo, Skinner des-
cobriu leis replicáveis e universais de comportamento que ainda
hoje são verdadeiras.
Por exemplo, depois de Skinner ter sistematicamente recompen-
sado com comida o rato que pressionava a alavanca, ele tentou o

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que chamou de um esquema de razão fixa. Nesse cenário, se o ani-


mal pressionasse a alavanca três vezes, receberia sua guloseima. Ou
cinco vezes. Ou vinte vezes. Imagine-se como um rato. Primeiro,
sempre que você aperta a alavanca, ganha comida. Depois, você
aperta a alavanca uma vez e não ganha comida; você o faz de novo,
ainda nenhuma comida. Você o faz de novo e pela torneira pratea-
da chega uma bolota. Você come a bolota e se afasta. Você volta
para pegar mais. Desta vez, você nem pensa em apertar uma vez
com o seu pé róseo. Você aperta três vezes. As contingências de re-
forço mudam a maneira como o animal responde.
Skinner também se entreteve com aquilo que denominou esque-
mas de intervalo fixo e extinção. Na versão de extinção do experi-
mento, Skinner removeu inteiramente o reforçador. Ele descobriu
que se parasse de recompensar os ratos com comida, eles acabariam
parando de apertar a alavanca mesmo quando ouviam o som das
bolotas descendo. Utilizando um registrador cumulativo fixado à
sua caixa, Skinner pôde representar pictoricamente exatamente
quanto tempo se leva para aprender uma resposta quando ela é re-
gularmente recompensada e quanto tempo se leva para extinguir uma
resposta quando ela é abruptamente suspensa. Sua capacidade de
quantificar com precisão essas taxas sob diferentes circunstâncias
forneceu dados quantificáveis sobre como os organismos aprendem
e sobre como podemos predizer e controlar o resultado do apren-
dizado. Com a façanha da previsibilidade e do controle, uma ver-
dadeira ciência do comportamento nasceu, com curvas em sino,
diagramas de barras, gráficos de pontos e matemática – e Skinner foi
o primeiro a fazê-lo com tal nuança e de múltiplas camadas.
Mas Skinner não parou aí. Partiu para aquilo que chamou de es-
quemas variáveis de reforço, e foi aqui que fez suas descobertas
mais significativas. Tentou recompensar intermitentemente os ani-
mais com comida quando eles apertavam a alavanca, de modo que,
na maioria das vezes, os animais nada recebessem, mas, de vez em
quando, digamos, depois da quadragésima ou sexagésima vez em que
apertassem a barra, recebessem um mimo. A intuição nos diz

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que recompensas aleatórias e remotas levariam à desesperança e


extinção do comportamento; não levaram. Skinner descobriu que,
se recompensasse intermitentemente os ratos com comida, eles
continuariam a pressionar aquela alavanca como uma espécie de
drogado insistente, independentemente do resultado. Ele experi-
mentou buscando saber o que acontece quando recompensas inter-
mitentes são dadas em intervalos regulares (digamos, uma a cada
quatro vezes) ou em intervalos irregulares. Descobriu que um
comportamento irregularmente recompensado era o mais difícil de
ser erradicado. Ahá! Essa descoberta era tão grande quanto a da sali-
vação canina. De repente, Skinner era capaz de evocar sistematica-
mente e explicar boa parte da insensatez humana, por que fazemos
coisas estúpidas quando não somos sistematicamente recompensa-
dos, por que sua melhor amiga fica grudada no telefone, a saliva
brilhando nos cantos da boca, esperando que aquele namorado
genioso com um vestígio ocasional de gentileza telefone, apenas
telefone. Oh, por favor, telefone! Por que pessoas perfeitamente
normais esvaziam seus cofres em cassinos esfumaçados e se metem
em terríveis apuros. Por que as mulheres amam demais, e os homens
negociam margens. Tinha tudo a ver com essa coisa chamada re-
forço intermitente e ele poderia demonstrá-lo, seus mecanismos, as
contingências da compulsão. E compulsão é algo enorme. Ela – sem
trocadilhos intencionais – nos faz cachorradas e nos afoga desde
que a primeira pessoa entrou no Éden. É enorme.
Mas Skinner não parou ali. Se ele pôde treinar ratos a apertar ala-
vancas, por que não treinar pombos para, digamos, jogar pingue-
pongue? Jogar boliche? Quais eram os limites, ele se perguntava, de
quanto o homem poderia moldar o comportamento de um outro ser
vivo? Skinner escreve sobre tentar treinar um pássaro a bicar um
prato: “Primeiro damos comida ao pássaro quando ele vira a cabeça
ligeiramente na direção [do prato], estando em qualquer parte da
gaiola. Isto aumenta a freqüência do comportamento... A seguir,
reforçamos sucessivamente as posições mais próximas ao alvo, de-
pois reforçamos apenas quando a cabeça se move ligeiramente para

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a frente e, finalmente, somente quando o bico faz contato com o


alvo. Dessa maneira, podemos construir operantes raros e com-
plicados que, do contrário, nunca apareceriam no repertório do
organismo.”
Raros, de fato. Usando seus métodos comportamentais, os segui-
dores de Skinner conseguiram ensinar um coelho a apanhar uma
moeda com a boca e jogá-la num cofrinho em forma de porco. Tam-
bém ensinaram um porco a limpar com aspirador de pó.
Com base nesses experimentos, ele apurou sua filosofia impla-
cavelmente redutiva. Começou, cercado por seus pombos bicadores,
a abominar palavras como intuído, sentir ou medo. Não existe medo,
somente certas respostas galvânicas da pele e tremores musculares
involuntários que emitem 2,2 volts de energia.
Por que simplesmente não rejeitamos Skinner, considerando-o
um radical tendencioso? Não apenas porque ele descobriu a pri-
meira ciência do comportamento. Sua visão também era audaciosa,
talvez patrioticamente otimista. Negava aos norte-americanos a
cobiçada autonomia, enquanto a devolvia inteiramente nova e me-
lhorada. O mundo de Skinner era de extrema liberdade trabalhada
por meio do seu oposto: a conformidade. No esquema skinneriano,
se apenas nos submetêssemos ao treinamento impensado, tornar-
nos-íamos biologicamente ilimitados, capazes de aprender habili-
dades bem fora do “repertório” de nossa espécie. Se pombos podem
jogar pingue-pongue, então talvez os seres humanos pudessem
aprender façanhas ainda mais incríveis. Tudo o que é necessário é o
treinamento certo – e transporemos as fronteiras dos nossos corpos
e suas limitações.
A fama de Skinner cresceu lentamente. Ele seguiu em frente e
inventou máquinas de aprendizado, construiu uma teoria da aquisi-
ção da linguagem como condicionamento operante, treinou pom-
bos como orientadores de mísseis na Segunda Guerra Mundial.
Escreveu um livro chamado Walden 2, no qual descreveu em linhas
gerais uma proposta para uma comunidade baseada em “engenharia
comportamental”, na qual o poder do reforço positivo era usado

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para o controle científico de seres humanos. Na visão de Skinner,


essa comunidade ideal seria governada não pelos políticos, mas por
behavioristas armados com pirulitos e fitas azuis. Ele escreveu um
livro chamado Beyond Freedom and Dignity [Para além da liber-
dade e dignidade], sobre o qual um resenhista escreveu: “É sobre a
domesticação da humanidade através de escolas de obediência
canina para todos.”
Antes que Skinner conseguisse trazer à fruição as implicações
sociais de seus grandes experimentos, ele morreu de leucemia em
1990. Teria percebido, bem no fim, que o ato final da vida, que é a
morte, não pode ser aprendido ou de alguma forma superado?

Como podemos situar Skinner? Seus experimentos são pertur-


badores em suas implicações. Por outro lado, suas descobertas são
certamente significativas. Em essência, elas iluminam a estupidez
humana, e qualquer coisa que ilumine a estupidez é brilhante.
Jerome Kagan é um contemporâneo de Skinner que carrega
muitas memórias e opiniões de seu colega. Professor de psicologia
em Harvard, Kagan tem uma percepção profunda sobre que senti-
do dar a este homem e seu lugar no século XX. Vou vê-lo.
O prédio de escritórios de Kagan, o William James Hall, está em
construção quando chego e, portanto, preciso me desviar para cá e
para lá para abrir caminho por um labirinto de concreto, com car-
tazes acima de mim dizendo, “Cuidado. Use capacete protetor nes-
ta área”. Subo pelo elevador. Todo o prédio encontra-se em um
silêncio reverente. Muito abaixo de mim, nas entranhas do porão
em que são guardados os artefatos, onde supostamente algumas das
caixas pretas de Skinner estão encaixotadas, marteletes pneumáti-
cos desgastam concreto velho e ouço uma voz fina gritando, Presto.
Desço ao 15o andar. As portas do elevador se abrem e à minha
frente, como se num sonho, está sentado um cãozinho preto, tipo
toy, sua boca uma fenda vermelha em sua face inteiramente negra.
O cachorro me encara fixamente, uma espécie de sentinela – sei lá.

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Abrindo a Caixa de Skinner

Adoro cães, embora os toys não sejam os meus preferidos. Eu me


pergunto por que não o são. Quando criança, tive um cachorro toy
e ele me mordeu; portanto, talvez eu tenha sido condicionada con-
tra eles e pudesse ser recondicionada com recompensas para que
passasse a preferir o shitzu ao pastor. De qualquer forma, curvo-me
para afagar o cãozinho e, como se ele percebesse minha antipatia,
entra num frenesi, revelando uma fileira de dentes impressionantes
e de forma alguma pequenos e rosnando ao saltar para agarrar meu
pulso exposto.
– Gambito! – grita uma mulher, saindo correndo de um dos es-
critórios. – Gambito, pare com isso! Oh, meu deus, ele a machucou?
– Estou bem – digo, embora não esteja bem. Estou tremendo.
Recebi um reforço negativo... não, recebi uma punição. Nunca
mais confiarei num toy e NÃO quero que isso mude. Skinner diria
que ele conseguiria mudar isso, mas até que ponto sou modificável,
somos modificáveis?

O professor Kagan fuma um cachimbo. O escritório cheira a cachim-


bo, aquele odor rançoso meio adocicado de brasa queimada. Ele
fala com o tipo de autoconfiança total que associo à casta da Ivy
League:
– Permita-me dizer que seu primeiro capítulo não deveria ser
sobre Skinner. Foi Pavlov no início do século XX e depois
Thorndike, uma década depois, que fizeram os primeiros experi-
mentos demonstrando o poder do condicionamento. Skinner am-
pliou esse trabalho. Mas suas descobertas não conseguem explicar
pensamento, linguagem, raciocínio, metáfora ou idéias originais, nem
outros fenômenos cognitivos. Nem explicam culpa ou vergonha.
– E quanto às extrapolações de Skinner a partir de seus experi-
mentos? – eu digo. – Que não temos livre-arbítrio. Que somos
dominados apenas pelos reforços. Você acredita nisso?
– Você acredita nisso? – pergunta Kagan.
– Bem, não descarto de forma alguma a possibilidade de que

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MENTE E CÉREBRO

somos controlados ou estamos no controle, que nosso livre-


arbítrio é, na verdade, apenas uma resposta a algumas sugestões que...
Antes que eu consiga terminar a sentença, Kagan mergulha em
sua mesa. Digo isso literalmente. Ele pula da cadeira e avança à
frente, se alojando sob a mesa, de modo que não o vejo mais.
– Estou debaixo da minha mesa – ele grita. – NUNCA fui para
baixo de minha mesa antes. Isto não é um ato de livre-arbítrio?
Pisco. Onde Kagan estava sentado está vazio. Debaixo da mesa,
ouço um barulho. Fico um pouco preocupada com ele. Acho que
ele me disse, pelo telefone, quando pedi a entrevista, que tinha
problemas nas costas.
– Bem – eu digo, e subitamente minhas mãos ficam frias de
medo –, imagino que poderia ser um ato de livre-arbítrio ou pode-
ria ser que você...
De novo, Kagan não me deixa terminar. Ele ainda está sob a
mesa, não sobe, está conduzindo a entrevista agachado e escondi-
do. Nem sequer o vejo. A voz aumenta, incorpórea.
– Lauren, não existe nenhuma maneira pela qual você possa ex-
plicar o fato de eu estar debaixo desta mesa neste exato momento,
senão como um ato de livre-arbítrio. Não é uma resposta a um
reforço nem a uma sugestão. NUNCA fiquei embaixo da minha
mesa antes.
– Certo! – respondo.
Ficamos desse modo por um minuto, ele lá embaixo, eu aqui em
cima. Acho que ouço aquele maldito cachorro no corredor, arra-
nhando. Tenho medo de voltar para fora, mas não quero mais ficar
aqui dentro. Estou enjaulada pelas contingências e, portanto, fico
bem imóvel.

Kagan, me parece, é um tanto desdenhoso com as contribuições de


Skinner. Mas certamente há maneiras pelas quais os experimentos
de Skinner – mesmo que sejam derivados – são ao mesmo tempo

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Abrindo a Caixa de Skinner

relevantes e úteis na construção de um mundo melhor. Nos anos


1950 e 1960, os métodos comportamentais de Skinner foram levados
aos asilos governamentais e aplicados aos gravemente psicóticos.
Usando seus princípios de condicionamento operante, pacientes ir-
remediavelmente esquizofrênicos foram capazes de aprender a se
vestir, a se alimentar – cada erguer da colher recompensado com
um cobiçado cigarro. Mais tarde no século, os clínicos começaram
a usar técnicas como dessensibilização sistemática e inundação, ex-
traídas diretamente do repertório operante de Skinner, para tratar
fobias e transtornos do pânico, e esses tratamentos comportamen-
tais ainda são hoje amplamente empregados e obviamente eficazes.
Diz Stephen Kosslyn, professor de psicologia em Harvard:
“Prevejo um ressurgimento de Skinner. Eu próprio sou um ver-
dadeiro fã de Skinner. Os cientistas estão agora mesmo fazendo no-
vas descobertas excitantes que apontam para os substratos neurais
dos achados de Skinner.” Kosslyn explica a evidência de que exis-
tem dois principais sistemas de aprendizado no cérebro: os gânglios
basais, uma coleção de sinapses aracneiformes localizadas profun-
damente na massa do cérebro antigo, em que os hábitos são en-
talhados, e o córtex frontal, aquela grande protuberância dobrada
que surge conjuntamente com nossa razão e ambição. O córtex
frontal, conjecturam os neurocientistas, é onde aprendemos como
pensar independentemente, visualizar o futuro e planejar com base
no passado. É de onde a criatividade e todas as suas surpreendentes
guinadas se originam, mas, diz Kosslyn: “Somente uma parte de
nossas cognições é mediada por esse córtex.” O restante do apren-
dizado, diz Kosslyn, “uma quantidade significativa, é impelido
pelo hábito, e os experimentos de Skinner nos levaram a procurar
pelos substratos neurais desses hábitos.” Em essência, Kosslyn está
dizendo, Skinner levou os cientistas aos gânglios basais, levou-os
para baixo, descendo até a base do cérebro, na qual esquadrinharam
por meio dos emaranhados neurais para encontrar a química por
trás das bicadas, de apertar botões e de todos os movimentos
acrobáticos condicionados que fazemos na grama verde, no verão.

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MENTE E CÉREBRO

Diz Bryan Porter, um psicólogo experiente que aplica beha-


viorismo baseado em Skinner para abordar problemas de segurança
de trânsito: “Obviamente, o behaviorismo não é mau nem está morto.
O behaviorismo de Skinner é responsável por muitas intervenções
sociais benéficas. Com uso de técnicas behavioristas, pudemos re-
duzir a direção perigosa, no que diz respeito ao número de avanços
de sinal vermelho, em 10% a 12%. E também por causa de Skinner,
sabemos que as pessoas respondem melhor às recompensas que à
punição. As técnicas de Skinner têm sido instrumentais em ajudar
a enorme população de pessoas com transtorno da ansiedade a su-
perar, ou extinguir, suas fobias. Graças a Skinner, autistas hesitantes
agora sabem vestir camisas limpas e se alimentar. Graças a Skinner,
você sabe como dar reforço positivo ao seu filho. Você sabe que
recompensas funcionam muito melhor que punição para estabele-
cer o comportamento, porque Skinner deu ênfase ao poder do re-
forço positivo. Isso tem enormes implicações políticas, se nosso
governo pudesse simplesmente absorvê-lo.” Porter prossegue: “De
fato, de uma maneira estranhamente tortuosa, temos de agradecer a
Skinner pela crença muito popular de que é melhor ser afável com
as pessoas, dar-lhes A quando talvez mereçam B, continuar dizen-
do: ‘Que ótimo trabalho você está fazendo!’, mesmo que não este-
jam.” E arremata, rindo: “Embora possivelmente ele não gostasse
disso, é praticamente new age.”

Minha filha chora na noite. Acorda empapada em suor, os globos


oculares saltando, os sonhos se dissolvendo à medida que ela vem à
consciência. “Pssss. Pssss.” Seguro seu corpo contra o meu. Suas
roupas de cama estão ensopadas, seu cabelo, um tapete escuro de
caracóis apertados. Afago sua cabeça, onde as fontanelas já muito
se fecharam. Acaricio o declive da fronte, onde o córtex frontal dia-
riamente faz germinar as exuberantes raízes e, então, desço minha
mão pelo pescoço retesado, onde imagino sentir os gânglios basais,
com seus emaranhados semelhantes a algas marinhas. Seguro minha

30
Abrindo a Caixa de Skinner

filha na noite e, do lado de fora da janela do quarto, um cão uiva;


quando olho, o animal é branco-sabão ao luar.
No início, minha filha chora porque está com medo, uma série
de maus sonhos, imagino. Ela tem 2 anos de idade e seu mundo está
se expandindo a uma velocidade aterrorizante. Mas à medida que
passam as noites, ela simplesmente chora porque anseia pelo colo.
Ela se habituou a esses abraços antes do amanhecer, ao ritmo da
cadeira de balanço enquanto o céu lá fora está generosamente
salpicado de estrelas. Meu marido e eu estamos exaustos.
– Talvez devêssemos skinnerizá-la – digo.
– Devêssemos o quê? – pergunta ele.
– Talvez devêssemos empregar os princípios skinnerianos para
quebrar o hábito dela. Toda vez que vamos até ela e a apanhamos,
estamos lhe dando o que Skinner chamaria de reforço positivo.
Temos de extinguir o comportamento, reduzindo e depois elimi-
nando nossas respostas.
Meu marido e eu estamos tendo esta conversa na cama. Fico
surpresa com a ligeireza com que minha língua assume e lança a
linguagem de B. F. Praticamente soa como um especialista. Falar
skinneriano é quase divertido. O caos é confinado. A paz retorna.
– Então você está sugerindo – diz ele – que simplesmente a deixe-
mos chorar até cansar. – Sua voz parece abatida. Todos os pais co-
nhecem essa discussão.
– Não, não. Ouça. Não digo chorar até cansar. Colocá-la num
ritmo rigoroso de reforço reduzido. Na primeira vez que ela chorar,
pegamos no colo por apenas três minutos. Da vez seguinte que ela
chorar, pegamos no colo por dois minutos. Poderíamos até usar um
cronômetro. – Minha voz fica cada vez mais excitada, ou será an-
siosa? – Depois, aumentamos o tempo que a deixamos chorar. Bem
gradualmente e, devagarzinho, extinguimos o comportamento ou
extinguimos nossas respostas... as contingências desenhando com
a mão o padrão do lençol, uma série de grades verdes, aquilo que
outrora parecia um xadrez caipira, mas agora parece um papel de
laboratório.

31
MENTE E CÉREBRO

Meu marido me olha fixamente, cautelosamente, eu poderia


acrescentar. Ele não é psicólogo, mas se fosse, seria da escola Carl
Rogers. Ele tem uma voz macia, um toque ainda mais macio:
– Não sei – diz ele. – O que exatamente você acha que ensinare-
mos a ela fazendo isso?
– A dormir em paz durante toda a noite – respondo.
– Ou – ele rebate – a perceber que, quando ela precisar de aju-
da, não responderemos, que quando estiver em perigo real ou
imaginário, não estaremos lá. Não é essa a visão de mundo que
quero transmitir.
Mesmo assim, ganho a discussão. Decidimos skinnerizar nossa
menina, no mínimo porque precisamos de descanso. No começo, é
brutal ter de a ouvir gritar: “Mamãe, mamãe, papai!”, ter de a ig-
norar quando estica seus lindos braços no escuro, mas nós o faze-
mos e é isso o que acontece: funciona como mágica, ou ciência. Em
cinco dias, a criança age como um narcoléptico treinado; assim que
ela sente o lençol da sua caminha na bochecha, cai num período de
sono de dez horas e todas as nossas noites são tranqüilas.
É o que acontece. E todas as nossas noites são tranqüilas. Mas
agora, às vezes, não conseguimos dormir, meu marido e eu. Teríamos
lembrado de ligar o monitor? O volume está alto o bastante? A chu-
peta quebrou na boca e, portanto, ela vai sufocar quando chupar?
Ficamos acordados e através do monitor podemos às vezes ouvir o
som da sua respiração, como um vento estático, mas nem uma só
vez surge sua voz – nenhum choramingo, um riso, um doce falar
dormindo. Ela foi sinistramente amordaçada.
Ela dorme bem tranqüila, na sua caixa branca de bebê.

Algumas das caixas reais que Skinner usou foram guardadas em


Harvard. Vou vê-las. Estão no porão do William James Hall, ainda
em construção. Preciso usar um capacete rígido, um casco amarelo
pesado na minha cabeça. Desço pelas escadas. Há um mau cheiro
úmido no ar, e moscas negras zumbem como neurônios, cada qual

32
Abrindo a Caixa de Skinner

uma massa com finalidade. As próprias paredes são porosas e,


quando você as aperta, um pó branco fino gruda nas suas mãos.
Passo por um operário em botas de cano alto até o quadril, fuman-
do um cigarro, a ponta brilhante chiando como uma ferida no can-
to do lábio. Imagino que este porão esteja cheio de ratos; eles se es-
coram ao redor das caixas, seus olhos róseos vítreos, seus
desprezíveis rabos movendo-se rapidamente: que liberdade!
Lá em cima, vejo uma enorme mancha escura – ou será uma
sombra? – na parede de tijolos.
– Estão lá – diz meu guia, um técnico de construções, e aponta.
Vou em frente. À minha frente na penumbra do porão, consigo
distinguir grandes expositores de vidro e, dentro deles, uma espé-
cie de esqueleto. Mais perto, vejo que são os restos de um pássaro,
seus ossos ocos próprios para o vôo dispostos de maneira a lhe dar
a aparência de um sobrevôo, seu crânio cheio de pequenos buracos
puntiformes. Talvez um dos pombos de Skinner, as órbitas oculares
profundas, dentro delas um diminuto lampejo vivo, e então some.
Movo meu olhar atento dos ossos para as caixas. É neste mo-
mento que fico surpresa com o que vejo. Os ossos estão de acordo
com o agourento mistério desse homem, mas as caixas, as famosas
caixas – são estas as famosas caixas pretas? Para começo de conver-
sa, não são pretas. São de um cinza inócuo. Teria eu lido que as
caixas eram pretas ou teria eu simplesmente inventado isso, na in-
terseção em que fato e mito se encontram para criar todos os tipos
de objetos bizarros? Não, as caixas não são pretas, tendo, pelo con-
trário, uma aparência raquítica, com um aparelho externo de criar
gráficos e pequenas alavancas para treinamento. Os pedais de aper-
tar são bem pequenos, quase graciosos, mas os pratos de alimen-
tação são de um frio cromo institucional. É isto que faço: coloco
minha cabeça dentro. Ergo a tampa e coloco minha cabeça bem no
fundo de uma caixa de Skinner, onde o cheiro é de excremento,
medo, comida, plumas, coisas macias e duras, bom e ruim; com que
rapidez um objeto muda de benigno para agourento. Como é difí-
cil encaixotar mesmo uma caixa.

33
MENTE E CÉREBRO

Talvez, penso, o meio mais preciso de entender Skinner, o


homem, seja apreendê-lo como dois, não como um. Há o Skinner
ideólogo, o homem macabro que sonhou em criar comunidades de
pessoas treinadas como animais de estimação, e, então, há o Skinner
cientista, que fez descobertas distintas que mudaram para sempre a
maneira como vemos o comportamento. Há os dados de Skinner,
irrefutáveis e brilhantes, o poder do reforço intermitente, a gama
pura e simples de comportamentos que podem ser moldados, in-
tensificados ou extintos, e, então, há a filosofia de Skinner, em que,
imagino, ele ganhou sua sombria reputação. Essas duas coisas
talvez tenham se misturado na mente do público, na minha certa-
mente, à medida que a ciência e as idéias por elas geradas se fundi-
ram em uma confusão mítica. Mas então, novamente, você pode
realmente separar o significado dos dados de seus usos sociais pro-
postos? Podemos considerar simplesmente dividir o átomo e não a
bomba e os ossos que seguiram? Não estaria a ciência indelevel-
mente enraizada no solo da construção social, de forma que o valor
daquilo que descobrimos esteja inextricavelmente atado ao valor dos
usos que descobrimos para a descoberta? Ficamos dando voltas e
mais voltas. É um enigma léxico, sintático, para não dizer moral ou
intelectual, de grave transcendência – a idéia de que a ciência e seus
dados são melhor avaliados em uma caixa, independentemente das
mãos humanas que inevitavelmente lhe darão seu formato.
À parte as questões de aplicação como meio de avaliar dados,
quais são todos os mecanismos, por assim dizer, que contribuíram
para a infâmia de Skinner? Como e por que o bizarro mito da filha
morta (que está supostamente bem viva), das caixas pretas e do cien-
tista robótico que precede tudo aquilo que vejo poderia, talvez, nos
fornecer uma visão mais matizada de um homem que pairou entre
a prosa lírica e complexos cálculos numéricos, um homem que
mergulhou nu logo depois de pôr seus ratos e pássaros para traba-
lhar, um homem que cantarolava Wagner, aquele compositor de
sentimento puro, enquanto estudava o simples reflexo de uma rã
verde? Como toda essa complexidade se perdeu? Com certeza, o

34
Abrindo a Caixa de Skinner

próprio Skinner deve ser parcialmente responsabilizado. “Ele era


ganancioso”, diz uma fonte que deseja permanecer anônima. “Fez
uma única descoberta e tentou aplicá-la no mundo inteiro e, por-
tanto, escorregou.”
Mesmo assim, há muito mais que ganância que nos repugna.
Skinner, ao desenvolver novos aparelhos, levantou questões que
eram uma afronta à imaginação ocidental, que se orgulha da liber-
dade enquanto, ao mesmo tempo, abriga grandes dúvidas sobre o
quanto nossas supostas liberdades são realmente sólidas. Nossos
medos do reducionismo, nossas suspeitas de que realmente podemos
ser não mais que uma série de respostas automáticas, como muitos
de nós gostam de achar, ganham relevo na era industrial. São
muitíssimo mais antigos que isso. Desde que Édipo se enfureceu
com seu destino cuidadosamente calibrado, ou Gilgamesh lutou
para se libertar dos planos predestinados de seu Deus, os seres hu-
manos têm se perguntado e se preocupado com até que ponto
orquestramos nossas próprias ações. O trabalho de Skinner foi, en-
tre outras coisas, o recipiente quadrado no qual essas preocu-
pações, para sempre ressuscitadas, foram vertidas à sombra das no-
vas máquinas cintilantes do século XX.

Antes de eu deixar para trás os arquivos de Skinner para sempre,


faço mais uma parada: para ver a famosa caixa de bebê na qual a
filha de Skinner dormiu durante os primeiros dois anos e meio de
vida. A própria caixa, fico sabendo, foi desmantelada, mas vejo uma
foto dela, da revista Ladies’ Home Journal, que publicou um artigo
sobre a invenção em 1945. Se você quiser aumentar sua reputação de
cientista, Ladies’ Home Journal não é, provavelmente, a melhor es-
colha entre os canais de divulgação. O fato de Skinner ter optado
por publicar suas supostas invenções científicas numa revista de
segunda categoria para mulheres revela as péssimas habilidades dele
em “relações públicas”.

35
MENTE E CÉREBRO

“BEBÊ NUMA CAIXA”

é o que diz o título do artigo e, debaixo dele, existe de fato uma foto
de um bebê numa caixa, uma Deborah de aparência querubínea ar-
reganhando os dentes, as mãos cobertas em laterais de Plexiglas.
Mas, leia adiante. Na verdade, a caixa do bebê, fica-se sabendo,
nada mais era que um cercadinho aperfeiçoado no qual a jovem
Deborah passava poucas horas por dia. Com um ambiente contro-
lado termostaticamente, ele prevenia assaduras de fralda e mantinha
as vias nasais sem obstruções. Já que a temperatura tinha um ótimo
ajuste fino, não havia necessidade de cobertores e, portanto, o peri-
go de sufocação, o pesadelo de todas as mães, foi eliminado. Skinner
equipou a caixa da sua bebê com almofadas feitas de um material
especial que absorvia os odores e a umidade, e, portanto, o tempo
que uma mulher gastava na lavagem era reduzido à metade e ela
ficava livre para usar as mãos para outros fins – isso numa era antes
das fraldas descartáveis. Tudo parece humano, se não positivamente
feminista. E, então, leia ainda mais adiante. Ao oferecer à criança
um ambiente verdadeiramente benevolente, um ambiente sem pe-
rigos de punição (se o bebê caísse, não se machucaria porque os
cantos eram almofadados para eliminar batidas duras), um ambien-
te, em outras palavras, que condicionava por oferecer recompensa
pura, Skinner esperava criar uma valentona que acreditasse que
poderia dominar seus arredores e, portanto, enfrentaria o mundo
dessa maneira.
Tudo parece, sem dúvida, bem-intencionado, até positivamente
nobre, e coloca Skinner firmemente em águas humanitárias. Mas
então (e sempre existe um mas então nesta narrativa), li o nome que
outros propuseram para a invenção dele: Condicionador de Her-
deiro. Isso é ou aterrorizante ou apenas uma simples bobagem.

Existem milhares de milhares de “Deborah Skinners” listadas na


rede, mas nenhuma delas dá resultado. Gostaria de encontrá-la, con-
firmar que está viva. Telefono para uma Deborah Skinner, autora
de um livro de receitas intitulado Crab Cakes and Fireflies [Bolos de

36
Abrindo a Caixa de Skinner

caranguejo e vagalumes], uma Deborah de 4 anos de idade e vários


números desligados. Telefono para Deborahs em floriculturas,
Deborahs em esteiras, Deborahs vendendo imóveis e anunciando
cartões de crédito, mas nenhuma afirma conhecer um B. F. Skinner.
Não, não encontro Deborah Skinner em nenhum lugar dos Esta-
dos Unidos, nem encontro registros de morte em Billings, Montana.
Mas o que de fato encontro, da maneira tortuosa e associativa como
a internet funciona, é sua irmã, Julie Vargas, uma professora de edu-
cação da Universidade de Virgínia Ocidental. Eu disco.
– Estou escrevendo sobre seu pai – digo depois de confirmar que
ela é uma descendente verdadeira. No fundo, barulho de panelas e
frigideiras. Ouço o que parece uma faca – chop-chop – e a imagino,
a outra garota de Skinner, aquela que perdeu o mito, cozinhando a
mais simples das batatas, fatiando brilhantes lascas de cenouras
numa velha tábua de cortar em algum lugar onde ninguém a vê.
– Ah! – ela responde – e sobre o que você está escrevendo? –
Sem dúvida ouço suspeita em sua voz, um óbvio quê de defesa.
– Estou escrevendo grandes experimentos de psicologia e quero
incluir seu pai no livro.
– Ah – apenas isso..
– Então, eu estava imaginando se você poderia me contar como
ele era.
Chop-chop. Ouço, do lado dela, uma porta de tela mosquiteira
fechar batendo.
– Estava imaginando – insisto – se você poderia me dizer o que
pensa de...
– Minha irmã está viva e bem – ela afirma.
Naturalmente, eu nem mesmo perguntei sobre isso, mas é evi-
dente que muitos outros o fizeram; é evidente que a pergunta a
cansa; é evidente que ela sabe que toda consulta sobre sua família
começa e termina nesse ponto, passando inteiramente por cima do
próprio trabalho.
– Vi a fotografia dela na web – eu digo.
– Ela é artista. Vive na Inglaterra. É feliz no casamento. Ensinou
o gato a tocar piano.

37
MENTE E CÉREBRO

– Ela era próxima do seu pai?


– Ah, ambas éramos – diz Julie, e então faz uma pausa e consi-
go praticamente sentir as coisas brotando contra a pausa, recor-
dações, sentimentos, as mãos do pai na sua cabeça. – Tenho uma
tremenda saudade dele.
A faca está silenciosa agora; a porta com tela mosquiteira não
bate mais e no espaço em que estavam esses sons vem a voz de Julie
Skinner Vargas, uma voz carregada de memória. Uma espécie de
incontinência nostálgica extravasa copiosamente; ela não consegue
evitar.
– Ele tinha jeito com crianças. Ele as amava. Nossa mãe, bem,
nossa mãe era... – e ela não terminou essa sentença. – Mas nosso
pai... papai costumava fazer papagaios, papagaios de caixa que
empinávamos em Monhegan, e ele nos levava ao circo todo ano, e
nosso cachorro, Hunter, era um beagle, e papai o ensinou a brincar
de esconde-esconde. Ele conseguia ensinar qualquer coisa, qual-
quer coisa, e então nosso cachorro brincava de esconde-esconde,
era um mundo... aqueles papagaios, nós os fazíamos com barbantes
e varetas e empinávamos no céu.
– Então, para você, ele era realmente um ótimo sujeito.
– Era. Ele sabia exatamente de que uma criança precisava.
– E quanto ao modo como você se sentia com todas as críticas
que o trabalho dele provocou?
Julie ri. A risada é mais como um latido.
– Comparo-o ao Darwin. As pessoas rejeitavam as idéias de
Darwin porque eram ameaçadoras. As idéias do meu pai são
ameaçadoras, mas são tão grandes quanto as de Darwin.
– Você concorda com todas as idéias do seu pai? Concorda com
ele de que somos apenas autômatos, que não temos livre-arbítrio,
ou você acha que ele levou os seus dados experimentais longe
demais?
Julie suspira.
– Você sabe, se meu pai cometeu um erro, foi nas palavras que
escolheu. As pessoas ouvem a palavra controle e acham fascista.
Se meu pai tivesse dito que as pessoas eram informadas por seus

38
Abrindo a Caixa de Skinner

ambientes, ou inspiradas por seus ambientes, ninguém teria tido


um problema. A verdade sobre meu pai é que ele era um pacifista.
Era também um defensor das crianças. Ele não acreditava em NE-
NHUMA punição porque viu em primeira mão com os animais como
isso não funcionava. Meu pai é responsável pela revogação da
punição corporal que vigorava na Califórnia, mas ninguém se lem-
bra dele por isso.
– Ninguém se lembra – diz ela, sua voz se elevando, zangada –
como ele sempre respondia a TODAS as cartas que recebia, enquan-
to aqueles humanistas – ela praticamente cospe a palavra –, aqueles
supostos humanistas, a escola do “eu estou ok, você está ok”, eles
nem sequer se davam ao incômodo de responder às cartas dos fãs.
Eles estavam ocupados demais. Meu pai nunca estava ocupado de-
mais para as pessoas.
– Não, não, ele não estava – eu digo, e de repente sinto um
pouco de medo. Ela parece um pouco tensa, esta Julie, um pouco
passional demais sobre o querido papai.
– Deixe-me perguntar uma coisa – diz Julie. – Sei dizer pelo tom
de voz dela que a pergunta vai ser grande, mordaz e vai me colocar
em apuros. – Posso lhe perguntar uma coisa? Fale honestamente.
– Pode!
– Você realmente LEU os trabalhos dele, como Beyond Freedom
and Dignity, ou é apenas mais um erudito de fontes secundárias?
– Bem – eu digo gaguejando –, li MUITO do trabalho do seu pai,
acredite em mim...
– Acredito, mas você leu Freedom and Dignity?
– Bem, não, eu estava me atendo aos textos puramente científi-
cos, não aos tratados filosóficos.
– Você não pode separar a ciência da filosofia – Julie diz, res-
pondendo à minha pergunta anterior. – Então, faça sua lição de
casa – e agora ela parece qualquer mãe ou tia antiga, a voz calma,
carregada de cordialidade, chop-chop, ela está de volta às ce-
nouras, às velhas e simples batatas. – Faça sua lição de casa, e de-
pois conversaremos.

39
MENTE E CÉREBRO

Naquela noite, pus a bebê na cama. Peguei a cópia gasta marcada de


cantos dobrados do Beyond Freedom and Dignity, o tratado que
associo a outros textos totalitários, o tratado que, como o Mein
Kampf, possuo há muito, mas que, de fato, nunca li, e agora começo.
“As coisas pioram continuamente e é desanimador descobrir que
a própria tecnologia é cada vez mais falha. O saneamento e a medi-
cina tornaram mais agudos os problemas de controle populacional.
A guerra adquiriu um novo horror com a invenção de armas nu-
cleares, e a busca intensa pela felicidade é em grande parte respon-
sável pela poluição.”
Embora isso tenha sido escrito em 1971, eu bem poderia estar
lendo um discurso de Al Gore, ou uma declaração de missão do
Partido Verde de 2003. É verdade que, mais adiante no texto,
Skinner diz algumas coisas perturbadoras como: “Pelo questiona-
mento do controle exercido pelo homem autônomo e pela demons-
tração do controle exercido pelo ambiente, uma ciência do com-
portamento questiona os conceitos de dignidade e valor.” Mas
esses tipos de declaração estão enterrados num texto imensamente
pragmático. Skinner está claramente propondo uma política social
humanitária enraizada em suas descobertas experimentais. Está
propondo que apreciemos o imenso controle (ou influência) que
nosso entorno tem sobre nós e, portanto, entalhemos esse entorno
de tal maneira que “reforce positivamente” ou, em outras palavras,
engendre comportamento adaptativo e criativo em todos os
cidadãos. Skinner está pedindo à sociedade que modele as suges-
tões com maior probabilidade de extrair o melhor de nós mesmos,
em oposição às sugestões que claramente nos confundem, suges-
tões como aquelas existentes nas prisões, nos lugares de pobreza.
Em outras palavras, parar de punir. Parar de humilhar. Quem
poderia argumentar contra isso? Deixe a retórica de lado. Não
confunda conteúdo com controvérsia.
O conteúdo diz: “Nossa era não está sofrendo de ansiedade, mas
das guerras, crimes e outras coisas perigosas. As sensações são sub-
produtos do comportamento.” Essa declaração é a soma total do

40
Abrindo a Caixa de Skinner

antimentalismo desprezado de Skinner, sua insistência em que nos


concentremos não na mente, mas no comportamento. Na verdade,
não é diferente do dizer predileto da sua mãe: as ações falam mais
alto que as palavras. De acordo com Skinner – e o autor new age
Norman Cousins –, quando agimos vilmente, sentimo-nos vis, e
não vice-versa. Não importando se você concorda ou não com isso,
dificilmente dirá que é anti-humanitário. Mais adiante no livro,
quando Skinner escreve que o homem existe irrefutavelmente em
relação ao seu meio ambiente e nunca pode estar livre dele, estaria
ele falando sobre correntes que confinam, como a maioria inter-
pretou, ou simplesmente sobre a teia prateada que nos conecta a
isto, isso e aquilo? Vi Jerome Kagan saltar debaixo da mesa, garan-
tindo-me que tinha livre-arbítrio e poderia existir independente-
mente de seu ambiente. Talvez ele esteja representando uma
tradição mais problemática, patriarcal e solitária. Na visão de Skinner,
parecemos estar entrelaçados e precisamos assumir responsabili-
dade pelos fios que nos ligam. Compare isso à feminista de hoje
Carol Gilligan, que escreve que vivemos numa rede interdepen-
dente e que as mulheres percebem e honram esse fato. Gilligan, e
todas as psicoterapeutas feministas que se seguiram, afirmam que
somos relacionais, em oposição a estritamente separados, e que até
que vejamos nosso mundo dessa maneira e construamos uma mora-
lidade embasada nesse fato irrefutável, continuaremos a desmoro-
nar. De onde Gilligan e Jean Baker Miller e outras teóricas femi-
nistas extraíram suas teorias? O espírito de Skinner paira sobre suas
palavras; talvez ele tenha sido o primeiro psicólogo feminista, ou
talvez as psicólogas feministas sejam skinnerianas secretas. De
qualquer forma, vimos o homem de maneira demasiado simplista.
Parece que o encaixotamos antes que ele conseguisse verdadeira-
mente nos encaixotar.

Julie, que está vindo a Boston a negócios, me convida a visitar a ve-


lha casa de B. F. Skinner, na estrada Old Dee, 11, em Cambridge. É

41
MENTE E CÉREBRO

um bonito dia quando chego lá de carro, os jardins florescendo al-


tas espirais roxas. Julie é velha, bem mais velha do que eu esperava,
sua pele translúcida e delicada, seus olhos verdes. Ela me deixa en-
trar. Esta é a casa de B. F. Skinner, para onde ele ia depois de lon-
gos dias no laboratório, durante os quais descobriu a natureza in-
crivelmente flexível da vida mamífera, nossos laços com nossas
comunidades e todas as suas várias contingências. Condicionamento
operante – uma frase fria para um conceito que poderia na verdade
significar que somos escultores e esculpidos, artistas e obras de
arte, responsáveis pelas deixas que moldamos.
A casa permaneceu na família. Falando de moldagem, sua atual
ocupante é a neta de Skinner, Kristina, que, informa-me Julie, é
compradora da Filene. A mesa da cozinha está coberta com catálo-
gos da Victoria’s Secrets, fotografias de calcinhas de renda pretas
colocadas lado a lado com velhas fotos de Pavlov e seu cão sali-
vante.
Julie me leva para baixo, até o estúdio em que Skinner estava
sentado logo antes, quase uma década atrás, de ser levado para o
hospital e morrer. Ela abre a porta.
– Preservei tudo exatamente como estava quando ele foi levado –
diz Julie, e acho que ouço lágrimas em sua voz.
O estúdio é bolorento. Contra uma das paredes está aquela
enorme caixa amarela onde ele cochilava e ouvia música. Nas pare-
des estão fotos de Deborah, de Julie quando criança, de Hunter, o
cachorro. Um livro enorme está aberto exatamente na página em
que estava tantos anos atrás. Seus óculos estão dobrados na mesa.
Suas vitaminas estão alinhadas, várias cápsulas compridas que ele
nunca chegou a engolir naquele sombrio dia em que foi levado e
não muito depois enterrado em sua caixa final, a verdadeira caixa
preta, ossos agora. Toco as vitaminas. Ergo um copo com algum
elixir azul evaporado em um resíduo ao redor da borda. Imagino
que sinto o cheiro dele, de B. F. Skinner, o cheiro da velhice e da ex-
centricidade, o suor rançoso, a saliva canina, o excremento de pás-
saro, a doçura. Seus arquivos estão abertos, leio os rótulos: “Pombos

42
Abrindo a Caixa de Skinner

Jogando Pingue-Pongue”, “Experimento do Berço Arejado” e, en-


tão, em um arquivo bem atrás, “Sou um Humanista?”. Há um quê
bem vulnerável em ter um arquivo que faz tão abertamente tal per-
gunta, talvez a pergunta central.
– Posso ler?
– Claro – Julie responde. Ambas estamos sussurrando agora, si-
lenciadas no passado preservado. Ela o puxa para fora. Sua caligrafia
é apinhada e confusa, e bem pouco dela é legível. Leio: “para o bem
do homem” e, então, várias frases adiante, “para preservar e sobre-
viver, precisamos”, e mais para o fim da velha página deteriorando,
ao que parece, “Eu me pergunto se tenho valor.”
Olho para Julie.
– Você vai arquivar formalmente este material? Ou vai apenas
guardar aqui? – Os olhos dela são brilhantes na penumbra do estú-
dio, e isso, juntamente com o modo como cultua obsessivamente o
mundo do pai, me leva a pensar que, para ela, ele é a única contin-
gência que ela nunca questionará, a única sugestão ambiental à qual
está verdadeiramente escravizada. Teria B. F. Skinner desejado tal
devoção cega ou a teria estimulado a ir adiante, abrir mais o leque em
busca de novos reforços que gerariam novas respostas que dariam
origem a novos dados e idéias, enquanto os pombos bicam e os
ratos continuam a correr incessantemente.
– Veja isto – diz Julie, apontando para uma mesinha ao lado de
uma cadeira reclinante. – Aqui está o pedaço de chocolate que meu
pai estava comendo logo antes de ir para o hospital – e quando olho
para baixo, lá está, um pedaço de chocolate escuro sobre um prato
de porcelana com uma verdadeira marca da mordida de B. F. fos-
silizada no naco.
– Quero guardar este chocolate para sempre.
– Quanto tempo tem?
– Tem mais de dez anos e ainda está em boa forma.
Olho fixamente para ela. Um pouco depois, após ela sair do
quarto, ergo o quadrado roído e o estudo cuidadosamente. Vejo
precisamente onde a boca dele se encontrou com a borda do doce

43
MENTE E CÉREBRO

e, então, puxada por algum fio que não vejo, uma sugestão que
nunca soube que estivesse vindo, ou talvez um traço de personali-
dade totalmente livre (pois não sei a resposta para isso tudo, não sei
a resposta), levanto meu braço – ou meu braço é levantado – e
imagino o chocolate em minha boca. Seria um chocolate velho,
chocolate empoeirado, em meus dentes o gosto de algo muito es-
tranho e ligeiramente doce.

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