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RESENHA

BRAYNER, Flávio. Educação e Republicanismo: experimentos arendtianos para uma educação melhor.
Brasília: Laber Editora, 2008.

SILVA, Margareth Aparecida

No Brasil, a obra de Hannah Arendt teve lado perceptível, ou seja, a exclusão econômica e
uma repercussão forte, primeiramente no campo social. Detém-se nesta parte do livro a mostrar
do Direito e da Ciência Política, considerada uma que o ser humano não nasce com um núcleo
referência no estudo das esferas pública e interno humano, mas é produzido no interior das
privada. Na educação é recente o interesse dos comunidades de sentido (BERGER;
estudiosos por sua obra, o que não surpreende LUCKMANN, 2005), no interior das relações
considerando que a autora escreveu pouco sobre intersubjetivas, que antecedem a subjetividade.
educação. Apenas um artigo escrito em 1958, no Sugere que a questão da exclusão deve ser tratada
livro Entre o Passado e o Futuro, denominado A pelo ângulo bem mais grave que é o de ser
crise na Educação. Neste artigo a autora chama a expulso desta comunidade de sentido, porque é
atenção sobre a tendência de não se perceber a por meio desta exclusão, como no exemplo
profundidade e o caráter político na educação, a nazista evidenciado por Arendt (2007) que se
tendência de tratar a crise por dentro, como se sua eliminam as identidades e, com elas, a capacidade
origem fosse exclusivamente interna. Arendt está de enxergar no outro, o igual.
preocupada em analisar os reflexos da crise do
mundo moderno sobre a educação. Para o No artigo “Cidadania e Educação
professor Jose Sérgio Fonseca de Carvalho, do republicana: um projeto inacabado”, a autor
Departamento de Educação da USP, este ensaio analisa a relação muitas vezes teórica e de difícil
de Arendt é “uma das coisas mais lúcidas que já articulação prática, entre Educação e Cidadania.
se escreveu sobre a educação no século XX” Sobretudo a expressão cidadania, carregada de
(CARVALHO, 2009). sentido histórico e vista pelos autores da esquerda
como a consubstanciação política e jurídica da
O livro Educação e Republicanismo – ordem burguesa, em que os conflitos de classe
experimentos arendtianos para uma educação cedem lugar ao individuo de direitos. O autor
melhor, de Flávio Brayner, é uma coletânea de desenvolve a relação que a educação guarda com
ensaios inspirados no pensamento de Hannah a filosofia política, ressaltando a inversão do
Arendt, apresentando uma magistral reflexão nosso tempo. Se antes os progressistas trouxeram
sobre a crise da educação, revelando a atualidade para a arena de debate educativo, as injunções
da autora e a necessidade de tornar visíveis seus sociais e os conflitos políticos, deixaram de fora
conceitos no campo educacional. temas relativos ao ensino no interior da escola e
da sala de aula, deslocando e anexando a
Flávio Brayner apresenta e defende a educação como epifenômeno da luta de classe. A
idéia de uma educação republicana no sentido em inversão se dá exatamente em função do fim das
que esta pode se encarregar de retomar a relação utopias da sociedade do trabalho e o desgaste
entre a Educação e o Espaço Público, na acepção sofrido pelas macros-sociologias da educação,
arendtiana do termo, ou seja, no espaço em que os com a emergência da perspectiva micrológica,
seres humanos tornam-se visíveis uns aos outros centrada no interior do processo de aprendizagem
porque são capazes de argumentar, decidir, e na formação do aluno-cidadão. Eis aqui o cerne
propor, inquirir e julgar. Entretanto, aqui é do projeto republicano inacabado que precisa ser
importante comentar que para Arendt os adultos e completado, indo bem além, do ler, escrever e
a educação devem defender as crianças das contar para constituir-se no falar, no pensar e no
ameaças do mundo. O que interessa a Arendt é a julgar, como elementos definidores de uma
relação daqueles que chegam ao mundo, os relação da escola com a vida civil plena.
novatos e o mundo dos adultos.
O projeto de construção da nação de
Sobre a exclusão o autor alerta para o origem francesa é revisitado e nele o autor
risco de se pensar a exclusão somente pelo seu identifica a insuficiência da república moderna

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para instaurar a idéia de soberania popular como Discutindo as teorias do fim da infância,
nova forma de legitimidade de poder. Além do o autor analisa os vários significados que a
povo, nem Deus, nem o Rei e nem a Tradição. infância adquiriu ao longo da história. Detêm-se
Entretanto, o perigo eminente da ignorância das no aspecto da modernidade tardia e suas
massas revigora o debate escolar. Daí a conseqüências, mostrando a capacidade que tem
importância da escola pública para fornecer as hoje as crianças de dominar códigos de
virtudes republicanas, o sentimento de linguagens, passando a ter acesso a um mundo
pertencimento e a promessa da fraternidade. Traça reservado aos adultos, mesmo antes de aprender a
um perfil da realidade brasileira e seus paradoxos, ler. As barreiras que separavam os dois mundos,
alertando para a incapacidade das grandes teorias adulto e criança, tendem fortemente a
de lidar com as questões atuais da educação. As desaparecer. Para o autor, é aí que reside a
questões atuais que aqui podemos chamar de crise justificativa para a expressão criança-cidadã, e
na educação é analisado por Arendt em seu ensaio identifica este fato com um movimento de
sobre a educação como conseqüência da perda de desresponsabilização e de enfraquecimento da
significações comuns. antiga ética do dever, pondo fim não somente a
infância, mas a própria pedagogia.
Para o autor, a ausência de um projeto de
escola republicana e de um projeto nacional Reconhecendo a importância que o
apoiado na idéia de soberania popular, trouxe pensamento gramsciano para as reflexões
sérias conseqüências para a educação que hoje se pedagógicas dos anos 80, abstraindo deste autor o
encontra sem referências concretas, sem um conceito de senso comum, o autor assume,
passado para se apoiar e sem um futuro que a porém, que é na filosofia política de Hannah
inspire. Num contexto marcado por paradoxos e Arendt que ele encontra a definição precisa do
contradições, a história registra algumas termo. Ou seja, não uma verdade apolítica e não
experiências democráticas de educação, visíveis a sujetia à argumentação. Frequentemente
partir da Era Vargas. Entretanto, os resultados pensamos em senso comum como algo em
foram perversos e as desigualdades não oposição ao conhecimento cientifico. Para
resolvidas. Criticando a perspectivas e os Hannah Arendt, senso comum são experiências e
princípios da Escola Nova, o autor denuncia que significações compartilhadas. A “passagem da
tais princípios diziam mais sobre o verdade racional para a opinião implica a
multiculturalismo e menos sobre a questão das passagem do homem no singular para os homens
desigualdades. no plural” (ARENDT, 2007, p. 15). Afirma que o
sentido que o termo tem para as questões da
O autor alerta sobre as conseqüências para educação, está em considerá-lo um acordo na
a escola, da indiferenciação das fronteiras que diversidade de vários pontos de vista sobre um
limitavam os espaços públicos e privados e, mundo partilhado, na tentativa plural de dar
aquelas que separam a vida adulta do mundo significado às experiências no e com o mundo, no
infantil. A sociedade capitalista, com a exercício de constituição do espaço público.
socialização crescente da vida privada e a
emergência das massas, coloca em risco O esboça sua proposta e sua defesa de
permanente o sentido da esfera pública, e da um republicanismo escolar. A escola, como
existência do sujeito. O autor chama a atenção instituição pública e hierárquica, é um espaço
para um paradoxo contemporâneo importante: político de criação de interesses comuns. A sala
justamente no momento de pulverização do de aula é o espaço em que o mundo é apresentado
espaço público é que a proposta de educar para a ao recém-chegado e, portanto, não é o espaço da
cidadania torna-se mais evidente, atribuindo à política. O espaço de constituição da política é o
escola papéis irrealizáveis que dificulta o fazer espaço do adulto, no sentido em que este pode
pedagógico e destrói toda a intenção da qualidade, qualificar sua fala por meio da experiência, da
necessária ao reembolso da dívida política. Não troca de opiniões, da deliberação e da
bastam soluções de acesso e ampliação da responsabilidade com o mundo. Elementos da
escolarização. A ausência de encontro entre os fala, do pensamento e do julgamento podem e
seres humanos para falar, pensar e julgar torna devem estar presentes na sala de aula, como
improvável a educação republicana. exercício de constituição de interesses comum, de
assuntos de dizem respeito à vida das crianças e
sua relação com a escola. Para o autor uma escola

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republicana e democrática é aquela que restituiria campo educacional, esta coletânea de ensaios
a dívida política, fornecendo competências para poderá revelar um novo modo de ver e pensar a
que os indivíduos possam participar das decisões crise na educação. Entretanto, pode-se considerar
políticas. Entretanto, participação qualificada, que alguns conceitos carecem de um maior
para evitar manipulação e argumentação vazia, o aprofundamento, sobretudo aqueles que
que torna a democracia frágil. A qualidade passa relacionam educação, espaço público e senso
pelo exercício do encontro entre plurais, ou seja, comum. Por esta razão, é possível que o leitor se
entre todos, e não somente entre aqueles perca ao buscar entender o que o autor chama de
excluídos dos processos de inserção social. republicanismo escolar e a distinção entre a
escola e sala de aula, indispensável para a
Finalmente, o autor conclui que, apesar compreensão do caráter conservador de sua
de todas as expectativas não realizadas pela proposta. É importante ressaltar que a ausência de
escola moderna, isto não significa o seu fracasso, notas e referências poderá causar certa angústia
indicando apenas ser um projeto inacabado. O nos leitores e pesquisadores que desejarem
efeito mais perverso de todo este processo é o aprofundar seus estudos em relação ao tema
silêncio e a invisibilidade daqueles que não proposto. Isso, entretanto, não invalida a
tiveram acesso aos instrumentos para tornar-se importância de suas reflexões sobre a educação,
alguém. E lembra que é na escola da elite que principalmente a sua tentativa de apresentar aos
estudam os teóricos da escola cidadã, os críticos educadores a profundidade e a urgência que, a
da exclusão social. nosso ver, possui as reflexões de Hannah Arendt
para se pensar o mundo moderno e a educação
Ao considerar as reflexões sobre a dentro dele.
coletânea de ensaios de Flávio Brayner,
entendemos que muito do que se produziu em
termos do pensamento educacional no Brasil, está REFERÊNCIAS
em contradição com o contexto do surgimento da
República e sua promessa de constituir um ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo.
governo sob as bases da soberania popular. O São Paulo: Ed. Cia.das Letras, 2007.
projeto continua inacabado e, sob a expressão da
cidadania as soluções são deliberadas sob o signo BERGER, P; LUCKMANN, T. Modernidade,
da dívida social, reproduzindo assim a condição pluralismo e crise de sentido. 2. ed. Petrópolis:
de necessidade e de carência. A distância entre as Vozes, 2005.
teorias e as experiências, revela as mesmas
distâncias entre a escola de elite e a escola BRAYNER, Flávio. Educação e
popular, reproduzindo o processo de exclusão, só republicanismo: experimentos arendtianos para
possível de ser solucionado por meio do exercício uma educação melhor. Brasília. Laber Editora,
das capacidades republicanas e democráticas, ou 2008.
seja, o falar, o pensar e o julgar. Atividade que
pode a escola exercer. CARVALHO, José Sergio Fonseca de. Hannah
Arendt. In: Pensadores e a Educação. USP.
Por tratar-se de uma perspectiva política e ATTA Mídia e Educação. 2009.
filosófica inspirada em uma autora pouco
conhecida do público acadêmico, sobretudo, no

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