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1 OLIVEIRA Roberto Cardoso de O Trabalho Do Antropólogo Olhar Ouvir Escrever
1 OLIVEIRA Roberto Cardoso de O Trabalho Do Antropólogo Olhar Ouvir Escrever
I I o TRABALHO DO ANTROPÓLOGO:
OLHAR, OUVIR, ESCREVER
INTRODUÇÃO
A primeira versão deste texto foi para uma "Aula Inaugural", do ano acadêmico de
1994, relativa aos cursos do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universida-
de Estadual de Campinas - Unicamp, A presente versão, que agora se publica, devi-
o Paralelo15
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damente revista e ampliada, f~ada para uma conferência na Fundação loaquim
Nabuco, em Recife, em 24 de maio do mesmo ano, em seu Instituto de Tropicologia.
E-s~ão foi publicada pela Revista de Antropologia, vol. 39, nO 1, 1996, pp. 13-37.
Claude Lévi-Strauss, Regarder, Ecotlter, Lire.
17 j
Roberto CardoJo de Oliveira o trabalho do antropológo: p/har; ouvir, 'escrever
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Roberto Cardoso de Oliveira O trabalho do elnlropológo: olhar, oI/vir, escrever
diária que pelo menos nessa maloca, de conformidade com o número de Retomemos nosso exemplo para vermos que para dar-se conta da na-
fogos, estaria abrigada uma certa porção de grupo's domésticos, formados tureza: das relações sociais mantidas entre as pessoas da unidade residencial
por uma ou mais familias elementares e, ~ventualmente, de indivíduos "agre- - e delas entre si, em se tratando de uma pluralidade de malocas de uma
gados" - originários de outro grupo tribal. Conhecerá, igualmente, o nú- mesma aldeia ou "grupo local" - , o olhar l;>or si sÓ não seria suficiente.
mero total de moradores -,- ou quase - contando as redes dependuradas Como alcançar, apenas pelo olhar,' o significado d~ss~~ reiaçõe~ ~
nos mourões da maloca dos membros de cada grupo doméstico. Observa- sem conhecermos a nomenclatura do parentesco, por meio da qual pode-
rá, também, as características arquitetônicas da maloca, classificando-a se- remos ter acesso a um dos sistemas simbólicos mais importantes das so-
gundo uma tipologia de alcance planetário sobre estilos de residências, en- ciedades ágrafas e sem o qual não nos será possível prosseguir em nossa
sinada pela literatura etnológica existente. caminhada? O dominio das teorias de parentesco pelo pesquisador torna-
Ao se tomar, ainda, os mesmos Tükúna, mas em su; feição moderna, o se, então, indispensável. Para se chegar, entretanto, à estrutura dessas rela-
etnólogo que visitasse suas malocas observaria de pronto que elas diferen- ções sociais, o etnólogo deverá se valer, preliminarmente, de outro recurso
ciavam-se radicalmente daquelas descritas por cronistas ou viajantes que, de obtenção dos dados. Vamos nos deter um pouco no ouvir.
no passado, navegaram pelos igarapés por eles habitados. Verificaria que as O OUVIR
amplas malocas, então dotadas de uma cobertura em forma de semi-arco
descendo suas laterais até ao solo e fechando a casa a toda e qualquer Creio necessário mencionar que o exemplo indígena - tomado como
entrada de ar - e do olhar externo - , salvo por portas removíveis, acham- ilustração do olhar etnográfico - não pode ser considerado incapaz de
se agora totalmente remodeladas. A maloca já se apresenta amplamente gerar analogias com outras situações de pesquisa, com outros objetos con-
aberta, constituida por uma cobertura de duas águas, sem paredes - ou cretos de investigação. O sociÓlogo ou o politólogo, por certo, terá exem-
com paredes precárias - , e, internamente, impondo-se ao olhar externo, plos tanto ou mais ilustrativos para mostrar o quanto a teoria social pré-
vêem-se redes penduradas nos mourões, com seus respectivos mosquitei- estrutura o nosso olhar e sofistica a nossa capacidade de observação. Jul-
ros - um elemento da cultura nhterial indígena desconhecido antes do guei, entretanto, que exemplos bem simples são geralmente os mais inteli-
contato interétnico e desnecessárib para as casas antigas, uma vez que seu gíveis, e como a antropologia é minha disciplina, continuarei a valer-me de
fechamento impedia a entrada de' qualquer tipo de inseto. Nesse sentido, seus ensinamentos e de minha própria experiência, na esperança de pro-
para esse etnólogo moderno, ~d<.?,ao seu alcance uma d~,cumentação porcionar uma boa noção dessas etapas aparentemente corriqueiras da in-
histórica, a primeira conclusão será sobre a existência de uma mudança vestigação' científica. Portanto,:: o olhar possui uma significação específi-
cultural de tal monta que, se, de um lado, facilitou a construção das casas ca para um cientista social, o ouvir também goza dessªl',tQprieda,qe. -
indígenas, uma vez que a antiga residência exigia um grande dispêndio de Evidentemente ~too ouvir como oolhar não podem ser tomados
trabalho, dada sua complexidade arquitetônica, por outro, afetou as rela- coms> faculdades tP.J~E:1eE-te ind~p_~!l.dentesoo e:xe.tcicio_dajmr~s.ti.gaç--ã,g~
ções de trabalho, por não ser mais necessária a mobilização de todo o clã ~bas complementam::~!! servem para o pesquisador como duas mule-
para a edificação da maloca, ao mesmo tempo em que tornava o grupo tas - que não nos percamos com essa metáfora tão negativa - que lhe
residencial mais vulnerável aos insetos, posto que os mosquiteiros somen- permitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimen-
te pOl',eriam ser úteis nas redes, ficando a família à mercê desses insetos to. A metáfora, propositalmente utilizada, permite lembrar que a caminha-
durante todo o dia. Observava-se, assim, literalmente, o que o saudoso da da pesquisa é sempre difícil, sujeita a muitas quedas. É nesse ímpeto de
Herbert Baldus chamava de uma espécie de "natureza morta" da aculturação. ,conhecer que o ouvir, complementando o olhar, participa das mesmas pr~ ,
Como torná-la viva, senão pela penetração na natureza das relações so- condições desse último, na medida em gue e»ªli<;garado para ,eliminar
ciais? todos os ruídos gue lhe pareçam insignificantes, isto é, gue não façam_
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Roberto Cardoso de Oliveira O trabalho do, antropo{ógo: olhar, ouvir, escreVer
nenhum sentido no corpus teórico de sua disciplina ou para o paradigma no , ren~a entre "idiomas culturais", a saber, entre o mundo do pesquisadot;-O)
IÊIerior do flllêl.O eesquisador foi trei'n~d"o: Niio'q~~ro discutiraqui a que5=' ~-ao na~ esse mundo estranho n()__9..t:l.<J::l9_~jamos penetrar. De resto, há
tão dos paradigmas; pude fazê-lo em meu livro Sobre opensamento antropoló- de se entender o nosso mundo, ó:do pesquis~~ como sendo Ocidental,
gico e não penso ser indispensável abordá-la aqui. Bastaria entendermos c~nstituido minimamente pela sobreposição de duas subculturas: a~
que as disciplinas e seus paradigmas são condicionantes tanto de nosso Qpelo m.eno·s no caso da maioria do público leitor; e a:-:áÍ1.trop~
I:
olhar como de nosso ouvir. I no caso parucular daqueles que foram tremados para se tornarem profissi-
Imaginemos uma entrevista por meio da qual o pesquisador pode obter onais da disciplina. E é o confronto entre esses dois mundos que constitui
informações não alcançáveis pela estrita observação. Sabemos que autores o contexto no qual ocorre a entrevista. É, portanto, em um contexto es-
como Radcliffe-Brown sempre recomendaram a observação de rituais para sencialmente problemático que tem lugar o nosso ouvir. Como podere-
estudarmos sistemas religiosos. Para ele, "no empenho de compreender mos, então, questionar as possibilidades da entrevista nessas condições tão
uma religião, de~emos primeiro concentrar atenção mais nos ritos que nas delicadas?
crenças".4 O que significa dizer que a religião podia ser mais rigorosamente Penso que esse questionamento começa com a pergunta sobre qual a
observável na conduta ritual por ser essa "o elemento mais estável e dura- natureza da relação entre entrevistador e entrevistado. Sabemos que há
douro", se a co~par~~s-çomas crença~ Porém, iss~nãoquer dizer que uma longa e arraigada tradição, na literatura etnológica, sobre a relação
mesmo essa conduta, sem as idéias que a sustentam, jamais poderia ser "pesguisador/informante". Se tomarmos a clássica obra de Malinowski
inteiramente compreendida. Descrito o ritual, por meio do olhar e do ou- como referência, '~omo essa tradição se consolida e, praticamente,
vir - suas músicas e seus cantos - , faltava-lhe a Iena éompr_~ensão~ . trivializa-se na realização da entrevista. No ato de ouvir o "informante" o
seu Jel/tido para o povo que o realizava e sua . ni ca ã para o antropólogo etnólogo exerce um poder ex~~a()rdinário sobre o mesmo, ainda que prete~
que o observava em toda sua exterioridade. s Por isso, a obtenção de expli- da posicionar-se como observador o mais neutro possível, como pretende
cações fornecidas pelos próprios membros da comunidade investigada o objetivismo mais radic~.: Esse poder, subjacente às relações humanas _
permitiria obter aquilo que os antropólogos chamam de "~odelo l1ativo'-', que autores como Fôuc~ul:Uamais se cansaram de denunciar - , já na rela-
matéria-prima para o entendimento antropológico. Tais explicações nati- ção pesquisador/informante desempenhará uma fU{1ção profundamente
vas só poderiam ser obtidas por meio da entrevista, portanto, .cie· um ouvir empo brecedÇl!_a_.sto~~or:.<?gnitivo: as pergun.~as' feitas em busca de respo's-
todo especial. Contudo" 12ara isso, ~ se saber ouvir. •. .~ tas pontuais lado a lado da ~torida~-quem as~ - com ou sem
Se, ap~lrentemente, a entrevista tende isei encarada como algo sem autoritarismo - , criam um campo ilusór.i_()~e interaç~ A rigor, não há
maiores dificuldades, salvo, naturhlmente, a limitação lingilistica - isto é, verdadeira interação entre nativo e pesquisador, porquanto na utilização
o fraco dominio do idioma nativ;o pelo etnólogo - , ela torna.-se muito daquele como informante, o etnólogo não cria condições de efetivo diálogo.
mais complexa quando consideramos que a maior dificuldade es'tá na difu- .A relação não é dialógica~ Ao passo que transformando esse informante
'----- ..
em "interlocutor", uma nova modalidade de relacionamento pode - e
deve - ter lugar. 6
4 Cf. Radcliffe-Brown, "Religião e sociedade", in Estrutura efunção na sociedade pn'mitiva,
p,194.
5 Aqui faço uma distinção entre "sentido" e "significação". O primeiro termo consa-
gra-se ao horizonte semântico do "nativo" - como no eXémplo de que estou me
6 Esse é um tema que tenho explorado seguidamente em diferentes publicações, Indi-
valendo - , enquanto o segundo termo serve para designar o horizonte do antropólo-
caria especialmente a conferência, intitulada 'Y\, antropologia e a crise dos modelos
go - que é constituido por sua disciplina. Essa distinção apóia-se em E. D. HirschJr.
explicativos", reproduzida neste volume como seu capítulo 3.
',- Va/idity in Interpretation, apêndice 1 - que, por sua vez, apóia-se na lógica fregeana.
'l'l 23
Roberto Cardoso de Oliveira O lrabalho do antropológo: olhar, ouvir, escrever
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Roberto Cardoso de Oliveira O trabalho do anlropo/ógo: olhar, ouvir, escrever
que há uma re!~~ dialéticas:.m~somunicar e oconhecer, pois ambos Penso, nesse sentido, na questão da autonomia do autor/pesquisador no
pa:tjlham de uma mesma condição: a que é dadã];e1alin,li;UageJD. Embora exercício de seu métier. Quais as implicações dessa autonomia na conversão
a linguagem, como tema de reflexão, seja importante em si mesma, nesse dos dados observados - portanto, da vida tribal, para ficarmos com nos-
movimento que poderíamos chamar "guinada lingüistica" - ou linguistics sos exemplos - no discurso da disciplina? Temos de admitir qtle mais QQ.."
tUrJi-, que perpassa atualmente tanto a filosofia como as ciência sociais o ue uma tradução da "cultura nativa" na "cultura antro oló .ca" - isto é,
aspecto que desejo tratar aqui, mesmo se muito sucintamente, é o da dis~i no 1 oma e minha disciplina - , realizamos um~ittlerprelação que, por sua
plina e de seu próprio idioma, por meio dos quais os que exercitam a an- vez, está balizada elas cat or "onceitos básicos constitutivos
tropologia - ou outra ciência social- pensam e comunicam-se. Alguém ,- a lsciplina. Porém, essa autó~;;;;;'i~ ~-pi~tê;;;i~a não está de môdo algum
já escreveu qne O homem não pensa sozinho, em um monólogo solitário, desvinculada dos dados - quer de sua aparência externa, propiciada pelo
imas o faz soci:almeQte, no interior de uma "comunidade de c<i.IDlJOjçação" olhar; quer de seus significados íntimos ou do "modelo nativo", propor-
l,e "d:. argW)1.entação".8 Ele está, portanto, contido no espaço interno de
um horizonte socialmente construído - o de sua própria sociedade e de
cionados pelo ouvir. Está fundada nesses dados, com relação aos quais
tem de prestar c?ntas et;:! ;}jrii11.n];;m'ento º.o
e.sçr.ever. 6que sIgnifica
sua comunidade profissional. Desculpando-me pela imprecisão da analo- 91zer que há de se permitir sempre o controle dos d~ela comuni~
gia, diria que ele se ...eens? no interi~~__ 9F ug:1a "repres~w:acão co~etiya": de pares, isto é, pela comunidade profissional. Portanto, sistema concei-
expressão essa, afinal, bem familiar ,ao cientista social e que, de certo modo, tual, de um lado, e, de outro, os dados - nunca puros, pois, já em uma
dá uma idéia aproximada daquilo que entendo por "idioma" de uma disci- primeira instância, construídos pelo observador desde o momento de sua
plina. Como podemos interpretar isso em conexão com os exemplos etno- descrição, 10 guardam entre si uma relação dialética. São inter-influenciáveis.
gráficos? O momento do escrever, marcado por uma interpretação de e no gabinete,
Diria inicialmente que a textualização da cultura, ou de nossas observa- faz com que aqueles dados sofram uma nova "refração", uma vez que todo
ções sobre ela, é um empreendimento bastante complexo. Exige o despojo o processo de escrever, ou de ittscreveras observações no discurso da disci-
de alguns hábitos no escrever, válidos para diversos gêneros de escrita mas plina, está contaminado pelo contexto do beittg here - a saber, pelas con-
que para a construção de um discurso disciplinado por aquilo que se pode- versas de corredor ou de restaurante, pelos debates realizados em congres-
ria chamar de "(meta)teoria social" nem sempre parecem adequados. É, sos, pela atividade docente, pela pesquisa de biblioteca ou library jie/dwork,
portanto, um discJltso g1!e 50' Enoda em uma atitude toda particular que como, jocosamente, se costuma chamá-la, entre muitas outras atividades,
poderiamos definir como antro oló' ~ " ' . Para Geertz, por enfim pelo ambiente acadêmico.
exemplo, poder-se-ia entender toda tn_<2g!:~ la ou sociografia, se prefe- Examinemos um pouco mais de perto esse processo de textualização,
rirem - não apenas como tecnicamente diFícjl, uma vez que colocamos tão diferente do trabalho de campo. No dizer de Geertz, seria perguntar o
vidas alheias em "nossos" textos, mas, sobretudo, por esse trabalho ser que acontece com a realidade observada no campo quando ela é embarca-
"moral, política e epistemologicamente de1icadíi'.9 Embora Geertz não da para fora? - '1Phaf happens lo reali!] JjJhen it is shippe!_ab[Qad?'.'.-:::- .E:ssa
desenvolva-essa afÍrm~ç-ã.o,comosed~d~' ~~ d'~sejar, sempre podemos fazê- pergunta tem sido constante na chamada "a~bp~logia J~~oder~à)
lo a partir de um conjunto de questões,
8 10 Meyer Portes, já nos anos 1950, chamava esse processo - quase primitivo de investi-
Cf. Karl-Otto Apel, "La comunjebcl de comunicación como presupuesto trascenclental
de las ciencias socialcs", in 1.Á11/<III,!fol7l1r1ciól1 de Irlfilo,rofirl, tomo 11. t,'llção etnográfica no :lmbito da antropologia social - 'i!tlfl/ytie,,/ de,rcnj!liotl", Cf: M.
I ~,rtes. "Analysis anti (ksnipti()!1 in soci,,1 anl hf'()I'"k~\y". in 'I/ir ,/{b'dtl«'fllrIll /1/ .rtirrll'r.
'i ( :Ii CC,)I'I I ( ; "'TI~. //·'i'l;{:.r (Iltr! lil'('.r: 'f lI!' (1fI1/!f'l1)()Ir~I:ifl rI.r (/fII/!o/; p, I :11 I,
Vil!. X. PI I! ')11·:).11 I.
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Roberto Cardoso de Oliveira O trabalho do alltropo/ógo: olhar, OI/vir, eScrever
movimento que vem conquistaE:.ª?Jtlgar na disciplina, a partir dos anos certo modo, multos de nós, atualmente - refletem sobre a peculiaridade
1960, e que, màlgrado seus ~~__e9_~~ - sendo, talvez, o principal, do ~rever um texto que seja Cclntr?lável pelo leitô~ e i~s.o n: medi~a e~
a i~caçã~_(il:l:~ fa~ dagpktividade"com a su~_~()dalidade perversa, o que distinguimos tal texto da narratlva meramente literatla. Ja menCIOne!,
oo/e~vismo- canta a seu favor o fato de trazer a questão do.texto etnográ- momentos atrás, o diário e a caderneta de campo como modos de escrever=
fico como tema de reflexão sistemática, como algo que não pode ser toma- .> .s,ue se diferenci~-claramente do text()~t:t:()qr_~?CO fi~i1, I:ocleria acresce~-
do Iracitamente, como tende a ocorrer em nossa comunidade profissio- tar segw'ndo os mesmos autores que tambem os, os e as teseS cade-
, ' ~
nal,ll Apesar de Geertz ser considerado como o grande inspirador desse micas devem ser consideradas como "versões escritas interme arlas", uma
movimento, que reúne um extenso grupo de antropólogos, seus membros vez que, na elaboração da monografia - essa sim, ; texto flnal-, exigên-
não participam de uma P?sição univoca eventualmente ditada pelo mes- cias específicas devem ou deveriam ser feitas. Mencionarei simplesmente
tre,12 A rigor, a grande idéia que os une, afora o fato de possuírem uma algumas, preocupado em não me alongar multo nestas C<:l11~}9~r:ções.
0.E.entação de base hermenêutic~}nspirada em pensadores com~~ Desde logo, cabe uma distinção entre as ~nografias clássiêৠe as
Heideg~r, Gadame~)ou Ricoeur, essa idéia é a de se colocarem contra o modernas.; Enquanto as primeiras foram concebidas de conformidade com
que cõnsideranisero mocfõtrã'dicional de se fazer antropologia e isso, ao ~rutura narrativa normativa" que se pode aferir a partir de uma)
que parece, com o intuito de rejuvenescerem a antropologia cultural norte- disposiçã;-cl~ -~~pitulos quase ~;~6cica - território, economia, organiza-
americana, órfã de um grande teórico desde Franz Boas, ção social e parentesco, religião, mitologia, cultura e personalidade, entre
Quais os pontos que poderíamos assinalar como condutores à questão outros - , as segundas priorizam um tema, por meio do qual toda a ~ocie
central do texto etnográfico? Texto, aliás, que bem poderia ser sociográfico, dade ou cultura passa a ser descrita, analisaª_~~. i!!~~EE.~_tada. Um bom
se pudermos estender, por analogia, para aqueles mesmos resultados a que "exemplo de mOfiografiasaesSeséG;i1do dpo é a de Victor Turner, ':Cism.a~ )
chegam os cientistas sociais, não 'importando sua vinculação disciplinar, e continuidade em uma sociedade africana", gue manifesta com mwta feli-) .
Talvez o que torne o texto etnográfico mais singular, quando o compara- cidade as possibilidades de uma aÊ.réênsã.o·h-;~, porém concentrada
mos com outros devotados à teoria social, seja a, articulação que busca em um único grande tem2.,_ capaz de proporcionar uma idéia dessa socieda-
entre o tr.~,~al~~~.?e ~?-mpo e a construção do texto. George Marcus e Dick -de como entidade extraordinariamente viva. ,Essa visão holística, todavia,
~aã:~!~~C~;~~~~~~-::;~~:;;r~~;:~~~~~~~~~~~1~~~Jt~~~~:-
Cushman,13 chegam a considerar ue a etno rafia poderia ser definida como
" a representação do -t;ab~_ .. _~::. cam o em texto 14 Todavia, isso tem )
vátl~mp-caâores, como eles ~~smos reconhecem. Tentarei indicar al- pre deve ser tomada ar refer_~ncia," ,-
guns, seguindo esses mesmos autores, além de outros que, como eles - e, de -,.- Um t rceiro tlp seria o das chamadas "mono&9fias exl'eri_tp~::
.~lJlode!Qas",como defendidas por Marcus e Cush~an, ma,s ~ue, nes-
te momento, não gostaria de tratá-las sem um exame crítiCO prelitnlnar que
11 Cf. meu artigo, "A categoria de (des)ordem e a pós-modernidade da antropologia", in me parece indispensável, pois iria envolver precisamente minhas restrições
Allllcín'o Alltropológico, nU 86, 1988, pp.57 -73; também no livro Sobre opensa!J/ento alltropO"
ao que considero como característica dessas monografias: o desprezo gue
lógico, Capítilo 4.
seus autores demonstram em relação à necessidade de controle dos dados
12 Para uma boa idéia sobre a variedade de posições no interior do movimento herme-
nêutico, vale consultar o volume Wn'fillg m/fure: iDe pOe/ia (lI1d politic! if ethllograpqy,
et~og!áfi~~S, tema, aliás, sobre o-quaCtenhõ -me'ú:férrdõpor diversâsve-
James Clifford e George E, Marcus (orgs,), z~·s, -quando procuro mostrar que alguns desenvolvimentos da antropolo-
13 Cf. George E, lvIarcus e Dick Cushman, "Ethnographies as textes", in Allllual Review gia pós-moderna resultam em uma p~ do_~ró?Ei? 2~~c!!wa her-
ej/1.1t!;ro/;c!ogy, r? 11, 1982,pp, 25-69, menêutica, Essas monografias chegam a ser qllaS~ll1~t1:1!.st"ãs, 1mpondo ao
14 Idem, p. 27, 'í~itor a constante presença do autor no texto. É um tema sobre o qual tem
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O trabalho do alltropológo: olhar, ollvir, escreuer
Roberto Cardoso de Oliveira
~
133-157.]á de uma perspectiva menos favorável, cf., por exemplo, o artigo-resenha de
Wilson Trajano ri1ho, "Que barulho é esse, o dos pós-modernos" e o de Carlos raus-
to, "A antropologia xamanística de Michael Taussig e as desventuras da etnografia", Examinados o olhar, o ouvir e o escrever. A que conclusões podemos
ambos publicados no AIIJ{án'o AI1/ropológico, n~ 86, 1988, respectivamente às pp. chegar? Como procurei mostrar desde o inicio, essas "faculdades" do espí-
133-151 e pp. 183-198; e o de Mariza Peirano, "O encontro etnográfico e o diálogo
rito têm características bem precisas quando exercitadas na órbita das ciên-
teórico", inserido em sua coletânea de ensaios Uma all/rop%gia 110 plllra/, como seu
Capítulo 4. Para uma apreciação mais genérica dessa antropologia pós-moderna, na cias sociais e, de um modo todo especial, na da antropologia: Se o olhar e o
qual se procura apontar tanto seus aspectos positivos - no que se refere à contribui- ouvir constituem a nossa percepção da realidade focalizada na pesguisa
ção do paradigma hermenêutico para o enriguecimento da matriz disciplinar da antro- ~mpírica, o escrever passa a ser parte quase indissociável do nosso pens~
pologia - , como os aspectos negativos daquilo gue considero ser o "desenvolvimen-
to perverso" desse paradigma, conferir artigo - versão final de conferências proferi-
das em 1986 - indicado na nota 11. 16 Geotge E. Marcus e Dick Cushman, "Ethnographies as textes", p. 37.
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!!2.~nto,1.llllil. vez que o ato de escr~ver é simultâneo ao ato de pensar. Que- para a prática da disciplina, diríamos que pelo menos duas dessas "idéias-
ro chamar a atenção sobre isso, de modo a tornar-clúOcjue =pelo menos ~' m~cam o fazer antropológico: '~~õ5*2'açãoe~'~;e a
no meu modo de ver -1 no processo de redacão de um texto que PQSSO "relativizaç~ Entre nós, Roberto Da iYf'atta chamou a atenção . sobre a
,~
ensamento caminha, e9contrando soluções ue dificilmente a arecerão relativização em seu livro fulativizando: Uma introdução à antropologia sodal,17
antes~a textualiza ão os--dado~ rovenienres--da obsérvação sistemática. mostrando em que medida,o relativizar é co~stitúinte do próprio conheci-
Assim . --o, seri~~m eq~~~co imaginar que, primeiro, chegamos a con- mento antrof201ógico. Pessoalmente, entendo por relativizar uma_atitude
clusões relativas a esses mesmos dados, para, em seguida, podermos ins- epist_~titi~a,~~nentemente antropológica, graças à qual o pesquisad~r lo-
crever essas conclusões no texto. Portanto, dissociando-se o pensar do gra escapar da ameaça do etnocentrismo - essa forma habitual de ver o
• I escrever. Pelo menos minha experiência indica que .,2, ato de escrever e o d~ mundo que cirqinda o leigo, cuja maneira de olhar e de ouvir não foram
. "eensar são de tal forma solidários entre si que, juntos, formam pratica- disciplinadas pela antropologia. E se poderia estender isso ao escrever, na
jll.eAt® um mesmo ~to cO@2itivb.;JsSO significa que, nesse caso, o texto não medida em que, para falarmos com Crapanzano,18 "o escrever etnografia é
espera que seu autor tenha primeiro todas as respostas para, só então, po- uma continuação do confronto" intercultural, Eorranto entre p~sguisadot
der ser iniciado. Entendo que na elaboração de uma boa narrativa, o pes- ~ pesquisado. Por conseguinte, uma continuidade do olhar e do ouvir no
quisador, de posse de suas observações devidamente organizadas, inicia o .::screver, esse último igualmente marcado pela atitude relativista. 19
processo de textualização - uma vez que essa não é apenas uma forma
escrita de simples exposição, pois há também a forma' oral - , concomi-
tante ao processo de produção do conhecimento. Não obstante, gndo o 17 Editado pela Vozes, em 1981, o volume é uma boa introdução à antropologia social
que recomendo ao leitor interessado na disciplina, precisamente por não se tratar de
ato de escrever pm ato ig;J12!;;pegte cognitivo, esse ato tende a ser regetiqo
um manual, porém de um livro de ref1exiio sobre o fazer antropológico, apoiada na
quantas vez~s fqrpccessário: potl:;lPto, ele ~e_sçriçO e!.reescrito re.eetida- rica experiência de pesquisa do autoJ: Já em uma direç~o um pouco diferente, posicio-
,ment,;., não apep?ç pat;a ólperfeiçoar o texto do ponto d~ vista formal quanto nando-se contra certos exageros anti-relativistas, Clifford Geert7. escreve seu '~t:i
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Roberto Cardoso de Oliveira O trabalho do antropológo: olhar, ouvir, escrever
Uma outra idéia-valor a ser destacada como constituinte do ofício an- é próprio. E, por analogia, poder-se-ia dizer que isso ocorre também em
tropológico é a "<.>bservação participante~ que já mencionei momentos outras ciências sociais, em maior ou em menor grau. Isso significa que o
atrás. Permito-me dizer que talvez seja éla'a responsável pela caracteriza- olhar, o ouvir e o escrever devem ser sempre tematizados ou, em outras
ção do trabalho de campo antropológico, distinguindo-a, enquanto disci- palavras, questionados enquanto etapas de constituição do conhecimento
plina, de suas irmãs nas ciências sociais. Apesar dessa observação partici- pela pesquisa empírica - essa última vista como o programa prioritário
pante ter alcançado sua forma mais consolidada na investigação etnológi- das ciências sociais. Trazer esse tema à consideração, pareceu-me, enfim,
ca, junto a populações ágrafas e de pequena escala, isso não significa que apropriado porque entendo que talvez venha a contribuir ao estímulo de
ela não ocorra no exercício da pesquisa com segmentos urbanos ou rurais reflexões de caráter interdisciplinar, uma vez que os diferentes atos cogni-
da sociedade a que pertence o próprio antropólogo. Dessa observação tivos examinados não são estranhos às demais ciências sociais. O que to r-
na qualquer experiência antropológica - e não apenas a minha - objeto J
\J
participante, sobre a qual muito ainda se poderia dizer, não acrescentarei
mais do que umas poucas palavras; apenas para chamar a atenção para uma de interesses que transcendem a disciplina. E foi com esse intuito que es-
modalidade de observação que ganhou, ao longo do desenvolvimento da colhi o presente tópico - e me darei por satisfeito se houver conseguido
disciplina, um statlls elevado na hierarquia das idéias-valor que a marcam transformar atos aparentemente tão banais, como os aqui examinados, em
emblematicamente. Nesse sentido, os'ato~deolhar e de ouvir são, a rigQ!" temas de reflexão e de questionamento,
,funções qeum_gêneLQ~e .observação muito peculiar - isto é, peculiar à
antropologia ~,Eor meio daqual o~esq!ljsador busca interpretar ou
co.mpreender - a socied'áde e a cultura do outro "de dentré, e'm sua·
'jerdãéIélra irÚriorida~e. Ao tentar penetrar em form~~ devid~q~e lhe são
estranhas, a vivência que delas passa a ter cumpre uma função estratégica
no ato de elaboração do texto, uma vez que essa vivência - só assegurada
pela observação participante "e~tando lá"- passa a ser evocada durante
toda a interpretação do material etnográfico no processo de sua inscrição
, no discurso da disciplina. Costumo dizer aos meus alunos que os dados
/! contidos no diário e nas cadernetas de campo ganham em inteligibilidade
\ \. sempre que rememorados pelo pesquisador; o que equivale dizer, que a
r?e1l2?Eyonstitui provavelmente o elemento mais rico na redação de um
texto, contendo ela mesma uma massa de dados cuja significação é melhor
alcançável quando o pesquisador a traz de volta do passado, tornando-a
presente_~ de escrever, Seria uma espécie de presentificação do passa-
do, com tudo que isso possa implicar do ponto de vista hermenêutico, ou,
em outrlS palavras, com toda a ü?-fluência que o "estando aqui" pode trazer
para a compreensão - Verstehm - e interpretação dos dados então obti-
dos no campo.
Paremos por aqui. Em resumo, vimos, por intermédio da experiência
antropológica, como a disciplina condiciona as possibilidades de observa-
ção e de textualização sempre de conformidade com um horizonte que lhe
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