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Marie Carangi <marie.rf@gmail.com>

Marie,
Fabio Morais <fabiomorais1975@yahoo.com.br> 7 de outubro de 2018 22:22
Responder a: Fabio Morais <fabiomorais1975@yahoo.com.br>
Para: Marie Carangi <marie.rf@gmail.com>
Cc: Prêmio EDP <premioedp.institutotomieohtake@gmail.com>, Virginia Medeiros <virginiademedeiros73@gmail.com>,
Artur Lescher <lescher@uol.com.br>, Diane Lima <dianelimabr@gmail.com>, Jonas Van Holanda
<jonasvanholanda@gmail.com>, Luise Malmaceda <luise@institutotomieohtake.org.br>

desde texta-feira, já entrando no tetáxi rumo ao aeroporto, desenvolvo o vírus que você jogou
no ar, o de inventetar palavras. Quando vier a São Paulo, traga por favor um antídoteta que
cure isso – ou um chá: tea-ta.
Como sou bicho de palavra, desde então fiquei pensando nos termos que surgem a partir dos
substantivos que nomeiam o corpo: peitar, espernear, dedada, ajoelhar, boquiaberto, peitar,
pescoçada, abocanhar, olhar, cabeçudo, encoxada, unhar, pestanejar, labial... Ou seja, aquilo
que parece uma brincadeira tua de inventar palavras com “teta”, o uso do idioma também faz
ao inventar termos que nomeiem ações e estados de partes do corpo. E, se você inventa ações
e estados para a teta, nada mais natural que isso vá para o (teu) idioma – ou teticionário.
Sobre as ações e estados para a teta que você inventeta (vou parar), me chama atenteção
(parei) teu trânsito entre linguagens, indo do uso da teta como matriz de gravura – uma
linguagem tradicional – à performance/imagem de alguém com três tetas passeando por Berlim
– em um vídeo meio futurista, meio ficção científica, meio onírico – passando ainda pelo uso da
teta para trabalhos sonoros. Se as artes plásticas, depois tornadas visuais, desde a escultura e
a pintura são manuais, me parece que elas partem ainda de uma feitura que passa pelas mãos
(hoje, apertando teclas, segurando visores e microfones). Ao eleger a teta como a parte do
corpo a ser representada, mas também acionada para o trabalho – para produzir som, por
exemplo –, você esgarça essa manualidade.
Mas é claro que essas questões de linguagem são pano de fundo para uma discussão que é
muito mais política, a do corpo feminino, bem neste momento em que todos nós trabalhamos
atentos para sabotar e fazer ruir a estrutura epistemológica que sustenta a história e o presente
da arte, estrutura construída e imposta pelo homem branco eurocêntrico/estadunidense
heteronormativo que se auto-elege como o sujeito “universal” do mundo-objeto.
Mesmo a mim, que sou um desses cupins a tentar corroer essa estrutura, teu trabalho “intriga”
(não é o melhor verbo) porque eu, como homem, sem teta, não conheço esse lugar (corporal,
físico, político, simbólico, íntimo) de onde você fala – isso era muito claro quando via na sexta-
feira o quando você e Virgínia compactuavam coisas no silêncio ou se entendiam nas meias
palavras. (E aqui me pergunto o quanto o sistema epistemológico “homem branco
eurocêntrico/estadunidense heteronormativo” também não é estranho a grande maioria da
população mundial, mas mesmo assim é naturalizado de modo artificial). Quando, em um
trabalho, eu não tenho como acessar algo, isso me instiga a me enxergar bem onde não há
reflexo de mim: pelo que não sou, não tenho, pelo idioma que não falo. E o exercício de me
enxergar por esse “não” é das coisas que tenho tentado (ou tetado – não resisti). Não se trata
de algo como a nostalgia do falo (que considero uma das coisas mais cafonas e ridículas que a
teoria ocidental inventou), o que aqui seria minha nostalgia da teta, mas sim descobrir que

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aquilo que “não” tenho, “não” sei, “não” vivencio é o que pode me libertar da cansativa e
entediante crença de que sei tudo através de mim. Saber através do você(s) é grande aventura
autopolítica.
É nessa posição – que tentei esboçar no parágrafo anterior – que o vídeo de Berlim me coloca.
Todos os códigos visuais que passavam pelo corpo feminino refletiam-me nessa superfície
onde minha imagem não aparece, e isso era-me potente (sobretudo quando eu confrontava
isso, silenciosamente, com a Virgínia que, a meu lado, estava tão tocada pelo vídeo quanto eu;
ainda que eu estivesse no campo do estranhamento e a Virgínia parecesse estar no campo da
cumplicidade, o que importava era a potência do vídeo em transitar por tudo (todos) isso).
(Aliás, gastar esse texto para ressaltar o estranhamento em mim é uma armadilha onde caio,
pois mostra o quanto esse ressaltar é produto do velho ponto de vista masculino
autocentrado... 10 x 0 pra você.)
Tenho quase certeza de que isso (me) acontece porque toda a criação da performance/vídeo
foi feita por um grupo de mulheres atuando o próprio corpo, e não pela clássica e caduca
relação de um artista homem (cineasta, escritor, pintor) traduzindo o que ele acha ser uma
mulher (zzzzzzzzzz). Aliás, nesse quesito (o do “cala a boca, homem!”), acho pontuais as
críticas diretas que você faz à história da arte, seja agenciando de forma horizontal e cúmplice
mulheres que carimbem as tetas na parede e com essa atitude construam o trabalho contigo –
ao contrário do Yves Klein que carimbava os corpos das mulheres na parede tratando-as como
mero objeto alienado e inanimado – seja trocando o coiote por cadelas e a figura do Beuys,
hierarquicamente vestido, por você tão nua quanto as cadelas. Mas, ao contrário de uma
estratégia panfletária que fosse invertendo essas chaves – Klein, Beuys – como crítica
ilustrativa, na tua prática isso me parece um comentário que localiza a crítica na história da
arte, em meio à tua produção que já faz essa crítica de forma natural e para muito além da
história da arte.
O que chamo de “além da história da arte” é um certo comportamento lúdico e de brincadeira
que você parece conservar no teu trabalho – e que acho ser a força da tua poética artístico-
pessoal – que mais que conversar com a arte ou com a história, dialogam com a vida ao redor.
Desse diálogo, me parece que vão surgindo, via acaso, potências estéticas e políticas que
reafirmam o tom do que você faz: a marca de sutiã que surge no carimbo de teta – marca de
uma vestimenta repressiva que sulca-se na pele de forma violenta, levando ainda mais a
gravura para a questão da política do/no corpo – ou os meninos que brincam “infantilmente”
com a estátua ao fundo da cena onde a garota de três tetas brinca “erótico-infantilmente” com a
outra estetátua (agora, parei), nivelando num só grau o ato de brincar. Mas é claro que além
desses acasos há tua rapidez em detectar e agir: os carimbos de tetas feitos no dia do
#elenão, com mulheres que estavam na manifestação, para mim já fazem parte do statement
da tua obra.
Cem mais, 1 apertado abraço,
Fabio

fabio morais
55 11 944855545
skype fabiomorais75
fabio-morais.blogspot.com

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