Você está na página 1de 32

1

Valdemir Paiva Brenner Silva


EDITOR–CHEFE DIAGRAMAÇÃO E PROJETO GRÁFICO

Éverson Ciriaco Rodrigo Soares


DIRETOR EDITORIAL REVISÃO EDITORIAL

Katlin Lopes Raiane Cordeiro de Araújo


DIRETORA EXECUTIVA REVISÃO DE TEXTO

Paula Zettel
DESIGN DE CAPA E ILUSTRAÇÕES

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Araújo, Raiane Cordeiro de


A riqueza do lugar : história da Comunidade Quilombola do
Maracujá / Raiane Cordeiro de Araújo ; -- 1. ed. -- Curitiba :
Editorial Casa, 2021. [recurso eletrônico]

ISBN 978-65-995639-2-8

1. Comunidades quilombola - Conceição do Coité


(BA) - História 2. Ensino fundamental 3. Negros - Conceição
do Coité (BA) - História I. Zettel, Paula. II. Título.

21-76522 CDD-372.898142

Índices para catálogo sistemático:

1. Comunidade Quilombola do Maracujá : História :


Ensino fundamental 372.898142
Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

CASA KIDS
R. Marechal Deodoro, 503, Sala 207 1ª edição – Ano 2021
Centro | CEP 80020-320 | Curitiba–PR Não encontrando nossos títulos
Telefone: (55) (41) 3264–9696 na rede de livrarias conveniadas
e informadas em nosso site,
E–mail: contato@editorialcasa.com.br
contatar a Casa Editorial
www.editorialcasa.com.br

2
Para todas as pessoas da
Comunidade Quilombola do Maracujá,
minha gratidão e respeito.

3
PREFÁCIO

Ter sido convidada para escrever o prefácio do paradidático “A riqueza do lugar:


história da Comunidade Quilombola de Maracujá” constituiu-se em um momento de
muita satisfação e alegria, pois esta história idealizada pela minha orientanda Raiane
Cordeiro, professora dessa comunidade, representa a relevância da articulação entre
a universidade e o território em que atua, especificamente, o Mestrado Profissional
em Intervenção Educativa e Social (MPIES), vinculado à Universidade do Estado da
Bahia (UNEB/Campus XI), onde a mestranda Raiane Cordeiro efetuou o Trabalho de
Conclusão de Curso (TCC) intitulado “A construção dialógica de um paradidático na
Comunidade Quilombola do Maracujá em Conceição do Coité–BA: olhares insurgentes
no processo de ensino e de aprendizagem”. Portanto, este paradidático representa o
produto da sua pesquisa de intervenção, que valoriza as construções feitas pelas crian-
ças e os saberes trazidos desde os ancestrais aos adultos participantes da pesquisa.

4
É importante destacar a responsabilidade interventiva desse mestrado com o
Território do Sisal, no qual a comunidade do Maracujá e a UNEB/MPIES estão
inseridos, mas, sobretudo, pelo compromisso social de Raiane que acredita em
uma intervenção construída de forma compartilhada com o outro, e não feita para
o outro. Com efeito, foi possível perceber a riqueza da história narrada pela griô
dona Dandara ao grupo de crianças da Escola Municipal Maria Rita Marcelina Silva
(nome em homenagem a importante professora que ensinou a ler e escrever crian-
ças e adultos dessa comunidade), assim como a relevância dos personagens da
história que trazem alguns nomes de representatividades pretas apresentados na
história com nomes de origem africana.
Dessa forma, este paradidático representa a opção pela incorporação de um currículo
vivo no cotidiano da escola, que contextualiza a história do lugar, das representativi-
dades pretas que mobilizaram/mobilizarão questões de luta, resistência, de culturas
dos nossos antepassados, dos sentidos e significados que indicam injustiças vividas
e identificadas ainda hoje pela comunidade, por exemplo, a  ausência de água enca-
nada, sem, com isso, perder o movimento do reconhecimento de direitos humanos
que precisam ser garantidos pelo Estado, assim como a necessidade de a escola
incorporar, no seu currículo, culturas, saberes e dizeres dos povos tradicionais, os
quais podem e devem mover novos sonhos dessa e para essa comunidade.

Boa leitura!
Profª. Dra. Ivonete Barreto de Amorim (UNEB/MPIES/EPODS)

5
6
A RIQUEZA
DO LUGAR:
história da Comunidade
Quilombola do Maracujá

Em uma comunidade rural localizada na cidade de Conceição do Coité, no


interior da Bahia, mora um grupo de pessoas que tem uma história muito
bonita e importante, eles são remanescentes de quilombo. Você já ouviu
falar disso? Essas pessoas são fortes, guerreiras e lutam há muitos anos
para conquistar os seus sonhos e tudo que elas têm direito.

7
8
Ao chegar em casa, Ayara vai imediatamente falar com a avó:
– Vó, a professora pediu para perguntar se a senhora pode ir lá na minha escola
amanhã para contar a história de como surgiu a nossa comunidade.
– Vou sim, minha filha! As pessoas precisam ouvir essas histórias para nunca se
esquecerem das suas origens.

No outro dia na escola...


– Professora, a vovó veio comigo para contar a história que a senhora pediu!

A professora fala com a turma:


– Crianças, hoje teremos a participação de dona Dandara para contar a história de
como surgiu a nossa comunidade, a Comunidade Quilombola do Maracujá.

9
A avó se senta na cadeira, as crianças e a professora se sentam no chão em uma esteira
de pindoba.

10
– Oh, minha filha! É tão bom estar aqui e poder contar a história para as crianças, são
muitas boas lembranças que não podemos deixar morrer! Essas histórias eu ouvia
minha mãe contar, ela dizia que essa comunidade foi formada há muitos anos pelos
quatro irmãos: Zé de Souza, Severino, Calixto e Gregório. Algumas pessoas dizem
que eles compraram essas terras, outras dizem que eles vieram fugidos para cá!
– Fugidos? E o que eles fizeram de errado para fugir?, perguntou Kayin.
– Eles não fizeram nada de errado, mas antigamente as pessoas de cor não tinham
valor, eram vendidas como se fossem mercadorias, precisavam trabalhar para os seus
donos e não recebiam nenhum salário, eles eram escravizados.
– Que triste! Então, se fosse hoje, todos nós seríamos escravizados?, perguntou
Akin.
– A situação naquela época era complicada, crianças! Hoje os tempos mudaram e
graças a pessoas como esses quatros irmãos que tiveram coragem de lutar para
conquistar seus sonhos é que nós temos a nossa liberdade. Vamos voltar para a
história. De um jeito ou de outro, esses irmãos foram os responsáveis pela fundação
da Fazenda Maracujá!

11
12
– Fazenda?, perguntou Zaki.
– Sim, Zaki! Era assim que a nossa comunidade era chamada! Ahhh, e sabe
por que esse nome?
– Porque o povo daqui gosta de comer Maracujá?, perguntou Zola.
(Risos!)
– Não, Zola, porque aqui tinha muitos pés da fruta maracujá, uma espécie
conhecida como maracujá do mato, e os quatro irmãos usaram os galhos
da árvore para fazer a divisão das terras. Aqui tem 400 tarefas de terras,
então cada um ficou com 100 tarefas.
– Quanto mede uma tarefa de terra?, perguntou Azequel.
– Esse assunto, Azequel, nós vamos discutir na aula da matemática, disse
a professora.
– Certo, professora. Pode continuar, dona Dandara.

13
14
– Então, crianças, depois que eles fizeram a divisão, com o passar
dos anos, se casaram, formaram famílias e a fazenda começou
a ser povoada. Minha mãe dizia que todo mundo aqui tem um
parentesco, mesmo que seja distante. O que eu posso dizer para
vocês é que a vida naquele tempo não era fácil, a seca maltratou
muitas pessoas e animais. As famílias sempre tiveram muitos fi-
lhos e, com isso, tinham mais bocas para alimentar e todo mundo
precisava ajudar na roça. A gente não tinha tanto tempo para
se dedicar aos estudos e desde pequenos aprendíamos sobre a
vida. A minha infância e a de muitas crianças era trabalhar, nós
plantávamos para ter o que comer.
– E a senhora não podia brincar?, perguntou Dayo.

15
16
– Brincava sim, Dayo! Quando terminávamos os afazeres na roça,
aí podíamos brincar. Mas as brincadeiras eram diferentes das
brincadeiras de hoje, não existia esse negócio de computador e
celular. A gente brincava no quintal de casa com os irmãos, irmãs
e os primos. Brincávamos de roda e, quando tinha os sambas,
várias crianças se reuniam, e a brincadeira durava até bem tarde
da noite. Nós adorávamos!
– Professora, por que a escola não nos ensina a brincar de roda?,
perguntou Badu.
– Você está certo, Badu! A escola precisa mesmo ensinar a vo-
cês sobre a cultura da comunidade, pois existem tantas heranças
bonitas que precisam ser resgatadas: o samba de roda, o reisado,
as festas de caruru... Os jovens devem aprender essas tradições
para que elas ganhem cada vez mais força e continuem vivas no
corpo e na alma do povo quilombola do Maracujá, falou Zumbi da
porta, já se despedindo.

Dona Dandara continuou...

17
– Qualquer dia desses, eu venho ensinar vocês
a brincar de roda. Vocês precisam aprender
para ensinar aos seus futuros filhos e netos e,
assim, nossa cultura permanecerá sempre viva!
Outra coisa que gostávamos muito era de ou-
vir os mais velhos contar histórias. Minha avó
Aziza contava muitas histórias e ela sempre
dizia: “É, minha filha, a língua mata e enterra”.
Com isso, ela falava que precisávamos apren-
der a ouvir mais. Esse ensinamento dela eu
levei para a vida e ensinei aos meus filhos e
aos meus netos.
– Dona Dandara, falando de escola,
quando surgiu esta escola?, pergunta Simba.
– Simba, eu não sei te dizer a data certa,
mas meus filhos já estudaram neste prédio.
Era diferente, menor, nos últimos anos melho-
rou um pouco a estrutura física, mudou tam-
bém o nome. No ano de 2018, a escola passou
a se chamar Maria Rita Marcelina Silva. Agora,
eu é que quero perguntar algo para vocês:
alguém sabe quem foi Maria Rita?

18
Quatro crianças levantam a mão, uma delas responde:

– Maria Rita era a professora da comunidade,


ela foi professora de muitas pessoas daqui,
ensinou a minha mãe quando ela era pequena,
respondeu Badu.
– Isso mesmo, Badu. Rita, como era chamada,
foi professora e das boas. Ensinou de criança
a adulto, a ler e a escrever. Além disso, foi
líder da comunidade, foi ela que apareceu com
esse negócio de associação, de reunir o povo
para querer melhorar a situação por aqui, lutou
muito para conseguir energia elétrica para a
comunidade. Esse era seu grande sonho! Mas,
infelizmente, ela ficou doente e não conseguiu
ver esse sonho realizado, a luz elétrica só
chegou três anos depois que ela morreu. Mas
ela é lembrada por todos com muita alegria,
foi uma mulher de fibra e de coragem!

19
20
– Dona Dandara, quando mudaram o nome de Fazenda Maracujá para
Comunidade Quilombola do Maracujá?, perguntou Zarina.
– Ah, essa história toda começou mais ou menos em meados do ano de
2008 e esse assunto dividia opiniões. Algumas pessoas já se consideravam
quilombolas por conta da história de como surgiu a comunidade, outros
tinham medo do preconceito, de não serem aceitos por serem quilombolas
e medo até de dizer que eram pretos. Com o tempo e com alguns estudos
e conversas com o pessoal da associação de moradores daqui, as pessoas
foram percebendo que o mundo estava diferente, aí passaram a dizer que
eram pretas.

21
22
– Eu tenho orgulho de ser preto! Minha irmã tem a pele mais escura do que
a minha e tem um cabelo black power de rainha, falou Zaki.
– Que bom que você pensa assim, Zaki! Mas as pessoas mais velhas sofreram
muito preconceito no passado. Lembra da história que falei da escravidão?
Então, por isso é que elas tinham medo. Depois que as pessoas daqui se
reconheceram pretas, começou o processo da certificação, que só chegou
mesmo no dia 17 de setembro de 2014. Nesse dia foi uma festa linda, teve
música, samba, oficina afro de maquiagem e cabelo, explicaram também
que a partir daquele dia a situação iria melhorar por aqui.
– E melhorou mesmo, vovó?, perguntou Ayara.

23
24
– Ayara, algumas coisas melhoraram, por exemplo, com relação aos recibos
de luz, muita gente aqui tem uma conta reduzida e mesmo zerada, e é
por conta disso, por ser quilombola. Uma conquista mais recente é com
relação à vacinação contra a covid-19, por ser uma comunidade quilombola,
as pessoas daqui se vacinaram primeiro do que em Coité, todas acima de
18 anos já estão vacinadas. Isso foi uma grande conquista, principalmente
para este momento. Eu não posso falar para vocês que já tivemos muitos
avanços, a questão da água encanada ainda é uma grande luta, estamos
vivendo de promessas. Mas sabemos que nesta vida não podemos esperar
acontecer, precisamos lutar, reivindicar os nossos direitos, correr em busca
dos nossos sonhos. E vocês, crianças, são a nossa esperança!
– Na escola era para ser todo dia como hoje, uma aula divertida, contando
nossa história, disse Elon.
– A professora sempre conta histórias de crianças pretas como nós, um
dia desses ela contou a história de Sulwe, ela sofreu racismo, disse Simba.

25
26
– É verdade, só que não foi aqui na escola. Ela contou de forma virtual,
foi muito legal porque conseguimos ver que a escritora da história é uma
mulher negra como nós. Então, eu fiquei pensando que eu também posso
ser escritora, professora ou médica, completou Zola.
– Ela falou que tem um ator que é também escritor e ele é preto. O nome
dele é Lázaro Ramos, ele é casado com Taís Araújo, que é atriz também.
Ah, e tem a escritora Ana Fátima, ela é de uma comunidade de Salvador e
já tem livro até em inglês, disse Fayola.
– Tem aquele cantor, o Carlinhos Brown, ele é bem famoso e é baiano,
disse Azequel.
– Minha mãe me disse que alguns dos filhos da professora Maria Rita
fizeram ou estão fazendo faculdade, ela disse também que se Rita fosse
viva estaria muito orgulhosa dos filhos, disse Adimu.

27
28
– É verdade, crianças, eu tento mostrar para vocês que precisamos falar
sobre racismo, porque ele existe e é cruel. Meu papel aqui é ensinar além
dos conteúdos, é mostrar que vocês têm direitos e, por isso, precisam
conhecê-los para saber como devem agir e o que podem reivindicar.
Vocês precisam conhecer também a história do lugar onde vocês moram,
se orgulhar dele e, o mais importante, aprender que esta comunidade já
enfrentou e enfrenta muitas situações, mas a principal delas é que as
pessoas que moram aqui têm direito de ter melhores condições de vida
e, acima de tudo, direito de sonhar.
– Professora, é mais ou menos aquilo que a senhora falou sobre ter direito
a ser quem somos de verdade?, pergunta Amara.

29
– Isso mesmo, Amara, e, principalmente, se orgulhar de quem vocês são.
Por isso, eu pedi a dona Dandara para vir aqui conversar conosco hoje. A
voz de uma anciã ou ancião em uma comunidade quilombola deve ser ouvida
e respeitada porque é a história viva do povo quilombola.
– É aquilo que a senhora falou que, na tradição africana, os griôs são
contadores de histórias, sábios e respeitados por todos da comunidade?,
perguntou Badu.
– Então, a vovó pode ser considerada uma griô?, falou Ayara.
– Exatamente isso, crianças! Na África, cada ancião que morre é como
uma biblioteca que se queima, o que aprendemos hoje não encontramos
em livro nenhum, é algo que ouvimos e vamos gravar na nossa memória.
Muito obrigada, dona Dandara, espero que a senhora possa aparecer por
aqui mais vezes!
– Não tem o que agradecer. Eu, hoje, me senti muito importante e feliz!
Contar histórias é alimentar os sonhos. E, por falar em sonhos, crianças,
vamos falar um pouco sobre os sonhos de cada um de vocês...

30
Agradeço imensamente à Comunidade Quilombola do Maracujá
por ter me acolhido desde o primeiro contato até o momento
que me tornei professora da comunidade. Ao Mestrado Profis-
sional em Intervenção Educativa e Social (MPIES), vinculado
à Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Departamento de
Educação (DEDC), Campus XI – Serrinha. E à minha orienta-
dora e amiga Ivonete Barreto de Amorim, por ter me guiado
carinhosamente, fazendo-me acreditar que os meus sonhos
podem virar realidade.

31

Você também pode gostar