Tradução livre por Flavio Williges do capítulo 3 do livro:
SMITH, David Livingstone. On Inhumanity- Dehumanization and How to Resist It. Oxford/New York: Oxford University Press, 2020. p. 23-27.
Coloque no Google o termo “desumanização” e você obterá mais de 8
milhões de entradas. Investigue mais e você descobrirá que muitas dessas entradas definem explicita ou implicitamente o termo e você também descobrirá que a maioria das definições conflitam entre si. Alguns dizem que a desumanizar os outros é o mesmo que tratá-los de um modo cruel, degradante e humilhante. Outros dizem que a desumanização é um tipo de fala derrogatória- o uso de injúrias que diminuem ou demonizam um grupo inteiro de pessoas. Outros ainda sustentam que a desumanização significa pensar os outros como inferiores ou não inteiramente humanos ou como objetos inanimados. E essa curta lista não esgota todas as opções. Claro, há alguma conexão entre todos esses sentidos, mas é uma conexão muito frouxa. Todos eles pertencem a algo que é errado ou degradante, mas é no máximo aí que terminam as similaridades. Cada uma dessas noções de desumanização é logicamente independente de outras, o que significa que elas não se sobrepõem. Considere a primeira noção de desumanização que mencionei: a ideia que desumanizar alguém é deliberadamente tratá-las de um modo cruel, humilhante e degradante. Agora, compare isso com a última da minha lista: a ideia que, quando desumanizamos outros, nós os concebemos como objetos sem vida (lifeless). É fácil ver que essas ideias são completamente diferentes. A primeira descreve um modo de tratar pessoas, enquanto a segunda descreve um modo de pensar sobre elas. E note que a ideia de ser cruel com um objeto inanimado não faz o menor sentido. Tratar outro cruelmente – por exemplo, ao torturá-lo- é deliberadamente causar-lhe sofrimento. Mas objetos inanimados não tem sentimentos e não podem sofrer. Você não pode torturar uma máquina de lavar. Do mesmo modo, você só pode humilhar um ser se ele for dotado de auto-respeito. Mas objetos inanimados não são dotados de auto-respeito. Você não pode humilhar um vaso de flor. Assim, pensar outros como objetos inanimados exclui deliberadamente a possibilidade de tratá-los de modo cruel e degradante. Esse é só um exemplo das grandes lacunas que existem entre as diferentes concepções de desumanização, o que pode tornar as discussões muitos confusas. Se eu entendo uma coisa por “desumanização” e você entende outra pelo mesmo termo, então é improvável que tenhamos uma conversa produtiva. Porque lidar com a desumanização é muito importante, essa situação não deve ser tolerada. A confusão sobre o sentido da desumanização carrega consequências mais sérias do que outras confusões filosóficas. Debates sobre muitos tópicos filosóficos tradicionais- por exemplo, a natureza da verdade ou da beleza ou a questão de se há um mundo objetivo fora de nossas mentes- são de pouca importância para viver vidas humanas. Tentar obter clareza sobre tais assuntos é um exercício intelectual maravilhoso, mas é definitivamente um jogo de apostas baixas. Em oposição, as consequências de uma confusão sobre desumanização são potencialmente mais drásticas e devastadoras. Nós não estamos brincando com palavras ou resolvendo enigmas intelectuais quando tentamos dar sentido à desumanização. Tratá-la seriamente é mais uma obrigação do que uma opção. Qualquer um que pretenda tratar do fenômeno da desumanização seriamente precisa fazer duas coisas desde o começo. Primeiro, devemos ser explícitos quanto ao que queremos dizer com “desumanização”. Não se deve ser vago ou escorregadio ou confiar no pressuposto que todos entendem do que estamos falando. Deve-se traçar limites tão claramente e precisamente quanto possível. Em segundo lugar, deve-se esclarecer por que essa noção de desumanização é preferível a outras opções que estão na mesa. Eu vejo a desumanização como um tipo de atitude- um modo de pensar sobre os outros. Desumanizar outra pessoa é concebê-la como uma criatura subhumana. Há muito mais conteúdo condensado nessa curta sentença do que parece, e eu irei desembrulhá-lo nos capítulos subsequentes. Mas por ora gostaria que você mantivesse os olhos no balão definidor. Quando falo em desumanização quero dizer isso e nada mais. As pessoas frequentemente confundem a desumanização com seus efeitos no comportamento humano. Isso turva a água e torna muito mais difícil compreender como a desumanização funciona. Quando as pessoas pensam acerca de outros como subhumanos, elas frequentemente os tratam de formas cruéis e degradantes, e elas frequentemente se referem a eles usando pejorativos (slurs). Mas o mau tratamento e as injúrias degradantes são efeitos da desumanização em vez da própria desumanização. Eles são, por assim dizer, sintomas da doença, em vez da doença em si. E você não pode curar uma doença meramente dando atenção aos seus sintomas. Você precisa lidar com algo mais profundo, com os processos menos óbvios que a impulsionam. Seguindo com a analogia médica, suponha que você tenha pegado uma gripe. A sua cabeça está latejando, você está tossindo e com febre alta. Bom, o que é ter uma gripe? Pergunte ao seu médico e ele lhe dirá que ter gripe equivale a ser infectado com o vírus da gripe. Dor de cabeça, tosse e febre são todos sintomas da gripe- eles são causados pela gripe, mas não são a própria gripe. De fato, sempre que você pega gripe, há um período durante o qual você fica mal antes de desenvolver esses sintomas nojentos. Você ainda não sabe que está doente, pois os indicadores (sintomas) ainda não apareceram. Ter gripe e saber que você tem gripe são coisas diferentes. Você não pode saber que você tem gripe a menos que você realmente tenha, mas você pode ter gripe sem saber que você tem. Por outro lado, o simples fato que você teve dor de cabeça, nariz escorrendo e uma febre não necessariamente significa que você tem gripe. Você pode ter todos esses sintomas e não ter gripe. Por exemplo: você pode ter um resfriado forte, ou a doença de Weil ou ser infectado por adenovírus. Contudo, muito embora os sintomas clássicos de gripe não seja a prova de erros, eles são bons indicadores que você pegou gripe. Quando você tem os sintomas e diagnostica que está com gripe, quase sempre você está certo. O mesmo é verdadeiro para a relação entre desumanização e pejorativos ligados a animais ou tratamento cruel e degradante. Esses são frequentemente causados por atitudes desumanizadoras, e podemos usá-las para “diagonisticar” a desumanização, mas elas não são a prova de erros. As pessoas podem pensar acerca de outro como menos do que humanos sem mesmo trata-los mal ou descreve-los de modo similar a animais (a desumanização pode ser muito sutil ou até mesmo “assintomática”), e, por outro lado, as pessoas podem também tratar os outros de maneira cruel e degradante ou chamá-los de animais sem realmente pensar que eles são bestas subhumanas. Mas aqui, como é o caso da doença física, os sintomas são indicadores mais ou menos confiáveis que o processo psicológico da desumanização está atuando no pano de fundo, de modo que eles são importantes para fazer um diagnóstico. Por que eu decidi pensar a desumanização dessa forma em vez de abraçar alguma outra alternativa? Uma razão é que eu quero reservar o termo “desumanização” para algo que não pode ser descrito por outros termos. Não há nada a ser ganho falando sobre “desumanização” quando termos como “racismo”, “objetificação”, “othering” ou “alienação” serviriam perfeitamente bem. Igualmente, a teoria da desumanização deve ser fundada no nosso melhor conhecimento científico. A principal razão para estudar a desumanização é aprender como impedi-la ou desarticulá-la, e para fazer isso precisamos entender como ela funciona E a ciência é o único modo disponível para compreender como as coisas funcionam. Porque a desumanização diz respeito às atitudes humanas e comportamento, a ciência a ser buscada é a psicologia. Ademais, eu creio que uma boa teoria da desumanização deve ser unificada. Com isso eu quero dizer que ela deve focar um fenômeno particular, em vez de incluir muitas coisas diferentes. O problema com conceitos guarda-chuva é que eles não nos dão uma compreensão firme do que é que estamos tentando entender. Uma teoria da desumanização pode ser mais informativa (e mais útil) se ela lança o foco para um fenômeno singular, específico, em vez de olhar vagamente para uma pluralidade de fenômenos correlatos. Acima de tudo, eu penso que uma boa teoria da desumanização deve ser consistente com aqueles episódios da história humana que são incontestavelmente exemplos de desumanização. O Holocausto é um deles. Seria estranho, para dizer o mínimo, adotar uma visão do que é a desumanização que não se aplica-se aos horrores de Auschwitz e Treblinka. Uma tal concepção não mereceria ser levada a sério. O mesmo pode ser dito de uma teoria da desumanização que seja irrelevante para a escravidão, ou para o terrorismo anti-negros do Jim Crow, ou os horrores do colonialismo ou muitos outros exemplos. Para resistir efetivamente à desumanização, você precisa saber o que ela é. Você deve ser capaz de distinguir entre racismo, misogenia, xenofobia ou outras formas de preconceito e opressão. Desumanizar os outros é pensá- los não simplesmente como seres inferiores, mas como criaturas subhumanas.