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Tradução

Guilherme Teixeira

Guy Corneau

Será que existe


Feliz?
yo Noluroz

370
"
O
EMIGRA AFILIADA

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Do original:
N'Y A-t-il Pas D'Amour Heureux?
Tradução autorizado do idioma francês dá edição publicada por Editions Robert Loffont
Copyright C 1997, Editions Robert Loffont, Paris

(ô) 1999, Editora Compus Ltda.

Todos os direitos reservados e protegidos pelo Lei 5.988 de 14/12/73.


Nenhuma pode deste livro, sem autorização prévia por escrito do editora,
poderá ser reproduzida ou transmitido sejam quais forem os meios empregados:
eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.

Copo
Luciano Mello
Monika Mayer

Copidesque
Monica Braga

Editoração Eletrônica
DTPhoenix Editorial .
A meus pais, por seu amor e generosidade.
Revisão Gráfica A minhas irmãs, por sua amizade.
Andréa Campos Bivor -•
Jussara Bisar A Marie-Ginette e a cada uma das mulheres que, ao
Projeto Gráfico
se aproximarem de mim, na dor ou na alegria. do amor,
Editora Compus Ltda. contribuíram para o meu difícil nascimento.
A Qualidadedoinformação
Rua Sete de Setembro, 111 -.16° andar
A meus companheiros de estrada do Réseau Hommes
20050-002 Rio de Janeiro' RJ Brasil Québec, e aos das redes existentes na Bélgica, Suíça e
TelefOne: (21) 509-5340 Fax: (21) 507-1991
E-mail: info©compus_com.br . França.
ISBN /35-352-0495-4 À Vida, por nos conservar a todos e todas, de forma
(Edição original: ISBN 2-221-07803-9 — Editions Robed Loffont)
tão generosa, "em seu seio. .

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte..
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

C834s Corneau, Guy


Será que existe amor feliz? Como as relações pais e filhos
condicionam nossas relações / Guy Corneau; tradução de
Guilherme Teixeira. — Rio de Janeiro: Compus, 1999.

Tradução de: N'y o441 pos d'omour heureux?


Inclui bibliografia
ISBN: 85-352-0495-4

1. Amor. 2. Intimidade (Psicologia) 3. Poise filhos.


4. Relações homem-mulher. I. Titulo. •

COD 158.2
99-1155 CDU - 15 9.9:1 77.6

• 99 00 01 02 5 4 3 2 1
Agradecimentos

• Antes de tudo, faço questão de. agradecer à minha companheira, Marie-


• Ginette Landry, que acreditou, desde o início., neste projeto e facilitou
sua realização de todas as maneiras possíveis.
Faço questão, igualinente, de agradecer a Christiane Blondeau, mi-
nha preciosa assistente, por ter administrado os negócios do consultório
durante os períodos em que Me dediquei à escrita, por ter cuidado dos
originais em. sua primeira versão e por ter acompanhado, com minúcia,
sua concretização final.
Marie-Claude Goodwin, minha agente, que negociou os contratos
com a Éditions de l'Homme e com a editOra RObert Laffont, é merecedo-
ra de toda a minha consideração.
Manifesto minha gratidão a Joëlle de Grayelaine, diretora da coleção
"Réponses", da editora Laffont, por ter me tratado com tanto respeito e
amizade. Igualmente, a james de Gaspé Bonar, na época diretor editorial
de Éditions de l'Homme, por sua imensa fé indefectível no meu trabalho.
Também não gostaria de deixar passar em silêncio a intervenção
salvadora de Jean Bernier, que me fez ganhar, de novo, confiança no meu
texto e em mim mesmo, no momento em que Me encontrava no fundo
do poço.
Outras pessoas acompanharam-me, igualmente, durante este longo
périplo: Celine Bietlot e Shandra Lord se constituíram em ajudas provi-
denciais; pelo entusiasmo manifestado em relação às minhas idéias, que-
ro exprimir meu reconhecimento a Hélène Deschesnes, como leitora da
primeira hora, e a Nicole Plamondon, como leitora da última hora.
Agradeço, também, à minha colega e amiga Jan Bauer por suas idéias
estimulantes; assim como a Robert Blondin, Tom Kelly, Pierre Lessard,
Marie-Lise Labonté, Daniele Morneau, Louis Plamondon, Camille Tessier
e a todos os membros de minha família, por seu contínuo encorajamento.
Muito precioso foi, igualmente, o apoio de toda a minha "caravana" bel-
ga:.Thomas d'Ansembourg, Louis Pare; Pol Marchandise, Bettina de Pauw,
Régine Parez, Alexiane Gillis, Liliane Gandibleu, Véronique Boissin e
Pierre-Bernard Velge. . • •
Finalmente, minha eterna gratidão a iodos aqueles e aquelas — os
últimos, mas não os Mais insignificantes — que freqüentaram meu con-
sultório e participaram de minhas conferências e seminários, pelos reta-
lhos de suas vidas que aceitaram me confiar, sem os quais este livro teria
permanecido letra morta.

Em tudo, há uma fissura,


Deste modo, a luz pode penetrar.
LEONARD COHEN

Dizei estas palavras minha vida


e segurai vossas lágrimas:
"Não existe amor feliz!"
ARAGON
Sumário

Introdução 17
Diante de unia xícara de café... 17
.0 amor em guerra 18
Afeficiciade a inventar 19
À.conquista da intimidade 20
A reflexão psicológica não é um dogma 21
O amor em paz 22

1.0 amor em guerra 23


Um homem e. uma mulher no sofá 23
Elã 23
Ele 24:
Ela 25
Ele 25
O peso de um sonho 26
A vida a dois tornou-se um campo de batalha 27
A desestabilizaçáo do patriarcado 27
O Patriarcado existe em cada um de nós 28
Em direção a urna nova intimidade 30

2. Nascer homem ou mulher 31


A noção de identidade 31
A respiração fundamental do ser 31 I

A formação do ego 33
Tornarmo-nos nós mesmos 34
A formação dos complexos 35
Os complexos parentais 36 •
O ego também é um complexo 37 4. Curar-se do pai 94
. projetamos. aspectos de nós mesmos sobre os outros 39 O drama da menina boazinha 94
Amarmo-nos a nós mesmos 39 A bela adormecida. 95
O amor-próprio é um fator de equilíbrio psicológico 39 A boa cólera 98
Da onipotência à auto-estima 42 A cura do amor-próprio 101
Umolho, Doisolhos, Tresolhos 45 Superar a misoginia 102
Identidade e diferença sexual 48 Dar uma expressão ao animus 104
A identidade sexual é uma construção psicológica 48 Imaginar a beleza do feminino 106
Para que serve o progenitor do mesmo sexo? 49
- Para que serve o progenitor do sexo oposto? 50 5. Mãe e filho: O casal impossível 108
A prova da diferenciação sexual 51 O casal mãe-filho 108
O animus e a anima- 52 Um drama psicológico 108
A cara-metade 52 Tornar-se mãe 110
A quem se assemelha o animus e a anima? 54 Não saber onde começa um e onde acaba o outro 112
O aspecto coletivo do arquétipo 55 O problema é que o pai não está presente 114
A mulher no homem, o homem na mulher 57 O casamento Mãe-filho 115
Triângulo familiar ou triângulo infernal? 59 O filho devorado 116
A constelação familiar 59 A mãe devorada! 117
A criança não é uma folha em branco 62 Todo casamento tem um contratoS 118
A interdição da separação 119
3. Pai e filha: O amor em silêncio 65 A puberdade ou a guerra aberta 122
O pai silencioso 65 A puberdade é um segundo nascimento 123
Prisioneiros dos estereótipos 65 O anti-herói ou'o nascimento abortado 124
O amor em silêncio 67 Os limites apropriados 126
Um vazio a preencher 67
A idealização do pai 68 6. O custo do incesto afetivo., 129
O destino sinistro 69 O dote e a divida 129
A mulher ferida 70 As necessidades essenciais /29
A jovem sem mãos 70 Fiz tudo para .lhe dar prazer... Eu ficava exausta
O pai incestuoso 73 para lhe dar prazer! 131
O desejo de incesto 76 O que os filhos infligem às mães 133
O incesto afetivo 77 Eu te amodeio! 134
O pai pudico 78 Santa mamãe, virgem e mártir 136
Filhas do silêncio. 81 Do menino ao homem: A chegada do esperma 137
As eternas adolescentes 81 Os "malditos homens" 139
As amazonas 84 O triunfo do espírito de seriedade 141
O feminino deseja desabrochar 87 O sentimento de culpa 141
_
Mãe-filha 88 O homem do garfo 141
Uma relação de amor e ódio 88 A sombra da mãe 143
O ausente é idealizado 90 A ferida narcisica 144
Ela e ele na sala 92 Suicida aos oito anos 145
Mãe superprotetora e filho dependente 147 . Ele .193
A violência materna 151 Ela 193-
- • . . .
O .p
. 'Oder'da'.serpente 15.2 Fuja de. mi_m e- eu seguirei você! Siga-me e eu fugirei de você! 194
O que provoca o medo é uma dimensão de nós mesmos 154 O medo do compromisso 195
O peso dos suspiros 155 Nunca faça sua parceira chorar 195
O desprezo pelas mulheres 198
7. O drama do Menino bonzinho 158 A sexualidade obrigatória 199
Santa Sangre, o Santo Sangue 158 "Desculpe-me, mas fico excitado quando a acaricio!" 200
O coração empoeirado de um menino bonzinho 160 A vagina com delires 200
As portas do inferno 163 O botão do pânico 202
O pecado contra si mesmo 164 O voyeur de olhos fechados 203
A dinâmica psicológica 'do menino bonzinho 167 O triunfo do espírito de seriedade (bis) 204
Você não está separado! Você não é livre! 168 De que maneira os homens tentam superar
A cólera do menino bonzinho 169 o medo das mulheres? 206
Entre dois inales, o pior 171 A necessidade de romantismo 207
Por que motivo as mulheres atribuem tanta
8. Reflexões sobre o papel da mãe 174 importância à vida a dois? 207.
O divórcio mãe-filho 174 Fale-me de amor 208
Por que é importante a separação entre mãe e filho? 174 Essa tinta é meu sangue 209
• O divórcio mãe-.filho: Um sacrifício 175 O sentido do romantismo 210
Quando os filhos ficam incrustados 177 A prática do erro sistemático 211
. Quando os filhos vão embora 179 - O jogo da adivinhação 212
Mãe monoparental: A quadratura do círculo 180 A dificuldade de se comunicar com clareza 213
Pai ausente, filho carente... ? 180 A guerra dos sexos 215
• Afastar-se de tempos em 'tempos 181 A infantilização do homem 215
Deixar o filho assemelhar-se ao pai 1 82 O assassinato do patriarca 216
Prestar atenção à maneira como se fala do pai 183 A força das mulheres, a fragilidade dos homens 218
Antes de tudo, pensar no bem:estar dos filhos 184 A ascensão das amazonas 220
Fazer as coisas à própria maneira 184 O exagero das deusas 222
Ter confiança nos filhos. 185 Cada coração chegará ao amor 223
A reconciliação 186 A vida é perfeita • 224

9. O amor no sofrimento 189 10.0 amor na alegria 226


Ela e Ele em maus lençóis 189 O trabalho do amor 226
O reino das repetições 189 'Apaixonar-se" não é estabelecer uma relação 226
Viver a dois não é uma obrigação 190 A fase narcísica do amor 227
Ela 190 O amor como combate 228
Ele 191 O amor com A maiúsculo 229
Ela 191 A respiração do casal 23/
Ele 192 Será tolerável viver sem controlar alguém? 232
Ela 192 A infidelidade 234
Amarmo-nos com amizade 235
Quanto. pior, Melhor! 236
O contrato de casamento psicológico 238
Uma relação libertadora repousa em uma escolha consciente 238
O casal dos sonhos 239
Introdução
A importância do jogo e da sensualidade 239
A crise é necessária 241

11. A intimidade conosco mesmos 243


A intimidade bem ordenada começa por nós mesmos 243
O sentido das dificuldades 245
O espelho quebrado 247
Comunicar-se para viver 248
O confronto com a sombra 251 Diante de uma xícara de café...
A paz da alma e a alegria do coração 254
"Diante de uma xícara de café, eu te disse que te amo..." Eis a letra
O caminho é a alegria 255
que cantarolava a primeira garota de quem roubei um beijo, oh! um
Conclusão 258 beijinho bem pequeno, em um parque perto da casa de minha infância.
Eu devia ter quatorze anos, e meu coração disparou. A canção, o desejo,
O 'amor não é um relacionamento, mas um estado 1 258
o aroma da floresta úmida, o sorriso da bem-amada, tudo estava fundido
Somos livres para nos destruir 159
em total perfeição. Com Jacques •Brel, ao cantar seu primeiro amor, eu
O melhor meio de ser feliz 260
poderia ter entoado: "Eu voava, juro por Deus. Juro que estava voando."
Epílogo 261 Eu era jovem: Minhas asas estavam em via de se abrir. Não vislumbra-
O Autor 262 va qualquer obstáculo. O ímpeto de meu:coração lançava-me noS braços
das jovens em que, como o poeta.Aragon,. eu pensava ,achar um país.
Bibliografia 263
Tudo era tão fácil. Eu acreditava mie me bastaria encontrar a boa parcei-
ra para ganhar a partida. Mas, foi o amor que me pregou uma peça.
Atualmente, tenho quarenta e cinco anos, moro sozinho e não tenho fi-
lhos. Tenho uma companheira, mas não compartilhamos o mesmo apar-
tamento.*
Eu pensava que o amor iria facilitar minha vida, mas acabou por
complica-Ia infinitamente. Conheci várias mulheres, cheguei mesmo a
aventurar-me a viver junto com algumas delas. As parceiras que verdadei-
ramente amei tiveram medo de mim, e acabei fugindo daquelas que ver-
dadeiramente me amavam. Meu fervor ingênuo Veio quebrar-se na difi-
culdade .do cotidiano, nos ciúmes e nas traições. Se passei muitos anos
pretendendo amar a qualquer preço, também fechei o coração, no míni-
mo, durante um decênio. Jurei ser fiel por amor, mas também jurei ser
infiel por despeito e para deixar de sofrer.


O original deste livro foi publicado em 1997. (N.T.) 17
Se vislumbrei em mim o amante luminoso e arrebatado, o apaixona- do as fronteiras entre dois estados independentes foram mal definidas
do generoso e afável, o homem comprometido e responsável, também ou, com o tempo, acabaram por ser confundidas. No lugar onde foram
encontrei aquele que tinha um ajuste de contas a fazer com as mulheres. esiabelecidos e são respeitados limites bem definidos, não existe confu:..
Tornei-me o vingador, o agressivo, o possessivo, e até mesmo o violento, são, nem conflito.
o fugitivo e o mentiroso. Outros tantos personagens que eu não conhecia Ora, no contexto de uma sociedade em plena reviravolta no tocante à
e que, muitas vezes, teria preferido não conhecer. E no entanto, eles es- definição dos papéis e limites, a tarefa não é das menores. Tal estado de
tão aí, obrigam-me agora a nuançar cada um de meus juizos de valor a incerteza favorece a propagação do conflito em todas as frentes de com-
respeito dos outros, porque sei que sou capaz do melhor e do pior. bate. Particularmente, no terreno da família e do casal. Com efeito, ao ter
No decorrer do tempo, dei-me conta de que amava para me livrar de a ousadia de colocar em questão os papéis definidos, de antemão, pela
um vazio que sentia em mim. Oferecia meu coração a qualquer pessoa sociedade patriarcal, ao ter a ousadia de questionar o que é um pai, uma
porque não sabia o que fazer com ele. Desejava que uma mulher se res- mãe, um homem, uma mulher, um heterossexual ou um homossexual, se
ponsabilizasse por mim para me livrar desse encargo. Para compreender poderia apostar que um conflito aberto iria acabar por atingir o campo
melhor o que se passava, tive de mergulhar em minha infância, a fim de das relações afetivas entre homens e mulheres.
identificar a origem das minhas dificuldades. Explorei o passado de mi- De certa maneira, poderíamos dizer que tínhamos necessidade abso-
nhas companheiras e escutei o de meus pacientes. luta dessa guerra para romper com as dinâmicas ultrapassadas que, ante-
Aos poucos, compreendi que o amor é essa imensa força de coesão cipadamente, definiam nossas vidas. O conflito leva os seres a um ponto
que, de forma confusa, nos lança uns sobre os outros, através do desejo e de ebulição. Para chegar a dissociar certos amalgamas e criar novas molé-
do sofrimento. Agora sei que é unia forma não só de nos encontrarmos, culas, a natureza tem necessidade de calor intenso, Isso é verdadeiro no
mas também de encontrarmos outra pessoa. O enfrentamento dos obstá- plano físico e no psicológico. As novas moléculas de que estou falando
culos é um meio de nos revelarmos a nós mesmos. Ferindo-nos, abrindo- são moléculas de ajuda mútua e de igualdade entre homens e mulheres.
nos, por assim dizer, modelando-nos, ele está simplesmente nos prepa- Mas, ao mesmo tempo, é claro que cada crise representa um risco.
rando para acolhê-lo em todo o seu esplendor, tornando-nos cada vez Aliás, entre os chineses,-a.palavra crise tem o duplo sentido de oportu-
mais humildes e aptos para a felicidade. " nidade e de perigo. A Crise oferece, por assini dizer, uma possibilidade
Atualmente, meu coração volta a cantar com fervor. A viagem inte- perigosa de evolução. Para nós, isso consistiria em aproveitar a abertu-
rior que fiz tranqüilizou-me, infundiu-me serenidade. O amor tornou-se ra para criar unia nova intimidade entre homens e mulheres; e o perigo .
para mim uni estado interior que não depende de unia companheira, seria ficarmos embrutecidos nas incessantes acusações de um sexo con-
mas sei também que tem de ser inventado sempre, todos os dias, e que tra o outro.
não existe tarefa maismobre e mais urgente do que a de renovar o amor
humano. A felicidade a inventar
Quando dou uma conferência sobre a intimidade, quase sempre co-,
O amor em guerra.
meço perguntando às pessoas se conhecem, pelo menos, um casal feliz. A
A guerra foi declarada no país do amor. Como é que surgem tantos maioria levanta a mão. Se continuo até três casais felizes, só consigo con-
conflitos em nossas vidas no momento em que todos, homens e mulhe- tar unia dezena de mãos levantadas em um grupo de quinhentas pessoas.
res, andamos à procura da felicidade? Como é que estamos precisamente Acima de cinco casais, não há qualquer mão erguida.
em guerra contra aqueles e aquelas que mais amamos? Será que essa guerra Surpreendentes estatísticas! Acabamos por nos perguntar se o casal
serve para alguma coisa? Quem a teria declarado? Que podemos ganhar não é uma quimera, até mesmo, uma forma de masoquismo. Quase todo
com isso? E, sobretudo, como será-possível acabar com ela? mundo tenta formar um, na expectativa de encontrar nele urna felicidade
Na verdade, todas as guerras do mundo, seja qual for o pretexto in- que não cessa de escapar. Como a cenoura dependurada na frente do asno,
vocado, são guerras de território. A guerra é declarada quando dois paí- a idéia de uma felicidade possível a dois aguça nosso apetite, motiva-nos,
IS ses pretendem exercer a soberania sobre a mesma porção de terra, quan- faz-nos avançar, mas será que, um dia, podemos esperar alcançá-la? • 19
Tenho tendência a pensar, com a psicanalista ,lan Bauer, que a intimi- quanto meu livro Père manquant, fils manqué...2 tinha 'acabado por deixá-
dade entre homens e mulheres nunca chegou a existir verdadeiramente.' las inquietas, particularmente, em ,situações monoparefitalidacle:i: - • •
No máximo, teria sido conseguida por alguns casais isolados. Não é como Na terceira parte, abordamos as relações'arnorosas. O Capítulo 9 'Mia-
se a felicidade estivesse atrás de nós, conto se as gerações precedentes nos das dificuldades do casal quando este se enreda nas repetições. Diz-
tivessem sido bem-sucedidas em situações em que, miseravelmente, nos nos o motivo pelo qual os homens sofrem do que poderíamos chamar,
sentimos perdidos. Não! A felicidade do casal, a intimidade entre homem com um tiquinho de humor, de "síndrome da corda no pescoço", e as
e Mulher estão à nossa frente. Devem ser inventadas. Não estamos em via mulheres da "síndrome do laço". O capítulo seguinte fala do atual desa-
de fazer uma constatação de fracasso, mas de criar algo de novo. Estamos fio.da intimidade e oferece elementos de resposta para nos ajudar a sair
diante de uma nova aprendizagem. da crise. Formula questões' e propõe atitudes que poderão facilitar a cria-
ção de uma vida a dois viável.
À conquista. da intimidade , Por último, a obra termina com a questão da "intimidade conosco
mesmos", porque o novo desafio apresentado pelo contexto contempo-
Este texto assume o aspecto de uma reflexão sobre o desafio que râneo parece-me ser o seguinte: de que maneira poderá haver intimidade
apresenta a intimidade entre homens e mulheres no alvorecer do terceiro com nosso parceiro se não houver intimidade conosco mesmos? A rela-
Milênio. Tento refletir sobre as dificuldades do percurso. Meu objetivo ção amorosa aparece ai não só como uma magnífica ocasião de trabalho
não é, de modo algum, propor a fórmula mágica da felicidade conjugal: conosco mesmos, mas igualmente como uma ponte para uma comunhão
Além de não a possuir, tenho a certeza de que ela não existe. Em vez de com o outro e com o universo:
me esforçar 'em inventar sistemas que tornariam a aventura mais fácil, Neste livro, falo sobretudo dos 'casais heterossexuais, mas tenho a
procuro colocar em evidência o sentido da S dificuldades. Estou empe- ousadia de esperar que os casais homossexuais -encontrem nele seu qui-
nhado em tornar visíveis certos condicionamentos, com 'a esperança de nhão, porque a vida a dois apresenta surpreendentes similaridades, pou-
que seu reconhecimento permita superá-los. co importando a orientação sexual. Do mesmo modo, os clássicos eixos
À guisa de preliminar, o livro coloca a crise que abala os casais atuais pai-filha e mãe-filho explorados por mim são relativos. É excusado dizer
no contexto de uma desestabilizaçãoda Sociedade patriarcal, e em segui- que, no jogo do amor, o homem nem sempre escolhe uma parceira que se
da, procedemos ao esclarecimento de algumas noções teóricas que utili- assemelha à sua mãe, na medida em que ela pode muito bem apresentar
zaremos ao longo de nossa exposição, tais como a formação do ego e dos os traços característicos do pai.
complexos parentais, da auto-estima e dos arquétipos do animus e da
anima. • A reflexão psicológica não é um dogma • •
Depois, no que poderíamos chamar de primeira e segunda parte do
livro, nos debruçaremos sobre as relações pai-filha e mãe-filho, porque Não pretendo possuir, como se diz, a verdade absoluta.-Para mim, a
elas condicionam diretamente as dinâmicas entre os sexos. Com efeito, verdade é o que funciona na realidade de uma vida. É sempre relativa ao
as carências do passado explicam, em grande parte, os impasses do pre- contexto global. Os índios pueblos consideravam-se filhos e filhas do
sente. Nesses capítulos, mostramos como a negligência do pai produz "a deus Sol, a quem dedicavam um culto cotidiano. Acreditavam que se ne-
mulher que ama demais" e como o excesso de solicitude materna produz gligenciassem suas práticas religiosas o sol se recusaria a aparecer. Essa
"o homem que tem medo de amar". Falamos, igualmente, do conflito crença dava um sentido à sua existência e permitia-lhes viver em estreita
interior que deve ser assumido pelo "menino bonzinho" e pela "menina comunhão com a natureza. Se tal crença lhes fosse retirada, eles ficariam
boazinha" na tentativa de reencontrarem a capacidade de amar e o senti- doentes. Trata-se de uma verdade psicológica que, no contexto da época,
do da iniciativa, respectivamente. Faço, também, algumas reflexões so- se
_ adaptava com perfeição à sua realidade; no entanto, hoje, dificilmente
bre o papel da mãe, porque, em várias ocasiões, cheguei a constatar o teria sido aceita. Cada ser tem necessidade de tal princípio ou mito dire-

1. A psicanalista Jan Bauer é, autora de um excelente livro sobre o amor: Impossible Love, Why 2. Guy Corneau. Pese manquant, fila manqué. Que sont les hommes devenus? Montreal: Éditions
?0 21
the Heart Muss Go Wrong. Danas, Texas: Spring Publications, 1993. de l'Homme, 1989.
tor para dar um sentido à vida. O importante não é que essa idéia ou
representação do mundo seja objetiva ou verificável, mas que, em cada
dia, promova o entusiasmo necessário para continuar a aVançSr nõ cami-
nho da vida.
É, portanto, uma verdade como esta que eu procuro, uma verdade 1
psicológica que nos permitia observar a dinâmica dos casais sob um novo
prisma, uma verdade que confira um sentido às nossas dificuldades e nos
dê o gosto de continuar a viver e a amar. Portanto, peço-lhes para utiliza-
O Amor em Guerra
rem este livro como se fosse de um- instrumento de pesquisa. Utilizem o
que lhes disser respeito, o que fizer eco em vocês, e deixem o resto.

O amor em paz

Não conheço o caminho que leva, com toda a segurança, para fora do
campo de batalha. Sei simplesmente, por experiência, que o esforço assí- Um homem e uma mulher no sofá
duo em nos voltarmos para o interior, em refletir sobre o que se passa em
nós, em examinar os movimentos de nossa vida sem os julgar e em tentar- Ela
mos nos reconciliar conosco mesmos, com nossos pais e com todos os Ele acaba de voltar do trabalho e de sentar-se no sofá da sala, cansado
que compartilham nossa, vida torna-se fonte de serenidade e dá lugar a mas contente. Boceja e estira-se depois de ter tirado os sapatos. Esta noite
grandes alegrias. Faz com que o sofrimento e os dramas tenham muito tem muitas coisas para contar. Continua falando mesmo enquanto você
menos influência sobre nós e com que a vida seja muito mais agradável de vai à cozinha buscar copos. Está usando a camisa que tanto lhe agrada;
ser vivida. aliás, foi escolhida por você. Ela lhe dá um pouco o aspecto de travesso,
. temos de proceder a uma grande limpeza,
. Para alcançar tal liberdade, um aspecto que vem atenuar toda a seriedade que ele atribui à vida. Você
travar uma grande guerra de anior, conseguir uma grande conquista. Tra- gosta desses momentos em que, cansado, ele se entrega, de forma mais
ta-se da batalha contra a confusão para ganharmos o direito de sermos descontraída, ao jogo da conversação. O que relata não é particular-
nós mesmos. Entre o Diabo e o bom Deus, entre espiritualismo e mate- mente interessante, mas, pelo menos, está falando com você. Está em
rialismo, entre valores femininos e masculinos, desenha-se um caminho relação...
que permite andar com os pés bem em contato com a terra. Enraizado na Ele continua falando e você se aproxima do sofá. Sente vontade de
plenitude dos sentidos, na beatitude do coração e na paz de espírito, um beijá-lo desse jeito, por nada, para celebrar o momento. Pelo menos, des-
ser pode conhecer a alegria de participar da grande comunidade do mun- ta vez, você vai tomar a iniciativa das carícias, em vez de ser sempre ele a
do. Não nascemos para sermos animais de sexo, apaixonados sem espe- fazê-lo; aliás, é disso que ele se queixa amargamente. Portanto, você se
rança ou ascetas afastados do mundo. Estamos convidados a viver a dig- aproxima do sofá, lasciva e sensual.
nidade de seres humanos.
Pelo canto do olho, ele a observa chegar e sorri, pega os copos e
Meu desejo é que vocês encontrem neste 'texto repleto de prantos e coloca-os em cima da mesa. Responde ao seu primeiro beijo com um
iluminações, de gritos de dor e gargalhadas de alegria, o espírito de amor prazer evidente, mas quanto maior é sua insistência, mais deteriorada vai
e paz que lhe serviu de guia. Espero que, avançando no caminho da vida, ficando a situação. Você adivinha um verdadeiro mal-estar. Descobre uma
vocês possam beber nele como em uma fonte refrescante.
certa rigidez em todo o corpo, uma espécie de recusa de comprometi-
mento. Ele continua sorrindo, mas o rosto está congelado. Deixou de
falar e retoma o copo de vinho.
22
Visivelmente, está pouco à vontade, e você não está compreendendo
23
nada do que se passa. Ou antes compreende, mas não está gostando do
que começa a compreender. De fato, quando você toma a iniciativa, a Ela
coisa não vai muito longe. Nunca é o bom momento. Até pode ocorrer -
Olha como ele está procurando sfredé novo! Mas:cies:ta vez; você
que de use como pretexto uma dor de cabeça! Dir-se-ia um menino que
não vai correr atrás dele. Está farta. Farta dessa indiferença do homem.
está com medo da mãe. Mas você não é sua mãe, justamente, você não
Farta de representar o papel de moça gentil. Farta de lhe preparar umas
tem nada a ver com sua mãe. Aliás, você acaba sentindo um único dese-
comidinhas gostosas e de representar suas fantasias na cama em troca de
jo: devolver-lhe seu queridinho em uma embalagem bem caprichada
uma afeição que mina se manifesta. Já explodindo de cólera, você pre-
com uma etiqueta na qual seria possível ler o seguinte: Mercadoria com
defeito. fere calar-se, porque o que tem a dizer parece-lhe ser muito pesado,
malvado demais. Há cinco minutos você desejava beijá-lo, mas agora
pretende ajustar as contas. Neste momento, ao menos, ele podia sair do
Ele banheiro...
Ela voltou do trabalho antes de você e seu perfume já está por toda
parte no apartamento. Seu perfume e a luz do sol, que nessa hora do dia Ele
entra pelas janelas completamente abertas. Ela lhe Pergunta se você dese-
ja tomar Vinho e você responde: por que não? Dá-lhe 'prazer quando ela No banheiro, você se recrimina pela atitude que tomou. Afinal de
contas, ela fez tudo isso para lhe dar prazer. Se, desta vez, você se deixas-
Pie serve alguma coisa, quando está de bom humor e bastante atenciosa.
se levar pela iniciativa dela... Se acabasse por lhe dar a afeição que ela
Nesses momentos, você se sente. mimado, privilegiado, e acha que-a vida
é bela. deseja... Isso colocaria um ponto final nessa gu.errinha tine vocês estão
travando há alguns dias. Então, você volta à sala repleto de boas inten-
Enquanto ela vai à cozinha, você lhe diz uma série de coisas sem im-
ções.
portância para provocar-lhe o sorriso, porque sabe que ela gosta de ouvir
Você a reencontra distante, fria, irritante, enfiada na outra extremi-
sua voz. Você está falando e, de repente; sente vontade de fazer amor. Ah,
dade do sofá. Suas boas intenções desaparecem logo. "Se ela pretende a
se ela desse o primeiro passo, se tomasse' a- iniciativa, coisa que pratica-
guerra, é o que vai ter"; pensa você; "mas não me deixarei manipular!"
mente nunca faz! Você acabaria por comê-li com toda a vontade! Mas eis
Aliás, desde que ela'começoir a terapia e á afirmar-se, você tem a ir-Ores-
justamente que ela se coloca à sua frente, oferecendo-se, qual miragem
:são de que os problemas só têm aumentando. Ela não deixa passar nada.
que se tornou realidade. No entanto, algo não está dando certo... É a
No momento em que inicia uma das suas habituais tiradas sobre a
intensidade que ela manifesta... Tanto ardor o incomoda. É como se a
vida de casal e sobre o comprometimento amoroso, você já atingiu um
vida dela estivesse dependente disso. Como se a necessidade de afeição
elevado grau de irritação. Você toma um gole de vinho para se acalmar,
fosse tão grande que um homem nunca conseguiria satisfazê-la.
mas sente gosto de vinagre! De vinagre, é claro, de vinagre! EM um se-
Ela coloca ó copo em cima da mesa e gruda em você, enchendo-o de
gundo, você fica com a impressão de ter captado o cerne do problema ' .
beijos. Agora, ela deseja ouvido dizer: eu te amo. Ah, não! Vai recomeçar
a cena habitual. Ela deseja que você lhe diga eu te amo sem parar. Você Trata-se de uma chata!* Tudo o que da toca tem gosto de vinagre. Una
vez mais, a noite está estragada. Você só rem uma idéia na cabeça: ir
deveria gravar essa declaração em cassete; deste modo, ela poderia escuta-
embora. Vai interrompê-la para lhe dizer isso mesmo, mas ela lhe retira
la durante todo o dia. A situação começa a irritado. De onde .vem essa
as palavras da boca: 'Aposto que, uma vez mais, você vai embora. Talvez
necessidade de afeição que é como um abismo tão grande, que você nem
você me ache perturbada demais,** mas não seria antes porque sou ma-
ousa aproximar-se dele com medo de soçobrar? "Não tive pai!" é, inevi-
tavelmente, sua resposta. Com franqueza! "Não tive pai!" Como se você çante?' Há uma diferença, meu querido! E depois, será que você pensa
tivesse tido um... verdadeiramente que as outras são diferentes de mim? Que acabará, fi-
nalmente, por encontrar a mulher ideal? Você já olhou para si mesmo?"
Após o quarto beijo, você retoma o copo. Espera que seu mal-estar
passe despercebido, mas não pode contar com a intuição dela. Si() lhe
resta derramar vinho no carpete. Não, em vez disso, você decide ir ao * No original, une pisse-vinaigre, literalmente: mija-vinagre. (N.T.)
24 ** No original, dérangée. (N.T.)
banheiro, a fim de ter um pouco de tempo para retomar fôlego. *** No original, dérangeante. (N.T.)
25
O peso de um sonho Os gestos de ambos denunciam 6-que esperam" um do outro, mas
- E eis que tudo recomeça! Desencadeia-se a:valsá-das cobranças e das acabam por ficar decepcionados,,Sesmo, asairp,, contjinuam„porjogo,-
acusações. ó 'tom 'vai aumentar. Seguem-se os golpes de efeito do gênero por malícia, para v'er até Onde o outro Vai chegar no 'luto de seu sonho.
bater as portas, ir embora e voltar. Haverá ainda alguns gritos, algumas Continuam por impotência. Quando estiverem fartos de tal manipula-
lágrimas, amargura de ambos os lados, arrependimentos, um beijinho e, ção, quando se tiverem pisoteado suficientemente, hão de separar-se,
se porventura for uma noite favorável, eles vão acabar fazendo amor! E enfastiados. Ela dirá que, uma vez mais, deixou-se levar. Por sua vez, Ele
alguns dias depois, vai começar tudo de novo.. dirá que, de novo, deixou-se cair na armadilha. E ambos sofrerão pelo
Sei que estão pensando que tais cenas só acontecem com vocês... La- fato de o relacionamento não ter funcionado. Não será verdade que so-
mento decepcioná-los, isso acontece por toda parte! É claro, vocês po- mente uma crise fundamental irá permitir a modificação dessa valsa dos
dem acrescentar seu toque pessoal. Às vezes, no sofá, trata-se de dois suspiros que, há muitos séculos, está funcionando perfeitamente?
homens, outras vezes, de duas mulheres. Quase sempre é ela que não
quer a aproximação do parceiro. Algumas vezes a cena chega à pancada-
ria... Mas, em geral, o cenário não varia muito, a tal ponto que, às vezes, A vida a dois tornou-se
temos a impressão de que as relações a dois seguem um programa estabe- um campo de batalha
lecido de antemão.
A desestabilização do patriarcado
Ela se acha pronta e procura Um homem capaz de se comprometer.-
Ela e Ele estão em crise, como um grande número de casais contem-
Deseja receber dEle o que o papai não pôde lhe dar. Mas o peso de tal
porâneos. No entanto, a guerra que travam começou muito tempo antes.
expectativa mete-lhe medo. Tanto mais que ele não tem qualquer idéia
Em grande parte, está enraizada na própria organização dó poder no seio
do que é a intimidade, seja com outrem ou consigo mesmo. Ele conhece
do que se convencionou chamar de patriarcado, ou seja, uma sociedade
o poder, a glória, a mecânica, as idéias. No que diz respeito aos sentimen-
em que predomina a lei do Pai e os valores masculinos.
tos, é outra coisa. Falta-lhe o elemento essencial da receita amorosa, ele-
Em tal contexto, pode-se dizer perfeitamente "que viver a dois é for-
mento que Ela pretende possuir. Deste modo, no terreno afetivo, ele se .
Mar um só... mas qual deles?" No casal tradicional, a paz doméstica re-
sente como um menos do que nada.
pousava, quase sempre, no sacrifício da mulher em benefício do cônjuge.
Quanto a Ele, sente-se culpado por não corresponder a um sonho que Os parceiros uniam-se para formar o casal do "homem", o que seguia os
há muito tempo ela deseja concretizar, e para a realização do qual ele é ditames da sociedade patriarcal. Era normal que a mulher negasse sua
• simplesmente inadequado. Ela é infeliz por não conseguir fazê-lo feliz; individualidade, ou seja, suas preferências, ambições e criatividade, para
no entanto, tem envidado muitos esforços para ajudá-lo a tornar-se o criar os filhos. Aliás, algumas fórmulas, tais como "Quem casa, quer casal",
príncipe encantado de quem está à espera. Ele se sente controlado, mani- ilustram bem a situação. A partir do momento em que um grande núme-
pulado, pressionado a ser o que não é. Sentia a mesma confusão diante ro de mulheres começou a recusar esse estado de fato, a vida conjugal
da mãe. Esta também desejava torná-lo seu principezinho. O mesmo so- submergiu necessariamente na crise porque não possuímos modelo histó-
nho, a mesma influência que Ela exerce sobre ele sem chegar a dar-se rico que nos inspire uma forma de viver a dois que, ao mesmo tempo,
conta disso. permita a cada um permanecer uma pessoa completa e autônoma.
O patriarcado é um sistema de idéias que modela as identidades psi-
' Ela não se dá conta do peso de seu sonho. Quanto a Ele, não se dá cológicas e sociais dos homens e das mulheres. E essa ideologia advoga a
conta do peso de suas exigências; não se dá conta do peso de suas negligên- submissão da mulher ao homem. Está baseada no seguinte preconceito: o
cias. Não se dá conta de que é sua maneira de lhe fazer pagar pelo sonho qüe-é. produzido e pensado pelos homens é mais importante do que o que
que ela tem a seu respeito. É com isso que a manipula, que a leva a fazer as mulheres fazem, pensam e sentem. Tal pressuposto teve como conse-
todo esse caminho até ele. É desta forma que isso se torna completamente qüência uma desvalorização do que é feminino, sentimental e doméstico.
_26 insuportável. Ela que espera e o segue. Enquanto Ele se cala e foge dela. Eis a razão pela qual a estrutura patriarcal foi colocada em questão quan- 27
do as mulheres começaram a afirmar que eram seres humanos integrais. co.e duro, que não comunica o que sente. De tal modo que um grande
Eis a razão'pela qual a guerra dos sexos foi travada e, ainda hoje, se trava: número. de .mulheres acredita que os. homens são incapazes de experi-
tanto dentro como fora dos lares. Aliás, essa luta resume-se a uma ques- mentar o mais ínfimo sentimento e que é nula sua competência em maté-
tão muito simples: quem é que serve e quem é servido? ria de organização familiar e de educação dos filhos. Tal postura
Aliás, poderíamos dizer com o sociólogo 'Edgar Morin que "as mu- corresponde ao oposto da idéia preconcebida, por parte dos -homens,
lheres são os agentes secretos da modernidade", porque o questionamento segundo a qual as mulheres não teriam capacidade para pensar.
do patriarcado e sua progressiva desestabilização acompanham as etapas Continuar a manter tais preconceitos equivaleria a perpetuar as desi-
da sua caminhada rumo à autonomia. Embora tivessem existido, em to- gualdãdes engendradas pela sociedade patriarcal. Não haverá lugar para
dos os tempos, mulheres que reivindicavam um estatuto de igualdade,' reconhecer que tanto os homens como as mulheres são solidários no âmago
só recentemente é que seu estatuto começou a sofrer importantes modifi- do mesmo drama histórico? Não haverá lugar para reconhecer que exis-
cações. A invenção da pílula contraceptiva, que libertou as mulheres da tem carrascos e vítimas dos dois lados? Para os dois sexos; não será uma
maternidade sistemática, assinala, sem contestação, um dos primeiros questão de superar a inconsciência de sua respectiva posição?
marcos da perda do poder dos homens em relação às companheiras. O Com efeito, é forçoso constatar que numerosas mulheres também . se
espaço de prazer e desejo que se abria a elas permitiu o questionamento deixam arrastar pelo aspecto da insensibilidade, tentando conquistar uma
dos papéis tradicionais. A segunda etapa dessa desestabilização está liga- posição no Mundo dos machos. Para cada um e cada uma, a terrível lei do
da à chegada maciça das Mulheres ao mercado de trabalho na década de mundo patriarcal permanece a mesma: se deseja sobreviver, livre-se de
1960. Elas começam, então, a existir no plano econômico e a libertar-se suas emoções e de seus sentimentos!
da dependência financeira. O que nos remete diretamente ao feminismo De fato, a vida a dois corre o risco de continuar sendo impossível
ativo e organizado da década de 1970,\ o qual reivindica o reconhecimen- enquanto essa mentalidade reinar nas nossas sociedades. A masculinida-
to da igualdade das mulheres relativamente aos homens, em todas as es- de patriarcal constrói-se a partir da amputação do coração e do corpo.
feras da atividade. Estabelece-se a partir da repressão da sensibilidade e da sensualidade, e a
Como era previsível, tal contestação marcou também profundamente partir do 'bloqueio 4a expressão espontânea' dos sentimentos. Como re-
o domínio das permutas amorosas. Assim, o casal moderno tornou-se o médio para todos os males, propõe a dominaçãO• de uma razão abstrata
campo de batalha por excelência, no qual se representa o questionamento que impõe sua lei a todos os outros registros do ser. É a participação de,
de nossa sociedade patriarcal simplesmente porque a vida a dois coloca todos nós, homens e mulheres, nesse mito coletivo que nos deixa cada
frente a -frente, na intensa fricção do cotidiano, duas culturas opostas, vez mais afastados da vida e de toda possibilidade de intimidade com o
que são 'a cultura masculina e a feminina. Por conseqüência, a sorte da mundo e com os seres que nos rodeiam. •
cultura dos patriarcas está em via de ser definida na intimidade das cozi- O patriarcado representa bem mais do que uma organização do po-
nhas e dos quartos de dormir, exatamente onde as relações são mais in- der social e político. Ele não existe de maneira abstrata e independente
formais do•que no trabalho ou na arena política. de nós; mas, antes de tudo, existe em nós. Por exemplo, geramos nossas
emoções e nossos pensamentos segundo seus diktms* quando, ininter-
ruptamente, fazemos passar o dever exterior à frente dos valores afetivos',
O patriarcado existe em cada um de nós
quando a razão leva a melhor em relação ao coração. O patriarcado lan-
Seria ilusório pensar em encontrar a solução para esse contencioso çou-nos em uma assustadora divisão que representa uma ferida íntima
pela separação entre bons e maus. Com efeito, essa história encobre uma para cada homem e para cada mulher. Eis a razão pela qual a criação de
outra que tem sido feita às custas da maioria dos homens. O patriarcado uma intimidade real entre homens e mulheres na igualdade e na comple-
não só oprimiu as mulheres, mas também alienou os. homens de uma mentaridade é o único remédio possível para nossos males.'
grande parte de si mesmos, impondo-lhes um protótipo de macho herói-
* Diktats: Exigência absoluta imposta pelo mais forte. (N.T.) -
1. Aqui, estou pensando na peça de teatro Lisistrata, na qual as mulheres decidem fazer greve de 2. Este parágrafo e o precedente inspiraram-se amplamente em um artigo que escrevi e intitulei "Le
défi de l'intimité". In Jacques Salomé (sob a direção de). Communiquer pour vivre. Paris: CLÉS e
sexo para conseguirem o reconhecimento de seus direitos. O autor grego deste texto, Aristófanes, 29
28 Albin Michel, 1996, pp. 65-66. ...
viveu de 445a 386 a.C.
Em direção a uma nova intimidade
- - São raros os.casos em que existiu a intimidade entre homens e mulhe- z..
res. Os casamentos por amor datam de uma época recente e é ainda há
menos tempo que as pessoas tentam permanecer juntas por amor. Colo- 2
cada à parte a circunstância de terem fundado uma família, nossos avós e
bisavós casaram-se, na maior parte das vezes, para sobreviverem do pon-
to de vista econômico, para melhorarem o status, ou ainda para preser- Nascer Homem ou Mulher
varem ou enriquecerem o patrimônio ancestral. Muitas vezes, permane-
ciam juntos para não serem expostos à irrisão pela Igreja e pelos vizi-
nhos. O dever de intimidade não fazia parte da lista dos deveres conju-
gais, nem entre eles e muito menos em relação aos filhos.
Para as gerações de outrora, os papéis de pai e mãe, de homem e
mulher, eram definidos de antemão. Eis a razão pela qual, um dia, tudo
haveria de explodir. Uma espécie de insensibiliade doentia gangrenava A noção de identidade
essa concepção tranqiiila da existência. Atualmente, colocamos tudo em
causa. Os papéis de mãe ou de pai já não nos parecem tão evidentes. A respiração fundamental do ser
Questionamo-nos até mesmo sobre o que é ser um homem ou uma mu-
Como será possível dois seres permanecerem unidos continuando sen-
lher, sobre o' que é a heterossexualidade ou a homossexualidade. A crise
do duas entidades separadas? Como será possível serem dois sem deixa-
é sem precedentes e oferece-nos uma oportunidade inigualável de evolu-
rem de estar unidos? Eis aí formulada a questão fundamentalmo que diz
ção. Nenhuma civilização teve a possibilidade de formular, em tão vasta
respeito não só à vida em casal, mas igualMente à vida psicológica do
escala, tais questões. O fenômeno torna nossa época tão excitante quão
perturbadora. Aliás, ao pessimismo que poderia esmagar-nos diante da indivíduo.
Para responder a essas questões que subtendem esta obra do princípio
hecatombe dos fracassos.amorosos, a jornalista e escritora Ariane Émond
ao fim, temos necessidade de alguns referenciais teóricos. Portanto, va- •
responde afirmando que a situação nunca foi tão favorável entre homens
mos tornar mais nítidas algumas noções básicas, tais como a formação do
e mulheres já que, pela primeira vez na história, eles começam a falar
ego e dos complexcis, as raízes da auto-estima, a identidade sexual e os
entre si fora dos papéis prescritos.'
O patriarcado engendrou uma construção das identidades masculina arquétipos do animus é da anima. Vamos começar falando da respiração
fundamental do ser, que serve de suporte à'identidade.
e feminina que torna virtualmente impossível a vida em casal, mas a nova
Com efeito, desde o início, nossa identidade apóia-se em uni duplo
aventura é provocante e estimulante. Agora que ambas as partes reivindi-
movimento: aproximarmo-nos dos outros para encontrar amor e tomar-
cam a respectiva autonomia, é certo que, no plano da intimidade, o novo
mos nossas distâncias para afirmar nossa diferença. No movimento de
desafio já não se coloca em termos de sacrifício de um pelo outro, mas
aproximação, procuramos uma filiação, ao passo que no movimento de
antes da seguinte forma: permanecer unidos, continuando a ser dois indi-
víduos integralmente., e ser dois sem deixar de estar unidos. afastamento, procuramos explorar nossa individualidade. A maneira como
integramos esse duplo movimento não é estranha ao que há de ocorrer,
mais tarde, na nossa vida amorosa. Ela chega mesmo a ser determinante,
porque tudo se desenrola entre esses dois pólos de fusão e de separação.
No começo da vida, tudo é Um para a criança. Ela vive em simbiose
total com o que a rodeia, exatamente como vivia no ventre da mãe. O
nascimento é o primeiro choque que vem estimular sua consciência indi-
vidual no grande tudo. Mas trata-se apenas de um primeiro balbucio,
30
3. Ariano Emond. Les Panes d'Ariane. Montréal: VLB Éditeur, 1994. nada está ainda cristalizado. Durante vários meses, o neném viverá com a 31
sensação de 'estar unido ao que o rodeia, sem sentimento de separação. ríamos colados sem consciência de nossa existência própria e indepen-
Experimenta, a mãe como uma parte de si mesmo ou percebe-se, vaga- dente. O broto não poderia-tornar-se folha. , -1- .-- 7.. ,.
mente, como uma extensão de seu seio.'
Com a repetição das pequenas frustrações, tais como a mamadeira A formação do ego 2
que não chega a tempo ou a falta de resposta aos gritos de aflição, o
À medida que o neném cresce, estabiliza-se tanto a consciência de si
neném acabará por tomar uma consciência cada vez maior de sua indivi-
como uma impressão de continuidade no tempo. Dir-se-á que, aos pou-
dualidade separada das individualidades dos outros. A partir de tais cho-
cos, o ego da criança cristaliza-se. Ela vê, então, seu reflexo no espelho e
ques que o levam a si mesmo, toma forma a consciência de sua existência.
se reconhece. Usufrui de sua própria presença como Narciso ao apaixo-
Aliás, não haveria vida subjetiva, ou seja, vida consciente de si mesma,
sem essa fricção entre o self e os outros. No entanto, devemos observar nar-se por sua imagem refletida pelas águas do lago. É a famosa fase do
que a frustração não é criadora da consciência de si, mas antes sua espelho, elaborada pelo psicanalista Jacqueà Lacan Daí em diante, o ego
reveladora: revela à criança 'que ela existe. ocupa o centro do campo da consciência e sua emergência permite o
verdadeiro nascimento psicológico do sujeito, a saber: um ser que pode
A consciência de si é, portanto, o produto de uma contração, de um
falar de sua experiência subjetiva e dizer eu, referindo-se a si mesmo.
ensimesmamento, como reação ao impacto do meio circundante. Mas tal
ensimesniamenio faz-se emn vista de'um 'desdobramento do ser no campo Esse fascínio pela própria imagem constitui o que a psicanálise desig-
universal. Com efeito, este indivíduo tem como função transformar suas na por narcisismo. A criança é naturalmente narcisista, ou seja, centrada
reações primárias em novas produções, qUè. por sua vez, serão lançadas em si mesma. Mas tal fase é absolutamente necessária, é a raiz do amor
no universo. É por isso que podemos falar do formidável potencial cria- por si, a respeito do qual falaremos detalhadamente mais. adiante.
Na seqüência, o ego da criança há de fortalecer-se, permitindo a emer-
dor do indivíduo humano. Assim, o circuito da vida fica estabelecido:
gência de sua personalidade de uma forma cada vez mais consciente. Fun-
ação, reação, transfO"rmação, ação. A criança transforma sua sensação de
dida tanto à mãe quanto ao pai, identificada com os valores dos pais, irá
fome em gritos, os quais agem sobre os pais, cuja reação de benevolência
se transforma em ação de dar de comer à criança. distinguir-se, progressivamente,.dos desejos deles e, em seguida, graças à
•A tensão entre o -self e o universo, entre o self e os outros, alimenta a escola, dos desejos dos familiares. Essa importante mudança lhe permiti-
vida psicológica do indivíduo. Ela determina . a respiração fundamental . rá difeiênciar-se da família, mas acabará por levá-la a banhar-se em ou-
tros valores em relação aos quais deverá, de novo, encontrar um
do ser. Para garantir o equilíbrio da pessoa, essa tensão deve ser aceita,
distanciamento a fim de prosseguir seu caminho. Mais tarde, o mesmo
porque permite o movimento e a mudança. Permite, sobretudo, que o
raciocínio será válido relativamente à identidade atribuída pelo exercício
indivíduo se torne ele mesmo, porque, observando as coisas de forma
de um ofício ou de urna profissão que, por sua Vez, ameaça fazer submer-
diferente, poderíamos também dizer que a identidade humana nasce no
gir o ser e obrigar a originalidade do ego a calar-5e. E, assim por diante,
caos. No •início, ela se encoutra grudada a outras identidades, submersa
em cada nova etapa... O indivíduo tenta adaptar-se e, ao mesmo tempo,
por elementos dos quais, gradualmente, deve diferenciar-se para tomar
forma. Se tal tensão inicial, que impele todos os seres a saírem do magma permanecer ele mesmo, por meio da rede da.s relações humanas.
original para se tornar eles mesmos, não estivesse presente, permanece- No entanto, é necessário indicar com precisão que o ego não poderia
desenvolver-se sem os outros, poderíamos até dizer sem o amor. Ao lon-
go da vida, nossa individualidade tem necessidade dos outros para se
reconhecer, se formar, se desenvolver, se identificar e se diferenciar, ou
1. Heinz Kohut. Le Soi. La psychanalyse des transferts narcissiques. Paris: Presses universitaires de seja, para afirmar diferenças e esposar similaridades.
France, col. "Le Fil rouge", 1974, pp. 9-45. Essa formulação faz parte de um conjunto de teorias
sobre o narcisismo primário da criança. Kohut abriu a porta para o que agora se chama de Ainda mais, nossas relações com os outros estimulam em nós deter-
movimento da psicologia do self (self-psychology). A partir do estudo das crianças amamentadas minadas emoções que devemos transformar e exteriorizar: Poderíamos
ao seio, ele estabeleceu uma psicologia que não se baseia nas fases de desenvolvimento (oral,
anal, genital) definidas por Freud, mas antes nas necessidades das crianças, tais como são obser-
vadas do ponto de vista clínico. O analista junguiano Mano Jacoby vislumbrou em tais teorias
uma ponte possível com a psicologia de Jung, tendo dedicado um livro a esse terna: Individuation 2.É o psicanalista Erich Neurnan quem fala da progressiva cristalização do ego, em um livro intitulado 33
32 The Origina and History of Consciousness. Nova York: RFC Hull, 1954. .....
.... and Narcissism, The Psychology of Self in Jung and Kohut. Londres: Routledge, 1990.
dizer que as relações com os outros — sejam elas negativas ou positivas Por ocasião da ultima etapa do processo de individuação, o paradoxo
— nos conservam vivos e estimulam nossa criatividade. OS outros reve- entre fusão e separação encontra solução .porque, estando o ego em rela-
lam-se mais do que uma comodidá'cle com a qual devemos frinsigit Per- ção com o nível mais profundo- do.ser, ou-seja; o elf,.deika de 'existir
mitem que verdadeiramente cheguemos a Ser nós mesmos. divisão entre si mesmo e os outros. Neste caso, o ego é o mais original-
mente possível ele próprio e, ao mesmo tempo, está em comunhão com
Tornarmo-nos nós mesmos tudo o que é. Trata-se aí do mistério de nossa identidade. Somos, simulta-
neamente, personalidade e comunidade, individualidade e universalida-
No entanto, constatamos que um grande número de pessoas inibe o de. Mas antes de chegarmos a esse ponto, temos de percorrer uni longo
desenvolvimento de sua personalidade e reprime sua originalidade com caminho. Permanecermos nós mesmos em companhia de alguém e
medo de desagradar aos outros. É claro que, para cada um de nós, está
sentirmo-nos acompanhados estando sozinhos, continuam sendo as bali-
presente constantemente a tentação de confinarmo-nos em determinada
zas paradoxais de nossa vida. Essa fricção inevitável entre individualida-
etapa e de interrompermos nosso progresso. Assim, certas pessoas nunca
de e universalidade é a própria essência da criatividade. Ela produz a
chegam a libertar-se de sua família ou de sua imagem profissional. Per-
energia vital do ser.
manecem membros anônimos de um clã, de um casal ou de uma profis-
são. Isso proporciona-lhes segurança, mas sua originalidade profunda é
atingida e, inevitavelmente, vai reivindicar o que lhe é devido sob forma A formação dos complexos
de doença psicológica ou física. Parece que a libertação dos complexos parentais é uma das tarefas
Elaborar nossa personalidade e tornarmo-nos nós mesmos é muito mais árduas do processo de individuação. São eles que, muitas vezes,
mais do que um dever psicológico; trata-se de uma necessidade funda- impedem os seres de afirmarem sua individualidade profunda. São eles,
mental que não conseguimos renegar sem pagar por ela uni preço eleva- igualmente, que nos criam obstáculos na vida amorosa. Portanto, revela-
do. Tanto mais que a satisfação dessa necessidade serve de fundamento - se importante consagiar algumas linhas à formação dos complexos eni
ao sentimento de estarmos realizados. Permite, igualmente, conhecer a geral e dos complexos. parentais, em particular.
sensação íntima de termos encontrado nosso lugar no universo e um sen-
Os complexos' consistem em uma interiorização das dinâmicas que
tido para a nossa vida. Essa necessidade inalienável de nos tornarmos nós durante a infância vivemos com as pessoas à nossa 'volta. Forjam-se, habi-
mesmos, essa verdadeira pulsão de autonomia, constitui o que o psicana- tualmente, em relação com acontecimentos marcados por forte carga
lista suíço Gari Gustav Jung designa de processo de individuação.' emotiva, e estabelecem por muito tempo seu nicho em nós. Tornam-se
Para Jung, o processo de individuação impele o ser a tornar-se, da
verdadeiras vozes interiores que nos impelem a repetir os mesmos esque-
forma mais fundamental possível, ele próprio, ao mesmo tempo que, ine-
mas básicos e podem confinar-nos em modelos de comportamento nega-
gavelmente, permanece unido ao que o rodeia. Tal processo percorre as
tivos.
seguintes etapas: antes de tudo, trata-se de tornar-se gradualmente inde-
No entanto, os complexos não são necessariamente negativos, como
pendente dos pais e"dos complexos que se foram formando em relação
pretende a voz popular quando, por exemplo, fala de complexo de infe-
- com eles; a segunda etapa vê o ser tornar-se cada vez mais competente
rioridade. São antes os blocos de construção de nosso psiquismo que, por
em suas relações com os outros; a terceira leva-o a tornar-se cada vez
sua vez, é constituído pelo conjunto de nossas reações mentais e senti-
mais o que sente ser; e a quarta etapa observa-o tornar-se mais inteiro, ou
mentais. Cada complexo tem, por assim dizer, sua própria atmosfera, é
seja, centrado em si próprio e, ao mesmo tempo, unificado com o pró-
colorido por uma tonalidade afetiva baseada em um acontecimento marca-
prio processo da vida em todos os seus aspectos.4

3. A propósito do processo de individuação e de suas diferentes etapas, ler a segunda parte do livro 5. Foi Jung que propôs a palavra complexo na seqüência de suas experiências sobre as associações
fundamental de Jung,Dialectique du Moi et de rinconscieni. Paris: Gallimard, col. "Folici/Essais", produzidas espontaneamente pelo cérebro. No decorrer da experimentação, ele começou a inte-
ns 46, 1973, pp. 155 ss. ressar-se por tudo o que vinha perturbar o tempo de resposta dos sujeitos submetidos a um teste
4. Essas etapas são mencionadas por Verena Kast em um artigo intitulado "Animus and Anima: de associação. Tempo de resposta prolongado, gargalhadas, constrangimento, recusa em respon-
Spiritual Growth and Separation", publicado na revista Harvest, Journal for Jungian Studies, der, todas essas atitudes tornaram-se para ele indicadores de que certos centros emotivos tinham
34 35
ris 39, C. G. Jung Analytical Psychology Club, Londres, 1993, p.7. sido tocados. Acabava de descobrir os complexos.
do pela emotividade. Essa emoção age Como um ímã que, na seqüência O complexo materno nãoj diz- respeito s'omente à mãe, mas é o resu-
dos acontecimentos, atrai a si os_ pensamentoS e os devaneios que têm o mo de rodas as nossas.experiências -relativas ao .que jé propriamente ma-
meSmo teor afetivo. Tais elementos estão Misturados uns aos outros no terno. Um 'grande número de acontecimentos que o constituem pode-
inconsciente e organizam-se em cadeias associativas. Isso levou Freud a riam ter sido vividos na relação com uma avó, uma tia ou, inclusive, uma
dizer que, a partir de qualquer representação mental, seria possível re- babá, se tais pessoas desempenharam um papel significativo em nossas
montar até o complexo que a teria engendrado. Aliás, ele construiu seu vidas. A mesma coisa é válida no caso do complexo paterno, que sintetiza
método de exploração das profundezas da psique com base nessa desco- toda nossa experiência em relação às figuras de pai.
berta e deu-lhe o nome de associação livre. Fiquei conhecendo, no consultório, uma mulher que tinha sido enviada
Para fazer uma idéia disso, concentrem-se na palavra nojo, deixem que pelos pais, várias vezes, para um outro lar, a fim de protegê-la dos efeitos
ela ressoe no interior e verão, aos poucos, remontar à tona os elementos e mortíferos da guerra. Ela veio consultar-me porque era assediada, conti-
experiências que, desde a infância, provocaram rejeição em vocês. Se levo nuamente, pelo temor de ser abandonada. Em vez de apoiá-la, suas vozes
em consideração essa palavra, vejo aparecer imediatamente em minha mente interiores julgavam-na com severidade. Tinha pouca confiança em si
representações de ratos e lixeiras. Penso em camundongos e cobras que mesma e sentia-se perseguida. Seus complexos parentais tinham um teor
infestavam uma casa que, há alguns anos, eu tinha alugado no campo. particularmente negativo, levando-a a pensar que não valia nada e que,
Penso em amigos de infância que comiam vermes etc. Podem fazer o em seu caso, era inútil tentar o que quer que fosse para se livrar de tal
mesmo exercício com apalavra alegria ou qualquer outro termo. situação. Mas seus verdadeiros pais haviam tornado uma atitude adequa-
Neste caso, vocês tomarão cons. ciência de que certas palavras são mais da às. circunstâncias. Mas as experiências de abandono em tenra idade,
sobrecarregadas de afetivádade do que outras, que elas provocam um no momento em que a criança é de tal modo dependente do olhar dos
número maior de emoções—por exemplo, cano ou buraco. É porque se pais para viver, tinham deixado nela uma marca difícil de apagar.
referem a experiências com as quais vocês recusam sonhar ou nas quais À semelhança de todos os outros, os complexos relacionados com os
não desejam pensar. Essa tensão é o sinal do que, em psicanálise, se pais podem ser positivos ou negativos. Uma infância sem grandes inci-
convencionou designar por resistência, porque o ego não gosta de sonhar
dentes, na qual um ser sentiu-se acolhido e amado engendrará complexos
com todas essas coisas desagradáveis (ou agradáveis demais). Pelo contrá- parentais positivos. Estes hão de apoiar a afirmação do ego e hão de dar
rio, gosta de ter um belo terreno, bem limpo, em volta de casa. Defende-
ao indivíduo a confiança necessária para avançar na vida. Como permitem
se, portanto, de certos pensamentos e experiências e reprime tudo isso no 14
um desenvolvimento geral harmonioso, nunca .serão objeto de uma
inconsciente. Foi o que valeu aos complexos a má reputação, porque não
psicoterapia. Mesmo se a pessoa conheceu experiências negativas com as
desejamos ter de enfrentar alguns deles. De fato, quando são positivos,
figuras parentais de Sua infância, tal situação poderá ser invertida, 'em par-
nem chegamos a dar-nos conta de sua presença. Eles contribuem simples-
te, se ela tiver a sorte de entrar em contato com figuras parentais positivas.
mente para a harmonia geral de nossa vida e desempenham o papel de
Neste caso, é importante lembrar que os complexos não são coisas
intermediários entre o interior e o exterior.
mortas. O psiquismo não é um museu, mas tem a força de um oceano que
incessantemente mistura seus conteúdos. Os cOmplexos são os peixes que
Os complexos parentais aí se encontram: às vezes, são amáveis, outras vezes, aterrorizantes. Por
Essas observações são válidas também para o que diz respeito à for- serem vivos, eles permitem a evolução pessoal. Podem sofrer modifica-
mação dos complexos parentais. O complexo paterno e o complexo ma- ções; além disso, a relação consciente com eles lhes faz perdér sua
terno fazem parte dos complexos mais poderosos de nossa psique. Têm, desconcertante autonomia.
igualmente, sua tonalidade afetiva particular que depende da qualidade
— agradável, adequada ou desastrosa — de nossa experiência com o pai O ego também é um complexo
ou a mãe. Constituem o resumo da relação com nossos pais. No entanto,
é importante compreender que eles nos pertencem com exclusividade, Vocês ficarão, talvez, surpreendidos ao tomarem conhecimento de
constituem nossa memória da relação com os pais. Não dizem nada de que, para a psicanálise e para a psicologia, o ego é também um complexo.
36 Ele representa nossa personalidade consciente, a maneira como nós nos 37
objetivo sobre eles.
conhecemos. A emoção central que o constitui é precisamente essa im- Projetamos aspectos de nós mesmos sobre os outros
pressão de identidade e de duração no tempo. Ele tem à sua disposição Eni-gcral, os complexos são inconscientes e, muitas vezes, vão perma-
uma certa. dose de energia que pode utilizar Como lhe aprouver por inter- necer como. tais porque os. projetamos. para fora de nós. A projeção7 faz
médio da vontade. parte dos mecanismos de defesa que o ego consciente utiliza para se pro-
Se o ego ocupa uma posição central e define a personalidade cons- teger de certos afetos que ameaçam perturbá-lo se emergirem do incons-
ciente, pode-se pensar nos outros complexos como se fossem subper- ciente. Ele desembaraça-se dessas dimensões de sombra,8 quase sempre
sonalidades com as quais ele mantém um vínculo mais ou menos estreito. reprimidas, atribuindo-as, por assim dizer, a outras pessoas. Projeta esses
Cada um desses atter ego possui sua própria memória e uma certa dose de aspectos sobre elas como balas. De tal modo que acabamos por acusar os
autonomia. Isso é bem visível entre as pessoas que sofrem da síndrome de outros pelas taras que são simplesmente inconscientes em nós. A irritação
personalidades múltiplas ou de esquizofrenia. Fragmentos inteiros de cará- é, em geral, o sinal de que um aspecto de nós foi projetado sobre os
ter relativamente estruturados fazem irrupção, de repente, no campo outros. Eis a razão pela qual são sempre os outros que estão enganados e
da consciência e vêm ocupar a posição do ego habitual. Então, a pessoa são portadores de todos os defeitos do mundo.
muda completamente de personalidade. Ela não diz: "Esta manhã, sin- Vemos imediatamente como o mecanismo funciona com toda a per-
to-me como Júlio César!", mas declara: "Ensou Júlio César!", e acredi- feição nas relações amorosas. Ainda mais quando é estimulado pela fric-
ta nisso. •
ção intensa do cotidiano. Vemos, também, como a vida a dois pode tor-
Se o ego não fosse um complexo como os outros elementos mais in- nar-se o espaço de um aturado trabalho conosco mesmos a partir do mo-
conscientes da personalidade, tais reviravoltas não seriam possíveis. Aliás, mento em que aceitamos considerar que tudo o que nós irrita no outro
se alguém nos irritar ao ponto de colocar-nos realmente fora de nós, ao pode ser um aspecto desconhecido de nós mesmos. Esse movimento de
ponto de levar-nos a perder as estribeiras, isto é, fora de nosso ego habi- retirada das projeções permite compreender que o que vivemos exterior-
tual, verificaremoS que não hà qualquer necessidade de sermos esqui- mente reflete uma dinâmica interior orquestrada pelos complexos. As-
zofrênicos para descobrirmos em nós mesmos uma personalidade total- sim, o processo de individuação exige um constante trabalho de
mente diferente -e uma energia insuspeita! • conscientização das forças ativas do inconsciente.
Para Jung, á formação do ego e dos complexos desvela as estruturas
inerentes da psique. A essas estruturas impessoais comuns a toda a huma-
nidade, ele deu o nome de arquétipos.6 Isso significa que a psique huma-
Amarmo-nos a nós mesmos
na tem tendência a formar-se sempre do mesmo modo em todos os seres
e em todas as culturas. Por exemplo, o arquétipo da mãe impele a criança O amor-próprio é um fator de equilíbrio psicológico
a desenvolver um complexo materno, como se ela estivesse programada
de antemão para reconhecer em seu entorno imediato o que é da ordem Agora, exploremos um dos pólos de nossa identidade, a saber: o amor
do materno. Em suma, o arquétipo é uma predisposição que é ativada, por nós mesmos. Uma dimensão fundamental. de nossa identidade e
humanizada e personalizada em função da experiência concreta. No en- uma chave de seu desenvolvimento residem rio amor que temos por nós.
tanto, o complexo que se forma como reação à vivência pessoal atualiza
apenas uma parte do campo arquetípico. No caso do arquétipo da mãe,
por exemplo, ele contém os opostos que vão da mãe terrível e devoradora 7. Para um esclarecimento a respeito das noções clássicas da psicanálise, tais como projeção,
recalcamento, resistência, identidade, ego, complexos, consultar a excelente obra de referência de
à mãe acolhedora e benevolente. Aliás, isso é que permite a esperança
J. Laplanche e J.-B. Pontalis. i.e Vocabulaire de Ia psychanalyse. Paris: Presses Universitaires de
terapêutica; em suma, trata-sede despertar' a parte adormecida do arqué- France, 1976.
tipo. 8. A sombra é um arquétipo universal que dá conta da propensão de cada una em participar ao que
se convencionou designar por mal. No plano pessoal, trata-se do irmãozinho_obscuro que carre-
gamos em nós, mas que não desejamos que seja visto pelos outros. Por extensão, ela designa, às
vezes, todo o inconsciente, porque este permanece, habitualmente, em completa obscuridade.
6. Para uma compreensão aprofundada da noção de arquétipo, remeto o leitor para o excelente Nos sonhos, a sombra é representada, em geral, por uma pessoa do mesmo sexo do sonhador.
livro de Anthony Stevens. Arcbetypes, A Natural History of. the Sep. Nova York: Quill, 1983, pp. Finalmente, ela representa também os aspectos do indivíduo que são muito positivos, mas foram
39
38 21-79. reprimidos ou negligenciados.
• '''' A auto-estima é, aliás, um fator determinante de nossas relações afetivas.. espelho positivo e aprendemos a nos amar. Essa integração contribui para
Atribuindo-nos mais valor, temos a possibilidade de evitar as relações de' a formação de -coMpleioas parentais positivos que nos apóiam, em vez de
- • . éléPendência nas quais buscamos o olhar do outro para termos o direito nos denegrirem. Esse amor por si permite que o ser tenha confiança nele
de existir. No contexto geral de nossa pesquisa, é importante apreender próprio, seja fiel aos seus aspectos não apreciados pelos outros, mante-
que o amor por nós mesmos e o amor Pelo Outro estão fortemente articu- nha-se de pé na adversidade e viva a vida como uma grande aventura.
lados um em relação ao outro. Os seres que amam ao ponto de se perde- Esse espelho interno positivo constitui a base de um narcisismo sadio.
rem não se amam suficientemente. Esqueceram a segunda parte do pre- Se, em razão de circunstâncias da vida — como uma mãe doente, um
ceito cristão que diz: "Ama teu próximo como a ti mesmo!" pai alcoólatra, um período de hospitalização em tenra idade —, o espe-
Uma identidade saudável repousa em uma saudável auto-estima. A lho 'que nos apresentaram foi negativo, se ninguém tomou conta de nós
onfiança cai nós, o valor que nos atribuímos, tudo está aí! O amor por ou se nossos pais não tinham prazer em criar os filhos, desenvolveremos
nós mesmos permite que nos autorizemos a sermos nós próprios, sem uma lastimável auto-estima. Em vez de termos confiança em nossas capa-
esperarmos a aprovação dos outros, a procurarmos e experimentarmos o cidades,'somos assediados por dúvidas perpétuas. Essas experiências difí-
que nos atrai e dá prazer sem julgamentos. Em suma, a permitir-nos exis- ceis em que não nos sentimos acolhidos em nosso meio natural contribuem
tir, respirar à vontade e tomar a posição de que temos necessidade para para a formação de complexos parentais negativos que, em vez de nos
evoluirmos, respeitando, ao mesmo tempo, a posição dos outros. apoiarem, acabam por nos lembrar da lista de nossas incapacidades.
Enquanto não nos estimarmos suficientemente,, não iremos procurar É como se existisse um mau eco no interior de nós que suspirasse
aquilo de que realmente temos necessidade para evoluirmos positivamente como no conto: "Branca de Neve é a mais bela r° Então, começamos a
e desenvolvermos nosso potencial. Acreditamos simplesmente que não sentir vergonha por sermos o que somos e a odiar todas as pessoas que
merecemos- o melhor que a vida tem paia oferecer. Certas pessoas che- têm mais recursos do que nós. Rivalilamos com elas, temos inveja delas,
gam mesmo a acreditar que não merecem existir ou que a vida não vale a tentamos destruí-las, ou ainda agarramo-nos a elas e imitamo-las, à fim
pena ser vivida. de recebermos a atenção de que, segundo nos parece, São objeto. Assim,

t Deixar de esperar a aprovação dos outros para ganhar auto-estima e


/f preciar a vida é, sem dúvida alguma, a revolução mais fundameutal que
pode afetar unia existência. Escolher viver, escolher amar, escolher cele-
estabelecemos uma espécie de relação de amor que pode transformar-se
rapidamente em ódio .se a pessoa escolhida como modelo de perfeição'
não nos aceitar como somos ou se, por não reconhecer nossos talentos,
brar a alegria de existir, tornar-se plenamente responsável por sua vitali- nos infligir uma desilusão demasiado severa.
dade e por sua própria felicidade, eis as posturas que, indubitavelmente, Neste caso, o narcisismo é doentio e, contrariamente ao que se acre-
constituem os atos mais criadores que um indivíduo pode praticar. dita, é a pessoa que sofre de tal ferida de amor-próprio que dará a im-
Mas isso está longe de ser fácil de conseguir. A maioria de nós ainda pressão de ser egocêntrica. Simplesmente porque sua auto-estima é de tal
está submersa no passado não resolvido com o pai e com a mãe, nos modo vacilante que tem sempre necessidade de ser estimulada com ob-
choques inevitáveis da vida amorosa e nas vozes negativas que nos habi- servações positivas e elogios. Isso explica também o fato de ela não cessar
tam. Na realidade, para usufruir da capacidade de amar e de nos amar- de chamar a atenção para o que é e faz, como se fosse uma criança que a
mos, importa ter sentido que alguém nos amava. Os espelhos que nos qualquer preço pretende fazer aprovar seu desenho. Se conseguir lutar
foram apresentados por nossos pais e pelas outras figuras parentais, atra- contra as representações negativas de si mesma que lhe são sugeridas por
vés de gestos e olhares, são elementos essenciais da fundação de uma complexos impiedosos, ela recuperará a confiança e tal comportamento
sadia auto-estima.9 irá desaparecer. Mas isso faz-se, muitas vezes, mediante um longo proce-
Ao vermos, ainda crianças, o clarão de admiração, entusiasmo e amor dimento terapêutico, porque se trata de um problema profundo. O que
no olhar das pessoas à nossa volta, integramos progressivamente esse nos leva a falar, mais detalhadamente, das raízes da auto-estima.

9. Podemos aprofundar a noção de auto-estima referindo-nos ao livro do psicanalista junguiano


Mario Jacoby, Shame and the Origins of SelhEsteem. A Jungian Approach. Londres: Routledge, 10. Jacob e Wilhelm Grimm. "Blanche-Neige". In Contes!. Paris: Flammarion, col. "Grand Formar",
1994, pp. 24-46. O autor baseia-se nas pesquisas feitas .com crianças amamentadas ao seio para 1986, pp. 299-309. Neste conto, é a madrasta da heroína que possui o espelho mágico. Ela se
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retraçar as origens da vergonha e de uma baixa auto-estima. tornará mortalmente ciumenta da beleza da moça a ponto de mandar abandoná-la na floresta.
•Da onipotência à auto-estima Elas não vivem no mundo do amor, mas no mundo do poder. Aliás, é
surpreendente constatar até que ponto a necessidade de amor frustrado
Como já afirmamos, a criança nasce fio mundo da unidade total. Dun •se transforma, qiiaSe -Iája.itaVelniente, em vontade de poder. No terreno
rante muito tempo, vai resistir com todas as forças à percepção da reali- da vida a dois, por exemplo, não é raro assistirmos ao desencadeamento
dade dos outros, porque isso acabaria por enfraquecer sua ilusão de oni- de lutas pelo poder à- medida que se extingue o amor romântico. Essa
potência. As crianças nascem reis e consideram-se o centro do mundo. É terrível lei parece funcionar tanto para os pequenos ditadores domésticos
até mesmo importante que seja assim. Durante alguns meses, o indivíduo quanto para aqueles que tiranizam os próprios países. Todos e todas car-
deve sentir-se o centro da vida que vibra à sua volta, porque o amor regam urna grande ferida de amor.
experimentado desde os primeiros momentos da existência dá uma base Aliás, o psicanalista Alfred Adler baseou toda a sua teoria social do
de segurança à criança, base a partir da qual pode ser estabelecido o sen- instinto de poder dos indivíduos naquilo a que deu o nome de inferiori-
timento de seu próprio valor. dade de órgão." Seja essa inferioridade de órgão real ou imaginária, ela
No entanto, aos poucos, ela deve aceitar que não é o centro do uni- estimula muitas vezes uma necessidade de afirmação que não conhece
verso. Dá-se conta de que os pais têm interesses diferentes dos seus c de limites. Por exemplo, Napoleão reagiu à sua pequena estatura com uma
que os outros não evoluem necessariamente em função dela. Portanto, ambição devoradora. Pretendia conquistar o mundo inteiro. A onipotên-
ganhará cem mil dólares quem souber resolver a seguinte questão: de que cia ferida acaba sempre por falar através dos gestos e tenta desforrar-se.
maneira os pais podem permitir que a criança passe de sua onipotência Pensemos em um homem convencido de que seu pênis é pequeno demais
imaginária para uma percepção mais exata da realidade? Corno ajudá-la e que procura compensar-se comprando carros potentes. Ele pretende
a desenvolver uma sadia auto-estima e confiança em relação a seu poder fazer brilhar publicamente seu poder frustrado.
pessoal? Com efeito, o valor que nos atribuímos é o resultado de um O indivíduo pode também desmoronar, em vez de pavonear-se como
compromisso entre nossas necessidades de onipotência e os limites im- reação aos traumatismos da infância. Quando. omeio não soube apreciar
postos pela realidade. De que modo conservar a sensação de nosso poder ou aceitar um aspecto de nossa pessoa, quando brincadeiras humilhantes
pessoal mesmo se ele continua sendo relativo? sublinharam nossos defeitos aparentes — deficiência física ou insuficiên-
Do ponto de vista teórico, conhecemos muito bem a resPosta: por um cia intelectual—, torna-se difícil, muitas vezes, assumi-los. Continuamos
lado, os pais podem apresentar limites necessários ao sentimento de oni- a deprecia-los e, incessantemente, tememos ser rejeitados em razão des-
potência da criança sem prejudicar sua confiança, por meio de pequenas ses defeitos reais ou imaginários. Então, forma-se um complexo deMfe-
frustrações que ela pode aceitar sem se sentir totalmente rejeitada e des- rioridade, o sinal por excelência da falta de auto-estima.
moralizada; por outro, é bom que, aos poucos, abandonem seu próprio Com efeito, nem sempre é possível compensar a sensação de urna
projeto de onipotência de pais para mostrar uma confiança cada vez maior inferioridade com uma auto-afirmação desmesurada. Podemos muitíssi-
na criança. É até mesmo desejável que deixem ver gradualmente sua pró- mo bem ficar esmagados sob o peso da vergonha. Neste caso, concen-
pria humanidade, com as respectivas fraquezas. trando-nos, julgando que não merecemos mais do que a triste sorte que
Infelizmente, é raro que, na vida, "as coisas aconteçam como seria nos coube, afirmando que, de qualquer forma, a vida é sofrimento e que
nosso desejo; de fato, tal situação é tão rara que, se eu tivesse de avaliar o isso é tudo o que podemos esperar aqui embaixo. Tal resignação conduz
que constitui o principal motivo de unia consulta psicológica, responde- a uma vida monótona que às vezes chega à autodestruição pelo ódio de si
ria que se trata, com toda a certeza, da falta de auto-estima. É espantoso mesmo.
constatar até que ponto carecemos de amor por nós mesmos. Os cenários Isso produz-se freqüentemente quando os pais permanecem autoritá-
mais comuns assemelham-se ao que se segue. São eles que conduzem à rios e afirmam com seus gestos e comportamentos que têm sempre razão:
formação de problemas ditos narcísicos.
Certas pessoas que viveram frustrações intensas -demais, ou até mes- 11. Para a teoria da inferioridade de um Órgão, ver o capítulo dedicado a Adler no livro de Henri
mo traumatizantes, desde a infância, em razão de circunstâncias adversas Ellenberger. The Discovery of the Unconscious, The History and Evolution of Dynamic Psychiatry.
Nova York: Basic Books Inc., 1970, pp. 603-606. Esta obra é notável. Traça o retrato dos
— por exemplo, pais que não sabiam amar —, hão de reagir tentando grandes psiquiatras e psicanalistas de nosso tempo, tais como Freud, jung ou Adler, colocando
42 43
.... impor sua lei a qualquer preço, a fim de provar que valem alguma coisa. suas teorias no contexto de suas biografias pessoais e dos grandes acontecimentos históricos.
Os filhos ficarão convencidos de que não têm valor, tentailáO provar a Umolho, Doisolhos, Tresolhos
todo mundo que valem alguma coisa por meio de 'comportamentos exaT- . _ . -- . .
gerados ou, pelo contrário, hão de refugiar-se na- inecli.O.ciijarle e no Um conto coligid6pelos irmãos Grimm nos permitirá apreender-me-
lhor a dinâmica psíquica que se instala entre o ego e os complexos. O
derrotismo. Assim, permanecem em posição de crianças perpétuas que
conto intitula-se Unoeil, Deuxyeux, Troisyeux (Umolho, Doisolhos,
procuram modelos de perfeição e se grudam às pessoas que lhes parecem
Tresolhos)22 Além de não ter pai, a heroína possui uma mãe cruel. O
poderosas. Negam seu poder pessoal e abandonam-no a quem tiver a
sagacidade de utilizá-lo. problema central diz respeito justamente à falta de auto-estima. Como
acabamos de ver, trata-se de um problema crucial para os seres cujo de-
Isso engendra o que se convencionou designar por dependência. Tais
pessoas podem depender tanto de seus parceiros amorosos, de seu círcu- senvolvimento não foi estimulado. O ego consciente permanece, então,
fraco e sem firmeza.
lo familiar, quanto da última moda exibida por uma vedete da mídia. É
A mãe devoradora vive com as três filhas das quais uma só é normal.
assim que tentam reparar a ferida do passado e superar a rejeição. Neste
A primeira tem um olho, a segunda tem dois olhos e a terceira tem três
pequeno jogo, tornamo-nos rapidamente conformistas, evitando mani-
olhos. Por esse motivo, são chamadas: Umolho, Doisolhos e Tresolhos. Á
festar qualquer opinião que possa desagradar à maioria do grupo a que
pertencemos. A . filiação a uma seita, a um bando de rua ou a um clube mãe e as irmãs tratam Doisolhos como uma verdadeira empregada para
todo o serviço. Além de ser obrigada a fazer O trabalho pesado e a faxina,
social pode, assim, servir para nos dar urna identidade sob medida quan-
é mandada para o campo para cuidar da cabrinha. -
do não temos a ousadia de assumir nosso poder individual. Neste caso, o
Para interpretar esta história no plano psicológico, devemos imaginar
encargo de nossa identidade é tomado Por uma coletividade que se afir-
ma em nosso lugar. que se trata de um drama em que todas as personagens Colocam em ima-
gens o que se desenrola no interior da heroína Doisolhos. Esses inciden-
Se, pelo contrário, os pais não têm a ousadia de assumir sua autorida-
tes acontecem, por assim dizer, ao seu ego em plena transformação.
de e impor limites, a criança corre o risco de tornar-se-tirânica para com
eles e mal adaptada à vida. Sem saber, eles entregam o rebento à mercê de Doisolhos representa uma mulher que não consegue encontrar em si a
acontecimentos catastróficos que vão acabar provando-lhe que não é força suficiente para se afirmar. Os complexos roubam-lhe o poder. Têm
onipotente. Ele correrá o sério risco de desmoronar diante dos primeiros . ciúme-e inveja dela. Na narrativa, esses complexos-psicológicos assumem
fracassos e resignar-se porque nunca aprendeu a resistir. às provações. a configuração de Umolho, de Tresolhos e da mãe, as quais refletem as
Poderá tentar encontrar refúgio eu; devaneios ilusórios em relação ao três dimensões interiores ^ de Doisolhos. A mãe representa o complexo
futuro e ao seu poder ou soçobrar no alcoolismo ou na droga a fim de . materno negativo. As duas irmãs representam subperSonalidades de
restabelecer, durante um lapso de tempo, sua onipotência ameaçaria. Em Doisolhos que levam a melhor em relação à personalidade consciente.
todos os tempos, certas substâncias foram consumidas a fim de restabele- Por exemplo, quando temos um só olho, nossa visão é reduzida. No
plano psicológico, poderíamos dizer que isso denuncia uma atitude uni-
cer esse sentimento vacilante de bem-estar interior que, ininterruptamente",
a-vida vem frustar. lateral, uma visão dificultada por antolhos. Isso traduz-se por uma rigi-
Como é possível constatar, é delicada a passagem da onipotência dez de opinião. Quando Doisolhos está sob a influência dessa atitude, ela
carece de perspectiva. Vê apenas um lado da medalha. Alimenta seu pon-
fantasmática para uma auto-estima equilibrada. Um grande número de
to de vista rígido com uma paixão obscura e desmesurada que é digna do
acontecimentos podem interpor-se e fazer com que um ser se refugie em
um sentimento ilusório de superioridade ou na vergonha. Na realidade, Ciclope, que só tem um olho no meio da fronte. Poderá até mesmo nutrir
entre onipotência e depressão, a linha é, muitas vezes, tênue. Mas à me- maus pensamentos em relação àqueles que se opõem a ela.
Pelo contrário, Tresolhos, a outra irmã, representa uma atitude de
dida que o ser exerce seus talentos e tem a ousadia de ser ele mesmo, à
medida que recebe aprovação e amor, instala-se nele equilíbrio e segu- hipervigilância. Quando se tem três olhos, há sempre um olho que não
rança. O importante é estabelecer uma conexão com as próprias fontes
da vida que são amor e não têm o olhar vingador da madrasta de Branca 12. Jaeob e Wilhelm Grimm. In Contes, II. Paris: Flammarion, col. "Grand Formar, 1986, p. 232.
de Neve. Trata-se de fazer com que venha a desabrochar a flor que cada Meus sinceros agradecimentos a Lucie Biches, Daniel Bordeleau e Tom Kelly, na companhia
44 dos quais foi elaborada a interpretação deste conto, por ocasião de uns seminário de formação
um traz em si. 45
organizado pela Associação dos Psicanalistas Junguianos de Quebec.
adormece. Tresolhos simboliza uma preocupação permanente em relação desejar. Doisolhos diz-lhe, então, que pretende simplesmente acompanha-
a si mesma. Ela exerce uma vigilância ininterrupta sobre si e dtivida cons- lo na volta para seu reino. Torna-se.sua mulher. e, mais tarde, como boa
tantemente dela própria". Quem .não desenvolveu uni ego forte em razão rainha, acolhe a mãe e as irmãs que Viviam na Maior pobreza..EsSa Pobre-
de complexos parentais negativos dissimula sua fraqueza exibindo opi- za significa que os complexos perderam o poder. Já não têm a capacidade
niões categóricas e exercendo uma vigilância detalhista em relação à sua de prejudicar o desenvolvimento do ego.
pessoa. O objetivo de tal comportamento é proteger-se dos eventuais jul- O tema das tripas que são enterradas apresenta também um interesse
gamentos que poderiam vir do exterior. psicológico. Neste conto, a solução para o ego vem dos restos rejeitados.
Nos contos de fadas, a pobreza da heroína simboliza o ego que carece Devem ser enterrados para que possam crescer. Assim, são valorizados.
-cle força de afirmação. O ego fraco é representado, quase sempre, sob os Isso significa que é desejável ficar em contato com nossa "merda" inte-
traços da pequena empregada que é relegada a tarefas exclusivamente rior para realizarmos a obra da integração de nós mesmos. Essa "merda"
secundárias. A Cinderela continua sendo o exemplo disso por excelência. é constituída pelo que foi rejeitado pelo entorno familiar negativo, ou
Nesta fábula, o ego enfraquecido tem, no entanto, um trunfo: conservou seja, pelo que tal entorno não podia digerir em nós. O que brota é uma
uma relação sadia com a natureza instintiva representada pela cabrinha macieira que dá frutos dourados, o que nos mostra o quanto é fecunda a
que Doisolhos conduz, todos os dias, para pastar no campo. relação com a natureza e seu ciclo. Aliás, observaremos que, neste conto,
Um dia em que levava a cabrinha para o campo, Doisolhos queixa-se,
como em La Jeune Filie sains mains (A moça sem mãos) — que será
em voz alta, de sua infelicidade porque lhe tinha sido dada apenas unia. .. analisado mais tarde—, a natureza e seus ritmos são grandemente valori-
pequena casca de pão para se alimentar. Senta-se e começa a chorar por zados. Corno se a ruptura do patriarcado com o ambiente natural consti-
causa de sua pouca sorte. Então, aparece uma fada •e mostra-lhe unia
tuísse uma perda notória.
fórmula mágica que lhe permite pedir uma refeição segundo seus gostos,
Neste conto, a heroína não tem grande coisa a fazer para chegar à
comer até fartar e, em seguida; Com a ajuda dessa Mesma fórmula, fazer
transformação. Não se trata de trabalhar, mas de prestar atenção ao pro-
desaparecer a refeição. A fórmula começa por evocar o nome do animal
cesso natural. A boa fada que representa o complexo materno positivo
— "Cabrinha, cabrinha etc.? —, prova, ao que tudo indica, da relação
intervém nas duas vezes em que a moça chora.Na primeira, quando está
nutriente com a natureza instintiva.
faminta, e na segunda, quando a cabra é morta. É-nos sugerido também
Como Doisolhos desdenha agora o bocado de pão que lhe é dado em
que o fato de reconhecermos nosso sofrimento e de o expressarmos aber-
casa, a mãe e as irmãs acabam por acreditar que existe algo suspeito.
tamente, abandonando-nos ao mistério das profundezas, inicia o proces-
Então, as irmãs acompanham-na alternadamente ao campo, e em breve,
so criador que cura a ferida da infância. O pedido de ajuda feito pelo ego
Tresolhos, que nunca adormece, descobre o estratagema. Então a mãe
decide matar a cabrinha para que a filha deixe de ir ao campo. O animal que reconhece sua própria fraqueza constitui sempre um elemento deci-
é comido pelas três, enquanto Doisolhos é mantida afastada. Aqui, o as- sivo em uma situação de infelicidade psicológica. É necessário que o so-
pecto cruel e demoníaco dos. complexos da heroína é mostrado com toda frimento seja reconhecido para que possa haver alguma mudança.
a clareza. Acabamos de ver neste conto como os complexos negativos podem
Na pessoa que carece de amor-próprio, é tal o poder dos complexos ser ativos e prejudicar o desenvolvimento da personalidade. No entanto,
negativos que estes acabam destruindo o que lhe serve de reconforto. eu gostaria de fazer uma última observação: é surpreendente constatar
Logo que encontra algo ou alguém que é bom para ela, os complexos que, .nos contos em que as mulheres são heroínas, elas tornam-se, na
interferem e fazem surgir dúvidas que reduzem a nada a esperança de que maioria das vezes, simplesmente testemunhas do impasse para que o de-
possa livrar-se da situação. senvolvimento possa retomar seu curso. Pelo contrário, nos contos mas-
A boa fada aparece de novo a Doisolhos e diz-lhe para exigir as tripas culinos, os heróis devem atravessar quase sempre montes e vales para
do animal, esses restos que são jogados fora. Em seguida, ordena-lhe que encontrar, finalmente, o tesouro. Isso expressa, talvez, uma diferença es-
os enterre, e desse germe brota uma árvore que produz maçãs douradas sencial entre a psicologia do homem e a da mulher e convida-nos a falar
que só podem ser colhidas pela heroína. Na seqüência, um lindo príncipe de identidade sexual. Com efeito, não existe apenas o amor por nós mes-
46 47
observa a macieira, chama a proprietária e oferece-lhe tudo o que ela mos, mas o amor do outro diferente de nós!
Identidade e diferença sexual é assim tão clara como deixam entender as conversações de academia de
• ••ginás-tica ou de salão.
" -A identidade sexual :é-uma construção psicológica Apesar de nossas resistências morais, religiosas ou simplesmente de
nossa própria orientação sexual, é mais realista no plano psicológico con-
A segunda baliza de nossa identidade psicológica diz respeito à apro-
siderar a identidade sexual como algo flexível. Trata-se, de alguma for-
ximação com o outro através do amor e da sexualidade. Independente-
ma, de uma construção em que estão misturados elementos impulsivos e
mente de sua vontade, quando alguém diz eu, trata-se de um homem ou
elementos psicológicos e, inclusive, aspectos políticos e idecilógicos. Por
urna mulher. Todos nós nascemos em um corpo masculino ou feminino.
exemplo, uma decepção amorosa ou um longo período de proximidade
No entanto, entre os seres humanos, se o gênero sexual é determinado
com pessoas do mesmo sexo podem muito bem levar a uma mudança de
geneticamente como nos animais, a identidade sexual não está fixada de
orientação da heterossexualidade para a homossexualidade, ou vice-ver-
maneira tão rígida. Isso permite, no plano erótico, uma expressão e uma
sa. Nas culturas da África do Norte nas quais os homens vivem durante
criatividade muito mais amplas. A atividade sexual principal pode até
muito tempo entre eles, Um homem pode muito bem fazer amor com
mesmo acabar por ser diferente do determinismo genético primário, como
outro sem pensar que é homossexual.
acontece na homossexualidade, em que um indivíduo deseja uma pessoa
Ignoramos até que ponto a cultura e as feridas psicológicas influen-
do mesmo sexo. Por outras palavras, neste caso, a identidade sexual psí-
ciam nossa maneira de olhar para um pênis, uma vulva ou para os seios,
quica é diferente da identidade sexual biológica. É forçoso constatar que,
assim como nossa maneira de fazer amor. A sexualidade expressa nosso
aqui como em outros lugares, a cultura influencia tão 'fortemente a natu-
ser inteiro, incluindo nossa história psicológica. Posso estar muito focali-
reza de base a tal ponto que até se torna difícil distinguir os efeitos de
uma e da outra. zado em meu próprio prazer se sou frágil no plano do amor-próprio ou,
pelo contrário, poderei prestar maior atenção à minha companheira se
Podemos, assim, observar a identidade sexual como uma construção
me sentir com toda a liberdade e segurança.
cultural estabelecida a partir de um dado da natureza, a saber: o sexo
biológico.'3 Essa maneira de ver possui a grande vantagem de não nos
confinar em debates estéreis que nos levam a rejeitar certos tipos de sexua- Para que serve o progenitor* do inesmo sexo?
lidade corno não sendo "naturais". Do meu ponto de vista, todos Os tiP
A elaboração de nossa sexualidade definirá, de saída, papéis diferen-
de sexualidade humana são influenciados — pelo menos, em parte —
tes para cada um de nossos pais, segundo o respectivo sexo. De maneira
pela cultura, e nenhum é puramente natural, ou então são todos naturais
geral, o progenitor do mesmo sexo é aquele que irá desempenhar um
se admitimos que nada escapa à natureza.
papel fundamental na construção da identidade sexual. Por sua vez, o do
Além disso, já em 1948, o relatório Kinsey" tornava popular uma sexo oposto servirá para nos diferenciar do ponto de vista sexual. Pelos
escala de avaliação da 'orientação sexual com seis graus, em vez de dois.
seus olhos aprenderemos que somos homem ou mulher.'s
Em uma extremidade do espectro, o pesquisador colocava os homosse-
A criança reconhece-se logo no progenitor do mesmo sexo. É aquele
xuais puros e na outra os heterossexuais puros. Segundo a pesquisa, so-
a que se assemelha, parecido, idêntico. É esse progenitor que desejará
mente dez por cento da população situava-se em cada uma dessas catego-
imitar. Irá utilizado como modelo. Portanto, a pedra angular da identida-
rias. Por exemplo, a maioria dos homens oscilavam entre a homossexua-
de sexual situa-se, para o menino, na relação com o pai e, para a menina,
lidade e a heterossexualidade em diferentes graus. A pesquisa revelava,
na relação com a mãe. Estamos vendo, imediatamente, as complicações
igualmente, que um terço dos homens tinham tido uma relação homosse-
que pode implicar tal lei psicológica.
xual completa com orgasmo depois da puberdade. Em suma, a coisa não

13.Fico devendo estas idéias sobre a idemiclacle sexual e sua construção,às minhas conversações * No original, perene: segundo o contexto, refere-se ao pai ou à mãe. Seu plural é parente, que
com os psicanalistas Tom Kelly e John Deneian. Este último é o autor de um livro sobre a vida significa pais no sentido de "progenitores" — termo que será utilizado nesta tradução, para
em casal intitulado Coming Together-Coming Apart, The Union of Opposites in Lave Relation- evitar uma eventual ambigüidade com a palavra pères, que é plural de père = pai. (N.T.)
ships. Boston: Sigo Press, 1989. 15. Christiane Olivier. Les En Tants de locaste. L'empreinte de Ia padre. A marca da mãe (N.T.)].
14. Alfred Charles Kinsey et al. Sexual Behavior in the Theman Male. Relatório Kinsey, 1953. Paris: Denoel/Gonthier, 1980, pp. 53-72. Este livro é una clássico sobre esse tema. .49
...... .
contrário, postem somar com a presença das amigas. A cumplicidade
Se-o progenitor do mesmo sexo está ausente ou rejeita a criança, se
materna iniciou a relação comas outras mulheres. Às vezes, no entanto, a
não lhe devolve um reflexo positivo de seu próprio sexo, o menino ou a
relação com a Mãe não.foi boa.'Por conseqüência; é com muita dificulda-
menina não chega a assumir o fato inelutável de ser homem ou mulher. A
de que estabelecem vínculos de amizade com mulheres. Apesar da falta
criança corre o sério risco de acabar por se detestar e, inclusive, ter ver-
de apoio paterno, estão mais à vontade em companhia dos homens.
gonha de si mesma e do próprio sexo quando não é confirmada pelo
progenitor do mesmo sexo e quando essa privação não é compensada
por outra presença materna ou paterna. Essa carência de amor-próprio A prova da diferenciação sexual
implica, afinal de contas, a dificuldade em reconhecer o que é bom para
A diferenciação sexual é necessária porque serve para o despertar da
si na vida.
pessoa, mas representa uma provação. Como eu dizia mais acima, a criança
Neste aspecto, importa evitar confinarmo-nos em uma visão psicoló-
vive em unidade profunda como universo que a rodeia, de forma alegre,
gica redutora que venha a exigir a presença do pai ou da mãe natural
dolorosa e, sobretudo, inconsciente. Para superar essa inconsciência, deve
junto aos filhos. Estes têm necessidade de cuidados maternos e paternos,
ser estabelecida uma diferenciação entre ela é o mundo. Por ser de uma
da presença de homens e de mulheres que cuidem deles paternal e mater-
evidência gritante, unia das diferenças inegáveis que deverá enfrentar é
nalmente, a fim de modelarem sua identidade. Importa que lhes seja sa-
aquela que existe entre os machos e as fêmeas. Essa experiência das
tisfeita a necessidade de estar em relação com o feminino e conto mascu-
dessemelhanças permitirá, no decorrer do tempo, um retorno ao mundo
lino. O verdadeiro pai e a verdadeira mãe da criança não são, obrigato-
da unidade, mas desta vez de forma consciente.
riamente, os pais biológicos, mas aquele e aquela que cuidam dela.
Embora fascinada pela diferença sexual, importa dizer que, em um
primeiro tempo, a criança oferece-lhe resistência com todas as suas for-
Para que serve o progenitor do sexo oposto? ças. Com efeito, a tomada de consciência da existência dos dois sexos
constitui uma provação fundamental para o sentimento de onipotência
O progenitor de sexo oposto leva-nos a tomar consciência da realida-
do menino ou da menina. Tomar consciência de ser para sempre homem
de sexual, revelando nossa diferença fundamental pela sua simples pre-
sença. É por isso que, na Maior parte das vezes, as fantasias eróticas e as ou mulher coloca cada. um deles diante do fato de não ser completo, e
portanto, de ser imperfeito. Ora, esta entrada no mundo da interdepen-
pequenas histórias de amor nascem, para as meninas; na relação com o
dência e da complementaridade não é facilmente aceita.
pai e, para os meninos, na relação com a mãe. Com trás ou quatro anos,
A partir desse momento, provar que e. um menino e não uma menina,
a maioria dos meninos querem casar com a mamãe, enquanto a maioria
ou vice-versa, torna-se unia intensa atividade para a criança. Ela tentará
das meninas desejam desposar o papai.
provar que seu sexo é superior ao outro em 'força, inteligência e sutileza..
Para ter uma idéia mais precisa da influência que se pode atribuir ao
Tenta, desta forma, manter intacta unia parte de sua ilusão de poder,
gênero de cada progenitor, basta olhar as diferenças de ferida que afetam
abalada pela descoberta da diferença sexual. Neste caso, se grudará ao
os homens e as mulheres. Nos casos de pessoa . s oriundas de famílias tra-
progenitor do mesmo sexo para sentir-se em segurança, procurando imita-
dicionais, em que a mãe está presente e a 'pai relativamente ausente, os
lo. E, para afirmar a semelhança com ele e sua diferença em relação ao
meninos sofrem uma ferida de identidade em razão da falta de modelo
progenitor do sexo oposto, haverá algo melhor do que representar os
masculino, mas suas relações com as mulheres são facilitadas pela presen-
papéis domésticos e sociais desempenhados por eles?
ça atenta da mãe. Caricaturando, poderíamos afirmar que estão convenci-
Será que isso equivale a dizer que eles deveriam observar uma estrita
dos de que, no mundo, haverá sempre uma mulher para eles, enquanto
divisão dos papéis em casa para ajudar a criança em sua fase de diferen-
suas relações com os homens permanecem impregnadas pela desconfiança.
ciação? Definitivamente, não. Convém, pelo contrário, respeitar os esti-
Para as moças, ocorre o contrário. A ferida deixada pelo pai é unia
los naturalmente diferentes do pai e da mãe. O pai não troca as fraldas da
ferida relacional, afetiva. Não estão seguras de que no- universo haverá
mesma forma que a mãe e, por menores que sejam, as crianças percebem
um homem para elas e sua busca torna-se primordial. Essa convicção
essas diferenças. Na idade da diferenciação, a criança faz tudo para ser
leva-as, às vezes, a tolerar situações inaceitáveis na intimidade, de tão
semelhante ao progenitor do mesmo sexo e para sentir-se em segurança. 51
50 convencidas que estão de que não encontrarão outro companheiro. Pelo
Está à espreita das diferenças para poder definir sua icleàfidade Sex-ual.- • natural? Será por isso que observamos cada homem e cada Mulher .
Tem necessidade de fazer isso para se inventar como horriem ou Mulher. perguntando-nos, secretamente: "Será que é ele que foi clestMádo pára
Uma boa diferenciação sexual serve de base ao ieconhecirriento tilte--t • mim? Será que é ela?" Tal postura constituiria uma visão muito reduto-
rior das similitudes profundas entre os sexos. Quanto mais um ser sentir ra da existência.
segurança de que pertence a seu próprio sexo, menos ameaçado há de Na realidade, Ela e Ele não estão sozinhos no sofá da sala. Têm com-
sentir-se para enfrentar as diferenças. Um homem confiante em sua viri- panheiros interiores que, sem seu conhecimento, dirigem a valsa dos atra-
lidade pode aceitar a idéia de que possui qualidades supostamente femi- tivos e das rejeições. Trata-se do animus e da anima. Poderíamos dizer
ninas, assim como uma mulher pode conceber que existe nela algo de- que, desde a puberdade, um arquétipo se ativa em nós para nos ajudar a
masculino. Se a diferenciação não tiver sido estabelecida de forma apro- separarmo-nos de nossos pais e prosseguirmos nossa vida psicológica por
priada, um indivíduo corre o risco de passar a vida a provar que é dife- nós mesmos, com plena autonomia. Seu vestígio é visível no fato de que
rente do sexo oposto, assinalando isso através de um comportamento cada ser humano carrega em si uma representação mais ou menos nítida
ultrafeminino ou ultramasculino. do parceiro ideal. Tal imagem leva-o a sonhar, fantasiar e correr atrás do
À guisa de agradecimento por urna conferência, um professor uni- amor a fim de formar um casal.
versitário entregou-me um dia um poema 'no qual falava de sua futura Existe uma disposição inata no inconsciente para produzir essa repre-
velhice. Dizia o quanto teria prazer em usar um brinco sem ter medo de sentação. Como eu dizia precedentemente, Jung deu o nome de arquéti-
ser consideradO gay. Esse gesto parecia-lhe impossível em plena carrei- po a tais tendências universais. No caso particular que nos ocupa, ele deu
ra porque julgava-o arriscado demais para sua imagem. Isso teria sido o nome de arquétipo da anima á representação fantasmática do feminino
uma traição à sua grande-sensibilidade e,o levaria a afastar-se do grupo no homem e de arquétipo do animus à do masculino na mulher."
dos homens. Foi pela observação dos sonhos de numerosos homens e mulheres
No entanto, quando um homem está bem na pele de homem, quando que o psicanalista suíço chegou a tais conclusões. Constatou que os ho-
foi reconhecido por um itero suficiente de homens que tinham impor- mens sonhavam freqüentemente com mulheres misteriosas e desconheci-
tância para ele, neste caso, pode expressar sua sensibilidade sem se sentir das e que, muitas vezes, esses sonhos lhes inspiravam respeito; quanto às
ameaçado. Pode, até mesmo, atenuar sua rigidez e exibir preferências ou mulheres", os sonhos mais freqüentes eram grupos de homens ao seu lado
comportamentos que parecem ser femininos em sua cultura de origein. que exerciam o mesmo fascínio sobre elas. Jung chegou à conclusão de
A diferença sexual representa uma colisão com a incompletude de que nossa contrapartida sexual, aquela que foi reprimida em razão de
base. Faz sobressair a circunstância de que, irremediavelmente carecemos nosso gênero sexual próprio, continuava a viver em nós sob os traços de
de algo. É, aliás, a realidade dessa carência que há de estimular no indiví- uma pessoa de sexo oposto.
duo o desejo de completude e há de lançá-lo no prosseguimento de sua Trata-se aí de nossa verdadeira cara-metade. Trata-se aí de nossa per-
parte faltante através do amor romântico. Ele irá substituir, por assim sonalidade interior, mas como não a conhecemos, procuramo-la fora de
dizer, sua ilusão de ser o universo sozinho pelo devaneio de criar um nós. Fazemos apelo, com todas as forças, a essa alma-irmã ou alma-ir-
universo completo em companhia de outra pessoa! mão. Isso produz todo o jogo das expectativas e mal-entendidos que se
formam no amor, porque desejamos ardentemente que nossos parceiros
se identifiquem com nossa imagem ideal.
O animus e a anima
A cara-metade 16. Para sermos justos com Jung, importa dizer que os arquétipos nunca são representações, mas
sim estruturas psíquicas que organizam as representações simbólicas. Para ter uma idéia nítida
Será verdadeiramente a ferida narásica imposta pela circunstância de a respeito da natureza dos arquétipos, ver o texto teórico intitulado "Reflexions sur la nature
du psychisme" que é dedicado a eles por Jung in Les Racines de Ia conscience. Findes sur
termos de ser para sempre um homem ou uma mulher que nos impele a Parchétype. Paris: Buchet/Chastel, 1973, pp. 465 e ss.
desejar estar juntos, apesar das diferenças e das dificuldades? Será que No que diz respeito ao arquétipo doanimus e da anima, a obra de Jung intitulada Dialectique
52 da Moi et de Pinconscient, op. cit., pp. 143 e ss., continua sendo uma excelente fonte de infor-
desejar viver tudo a dois explica que a vida em casal nos pareça tão mações. 53
•.....
Tudo se passa como se o animas e a anima nos lançassem na aventura natural, o animas e a anima acabam transformando-se no seu 'oposto.
do amor, mas sua verdadeira função consistiria em ser reconhecidos como Então, a capacidade da mulher para tomar iniciativas torna-se_expectati-
-• .
dirneMSões interiores de nós mesmos. Com efeito, na...realidade, nossos... va passR,M. Se h situação perdurar, seu animas, prisioneirO;eb-erVa::Sé. ou
parceiros nunca estarão em condições de encarnar essa parte faltante. Eis irrita-se.
o que aos poucos somos levados a compreender através dos fracassos Enquanto o animas representa a capacidade da mulher para tomar
amorosos. Continuamos exigindo que mudem, porque lhes pedimos que iniciativas, por sua vez, a anima representa a capacidade do homem para
encarnem fielmente nosso animas ou nossa anima. O que, evidentemen- amar. Se ele não utilizar sua sensibilidade, esta poderá tornar-se capri-
te,,é impossível para eles. chosa e tumultuada, reivindicando o que lhe é devido de atenção sob a
Na realidade, o animus e a anima convidam tanto para a aventura forma de humores irracionais que, sem seu conhecimento, se apoderam
sentimental exterior quanto para a aventura criadora interior. No pri- dele. Neste caso, poderá ficar deprimido ou desesperado, sem qualquer
meiro tempo da vida, no momento em que se trata de conhecer o amor e possibilidade de resistência.
fundar uma família, eles retiram-nos do regaço familiar para nos levar à Quando o animas e a anima estão prisioneiros dos complexos
criação de nossa própria unidade familiar. A partir da idade madura, con- parentais, encontram-se inevitavelmente projetados sobre figuras que se
vidam-nos a um retorno a n6s mesmos, a fim de compreendermos as assemelham aos pais. Como se, então, a natureza nos obrigasse a resolver
dimensões mais profundas de nosso inconsciente, que desejam expressar- esse problema para libertarmos nossa criatividade e prosseguirmos nosso
se de unia forma que não seja por meio da vida em casal, do trabalho e desenvolvimento.
dos filhos. • Na realidade, raros são os seres cujo animas e anima estão perfeita-
mente libertados dos complexos parentais. A maioria encontra-se na fase
'A quem sé assemelha o animas e a anilha? em que sua criatividade é ainda prisioneira do complexo paterno ou ma-
terno. Enquanto for esse o caso, eles hão de continuar a envolver-se com
Se o progenitor do mesmo sexo influencia fortemente a maneira como parceiros com os quais hão de reproduzir, em parte, o drama da infância.
haveremos de nos comportar como" homens ou como mulheres, a ima- E isso se produzirá enquanto tal drama não for,superado. Neste sentido,
gem do homem ou da mulher que carregamos em nós será marcada, em a vida é.perfeita uma Vez que volta a servir-nos sempre o mesmo prato até
compensação, pela personalidade do progenitor de sexo oposto, porque que tomemos consciêncii do que estamos em via de comer.
se trata do primeiro homem ou da primeira mulher que &MI-meemos in-
timamente. Aliás, é pelo fato de que, em sua formação, o animas e a
anima são influenciados pelas figuras parentais que, muitas .vezes, fica- O aspecto coletivo do arquétipo
mos apaixonados por alguém cujos traços de caráter evocam nosso pai Em um plano mais amplo, o animas e a anima não são marcados
ou nossa mãe. unicamente pelo. pai ou mãe biológicos. Desde o começo dos tempos, a
Com efeito, se é verdade que o animus e a anima representam, no maneira de ser homem ou mulher age, igualmente, sobre a formação
fundo, o próprio arquétipo da vida que nos leva a evoluir longe de nossos dessas personalidades interiores. lima. camada de nosso inconsciente Possui
pais, importa dizer igualmente que essas figuras que inspiram o arrebata- uma dimensão coletiva que serve de substrato ao inconsciente pessoal.
mento amoroso podem permanecer prisioneiras dos complexos parentais Este se manifesta em nós através de maneiras de reagir, específicas aos
quando estes são poderosos e negativos. Neste caso, eles inibem a pulsão homens ou às mulheres de nossa cultura, e da espécie humana em geral.
de autonomia do menino ou da menina. Aliás, este tema é explorado Por exemplo, ninguém irá ensinar-nos a sofrer ou ficar apaixonados; no
freqüentemente nos contos de fadas, nos quais pode-se ver unia jovem entanto, muitas vezes, seguimos, nessas manifestações, esquemas prede-
prisioneira na torre do castelo do pai. No plano simbólico, o cavalheiro terminados. O inconsciente coletivo influencia igualmente nossas manei-
que vem libertá-la representa não só seu animas que desperta, mas tam- ras de conceber e de representar em nós mesmos o sexo oposto.
bém o amor que a leva a abandonar o meio parental. De uma forma positiva e geral, o animas representa a coragem, a
Quando a pulsão de autonomia não chega a seu termo, em razão de iniciativa, a firmeza, a ação, o verbo e a espiritualidade no sentido amplo;
54 complexos parentais que inibem o ego e prejudicam o desenvolvimento suas representações são o homem de coragem e de ação, o artista, o líder 55
com verbo carismático ou o mestre espiritual. E são, muitas vezes, tais mem procura a mulher através de todas a mulheres, enquanto a mulher
qualidades que as mulheres' procurarn. nos homens. Quanto à anima, procura todos o0o,meris-,em.um..só..ISão explica.não só qüe, em 'geral; as
encarna os sentimentos, os humores imprecisos, as intuições, a capacida- mulheres sejam mais fiéis do que os homens, mas também o fato de que,
de de amor pessoal, o sentimento da natureza e as relações com o incons- freqüentemente, a mulher tem medo dos homens vistos como um grupo
ciente.17 Ela aparece na cultura da mulher evanescente e misteriosa, sob indiferenciado, ao passo que a presença de um companheiro lhe inspira
os traços da mulher terrena sensual e sexual, da poética e culta, da inicia- segurança; ao contrário, o homem tem medo da intimidade com uma
dora espiritual ou da sacerdotisa. Eis aí, igualmente, os tipos de mulheres mulher, mas não tem receio das mulheres em geral.
procuradas pelos homens.
Jung observou que, no homem que se identifica fortemente com a
A mulher no homem, o homem na mulher
razão e não respeita suas necessidades relacionais, a anima há de expres-
sar-se sob a forma de humores incontroláveis e irracionais que se apode- A fim de evitar qualquer confusão, gostaria de aproveitar esta discus-
ram dele emmomentos inesperados. Essa verdadeira possessão por hu- são sobre o animus e a anima para definir bem alguns aspectos da lingua-
mores irrefletidos, no sentido de ser possuído por um espírito, ocorre na gem. Quando falo do feminino em geral, entendo por isso os valores
vida de um homem enquanto ele não conseguir estabelecer uma relação femininos presentes tanto no homem quanto na mulher, ou até mesmo
consciente com sua feminilidade interior. Isso torna-o, igualmente, sujei- na sociedade. A mesma observação é válida para a utilização do termo
to a surtos de cólera quando, sem se dar 'conta disso, reconhece um as- masculino, que se refere aos valores masculinos exibidos tanto por Ela
pecto de si mesmo em outra pessoa. como por Ele. Pessoalmente, para falar da receptividade feminina no
Em outras palavras, sua sensibilidade inconsciente tem o poder de se homem, prefiro utilizar o termo anima, ao passo que, para falar da ener-
apoderar dele sem seu conhecimento, porque ele não lhe dá um lugar em gia masculina na mulher, prefiro o termo aniMus, simplesmente porque a
sua vida consciente. Por ocasião dessas crises, um feminino caricatural teoria de Jung deu lugar a numerosos abusos.
mantém-no sob seu domínio. Quando um homem está gripado, por exem- Com efeito, o feminino e o masculino que podemos entrever quando
plo, e se queixa como se estivesse morrendo, ou quando faz uma declara- falamos do animus ou da anima possuem sempre um aspecto bem típico
ção de amor inflamada a uma mulher que acaba de encontrar, ele se en-. . e convencional. No entanto, tal conceito pretende ser mais sofisticado.
contra sob a influência de sua anima. Será tanto mais sensível a essa influên- Para Jung, essas figuras interiores são, de fato, representações psíquicas
cia na medida em que não respeitar sua Vida interior e sentimental. Eis o que se elaboram como compensação da atitude consciente exterior. Um
truque do inconsciente para levá-lo ao encontro de sua sensibilidade. exemplo nos fará compreender rapidamente essa problemática.
A mesma coisa é válida para uma mulher identificada com a feminili- Na Lenda do Graal, a mulher do herói Perceval chama-se Brancaflor.
dade tradicional. Defende com vigor opiniões indefensáveis no plano da Ela encarna a figura feminina na qual ele projetou sua anima. Portanto,
razão sem nenhuma prova para apoiar suas afirmações. Ela sabe e isso podemos imaginar a feminilidade interior de Perceval mostrando traços
deveria ser suficiente. Trata-se de um ataque de seu animus comparável de inocência, ingenuidade e delicadeza, como é sugerido pelo nome
ao ataque da anima em um homem. Ela não poderá desembaraçar-se Brancaflor. Entretanto, Perceval é um cavaleiro gaulês brutamontes. Sua
desse senhor que pretende saber tudo a não ser no dia em que lhe der coragem e força, assim como sua violência e brutalidade, acabaram por
uma oportunidade para se expressar de uma forma mais adequada e tiver torná-lo temível. Eis a razão pela qual sua anima é tão delicada. Vem
a ousadia de confrontar suas opiniões com a realidade comum e objetiva. compensar o que falta à atitude consciente para ficar completa. Jung con-
É interessante observar também que, nos sonhos, o animus apresen- seguiu verificar que isso ocorria na maior parte das vezes. Hitler tinha
ta-se, muitas vezes, sob os traços de vários homens, assembléias de juizes, visões da Virgem Maria e os grandes machos apreciam as gatinhas.
professores, grupo de crianças etc., enquanto a anima encarna-se com os Essa concepção é mais bem ajustada à realidade psíquica e permite-
traços de uma mulher misteriosa e singular. Jung concluía daí que o ho- nos sair dos estereótipos. Então, torna-se fácil compreender que um ra-
paz adocicado esconde em si uma imagem da alma decidida e, talvez, até
mesmo brutal. Não é surpreendente que tenha como companheira uma
17. Marie-Louise von Franz. "te processus d'individuation". In L'Homme et se! symboles. Paris:
56
Robert Laffont, 1964. 177. mulher muito categórica. A mesma coisa é válida para uma jovem bem 57
determinada que poderá apaixonar-se por um rapaz meigo, já que este inconscientemente, parceiras que encarnem um ou -Outro desses aspectos,
representa a imagem de sua alma, ou seja, as qualidades que ela tem ne- permitindo-lhe a descoberta de simesmo.• - • -
cessidade de integrar pari estar mais perto de si mesma. O animus é a energia que tem necessidade'cle realizar-Se- tiansforman-
Assim, compreenderemos que a projeção para o exterior de uma di- do a matéria pela sua vontade. É o poder de ação, de movimento, de
mensão tão íntima de nós mesmos explica, em grande parte, nossos ape- impulso. Pervertido, torna-se frenesi mania, autoritarismo, ditadura, sa-
gos e as complicações daí resultantes. Muitas vezes, temos necessidade de dismo. Recusado, vira moleza, falta de rigor, autodestruição. E a mulher
que o outro se submeta à nossa alma inconsciente. Um grande número de poderá também procurar parceiros que encarnem tais dimensões incons-
brigas e rupturas ocorrem quando o companheiro deixa de corresponder cientes de si mesma, a fim de aprender a conhecer-se melhor.
à nossa imagem interior de homem ou de mulher. O animus e a anima conjugados em cada ser formam o milagre mara-
A lei de compensação entre a imagem da alma e a personalidade exte- vilhoso e inexplicável do ser humano e permitem a experiência do amor
rior — o que Jung designa por persona's —, convida-nos, portanto, a sob todas as suas formas, das mais sórdidas às mais sublimes.
sermos prudentes quando falamos do feminino no homem e do masculi-
no na mulher, porque esse masculino e esse feminino variam bastante de
uma cultura para outra e de um indivíduo para outro. Podemos ter ouvi- Triângulo familiar ou triângulo infernal?
do falar de tendências gerais como ás que pretendem que o homem está
A constelação familiar
mais afastado de seus sentimentos e que a mulher possui um sentido de
ação e de objetividade menos aguçado, mas convém estarmos conscientes Nossa discussão sobre a identidade sexual levou-nos a estabelecer a
de que as exceções a tais regras não são raras. Um grande número de separação entre o papel do progenitor do Mesmo sexo e o papel do pro-
mulheres não têm muita habilidade para eXpressar suas verdadeiras emo-. genitor do sexo oposto. Falamos, igualmente, dos danos que podem ser
ções no âmbito de uma relação 'amorosa, assim corno um grande número causados.pelos complexos parentais negativos. Antes de prosseguirmos e
de homens não têm um sentido muito desenvolvido da iniciativa. Tam- entrarmos ainda mais profundamente nas relações pais-filhos, importa
bém não é justo dizer que, sob a aparência de nossas relações amorosas, agora tornar relativa essa influência dos pais ,e mástrar que eles raras
linntamo-nos a procurar o progenitor do sexo oposto. Um homem pode vezes são os únicos responsáveis pelos. dissabores dos- filhos. Concluire-
muitíssimo bem estar com uma mulher que encarna os traços de seu pai, mos, assim, esta parte teórica.
assim como uma mulher pode amar um homem que apresenta os traços Comecemos por dizer que, na realidade, a criança não se situa em um
de sua mãe. eixo pai-filha ou mãe-filho. Antes de tudo, ela vive em um triângulo pai-
Em resumo, poderíamos dizer que a anima é essa força existente no mãe-filho, e participa com todo seu ser da relação conjugal. É mesmo
homem que inspira a necessidade de amar e ser amado, de cuidar de muito importante que isso aconteça dessa forma, porque a aceitação do
alguém e ser apreciado. Ela é a capacidade 'de amor e acolhimento, de terceiro significa a verdadeira aceitação do outro. A três, existe já uma
tolerância para além da razão e de compaixão infinita. Pervertida, torna- minissociedade.
se dependência, submissão, servidão, escravidão e masoquismo. Recusa- A criança vive a tal ponto em simbiose com o pai e a mãe que poderá
da, vira frieza, rejeição, dureza. Eis o que levará o homem a procurar, muitíssimo bem chegar a pensar que, por suas ações, é responsável pela
separação dos pais ou pela harmonia do casal. A criança faz questão da
unidade do par parental porque, para ela, essa unidade simboliza a
18. A máscara que usamos na vida em sociedade ou desde que estamos na presença de outra pessoa complementaridade dos opostos que garante a manutenção do mundo. É
constitui nossa persona. Jung tornou de empréstimo esse termo do grego. Na Grécia, ele signifi-
cava a máscara utilizada pelo ator com a finalidade de fazer ressoar melhor sua voz (per sonare) por isso que os filhos do divórcio conservam, durante muito tempo, a
no anfiteatro. Portanto, a persona serve de ponte para chegar aos outros. Consiste em uma ilusão de reunir de novo os pais e experimentam uma grande satisfação
medida de adaptação entre nosso verdadeiro ego e a sociedade. Pode tornar-scrígida e doentia
quando deixa de traduzir qualquer traço da personalidade de base. Quando não ha congruência
quando conseguem fazê-lo por ocasião de um acontecimento feliz ou
entre nosso eu fundamental e nossa aparência, soamos falso e a neurose está à nossa espreita. A infeliz, tal como um aniversário ou um acidente.
persona é essencial, serve para a vida em sociedade e para o controle dos impulsos, mas um ser
não deve identificar-se com ela ao ponto de pensar que toda sua individualidade se encontra
Além disso, até esse triângulo aparece em si mesmo como uma divi-
58 59
representada ai. Ver Dialectique du Moi et de l'inconscient, op. cit., p. Si. são artificial do que se passa na realidade familiar. A criança nem chega a
se situar em um simples triângulo, mas em um sistema familiar do qual nal. Uma infância sofrida leva, quase inevitavelmente, ao ensimesmamento.
Certas crenças
. • . negativas sobre . suas próprias capacidades isolam o ego na
_participam
, .•
também os irmãos e as irmãs. Até mesmo os parentes niais. .
uel ncoliáé impédein-na de se afirmar no exterior.
próximos, tais como um avô, uma avó, ou qualquer outra pessoa que
ocupe espaço no território familiar, podem tornar-se importantes, do Os padrões de medida de uma identidade sadia são os seguintes: a
ponto de vista psicológico, para a criança. Em outras palavras, suas fron- confiança em si, a capacidade de fazer escolhas, de satisfazer as preferên-
teiras da realidade psicológica são muito porosas. cias e vontades, a capacidade de se relacionar com os sentimentos e ne-
Se pedirmos a uma criança para desenhar a constelação familiar, pro- cessidades, assim como a capacidade de criar vínculos afetivos. A pessoa
pondo-lhe que simbolize cada pessoa sob a forma de. um objeto e que, cuja identidade permanece frágil está repleta de dúvidas, vive em um
igualmente, represente as relações entre os diferentes personagens, com- mundo hostil que a julga e a critica sem parar e, em geral, encontra-se
preenderemos o quanto são imprecisas as fronteiras da sua realidade psi- separada daquilo que experimenta. Muitas vezes, além de sentir-se culpa-
cológica. Se é nítido que os paiS ocupam sempre posições centrais nessas da por ter necessidades, acha que não tem direito de expressá-las. Uma
constelações, damo-nos conta rapidamente de Mie a noção de pai ou de infância bem-sucedida é aquela em que um ser se 'sentiu apoiado na ex-
mãe não pode permanecer fixada nos progenitores biológicos. Natural- ploração do mundo que o rodeava, assim como na afirmação e na mani-
mente, a criança atribui ao pai e à mãe substitutos.? mesma importância festação de seus sentimentos e necessidades.
que dá aos biológicos. Parece que, na experiência humana, tudo procura-a expressão dos
Daí decorre, como eu dizia anteriormente, que todas as figuras que talentos e da originalidade individuais. Parece que os 'seres Mais felizes
cuidam da criança de perto ou delonge, assumindo as funções do pai e da são os que têm acesso a um modo dè afirmação que os satisfaz, quer se
mãe, participam da formação dos complexos parentais. Um avô caloroso trate de jardinagem, bricolagem ou ainda de manifestações artísticas. Eles
pode compensar a figura de uni pai frio e, assim, reequilibrar a -carga encontraram unia forma de expressar seu verdadeiro ser através da sexua-
emocional do complexo paterno. lidade, da vida: em casal, da família ou do trabalho. Esse poder de.exterio-
De fato, a criança acomoda-se muitíssimo bem a uma mistura de in- rização permite a comunhão com o ambiente humano 'e natural.
fluências, com a condição. de que saiba quem é o principal responsáVel A alegria de viver parece ser a recompensa daquele ou daquela que
pela relação com ela. Vem daí, precisamente, o drama de várias crianças chega a satisfazer suas necessidades fundamentais e 'a manifestar sua iden-
contemporâneas. Carecem de referenciais. Ocupados pela atividade pro- - tidade de base. Aquilo a que se dá o nome de amor parece ser o produto
fissional, os dois progenitores não têm tempo suficiente para estar com desse contentamento. O ser que venceu as restrições interiores ç tem a
os filhos. Estes crescem em uma espécie de vazio e as imagens parentais oportunidade de poder expressar-se livremente vive em um mundo de ple-
positivas não têm a mesma possibilidade de se instalarem. A identidade nitude e de gratidão, em vez de um mundo em que são constantes.as carên-
masculina ou feminina deles permanece indefinida. Por conseqüência, cias de toda ordem. Aliás, ^a crise de fome pode reinar à sua volta, que
são afetadas na confiança em si mesmas, assim como em sua força de mesmo assim algo de fundamental continua a alimentá-lo e a torná-lo feliz.
afirmação-. Portanto, o dever parental consiste em apoiar as experimentações da
Quanto mais se trabalha com crianças, maior é a evidência de que criança, assim como encorajar as expressões de sua individualidade. Em-
uma babá, um porteiro ou, até mesmo, os vizinhos ocupam unia posição bora se trate de oferecer um quadro de segurança a ela, se esse quadro se
predominante na constelação familiar. Isso é, com toda a certeza, mais tornar demasiadamente protetor ou rígido, acabará prejudicando sua
válido do que o grande vazio. Por sua vez, algumas crianças têm apenas criatividade. Há de castrá-la em sua ferramenta mais preciosa: a capaci-
os modelos televisivos para aprenderem a se construir. A presença dos dade de expressão de si mesma.
pais não é suficiente em termos de tempo passado com os filhos para Neste aspecto, parece que os melhores pais não são os que se empe-
permitir que eles venham a humanizar esses modelos estereotipados da nham em ser perfeitos modelos, mas aqueles que conservaram uma pai-
cultura. xão criadora pela vida. É raro encontrar seres que tenham seguido verda-
É evidente que a aventura familiar pode facilmente transformar-se deiramente os conselhos dos pais ou educadores. Pelo contrário, são nu-
em catástrofe no que diz respeito à construção da identidade. Neste sen- merosos aqueles cuja força de vida foi despertada pela presença de um
60 ser apaixonado. Afinal de contas, o que realmente marca a criança é a 61
tido, o triângulo familiar pode facilmente tornar-se uni triângulo infer-
atitude dos pais diante dos infortúnios da' existência. O humor incons- _ Escutando o poeta, parece desejável adotar uma psicologia que de-
tante de um progenitor favorece, muitas vezes, a mesma atitude no meni- volva à criança seu poder pessoal. Neste caso, o papel dos pais não será
no ou menina. Ao se tornarem adultos, estes hão de enfrentar as prova- modificado, _mas aliviado de sua onipotência. Apesar de seu dever de
ções da vida com derrotismo. Se, pelo contrário, os pais tiverem enfren- estarem vigilantes para preservar e estimular o ímpeto vital da criança,
tado as provações com um otimismo inabalável, existem boas perspecti- eles não são responsáveis pelo destino dela. Deverão estar sempre à escu-
vas de que os filhos venham a copiar suas atitudes. Abordarão as dificul- ta dessa individualidade em devir, respeitando suas necessidades de ex-
dades, dizendo: "Não é o fim do mundo! Meus .pais sobreviveram, eu pressão, mas estando conscientes de que esse ser caminha para uma exis-
também sobreviverei. Amanhã será um outro dia." tência de que ele mesmo é o artesão e o responsável.
Podemos até mesmo nos perguntar se as tensões problemáticas que
são vividas entre pais e filhos não surgem exatamente para levar todos os
A criança não é uma folha em branco
protagonistas a um conhecimento mais aprofundado deles mesmos, não
Parece difícil negar o caráter individual de cada criança que nasce, só através da alegria, mas também através do sofrimento. Consideradas
pois de algum modo essa individualidade está presente desde o início. A por esse prisma, não existem experiências negativas. Tudo serve, afinal
criança não é uma folha em branco na qual os pais escrevem um cenário. de contas, para nos conhecermos melhor e nos orientarmos no amplo
Aliás, estes não cessam de ficar espantados diante das diferenças indivi- campo da vida.
duais bem marcantes manifestadas pelos filhos desde o nascimento. Confrontado com toda a variedade dos destinos individuais, Jung
A partir da experiência, algo da individualidade de urn ser escapa concluía que certos seres tinham necessidade de se expressar através de
incessantemente às nos‘sas análises. Embora seja justificado afirmar que a experiências eminentemente sinistras, tais como o assassínio, para chega-
presença e a qualidade de presença doS pais ajudam, com toda a certeza, rem a alcançar o mais profundo de seu inconsciente. Tal perspectiva faz-
a formação de uma identidade sadia na criança, tal regra não abrange, nos estremecer e convida-nos a adotar uma atitude tolerante nos julga-
por si só, a complexidade do ser Vivo. Alguns fatores permanecem in- mentos pronunciados sobre as pessoas. A própria Marie-Louise von Franz,
compreensíveis. O rapaz-oriundo .de um meio desfavorecido no plano discípula de jung, falava dos criminosos como redentores negativos que
psicológico pode muito bem reagir desenvolvendo uma força de afirma- manifestam para nós as feridas e os sofrimentos que escondemos no fun-
ção exemplar; por sua vez, a jovem que se tenha beneficiado de toda a do de nós Mesmos. Se cada um de n6s tivesse a ousadia de assumir sua -
atenção e benevolência desejada pode muito bem soçribtar na depressão. parte de sombra, talvez houvesse menos Conflitos sangrentos no planeta.
Em última análise, não se conhece a razão pela qual um adolescente Nosso fascínio pelos grandes criminosos só pode revelar o quanto parti-
decide suicidar-se como reação a seu primeiro desgosto na vida amorosa cipamos intimamente de sua natureza, quer queiramos ou não.
quando, afinal, teve bons pais, era capaz de expressar-se e estava obtendo De qualquer forma, ao vermos as experiências negativas agirem como
bom desempenho nos estudos. Mesmo se fosse possível explicar tal gesto reveladores da alegria fundamental de existir, acabamos por observar as
por uma falta de construção interior devida a um meio que não lhe per- grandes crises individuais como se fossem grandes ocasiões de mudança.
mitia tomar consciência de si mesmo, será que se pode incriminar pais É inegável que uma infância difícil, anos de alcoolismo ou, até friesino,
que, muitas vezes, fizeram tudo quanto estava a seu alcance ou não sa- um episódio de violência, podem agir como estímulos que ajudam um
biam proceder de outra forma? indivíduo a encontrar o caminho de uma vida mais satisfatória. Seria
Parece que convém citar o sábio e poeta Khalil Gibran, que no livro imprudente pensar que alguns pais tivessem chegado ao sadismo de dese-
O Profeta fala dos pais nestes termos: jar tais episódios para os filhos e, ao mesmo tempo, imputar-lhes a res-
ponsabilidade dessas ações.
Vossos filhos não são vossos filhos. Mas são filhos e filhas do apelo da Vida a si Ninguém pode evitar o sofrimento, e inclusive podemos saudá-lo,
mesma. Eles vem através de vós, mas não de vós. E embora estejam convosco, porque nos leva a enfrentar as questões essenciais da existência. Sem dú-
não vos pertencem." vida, ele constitui um fator fundamental da vida, já que ninguém conse-
gue escapar dele. É o aguilhão que impele os seres a tomarem atitudes
63
justas. Tanto desperta quanto destrói, e diante de tal perspectiva, torna- ........
19. Khalil Gibran. O Profeta. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
se mesquinho acusar os pais pelo sofrimento dás filhos ou, inversamente;-
acusar os filhos pelo sofrimento, dos pais, Os' Seres precisam' tanto do
sofrimento para crescer que às vezes torna-se até mesmb malsã a-tentiti:
va dos pais que procuram evitar, a qualquer preço, que os filhos sofram.
Tendo sido apresentadas essas poucas balizas relativas à identidade, 3
vamos abordar, em seguida, as relações pai-filha para apreendermos me-
lhor o drama que Ela e Ele estão vivenciando no sofá.
Pai e Filha:
O Amor em Silêncio

O pai silencioso

Prisioneiros dos estereótipos


Se pretendêssemos estigmatizar a situação em que Ela e Ele se encon-
tram no sofá da sala, poderíamos dizer que Ela é uma mulher que ama
demais» enquanto Ele é um homem que tem medo de amar! No entanto,
esses personagens bem conhecidos da psicologia popular têm uma histó-
ria. Não.são fenômenos espontâneos. Enraizara-se no triângulo desequi-
librado da família tradicional, no qual o pai está ausente, enquanto a mãe
lenta compensar essa ausência desempenhando vários papéis ao mesmo
tempo. Portanto, nos próximos capítulos, vamos mergulhar na gênese de
tais imagens pré-fabricadas debruçando-nos sobre as relações pai-filha e
mãe-filho. Com efeito, é o silêncio do pai que cria a mulher que ama
demais, ao passo que a solicitude materna produzo homem que tem medo
de amar.
Naturalmente, há sempre, o perigo de soçobrar nas acusações e julga-
mentos quando nos damos a permissão de escarafunchar as relações en-
tre progenitores e filhos, -como é a intenção deste livro. De fato, como
não podemos modificar o passado, tal exercício não tem sentido a não
ser que permita compreender melhor nossos comportamentos presentes.

I. Torno emprestado esta denominação do best:salér internacional de Robin NOrwood:Ces fernmes


qui aiment trop. La radioscopie des amours excessifs. Montréal: Stanké, 1986.
2. O homem que tem medo de amar ê também uma imagem que surgiu na psicologia popular, em
especial, graças ao livro de Julian Carter e Julia Sokol: Ces Pommes qui ont peur d'aimer. Ceux
64 qui seduisent et ne s'engagent pas. Comprendre les Pommes des amours. Paris: "J'ai col.
65
"Bien-être", n. 7064, 1994.
O passado pelo passado não tem qualquer interesse. Em compensação, o O amor em silêncio
passado que ainda está ativo na nossa vida cotidiana, no sentido em que -
Sempre que animo encontros que. têm _como tema a -relação-. com. o.: •
motiva nossas escolhas sem que á saibamos, é domais elevado interesse.--
pai, fico emocionado e surpreendido com a grande ternura que a maioria
Mas, ainda ai, unicamente se a análise permite não só compreender os
condicionamentos nefastos, mas também libertarmo-nos deles. das mulheres manifestam pelo pai, apesar da prisão de silêncio que en-
volveu a relação entre eles. Sou também testemunha da cólera e, às vezes,
No início de um trabalho de grupo sobre a relação com o pai, realiza-
da indignação por terem sido vítimas de abuso, mas existe quase inevita-
do em pleno Saara, uma participante perguntava-me se era verdadeira-
mente necessário rasgar o verbo. Implorei que me dissesse se ela se ques- velmente, em segundo plano, a dor agridoce do amor que não conseguiu
expressar-se. Anos e anos de amor em silêncio, um amor como penitên-
tionaria dessa forma diante de uni viajante esgotado e sedento em razão
cia. Isso assemelha-se a um desgosto de amor que a pessoa aprendeu a
de longas horas de caminhada no deserto e que transportasse na mochila
atenuar com o tempo. Um desgosto ao qual não irá se submeter, mas com
unia quantidade de objetos pesados e inúteis. Sem dúvida, lhe proporia
o qual terá de viver. Um desgosto em que não chegou a haver o encontro
que abandonasse na hora algumas dessas coisas incômodas, mesmo se tal
profundo. O encontro a que fica presa, porque, no fundo, ela ainda co-
operação tivesse por conseqüência uma perda de tempo para ele. Inevita-
menta que poderia ter sido diferente. E esse amor que poderia ter sido
velmente, ele teria necessidade de fazer o inventário dos objetos, tomar
diferente continuará sendo procurado junto de outros homens quase de-
consciência dos que não servem para nada, aceitar abandoná-los e, final-
sesperadamente.
mente — última etapa, mas não a menos importante —, habituar-se a
andar com um peso mais leve. Com efeito, não será verdade que o medo Portanto, veremos neste capítulo a maneira como o mal-estar que Ela
está vivenciando no sofá vem, em parte, da deficiência das relações entre
da liberdade e da leveza é o maior obstáculo à nossa evolução?
pai e filha.
Nos próximos capítulos, vamos Passar em revista certos aspectos das
relações pai-filha, porque, para deixar de definir o casal a partir das feri-
das da infância, é essencial reconhecer e clarificar as dinâmicas do passa- Um vazio á preencher
do. Urna vez mais, essa clarificação não tem como finalidade identificar
Segundo Christiane Olivier' nos primeiros anos dé vida, a menina
os verdadeiros culpados de nossa infelicidade e acusar seja quem for. Mas,
encontra-se em uma posição ainda mais difícil do que o menino, conside-
afites, seu objetivo consiste em compreender as feridas que nos ligaram a
rando que não pode reconhecer-se, seja no pai ou na mãe. Como não
essas pessoas no mesmo drama, a fim de superá-las. De fato, na prática
possui os atributos sexuais de nenhum dos progenitores, sua vida inicia-
terapêutica não cessamos de constatar que, segundo a fórmula de Freud,
se em um verdadeiro vazio de identidade.
o passado que não chega à consciência repete-se, ou que, segundo a fór-
Eis, talvez, a razão pela qual a metáfora do vazio desempenha um
mula de _lung, O que permanece inconsciente chega a nós do exterior
papel tão importante na vida de numerosas mulheres. Quando se sentem
corno um destino que nos parece estranho quando, afinal, reflete sim-
cheias, são felizes; e quando sé sentem vazias, são infelizes. Cheias quan-
plesmente nossa condição de vida interior.
do recebem amor e atenção, vazias quando não têm nada disso. Do pon-
Em nenhuma parte isso se verifica de forma filais eloqüente do que
to de vista tanto físico quanto psicológico, o vazio e o cheio, a falta e o
no terreno da vida a dois. Não cessamos de ficar surpreendidos pelo fato
excesso são os pólos em torno dos quais parece que a vida delas está
de que os seres escolhem parceiros que se assemelham ao pai ou à mãe.
condenada a girar, seja porque têm quilos a mais ou os seios ou a bunda
Podemos até mesmo dizer o seguinte: quanto mais dolorosas forem as
demasiado grandes, seja porque são magras ou delgadas demais, muito
relações de intimidade, melhor refletirão as dinâmicas da infância que
baixas ou altas. Seja porque, ao mesmo tempo, têm uma coisa em dema-
ainda não estão suficientemente clarificadas. Quando os vínculos entre
sia e outra em quantidade insuficiente: uma bunda grande demais e seios
progenitores e filhos não estão nitidamente destrinçados, os dramas anti-
muito pequenos, uma grande barriga e uma bunda demasiado pequena;
gos voltam a ser representados no palco das relações afetivas. A-tal ponto
que esses condicionamentos podem tornar a vida em casal virtualmente
impossível.
66 67
3. Christiane Olivier. Les Enfants de focaste, op. cit., p. 65.
seja porque uma falta justifica a outra: "Se eu tivesse um peito maior, O destino sinistró -••
parece-me que seria -niais audaciosa." . •.
Esse sentimento de vazio será agravado, apesar de duvidarmos, pelo Importa'Clizet que o vazid eTás.'idéiaS sirástras que o acompanham não
silêncio do pai. A menina acaba por pensar que o pai não fala com ela são fáceis de controlar. Durante vários anos, fui analista de uma mulher
porque não é suficientemente linda, inteligente; e quanto mais o tempo que tinha vivido em uma família em que havia várias filhas. A mãe sofria
passa, tanto mais esse vazio vai ficando cheio com toda a espécie de con- de uma espécie de ciúme doentio que se expressava não só relativamente
vicções negativas. Afinal de contas, a criança sente-se culpada pelo silên- à atenção que o marido prestava às filhas, mas também aos eventuais.
cio paterno e começa a depreciar-se: "Eu não valho a pena. Não sou olhares que ele pudesse ter trocado com vizinhas., Ela inventava histórias
interessante. Nunca estarei à altura." extraconjugais e tinha crises na hora das refeições. Em tal contexto, o
pobre homem encontrava-se, por assim dizer, castrado. Permanecia cala-
do na ponta da mesa e distribuía olhares e palavras com parcimônia. Por
A idealização do pai
sua vez, as filhas rivalizavam para atrair sua atenção.
Poderíamos quase dizer que, a partir desse momento, a jovem começa Não fiquei surpreso ao ouvir da boca de minha analisanda que tinha
a tecer seu destino amoroso pelos seguintes motivos: se, por um lado, ela , casado com um homem tão silencioso quanto o pai. No momento de
se deprecia, por outro, idealiza o homem e preenche o vazio com a ilusão começar a terapia, ela vivia com o marido há uns dez anos. O casal tinha
do Príncipe Encantado. "Um dia; meu príncipe virá" poderia traduzir-se, uma menina que recebia pouca atenção do pai. Nos últimos três anos não
em numerosos casos, por "um dia, meu pai virá, um dia irá me falar e, tinham feito amor e o marido passava a maior parte das noites fora de
finalmente, existirei como mulher". É claro, tal ilusão transformará seus casa ou refugiado em livros de ficção científica. Apesar de sua insatisfa-
primeiros contatos com os homens em catástrofe previsível; nenhum de- ção, esta mulher declarou-me, cheia de inquietação, no final da primeira
les poderá suplantar essa figura porque ela é ideal. No entanto, a jovem sessão: "Não qtiero separar-me!"
irá conservá-la e impô-la aos homens que estão à sua volta, correndo o Ela não tinha confiança suficiente em si mesma para romper ess.e rela-
risco de viver vários fracassos porque o vazio dissimulado por esse ideal .é cionamento que a confinava na melancolia. Como reação ao silêncio do
ainda mais difícil de enfrentar. •Pai, uma dúvida constante tinha-se instalado nela. Uma voz sussurrava-
Para ela, a falta do pai exacerba o sonho de ser escolhida por um lhe, incessantemente, aos ouvidos: "Você nunca encontrará outro!" Toda
homem que 'poderá tornar feliz e satisfazer plenamente. Com a ausência . a sua.criatividade era utilizada para 'imaginar os cenários mais sombrios e
do pai, o aspecto mítico desse devaneio nunca é humanizado. A jovem nefastos se chegassem ao divórcio. Sua filha ocupava, é claro, o centro
permanece prisioneira de seu romantismo: é uma mendiga que espera desses relatos imaginários. Já a vià na adolescência, obrigada a consultar
pelo salvador, ou ainda uma princesa confinada em uma torre que espera um psicoterapeuta por causa da separação dos pais. Até o dia em que
pelo seu cavalheiro. No plano psíquico, essa prisão de ilusões expressa-se começoica compreender que ela preferiria seguir o exemplo de uma mãe
nos sonhos em que é vítima de um vampiro ou seqüestrada por uma corajosa que tivesse corrido o risco da separação, em vez do exemplo de
figura Com.° oBarba Azul. Com efeito, a rede dos devaneios tem o poder unia mulher resignada à sua sorte.
de vampirizar sua força de vida. Nesses casos, a libido dilui-se em deva- O silêncio do pai tinha provocado nessa mulher a formação de um
neios românticos, em vez de ser canalizada para um amor real e possível. complexo que tinha acabado por minar a confiança em si mesma. A voz
Então, podemos dizer verdadeiramente que a força do animus é prisio- que incessantemente lhe traçava esse destino sinistro e incontornavel era
neira de um complexo paterno negativo. a de um aáimus negativo, prisioneiro do complexo paterno. Só depois da
Quando a jovem foi privada da presença paterna, seu desejo de aten- separação é que ela voltou a encontrar Ria criatividade e essas vozes sinis-
ção deixa-a à mercê de sua fantasmagoria. Conheci várias jovens cujo tras se acalmaram. Precisou de muita coragem para retomar, enfim, o
único sonho era morar em Hollywood, afim de atrair a atenção de um
controle de seu destino, porque, simbolicamente, a dificuldade da rela-
produtor que reconhecesse seu talento e as levasse ao topo da glória. Tais
ção com o pai tinha acabado por lhe cortar as mãos.
ilusões intricas são estimuladas pelo fato de que, em nossa sociedade, a
beleza feminina é divinizada. Alguns grandes manequins têm necessidade
68 69
unicamente de ser belas para serem projetadas no cenário mundial.
A mulher ferida feminino e das mulheres na sociedade patriarcal. O segundo refere-se aos
processos psicológicos em ação no moleiro e na jovem.
-' Movem sem ínãos. Coniecenios por falar- da'-pSi-cologia do homem, representada peio
moleiro. Em primeiro lugar, Marie-Louise von Franz sublinha a incons-
Para ilustrar este exemplo, eis um conto no qual os pulsos da heroína
ciência desse pai que vende a filha por inadvertência a fim de conseguir
são cortados pelo próprio pai. O conto foi coligido pelos irmãos Grimm
riquezas.' Ela compara tal atitude à postura dos pais contemporâneos
e intitula-se: A jovem sem mãos.4 Fala-nos da mutilação psicológica
que, demasiado preocupados com os negócios, negligenciam o vínculo
infligida pela indiferença paterna.
afetivo com a companheira e com os filhos. Metaforicamente, é como se
vendessem a filha ao diabó, ou seja, tentassem desembaraçar-se de sua
Um moleiro que tinha ficado pobre aceita vender ao diabo o que se encontra
atrás do moinho. Tudo o que existe ai é uma velha macieira pela qual não tem o
anima. Em outras palavras, este homem traiu o próprio inconsciente para
menor interesse. Em troca, Satanás promete-lhe todas as riquezas que desejar. Ao ter sucesso na vida profissional e social. Abandonou a capacidade de rela-
entrar em casa, o moleiro constata sua feliz fortuna, mas fica sabendo, horroriza- çáo e esquivou-se do conflito interior associado à expressão da própria
do, que a filha estava varrendo o terreiro atrás do mciinho no momento da tran- sensibilidade. É por isso que a filha acabará sendo vítima da sombra de
sação. Como fica com medo de perder a própria vida, resigna-se a entregá-la ao seu pai, feita de cupidez e insensibilidade.
maligno. Pede a ela que se prepare para que o demônio venha buscá-la três anos Com sutileza, Marie-Louise von Franz sublinha também a forma como
mais tarde. o conto associa a jovem à velha macieira, a mulher à natureza. Ao desem-
Tendo passado o tempo combinado, o diabo volta para levar seu espólio, Mas baraçar-se da velha árvore pela qual não tem o menor interesse, o molei-
a jovem lavou-se e é tão pura -de piedade que ele não consegue levá-la. Então, ro rompe simbolicamente o contato com a natureza. Ao mesmo tempo,
pede ao pai para não permitir-que 9 filha se purifique com água. Volta a segunda rompe o contato com a feminilidade interior representada pela- filha.
vez sem maior sucesso, porque agora a jovem-tinha derramado uma grande quan-
Resulta daí que pode estabelecer relações interpessoais e abstratas, mas
tidade de lágrimas puras nas mãos. Então, ele ordena ao pai que corte as mãos da
'não consegue envolver-se em relações concretas e individuais.
filha; caso contrário, será levado em vez dela. Por covardia, ele executa o desejo
Em uni plano mais amplo, a analista observa que, nos contos de fa-
de Satanás, mas, de novo,i, jovem pura Chora tanto nos pulsos que o maligno
das, são sempre as heroínas que ficam com as mãos cortadas, e nunca os
ainda não consegue levá-la. E acaba perdendo os direitos sobre ela. O pai„ alivia-
do, promete à filha todo o luxo que desejar até o fim de seus dias; no entanto, heróis, porque é a criatividade:no feminino que foi reprimida pela cultu-
enojada Com sua atitude, ela decide abandonar a casa paterna e, apesar de aleija- ra patriarcal. Em sua essência a criatividade feminina é produtiva, dei-
da, encontrar refúgio no exílio. *ando crescer e germinar, inversamente à criatividade masculina, que se
Em pouco tempo, encontra-se em um país onde um bom rei, apaixonado e concretiza agindo e ativando-se. Para a criatividade feminina, trata-se de
compadecido, casa-se com ela e ordena que lhe façam mãos de prata. Infelizmen- transportar em si e deixar chegar ao termo, fazendo cada coisa no mo-
te, pouco tempo depois, é obrigado a partir para a guerra no momento em que a mento adequado, segundo o ritmo da natureza. O motivo da mutilação
mulher está grávida. O diabo, que não tinha digerido seu fracasso, aproveita a da jovem significa que a sociedade patriarcal não atribui qualquer valor a'.
ocasião para persegui-la sem lhe dar tréguas e fazer com que, na ausência do esse gênero de criatividade. Aliás, essa mutilação tem a ver com muitos
bem-amado, seja repudiada e expatriada com o filho. Ela foge para a floresta sob de nós: conhecemos a produção que corresponde à vontade, mas perde-
a tutela de um anjo. No refúgio, as verdadeiras mãos crescem de novo, graças à
mos contato com a criatividade que vem das entranhas e cujos produtos
sua piedade. Tendo voltado da guerra, orei vai à sua procura e consegue encontra-
só nascem quando estão maduros.
la. Finalmente, a união dos dois irá prolongar-se na paz e no amor.
De forma mais especifica, os contos deste tipo simbolizam a perda da
autonomia das mulheres no seio da sociedade dos patriarcas. Mutiladas,
Não lhes relato as peripécias em detalhe porque desejo limitar-me ao
já não conseguem tomar em mãos o próprio destino. Tal conto nos per-
início. A psicanalista Marie-Louise von Franz aborda a interpretação des-
mite constatar o modo como a crítica da civilização patriarcal era feita,
se conto a partir de dois planos. O primeiro diz respeito ao destino do

70 4. Jaco') e Wilhelm Grimm. Contes, 1. Paris: Flammarion, col. "Grand Formar", 1986, p. 184.
71
5. Marie-Lorrise von Franz. La &mine dans les contes de lées. Paris: La Fontaine Pierre, 1979, p. 147
outrora, pelo viés dos contos populares. Como se se -tratasse de Sonhos, Segundo a psicanalista, a filha que não tiver sido alimentada pelô
eles afirmavam por imagens o que se tramava no fundo -do inconsciente e sentimento paterno, a filha que tiver permanecido insatisfeita no plano
advertiam os pais para não abandonarem a família a fim de correrem afetivo, correrá o risco de ser possuída por uma-intelectualidade destrui-
atrás da riqueza. No conto particular que nos ocupa, não é por nada que dora que há de procurar tomar posse dela. Se vier a ceder a esse animus
o pai da jovem é um moleiro, um dos primeiros homens a viver da trans- diabólico, ela correrá o risco de tornar-se ambiciosa e fria. Irá copiar o
formação do que os outros produzem, um dos primeiros industriais. Os pai, reproduzindo os seus comportamentos mais dificilmente toleráveis.
contos já pressentiam que a industrialização poderia engendrar um fosso Tornar-se-á eficaz e calculista e, à semelhança do pai, reprimirá sua pró-
entre o homem e a natureza, assim como entre o homem e a mulher. pria qualidade de eros.
Vejamos, agora, a psicologia da jovem. A negligência do pai e sua A jovem de nosso conto não segue essa evolução. Para se defender de
covardia simbolizam, com toda a certeza, um complexo paterno negativo tal destino, o único recurso à sua disposição é deixar que lhe cortem as
do qual o ego é vítima. Mas o que pode significar exatamente o fato de mãos, ou seja, renunciar à criatividade e à capacidade de tomar iniciati-
ser vendida ao diabo? Psicologicamente falando, isso quer dizer entrar vas. Portanto, começa a vida sentindo-se órfã e deficiente no plano psico-
em um estado de possessão em que deixamos de nos pertencer. Um gran- lógico. Aceita não só ser mutilada para subtrair-se ao demônio, mas tam-
de número de mulheres, vendidas ao diabo pela indiferença do pai, caem bém exilar-se para escapar. do pai.
em tais estados. Sua criatividade. ferida volta-se contra 'elas e contra as No plano simbólico, a mão revela-se de uma importância capital na
pessoas ao seu redor. Tornam-se incompreensíveis para seus parentes. evolução da espécie humana. A destreza da mão libertou o ser humano
Crises, caprichos, disciplina minuciosa, tentativas de controle a qualquer de numerosos determinismos e permitiu-lhe fabricar ferramentas para
preço, manipulações, suspiros e sentimentos de culpa fazem parte do transformar a matéria. No entanto, as mãos têm, igualmente, uma di-
quadro. O animus que não consegue encontrar sua expressão adequada mensão afetiva. A Mutilação não simboliza somente uma perda de poder
no exterior torna-se francamente diabólico porque está confinado no in- em relação ao meio ambiente, mas também uma perda de contato com
terior. Anda de um lado para o outro na sua prisão e assusta todos os que este. Ainda podemos ver e ouvir, mas já não é possível tocar ou andar de
tentam aproximar-sé. mãos dadas com o filho ou o companheiro. A aceitação da mutilação
Como já expliquei antes, quando a força criadora permanece prisio- pelo ego significa uma redução das capacidades de ação em benefício de
neira do complexo paterno negativo, é como se a pulsão de autonomia se uma vida vegetativa, assim como uma perda de contato com os outros. É
voltasse contra o indivíduo e pretendesse arrastar consigo o resto da per- como se a jovem se considerasse estrangeira em seu próprio mundo e
sonalidade. Tais mulheres têm unia nuvem permanente sinistra em cima renunciasse a qualquer esforço no sentido de conseguir a autonomia. Fe-
da cabeça. Até mesmo nos acontecimentos felizes, têm sempre o que di- lizmente, neste caso, tal sacrifício — por ser voluntário — lhe permitirá
zer. Sua 'vida é tecida no decorrer de crises e sofrimentos. Com a falta do recuperar as forças no seio da natureza e ver ressuscitar sua capacidade
calor do pai, a infelicidade constitui a maneira de merecer a atenção das de ação.
pessoas que estão à sua volta. Perguntamo-nos, às vezes, se elas não sen-
tem prazer com tal situação. Na realidade, sofrem sob o controle desse
sinistro animus que não abrandará tal influência enquanto a força de vida O pai incestuoso
não tiver retornado seu curso normal. Com seu complexo paterno cruel e esse animus diabólico, este conto
Marie-Louise von Franz define ainda melhor a significação desse poderia descrever muitíssimo bem o drama interior da filha que se torna
animus diabólico que tenta apoderar-se da jovem, acrescentando: vítima de outra espécie de mutilação exercida pelo pai: o incesto. Este é
um dos crimes que se passam no silêncio, um silêncio que esconde men-
Quer tente alguma coisa no domínio intelectual, quer se afirme como pessoa autôno- tiras assassinas. Na conferência que proferiu no Congresso Internacional
ma, ela corre o risco de ser possuída pelo próprio animus negativo ou por um surto
de Análise Bioenergética, o psicólogo Réjean Simard fez algumas refle-
de vontade de poder e tornar-se tão fria, impiedosa e brutal quanto era o pai.'
xões a propósito de um caso de incesto que acompanhou durante doze
anos. Ele observa que "a pessoa vítima de importantes abusos sexuais é
72
.... 6. Marie-Lonise von Franz, op. cit., p. 147. mais afetada não tanto na identidade sexual quanto em sua própria exis- 73
tência".7 Essas pessoas sentem dificuldade para permanecer em contato maioria das prostitutas seriam vítimas de incesto.9 A emergência de sua -
com a própria vivência e estabelecer relações de intimidade com quem personalidade foi ferida. Por não terem sido respeitadas, não conseguem
estiver à sua volta. Tal dificuldade experimentada apenas para "existir" respeitar-se a si mesmas. Muitas vezes, odeiam o pai e todos os homens
denuncia uma auto-estima que foi completamente perseguida pelo gesto que as freqüentam.
do pai. Veremos isso perfeitamente no seguinte exemplo, que fornece Unia delas relatava em um programa de rádiol° que era mãe de um
urna configuração atroz ao conto A jovem sem mãos. menino de quatro anos. Ela tinha vinte e oito anos e acabara de deixar a
Em um livro publicado há alguns anos, Gabrielle Lavallée relata a prostituição. A trabalhadora da área social que estava em sua companhia
aventura que viveu no seio de uma seita chamada L'Alliance de la brebis.8 durante a entrevista chegou a.chamar-lhe a atenção para o fato de que,
Esse gruptisculo era liderado por Roch Thériault, rebatizado Moisés. Vi- apesar de ter confessado detestar o pai e a "maldita raça dos homens",
vendo retirado em uma região afastada de Quebec, ele esperava o fim do corno mãe estava mostrando muito cuidado com o filho. Ela respondeu
mundo em companhia de suas três mulheres e filhos, assim como de ou- que, por enquanto, as coisas estavam indo bem, mas já estava com receio
tros dois casais. do dia em que a sexualidade do filho iria despertar e este se tornar tam-
Ela nos conta a maneira como esse homem louco e sádico lhe ampu- bém um homem como todos os que ela odiava.
tou friamente um braço porque um dos dedos corria o risco de ficar Em graus menores, Vemos que aparece o mesmo problema de despre-
infectado. Fala-nos da dor insuportável que viveu nesse momento. E tam- zo pelos homens e de fraca auto-estima na jovem que, sem ter conhecido
bém de suas visões. Antes de tudo, viu esse ser que ela adorava tornar-se o incesto, teve um pai que "vivia na sua cola" e a desejava de urna forma
à sua frente a própria encarnação de Satanás; e depois urna espécie de manifesta. Em geral, um comportamento desses provoca nojo na criança
graça desceu sobre ela e libertou-a da dor, como é narrado por numero- e pode incitar a jovem a criar barricadas de modo que torna-se fria e não
sos mártires. Os olhos de seu carrasco tornaram-se, então; o próprio olhar cuida do corpo. Com efeito, ela própria deve manter a barreira contra o
de Deus. Acreditou que, finalmente, a justiça divina tinha sido feita, por- incesto. Unia vez que o pai não o faz e, quase sempre, a mãenão intervém,
que esse braço que acabava de ser-lhe arrancado era o mesmo que tinha compete à filha defender-se, construindo uma armadura de rejeição.
servido para praticar atos sexuais com o pai. Este tinha abusado dela Poderá, assim, tornar-se exibicionista, ou seja, outra maneira de se
quando ainda era jovem. Acreditou que, finalmente, seria libertada do defender. De fato, para não pertencer ao pai, decide oferecer-se ao olhar
sentimento de culpa que desde então a esmagava. de todos. A vedete de um filme erótico europeu contou-me que, na ado-
Do mesmo modo que numerosas vítimas de incesto, sentia-se respon- lescência, tinha ido buscar o pai em um boteco onde este estava bebendo
sável pelas agressões do pai. Desde a adolescência, ela procurava uma com os amigos. Diante da beleza dessa jovem dotada de curvas genero-
figura paterna que, por seu amor, a tornasse capaz de perdoar-se e atri- sas, um deles esboçou um gesto indecente. Então, o pai levantou-se e,
buir-se um pouco de valor. Pensava que a tinha encontrado em Moisés. para protegê-la, cruzou o braço à frente do peito, e, causando o maior -
No entanto, este não a ajudou a elevar sua auto-estima; pelo contrário, constrangimento à filha, que nunca o tinha ouvido falar dessa forma,
mutilou-a. O intenso sentimento de culpa que sentia impeliu-a a se consi- declarou: "Abaixo as patas! Isto me pertence!" A contar desse dia, ficou
derar como vítima "de um sacrifício com o objetivo de purificar-se da desconfiada do pai e decidiu provar-lhe que, sexualmente, nunca lhe per-
infância. tenceria.
Quando uma menina é vítima de incesto, a ferida infligida à sua inte- Os pais incestuosos nem sempre são o que imaginamos. As pesquisas
gridade corporal pode levá-la, inclusive, a emprestar a "todos os homens" mostram-nos que os pais que cometem o incesto são os que não mantêm
o corpo conspurcado pelo pai. Ela se refugia em uma pequenina parte de
si mesma que conserva virgem e se oferece a um amante ou gigolô. A
9. Náo existem estatísticas oficiais sobre o incesto. Um trabalhador da área social, Michel Dorais,
que tem se dedicado ao estudo da prostituição e escreveu vários livros sobre o assunto, acredita
que chegaria a 80% o número de prostitutas que teriam sido vítimas de incesto. Ele é co-autor
7. Réjean Simard. "Au-dela de l'inceste. À la recherche de son identité”, conferência apresentada de várias pesquisas sobre a prostituição entre as quais Les Enfaras de la prostitution. Montréal:
no quadro do 11,' Congresso Internacional de Análise Bioenergética, Miami, maio de 1992. VLB Editeur, 1987; e Une enlance trabie. Sana faenille, bateu, viole. Montréal: VLB Éditeur e
8. Ler o testemunho de Gabrielle Lavallée in L'Alliance de la brebis. Montréal: Editions JCL, col. Le Jour, 1993.
74 75
"Victime", 1993. 10. "Eu direct", Société Radio-Canada, programa apresentado por Christiane Charette.
relações afetivas com a-filha até que ela chegue à puberdade; ou ainda, quins com uniformes escolares., ofr:iiiiilheres de certa idade com seios
trata-se de padrastos que, em famílias-reconstituídas, abusam das meni- enormes. - . • .
nas com asquais não tem laços de sangue." Na realidade, a relação afetuosa Uma vez que é eSSencial que á proibição Seja Ma'n'tri-elà PC; razões tanto
entre filha e pai que começa o mais cedo possível constitui a melhor sociais e morais quanto psicológicas, uma forma de satisfazer o desejo
proteção contra o incesto. Com efeito, quem irá desejar que a planta que, incestuoso consiste em vivê-lo de maneira distorcida na união com um
durante muito tempo, foi tratada com tanto cuidado, venha a ser estragada parceiro mais velho ou mais jovem. É um modo de viver o proibido, mas
por inconsciência e negligência? sob uma forma que não implica a condenação prevista. Na Idade Média,
por exemplo, os casamentos ditos tradicionais entre jovens e homens
O desejo de incesto mais velhos legitimavam esse deslocamento do desejo incestuoso.
A desvalorização dos códigos clássicos na nossa sociedade facilita es-
Por repugnar naturalmente aos seres, para evitar desastres associados sas uniões entre homens de idade madura e mulheres mais jovens, assim
à consangüinidade, e pelo fato de que os machos das hordas primitivas como entre mulheres de idade madura e homens ainda jovens. O fenô-
não desejavam que entre eles viessem a explodir. brigas a propósito das meno funciona também entre parceiros homossexuais. Essas relações
mulheres que tinham pertencido ao pai, o incesto tornou-se um dos tabus. amorosas permitem explorar sentimentos que, durante muito tempo,
mais universaii" Esses milênios de proibição tiveram como resultado permaneceram proibidos. Embora não tenham nada a:ver com um inces-
dar a esse ato um imenso poder de atração. Esse potencial energético to propriamente dito, trata-se de uma metáfora da situação incestuosa
descarrega-se sob a forma de intensos devaneios. Por não ter encontrado que pode reforçar a intensidade emotii?a de tais associações."
uma saída do lado da realidade concreta, a emoção. reprimida alimenta a Penso, também, que a fragmentação das famílias e o abandono das
imaginação. O assassínio, outro interdito universal, exerce a mesma es- crianças em tenra idade pelo pai ou pela mãe as obrigam, praticamente
pécie de atração. Eis a razão pela qual somos fascinados pelos grandes falando, a retoMar no plano do amor às relações deficientes da infância.
processos criminais e pelos romances noirs. Tentamos curar-nos de uma auto-estima enfraquecida, procurando o re-
O desejo de fazer amor com a filha ou com o filho, ou o desejo de conhecimento- junto de uma figura que faça lembrar o progenitor ausen-
fazer amor com a mãe ou com o pai, revela-se nas sessões de análise te. Neste caso, pode ser salutar para o/a, jovem freqüentar uma pessoa
quando as pessoas são questionadas em profundidade. Essa vontade é mais experiente e benevolente; encontra, assim, uma figura parental de
exacerbada pela insatisfação sexual de um progenitor ou, francamente, transição que apóia sua autonomia. Mas e'excusado dizer que o empreen-
pela privação de. sexualidade. Na maior parte das vezes, encontra sua dimento é, às vezes, perigoso.
satisfação no plano imaginário e transforma-se no sonho de fazer amor
com uma pessoa mais jovem ou mais velha. As revistas pornográficas
O incesto afetivo
dirigidas aos homens exploram essa vertente, apresentando jovens mane-
A questão do incesto faz sobressair o tema da distância adequada a ser
mantida entre pai e filha. Com efeito, às vezes o incesto não é sexual, mas
11. Alguns trabalhadores da área social sugerem um reaparecimento da problemática do incesto no desenrola-se no plano afetivo. O pai parasita, então, a vida afetiva da
quadro das famílias reconstituídas, mas ainda não existe nenhuma estatística disponível a esse filha, sendo incapaz de deixá-la viver a própria vida. Uma jovem com
respeito. Pelo contrário, uma distribuição era porcentagem dos casos de agressão física e sexual
contra crianças registrados pela polícia em 1992 mostra que os autores são, em 45% dos casos, apenas vinte anos falou-me assim da situação que vivia com o pai.
o pai ou a mãe; em 27%, um membro da família imediata; e em 26%, um membro da família Antes de tudo, explicou-me que este abandonou muito cedo a casa
mais ampla. (Fonte: Statitistique Canada, La Violence famdiale au Canada, produto n5 89-
5410XPF no catálogo).
familiar para seguir uma carreira artística. Bebe muito, para não dizer
12. É a tese que Fretid desenvolve no livro Totem e tabu. Um patriarca cruel controla as mulheres que é francamente alcoólatra. Com empolgação, contou-me que foi quan-
e exila os filhos. Estes icabam por revoltar-se e matar o'pai primordial. No decorrer do tempo,
decidem proibir o incesto, para que não venha a explodir entre eles a rivalidade pelo controle
das mulheres que pertenciam ao pai. Decidem, também, obedecer ao mais forte e não matado.
Aí residiria a origem de dois tabus fundamentais da humanidade: o incesto e o parricídio. Os 13. Remeto o leitor para a excelente obra de Jan Bauer: Impossible Love. Why the Heart Must Go
....76 etnálogos atuais colocam em dúvida essa história dos tabus estabelecida por Freud, mas ela não Wrong, op. cit., na qual ela explora o sentido psicológico dessas paixões condenadas de ante-
deixa de ser um interessante mito psicológico. Ver, Henri Ellenberger, op. cit., p. 526. mão pelos tabus sociais. 77
do chegou à adolescência que, de repente, o pai acordou e deu-se conta Com efeito, na maior parte dos casos, o pai não toca na filha adoles-
de que ela existia. Então, todo arrependido, voltou a entrar em contato cente e nem sequer lhe fala. A partir do mofriento em que ela chega à
com ela. Mas, em vez de Obter, finalmente, a afeição que não tinha rece- puberdade, ele já não sabe ou não corisegtie dizer-lhe: "Você é linda e
bido, ela assistiu a uma engraçada reviravolta de papéis. O pai colocou-se quero que saiba que te amo", sem sentir um profundo mal-estar diante da
simplesmente em posição de filho em relação a ela, entregando seu desti- ambigüidade de tais palavras — tanto mais que, muitas vezes, ele próprio
no nas mãos da filha como se esta fosse sua mãe. Ela ficou revoltada tem tendência a sexualizar qualquer manifestação de afeição ou ternura
contra essa maneira de proceder. Essa carga era mais difícil de transpor- para com as mulheres. Para tal pai, a sensibilidade é ummundo tão estra-
tar do que o_peso do vazio que a tinha precedido. nho e inquietante que ele tem tendência a confundir ternura e sexualida-
Estava revoltada, mas calava sua revolta. O pai era incapaz de viver de, calor humano e febre amorosa. Com seu silêncio, está prestes a infli-
sozinho e considerava-a culpada pela sua miséria. Procurava chantageá- gir à filha adolescente o primeiro e maior desgosto de amor.
la, dizendo-lhe: "Você me abandona no meu canto, você me deixa sozi- Inúmeras mulheres contam que mantinham com o pai relações abso-
nho." Quando lhe perguntei por que motivo aceitava tal chantagem, res- lutamente normais e calorosas até o momento em que, de repente, por
pondeu-me simplesmente: "Não quero ter o peso de sua morte na minha volta dos treze ou quatorze anos, seu mundo balançou. Em um texto
publicado em uma revista feminista, a poeta de Quebec Hélène Pednault,
consciência. Gostaria que ele me dissesse: 'Você não é responsável por
relata a infância junto de um pai que a levava para pescar e caçar."'Estava
mim." O pai não conseguia manter uma distância adequada em relação à
orgulhosa com este relacionamento particular. Sentia-se confiante e ama-
filha e esta também não conseguia definir seu próprio território. A in-
da. No entanto, de um dia para o outro, ele a proibiu de sentar-se em seus
consciência do pai e o sentimento de culpa da filha constituíam os 'Princi-
joelhos e de beijá-lo. A escritora confia-nos sua confusão de então; não
pais ingredientes desse incesto afetivo:
compreendeu absolutamente nada dessa atitude do pai. Este, tentando
Esta mulher estava vivendo uma situação comum a muitos filhos
protegê-la, acabava de ferir o eros nascente da filha púbere.
"parentificados", ou seja, que tiveram de tornar-se pais dos próprios pais.
Por ter medo das próprias reações, o pai tinha direito, é claro, de
Não conseguem separar-se deles porque foram pegos nas malhas do sen-
proibir a filha de sentar-se em seus joelhos. No.entanto, se tivesse sabido
timento de culpa. Na maior parte das vezes, mantêm relações afetivas
que urna explicação pode•transformar uma ferida potencial em seu con-
com pessoas extremamente dependentes que são a exata imagem dos trário, ele teria conseguido adotar uma atitude diferente. A terapeuta
pais. Assim, a moça em questão redigia os trabalhos universitários do francesa Dominique Hautreux afirma que um grande número de cho-
amigo e não conseguia deixá-lo. Deveria convencer-se continuamente de ques poderiam ser evitados se o pai estivesse simplesmente preocupado
que ele era um ser autônomo que poderia sobreviver à separação. Ela em dizer à filha o seguinte: "Você é linda e está se tornando uma mulher.
tentava resolver o problema com o pai na relação que mantinha com o Você está se tornando desejável para os homens e eu sou um homem. Por
companheiro.. isso, eu gostaria que respeitássemos uma certa distância entre mis."15 Es-
sas palavras teriam como efeito confirmar-lhe que ela pode entrar sem .
O pai pudico rodeios no mundo do desejo porque pode agradar a um homem. Nessas
palavras, encontra-se a confirmação da diferença sexual que ela espera.
Ao pai incestuoso, podemos opor o pai pudico. Esse pudor exagerado Nunca devemos esquecer o quanto os silêncios podem agir como verda-
é motivado, no fundo, pelo mesmo desejo de incesto. No pai incestuoso, deiras violências que podem prejudicar o desenvolvimento da menina em
existe passagem ao ato; no pai pudico, inibição do ato. Na maior parte via de tornar-se mulher.
das vezes, com sua reserva, o pai deseja proteger a filha contra seus even- Quando as palavras não são ditas, quando o pai pudico não explica •
tuais desejos, inclusive contra suas reações fisiológicas espontâneas. Mas seu comportamento, a filha fica sofrendo. No momento em que está se
tal reserva e, sobretudo, o silêncio que a rodeia podem também ter efei- tornando mulher, em que os seios estão tomando forma, que estão se
tos negativos. Essas atitudes impedem um bom número de pais de manter
relações afetuosas com as filhas, e estas nem sempre chegam a compreen-
14. Hélène Pednault. "Mon père à moi", ln La Vie en rose. Montréal, março de 1985.
78 der esse comportamento de retraimento. 79
....
15. Afirmações coligidas por ocasião de um encontro com a psicóloga Dominique Hautreux.
_acentuando suas curvas femininas, no momento em que está toda orgu- Filhas do silêncio
lhosa. porqUe, finalmente, pode assemelhar-se à mãe, um homem, com
No .belo livro -intitulado La filie de són père,17 a psicanalista america-
seu silêncio, eStá em via de lhe dizer que acha perigosos seus atributos.
na Linda Shierse-Leonard descreve de maneira brilhante as diferentes
Neste caso, a jovem púbere tem dois tipos de reação. Ou irá colocar seus
atitudes adotadas pelas mulheres como reação à ferida causada pelo pai.
trunfos em evidência a fim de seduzir e atrair a atenção ou, pelo contrá-
Trata-se de outras tantas formas de atrair a atenção do homem quando a
rio, tentará dissimular a diferença sexual usando roupas largas para es-
relação pai-filha deixou um grande vazio. Classificadas por tipos psicoló-
conder os seios e as nádegas.
gicos, existem as mulheres que permanecem eternas adblescentes e as
Com toda a evidência, muitos homens confundem desejo de incesto
que se tornam amazonas. Nesses retratos, não devemos ver categorias
com o que poderíamos designar por eros paterno. Por essa expressão,
fixas e imutáveis; podemos até mesmo brincar reconhecendo-nos em vá-
entendo uma capacidade de relacionamento, uma capacidade de amor
rios deles, com traços dominantes em um e com aspectos menos impor-
personalizado, uma capacidade de calor e de afeição que vem do pai.
tantes em outros. Portanto, nas próximas páginas, estou convidando vocês
Não se trata de sexualidade, mas de afeição. Ainda estou ouvindo o psi-
a acompanharem o pensamento de Linda Shierse-Leonard.
canalista suíço Adolf Guggenbühl" professar em seus cursos que um pe-
queno flirt entre pai e filha não é ruim se o pai. souber marcar perfeita-
mente seus limites. , As eternas adolescentes
Quando o pai não estacompletamente absorvido pelo trabalho, quando As jovens que não se beneficiaram do apoio do pai para o desenvolvi,
desenvolveu suficientemente sua sensibilidade para reconhecer -a impor- mento psicológico permanecem prisioneiras da necessidade de agradar
tância das relações individuais, e quando sabe fazer a diferença entre eros aos homens ou de se confinarem na revolta. Elas retraem-se em seu mun-
•e-desejo de incesto, neste caso., não tem dificuldade em estabelecer rela- do interior ou então, como se fossem rapazes, constroém uma armadura.
ções calorosas e afetuosas com a filha. Quando a criança ainda é bem novi- Recusam qualquer coquetismo ou tentam assemelhar-se às moças
.nha, é esse eros que fará surgir nela o. desejo de se casar com o pai; a evanescentes das revistas, deixando de lado a mulher real, aquela que
nienina deseja restituir-lhe um pouco do amor e da afeição que recebe dele. nasce e envelhece, que ama e morre. Sua verdadeira personalidade não
Mais tarde, é ainda o pai que será objeto das primeiras tentativas de sedu- - chega a manifestar-se. •
ção da filha. Ao chegar a essa fase, ela sabe que o pai não será o homem de À semelhança da Bela Adormecida, que transforma a passividade em
sua vida, mas ainda tem necessidade dele, de seus sentimentos e de sua virtude, ou da Cinderela, que se contenta com um papel subalterno, so-
afeição, para ter o direito aos próprios desejos e à própria vida sentimental. nhando com o príncipe encantado, as eternas adolescentes abdicam de
Podemos facilmente compreender que o eros paterno adequadamen- seus poderes Com o objetivo de agradar aos homens. Independentemente
te manifestado seja um dos fatores determinantes na evolução da vida da • de serem mulheres casadas ou mulheres fatais, de se tornarem perfeitas
filha. Serve ao desenvolvimento de um animus positivo que apóia a con- donas de casa ou musas com deStino trágico, elas têm em comum o seguin-
fiança em si e a tomada de iniciativa. E, felizmente, parece que existe um . te aspecto: denunciam a si mesnias e fabricam sua identidade a partir das
número cada vez maior de • pais conscientes de seu papel. No entanto, imagens que os outros — em particular os homens — projetam sobre elas.
ainda são uma minoria. Raros são os que se encontram em condições de A eterna adolescente expressa sua recusa de crescer deixando a outros
oferecer às filhas a dádiva de uma presença calorosa e regular. Como . a preocupação de traçar as grandes linhas de sua vida e de seu destino.
acabamos de ver, ainda é predominante o reino do pai ausente. Indepen- Experimenta grandes dificuldades para tomar iniciativas e decisões. Em
dente de sua ausência ser física ou- espiritual, de manter-se distante ou ser vez de agir em seu próprio interesse, ela prefere adaptar-se às mudanças
francamente um abusador, a relação que oferece à filha machuca-a e, preconizadas pela vida ou pelos homens de sua vida e refugia-se em um
mais tarde, esta há de reagir adotando comportamentos que serão uma mundo de fantasias quando a administração da situação torna-se difícil
reação à ferida, mas que não conseguirão curá-la.
demais.

16. Adolf Guggenbühl-Craig é autor de um livro sobre a vida conjugal em que trata dessas ques- 17. Linda Shierse-Leonard. La Filie de son Ore. Guérir Ia blessure dans larelation pare-filie. Montréal:
80 81
tões: Marriage Dead os-Alice. Dallas, Texas: Spring publications, 1981. Le nus-, 1990, p. 63.
Linda Shierse-Leonard distingue quatro tipos de eternas adolescentes. . Por último, a marginaln identifica-se com um pai que se tornou obje-
Em nossa sociedade, a mais freqüente é a da querida bonequinha," "coisi- to de.yergonha, um pai que se revoltou contra a sociedade ou foi por ela
nhal adorável de . se olhar", dependurada no braço de um honiem bem- rejeitado._Como lhe assistia, a mãe tornou ó encargo da organização fa-
sucedido. Parece estar orgulhosa e confiante, qualidades que podem até miliar, mas a menina ficou emocionada com o drama do pai. Por ter,
mesmo suscitar a inveja de outras mulheres, mas da própria sabe que isso muitas vezes, o mesmo caráter autodestruidor, seu destino e o do pai hão
não passa de uma fachada. Nas mãos desse homem, tornou-se uma espécie de assemelhar-se. Em todas as ocasiões, ela tem necessidade de criticar e
de marionete que faz tudo para agradar, apesar da insatisfação interior. de afirmar sua diferença. Experimenta dificuldades para mudar quando
À medida que avança na vida, a queridinha experimenta um número não se recusa francamente a fazê-lo. Também não deseja agir para mudar
cada vez maior de dificuldades para dissimular sua raiva e amargura. Uma a sociedade e os males de que ;cifre. Isso equivale a uma espécie de inér-
cólera que muitas vezes é inconsciente a leva a repreender seu parceiro, cia que a lança no alcoolismo, na droga, na prostituição ou no suicídio.
ao mesmo tempo que permanece passiva e dependente. Às vezes, pelo Muitas vezes, soçobra na depressão e no masoquismo, deplorando suas
contrário, acaba por levar a melhor e é ela que manipula o marido com relações abortadas e sua vida cheia de falhas. Tendo a convicção profunda
muita doçura e sedução. Os famosos sedados americanos — como Di- de que é nada e não vale nada, procura um deus que será tudo para ela.
nastia ou Da/ias — estão repletos dessas bonecas charmosas que nos fas- Na prática, constatei que muitas vezes as marginais tinham sido
cinam por sua frieza e duplicidade. agredidas sexualmente pelo pai ou pelo padrasto. Na seqüência de tais
Na maior parte das vezes, esses comportamentos refletem o desespe- agressões, elas não conseguem amar-se nem respeitar-se. Em um progra-
ro de uma mulher que foi negligenciada pelo pai. Com efeito, este só ma-sobre suicídio juvenil difundido há alguns anos pela Radio Quebec,22
apreciou a filha por seu charme e beleza, tendo permanecido indiferente uma adolescente contava o drama de Linda, sua •melhor amiga. Tendo
a seus talentos e qualidades. Vara sair do círculo da dependência e adqui- sido estuprada pelo padrasto entre os doze e quatorze anos, ela lhe dizia
rir seu próprio poder, ela deverá aceitar quebrar a imagem de menina freqüentemente que "o fundo do saco do lixo merecia mais amor e consi-
charmosa e correr o risco de desagradar às pessoas à sua volta afirmando deração do que ela". Tinha se tornado prostituta, especialista em fantasias
suas idéias e talentos. de dominação. Batia nos clientes, inundava-os com bobagens e vulgarida-
Os outros tipos de eternas adolescentes seguem mais ou menos ci - des. Duas semanas antes do suicídio, ligou para a mãe, a fim de pedir-lhe
mesmo esquema. A joveth de vidro toma como pretexto sua fragilidade e perdão, tendo obtido a seguinte resposta: "Comamãe posso perdoar você,
hipersensibilidade para se refugiar nos livros ou no mundo de sua pró- mas como mulher, nunca!" A mãe não tinha compreendido o drama inte-
pria imaginação, tornando-se, assim, uma espécie de representação men- rior da filha. Linda tinha necessidade do perdão materno para continuar a
tal de si mesma." viver porque, como vimos no caso de Gabrielle Lavallée, a vítima de inces-
A sedutora vive. no mundo do imprevisto e das alegrias do momento to sente-se, muitas vezes, culpada pelo gesto de que foi vítima.
presente. Seus planos desvanecem-se de hora em hora. Ela pretende viver A eterna adolescente tem necessidade de agradar a qualquer preço.
de maneira instintiva e sem qualquer obrigação. Funcionando à base do Sua estratégia de sobráida consiste em atrair, por todos os meios possí-
amor, recusa qualquer forma de responsabilidade é de. obrigação, e do veis, o olhar dos homens. A não ser que se trate de uma marginal deses-
mesmo modo que o Don Juan masculino, experimenta enormes dificul- perada que nem sequer consegue agarrar-se a tal ilusão, sua estratégia
dades para se comprometer com unia relação duradoura. Essa existência resume-se, mais ou menos, no seguinte: mostrar-se, valorizar-se, tornar-
improvisada é a revolta de uma mulher que foi subjugada pela mãe e se cobiçada e... entrar pelo cano!
negligenciada pelo pai. Mas não chegou a perceber o sentido de seu pró- Conheci, em sessões de terapia, algumas mulheres que se tinham sub-
prio valor, e essa revolta impede-a "de estabelecer uma verdadeira rela- metido aos desejos dos homens tentando corresponder às suas imagens
ção com o homem que ama"?' fantasmáticas da mulher. Uma delas sonhou, um dia, que se encontrava

18. Linda Shierse-Leonard, op. cit., p. 63. 21. Id., p. 75.


19. Linda Shierse-Leonard, op. cit., p. 66. 22. Richard Router. 'te spasme de vivre", programa sobre o suicídio juvenil produzido por Vent
82. 83
20. Id., ibid. d'Est, setembro de 1991.
em um -quarto completamente decorado com colares e ipulseiras7SeiPin.- • • em interesse próprio, ao passo que as outras são incapazes- de Sei
consciente tentava oferecer-lhe um retrato de-sua realidade -enüque, para -. •• . mente receptivas. Enquanto as eternas adolescentes gostariam délázer elã
se convencer de seu valor, ela jun-fava-à sua éoleçáo urna quáritidadé tadà ' vida uma longa seqüência de dias alegres &Serenos em que èshiririTlivtà -
vez maior de jóias e. pedras preciosas. Quando um homem oferecia-lhe de qualquer responsabilidade, as amazonas tornam-se mulheres de dever
um . presente, ela acreditava verdadeiramente que se tratava de uma ga- e de princípios. Em vez de procurarem o olhar do homem como fazem as
rantia de amor eterno. Correspondia a essas propostas, envolvia-se e, sedutoras, rejeitam as seduções masculinas e às vezes chegam a desprezar
inevitavelmente, ficava a ver navios. Durante um certo tempo, criticava toda a raça dos machos.
os parceiros e repreendia a si mesma por ficar sempre à mercê deles, mas Em um livro intitulado Androgyny, a psicanalista June Singer descre,
quando. voltava a ser preseguida . pelo vazio interior e pelo desespero, ve assim a amazona. moderna: "A amazona é uma mulher que adotou as
procurava de novo um relacionamento para deixar de sofrer. características que em geral estão associadas ao temperamento masculino
Muitas vezes, a eterna adolescente vem fazer terapia com um homem e que, em vez de.integrar os aspectos masculinos que poderiam consolidá-
para ter, finalmente, esse olhar que a particulariza. Vê --se, assim, o quan- la como mulher, identifica-se com o poder masculino. Simultaneamente',
to lhe fez falta o olhar do pai para diferenciá-la da mãe e confirmar que renuncia à capacidade de estabelecer relações amorosas, capacidade que,
ela era um ser de valor. Neste caso, existe o risco de que fique apaixona- tradicionalmente, foi associada ao feminino. Por conseqüência, a amazo-
da pelo terapeuta. Durante muito tempo, considerei dramático que uma na que toma o poder, ao mesmo tempo que nega sua capacidade de ligar-
Mulher viesse a descobrir o amor e a compreensão em um gabinete de se afetivamente a outros seres, permanece unidimensional e torna-Se a
analista. Com o tempo, acabei por compreender que; Para alguns seres, o vítima das características que pretendeu açambarcar."23
amor só poderia surgir nessa atmosfera de segurança, nessa 'ausência de Entre as amazonas, aquela que Linda Shierse-Leonard designa por
julgamento e nessa impossibilidade de estabelecer um relacionamento: superstar24 (em Quebec, de preferência seria chamada de superwoman)
Com a .estrita condição de que o profissional mantenha a barreira do o gênero de mulherique tenta ser bem-sucedida em tudo. Verdadeira
incesto e de que não exista passagem ao ato sexual, a relação terapêutica máquina de trabalho, gostaria também de ser a perfeita dona de casa e a
prepara o terreno para o verdadeiro amor que será vivido com outro mulher ideal. Tentá ser bem-sucedida exatamente nas situações em que o
homem. O terapeuta terá sido uma figura paterna de transição. pai fracassou: NO entanto, nesse ritmo, vai ficando rapidamente esgota-
da. Esmagada sob o peso das responsabilidades, cansada, a superstar per-
As amazonas de completamente o contato com as emoções e, em breve, nada mais
• •pode atingi-la, nem em si mesma, nem no mundo. Nem mesmo os êxitos
Para sobreviver à ferida deixada pelo pai, as amazonas têm um proce- e realizações, ao fim de um certo tempo, são suficientes para dar um
dimento exatamente oposto ao das eternas adolescentes. Em vez de dize- sentido à sua existência. Nesta fase, como que desiludida com tudo, ela
rem: "Vou fazer charme e quando ele fixar o olhar em mim saberei que torna-se fria e cínica, mas está ameaçada por uma profunda depressão.
valho alguma *coisa", elas pensam o seguinte: "Vou provar para ele que Na verdade, sob essa frieza e esse cinismo esconde-se o medo de ser rejei-
tenho valeu:em seu próprio terreno." A jovem que viveu sob a influência tada. É como se ela dissesse para si mesma: "O melhor meio de nunca
de um pai tirânico tentará penetrar no mundo com a mesma autoridade ficar decepcionada consiste em não esperar nada de ninguém."25
despótica, fará aos outros o que o pai lhe fez, tentando impor o que lhe Segundo Linda Shierse-Leonard, muitas vezes a superstar foi tratada
foi imposto. E é assim que as amazonas perpetuam a ferida do pai, em vez pelo pai como um rapaz em quem teria depositado as próprias ambições
de tentarem Curar-se dela. Não será isso o que faziam as da lenda, que no decepcionadas. Em vez de respeitar sua diferença sexual, ele traçou para
mesmo ímpeto rejeitavam os homens e amputavam-se um seio? Simboli- ela uma vida e um destino masculinos.
camente, as amazonas modernas também cortam um seio: ao adotar o
vestuário e os comportanientos dos homens, separam-se de sua própria
feminilidade.
23. June Singer. Androgyny. Nova York: Anchor Books, 1977, citado por Linda Shierse-Leonard,
As eternas adolescentes sofrem de passividade, ao passo que as ama- op. cit., p. 87.
84 zonas, de hiperatividade; parece que as primeiras são incapazes de agir 24. Linda Shierse-Leonard, op. cit., p. 91.
85
25. Id., p. 92.
O problema vem do fato de que ela se afirma inteiramente do lado do mulher que se dedica completamente ao marido e aos filho; a serviço de
fazer, sem se importar com o fato de simplesmente ser. Em geral, o fazer uma causa ou d— —areligião, não tivesse direito de pensar em si mesma.
e UM
e o produzir são exigências de natureza masculina, ao passo que. o ser pelo 'No entanto, todas as suas necessidades reprimidas acabamn pôr se expres-
prazer de ser pertence mais ao mundo feminino. É claro, cada sexo deve sar por meios distorcidos: suspiros, crises de humor, silêncios e acusações
integrar sua vertente complementar, o animus ou a anima, mas para isso que a fazem sofrer e transformam em vitimas os filhos e as pessoas à sua
importa que esteja ancorado em sua própria identidade. Assim, o homem volta. A esse propósito, Linda Shierse-Leonard declara:
que se identifica totalmente com suas realizações deve cultivar a capaci-
dade de ser e de receber se pretende tornar-se um ser completo. Da mes- É importante que a mártir experimente cólera contra o sacrifício que ela própria
ma forma, uma Mulher cuja capacidade de ser e de receber está bem faz e descubra que o aspecto escondido desse sacrifício virtuoso e rígido é a crian-
desenvolvida deve integrar o aspecto dinâmico masculino para tornar-se ça abandonada, a inadaptada que se sente como uma vítima rejeitada e deseja ser
completa. Se tivermos um procedimento oposto, por exemplo, se um considerada com compaixão."
homem ainda jovem se instala completamente na receptividade, em vez
de realizar alguma coisa, corre o risco de soçobrar em uma passividade e Finalmente, a amazona culmina na figura da rainha-guerreira que se
resignar-se à um falso desenvolvimento. A mesma coisa é válida para a opõe com força e determinação à irracionalidade do pai." Ela o conside-
mulher que Constrói para si ,uma armadura masculina, negligenciando ra.como um degenerado e arma-se contra ele. Uma citação do poeta C. S.
sua capacidade de ser: Ela acaba por se desenvolver de um modo falso e Lewis que descreve a revolta da deusa Ural contra o pai — que tinha
irá sofrer por isso. decidido matar Psique, sua irmã bem-amada — define perfeitamente a
O segundo tipo de amazona diz respeito à mulher de dever e de prin- atitude da rainha-guerreira: "A melhor coisa que podemos fazer para nos
cípios: a jovem obediente.2 Esse senso de dever e de princípios foi-lhe defender contra eles (embora não se trate de uma verdadeira defesa) con-
imposto por unia estrutura farriiliar e religiosa muito rígida. Não tendo siste em permanecer vigilantes e trabalhar com todo o vigor, sem escutar
reconhecido a tirania do modelo, a jovem acabou por incorporá-la. As- música, sem ficar olhando o céu ou a terra, e (sobretudo) sem amar"?'
sim, quandp não é coerente com sua noção de responsabilidade, sente-se Essas terríveis palavras denotam unia inflexibilidade radical. Fazem-
profundamente culpada. É, pelo Menos, o quadro que várias dessas nm- me lembrar o credo das mulheres extremistas que acabam por considerar
lheres apresentam nas sessões de terapia. Elas perderam o contato com a que fazer amor com um homem é- um "trabalho não remunerado". Tal
espontaneidade viva e a originalidade. Algumas religiosas fanáticas de rigidez é tão irracional quanto a atitude do pai que a engendrou. Quer se
nossa infância representam perfeitamente esse tipo de mulher que é prisio- traie de um pai louco, irresponsável ou degenerado, a reação denuncia,
neira do complexo paterno. finalmente, a mesma loucura e o mesmo transvasamento. Trata-se da cul-
Cheguei a conhecer uma mulher que tinha tido um pai autoritário, tura de uma força dura e sem alegria na qUal tudo se torna corvéia, uma
transformado por ela em um verdadeiro deus. Tendo sido levada a cuidar. espécie de "mata ou morre" em que todos os passos da vida acabam sen-
dele muito cedo, em razão da morte da mãe; estabeleceu como missão do batalhas a ganhar. Deixam de existir os momentos a serem saborea-
salvá-lo das garras da melancolia. Em seu foro íntimo, estava casada com dos, a própria receptividade passa a ser considerada passividade e é assim . •
ele. Durante muito tempo, conservou traços de menina porque não tinha que a mulher profunda é esvaziada.
acesso à sua própria autoridade. Sentia-se muito pequenina, casada com
um ideal que a esmagava. O feminino deseja desabrochar
A mulher de dever e de princípios deu origem a outro tipo de amazo-
na que conhecemos muitíssimo bem. Assim, a mulher mártir," que eleva• Até o presente, as mulheres têm sido criadas para serem jovens sedu-
toras que, uma vez casadas, devem tornar-se mulheres de dever e de princí-
a dedicação e o sacrifício à qualidade de belas artes, corresponde exata-
mente à imagem que temos de nossas próprias mães. É como se essa
28. Linda Shierse-Leonard, op. cit., p. 100.
29. Id., p. 104.
86
26. Linda Shierse-Leonard, op. p. 96. 30. C. S. Lewis. Til! Vire 1-lave Faces. Grand Rapids: VV. B. Eerdman's Publishing Co., 1956, citado
87
27. Id., p. 100. por Linda Shierse-Leonard, op. cit., p. 105.
'pios; á fim de encarnarem o espírito de responsabilidade e seriedade que No entant6;.eoniO já disse no capítulo precedente, a criança vive em um
- .convéin a urna Krá família. A sombra de tais sedutoras que renunciaram ao espaço triangular' par-Mãe:filhó, e não-eiti. eixos limitados, tais como pai-
poder pessoal encarna-se na mulher controladora e castradora. Esta tenta filha ou Mãe-filho. Portántb,"Permito-me fazer uma pequena digressão e
ficar com o controle em relação ao outro porque carece de controle em acrescentar algumas considerações sobre as relações mãe-filha."
relação a si mesma, e, ainda mais, por ter abdicado do próprio poder. Como já disse, a atenção do pai confirma a filha em sua diferença
Por outro lado, aquela que desposou o destino da amazona ganhou sexual. A presença paterna permite-lhe separar-se e diferenciar-se da mãe. •
um controle sobre si mesma, mas julga inaceitáveis suas necessidades de O pai permite-lhe ganhar sua individualidade de mulher. Ora, na prática,
dependência. Considera como fraqueza o menor gesto de serviço em re- constatamos que a negligência das relações pai-filha acaba, muitas vezes,
lação a um homem. Tem razão em não desejar fazer sua essa sombra de sobrecarregando exageradamente as relações mãe-filha, de tal modo que,
dependência que, até agora, tem constituído a infelicidade das mulheres; nas sessões de terapia, não é raro encontrar mulheres que mantêm uma
no entanto, para existir, cada ser tem necessidade dos outros. relação extremamente ambivalente com a figura materna. Poderíamos
O trabalho consigo mesma permite sair dessas posiçõeS rígidas. No dizer que elas amam e, ao inesmo tempo, odeiam a mãe. Esse amor e
decorrer do tempo, dá origem à mulher criadora que pode ser tanto se- ódio poderia ser formulado da seguinte maneira: "Amo minha mãe por-
dutora quanto amazona. Essa mulher conserva o contato com seus im- que é a única pessoa que me deu atenção, mas detesto-a porque tem
pulsos fundamentais e com suas necessidades de afirmação. Sua dedica- sido exigente demais comigo. Ela controlou não só minha caderneta
ção pelos outros não chega à renúncia dás necessidades pessoais. Ela co- escolar, mas também o comprimento de minhas saias e a cor de. meus
nhece suficientemente seu poder para não voltar a ser obrigada a prova- prendedores de cabelo. Intrometia-se em tudo e ainda se intromete em
lo continuamente, e pode tomar iniciativas ao mesmo tempo que aceita tudo. Estou farta dela!"
negociar com o parceiro. Como compreender tais palavras? Digamos, antes de tudo, que é fre-
Antes de deixar a obra de Linda Shierse-Leonard, quero convidar os qüente constatar a exagerada cobrança, por parte do progenitor do mes-
homens a lerem este livro. Após essa descida às profundezas da psique mo sexo, em relação ao(à) filho(a). Este(a) serve como um espelho no
feminina, eles compreenderão melhor os combates das próprias compa- qual é tentador procurar a face dos desejos . e ambições decepcionados.
nheiras. Para nós homens, que usufruimos, sem nos darmos conta disso, Mas tal atitude ameaça tornar-se um constrangimento para o(a) filho(a).
de todos os privilégios da sociedade patriarcal, é difícil compreender até Com efeito, se é verdade que os(as) filhos(as) têm necessidade de serem o
que ponto o ego feminino foi oprimido, desprezado, depreciado e o quanto objeto dos sonhos dos pais, como se estes estivessem tecendo seu destino,
as mulheres que compartilham nossas vidas podem sofrer com isso. importa acrescentar que, se as malhas do tecido vierem a ficar apertadas
O feminino deseja surgir igualmente em nós, que somos os filhos dos demais, tais sonhos podem se tornar prisões asfixiantes.
diferentes tipos de mulheres que acabo de descrever. Ao procurar imagi- Ora, o contexto patriarcal, que impôs tantos limites à liberdade das
nar que, alternadament. e, cada uma delas existe em nós, vemos, aos pou- mulheres, criou uma atmosfera ideal para que os sonhos frustrados das
cos, emergir a imagem de nossa própria feminilidade. Alguns homens mães venham bloquear, a emergência da individualidade das filhas. Por-
têm uma anima marginal, ao passo que Outros são habitados por uma tanto, a atitude de ambivalência destas é provocada, em parte, pelo fato
anima frágil e caprichosa. Por sua vez, a mulher de dever e de princípios de que a mãe deseja, inconscientemente, que a filha seja tudo para ela.
encarna-se freqüentemente em numerosos "filhinhos de mamãe" que Em contrapartida, ela vai tentar ser tudo para a filha. Ela deseja ser,
chegam até o martírio para não desagradar as pessoas a sua volta. ao mesmo tempo, a melhor mãe e um modelo de mulher evoluída. É
assim que acaba por ocupar .um espaço exagerado junto à filha. Exige
muito de si mesma e, em compensação, pede demais à filha. Acabará por
Mãe-filha criticá-la por não lhe confiar um maior número de coisas e por não se
manter perto o suficiente. Gostaria de ser uma amiga para ela, esquecen-
Uma relação de amor e ódio

Este livro é dedicado à compreensão das relações homens-mulheres, 31. Ao leitor e à leitora interessados em prosseguir na exploração deste tensa, recomendo o livro da
88 89
mas além disso, limitei minha reflexão às relações pai-filha e mãe-filho. psicanalista Christiane Olivier: Filies d'Éve. Paris: Derion, 1990.
do que é, antes de tudo, uma mãe, e que a criança não pode mostrar-se do a idade adulta, continuava mantendo uma relação tipicamente ambi-
verdadeiramente tal como é a seu progenitor. valente para com a mãe, de quem sentia grande dificuldade para se dis-
0 problema reside, em parte, na educação feminina que levou as tinguir, enquanto idealizava o pai que tão lhe pedia nada.
mulheres a se doarem completamente aos outros. Aprenderam a esque- Importa acrescentar a isso o fato de que um grande número de mu-
cer de si mesmas e a se sacrificar. No entanto, tal focalização nos outros lheres jovens receberam uma mensagem materna segundo a qual deve-
tem sua contrapartida de sombra a respeito da qual a mãe nem chega a riam ganhar a independência por si mesmas e não contar com os homens.
ter a menor dúvida, uma vez que age pelo bem da filha. Assim, sem tomar Elas têm a impressão de que devem ganhar a independência contra os
consciência disso, ela pode funcionar segundo o modelo de controladora homens, para respeitarem os combates daquelas que as precederam.
e queixar-se da ingratidão dos seus. Mas esse destino será reversível se Secretamente, suspiram pelo amor de um homem e desejam abandonar-
estiver pronta para ouvir, diretamente da filha, a versão dos aconteci- se em seus braços, mas ao mesmo tempo o condicionamento lhes diz que
mentos familiares. Então, Poderá compreender de que maneira chegou a não é justo comportarem-se dessa forma. Muitas vezes, sentem-se culpa-
ser intrusa, apesar de sua benevolência. das por não agirem de acordo com o ideal materno, procurando no com-
Um momento crucial das relações mãe-filha desenrola-se no instante portamento da mãe as falhas que possam legitimar a flexibilização de
em que as filhas atingem a idade fatídica de quatorze anos. É então que uma regra interior rígida demais.
numerosas mães constatam com aflição o fosso que se criou entre elas e Como já disse anteriormente neste capítulo, existe uma relação parti-
sua prole. No momento em que as filhas começam a mostrar aos pais que cular de sedução entre pai e filha que deve ser respeitada. Com efeito, o
o grupo de amigos é mais importante do que eles, as mães não conse- pai infhiencia a formação do animus da filha; inversamente, é importan-
guem afastar-se de seu caminho. Manifestam um número crescente de te não esquecer que ela tenta encarnar a anima do pai para se aproximar
rejeições e frustrações sem Compreenderem que o dever de mãe está che- dele. Assim, estabelece-se um vínculo privilegiado de inconsciente a in-
gando ao termo e que é tempo de reatar relações com a mulher esquecida consciente. A filha cultiva essa cumplicidade secreta e misteriosa que faz
dentro de si próprias. Com efeito, a puberdade das filhas apresenta uma parte do mundo da anima e lhe dá repouso em relação ao aninws exigen-
ocasião sonhada para que as mães voltem-se para si mesmas e retomem te da mãe. Ela se empenha em adivinhar o que se passa com o pai e, às
contato com a individualidade abandonada. A provação que a adolescên- vezes, torna-se a única pessoa capaz de penetrar em seu mundo interior,
cia representa não Pode ter saída positiva enquanto a mãe não tiver ai:nen- o que pode dar lugar a ligações dramáticas que irão opõ-Ia à mãe.
dido a abandonar-se e a ter confiança no que já deu à filha. As relações entre mãe e filha podem, igualmente, complicar-se quan-
do esta última gosta de certas atitudes do pai que provocam a irritação da
mãe. Urna mulher com pouco mais de vinte anos contou-me que a mãe
O ausente é idealizado
criticava o pai por ser fraco e sensível quando, afinal, eram precisamente
Em tal contexto — destino ingrato, ao que tudo indica—, não é raro esses aspectos que mais apreciava nele, ou seja, essa vulnerabilidade que
encontrar mulheres que, embora não tendo praticamente conhecido o também fazia parte dela. Uma outra contou-me que tinha começado a
pai, mantêm com ele umi relação interior mais positiva" do que com a gostar de esportes porque o pai, em geral reservado, expressava-se es-
mãe que se ocupou delas. O ausente foi idealizado e permanece uni pon- pontaneamente diante do televisor por ocasião das partidas de hóquei.
to de apoio central na psique dessas mulheres. Ela acabou fazendo-lhe companhia para participar desse transvasamento
Quando criança, uma analisanda ficava meses sem ver o pai devido de emoção. Conheço também filhas que encarnam na vida um talento
ao trabalho dele. Durante anos, ela insistou com a mãe para usar o mes- oculto do pai. Trata-se aí de uma forma de ficarem ligadas a ele e home-
mo vestido gasto, remendado e já pequeno demais, sempre que o pai nagearem sua presença positiva.
chegava em casa. Tinha crises quando ela lhe recusava tal desejo. A razão Uma relação de rivalidade inconsciente da filha para com a mãe de-
disso era simples. A mãe tinha lhe dito que o pai gostava de vê-la com senvolve-se quando a primeira sente que apreende melhor a sensibilidade
esse vestido, e tal imagem inscreveu-se em seu espírito de maneira indelé- do pai, tanto mais quando esta última tem dificuldade para compreender
vel. Tinha uma necessidade tão grande do olhar aprovador do pai que o marido. Em algumas mulheres, vi que essa competição dissimulada su-
90 desejava chamar a atenção dele em todas-as oportunidades. Tendo atingi- bia à tona no inicio da idade adulta e expressava-se pelo fato de terem 91
amantes com a idade do pai para provar à Mãe que tinhani - tanto valor da seguinte maneira: "Olhe para mim! Exclusivamente' para mirnl•Diga- •
quanto-ela e que compreendiam melhor -os homens. Nos -casos de diVor-E- me que eu..existoe. que os outros não. existemr,r. ,...t, ,
cio, trata-se, às vezes, de uma forma de dizer à mãe que teriam sabido. - Ela sonha com uma situação em que a afeição do companheiro lhe
como conservar o marido e evitar um tão grande dilaceramento. As acu- abriria as portas do amor. Do mesmo modo que adivinhava o que se
sações não ditas das filhas em relação às mães expressam-se, às vezes, passava com o pai, tenta por todos os meios adivinhar o que se passa com
desse modo. ele. Pretende torná-lo feliz a fim de obter uma resposta em termos ro-
Em tal contexto, a mãe encontra-se em urna situação impossível pela mânticos para que, deste modo, ele encontre o caminha da liberdade
qual sinto muita compaixão. Se a relação com a filha é positiva e caloro- dela. No entanto, ele fica sempre amedrontado logo nas primeiras carí-
sa, esta última desenvolve um complexo de mãe positivo, ganha muita cias. Quanto a ela, fica frustrada, sozinha com a palavra de um animus
confiança em si mesma, mas sente uma dificuldade para se libertar desse negativo triunfante que lhe repete: "Eu já tinha lhe prevenido! Não é
amor que acaba por prejudicá-la. Se, pelo contrário, a relação é ruim, a homem para você'!" Ela rejeita essas palavas 'porque acredita estar ouvin-
filha que, para compensar, não tiver a possibilidade de apoiar-se no pai, do sua mãe. Deixa passar o tempo e dissimula a insatisfação refugiando-
se sentirá desamparada e abandonada. Há de cultivar em si o sentimento se na expectativa de mudança.
de que não tem o direito de existir." Eis como se fabrica a mulher que ama . demais. Veremos a maneira
Tenho admiração por essas mães que conseguiram realizar a quadratura como se fabrica o homem que tem medo de amar. Mas antes, vejamos
do círculo. Parece que 'as relações com as filhas não chegaram a ser con- como a mulher pode lançar um bálsamo na ferida provocada pela negli-
taminadas por essas surdas oposições. O fato de que, na nossa sociedade, gência do pai.
as mulheres dipõem de outras vias de desabrochamento, além da mater-
nidade, contribui com toda a certeza para tal situação. Elas têm mçnos
sonhos não realizados a projetar sobre as filhas. Como conseqüência dis-
so constatamos um número cada vez maior de relações mãe-filha que se
desenrolam na cumplicidade e respeito mútuo.
Vou- interromper essas poucas considerações, que retomaremos
detalhadamente quando abordarmos as relações mãe-filho. Por enquan-
to, vejamos se o que desenvolvemos neste capítulo nos ajudará a compre-
ender melhor o que se passa entre Ela e Ele sentados no sofá.

Ela e Ele na sala

• Ela sentiu tanto a falta de atenção por parte do pai, que agora tem
necessidade do olhar de um homem para confirmar sua própria existên-
cia. A negligência paterna deixou nela um vazio interior e uma falta de
confiança em si mesma que a tornam escrava de sua necessidade de agra-
dar e ser desejada. A carência que Ela carrega mete medo ao parceiro
porque ele não sabe como preencher esse buraco sem fundo. Quando um
ser carrega tal vazio, passa pedindo aos outros que lhe confirmem sua
existência, .Na relação amorosa, essas lacunas manifestam-se através de
uma possessividade que, se lhe fosse dada a palavra, poderia traduzir-se

92 93
32. Marie-Louise von Franz. La Femne dans les contes de lées, op. cit., p. 66. ....
A bela adormecida
- -Ocor-re em minhalfielite-o-caso de uma mulher jovem, -na casados
triiita; mie me consultou quando eu ainda estava estudando, em Zurique.
4 Tratava-se de uma professora universitária que tinha decidido tirar um
ano de licença. Tinha-se fechado no apartamento com a finalidade de ter
tempo para refletir sobre uma nova orientação profissional e desenvolver
Curar-se do Pai seus talentos artísticos. No entanto, a pausa estava tomando cada vez
mais o aspecto de uma depressão e ela não conseguia voltar a trabalhar.
Então, resolveu consultar-me. Era alta, com boa aparência e uma inteli-
gência marcante. No entanto, havia algo nela que a impedia de tomar a
palavra. Às vezes passava toda a sessão de terapia em completo silêncio.
Muitas vezes, uma certa sonolência reinava no consultório de modo que,
interiormente, fui levado a denominá-la "minha Bela Adormecida".
O drama da menina boazinha Com o decorrer do tempo, a situação tornava-se cada vez mais
desconfortável. Eu esbarrava continuamente na cerca de espinhos que
Aqui pretendo sugerir algurnas atitudes que permitam à filha não só
protegia a bela em seu sono. Parecia que todas as minhas interpretações
curar-se da ferida infligida pelo pai, mas também superar a expectativa
eram descabidas. Aliás, ela nunca perdia a ocasião de fazer tal observação
do príncipe encantado que ela engendra. Abordarei em especial o tema com uma ponta de ironia.
da agressividade e o da auto-estima. Cometemos pelo draina da menina Contava que, durante a infância, tinha passado muito tempo isolada
boazinha, aquela que é sempre amável. em seu quarto e, inclusive, dentro do guarda-roupa. A suas demandas de
Em Le Drame de renfant douél, a psicanalista alemã Alice Miller ex- atenção, disfarçadas em caprichos e estripulias, a resposta invariável do
plica muitíssimo bem como um problema narcisista se forma na criança pai era-a seguinte: "Vá para seu quarto!" Agora que o pai tinha morrido,
entregue a pais que não lhe atribuem suficiente valor. Em vez de se adap- ela reproduzia o mesmo comportamento, isolando-se em sua moradia,
tar, ela se superadapta. Desenvolve antenas para compreender as demanL desta vez sob as injunções do complexo paterno negativo.
das das pessoas que estão à sua volta antes mesmo que elas sejam formu- O pai, ele próprio um intelectual, tinha sentido grandes dificuldades
ladas. Essa hipersensibilidade às expectativas dos outros tem como obje- para estabelecer uma relação de Proximidade com as duas filhas. A pre-
tivo fazer sobressair o amor-próprio, merecendo a aprovação dos outros. sença destas era uma ameaça para ele. Aliás, tinha um comportamento
Compreender-se-á facilmente que esse ser se torna rapidamente o es- muito ambíguo em relação à sexualidade. Andava em trajes menores em
cravo de uma atitude que acaba por levá-lo a renunciar a seu poder pes- casa, mas não tolerava que as filhas se apresentassem com camisola. Por
soal e trair todos os aspectos originais de sua personalidade, porque estes outro lado, chegava mesmo a bater com o cabo de vassoura no teto quan-
ameaçam desagradar aos outros. Pode até mesmo acabar por desenvolver do ouvia o casal que vivia no apartamento de cima fazer amor. O mínimo
uma falsa personalidade em contradição total com o verdadeiro ego. que se pode dizer é que, com tais demonstrações, qualquer jovem estará
É o caso da menina boazinha que fica prisioneira de um complexo mal predisposta para o despertar de seu eros.
paterno tão impositivo que sua criatividade já não consegue expressar-se. Aliás, a história amorosa de minha paciente confirmava tal interpre-
Ela é gentil e agradável, mas não respeita a si mesma. tação. Ela tinha conhecido alguns homens, mas tratava-se sempre de se-
res dependentes, vítimas do consumo imoderado de bebida ou droga.
Sua falta de amor-próprio levava-a a escolher incessantemente tais rela-
ções. Em geral, acreditava que os homens só a desejavam sexualmente, só
"por sua xoxota", como se diz em linguagem popular. Ainda estava à
1. Alice Miner. Le Drama de l'enfant dos. À la recherche du vrai sai. Paris: Presses Universitaires
94 espera daquele que viesse a descobrir seu verdadeiro valor e estabelecesse
de France, col. "Le Fil range", 1990, p. 24. 95
- :com ela uma relação afetuosa. Com as idéias criativas em pousio, ela _ pode tomar o animus negativo. Este torna-se uma espécie de casulo de
continuava aguardandorrAssim, permanecia inativ.ado o que lbe .teria per- _desejos e de julgamentos que„.definem o mundo tal como- deveria -ser.
mitido penetrar no mundo e afirmar-se, ou seja, seu sentido de iniciativa, 'Assim, corta a mulher da realidade e da vida ativa.'
sua firmeza. Ela estava na expectativa. Mas, ao mesmo tempo, era sufi- Portanto, ela ficava no apartamento e sonhava! Sonhava em ser uma
cientemente inteligente para saber que não havia nada a esperar e que virtuose, mas nunca tinha feito qualquer curso de música. Por mais que
deveria agir. Como acontece quase sempre quando uma situação é tão eu tentasse estimulá-la com urna interpretação, nada surtia efeito. Tudo
difícil, um sonho veio iluminá-la: deslizava sobre ela. Faltava, definitivamente, um ingrediente nesse pro-
cesso, a saber: a agressividade. Para onde teria ido a cólera contra o pai e
Ela encontra-se em umá pequena butique de roupa íntima feminina e hesita na seu próprio destino? Parecia que — pelo menos conscientemente — nada
escolha de um biquíni. A vendedora aconselha-lhe um ousado, "sexy", bastante sentia contra o pai. Para onde teria ido a sombra dessa mulher amável?
colorido e que lhe fica muitíssimo bem. Entusiasmada e muito contente, decide Ocorreram-me, então, alguns acontecimentos que ela me tinha con-
compra-1o. Sai da loja, desce os degraus até a rua, volta-se e vê o pai no alto da tado em torno do tema da sedução. Tinha-me dito 'de que modo, muitas
escadaria. Então, compreende que ele é o proprietário da butique. Está levando vezes, sentira o desejo dos homens como se fosse a expressão de um
um carrinho de mão com cimento fresco que derrama nos degraus. O sonho verdadeiro desprezo a seu respeito: Ao explorar esse tema em sua compa-
termina no Momento em que ela fica cm os pés resos no cimento. nhia, compreendi que atribuía a eles uma hostilidade generalizada em
relação às mulheres. Portanto, tinha Medo de aproximar-se deles, sobre-
Esse sonho demonstra de forma muito nítida a ação do complexo tudo dos que poderiam estar à sua altura, porque ameaçavam destruir,
paterno negativo em uma mulher. Um verdadeiro conflito tinha surgido através de juízos de valor, sua precária auto-estima. Eis a razão pela qual
nela, que opunha, por um lado, sua espontaneidade e necessidade de tinha preferência por perdedores.
exibir seus talentos e, por outro, o complexo que á 'impedia de ser outra Isso explicava também que seu comportamento apresentasse uma
coisa, além de uma intelectual discreta. ausência quase total de agressividade. É que ela projetava sobre os ho-
A fantasia e a alegria de viver desta mulher estavam confinados nessa mens sua raiva de mulher ignorada pelo pai. Essa raiva era de tal modo
butique, cujo proprietário era ninguém menos do que. o pai. Se, interior- profunda e ameaçadora para o ego que, nesse contexto, o (MICO Meio de
mente, ela possuía a capacidade de sentir o que era bom para si, logo que sobreviver consistia em agir dessa forma. O desprezo masculino que ela
desejava mostrá-lo em público o complexo negativo intervinha para impe- ' sentia a seu respeito era, de fato, o desprezo que experimentava em rela-
dir seu gesto. Neste caso, sentia-se paralisada como se os pés estivessem ção ao pai e aos homens que a desejavam. Em suma, tratava-se de uma
presos no cimento, já não tendo a possibilidade de recuar ou avançar. verdadeira denegação da agressividade. Para não ter de se envolver com a
A mesma coisa é válida para o que diz respeito à sensualidade. Ela "Malvada" existente nela, apegava-se à jovem amável.
gostaria de ter provocado e estimulado o desejo dos !homens com o mi- Tinha necessidade dessa energia agressiva para sair da depressão e
núsculo biquíni, para ganhar finalmente uma confirmação de sua identi- recuperar a criatividade. Não podia, contudo, apropriarjse dessa cólera.
dade como mulher, mas o pai interior proibia-lhe que exibisse seus atri- Sua auto-estima não era suficiente para levar a operação a bom termo.
butos do mesmo modo que a proibia de andar em trajes íntimos dentro Não é fácil integrar tal sombra e, durante vários meses, viver com uma
de casa quando era jovem. No fundo, ainda estava obedecendo à ihjunção enraivecida dentro de si. Ela tinha vindo fazer análise à procura do apoio
formulada pelo pai: "Vá para o seu quarto!" necessário para conseguir tal integração, porque o pouco .de afeição que
Mas o que estaria fazendo isolada no apartamento, como tinha acon- tinha recebido, do pai proibia-lhe de traí-lo transformando-o em objeto
tecido anteriormente, durante muitos anos, no seu quarto de criança? de sua raiva.
Para compreender a situação, .é necessário que observemos o que se passa Assim, eu estava vendo aparecer à minha frente o drama de uma mu-
do lado do animus, sua força de vida ativa que, por sua vez, estava pri- lher confinada na doçura sobre um fundo de amargura depressiva. Com
sioneira do complexo paterno. Já que não podia expressar-se em público,
esse animus tinha-se tornado uma espécie de "casulo de sonhos". A psi- 2. Marie-Louise von Franz. 'te processos d'individuation". In L'Homme et ses symboles, op. cit.,
96 97
canalista Marie-Louise von Franz diz que se trata de outra forma que p. 191.
todas as forças, ela tentava escapar ao complexo paterno negativo e rom-
per com-* -bisa personalidade que tinha desenvolvido para sobreviver. ra para a personãlidade. Por instinto, sabem que a marmita explodiria se
tivessem a ousadiarsde..:.nrar a.tampa_e olhar.para .dentro.... No entanto,
Com c'fist
r ttirrela ja--- tinha interroriipitiert exercício de uma profissão
será necessário citietilii dia, tomem essa atitude se desejarem curar-se da
que a confinava no conformismo intelectual do pai para perseguir sua
ferida engendrada pela negligência do pai.
criatividade. Mas para continuar seu caminho, agora tinha necessidade
Expressar a cólera e a raiva contra os outros sem julgamentos e, de
de recuperar a agressividade. Deveria rebentar a bolha de sonhos e pôr
preferência, em uma atmosfera que inspira confiança, como em um gru-
um termo à ação do complexo paterno. Portanto, seria necessário que
po de terapia, é uma etapa essencial. Trata-se apenas de unia etapa, mas
enfrentasse sua sombra ameaçadora se, uni dia, desejasse usufruir de sua
não é possível passar por cima dela. Esbravejando, gritando, dançando,,a
força de expressão e de autonomia.
mulher deixa livre curso a esse formidável potencial energético. Por as-
Não cheguei a conhecer o fim desta história. Tendo terminado meus
sim dizer, libera as más toxinas e purifica seu sistema psicológico.
estudos, anunciei a todos.os meus pacientes que abandonaria a Suíça no
Trata-se de sentir plenamente a raiva em toda a sua selvageria, para
decorrer do ano. Minha Bela Adormecida decidiu, então, deixar a terapia
jogá-la não em cima de alguém, mas antes em um continente simbólico.
muito antes da minha partida. Sem dúvida, preferia abandonar-me em
Um desenho ou um texto podem servir muito bem para tal efeito. No
vez de ser abandonada Por mim. Sua decisão me surpreendeu, mas co-
entanto, importa não esquecer que, para deixar emergir o inconsciente e
mentei em meu foro íntimo que talvez se tratasse de uni dos primeiros
receber as informações que ele nos transmite, é necessário entregar-se à
balbucios de sua força de afirmação. Ela possuía a ousadia de desagradar
emoção e, até mesmo, fundir-se com ela de tempos em tempos. O quadro
a urna figura paterna para proteger seus próprios sentimentos.
simbólico que é instalado por um indivíduo.sozinho ou em grupo permi-
te a uma parte do ego permanecer emersa e agir como testemunha da
A boa cólera experiência. Em seguida, trata-se de permanecer fiel a esse impulso em
Continuemos a discutir a respeito da cólera feminina e de sua trans- nossa vida de todos os dias, não agindo sob o impacto da cólera — o qUe
formação. Quanto a mim, penso que não há processo de cura que não às vezes é inevitável, quando a pessoa nunca entrou em contato com esse
passe, em grande parte, pela cólera. Quando a mulher se dá conta da aspecto de si mesma-, mas extraindo daí nova firmeza e nova com-
•impostura que foi sua vida, deverá adotar o seguinte procedimento: em batividade.
um primeiro tempo, ficar zangada contra os que abusaram dela e, em Ao.vivericiar a cólera, esta acaba sendo désmistificada: trata-se. sim-
segundo lugar, compreender que continua a fazer a si mesma o que é plesmente de um sinal de alarme no painel de bordo da personalidade
objeto de sua crítica contra as imposições dos outros, faltando o respeito cilie diz que uma necessidade fundamental foi negada. Em geral, a cólera
a si própria. Pode ocorrer que se sinta atingida até o ponto- de desatar a remete para uma necessidade de expressão e de expansão. Tendo negli-
chorar por causa de seu drama, mas importa também que grite e manifes- genciado o desenvolvimento da criatividade, por medo de ser rejeitada
te sua violência... ou ferida pelos outros, a jovem irá encontrar nessa abertura Uma fonte de-
Ora, como tenho constatado nos grupos de terapia sobre esperança e luz. Para a mulher que tinha tendência a refugiar-se na ex-
relação
com o pai", as mulheres que foram privadas da presença paterna têm em 'pectativa e na passividade, essa cólera poderá transformar-se em
comum o fato de sentirem grandes dificuldades para expressar verbal- combatividade, firmeza e determinação; além disso lhe permitirá tomar
mente a agressividade. Com efeito, sentem vergonha de tal agressividade. em suas mãos o próprio destino. A mulher habituada a combater os ho-
Justamente porque o pai as negligenciou, depreciou ou maltratou, tive- mens no terreno masculino poderá fazer surgir um poder de afirmação
ram de habituar-se, desde muito novas, a reprimir na sombra os senti- íntimo e pessoal, graças ao qual já não será obrigada a dispersar as forças
mentos hostis que experimentavam a seu respeito. Ainda pequenas, eram contra eles.
obrigadas a proceder dessa forma se desejassem agradá-lo e não perder o O verdadeiro trabalho em relação à cólera consiste em responder às
pouco de atenção de que eram objeto. Tendo crescido, também não têm necessidades 'que esta revela em nós. Quando a raiva não cessa de expres-
a ousadia de expressá-la pela simples razão de que urna sombra alimenta- sar-se por meio de acusações e críticas de toda a espécie contra os carras-
98 da há muito tempo com tantos rancores tornou-se demasiado ameaçado- cos do passado, é porque não foi integrada psicologicamente. Não foi
transformada. Tornou-se uma prisão. Para resolver o problema interior, .....99
• •
importa ir mais longe. Eis a razão pela qual a segunda etapa do processo Quando, na seqüência, tenta retomar contato com essa nova força,
•"de e transformação implica a compreensão de que, ao tolerar.° Abuso e ao ,c1-4-2se-c6nta de qh-e.se-tratava da bruxa existente nela, da bitch,-éisa 1111.1, -
refugiar-se em uma posição de vítima, a mulher manifesta falta de respei- IÉer "vitriólica e amarga, capaz de destruir com palavras". Quando a
to por si mesma. Desta vez, trata-se de reconhecer que, em relação a si mulher reconhece em si mesma tal poder, sabe que nunca mais irá cantonar-
própria, está adotando o mesmo procedimento que foi ou teria sido ado- se no papel de vítima. Apropriar-se desse poder no plano consciente é a
tado pelo pai ou pelo companheiro e que, afinal, constitui o alvo de suas terceira etapa do processo de transformação da agressividade em comba-
acusações contra eles. Essa passagem é difícil e constitui o verdadeiro en- tividade e em força interior. Daqui em diante, a serpente há de servir-lhe
contro com a sombra, porque não será possível evitar dar-se conta de que para proteger seu território íntimo, para afirmar-sê no mundo e tornar-se
é tão negligente consigo quanto seus pais porventura chegaram a sê-lo. criadora de sua própria vida. E o complexo paterno que se cuide!
Na prática, como é que isso se passa? Em um artigo em que relata seu Para o que der e vier, trata-se de aceitar que todos nós encarnamos
próprio processo, a jornalista Paule Lebrun dá-nos um bom exemplo de também o aspecto mais sinistro da humanidade. Paradoxalmente, essa
integração da sombra por meio da cólera. Ao participar de um grupo de aceitação é acompanhada por uma descontração em todo o sistema ner-
terapia, ela começa por reagir com bastante vigor à presença de uma voso, porque já não temos necessidade de nos defender do que quer que
mulher perturbada que destrói tudo "com seus sarcasmos, seu veneno e seja. A pessoa é o que é simplesmente, e se reconhece na grande sabedo-
soas cusparadas". Sente compaixão por aquela que sofre um desespero tão ria da natureza que fez todas as coisas, ao mesmo tempo, sombrias e
violento, mas no dia seguinte é ela que acorda "armada até os dentes": luminosas.
Seja como for, enrêê a primeira e a última etapa, será necessário dar
Eu estava em contato com a minha própria bolsa de veneno, vocês compreen- provas de paciência e de obstinação, para que em cada situação, a mulher
dem, aquela que todas as mulheres, ou quase. todas, carrejam no fundo de si encontre a atitude adequada e consiga agarrar-se sempre ao frágil poder
.mesmas; a Serpente em nós, ksss, ksss, ksss, vem minha querida, que eu desejo te interior que não foi amparado pelo'pai. No decorrer do tempo, contudo,
kiiiissar, aquela que não digeriu a ferida psíquica infligida às mulheres há dois mil -
acaba por encontrar em si mesma e nos progressos realizados a força
anos, a incrível cólera coletiva que se reduziu à raiva e depois,ao ressentimento,
para perseverar. A satisfação de ter uma vida que reflete cada yez mais o
que desapareceu sob o edifício e que espera a sua, hora para dar-o botei
que ela é verdadeiramente substitui o desespero, a Melancolia e o rancor.
A cólera surda e profunda que não podia expressar-se, a não ser por
. Ela começa a dançar com a esperança de que essa presença dentro de
meios distorcidos, encontra um exutório cada vez mais sadio nacria-
si irá dissipar-se, mas nada acontece: é tomada pela energia, pela força e
tividade e na afirmação de si.
pela agilidade dessa serpente, "doce até o enjôo":
Ao ser plenamente reconhecida e integrada, essa cólera torna-se um
poder que gera iniciativas e decisões. Neste caso, a vida acaba sehdo muito •
Eu podia sentir seu poder escondido, sua indiferença animal, sua perigosa capa-
mais agradável, mais intensa, mais luminosa e mais alegre.
cidade para asfixiar o outro. Será que vocês sabem que carregam em si todos os
assassínios, todas as violências possíveis, como outras tantas potencialidades não
despertadas? Nesse dia, soube que tudo estava em mim. O melhor, mas também
o pior. l...] Estrangulei com meus anéis de serpente vários homens, imagens as- A cura do amor-próprio
sassinas afluíram. Um nó-energético desfez-se à minha frente, dispersou-se leve-
mente como se fosse cinzas. Tendo passado o momento inicial de terror, abando- A necessidade sentida por um grande número de mulheres de ser per-
nei-me com volúpia ao movimento, e o que alguns segundos mais cedo me tinha manentemente o centro de atenção das pessoas que estão à sua volta
parecido horrível transformou-se em uma dança delicada.° denuncia a ferida infligida por um pai distante ou negligente. Tais mulhe-
res situam-se sempre face a face com seus parceiros; não sabem degustar
o mundo lado a lado com aqueles que amam. Experimentam uma neces-
sidade permanente de serem amparadas pelo olhar do homem. Seu equi-
3. Paule Lebrun."La rage au como". In revista Guide Ressources, vol líbrio psicológico acaba por depender de tal olhar. Recriminam os ho-
100 n.8, maio de 1996, p.35.
4. Id., ibid. mens e reivindicam um companheiro sem tomarem consciência de que o .
vários anos, tinha tentado fazer os homens esquecerem que ela' era. mu-
peso de sua expectativa é precisamente o que o leva a- fugir. Nessa atitude..
lher. Durante os seminários, usava roupas masculinas e tentava reprimir
, sle expectativa, o homem não percebe um convite.
• ao .amor, 'mas uma
sun—Se-á-alidade e seristialidade. Finalmente, um dia cieSCObrin que estav.a. -
ferida- do amor-próprio de cuja cura deverá ocupar-se incessantemente
para conseguir um pouco de paz. em via de asfixiar o feminino em si.
Essa tomada de consciência ocorreu-lhe por ocasião de um estágio
Enquanto a mulher não tiver tomado consciência da falta de auto-
que estava efetuando na Califórnia. O sol, o mar e a liberdade que estava
estima deixada em si pelo pai ausente, há de chegar à vida em casal sobre-
sentindo à sua volta despertaram nela toda a sua sensualidade menospre-
carregada com o peso de uma expectativa que ameaça levar tudo ao fra-
zada. De repente,- deu-se conta de que, para ser reconhecida pelos ho-
casso. Não é possível que da encarregue outra pessoa da solução de tal
mens, tinha superdesenvolvido seu lado masculino e continuava negli-
problema. No plano da evolução psicológica, tampouco é desejável en-
genciando a mulher que era no mais profundo de si mesma. Ela própria
contrar um companheiro que seja lisonjeador a esse ponto. Ao aceitar
dava continuidade ao trabalho de sapador que tinha sido começado na
prestar atenção ao sofrimento infligido pela atitude do pai, a mulher po-
família e havia prosseguido na escola e no trabalho. Seus modelos tinham
derá compreender aos poucos a influência de tal sofrimento em sua vida
sido sempre mulheres de poder com um aspecto masculino muito desen-
de relacionamento. Assim, em grande parte, liberta-se da expectativa do
volvido. Para ter sucesso, não só tinha negado uma parte de si mesma,
cavalheiro. isso-não significa que não seja bem-vinda a segurança' e a
como fazem os homens, mas tinha renegado o núcleo de sua identidade
auto-estima prodigalizadas por unia relação amorosa. Mas para apreciar
de forma adequada tais presentes da vida, importa, muitas vezes, ter de- feminina.
A psicóloga de Montreal Linda Lagacé trabalhou durante muno tem-
senvolvido a autonomia suficiente para viverleliz sem eles.
po com essa problemática. Nos cursos dados em uma universidade, de-
Eis, portanto, algumas observações gerais sobre a cura da baixa auto-
senvolveu questionários para ajudar as mulheres a compreenderem o modo
estima que virão completar o que dizíamos anteriormente a respeito da
como continuavam a oferecer aos homens o poder de avaliá-las. Um
integração da sombra colérica.
aspecto original de seu trabalho refere-se à maneira como elas desvalo-
rizam tudo o que é feminino no seu interior, perpetuando a misoginia
Superar a misoginia dos homens. Ela defende o seguinte: quanto mais conscientizada estiver

A filha do silêncio é a herdeira do silêncio paterno. Pode .facilmente a mulher de sua própria misoginia, tanto maior será sua resistência à
tornar-se uma mulher silenciosa e submissa. É difícil demonstrar confian- misoginia masculina.s
ça e segurança em si mesma quando um homem não se interessa por ela. Enquanto a mulher colocara responsabilidade da desvalorização do
Ao sentir-se mal-amada, encontra-se ameaçada e adota urna atitude de- feminino unicamente no exterior, sua posição de vítima será cada vez
fensiva. Até mesmo quando se afirma mais facilmente e tem a ousadia de mais acentuada. Para sair de tal situação, deve acabar por confessar em
expressar suas ambições e desejos, uma parte dela continua a calar-se, seu foro intimo que também está contribuindo para reforçar os estereóti-
desvalorizada por séculos de patriarcado. Tal situação representa o jogo pos patriarcais: se é feminino, não vale nada; se é masculino, é valoriza-
dás complexos negativos que desejam apenas isolar sua presa. Para con- do. Ao reconhecer seu próprio desprezo, deixara de esperar que os ho-
seguir transformar a auto-estima dependente do olhar masculino, a mu- mens mudem e ela mesma iniciará a mudança.
lher terá de desenvolver certas atitudes. Assim, chegará a curar-se do que Tal mudança repousa na tomada de consciência do duplo jogo pro-
foi corrompido na relação com o mundo paterno. posto à mulher pela sciciedade patriarcal. Pedem-lhe que seja meiga, com-
A primeira atitude consiste em recuperar sua vertente de sombra, em passiva, submissa e dócil, mas, ao mesmo tempo, tais comportamentos
vez de considerar os homens responsáveis por sua infelicidade. Uma par- não são valorizados em nossa sociedade, na qual o que conta é ser forte,
te dessa sombra diz respeito à cólera proibida, mas seu aspecto mais igno- decidido e ganhador.. Se ela nega seu pólo masculino, torna-se feminina
rado e difícil de enfrentar tema ver com a misoginia das próprias mulhe-
res em relação ao feminino.
5. A exposição que se segue está baseada nas observações de Linda Lagace em seu curso intitulado
Uma consultora de desenvolvimento organizacional que trabalhava "Mulheres e relações humanas", que faz parte do currículo do curso Psicologia das Relações
103
102 ao lado de executivos superiores masculinos confiou-me que, durante Humanas da Universidade de Sherbrooke.
mas sente-se deslocaria porque seu valor não &confirmádo pelas pessoas for o valor de um homem, maior "é a póssibilidad(de que '‘es'se
que estão à sua. volta. Se, pelo contrário, nega seu pólo- feminino, apre- - venha a refletir-se em sua comennheita. Estamos vendocorriO- O:proble: -. -
senta uma imagem de fOiça, mãs. seu feminino profundo irá perinaneder ma de uma fraca auto-estima repercute no universo am&osoétGiiula
esmagado e ficará com medo das outras mulheres. Por conseqüência, não expectativas que não poderiam ser satisfeitas por nenhum parceiro.
chega a apreciar-se em razão dessa traição a si própria. A projeção do animus lança as bases do amor romântico e será tanto
Enquanto a mulher desvalorizar inconscientemente o feminino, irá melhor se vier a estabelecer-se um relacionamento no qual as pessoas se
permanecer frágil aos julgamentos misóginos e há de viver a diferença sintam em segurança para desabrochar. Mas,o relacionamento não serve
que representa como algo de menos valor. Sua concepção da igualdade verdadeiramente para o conhecimento de nós mesmos a não ser que faça-
tenderá para a similitude dos sexos. Se estivesse orgulhosa com sua femi- mos o esforço de colocar na consciência nossa própria masculinidade.
nilidade, poderia tolerar que os homens estivessem orgulhosos com sua Enquanto essa masculinidade inconsciente continuar sendo carregada por
masculinidade e fossem diferentes. É essencial que as mulheres encon- homens no exterior de si, não será possível encontrar nosso próprio va-
trem em si mesmas a beleza do feminino em sua maneira particular de lor. Ao fazer o esforço de integrar noSso próprio animus positivo, ou
estar no mundo. Em vez de esperar que os homens valorizem tal postura, seja, despertando e encarnando o que reconhecemos no outro que nos
elas próprias devem encarnar esse valor. agrada tanto, acabamos por libertar-nos da importância desmedida do
Um certo número de mulheres têm uma auto-estima tão fraca que amor em nossa vida e elevamos nossa auto-estima.
nem desejam encontrar-se com outras. Logo que se encontram em um • De fato, trata-se .de "cultivar uma atitude simbólica e observar os vín-
grupo forrado só por mulheres, têm a impressão de estar em um grupo - .culos que tecemos como outras tantas facetas de nós mesmos que dese-
de perdedoras. 'Neste caso, vai predominar a competição, o ciúme, a in- jam aparecer na consciência. A integração do animus traz um contenta-
veja e a desforra. Em suma, 'experimentam o mesmo tipo de dificuldades mento e uma confirmação de nosso próprio poder que dão asas ao amor-
vivenciadas por qualquer grupo minoritário. Tais dificuldades estão'asso- próprio. Não temos de temer que, um dia, todas as projeções sejam reti-
ciadas ao ódio inconsciente a si e ao próprio grupo. radas e que nos desinteressemos pelo amor. E mesmo se isso acontecesse,
A integração da sombra permite, assim, que a mulher 'desembarace as Onde estaria a catástrofe? Pelo contrário, o verdadeiro amor só poderá
relações com os homens de seu aspecto acusador..A.áitude para corá eles surgir quando começarmos a compreender o que esta em jogo nos dois
torna-se menos hostil porque ela acaba compreendendo melhor o funcio- interlocutores. Neste caso, podemos verdadeiramente aprender do ou-
namento dos estereótipos que perpetuam. Ao deixar de depreciar seus tro, que nos serve de iniciador a uma dimensão de nós mesmos.
desejos reais, ela poderá expressá-los em melhores condições e ocupar A este propósito, as jovens que foram privadas da presença paterna
seu lugar no relacionamento. Quando não consegue ocupá-lo, considera- acabam sendo atraídas, muitas vezes, por homens mais velhos. Às vezes,
se vítima e fica à espera de que o outro mude. Pelo contrário, ao assumir o pai deixou o lar quando ainda eram meninas e elas se sentiram coloca-
sua posição, ela se torna responsável e descobre o amor por si mesma e, das de lado. Atrair um homem mais velho permite-lhes restabelecer ,a
às vezes, com grande surpresa, o respeito por parte dos homens. Mito-estima ferida pelo abandono. Em vários casos, são elas que acabam
por deixar o namorado, infligindo inversamente a rejeição. É claro, o
Dar uma expressão ao animus relacionamento com um homem mais velho pode consolidar a formação
de um novo aspecto do animus através da experiência do amor. Mas se
A tomada de consciência da sombra misógina obriga a um retorno esse amor serve apenas para reconduzir a mulher à posição de menina
fundamental a si mesma. Isso é difícil para a filha do silêncio que foi
silenciosa, todos esses sentimentos serão experimentados inutilmente. Sem
educada para esquecer-se a fim de focalizar os outros e o que tem um querer, ela volta a cair na armadilha patriarcal.
valor reconhecido: o mundo masculino. Para ela, o amor romântico assu- Da mesma forma, à medida que as mulheres adquirem valor no plano
me; portanto, uma importância desmedida, já que, se for reconhecida coletivo, cultivam também relacionamentos com homens mais jovens.
por aquele que tem um valor oficial, será porque ela vale alguma coisa. Encontram aí uma revitalização de sua masculinidade interior, que pode
Aliás, isso explica o motivo pelo qual os homens bem-sucedidos usu- ser mais bem recebida por homens menos conservadores e que sentem
104 fruem de tanta popularidade junto das mulheres. Quanto mais prestigiado menos medo de expressar sua ternura. 105
encarnando no mundo uma força.que,existgporsi,própriaerque não tem
Fazer o esforço para tomar cOnsciência- da projeção-do animus ajuda
necessidade da aprovação dos outros para desabrochar..
a mulher a sair de uma posição de valorização do mundo masculino. Em ,
Tente penetrar ,o 'mais-concretamente possível na.imagiiiação e, em
vez de esperar cleiS -hornenS 'que encarnem o cavalheiro de seus sonhos;
seguida, permitir que esta impregne cada urna de suas células. Deixe que
ela poderá começar a cultivar estes valores. Assim, conseguirá superar a
se apresentem à consciência — e, em seguida, procure explorar — as
perpétua decepção, bem como a expectativa passiva. A audácia, a cora-
imagens, os sentimentos e as sensações do feminino profundo. Também
gem, a firmeza e a integridade do Príncipe Encantado tornam-se valores
pode dialogar com as figuras femininas que venham a surgir espontanea-
seus, pouco importanto o terreno no qual venham a se expressar. Em vez
mente no espírito, ou pode desenhá-las. Em suma, reconheça-se o direito
de esperar que os homens mudem, a mulher inicia sua própria mudança,
de sonhar e deixe que esse sonho a emocione e influencie.
abandonando, ao mesmo tempo, as atitudes associadas à frustração.
O poder da imaginação é muito mal conhecido. Com toda a certeza,
O animus tem neCessidade de aprender a se manifestar e a se expres-
ele representa uma via possível rumo ao arquétipo feminino positivo que
sar. Deve aprender a falar. Eis a razão pela qual não deve limitar-se à
reside em cada mulher. A imaginação positiva constitui uma forma de
projeção amorosa. A terapia e os grupos de ajuda mútua entre mulheres
alimentara mulher que está em germe e que deseja nascer. Na seqüência,
ou com homens são excelentes espaços de aprendizagem; através dessa
importa vestir essa nova alma à medida de sua fantasia. Os diferentes
atividade, as pessoas têm a possibilidade de enfrentara sombra de que eu
seminários intensivos que proporcionam um encontro com as deusas
falava mais acima. O fato de encontrar um espaço em que a mulher se
ameríndeas ou antigas' comprovam essa revalorização em profundidade
sinta suficientemente respeitada e em segurança para falar; em voz alta,
do feminino em seu vínculo com a natureza. O culto à deusa torna-se uni
de seus sonhos e suas dificuldades, confessando-os a si mesma, constitui
caminho em direção ao despertar dessa qualidade presente no sei, desde
uma importante etapa de seu desenvolvimento. Quer se trate de terapia
qué este não assuma uma atitude francamente idólatra.
individual ou de um trabalho de grupo, é essencial ter um espaço para
Ganhar confiança em sua capacidade de exPressar a mulher sem ce-
ficar em contato com o que se está sentindo. Tomar consciência de seus
der às injunções de uma sociedade misógina, apoiar-se em uma força
desejos reais acelera sua realização concreta.
amorosa e confiante em si mesma, eis os objetivos a serem concretizados.
Gostaria de terminar estas reflexões sobre o animus acrescentando
Trata-se -de abrir uni caminho para os novos valores. Prestigiar o femini-
que, muitas vezes, ele possui recursos insuspeitos. É capaz -de dedicar-se á
no profundo e revalorizá-lo é a tarefa legada pela história às filhas do
tarefas bastante complexas. Pode exercer seus talentos de maneira menos
silêncio.
incômoda do que a de emitir opiniões e julgamentos não fundamentados.
Portanto, importa educá-lo e discipliná-lo. Convem confiar-lhe uma tare-
fa de inteligência- que será levada a termo pela tenacidade. Importa
confrontá,lo com a realidade objetiva por meio de estudos ou informa-
ções apropriadas, ou. pelo desempenho de uma tarefa que exija muita
sagacidade. Não é por nada que nos contos de fadas são as heroínas que
encontram as agulhas nos palheiros!

Imaginar a beleza cio feminino

Para corrigir uma auto-estima deficiente, o recorrer à imaginação pode


ser urna ajuda insuspeita. À medida que fantasmas negativos tornam mi-
serável a vida da mulher, deve-se fazer o oposto do que preconizam. Im-
porta combater o fogo com o fogo. Calma e descontraída, depois de um
bom banho ou escutando a música preferida, à luz de velas ou até mesmo
na agitação da vida cotidiana, basta que você se imagine em harmonia
107
106 consigo mesma, amando seu corpo, seus sentimentos e seu espírito,
Nesw dapitulo- e nos seguintes, minha intenção consiste, portanto, em
expor um drama-histórico e psicológico..Não se trata de importunar as
niães e os filhos,"mas de áplorar a natureza do vínculo entre eles, víncu-
lo que tem bons e maus aspectos. Creio que falar abertamente deste as-
5 sunto pode liberar uma nova via; alem disso, meu desejo é que estas
reflexões possam•inspirar tal liberação.
O conteúdo deste capítulo diz respeito, em particular, aos filhos que
Mãe e Filho: O Casal Impossível viveram ou vivem com a mãe uma relação intensa. Falo pouco das crian-
ças que não tiveram a possibilidade de conhecer a presença da mãe, o que
é um destino ainda menos invejável, se é que podemos falar assim, do que
ter "tido uma presença excessiva". Por conseqüência, aqueles que, por
uma razão qualquer — família numerosa, posição na família, lar de aco-
lhimento — tiveram poucos contatos com a mãe poderão, igualmente,
sentir-se menos questionados por minhas reflexões.
O casal 'mãe-filho Pelo contrário, ao tratar da intimidade entre mãe e filho, não tenho
em mente unicamente a mãe benevolente e atenta. Considero que existe
Um drama psicológico um grande número de fenômenos de fusão que, por exemplo, operam
Depois de termos falado das relações pai-filha, agora vamos abordar entre a mãe alcoólatra ou ansiosa e o filho. Assim, os pesquisadores rela-
o segundo grande tema desta obra, prosseguindo nossa reflexão no to- tam que 30 a 40% das mães estão de tal modõ preocupadas com o desen-
cante às relações mãe-filho. Sempre guiados pela cena do sofá, vamos volvimento do neném que reagem a seu .primeiro sorriso dizendo para si
tentar compreender a razão pela qual Ele tem medo de amar. Descobrire- mesmas: "Meu Deus, ele não sabe o que o esperar Já manifestam receio
mos que, contrariamente a qualquer exPectativa, meninos criados perto em relação a esse pequeno ser, e tal preocupação vai marçar a qualidade
da mãe, em vez de serem homens que procuram estar próximos das mu- da intimidade que terão entre si. O filho de tal mãe corre o sério risco de
lheres, tornam-se homens que, na maior parte das vezes, têm medo das beber dessa angústia juntamente com o leite materno.
mulheres.. Importa dizer também que as relações mãe-filho estão em profunda •
Estou consciente de que, como homem, nunca saberei o que significa mutação. O grande número de mulheres com uma atividade profissional
dar à luz através do próprio corpo depois de ter carregado uma criança muda consideravelmente os dados em relação à intimidade das mães com
durante nove meses e, em seguida, ter o dever de encorajar sua completa os filhos. Poderíamos até dizer que, atualmente, a maior parte das crian-
autonomia. Sei também que a tarefa não é fácil e que uma mãe nunca ças não sofrem de uma fusão excessiva com a mãe; muifas vezes, foram
sabe se faz demais ou se 'não chega a fazer o suficiente. privadas de tal modo desse alimento afetivo essencial que têm o senti-
É claro também que, sendo o progenitor mais presente, a mãe corre mento de não ser bem-vindas ao mundo. No entanto, de maneira estra-
maior risco de ser o que comete mais erros e a quem os filhos vão dirigir nha, o número acentuado de famílias monoparentais remete-nos à situa-
mais críticas. Tanto mais que a mulher chega a esse relacionamento com ção de outrora, em que as famílias não eram monoparentais de fato, mas
as próprias feridas e a falta de atenção por parte do pai, além das suas o eram, por assim dizer, simbolicamente, na medida em que se verificava
necessidades de afirmação. Ela aspira a viver perto de um homem e de a ausência do pai.'
seus filhos. O que é bem legítimo.
Sei tudo isso, mas conheço também o sofrimento dos filhos mal sepa-
rados da mãe. Homens que passam a vida prisioneiros das malhas do 1. Bons Cyrulnik. Sons le signe du lien. Une histoire naturelle de Pattachement. Paris: Flachette,
sentimento de culpa e não são capazes de enfrentar a mãe, tampouco o col. "Histoire et philosophie dei sciences", 1989, p. 64.
2. Guy Corneau. Pere manquant, las manguá, op. cit., p. 18. No Canadá, pelo menos 20% das
complexo materno. Tal situação não facilita em nada o relacionamento crianças vivem em situação monoparental; 80 0/o dessas famílias com progenitor único são dirigidas
108 de um casal. 109
por uma mulher, enquanto 10% dessas crianças nunca tiveram a presença do pai.
• ,Por último, como sou homem — e, por conseguinte, um filho—, não
• -Eis o que rem Ocorfido:há muito tempo. No Império Romano, por
.é,com árteza, estranho que tenha dedicado um maior numero de pági-
exemplo, as meninas eram eliminiclas sem pestanejar. Na Idade Média
nas às relações mãe-filho do que às_relações pai-filha. Mesmo assim, as
cristã foram queimadas milhares- de. mulheres como bruxas porque da-
meninas poderão ter algum consolo ao constatarem numerosas similari-
vam mostras de um pouco de originalidade. Ainda não há muito tempo,
dades entre o destino dos meninos e o seu. Quanto àqueles ou àquelas
na China, eram mortas meninas no nascimento. No Japão, um médico
que acham que estou dando ênfase demais à mãe e pouco destaque ao
que trabalha em uma clínica de aborto testemunhou o fato de que o reco-
pai, indico-lhes meu livro Père manquant, fils manqué.
nhecimento do sexo da criança obtido pelo teste da amniocentese favore-
Feitas tais considerações, as perguntas que servem de orientação à
ceu uma hecatombe de interrupções de gravidez que, na maior parte dos
minha reflexão poderiam ser formuladas do seguinte modo:
casos, diziam respeito a fetos femininos. Como o filho mais velho repre-
senta, neste país, o arrimo de velhice dos progenitores, as mães desejam
De que maneira as relações de proximidade entre mãe e filho acabam por interfe-
rir no desenvolvimento de ambos, no plano de sua individualidade? consagrar sua energia a educar um macho. Até mesmo entre nós, durante
Como conseguem inibir não só o desenvolvimento natural do filho rumo à muito tempo, foi mais apreciado o nascimento de um menino do que o
autonomia e à independência, mas também O desenvolvimento da mulher que se de uma menina. Uma mãe confiou-me que, ao apresentar-lhe a filha, a
tornou mãe? enfermeira lhe disse o seguinte: "Espero que não esteja decepcionada
De que maneira uma relação que em geral começa no amor reciproco acaba, demais!" •
de forma lastimável, em uma grande expectativa deéepcionada por parte de uma No contexto social que há poucas décadas conferia ao homem toda a
mãe solitária e em uma raiva inconfessável de um filho que fai tudo para manter autoridade, uma mulher aprendia muito depressa de que território deve-
a mãe à distância?' ria apropriar-se para exercer seu poder: a maternidade e a educação dos
Será que a relação mãe-filho deve ser um draina de amor que sempre acaba mal? - filhos. Assim, tornava-se a rainha do lar... um reino bastante solitário.
Tanto mais que ela na.° podia ignorar que seu reino estava subordinado
Tornar-se mãe ao de um rei de quem era, propriamente falando, a serviçal.
Apesar de tudo; no estrito plano social, o fato de tornar-se mãe é
- Enquanto o Pai nos introduz no mundo social da lei humana, a Mãe
acompanhado, em um primeiro tempo, por uma valorização desconheci-
no sentido simbólico, -mítico, arquetípico —, introduz-nos no mundo
da até então. Quando uma mulher está grávida, todo o mundo lhe dirige,
do Vivo. Ao dar-nos a vida, nossa mãe biológica encarna a'Mãe. A lei no
de repente, olhares e palavras cúmplices na ruà e no supermercado. Sua
mundo da Mãe é a do acolhimento, da dedicação, da dádiva de si e da
própria família, que a negligenciava, lembra-se subitamente que ela exis-
abertura. Quem não se lembra da solicitude de uma mãe ou de uma avó
te e procura informar-se com regularidade a respeito do seu estado de
por ocasião de uma doença? Para parafrasear Victor Hugo, o milagre do
saúde e da evolução da gravidez. Até mesmo os temores habituais dos
amor materno consiste em que cada um tenha sua parcela de amor e
homens evanescem-se diante de um ventre arredondado para dar lugar a
todos o tenham por inteiro.
um fascínio infantil — salvo para o novo pai, que, por sua vez, encontra
No entanto, a guerra surge também neste terreno. As mães mais
nessa situação ainda mais razões para se angustiar.
dedicadas acabam tendo de enfrentar regularmente um conflito em rela-
"Quando estamos grávidas, ninguém pode negar nossa existência. Vê-
ção ao filho. Sobretudo quando, devido à solidão afetiva, o deixou ocu-
se que existimos, é algo palpável!", declarava uma mãe por ocasião de
par a posição de companheiro.
uma conferência. Em uma sociedade de produção em que importa mos-
Uma parte desse drama é condicionada pela própria organização de
trar aos outros o que cada um sabe fazer para provar sua existência, tor-
nossa sociedade. De todo o registro de expressão da feminilidade, so-
nar-se mãe constitui uma prova irrefutável de seu valor, sem falar do
mente o fato de ser esposa ou mãe encontrou graça aos olhos do patriar-
valor que representa uma criança para a sociedade.
cado. Era previsível que, naturalmente, uma mulher sacrificasse sua pes-
No entanto, é também compreensível que, em um contexto de desi-
soa em benefício de um outro, na maior parte das vezes, um homem ou
gualdade dos sexos, a maternidade possa facilmente tornar-se um lugar
um filho. O estatuto de mãe era valorizado, ao passo que o de mulher
110 de investimento da necessidade de reconhecimento e dos desejos maltra-
não era suficientemente reconhecido. 111
tados da mulher, um espaço de desforra até mesmo contra as frustrações
associadas à negação dos valores femininos. Assim, uma mulher pode À proposta de que deveriam estabelecer uma relação amorosa e se-
'chegar a engravidar para preencheium vazio pot falta de Vida, é pão por xual Com uma pessoa do mesmo sexO daquela cjiielhes-teria dado fáa;
se tratar propriamente de uma plenitude que procura sua expressão natu- a reação de várias mulheres que aceitaram fazer tal exercício foi a seguin-
ral na criação de um filho. Tudo isso levará a uma sobrecarga de expecta- te: "Parece-me que eu teria absoluta necessidade da presença de uma
tivas extremamente pesadas para a criança. Esta nasce com um programa mulher a fim de confirmar meu lado feminino, antes de poder fazer amor
preestabelecido: satisfazer as lacunas afetivas de uma mulher que foi pri- com um homem."
vada da presença paterna e, agora, carece de companheiro. Eis precisamente o que não acontece com o rapaz: na maior parte das
Com efeito, se em um primeiro tempo a mulher pode sentir-se valori- vezes, não há ninguém do mesmo sexo para confirmar seu lado masculi-
zada pela maternidade, ela descobre aos poucos que se encontra, ao mes- no. No entanto, para que se esclareça a confusão entre mãe e filho, será
mo tempo, desfavorecida no plano pessoal. "Há um interesse tão grande necessário passar pela separação; ora, em todos os tempos, a figura pater-
pelo nosso ventre, a mãe é dê tal modo favorecida, que automaticamente na foi o artesão natural de tal operação. Eis o motivo pelo qual o pai deve
as pessoas são impelidas a esquecer a mulher." A mãe toma todo o lugar estar :presente. Eis também o motivo pelo qual a mãe deve ceder-lhe o
no momento em que, em muitos casos, a mulher ainda não teve oportu- lugar:sempre que possível. Finalmente, eis o motivo pelo qual deve ser
nidade de nascer. garantida uma 'presença masculina na família quando o pai abandonou o
lar ou faleceu.
Não saber:onde começa um e onde acaba o outro • No plano psicológico, essa separação mãe-filho é de tal modo impor-
tante que, em certos povos, já foi observado que a fase de separação entre
A criança é dada à luz e, nos primeiros meses, não é fácil saber onde mãe e filho pode durar quinze anos. Por exemplo, em certas tribos, o
começa um e onde acaba o outro. Mãe e filho estão misturados um ao rapaz que é arrancado ao mundo materno no alvorecer da puberdade
outro no amor. Essa confusão bem-aventurada deverá, no entanto, desfa- não poderá rever a Mãe senão quando tiver uma esposa. Já foi observado,
zer-se aos.poucos para permitir que cada um possa prosseguir seU desen- igualmente, o- seguinte: quanto mais longa e profunda for a simbiose en-
volvimento. Caso contrário, deixará importantes marcas psíquicas na tre mãe e filho, tanto mais cruéis e violentos serão os ritos iniciáticos.
da criança. ISso diz respeito, em particular, a esses povos em que ofilho compartilha
Neste aspecto, a relação mãe-filho é um terreno particularmente deli- durante muito tempo do leito conjugal e em que ,é separado progressiva-
cado em razão do fato de que, ao se tornarem adultos, os meninos — mente da mãe.
contrariamente às meninas — terão de estabelecer uma relação amorosa
e sexual com uma pessoa do mesmo sexo da mãe. Para que se estabeleça A criança tem acesso ao seio da mãe à vontade, às vezes até fazer três anos. Vive
perfeitamente uma distinção psicológica entre a companheira potencial e em seus braços, em contato direto com a pele, e dorme nua em sua companhia
a própria mãe, será necessário que exista separação. Caso contrário, os até o desmame. Depois disso, meninos e meninas dormem separados da mãe, a
territórios permanecerão confundidos e os filhos hão de aplicar à respec- unia distância de trinta ou sessenta centímetros. Com o tempo, os meninos são
tiva mulher os atributos que eram da mãe. Bem depressa irão encontrar- ineitados pelos progenitores a dormir um pouco mais distantes da Mãe, mas ain-
se em posição de meninos sem defesa diante de uma companheira desam- da' não no "espaço macho" da casa. A despeito de um contato crescente com o
parada que não saberá o que fazer com a onipotência que lhe é atribuída. pai, os meninos continuam a viver com a mãe, irmãos e irmãs até a idade de sete
ou dez anos. As tribos de Nova Guiné, cientes dó. perigo da feminilização do
Ou ainda, acabará recebendo maus-tratos e será vítima de ataques de
rapaz, procedem a ritos de iniciação em geral muito longos e traumatizantes, em
cólera que, manifestamente, não lhe são dirigidos.
proporção com o vínculo extremo mãe-filho que deve ser desfeito.'
Muitas vezes, é difícil para as mães compreender essa dificuldade par-
ticular aos rapazes e suas conseqüências. No entanto, se a mulher tentar
Os primitivos já tinham aprendido que é preciso separar verdadeira-
imaginar, ao contrário da realidade, que nasceu do ventre do pai, foi
mente o filho da mãe para evitar os conflitos e encorajar uma relação
amamentada ao seu seio durante numerosos meses e foi mimada por ele,
além de se ter banhado em seu odor, poderá ter uma idéia do que se passa
3. Esses detalhes são extraídos do livro de Elisabeth Badinter: XY, De l'identiM masculine. Paris
112 com o homem. 113
Odile Jacob, 1992, p. 83.
dificuldades. Ainda está por se criar. Podemos até mesmo nos perguntar
sadia de amor. Tinham compreendido também que d agente por excelécia
se ela representa uma estratégia de sobrevida aceitável para a espécie
de tal separação é o pai. Em suma, trata-se de criar o importante triângulo
humana. Sem dúvida, nos próximos anos veremos:o surgimento de 'no-
pai:mãe-filho. Assim, este último faz á aprendizágem necessária-dos limites
vos modelos de família — talvez, mais coletivos — que permitirão às
e da frustração. E, ao mesmo tempo, ganha uma relação com o pai.
crianças que não têm a sorte de possuir pai ou mãe naturais receberem,
apesar de tudo, cuidados paternos e maternos adequados.
O problema é que o pai não está presente
A verdadeira semente do conflito que há de elaborar-se através dos O casamento mãe-filho
anos entre mãe e filho e irá conduzi-los do casamento de amor ao divór-
cio amargo é o triângulo pai-mãe-filho des funcional, para empregar um Mas o que acontece quando o triângulo é defeituoso? O poderoso
vínculo que une a mãe ao filho não será desfeito, mas reforçado pelo
termo da psicologia moderna. Existe um desequilíbrio fundamental nes-
fascínio natural de um sexo em relação ao outro. Haverá casamento sim-
se triângulo porque, na maior parte das vezes, a mãe está presente no
bólico entre mãe e filho porque o pai, que no plano psíquico é o parteiro
plano afetivo e físico, ao passo que o pai prima pela pouca presença. Esse
do menino, não cumpre sua função natural.
triângulo defeituoso resulta da família nuclear que foi fundada com um
Tanto mais que, na prática, o pai ausente revela-se muitas vezes um .
membro ausente, o pai, obrigado a trabalhar fora. •
parceiro também ausente para a cônjuge. A mulher que se tornou mãe
Alguns homens experimentam dificuldades para assumir uma pater-
encontra-se, assim,elesamparada no plano afetivo no momento em que, .
nidade comprometida. Não. chegam a ceder, o lugar de filho à criança.
mais do que nunca, tem necessidade da relação com o parceiro para ter
Toleram mal que a mulher se torne mãe porque se sentem abandonados.
presente o fato de que ainda é mulher. Com efeito, sentir-se ainda deseja-
Sentem-se de tal modo exteriores ao nascimento da criança que a atenção
da apesar das transformações do corpo pode ser um 'elemento deter-
prestada a este pela mãe ameaça seu equilíbrio narcísico. Ao perderem a
minante para conservar a mulher viva em si e impedi-la de desaparecer
atenção da companheira, perdem ao mesmo tempo o apoio afetivo que
nas tarefas maternas. Na melhor das hipóteses, o desejo mútuo dos côn-
Mantinha seu equilíbrio. Podemos pensar • que tais homens não conse-
juges permite que eles não soçobrem completamente em sua função de
guem:suportar ver a mulher tornar-se mãe porque, neste caso, emerge
pai e•de mãe. Issii é até primordial para conservar o equilíbrio por oca-
das profundidades o problema não resolvido com a progenitora. Os fan-
tasmas misturam-se com a realidade e, em breve, a companheira torna-se sião do desabrochamento da identidade parental.
O cimento da união entre mãe e filho será a decepção afetiva de uma
tão ameaçadora quanto a mãe o foi na ausência do pai que deveria ter
mulher que, por falta da atenção por Parte do cônjuge, faz do filho um
participado da separação com o filho. Isso explica, talvez, o fato de 7%
das gestantes serem vítimas de violência durante a gravidez e de, em rela- parceiro de substituição. Aos poucos, ela passa de meu menininho para
00 às outras, as mulheres jovens serem agredidas com um freqüência
meu homem, marcando desta forma a instauração do filho no lugar do
marido. Assim, a contrapartida do pai ausente será a mãe-amante, uma
quatro vezes superior, no momento em que os maridos ainda não estabe-
leceram a nítida diferença entre a progenitora e a companheira.4 mãe que, progressivamente, se tornará demasiado presente na vida do
filho porque sua noção das responsabilidades e sua consciência das ne-
Esse triângulo defeituoso está começando a reequilibrar-se graças à
cessidades do menino vão levá-la a preencher os dois papéis parentais.
entrada do pai biológico na cena da 'história. A família nuclear não está
Tal situação conduzirá a mãe e o filho a uma espécie de casamento
em via de desmantelar-se,' mas de se formar sob nossos olhos com muitas •
simbólico que constitui um verdadeiro incesto que não se desenrola no
plano sexual, mas no afetivo. Em certos casos, as conseqüências sobre os
filhos, sobretudo no que tem a ver com a fraca auto-estima, serão compa-
4. Segundo a pesquisa sobre a violência contra as mulheres feita em 1993 no Canadá, "as mulheres
que, nos últimos dois anos, se tinham cisado ou viviam ern união livre constituíam proporcional- ráveis às do incesto pai-filha.
mente o grupo mais numeroso de vítimas de atos de violência perpetrados pelo Cônjuge nos doze Vemos isso perfeitamente no Japão, país onde o incesto mãe-filho
meses que precederam a entrevista (8%). Em comparação, somente 1% das mulheres cuja união
livre durava mais de 20 anos declararam ter sido vitimas de atos de violência". Extraído de Karen
com relações sexuais é mais freqüente do que entre nós. Um contexto em
Rodgers. "La violence conjugal au Cariada". In Tendances soem/es canadiennes, outono de 1994, que, depois do casamento, as mulheres não trabalham fora de casa e em 11.5
n8 11-008F no catálogo, Statistique Canada, p. 3-9.
que os homens trabalham seis dias por semana, só voltando ao lar para A mãe devorada!
dormir, parece favorecer tal prática. Isso az com que, mesmo depois de
• OisónhOique relatei MilS.àdIlla IlãO SimIglizasomenfe a história do "
casadbi, 6s filhos ainda dependam da mãe para tomar decisões que di-
filho que é devorado pela mãe. O peixe pequeno devorado pelo grande
zem respeito à vida conjugal.
corresponde também à individualidade de uma mulher consumida pelas
funções maternas. A mulher acaba sendo devorada pelo arquétipo mater-
O filho devorado no. A mãe é comida pela Mãe. Neste drama oriundo de um triângulo
Para resumir de maneira simplista o drama de amor que. se desenrola defeituoso entre o pai, a mãe e o filho, existem realmente duas vítimas: a
entre mães e filhos, sinto vontade de parafrasear a fórmula de Shakespeare: mãe e o filho. Podemos até mesmo enumerar uma terceira vítima se con-
comer ou ser comido, eis a questão! Aliás, não será verdade que o amor siderarmos que o homem que se tornou pai permanece expatriado da
intenso se expressa por reflexões coloquiais, tais como: "Gosto tanto família e desapossado da realidade afetiva em razão de um contexto his-
dele que • tenho vontade de comê-lo todinho"? Essa verdade simbólica tórico que o alienou de sua sensibilidade.
surge com toda a evidência no seguinte sonho, relatado por um homem Que vantagem haverá em deixar-se submergir pelo arquétipo mater-
de quarenta anos que participava de um grupo de terapia sobre as rela- no? Digamos, em primeiro lugar, que tornar-se progenitor constitui uma
ções mãe-filho. • provação fundamental para a identidade pessoal. Trata-severdadeiramente
de uma iniciação em que existe morte para um estado de vida e nasci-
Estou no meu apartamento que se transforMou em um imenso aquário PIO qual mento para outro. Em tal situação, é sempre perigoso que o ego entre em
se encontram dois peixes —um grande e outro pequeno. O grande está em via de fusão com a nova identidade e não consiga conservar, nem que seja du-
morder com toda a gana o pequeno. Estou vendo sua espinha no momento em rante um laps.o de tempo, suas características individuais. Para um indiví-
que ele continua a nadar e a lutar. duo, não é fácil evitar o fascínio da força arquetípica, considerando que
se trata de uma experiência emotiva e sensitiva difícil de reprimir porque
Em outras palavras, este homem ainda se encontra em luta contra o brota diretamente das entranhas. Trata-se de uma revelação que inunda -
complexo materno que o come "até a espinha". Sofre de uma ferida de todo o ser de uma nova força.
identidade porque, além de não «ter separado adequadamente da mãe, o A mulher que se torna mãe descobre em si novos talentos, novas emo-
pai acabou pedindo aos filhos para tomarem conta dela. A união simbó- ções e novas preocupações. Sente que se instalam nela estados de cons-
lica com 'esta tornou-Se ainda mais intensa. Para este filho, o pai não ciência que nunca tinham sido experimentados anteriormente. Essa vita-
esteve suficientemente presente para lhe permitir que se diferenciasse da lidade interior lhe permitirá preparar-se para acolher a criança. Portanto,
mãe. Teve de se defender sozinho contra ela pára Chegar a afirmar sua não se deve subestimar tal experiência, uma vez que se trata de uma ajuda
identidade de homem; por sua vez, a mãe não teve ninguém para lembra- natural ao parto. Ao sacrificar sua identidade pessoal, a mulher encontra,
la.de que era' mulher. de repente, um novo valor. De um dia para o outro, sua vida toma um
Tal situação impede a resolução favorável do 'complexo de Édipo, sentido que não tinha anteriormente. Ela sente que pode responder às
resolução que pretenderia que o filho cedesse ao pai a pretensão ao papel questões perturbadoras da existência. Já não está lutando com a peque-
de cônjuge para se orientar na busca de outra mulher. Quando o pai não nez de sua individualidade ou com os problemas que tinha antes de ficar
está presente para impedir a aproximação entre filho e mãe, estes perma- grávida. Ao tornar-se Mãe, sente-se finalmente plena e pode acabar com
necem prisioneiros um do outro, muitas vezes, para o resto de suas exis-
o vazio. Está conhecendo o estado de graça.
tências. Se "o dever de toda vida consiste em não ser devorador, como é O impulso e o fascínio exercidos pelo arquétipo da Mãe são de tal
tão bem dito pela escritora brasileira Clarice Lispector, é forçoso convir
modo profundos que é impossível, e até mesmo nefasto, não sucumbir a
que, entre mãe e filho, esse dever primeiro é, muitas vezes, esquecido.s
eles. Importa que o ser humano passe pelo ventre da baleia para voltar a
sair dele, como Jonas, transformado. Mas se a mulher for perdida de
5. Isso é igualmente verdadeiro em relação aos pais que criam os filhos sozinhos. Neste caso, são
vista durante muito tempo a individualidade começará a sofrer porque o
eles que estão em perigo de criar urna fusão com os filhos, e é a mulher que vem de fora que se
116 11 7
torna o elemento separador e salvador. papel de Mãe é, de alguma forma, coletivo. Para poder integrar tal expe-
riência arquetípica e deixar-se alimentar por ela é preciso de algum modo,
psicológico. É claroque,-éni iiezde liberta:1ns, esse vínculo os acorrenta.
que urna parte da per'sdíiàlidade consciente permaneça na superfície e
. Cada um dos parceiros julga.-ameaçadõrdemais-colocarem questão ,essa
não.Se abandone-éciiMpleramente 'ao Poder interior. Será necessáfiô lutar
deperidênéià^ rrifitá porque ela áarante uma-ceria. estabilidade da identida-
para consolidar a mulher e não sacrificá-la às tarefas que tem a sua frente, de, mesmo que patológica. Tais contratos poderiam resumir-se desta for-
por mais sagradas que possam ser. Idealmente, se trataria de estar em ma: "Você pode beber se não colocar em questão nossa união; quanto a
relação com a força do interior, em vez de ser submersa por ela. mim, posso desempenhar o papel de salvadora e mártir se não empedir
A partir de que sinais a mulher poderá reconhecer que sua individua- você de beber." No casal mãe-filho, o rapaz pode permanecer irresponsá-
lidade é devorada pelo arquétipo materno? Será que se sente bem quan- vel enquanto permitir que a mãe desempenhe o papel de mãe.
do o filho vai bem e mal quando ele vai mal? No caso afirmativo, é sinal Uma vez que o casamento tem um coiltrato, aquele que liga a mãe ao
de que está submersa — pelo menos em parte — em sua função. O tor- filho poderia ler-se do seguinte modo:
mento interior ou a libertação que nascem em si diante dos humores dele
indicam o desencadeamento automático do arquétipo, a passagem da O filho permanecerá dependente da mãe com a. condição de que esta nunca o
mulher para a Mãe. Essa fusão da mulher com o arquétipo da Mãe consa- abandone, cuide sempre dele e lhe perdoe tudo. Em troca destes pequenos servi-
gra, ao mesmo tempo, a fusão entre mãe e filho. ços, o filho poderá crescer, mas... sem crescer. Poderá tornar-se um homem com a
Por exemplo, uma mãe contou-me que o filho apressava-se para tele- condição expressa de permanecer sempre um menino.
fonar-lhe todas as vezes que tinha um problema na escola. Assim, durante
o trabalho, no meio da manhã, chegava a receber urna ligação para lhe E a clausula escrita em caracteres minúsculos, praticamente ilegíveis,
anunciar que, uma vez mais, tinha sido reprovado no exame de matemá- no rodapé do contrato, aquela que nunca ninguém lê e ratifica tudo, diria
tica. Voltava a casa derrubada depois.de um dia terrível, inquieta por o seguinte: .
causa do seu menino. Por sua vez, ele voltava da escola na hora mareada,
As duas partes nurt ca poderão separar-se. A presente os isenta de qualquer res-
sorridente e descontraído, já que se tinha desembaraçado' do problema às
.ponsabilidade quanto aos problemas que possam ocorrer nos.relacionamentos do
. 10h da manhã, delegando-o à mãe: fillyo com outras mulheres. Estão garantidas as dificuldades para assumir com-
Esse exemplo coloca em evidência outro aspecto associado ao perigo promissos.
que corre a mulher ao abandonar-se, sem oferecer resistência, ao arquéti-
po materno que faz com que 'toda mãe considere o filho um deus. A
A interdição da separação
dupla responsabilidade da mãe corre o risco de engendrar a divina
irresponsabilidade do filho. Se a mãe se ocupa de tudo, desde a higiene Agora, no plano teórico, retomemos o que acabamos de elaborar.
pessoal à alimentação, passando pelas roupas, o filho não há de se preo- Vamos fazê-lo à luz das formulações tradicionais da psicanálise relativas
cupar com absolutamente nada. Mas cuidado! Lavada, alojada, alimenta- ao complexo .de Édipo.
da e vestida,. a, pequena divindade terá tendência a exigir a mesma coisa Um elemento importante da formulação freudiana pretende que o
das futurai parceiras. A solicitude das mães tece, inconscientemente, o filho abandone o desejo incestuoso em relação à mãe sob a ameaça,
destino das noras. fantasmática e raramente formulada como tal, de uma castração que se-
ria perpetrada pelo pai. Como o filho tem medo de perder o pênis, obe-
dece à lei paterna. Mesmo na ausência do pai, a angústia da castração
Todo casamento tem um contrato continua sendo atuante, porque, neste caso, é representada por outras
figuras pessoais (tios, avôs) ou institucionais (Igreja, Estado, Escola) que
Todo casamento tem um contrato. Entre mãe e filho, estabelece-se uma
convenção de co-dependência. Eis um conceito que explica os vínculos vêm bloquear o desejo. Essa aceitação da lei sob pena de punição cons-
trói o psiquismo da criança porque serve para instalar o superego, ou seja,
inconscientes que acorrentam, por exemplo, um cônjuge ao parceiro alcoó-
a instância que formula as proibições em um ser humano.
latra. O vínculo é chamado de co-dependência porque cada parceiro tem
118 No entanto, essa formulação clássica não abrange toda a realidade
necessidade da dependência do outro para garantir um certo equilíbrio 719
clínica. Oculta o fato de que, além do desejo do filho, deve ser impedido
igualmente o desejo da mãe de aproximar-se dele.6 É tanto a mãe que .a
_-Com efeito, o filho não conhece somente o desejo de incesto com
deve ser separada-do seu menino quanto o inverso. Não é.noplano sexual, . mãe. Motiva-do pelo procesSo de individuação, carrega também o desejo
inaS no Plano afetivo que se elabora o desejo materno; é o que deSign - ei de separação em relação a ela, para prosseguir sua evolução. A presença
de casamento simbólico entre mãe e filho. Muitas vezes, o que se instala paterna irá facilitar o processo de separação. Nos primeiros anos de vida, a
na família não é a obrigação da separação em relação à mãe sob a ameaça ligação incestuosa é necessária para permitir que a criança mantenha uma
de castração paterna, mas seu contrário, a saber: a proibição da separa- ligação natural com os pais; no entanto, à medida que for crescendo, ou-
ção em relação à figura materna. Resulta daí um casal impossível de mãe tras necessidades virão impor-se a ela, tanto do exterior, como do interior.
e filho; uma união que, por não seguir a via natural, não pode ser consu- g
Aliás, Jung propôs que o medo da castração que aparece no filho
mada, nem desfeita do ponto de vista psicológico. poderia muito bem ser um fator natural para ajudá-lo na separação da
De fato, a pressão do amor materno obriga o filho a manter, por sua mãe!' Tal medo elabora-se mais em relação à figura materna onipotente
vez, a barreira do incesto e imprime nele o medo do desejo feminino, que do que em relação ao pai ou a uma instância paterna. É a razão pela qual
mais tarde será representado em seus relacionamentos com as mulheres. a mãe apareceria, com uma freqüência cada vez maior, na psique do filho
Essa angústia diante da demanda materna explica, em grande parte, a com traços ameaçadores. O inconsciente produz figuras de bruxas repug-
ambivalência tradicional dos homens em relação ao compromisso amo- nantes porque reage ao perigo que representa a fusão com a mãe para seu
roso. Eles temem encontrar-se de novo nas mãos de uma mulher sem crescimento. Algo nele sabe que não irá passar a vida com ela e deve
terem a capacidade de estabelecer seus próprios limites. Essa situação há recusar tal sedução para prosseguir sua evolação.
de prevalecer eriMianto o homem não tiver resolvido a situação edipiana. Quando a mãe aceita sustar seu desejo em relação ao filho porque o
Em razão da falta de presença paterna física ou simbólica quase gene- pai está presente, por ter um parceiro satisfatório, ou por qualquer outro
ralizada, o principal dilema de uni hOmem se desenrolará em Uma rela- motivo, ela facilita sua passagem para a idade adulta. Eles não terão de •
ção dual com a mãe, e não emuma relação triangular em que o pai estaria carregar o aspecto odioso da separação de uma mãe que acabou tornan-
incluído. Portanto, o aspecto odioso da separação, com seu cortejo de do-se dependente dele. O peso do sentimento de culpa e a dívida que terá
sentimentos de culpa, há de recair no.filho porque este não pode contar _ acumulado para com ela serão atenuados na mesma proporção. Em suas
com a ajuda do pai. À medida que o patriarcado definha; nem sequer é - primeiras uniões, não será obrigado a representai, sob a forma bem co-
possível contar com as representações fantasmáticas das instituições pa- nhecida da ambivalência, o drama de uma separação interdita.
ternas para agirem como instância que estabelece a proibição. Em nume- A falta de contenção tantb do desejo materno quanto do desejo do
rosos casos, elas perderam a credibilidade necessária para tal efeito. filho terá como conseqüência uma fraqueza da construção psíquica deste
Idealmente, a presença do pai age não só para impedir o acesso direto último. Como as instâncias interditoras do superego não estão instaladas,
do filho à mãe, mas igualmente no sentido de limitar a fusão da mãe com o esse ser experimentará dificuldades para estabelecer seus limites e para se
filho, lembrando-lhe que ela é mulher. Eis a razão pela qual reservar uma
afirmar. Terá dificuldades tanto para se comprometer dizendo "sim" quan-
noite para uma conversa a dois com o cônjuge ou passar um fim de semana to para manifestar sua recusa dizendo "não". Acima de tudo, terá receio
sem os filhos pode ser benéfico para uma mãe possuída pelo arquétipo
de causar sofrimento a outra pessoa porque nunca ousará enfrentar seu
materno. Assim, sua relação com a prole torna-se leve. É como se o marido
complexo materno e machucar a mãe mostrando-lhe que não está casado
tivesse vindo dizer-lhe o seguinte: "Lembre-se de que é uma mulher antes
com ela.
de ser uma mãe. Eu é que sou o homem de sua vida, e não ele! E, afinal,
Aliás, eu me pergunto se essa situação não contribui para reforçar no
você não está sozinha com esse menino, ele tem uma vida para viver longe
homem a divisão entre sexualidade e sentimentos. Nesse incesto afetivo,
de você. Você não pode ser tudo para ele; ele precisa realizar suas exPeriên-
cias."7 Por permitir, com sua presença, o desligamento em relação à famí- o ato sexual propriamente dito não é consumado, mas existe, mesmo
assim, a proibição de pertencer a outra mulher no plano amoroso. Deste
lia, se diz que pai o é quem leva o filho a entrar no mundo social.
modo, a sexualidade de um homem pode tornar-se perfeitamente separa-
6.Não sou o único a ter esta opinião que também é defendida pela psicanalista aristiane Olivier
em todos os seus livros, entre os quais:Les Fila d'Oreste. Ou /a question da pare. Paris: Flammarion,
120 1994, p. 117. 8.Jung fala do assunto, detalhadamente, no livro: Métamorphose de l' ame et ses syrnboles. Gene- 121
7.Esta formulação surgiu em uma conversa com a psicóloga Lucie Richer. bra: Librairie de l'Université, 1967, pp. 677-721.
da de seus sentimentos. Poderá fazer amor com alguém, mas não poderá . espécie de atitudes machistas que fazem com que até mesmo a mãe mais
comprometer-se enquanto seu mundo sentimental pertencer simbolica- .tolerante estremeça de horror. "Ele era rão. meigo! diz ela; como é que,.cle
mente à mãe. Deve, inclusive;matar o amor dos seres que se aproximam um diá pára cio-uno, se tOrnou tão brutal?" Recentemente, uma mãe conr: • •
dele para não provocar a ira do seu dragão materno. tava-me que o filho tinha afixado no quarto um cartaz de dois metros de
Uma segunda conseqüência desse Édipo não resolvido entre mãe e altura com a figura do Terminator, esse brutamontes eletrônico encarnado
filho é a primazia do auto-erotismo em grande número de homens. A na tela por Arnold Schwarzenegger. Desde esse dia fatídico, ao deixar o
pornografia expressa e, ao mesmo tempo, explora essa situação psicoló- quarto todas as manhãs sacode os ombros como se fosse um arruaceiro.
gica. O homem masturba-se diante de corpos de mulheres que não pode Diante de tais procedimentos, deve-se compreender que eles não se
tocar, do mesmo modo que uma criança sonha, atrás da janela, com o dia dirigem à mulher, mas à Mãe, à função materna. Corno já não existem
em que será livre. Esse auto-erotismo, associado ao consumo de material ritos de iniciação que venham estabelecer a separação automática entre
pornográfico que, às vezes, se estende por toda a vida, simboliza, da me- mãe e filho, este último, sem ter conhecimento disso, exibe comporta-
lhor forma possível, a posição de castração. mentos que afastam a progenitora. Às vezes, de uma forma bastante desa-
jeitada, ele gesticula e diz certas coisas que visam afastá-la. Uma força
A puberdade ou a guerra aberta desconhecida impele-o a prosseguir o caminho rumo à idade adulta. As
brincadeiras vulgares, as blasfêmias, os pequenos atos de delinqüência, a
• Em geral, a relação mãe-filho, até mesmo emaranhada em um con-
falta de higiene e o fedor servem para esse único objetivo: libertar-se do
texto incestuoso, desenrola-se bem no início porque ambos têm necessi-
jugo materno.' Eis a razão pela qual tais gestos se situam exatamente no
• dade de amor para conseguir subsistir. Freud observou que se o comple-
lado oposto das maneiras que a mãe tenta inculcar ao filho. O valor deste
xo de Édipo não fosse resolvido entre três e cinco anos, seria retomado,
comportamento reside precisamente nisto: ele tem necessidade de rom-
em geral, na puberdade, após o período de latência, durante o qual tudo
per com a educação materna.
parece estar adormecido. É então que a relação corre o-risco de se tornar
Quanto mais rapidamente a mulher compreender tudo isso, menor
• Uma guerra de poder entre mãe e filho. O .grande amor entre eles torna-
será seu sofrimento interior; além disso, irá facilitara passagem do filho
se, de:repente, uma prisão que prejudica o desabrochamento da identida-
para à idade adulta. A certas mães à beira do desespero, cheguei mesino a
de individual de ambos.
dizer o seguinte: "Como seu filho deseja menos mãe, dê-lhe menos mãe!
Em geral, a puberdade precipita o casal impossível, em tribulações
Chegou o tempo de se lembrar da mulher que existe dentro de você.
pouco banais. A idade, que dá espinhas tanto aos adolescentes quanto às
Recomece a fazê-la viver. Retome contato com suas preferências e dese-
mães, estimula ainda mais á escalada de tensão que já há algum tempo se
jos. Reconstrua sua vida".
desenhava entre mãe e filho. Mal consolidado, tendo falta de modelos
'masculinos para se identificar, este vai tentar superar a regra materna a
fim de ganhar sua própria identidade de homem. Declara-se a guerra. A A puberdade é um segundo nascimento
mãe, desesperada, tenta por todos os meios controlar o filho, e este res- •
Se eu tivesse de delimitar 'Os três momentos mais importantes da vida
ponde com atitudes cada vez mais ingratas.. Dir-se-ia que se obstina em humana, a lista comportaria, com toda a certeza, juntamente com o nas-
chatear a mãe de todas as formas possíveis e imagináveis. Não é por nada cimento e a morte, a idade de quatorze anos. O período final da puberda-
que esta idade é qualificada de "ingrata". Marca o reino da ingratidão de é tão importante para o ser humano que poderíamos chamá-lo de
dos filhos para com as mães. "segundo nascimento". Trata-se do nascimento para o mundo social. Aliás,
No inconsciente, o medo de permanecer prisioneiro do universo ma- nas tribos ancestrais, o casamento já era possível a partir dessa idade.
terno estimula no filho o arquétipo do herói, e às vezes até mesmo o do Tanto para o menino como para a menina, o início da adolescência marca
guerreiro. Do ponto de vista estritamente psicológico, trata-se de uma o momento em que desperta uma forte pulso de autonomia. Tal pulsão
reação extremamente sadia que irá preparar o jovem para tarefas que o
esperam, porque a mãe nem sempre estará presente para ocupar-se dele. 9-A propósito dos ritos de iniciação, ver Victor Tomer. "Betwixt and Between: The liminal period
122 Começará a bater as portas, a colocar o som alto demais e a exibir toda a in rites of passage". In Louise Caros Mahcli, Steven Foster & Meredith Link (sob a direção de).
123
Betwixt and Between. La Sane, Illinois: Open Court, 1987, pp. 3-23.
é tudo o que há de mais natural. Fisiologicamente falando, a partir 'dessa drogado com LSD; nas duas ocasiões tinha tentado se-suicidar, deitando-se no'
idade, o ser humano está preparado para viver a vida., Nas tiossás.socie-- - meio da estrada. Essamãe compreendia nmito pouco os procedimentos do filho, -
na medida em que, em casa, ela procursna. reduzir suas intervenções a fim de lhe
dades, o período entre quatorze e dezoito anos tornou-se o mais difícil:
deixar o maior espaço possível. Apesar disso, entre os dois a tensão • estava au-
apesar de já possuírem todos os elementos que lhes permitiriam ser autô-
mentando cada vez mais. Sua reação consistia em tornar-se cada vez mais com-.
nomos, os adolescentes esbarram na legislação vigente que. lhes nega au-
placente e em calar a própria revolta.
tonomia antes dos dezoito anos e, muitas vezes, acima desta idade.
.Ora, o inconsciente do filho estava profundamente marcado por esse compor-
No final da puberdade, os filhos têm mais apreço não pelos pais, mas tamento materno e sua anima, modelada a partir da personalidade da mãe, assii-
pelos colegas. É o momento em que se abrem para o amor e para a socie- mia a figura de uma mulher polida que tinha dificuldades para assumir seu lugar.
dade. Na realidade, os ensinamentos de pais para filhos devem ser feitos Na mesma proporção, sua combatividade encontrava-se maltratada. Ele cedia
antes dos quatorze anos, porque, passado esse período, eles já não se facilmente a seus humores depressivos e sua inclinação suicida refletia tal heroísmo
encontram na mesma sintonia. Além de captarem melhor as mensagens invertido. Em vez de expressá-lo diretamente à mãe para ganhar seu direito à
da sociedade, os filhos muitas vezes rebelam-se contra as mensagens pa- independência., toda a agressividade tinha-se voltado contra si mesmo. Em vez de
ternas. Por conseqüência, o enquadramento parental deveria começara criar sua vida, pretendia destruí-la. No consultório, a mãe desfeita em lágrimas,
atenuar-se: em ,vez de tomarem o encargo dos filhos, os pais deveriam confiava-me sua dificuldade em compreender o sentido de tal atitude, Propus-lhe
depositar neles mais confiança; em vez de proibições, deveriam recorrer . a seguinte reflexão: o LSD e o suicídio tinham, talvez, como função criar um Li
à negociação e à compreensão. É essencial entender que, depois dessa espaço no qual ela não pudesse penetrar com sua compreensão. Tendo tido sem-
idade, a severidade extrema ou a superproteção só contribuem para que- pre a mãe como confidente, o filho tinha agora necessidade de escapar ao mundo
brar a força de vida do jovem. materno e à sua benevolência. Parecia-me, igualmente, que tais tentativas de
suicídio dissimulavam um apelo inconsciente ao pai. Ela confirmou-me que pai
Escapa-nos, em grande parie, a importância da puberdade. Aliás, os
e filho praticamente não mantinham relações desde a-separação do casal, ocorri-
observadores da curva de vida atual dos indivíduos anotain que, nos dias
da alguns anos antes. Dei-lhe como Sugestão facilitar a aproximação entre os
de hoje, a adolescência prolonga-se, muitas vezes, até os trinta anos.m Sem
dois homens, se isso fosse possível. Um ano depois, voltei a ver a •mãe e'o filho.
dúvida, porque passamos por cima da natureza. Quando a separação entre
Vivia agora com o pai, e tudo esiava sob controle. Ele aêabara encontrando uma
pais e filhos não é preparada na puberdade, ela acaba se fazendo, muitas relação justa e apropriada com a mãe e, agora, podia usufruir da •compreensão
vezes, vinte ou trinta anos depois, por ocasião da crise da meia-idade. Um dela sem se sentir ameaçado em sua identidade masculina.
grande númerd de-conflitos entre pais e filhos poderiam ser evitados se os
primeiros estivessem conscientes de tal realidade psicológica. Tenho presenciado a solução de numerosos casos problemáticos com
a entrada em cena do pai. Até mesmo nas famílias intatas as mães dão
O anti-herói ou o nascimento abortado testemunho do fato de que, a partir de uma certa idade, os filhos recusam
obedecer-lhes. Isso exige que a presença paterna se torne atuante; com
O despertar do herói e do guerreiro no adolescente manifesta uma
efeito, apesar de recusarem obedecer à mãe, os filhos escutam muitas
saúde psíquica porque significa que a espontaneidade da natureza não foi
vezes com menos resistência as opiniões do pai. É a idade em que têm
completamente esmagada pela educação e que a forte pulsão de autonomia
necessidade de medir forças, procurando tanto a aprovação quanto a
teve a possibilidade de se expressar. Mas às vezes produz-se o contrário.
desaprovação para provarem a si mesmos que são homens.
Uma mulher veio me consultar a propósito do filho de dezesseis anos que, em Apesar de já não vivermos como os primitivos, estes tinham compreen-
dois sábados seguidos, tinha sido levado para casa pela polícia completamente dido que, na puberdade, a separação da mãe representa uma etapa essen-
cial para o filho. Eis a razão pela qual tornavam essa separação oficial por
meio de ritos muito elaborados. Aliás, tais ritos revelavam-se muito impor-
10. Gail Sheehy. Neta Passages, Mapping your Life Across Time. Nova York: Random House, 1995, tantes não só para a mãe, mas também para o filho: este entrava em conta-
pp. 10-11. A jornalista observa uma importante revolução relativa à expectativa de vida das
pessoas. Segundo suas pesquisas, a adolescência prolonga-se em uma idade adulta provisória to com figuras paternas que facilitavam seu acesso ao mundo adulto; por
124 que vai de dezoito a trinta anos; a primeira idade adulta vai de trinta a quarenta e cinco anos c sua vez, a mãe tinha direito a cerimônias que lhe permitiam expressar a dor 12.5
a segunda— uma inovação no mundo da psicologia — iria de quarenta e cinco a sessenta anos.
por ficar separada do filho e, desta forma, estavaem_condições de aceitar cria limites demais, a criança irá revoltar-se; se não estabelece limites sufi:-
tal sacrifício, porque não há separação sem sacrifício. cientes, o filho não aprenderá a administrar as frustrações e será derrubado
_ -- -
Não é fácil para uma inãelue consagromtantos.-anos de.sua vida -à • • por elas. Convém que a mãe faça 6cpie,estiverao seu.alcance, aprendendo-
educação dos filhos, anular-se no momento em que estes chegam à pu- a relaxar-se gradualmente, a fim de se proteger da ingratidão dos filhos
berdade. O fato de ter um cônjuge ou um interesse que desperte a mulher que, estimulados pelo arquétipo do herói, hão de pretender afirmar-se a
que existe nela terá uma importância capital; caso contrário, o sacrifício qualquer preço com a chegada da puberdade. É bom que ela se lembre
corre o risco de ser doloroso demais, e simplesmente não será assumido. que os limites fornecem à criança um enquadramento de segurança e
Apesar de receber maus-tratos de filhos cada vez mais ingratos, a mãe fixam balizas para seu comportamento. É também importante que ela
. continua agarrada a eles. Assediada, muitas vezes, pelo sentimento de
- própria respeite tais limites para não engendrar confusão na criança.
culpa porque pensa não ter feito o suficiente, sua tentativa de procurar
aceitar tudo à custa da própria saúde revela-se estéril. Ela deve compreen- Uma mulher na casa dos trinta tem um filho de doze. Durante vários anos, viveu
sozinha com ele, mas agora compartilha sua guarda com o pai. Um dia, recebe
der que o movimento interior que habita o filho é a expressão de uma
um convite para ir a uma festa familiar. Como não tem parceiro amoroso, decide
pulsão natural tão forte quanto foi para ela a gravidez que a tornou mãe. levar o filho. Durante toda a semana que precedeu o acontecimento, ela se preo-
O adolescente é impelido por uma revelação interior que o força a se cupou em comprar-lhe a primeira gravata, o primeiro terno e, aos poucos, o
separar, mas não tem conhecimento, a não ser de uma forma muito obs- jovem foi-se transformando, a seus olhos de mãe deslumbrada, em um jovem
cura, do que está fazendo. príncipe sedutor. No dia da festa, passaram o tempo todo juntos, uma vez que a
Quanto maior for a fusão entre ele e a mãe, maior é o riscci de que a mãe tinha decidido dançar apenas com ele.
guerra da separação seja sangrenta. Quanto mais fundida for uma relação Na manhã do dia seguinte, o pequeno príncipe deveria preparar a mochila
humana, mais excitada será à paixão que pode ir até a violência. As rela- • porque o pai viria buscá-lo. Em várias ocasiões, a mãe repetiu, em vão, a ordem
ções familiares não constitueni exceção. Quanto. mais intensamente for para que se apressasse. Mas-ele continuou assistindo ao desenho animado na
vivido o confronto do adolescente com um pai covarde que não tem a televisão. Finalmente, exasperada, ela se zangou e desligou o televisor. O filho
ousadia de enfrentar a própria mulher, Maior será o número de acidentes levantou-se, agarrou-a pelos braços e olhou para ela com olhos assassinos, clizen-
e feridos. A menos que a família, incrédula, venha a descobrir um dia que - do-lhe: —.Vou dar cabo de voa!" A mãe começou a chorar e refugiou-se no quarto.
o filho leva unia espécie de vida dupla. Dentro de casa, apresenta um
semblante de rapaz bonzinho, polido, cortês, ao passo que, fora de casa, O que teria acontecido? Uma coisa muito SiMples: depois de ter sido
entrega-se às piores bebedeiras, drogas e golpes baixos. Em tal caso, a alçado à posição de parceiro amoroso, o filho já não quer voltar ao lugar
violência é transposta para o exterior. Neste aspecto, não se deve levar de criança. Com doze anos, não chega a compreender o motivo pelo qual
tudo de uma forma trágica. É bom saber que, no decorrer desse período, alguém passa a festa dançando com ele como se fosse um homem e, no
92% dos adolescentes de' ambos os sexos cometem pelo menos um ato de dia seguinte, impede-o .de assistir à televisão. Trata-se. apenas de um epi-
delinqüência. Eles têm.-necessidade de testar os limites da realidade. Se sódio passageiro, mas ilustra perfeitamente quão importante é a questão
nos lembrarmos de' nossa própria adolescência, não será difícil constatar dos limites e que estes devem ser respeitados.
a exatidão de tal estatística." Ao usufruírem de uma solicitude materna excessiva, os filhos não es-
tão preparados para aceitar, mais tarde, as provações da vida quando a
Os limites apropriados mãe já não estiver presente. Neste caso, sua recusa dos limites expressa-
se pelo consumo imoderado de bebida ou de drogas, que se tornam ver-
O melhor meio de evitar a guerra ainda é ensinar a criança de tenra dadeiras mães de substituição. Muitas vezes, tal vivência tem como resul-
idade a estabelecer limites a fim de marcar bem a diferença entre o ter- tado pessoas depressivas e pouco combativas que sentem dificuldades
ritório da mãe e o do filho. É difícil encontrar a dose adequada: se a mãe para fazer a aprendizagem das frustrações. O pior vem do fato de que a
mãe, sentindo-se culpada, tem tendência a exagerar e, uma vez mais, aca-
11. Esses dados foram citados pelo psicólogo e pesquisador Camil Bouchard no decorrer do pro- ba por tomar o encargo do filho até mesmo adulto. Acha que não fez o
126 grama fveux de l'amour, um documentário relevisivo animado por Claire Lamarche, e produ-
suficiente quando, afinal, já fez demais. 127
....
zido e difundido pela Reseau TVA em 28 de fevereiro de 1994.
Importa encorajar esses pais a praticarem o que os alcoólatras anôni-
mos designam.por tough love, ou seja, uma forma derelacionamento que
suspende a solititude exagerada para com o filho a fim de deixá-lo en-
frentar sozinho as provações da vida, correndo o risco de decidir soço-
brar em sua impotência. Evidentemente que não é fácil fazer compreen- 6
dei a certos pais . que essa Postura é a melhor forma de amar um filho,
sobretudo se este está Sofrendo ou se está desarmado e rejeitado. No
entanto, se não. houver uma reação, os pais correm o risco de se tornar
O Custo do Incesto Afetivo
vítimas de um ser que decidiu destruir-se.
Neste aspecto, as mães são particularmente vulneráveis. Quando o
amor e a fusão foram fortes, algumas delas não conseguem simplesmente
tomar um distanciamento' suficiente em relação ao filho para deixá-lo.
viver seu mau destino. Tentam intrometer-se e acabam perdendo a pró-
pria serenidade. Em um grupo de terapia sobre a relação mãe-filho, uma
mulher de setenta anos veio dizemrie o quanto sofria Por ver o filho de
O dote e a dívida
cinqüenta anos submerso na bebida. Apesar de sua frustração, não Conse- As necessidades essenciais
guia separar-se dele. Era ele quem bebia, mas ela própria intoxicava-me
da pior forma, consumindo todos os dias esse drama interminável. Acabamos de ver que a frustração afetiva na mulher jovem que se
Está longe de ser fora clb comum .2:tragédia vivida por ela. Pelo. con- tornou mãe pode implicar um casamento simbólico com o filho. Mesmo
trário, é moeda corrente. Gostaria de dizer a todas as mulheres que com- que nada se passe no plano estritamente sexual, tal fusão amorosa pode
partilham tal destino que há muito já passou o tempo das responsabilida- facilmente assumir IIIT) aspecto incestuoso no plano afetivo. A queda de
des. De fato, a partir do momento em que um jovem avança na -adoles- algumas barreiras põe em perigo a frágil construção psíquica da criança,
cência, os pais já não têm de responder por ele. Agora, este deve asSumir que acaba sendo utilizada para satisfazer as necessidades afetivas da ma-
sua responsabilidade, pouco importando o que pôde ter sido sua - infân- mãe. A manutenção da fusão mãe-filho para além dos Primeiros anos da
cia. As mães gostariam de viver no lugar dos filhos para evitar-lhes as criança terá importantes conseqüências na vida do filho, sobretudo no
vicissitudes do destino. No entanto, não é possível viver um drama no que diz respeito às suas relações amorosas; no entanto, também supõe
lugar de outra pessoa. O filho deve escolher por si mesmo o que pretende grandes sacrifícios para a mulher que se tornou mãe.
fazer com sua vida. A fim de apreender melhor todo o alcance do drama que se desenrola
• Para evitar que existam duas vítimas', a melhor prevenção para a mãe erriprofundidade nas relações mãe-filho, procurei, durante um certo tem-
consiste em lembrar-se da mulher que existe dentro dela, recordar-se da po, urna ferramenta de reflexão apropriada. Acabei encontrando tal ins-
responsabilidade individual que cada um de nós tem em relação à sua trumento no psicanalista J. D. Lichtenberg, que há mais de quarenta anos
existência. Importa que reencontre suas preferências e desejos, além de se dedica apaixonadamente à observação de crianças amamentadas ao
se dedicar a atividades que afugentem de sua mente esses maus fantas- seio e cujos trabalhos têm incidido, entre outros temas, sobre as necessi-
mas. Convém adquirir o sentido do destino individual e dar-se conta de dades fundamentais dos recém-nascidos, necessidades inatas que se ma-
que, antes de tudo, é responsável pelo que se passa em si. É necessário nifestam desde o nascimento e são, por assim dizer, pré-programadas.'
utilizar tal provação para aprender a controlar seus estados interiores e Portanto, encontramos aí uma espécie de nomenclatura das necessidades
pensamentos obsessivos. A existência dctais dramas que levam um gran- humanas essenciais que devem ser satisfeitas por nós para que cada um
de número de mães a envelhecer prematuramente serve, talvez, para lem- consiga manter um certo nível de bem-estar. Ao avaliarmos as necessida-
brar-lhes de que sua primeira tarefa consiste em abandonara Mãe para des inibidas, ou francamente reprimidas, nas relações mãe-filho, pode-
reencontrarem o coração de mulher.
128
129
1. J. D. Lichtenberg. Psychoanalysis and Infant Research. Hillsdale, N.J.: Analytic Press, 1983. ....
mos ter uma opinião bastante justa do preço a pagar por ambas as partes ca ou interdiz a simesmaierá descontado como dívida; e o filho também
em decorrência .da fusão incestuosa. deverá sacrificar tais-necessidades.
.;
Lichtenberg classificou tais necessidades em cinco categorias distintas:
1. As necessidades fisiológicas. Se a criança tem fome ou sede, está Fiz* tudo para lhe dar prazer...
com calor ou frio, irá exprimir tais necessidades espontaneamente Eu ficava exausta** para lhe dar prazed2
por meio do pranto ou de gritos. Ninguém tem necessidade de
ensinar-lhe tais comportamentos. Comecemos pelas necessidades de autonomia e de afirmação. Um
2. As necessidades afetivas e de filiação. A criança tem necessidade de homem de 50 anos faz-nos o seguinte relato:
fazer parte de um meio, de uma comunidade que lhe proporcione
afeição e reconforto. Tem necessidade de ser tocada e mimada. Tem Quando era jovem, fiz tudo para não causar sofrimento a minha mãe. Desejei ser
necessidade tanto de calor humano, quanto de calor físico. o melhor para lhe dar prazer. Eu encarregava-me de todas as compras diárias.
Tinha boas notas na escola. Quanto à minha crise de adolescência, não a tive em
3. As necessidades de autonomia e de afirmação. Ainda aqui, não há casa, mas em outros lugares. Durante vinte anos, bebi e sai com mulheres. Casa-
necessidade de mostrar a uma criança como gritar para manifestar do e divorciado por duas vezes, deixei atrás de mim quatro filhos. Com cinqüenta
que está desejando algo ou como escapar, desde que possa, para anos, estou despertando. Minha adolescência está chegando a termo!
explorar seu entorno físico. Essa necessidade é inata no neném;
além disso, iremos senti-la durante toda nossa vida: Se chegássemos a encontrar a mãe deste homem, existem boas possi-

4. A necessidade de dizer nãO ou seja, a capacidade de expressar seu bilidades de que não confirmasse tal relato. Ela nos diria com sua voz
'desacordo ou desprazer. O pesquisador observou, por exemplo, envelhecida: "Não estou entendendo o que ele lhe disse. Dei-lhe todo o
que as crianças amamentadas desviavam espontaneamente a cabe- espaço, nunca cheguei a exigir o meu lugar!" Cada um tenta: dizer à sua
ça' do seio quando já não tinham fome ou quando não desejavam maneira que fez tudo, que ficava exausto para dar prazer ao outro e dei-
comer. Portanto, a noção de recusa está . presente em nós desde a xar-lhe o terreno livre. Cada um sacrificou as próprias necessidades de
mais tenra idade e faz parte de nossas necessidades fundamentais autonomia e de afirmação para não desagradar o outro:
de expressão. Como já vimos mais acima, os pólos em torno dos quais gravita a
5. As necessidades sexuais e sensuais. Basta observar um neném du- identidade do indivíduo são, por uni lado, a necessidade de união e, por
rante alguns minutos para ver até que ponto ele 'pode vibrar no outro, a necessidade de afirmação; em outras palavras, a necessidade de
plano da sensualidade. Quando comeu à saciedade e se sente su- aproximar-se para ser amado e a necessidade de afastar-se para tomar
ficientemente cheio, expressa tal estado com gritos de alegria. Sen- consciência de si. A individualidade toma forma graças à tensão que exis-
te, igualmente, com muito prazer ou desprazer o que se passa nele, te entre esses pólos ao mesmo tempo opostos e complementares. Esco-
por exemplo, no intestino, e bem cedo suas necessidades sexuais lher um em detrimento do outro, ou seja, aniquilar sua individualidade
vão manifestar-se espontaneamente. Os prazeres do corpo deixam- em um relacionamento ou confinar-se em um individualismo cego que
nos fascinados desde o início da vida. Por isso, em nossa cultura, faz pouco caso dos outros, conduz a toda espécie de complicações psico-
sua repressão será ainda mais feroz. lógicas. Temos necessidade dos outros para existir; além disso, o grupo
Destas cinco necessidades fundamentais, vamos abordar as necessida- precisa da contribuição de nossa individualidade para permanecer vivo.
des sexuais e sensuais, a necessidade de autonomia e a necessidade de Isso se aplica particularmente bem à relação entre mãe e filho. A criança
expressar uma recusa. Estou empenhado sobretudo em fazer compreen- tem necessidade absoluta da mãe para se construir, mas deve poder emer-
der que, para criar os filhos, a mãe sacrifica — muitas vezes, por não ter
outra opção — certas necessidades fundamentais; ora, quase sempre, os
No original, tout fait (N.T.)
filhos é que acabam sendo as vítimas de tal sacrifício. Portanto, a dádiva a* No original, férouffais. Esta forma verbal ê homófona da construção citada na precedente nora
de si feita às cegas tem um limite traçado pelo inconsciente. Com efeito, de rodapé (N.T.).
130 2. Recolhi este trocadilho da fala de um participante em um seminário. O psicossociólogo Jacques
o que a mulher traz como dote nesse casamento mãe-filho, o que sacrifi- 131
Salomé também o utiliza regularmente em suas conferências; será que o trocadilho é dele?!
gir de sua posição infantil para tornar-se um homem; da mesma forma, séria ameaça de que provoquem o corte das asas daqueles que delas de-
uma mulher deve aceitar certos sacrifícios no plano individual para tor- pendem.
nar-se mãe, mas deve poder emergir de seu papel materno para "voltar a Durante as sessões de análise, tenho observado que os pacientes fa- II

ser uma mulher e prosseguir seu desenvolvimento. lam sempre com emoção e simpatia da mãe que arranjava tempo para
Infelizmente, a expressão das necessidades de autonomia é, muitas pintar e escrever, ao mesmo tempo que cumpria suas tarefas domésticas.
vezesr malvista pelos familiares e pelo entorno social. A maioria das pes- Os erros vêm do excesso, quando, por exemplo, a mãe esquece o bem-
soas prefeririam não ter tais necessidades, porque sua expressão exige estar dos filhos ao perseguir uma paixão pessoal.
uma certa dose de agressividade. Existe a imediata interferência do terrí-
vel medo de machucar o outro, o que engendra, na maior parte das vezes,
O que os filhos infligem às mães
um importante sentimento de culpa. Portanto, a estratégia preferida de
. um grande número de mães e de filhos leva a abandonar todo o território O filho, habituado a negligenciar as próprias necessidades de inde-
ao outro para evitar os confrontos. pendência por causa da insegurança 'materna, permanece tão apegado à
No entanto, comportando-se desta forma, é escamoteado o verdadei- fusão emotiva quanto a mãe. Para ele, o desejo de autonomia desta pode
ro sentido do, encontro mãe-filho pelo seguinte motivo: para que exista tornar-se tão ameaçador quanto seus próprios desejos o são para ela.
encontro entre duas pessoas deve haver conflito e resolução de conflito. Uma mãe monoparental que vive com três filhos, todos eles já tendo
Os conflitos surgem para estimular a vida. A partir do momento em que, ultrapassado a faixa dos vinte anos, um dos quais voltou para casa depois
a fim de permanecer em paz com os outros, são reprimidas sistematica- do fracasso do primeiro casamento, sussurrava-Me ao ouvido, no. decor-
mente todas as necessidades interiores que ameaçam ocasionar fricções, rer de um grupo de terapia: "Como o senhor sabe, os filhos incrustam-
entra-se diretamente no reincida indiferença' e denegação: Existe um ele- se!" A este propósito, várias mães cantam histórias de adolescentes que
. fante na sala, mas ninguém deseja vê-lo. ficam agarrados a elas, que lhes recusam a possibilidade de ter um novo
Para a mulher que se identificou totalmente com o papel materno, parceiro simplesmente porque isso viria bloquear seu acesso direto à-
essa repressão das necessidades de afirmação pessoal vai implicar a se- mamadeira materna. Fazem tudo para sé mostrardesagradáveis em rela-
guinte conseqüência:, a necessidade de autonomia dos filhos e das filhas ção ao recém-chegado. Não querem deixar ir embora sua mamãe com
se tornará automaticamente ameaçadora. Mesmo se conscientemente vier • medo de perderem o lugar privilegiado que- ocupam junto dela. Reagem,
a aceitar deixá-los viver sua vida, a mãe não poderá permitir que eles se de fato, como pequenos proprietários rurais Mie vão perder um escravo.
separem, porque isso significaria uma perda de identidade importante Nossa psicologia fala muito dos traumatismos infligidos às crianças
demais. Tendo 'perdido o sentido de sua própria existência como mulher, pelos progenitores — em particular pelas mães; no entanto, fala pouco
terá a impressão de ser nada se não continuar sendo unia mãe em tempo dos traumatismos infligidos a eles pelos filhos. Também as mães acabam
integral. sendo devoradas por filhos ciumentos e possesSivos. Assim, uma delas
Sei que as funções maternas exigem que, durante um certo número • contava-me que, no momento em que um novo homem entrou em sua
de anos — pelo menos até a adolescência dos filhos —, as mães deixem • vida, o filho tornou-se, de repente, muito difícil. Ficava verificando suas
adormecidas suas necessidades de independência; no entanto, deixar em horas de saída e perguntava-lhe no café da manhã a que hora tinha volta-
expectativa não significa renunciar a qualquer expressão de autonomia e. do na véspera. Tirânico, chegava mesmo a calcular as calorias de seu
privar-se de tudo O que constitui um prazer pessoal. Importa que, inde- prato e criticava-a por estar comendo demais!
pendentemente dos filhos, elas permaneçam em contato com a pessoa Unia mulher que acabava de casar em segundas núpcias, depois de ter
que são. Convém que tenham coragem de levá-las a sério. Convém que vivido durante vários anos sozinha com o filho, contava-me, com humor,
se interroguem sobre o que fariam se estivessem sozinhas, sem ter a res- que seu adolescente media forças, sem parar, com o novo cônjuge. Todas
ponsabilidade de filhos, e tentem encontrar compromissos satisfatórios. as noites, na mesa de pingue-pongue, ele anuncia a aposta, que é sempre
Este exercício não é fácil, mas permite evitar a triste sina das mães qiie a mesma: "Quem perder, sai de casa!" Dez anos depois da data prevista,
durante demasiado tempo se deixaram ficar esquecidas. Tanto mais que o complexo de Éclipo está em via de encontrar sua resolução. Isso terá
132
.... se houve quem cortasse as asas de sua expressão individual, subsiste a como efeito libertar tanto o filho quanto a mãe, porque o papel do pai é 133
precisamente o seguinte: ajudar os dois a evitarem um relacionamento --culpa. Ao mesmo tempo, perde-se a possibilidade de uma verdadeira re- •
que nega aurtivas necessidades de evolução. Ao facilitar a foi-Mação lação, assim corno_a ,..w....—
preciosa oportunidade de cada umpoder expressar
db triânahOlamiliar, essa presença masculina bloqueia o acesso automá- verdadeiramentêTjéto o amor e a apreciação que sente pelo outro.
tico do filho à mãe e permite que esta permaneça mulher para o olhar de Nas famílias modernas que funcionam bem, as coisas não se passam
um homem, em vez de ser unicamente mãe para o olhar do filho. exatamente da mesma forma. Como as mulheres estão menos identificadas
com a função materna, os filhos têm mais facilidade em discutir com elas
Eu te amodeio!'l e expressar seu desacordo. Na maior parte das vezes, as regras começam
a ser negociadas quando as crianças ainda são pequenas. Essas novas ati-
"Eu te amodeio, você me entende? Eu te amodeio!" Desta forma, um tudes têm a vantagem de legar a elas uma dívida menor para com as
adolescente expressava a cólera contra a mãe, rejeitando assim sua domi- mães, ao mesmo tempo que são superados os sentimentos de culpa e a
nação. "Eu te amodeio!", grito do coração, grito de ódio-amor que con- ambivalência.
tém roda a ambivalência que não pode ser dita entre mãe e filho. Com É claro, a mensagem "nunca faça sua mãe chorar" tem a sua contra-
efeito, neste relacionamento, às vezes, fica a impressão de que nenhum partida que, por sua vez, não chegou a ser introduzida em uma canção.:
dos dois tem o direito de experimentar a antipatia. Amar o filho, assim "Nunca faça seu filho chorar!" Nos grupos de terapia que orientei para
como amar a mãe, é um sentimento obrigatório. Corno se isso fosse evi- as mães, fiquei surpreendido em saber que a maioria delas sentem que
dente. Como se, em certos momentos, não fosse natural ter vontade de ir não têm o direito de expressar seja o que for além da boa mãe. Com
embora. medo de serem apontadas com o dedo, elas não têm a ousadia de falar da
Em Quebec, no final da década de 50, uma canção intitulada "Ne fais má mãe, daquela que está saturada, que se engana, que bate, que é
jamais pleurer ta meren* era cantarolada por todo o mundo. "Nunca depressiva. No entanto, todas elas a conhecem. Mas não se deve falar da
faça sua mãe chorar, ame-a SeMpre", dizia. Plenas de boas intenções, no mãe malvada, bruxa. Acham que não têm o direito a manifestar o esgota-
entanto, essas Palavras equivalem, para a criança, a urna proibição de mento que, todavia, é bastante legítimo. Temem afastarem-se da família
expressar o desamor ou desacordo em relação à mãe, de lhe dizer "não", para descansar. Devem gostar de ser mães. Deveriam estar sempre dispo-
nem que fosse para mantê-la afastada de •sua própria vida. Paradoxal- níveis e de bom humor. Consideram-se como 'supermulheres e julgam
mente, isso terá como conseqüência retirar-lhe também a vontade de di- com severidade as próprias fraquezas.
zer "eu te amo"; sendo que o amor e o ódio, se me permitem a expressão, Em tal contexto, de que maneira irá expressar-se a agressividade que
são como a água fria e a água quente que jorram da mesma torneira. Ao ela tenta conter pará não criar problemas? Pois bem, tal agressividade há
bloquear a expressão ou a exploração de uni pólo, acaba-se por bloquear de se manifestar sob a forma de doenças, acidentes, feridas, tiques nervo-
também o acesso ao outro pólo. Dificilmente os homens conseguem li- sos e episódios depressivos que vêm manifestar as necessidades de inde-
berrar-se dessa espécie de rigidez emocional, cuja origem desconhecem. pendência negligenciadas. A doença ou o acidente têm a grande vanta-
Mais tarde, na vida a dois, muitas vezes, não saberão dizer "eu te amo", gem — convenhamos, discutível -- de permitir que possamos nos benefi-
nem falar claramente de seu mal-estar com a parceira. ciar de um repouso sem correr o risco de perder a estima dos outros, o
Por terem perfeita consciência do enorme sacrifício que a mãe teve de que não seria talvez o caso se tivéssemos a ousadia de afirmar nossa ne-
fazer por eles, a maioria dos homens sente uma grande dificuldade para cessidade de férias no momento em que estivéssemos vendendo saúde.
dizer-lhe o motivo pelo qual se desviam dela. Essa dádiva de si mesma Neste aspecto, é sempre interessante estudar em que contexto ocorre
leva-os a calar toda possibilidade de contestação. À simples idéia de ini- urna doença, um acidente ou uma ferida de criança ou de progenitor. Tais
ciar uma altercação com ela, têm a impressão de ser filhos indignos. "Isso acontecimentos são raramente anódinos, e se tivermos a paciência de
não se faz! Um filho não tem o direito de dizer tais coisas àquela que lhe aprofundar um pouco abaixo da superfície, descobriremos que, na maior
deu a vida!" são as palavras que confinam o debate no sentimento de parte das vezes, são condicionados por humores e desejos reprimidos.
No decorrer de urna análise, um homem contou-me a maneira como,
um dia, a mãe se tinha ferido gravemente com unia tesoura de cortar fran-
134 " No original, haime: contração de "mis (odeio), com aime (amo) (N.T.) 135
..... a "Nunca faça sua mãe chorar". (N.T.) go. Com a imaginação, pedi-lhe para se colocar na pele dela no momento
do acidente. O exercício levou-o bem rapidamente a ficar convencido de difere bastante de acordo com o respectivo sexo. O trajeto dasMeninas é
que se tratava de uma mulher enraii-Jecida, esgotada e subrnersa pelas tare-- . mais harinonioso porque, ern tenra idade; ela-sMão SãcilcorifronMdas Com
fas familiares. O acidente era seu único meio de dizer: "Estou exausta!" o desejo sexual, sendo que a mãe é do mesmo sexo. Quanto aos meninos,
Do lado dos adolescentes, os confrontos que não acontecem em casa gostam da mãe com todo o coração, mas, a partir de uma certa idade, !4.
são transferidos freqüentemente para o exterior. Ocorrem com as autori- inibem suas reações sexuais para com ela. Daí o surgimento de uma an-
dades escolares ou com a polícia, por ocasião de diversos delitos e atos gústia em relação à espontaneidade de seu órgão sexual. Na medida em
menores de delinqüência. De fato, a regra é simples: quanto mais intole- que devem impedir a emergência de um certo sentimento, são obrigados
rante ao dissenso e fechada em si mesma for uma família, maiores serão bem cedo na vida à inibição e ao bloqueio. É precisamente o que explica
os riscos de perda de controle. O que era reprimido encontra um exutõrio os perigos de explosão. Com efeito, quanto mais reprimida for uma força
nas doenças, nos acidentes, nas feridas e nos golpes baixos. A raiva que se viva, maior será o risco de que ela venha a explodir de maneira súbita e
acumula com o decorrer dos anos procura um meio dese expressar. Cada violenta.'
uma dessas crises cria urna oportunidade para que o indivíduo tome cons- Neste aspecto, uma psicóloga persa confiou-me que, no Irã, a força
ciência de seu mal-estar. . explosiva da revolução islâmica estava inteiramente contida na repressão J
sexual. A mesma lei psicológica aplica-se em uma família: quanto maior
Santa mamãe, virgem e mártir for a intolerância em relação à sexualidade, maiores serão as probabilida-
des de que o menino aprenda a agir segundo o modelo da inibição e da
A sexualidade é o terceiro domínio no qual as necessidades funda- explosão; ou seja, alternadamente, os homens ficarão completamente blo-
mentais da mãe e do filho são frustradas. Como já disse mais acima, o queados ou completamente assanhados, dois comportamentos sexuais
progenitor de sexo oposto serve para "confirmar a diferença sexual da reprovados pelas mulheres. Estes fatos falam em favor de tolerância e de
criança. Para um grande número de filhos, no entanto, essa diferença um espaço maior reservado à educação sexual na família. •
sexual, longe de ser confirmada piela mãe, é simplesmente passada em
silêncio. Pior ainda, às. vezes, é denegrida abertamente. Em vez de faze-
Do menino ao homem: A chegada do esperma
rem de tal diferença uma fonte de orgulho e prazer, eles acabam por
considerar a sexualidade como urna coisa vergonhosa e suja. Do mesmo No meu livro Père manauant, fils manguá, afirmei que; com a chega-
modo que as filhas gostariam de ouvir o pai dizer: "Você é linda, minha da da menstruação, a natureza sublinhava a passagem da menina para á
filha, mas irá pertencer a outro homem!", os rapazes têm necessidade de mulher e que não havia transformação equivalente nos meninos. Desde
saber que uma mulher pode achá-los desejáveis. então, minha concepção evoluiu, porque existe, igualmente, um sinal
Ora, um grande número de Mães decepcionadas pela relação íntima natural para os rapazes: a chegada do esperma! Meu esquecimento me
com o cônjuge, não estão longe de ter ódio ao sexo. Essa postura terá' parece significativo na medida em que essa contrapartida masculina da
como principal conseqüência que, em relação a ela, os filhos irão desen- menstruação é completamente ocultada em nossa sociedade. Sem dúvi-
volver uma sexualidade "sadia", enquanto Outra mais libertina será vivi- da, porque a ejaculação é uma coisa agradável, enquanto a menstruação é
da através de seu gosto pela pornografia, pelos peep shows, pelos bares dolorosa. Eis, talvez, a razão pela qual uma legião de julgamentos negati-
de dançarinas nuas etc. Como sua sexualidade não é educada no quadro vos acometeram este acontecimento agradável demais, com toda a certe-
familiar, esta irá permanecer em estado bruto. Tudo isso cheira a castra- za, a fim de tornar mais penoso na mente o que não o era suficientemente
ção e manifesta a dificuldade que eles sentem para assumi-la completa- na carne...
mente. Um homem de trinta e cinco anos, atormentado por uma mãe que Quando eu era jovem, chamavam-se polução noturna as emissões
ainda o tratava como uni Menino, confiou-me que, unia noite, foi em involuntárias de esperma durante o sono. Polução/poluição!" Equivale a
casa dela, despiu-se na cozinha e, pelado como Adão, disse-lhe: "Olhe,
mamãe, sou um homem!" 3. Bons Cyrulnik. LesNouccituces affectives. Paris: Odile Jacob, 1993. O autor fez estas afirmações
O psiquiatra e etólogo Bons Cyrulnik explica tais explosões de afeto em uma entrevista concedida a Robert Blondin, animador e produtor do programa radiofónico
136 "L'avennire", difundido nos dias 2,3 e 4 de maio de 1994 pelas ondas da Radio-Canada.
da seguinte forma. Segundo ele, o desenvolvimento afetivo das crianças * No original, pollution; portanto, cm francês, esse termo tem as duas acepções. (N.T.)
137
.......
dizer sujidade, refugos, resíduos tóxicos! Para o jovem, trata-de de uma também a uma sobremesa especial. Pego desprevenido, o• disse-lhe que, ao
forma bem ruim de enfrentar a aventura da sexualidade. No entanto, nas começar a ejacular, ele teria direito também à sua 4stafavorita. Uma manhã, o
iniciações tribaisro esperma desempenha um papel extférnamente im- rapazinho saiu- do quarto- fo'do--sTOrrjdente,. cheio de ,oriulho;e siao paz
portante. Na maior parte das vezes, os rapazes são convidados a beberem nestes termos: "Teremos torta logo à noite!" Dito e feito.
o esperma de alguém mais velho da tribo com a finalidade de assimilarem
Quantos homens tiveram a possibilidade de ver a sexualidade festeja-
sua força vital. Tão recentemente quanto na Grécia antiga, berço de nos-
sa civilização, Elisabeth Badinter fala-nos da existência do que chama de da desta forma durante a infância? Creio que passando em silêncio a
homossexualidade pedagógica, ou seja, jovens efebos eram chamados a
chegada do esperma no rapaz perdemos uma bela ocasião para responsa-
praticar a felação em homens mais velhos, uma vez mais, a fim de incor- bilizá-lo em relação à sexualidade. Com efeito, o advento da sexualidade
adulta anuncia prazeres e liberdades que implicam responsabilidades. Ao
porarem a virilidade destes.°
ocultar esse acontecimento, passamos ao lado de uma importante mu-
Com o advento do cristianismo, o esperma começou sua via-crúcis.
dança na vida do jovem; neste caso, uma parte da sexualidade masculina
Particularmente como produto da masturbação que, outrora, era a obses-
continuará evoluindo na vergonha, no sentimento de culpa e na irresponsa-
são favorita de nossos párocos. A masturbação tornou-se o pecado mor-
bilidade. Quando sabemos que muitos adolescentes ainda recusam o pre-
tal por excelência, sem dúvida, porque oferece um alívio imediato, en-
servativo, apesar do perigo da Aids, comentamos conosco mesmos que
quanto a moral religiosa da transcendência consiste em uma moral do
ainda há muito a fazer no plano da educação sexual. Convém ter a ousa-
esforço.e da moderação. O grande Santo Tomás de Aquino, de quem vem
dia de falar mais abertamente a respeito de sexo, para que os adolescen-
essa condenação sem apelo do prazer solitário, proclamava que o desper-
tes se tornem mais conscientes das diversas implicações decorrentes des-
dício do precioso líquido seminal equivaleria a um assassinato, já que o
se grande prazer da vida.
esperma, como germe do ser humano, continha o homem completo.s
A primeira coisa a fazer — iniciativa ainda bastante rara — é festejar
De qualquer forma, IlãO é só no cristianismo que se encontra a conde-
a sexualidade como a coisa forte e bela que na realidade é. Estamos longe
nação da seXualidade solitária. A maioria das religiões vêem nessa prática
de fazer uma idéia do quanto nõsso ser inteiro é sexualizado. Cada célula
uma perda de energia vital. Até mesmo a psicologia chega a se intrometer de nosso organismo é sexual e ela própria nasce da divisão de duas célu-
no assunto, professando que práticas masturbatórias que se estendem para
las sexuais. A sexualidade. expressa o próprio impulso da vida. Trata-Se
lá da adolescência seriam a. marca da infantilidade. Assim é que, ainda
de sua manifestação mais espiritual porque participa do mesmo mistério
hoje, a masturbação constitui um tabu que deixa perplexos muitos proge- no qual a vida encontra a origem e o fundamento. Estabelecer uma estrita
nitores. Em suma, além de condená-la ou deixá-la passar em silêncio, eles divisão, como foi feito, entre espiritualidade e sexualidade, é lançar so-
não sabem muito bem o que devem dizer ou pensar sobre o assunto. bre a vida um olhar limitado que não consegue abarcar o fato de que,
Nas famílias abertas começa-se a sublinhar, com uma freqüência cada antes de tudo, viemos ao mundo para criar e procriar.
vez maior, a chegada da menstruação com a ajuda de pequenos rituais;
algumas pessoas mais próximas. da menina púbere — tais como a madri-
nha, uma tia ou urna amiga — são convidadas a ler poemas ou oferecer Os "malditos homens"
presentes ou flores. Por que motivo não seria festejada da mesma forma a Tal constrangimento em relação à sexualidade do filho irá repercutir
chegada do esperma no rapaz, uma vez que se trata também da passagem em sua vida adulta. Por ocasião de uma entrevista televisionada, um ho-
da infância para o mundo da sexualidade adulta? mem que tinha vindo dar testemunho das tribulações de sua vida amoro-
sa confessava ver a causa delas na circunstância de ter tentado evitar ser
Um pai contou-me que o filho, ciumento por causa da torta oferecida à irmãzinha
um desses malditos homens que o pai se tinha tornado para a mãe. Dese-
que acabava de ter as primeiras regras, quis saber em que momento teria direito jou tanto representar o rapaz bonzinho para as companheiras, que repri-
mia a sexualidade na vida conjugal e deixava-se levar por toda a espécie
4. ÉlisabeM Badinter, op. cif., p. 128. de aventuras extraconjugais.
5. Santo Tomás de Aquino. Somme théologique, torno 111, questão 154, art. 11, nova tradução
Para um adolescente, não é fácil ouvir a mãe queixar-se em voz alta
138 francesa. Paris: Ed. du Cerf, 1983, p. 882. Faço questão de agradecer ao padre dominicano 139
BenoilLacroix que me forneceu esta referência. da sexualidade dos homens que são "todos uns porcos!". Na peça Les ...
- Bellei-Soeurs, do- dramaturgo Michel Tremblay, a atriz principal declama apropriado- em Sua vida, será possuído pelas visões da sedutora Afrodire
um monólogo que resume perfeitamente a situação. Falando do marido, que pede pira que seja festejada sua beleza. Com efeito, podemos mas-
começa por dizer: "Todas as noites, ele se deita antes de mim e fica à furbarinoS e• fazer amor todos os• dias sem ter respeito pela sexualidade,
minha espera! Está sempre ali, está sempre no meu pé, grudado em mim assim como é possível renunciar completamente a tais práticas e, ao mes-
como uma sanguessuga! Maldito pinto!... Como é possível que uma mu- mo tempo, respeitá-la. Podemos pensar que a explosão atual das imagens
lher seja obrigada a suportar um porco durante toda a vida porque teve a de corpos sexualizados na publicidade, cada uma mais sugestiva do que a
infelicidade de ter dito, uma vez, `sim'... ?"6 Não poderíamos descrever outra, não expressa somente a busca desenfreada de prazer de um mundo
melhor o nojo de uma mulher maltratada pela Igreja, pela sociedade e angustiado, mas intervém, igualmente, como compensação da austera
por uni marido que só pensa em seu próprio gozo. Ela acaba por odiar a moral judaico-cristã que não atribui o devido valor ao corpo. A deusa
sexualidade e todas as suas manifestações porque vê nisso o símbolo de retoma seus direitos, mas o problema continua por se resolver.
sua escravidão doméstica. Procura recuperar uma espécie de virgindade
simbólica, elevando-se acima da coisa. Reflexo bastante • compreensível, O triunfo do espirito de seriedade
mas que assinala um passo a mais em sua atitude de abandono da mulher
que existe dentro de si. Ao proceder desta forma, consagra seu papel de Não é somente a sexualidade que foi reprimida nas nossas famílias,
mas toda a sensualidade foi desvalorizada. Muitas vezes, as mães tiveram Is
mártir, sem alegria nem prazer, e condena a sexualidade .dos filhos a se-
guir as mesmas avenidas sem saída. •?•• de carregar sozinhas o princípio de realidade e competia-lhes fazer reinar a
Atualmente, podemos dizer que os comportamentos sexuais foram disCiplina e o senso das responsabilidades, ao mesmo tempo que adminis-
liberados. •No entanto, o debate em torno deles ainda não aconteceu. travam o orçamento familiar. Assim, aos poucos, o espírito de seriedade
Enquanto a sexualidade não viera ser 'festejada como uma força viva que acabava por sobrepor-se ao espírito de jogo, ao prazer corporal e à alegria
se deve tratar com respeito, elicontinuará a ser vivida de forma desorde- bem simples de existir. O triunfo do espírito de seriedade é a 'Conseqüência
nada e não chegará a encontrar seu lugar em nossa escala de valores. mais grave da repressão das necessidades que acabamos de abordar.
Continuará sendo unia questão obsessiva e uma força caótica na vida de • Ironizando sobre a -severidade da mãe, cheguei mesino a ouvir um
muitas pessoas. A sexualidade é uma' divindade arquetípica; portanto, homem cantarolar em um grupo "A lamentação do não', que ele tinha
tem o poder de tomar conta de nosso corpo e de nosso espírito quando inventado e cantava com as irmãs quando eram jovens. Tratava-se de
não lhe dedicamos uni culto apropriado. Se, em vez de ser festejada, for uma forma criativa por meio da qual os filhos escapavam da tirania de
escondida nos recônditos sórdidos da psique, ela acabará pervertendo-se uma mãe que opunha uma recusa categórica a todas as suas fantasias.
e desfigurando-se. - Apesar disso, este homem com mais de cinqüenta anos ainda não tinha
Neste aspecto, ainda temos muito a aprender com os gregos antigos. conseguido desembaraçar-se desse "não" ao prazer que havia comprome-
Nunca lhes teria passado pela cabeça enviar um obcecado sexual para O tido toda sua vida. Um grande número de seres viveram como ele, em
templo de Apoio (o consultório do terapeuta) para .aprender a controlar- famílias em que não era possível rir nem brincar. As refeições eram tristes
se, mas o teriam mandado orar e fazer amor com. as prostitutas sagradas e enfadonhas. Esses mesmos seres continuam demonstrando poucas apti-
do templo de Afrodite, porque consideravam que unia pessoa obcecada dões para a felicidade. Levam existências monótonas ou trágicas porque
era vítima da vingança de uma deusa desprezada. Fico imaginando uma não foram preparados para vibrar com a alegria profunda.
dessas damas sussurrando com ternura aos ouvidos de um paciente: "En-
tão, qual é o problema? Será que não é agradável fazer amor? Isso não
será lindo? Coragem, vá em frente e não peque mais! Nunca mais se O sentimento de culpa
esqueça de nossa santa padroeira em suas orações! Faça amor e mastur-
be-se, festejando a deusa, em vez de temer seu julgamento." Enquanto o O homem do garfo
indivíduo não aprender a valorizar a sexualidade e a dar-lhe um lugar Aos sábados de manhã, às 10h, faço a animação de um grupo de terapia intitulado
"A relação com a mãe". O grupo é reservado aos homens que formam um circulo.
140 141
6. Michel Trernblay. Les Belles-Soeurs. Montréal: Lemeac, 1972, pp. 101-102. Cada um traz um objeto que, segundo ele, simboliza melhor a relação que viveu
ou ainda vive com amãe. Mal, convido os participantes a apresentarem sucessi- Tentei conhecer mais detalhes e pus-me a explorar com eles as dinã-
vaMento os „respectivos objetos, um deles coloca-se de joelhos no centro do círcu-
,micas da infância que- estavam encobertas por tal sentimento de culpa.
lo e ,tenta .craitar um garfo no.chão,-,gr- itando; "Não quero mais;-mamãe! Não,
tenho.fome mamãe! Será que você pode compreender isso? Não quero mais!"
Benoit tem trinta e cinco anos. Gesticula e chora, exorcizando anos de frustra- A sombra da mãe
ção. Alguns minutos mais tarde, apaziguado, dá-nos o exemplo de um diálogo
A maioria das mitologias conferem à mãe os atributos de dedicação e
característico com a mãe quando vai visitada:
generosidade que vão até o sacrifício de si mesma. As diversas represen-
— Com certeza, você vai comer uma coisinha, nzeu filhinho!
—Acabei de comer agora mesma, mamãe; não estou com fome, muito obrigado. tações da mater dolorosa são um testemunho disso. No entanto, de for-
— Mas o que é isso? Preparei o seu prato preferido. Tem certeza de que não quer ma bizarra, a figura materna possui sempre seu contrário: se é doadora
comer uma coisinha? de vida, é também portadora de morte. Por exemplo, na índia, a deusa
— Obrigado, mamãe; garanto-lhe que não tenho fome! Kali preside aos nascimentos, mas está presente, igualmente, por oca-
— Então um pedacinho de sobremesa! sião do falecimento. Chega-se mesmo a dizer que ela dança de alegria
— Não, mamãe! no sangue' dos mortos. Cada mãe carrega esse lado destruidor, e é pre-
— Passei toda a manhã a cozinhar isso para você; 'você deve provar! Você não ferível que ela o reconheça se não desejar que, a contragosto, tal aspec-
pode me fazer uma coisa dessas! Vamos lá, vou servirilhe uma porção bem to se volte contra aqueles que lhe são caros. De fato, uma mãe corre o
pequena. risco de se transformar em bruxa quando não aceita esse terrível poder
Em seguida, ela junta o gesto apalavra, enquanto ele, irritado, acaba por comer de dar a morte.
o alimento da mãe para não desagradá-la. As principais formas de expressão que pode assumir a sombra mater-
na quando não é reconhecida conscientemente chamam-se narcisismo,
Os participantes que na seqüência deste episódio tomaram a palavra perfeccionismo, superproteção, violência e culpabilidade. A frustração
estavam experimentando dificuldades -cada vez maiores Para falar livre- das necessidades essenciais das quais acabamos de falar é responsável,
mente. À medida que um• e outro se expressavam, as mães respectivas sobretudo, pelo desenvolvimento de tais dinâmicas. Estas vão ligar a mãe
assumiam cada vez mais traços idealizados. Unia espessa nuvem de senti- e o filho em um círculo vicioso de dependência e de sentimento de culpa
mentos de culpa envolvia, progressivamente, o grupo. Um deles que na- que hão de impedir a emergência tanto do homem como da mulher: No
quela noite ia jantar na casa da mãe, chegou a ir embora mais cedo com entanto, é excusádo dizer que os pais são tão narcisistas, perfeccionistas,
medo de que lhe acontecesse um acidente enquanto estivesse falando dela. violentos e culpabilizadores quanto as mães. E causam os mesmos estra-
Para estes homens, dar testemunho da relação com a mãe constituía uma gos aos filhos.
traição. Uni pensamento mágico e concreto dava-lhes a impressão de que •Estes integram as feridas psicológicas do pai ou da mãe pelo viés dos
estavam em via de matá-la realmente quando, afinal, sua juta era contra' o • complexos parentais que, por assim dizer, representam os progenitores
complexo materno. Este possuía aspectos de tal modo arcaicos que che- na vida psíquica. Tais complexos fazem assédio ao ego sempre que este
guei mesmo a chamá-lo de dragão materno. Sua principal arma era o não estiver alinhado às injunções parentais. Assim, todas essas feridas
sentimento de culpa. Através dele, tal complexo mantinha seu controle transmitem-se de uma para outra geração. As mães que foram privadas
sobre o ego de cada um desses homens. da presença do pai chegam à vida conjugal com um complexo paterno
À medida que o trabalho avançava, limitei-me a constatar o quanto negativo, sua criatividade é maltratada, estão decepcionadas com o par-
eles estavam mal separados da mãe. Não tinham direito à própria vida. ceiro, o animus se agita, dedicam-se à educação de um filho para
Psicologicamente falando, o cordão umbilical não tinha sido cortado. A transformá-lo . ém um pequeno deus, tornam-se exigentes; quanto ao fi-
dívida em relação à mulher que se tinha sacrificado para dar-lhes a vida lho, desenvolve uru complexo materno negativo como reação às pressões
continuava tão elevada que trinta, quarenta ou até mesmo cinqüenta anos da mãe, tem medo das mulheres, negligencia a companheira e as filhas;
mais tarde, no momento de efetuar uma ruptura simbólica com a mãe e estas, por sua vez, desenvolvem complexos paternos negativos, casam-se
de colocar no seu lugar o complexo materno, o ser interior deles ainda com homens que têm medo de amar, e assim por diante. Tudo está ligado
142
suspirava: "Perdoe-me, mamãe, não é por minha culpa!" em uma dança sem fim que tece o fio da vida. 143
........
A ferida narcísica existência natural, como boa e agradável, está dependente da realização
de mil macaquices, acabará às voltas com um problema narcísicõ: não se • ,
A primeira ferida que se transmite dos progenitores para bs filhOs ---
ama e terá dificuldades para amar. Irá desenvolver uma falsa personalida-
através de reprimendas e críticas é, sem contestação, a falta de auto-esti-
de que seguirá as grandes linhas do que agrada aos progenitores e aban-
ma. A mãe citada no exemplo que acaba de ser mencionado entende não
donará os outros aspectos de si mesmo. Será acusado por ser egocêntrico,
que o filho está sem fome, mas que ele não a ama. Não consegue enten-
centrado em si próprio, suscetível e incapaz de empada. Isso é verdade ria
der que o filho não tenha vontade de comer porque a identidade dela,
medida em que seu verdadeiro ego não recebeu um reforço positivo.
devorada pelo arquétipo materno, repousa quase unicamente no exercí-
Tendo perdido o contato com sua identidade profunda, encontra-se se-
cio de suas funções de mãe. A ferida de amor que ela carrega deixa-se
parado tanto da vida, quanto das raízes do amor.
entrever através de seu comportamento. Seu equilíbrio narcísico, ou seja,
o valor que atribui a si como pessoa, acaba por depender do fato de sua
sobremesa ser ou não aceita pelo filho. Suicida aos oito anos
A ferida de amor que unia mãe recebeu do próprio pai e que é refor- O exemplo do homem do garfo é, afinal de contas, moeda corrente
çada pela circunstância de que vive em uma sociedade patriarcal que lhe nas nossas famílias, e nada tem de assustador. Raros são os seres que
atribui pouco valor influencia o grau de amor por si mesma. "Fazer com possuem uma auto-estima a qualquer prova. Mas, às vezes, a ferida nar-
que o filho seja bem-sucedido" torna-se, então, o empreendimento em císica da mãe é tal que, para chegar a manter em alta a estima, irá exigir
que ela vai tentar valorizar-se e elevar sua auto-estima. Assim, o filhinho
nem mais nem menos do que a perfeição, própria e dos filhos. A mãe
acaba sendo seu espelho, ficando ela à mercê de suas atitudes e procedi-
perfeccionista reiyindica dos filhos um elevado desempenho como paga-
mentos para alcançar o próprio equilíbrio.
mento de seu sacrifício, porque depende, de forma exagerada, do de-
Impelida pelo amor e por sua ferida inconsciente, ela torna-se muito
sabrochamento deles para conservar uma boa imagem de si própria. Che-
exigente para consigo mesma. Animada por um forte desejo de fazer tudo
gará mesmo ao ponto de resistir às observações dos professores e de ou-
como deve ser, dá-se conta rapido de que é impossível ser boa em todos
tros intervenientes que lhe. dizem que algo não está bem com um dos
os planos; portanto, irá privilegiar uma função e se dedicará a isso plena-
filhos, porque, neste caso, há de sentir uma grande vergonha.
mente. Seu narcisismo frágil encontrará aí o ponto de apoio. Se, por
exemplo, sente orgulho em seus dons de culinária, não poderá tolerar
Stéphane acaba de ser háspitalizado em um grande hospital para crianças. Tem
que os filhos critiquem os pratos que prepara. Se mantém em alta estima oito anos. Não 'quer viver mais. Há um mês teve uma crise no corredor da escola.
o desempenho escolar, não aceitará os fracassos. Se gosta da limpeza aci-
Com os olhos Marejados de lágrimas 'e-a voz enraivecida, pisoteava sua pasta,
ma de tudo, que se cuide aquele ou aquela que vier a sujar a casa. En- gritando que desejava suicidar-se. Tendo recebido a criança em seu gabinete, o
quanto sua função predileta não tiver sido maltratada, irá conservar o diretor deu-se conta de que ela tinha perdido toda a alegria de viver.
equilíbrio psicológico. No entanto, Stéphane é o primeiro da turma, uma criança modelo. Vem igual-
É claro, não se pode criticar a mãe por expressar seu amor através de mente de uma família exemplar. Os pais apresentam a imagem de um casal feliz.
seus bons serviços; aliás, a humanidade sempre dependeu deles. No en- Parece que prestam a atenção desejada ao filho. Ele aprende com facilidade as
tanto, quando a mulher investe nisso toda a sua personalidade, tal atitude lições e tem talento para um grande número de atividades. No fim da tarde,
conduz a ricochetes de que ela se torna a primeira vítima, sendo que, em depois de sair da ,escola, vai à academia de ginástica, que é a sua verdadeira.
um segundo tempo, os filhos também hão de pagar por isso. Tudo o que paixão: no sábado de manhã, tem curso de música; na parte da tarde, curso de

ela se impõe será exigido deles em compensação. Seu próprio valor aCa- dicção. Quando não está fazendo os deveres de casa, toca violão. Quando não

bará por repousar no fato de os filhinhos estarem bem na escola, falarem está ensaiando violão, faz ginástica. Sua vida é tão regrada quanto a de um atleta
olímpico.
corretamente, não se revoltarem, não tomarem drogas ou não serem crian-
No entanto, há alguns "leses, começou a dar sinais de esgotamento. No Na-
ças fujonas. Aliás, mesmo diante da evidência, há de preferir negar as
tal, recusou-se a tocar violão durante a festa familiar. A mãe viu nisso um capri-
faltas deles, em vez de aceitar a perda de seu equilíbrio narcísico.
cho passageiro de criança. Em seguida, começou a negligenciar os deveres de casa
Invariavelmente, a ferida parental ameaça engendrar o mesmo pro-
144 e a matar as sessões de ginástica. E depois, houve essa noite em que despertou 145
blema na criança. O indivíduo que se dá conta de que a aceitação de sua
sobressaltado, vítima de um terrível pesadelo. Estava sonhando que tinha que:- - - A depressão e o suicídio infantis constituem fatos novos na nossa cul-. •
brado a perna durante urna competição; chamava pela mãe aos gritos, mas no . nira. Tais fenômenos denunciam o quanto nossa sociedade está afastada
sonho ela se aProximava -irara repreendê-lo iloqr sei( lastinzárrel 'desempenho; in- da vida. Ao abordar o tema dós filhos dos baby-600m-erS; o -filósofo e-
sensível ao seu sofrimento. E depois, vieram os tiques, a angústia e a falta total geneticista Albert Jacquard* fala abertamente de uma geração sacrificada
de entusiasmo. A tudo isso a mãe respondia, alternadamente, com incredulidade, no altar da excelência. Realizando todo o potencial de um mundo em
chantagens, ameaças de punição e promessa de presentes. Nada surtiu efeito. plena explosão, essa geração de pais tinha uma imensa necessidade do
Agora, está sendo difícil para ela aceitar a evidência de que o filho tão beneficia- espelho da perfeição que lhes seria oferecido pelos filhos, que acabaram
do pelo destino experimenta graves dificuldades psicológicas. ficando a mercê de seu narcisismo. Com efeito, tentaram encontrar neles
um reflexo de sua própria onipotência, que, sem dúvida, tinha sido me- -
Toda criança é naturalmente aberta, espontânea e prestativa. Encon- nosprezada pelos julgamentos severos a que foram submetidos pelos pró-
tra sua razão de ser no espelho que lhe é apresentado, em particular, prios pais. Então, substituíram o senso da autoridade destes últimos por
pelos olhos da mãe e, em geral, pelas atitudes das pessoas que estão à sua uma demanda de plena realização em relação aos filhos; ora, tal deman-
,volta. Procura agradar porque é verdadeiramente dependente desses re- da nada ficava a dever à severidade de outrora. Gerações completas que,
flexos para construir sua auto-estima e adquirir um sentido de seu pró- em suma, esqueceram a arte e o prazer de viver!
prio valor. Se a Mãe não lhe sorri, irá procurar em si a causa de tal atitude
e se sentirá um mau filho. Ainda mais, não conseguirá sorrir interiormen-
te para si mesmo. Se vive em um meio traumático e deprimido, ele pró- Mãe superprotetora e filho dependente

Prio se tornará deprimido, -porque se identifica com o humor do meio, Um esportista americano de olhos azuis conta-nos, ém um gaupo de terapia, que,
que se torna seu meio interior. Se os-adultos fazem julgamentos severos a ainda criança, passou vários anos na casa dos avós, na fazenda. Um dia, ao
seu respeito, será muito severo para consigo mesmo. Diante de pais voltar do campo, espirrou. A rMie declarou, então, que o feno e os pelos de cavalo
perfeccionistas, fará tudo para satisfazê-los e, por sua vez, se tornará - não eram bons para ele. Neste caso, começou a apresentar verdadeiras alergias
perfeccionista. Se fracassar, ficará doente. ao mundo rural e já não conseguia voltar à casci dos avós. Ficou separado da
Nos hospitais, é possível encontrar um número cada vez maior de benéfica influência destes Para permanecer perto da mãe.
. crianças que sofrem de depressão em uma idade em pie sua preocupação Para simbolizar a relação que teve com ela, o esportista decidiu trazer feno,
deveria ser brincar. Têm sido sobrecarregadas com exigências em dema- palha e pelos de cavalo, tudo isso dentro de um frasco de vidro. Este homem
sia. Muitas vezes, possuem urna agenda repleta, como se fossem adultos. simpático e imaginativo é a perfeita imagem de seu frasquinho. Às vezes, asseme-
No entanto, quando as exigências são pesadas demais, chega o momento lha-se a unia natureza desenraizada colocada dentro de um vidro. Quando estamos
com ele ao ar livre, sentimos sua grande força e seu imenso prazer. Mas tal força
em que a criança tem a impressão de ser Mcapaz de desempenhar suas
permaneceu enrustida. Diante de nós, com o coração disparado, ele abre o fras-
tarefas, ou .então de ser desajeitada. Neste caso, desmorona. Da forma
co. Instantaneamente, os odores que estão contidos nele perfumam a sala. Repe-
mais saudável do mundo, responde à pressão com a depressão, porque
tidas- rezes, ele aspira-os profundamente. Em seguida, diz: "Você está vendo,
não consegue explicitar o que se passa em si. O espírito de seriçdade
mamãe, eu já não espirro."
acaba de fazer mais uma vítima. Tanto mais que o menino corre o sério
risco de ser tão perfeccionista quanto os pais.
A mãe deste esportista era uma mulher inquieta e superprotetora. Se
A criança naturalmente brincalhona e criativa acabou sendo sacrificada
este homem não tivesse tido a coragem de colocar em questão, ao fim de
no altar do perfeccionismo. Na maior parte das vezes, foram-lhe ofereci-
vários anos, o complexo materno, teria permanecido verdadeiramente
dos cursos e atividades com a finalidade de estimular sua criatividade,
alérgico, tímido e apagado. A superproteção faz com que a sombra da
mas, paradoxalmente, obtém-se um resultado oposto ao esperado: o es-
mãe se volte contra o filho e implique a formação de um complexo ma-
gotamento da criatividade. Com efeito, se é verdade que a criança tem
terno negativo que fará dele um ser dependente. O problema para a mãe
necessidade de formação e, inclusive, gosta de canalizar sua energia vital
para atividades difíceis, convém não esquecer que deve predominar o
espírito lúdico. Se, em cada atividade, ela tiver de ser a melhor, sua vita- Q. Albert Jacquard. Filosofia para não-filósofos. Respostas claras e lúcidas para questões essen- 147
146
.... lidade acabará por se extinguir. ciais. Rio de Janeiro: Campos, 1998. (N.T.) ... .•..
reside em sua vontade de evitai:as difiCu - Idades da vida — todas as difi- lhes é necessário. Essas crianças se tornarão passivas e deverão aprender,
culdades dasida — aos filhos, o que ã evidentemente ilusório. Essa boa com atraso, a. desenvolver a sentido da iniciativa., DePendência, passivi-
vontade pode levar 'à superproteção 'que' impede a criança de negociar dade e angústia constituem o quinhão da Crianç'a superprotegida. Ao pas-
com as frustrações a partir de seus próprios recursos. so que curiosidade, capacidade de se afirmar e combatividade são os tra-
Ela encontra na brincadeira a resposta normal para uma situação de ços predominantes da criança que se beneficiou de uma proteção ade-
estresse. Por exemplo, se os pais a deixaram fechada no quarto, por al- quada que não visava evitar-lhe todos os golpes ou todas as provações.
gum tempo, ela deverá enfrentar a cólera, a angústia e a depressão que Uma psicóloga especializada em reeducação, que trabalha em um cen-
acabarão por ser provocadas pelo fato de se encontrar sozinha. Então, tro de atendimento diurno que acolhe. crianças com problemas de coor-
há de construir o que o pediatra inglês Winnicott chamou de espaço denação motora contou-me o seguinte episódio:
transicional. Este serve à criança como uma almofada de proteção entre
ela e o mundo, entre seu ego e o sentimento de abandono que pretende Um dia, uma mãe veio consultá-la a propósito do filho que, com quatro anos,
submergi-la. Ela elabora seu jogo neste espaço. Falará ao animal de pelú- ainda não sabia abotoar o casaco nem dar o laço nos cadarços dos sapatos. A
cia como se fosse papai e à boneca como se fosse mamãe, recriando a •diretoria do centro aceitou recebê-lo em observação. Então, a educadora deu-se
presença dos progenitores pelo recurso à imaginação. Assim, não só eli- conta de que ele controlava rapidamente essas tarefas. Não só conseguia fazê-las
mina o sentimento de rejeição e o mundo frio do abandono, mas sobretu- . set'n dificuldade, mas chegava mesmo a ajudar as outras crianças.
do responde à carência por si mesma. Minha colega estava surpreendida. Marcou um encontro com . a mãe para sa-
• ber o que, no meio familiar, estaria impedindo este menino de exercer sua Habili-
Portanto, a brincadeira permite que a criança aprenda a administrar
dade natural. Em companhia dele, esperou que ela viesse buSeá-lo no encerra-
situações interiores difíceis e encontre aí o germe de sua independência
mento das atividades do centro. À sua chegada, o menino precipitou-se ao seu
futura. No entanto, é excusado dizer que, para o funcionamento de tal
encontro todo contente, enrolando o lenço à volta do pescoço é abotoando o
mecanismo, as frustrações não poderão ser intensas demais ou devasta- fasaco. Então: a psicóloga ouviu a voz da mãe: "Espera, espera, meu filhinho,
doras, porque, neste caso, ela não conseguirá integrá-las e sua criatividade mamãe vai fazer isso para você!" Em suma, a mãe receava ver desenvolver-se no
acabará ficando inibida, em vez de ser estimulada. filho um problema motor que ela própria encorajava com seu comportamento
No exemplo que acabo de citar, a criança passa de uma necessidade protetor. •
de satisfação real que deveria expressar-se pela presença concreta dos
pais para uma satisfação simbólica de sua necessidade: fala aos pais como A mãe superprotetora prejudica os filhos ao pretender evitar-lhes as
se eles estivessem presentes. Essa noção é essencial, porque o Psiquismo dificuldades da vida. A mãe temerosa demais acaba por impedir que eles
constrói-se a partir de tais realidades. Para nosso psiquismo, não há dife- se vejam diante das dificuldades que eles próprios são capazes de superar..
renças entre uma sensação real e uma sensação imaginada. Eis a razão Enquanto a mãe citada no caso relatado está submersa fia inquietação, o
pela qual um indivíduo pode ficar doente por preocupações tanto reais, filho tenra dar-lhe prazer, inibindo sua habilidade. Coloca-se junto dela
quanto imaginárias. Pela mesma razão, as visualizações "criadoras de sua como um objeto morto.
própria saúde têm uni efeito real sobre os processos celulares e aceleram Essa superproteção materna impede que ele se familiarize com o mun-
a cura. A criança que não aprendeu a passar da satisfação concreta para a do. Ele se torna rapidamente dependente, passivo e angustiado porque
satisfação simbólica permanecerá à mercê de seus impulsos e de suas ne- não lhe foi permitido desenvolver sua curiosidade e seu gosto pela explo-
cessidades imediatas. Não saberá esperar pela sua satisfação e abusará de ração. Suas necessidades de autonomia encontram-se entravadas. Não
cerras substâncias para responder à urgência dos impulsos. Poderá até chega a desenvolver seus meios de reagir ao mundo e, se for ocaso, de se
mesmo recorrer à violência para conseguir tal satisfação. defender. Também não aprende a expressar e a ir buscar o que lhe faz
Ora, a mãe superprotetora, que antecipa as demandas dos filhos. com falta, porque é sempre precedido pelo progenitor. Não é desejável que os
o objetivo de poupar-lhes o sofrimento, impede-os de realizar essa passa- filhos consigam tudo dessa maneira. A frustração há de obrigá-los a criar
gem para a satisfação simbólica das necessidades. Sem o saber, ela acaba e inventar o que desejam.
por mantê-los em um estado de dependência que, mais tarde, poderá A verdadeira mãe superprotetora faz parte da família das mulheres
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resultar em uma incapacidade para conseguirem por si mesmos o que performáticas que tentam provar a si mesmas que são boas mães a fim de
negarem um sentimento de hostilidade, não em relação à criança, mas res que encontrei em-minha 'Vida- de 'terapeuta eram, 'quase inevitavel-
em relação ao fato de terem filhos. Muitas vezes, ela é impelida a tomar mente, filhos e filhas transformados em pais pelo pai ou pela mãe.
essa -atitude,potque,--sOcial-mente falando,:deve amar á Maternidade, No- Em alguns casos;t136guei constatar quttdLsituaçád Constittifa' gê.=-•
entanto, um grande número de mulheres não possuem a fibra materna. nese da violência de um homem contra a companheira, ou ainda a razão
Em um grupo de terapia que eu orientava nos Estados Unidos, para trinta de sua incapacidade para um contato profundo com uma mulher. O mundo
e cinco mães, uma mulher jovem desfez-se em lágrimas porque simples- da mãe violou, por assim dizer, a integridade do mundo do filho, que
mente não conseguia amar o filho. Nunca se tinha permitido falar aberta- acabou conservando um ódio profundo pelas mulheres. Do ponto de
mente desse sentimento, e tal desabafo livrou-a da imensa carga de pen- vista psicológico, essa animosidade — muitas vezes colorida de misoginia
sar em si corno se fosse uma pessoa monstruosa. Dissimulmia o que sen- — serve-lhe de barreira protetora contra um universo feminino que foi
tia, exibindo o comportamento de uma mãe absolutamente irrepreensível. por demais ameaçador para sua autonomia. Ela denuncia sua grande fra-
O controle exercido sobre a criança pelo seu próprio bem denuncia a gilidade e sua necessidade de ancoragem em uma realidade masculina
raiva reprimida e inconsciente da mãe. Sob o pretexto da excelência, ela positiva.
força o filho a tomar uma posição de criança limpa e sensata que corre o
risco de soçobrar na dependência e na depressão se não tiver a ocasião de A violência materna
se revoltar. Irá transformá-lo em unia pessoa submissa que durante toda a
vida solicitará às pessoas à sua volta permissão para ser ela mesma e pedi- Os desejos reprimidos e as frustrações acumuladas têm, igualmente, a
rá desculpas por expressar os sentimentos, com medo de que sua atitude capacidade de nos subjugar e de nos submeter a seu controle se não nos
venha a prejudicar ou perturbar 'os outros. dignarmos admiti-los em nosso panteão psíquico. Então um afeto sub-
Ao tornar-se adulto, carregará erti si uma parte morta; carregará aos merge o ego e implica passagens ao ato irrefletidas. Um exemplo de pas-
ombros uma criança cujas esperanças nunca se realizaram e-cujos sonhos sagem ao ato é a violência física contra os filhos.
permaneceram forças adormecidas. Corre o "risco de duvidar profunda-
mente de suas capacidades reais. Muitas vezes, a vida de tal homem irá Uma escritora americana da testemunho disso ao contar o que lhe aconteceu
esbarrar em um problema -de dependência afetiva em relação a um par- • durante as férias. Na última hora, o Marido teve de ficar na cidade para trabalhar
ceiro ou parceira, de quem permanecerá a criança submissa. Irá procurar e ela ficou sozinha com os três filhos no momento em que estava contando com
um tempo de repouso e de isolamento para escrever. Deu-se conta de que, a cada
uma companheira dominadora que será responsável por sua vida cotidi-
dia, seu humor estava ficando mais deteriorado. Suas respostas às reclamações
ana como, aliás, já acontece com a mãe. Quer se trate de dependência
dos filhos tornaram-se cada vez mais agressivas e impacientes. Uma noite, deses-
afetiva ou de consumo imoderado de bebidas alcoólicas, drogas ou sexo,
perada e completamente exausta, decidiu deixar-se levar pela violência que a
revela-se assim, na maior parte das vezes, o perfil de um adulto habitaria sob a forma de uma imagem mental. O fantasma que então surgiu em
perforrnático, mas passivo relativamente a suas ambições reais. sua mente deixou-a petrificada de horror. Ela se imaginava como bruxa demo-
A superproteção da mãe pode, igualmente, esconder sua dependência níaca batendo a cabeça do filho mais velho contra a parede e regozijando-se com
profunda em relação ao filho. Este torna-se o menino querido de uma o sangue que escorria. Para sua grande surpresa, essa visão acalmou-a profunda-
mulher que, assim, combate o medo da solidão e as angústias, um menino mente. Livrou-se da tensão. Nos dias seguintes, conseguiu controlar melhor seus
acorrentado que ela devora todinho para preencher seu vazio afetivo e limites a fim de ter tempo para escrever. Sua relação com os filhos tornou-se
para proteger a si mesma. Essa criança representa tudo para essa mulher criadora e descontraída.'
porque ela não tem uma vida suficientemente pessoal.
Nesse momento, não é raro ver a superproteção materna desembocar Através da visualização, esta mãe encontrou uma solução inventiva
no seu oposto, a saber: aos poucos, o filho é colocado em posição de para o desespero. Se não tivesse tido a coragem de enfrentar seus impul-
progenitor. Ele é, por assim dizer, "parentificado". Torna-se então o con- sos de violência, é muito provável que tivesse acabado por brutalizar as
fidente das insatisfações matrimoniais e existenciais da mãe. No entanto, crianças, encarnando Kali, a Destruidora, em todo o seu esplendor. Ora,
a criança não poderá carregar tal peso, e seu entusiasmo de viver acabará
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sendo, quase sempre, destruído. Os mais desesperados homens e mulhe- 7. Aclrianne Rich. Of Woman Bom. Nova York: W W Northern & Co., 1936. p228.
em nossa sociedade, o poder de Kali que dá a morte encontra-se total- lhes Oferecerem amor, ao mesmo tempo que desejam secretamente, com
mente oculto. Mesmo se a maioria das mães têm um vago pressentimento todas as suas forças, que perseverem- o tempo suficiente para conseguir
dis-s-o, só aceitam
- dar vazão a tal sombra através da fúria. Neste caso, perfurar a carapaça de sua insensibilidade.
trata-se de passagens ao ato que se fazem em um estado de ebriedade e de Ainda crianças, sentiram uma dupla polaridade no momento em que
possessão pela força de destruição. A mãe age através de uma espécie de eram castigados. Ao experimentarem um ódio feroz e mortal ao proge-
neblina semiconsciente. Essa raiva inconfessável tem o poder de mantê-la nitor que batia, não podiam expressá-lo com medo de perder a atenção
1
sob sua influência enquanto a emoção não tiver sido descarregada. e o amor dele. Cindiram esse ódio e tentaram deixar o veneno adorme-
Então a mãe bate nos filhos, mas não conserva qualquer lembrança cer em um recanto afastado e esquecido do seu ser. Em geral, tal ódio
dessa atitude. Essa perda de memória compara-se muitíssimo bem ao black acabará por se expressar sob a forma de fantasmas violentos, de com-
out dos alcoólatras, durante o qual, por alguns minutos ou várias horas, portamentos autodestruidores, de atos agressivos ou de doenças psicos-
eles perdem consciência ao mesmo tempo que continuam agindo, mas somáticas.
não se lembrando, no dia seguinte, de nadado que disseram ou fizeram.
Assim é mais prático, porque a sombra pode permanecer inconsciente; Um homem contava-me ter passado a infância a planejar um assassinato perfei-
mais prático é, na mesma proporção, mais pernicioso e devastador. to. Chegou à conclusão de que este deveria ser praticado de forma completamen-
Nas nossas famílias, a violência verbal, psicológica e até mesmo física te gratuita e sem motivo. Imaginava balas perdidas que ele atirava de um lugar

não é somente provocada pelos cônjuges-homens em relação às compa- escondido e que atingiriam automobilistas que, por acaso, passassem em frente

nheiras e filhos, mas também por mães desamparadas e prisioneiras do da casa familiar. Ao dissociar gesto criminoso e paixão no cerne do . fantasma,
tinha acabado por neutralizara agressividade que sentia com6 resposta às puni-
silêncio. No fundo de si mesmas, as crianças ficam com medo dessa bru-
xa, dessa- mulher irritada que é feita da Sombra negada. A mãe não admi- ções físicas que lhe haviam sido impostas pela mãe. Como ele tinha necessidade
de seu amor e não podia tomar a liberdade de expressar livremente o ódio, sob
te essa raiva porque não deseja'ser apontada com O dedo como sendo a
pená de levar ainda mais pancadas, toda sua frustração expressava-se em fanta-
malvada. No entanto, ao adotar essa atitude de negação da sombra, faz
sias dirigidas para fora de casa.
piorar a situáção porque, no inconsciente, o impulso agressivo transfor- No quarto, em segredo, brincava igualmente com uma pequena cobra de bor-
ma-se em violência. racha que saía do ninho sob a pressão de uma bomba de ar. Com a Mão esquerda,
acionava a bomba, enquanto a direita retirava-se o mais rapidamente possível
O poder da serpente fiara evitar ser mordida. Assim, no plano de um jogo que podia controlar, colora-
va em cena os impulsos violentos da mãe que ele não podia controlar, assim
Nas sessões de terapia, não é raro encontrar adultos que falam da como seus próprios movimentos de vingança que deveriam ser reprimidos. O
violência psicológica, e até mesmo física, praticada pela mãe Contra eles jogo tinha a vantagem de transformar em prazer o que, na realidade, era vivido
durante a infância. Não estou falando de uma ocasional palmada na bun- com -intensa dor. As crianças abandonadas do Brasil, cuja vida é constantemente
da, mas de punições físicas e sevícias aplicadas com regularidade. Essas ameaçada, enfrentam a morte todos os dias inventando cenários em que a vida
crianças são atingidas em sua espontaneidade. Suas relações são marcadas pode ser perdida. Neste caso, têm a impressão de controlar, por sua habilidade;
pela ambivalência. Os vínculos de confiança que vierem a tecer com os um destino que, por outro lado, lhes escapa completamente.
outros serão frágeis. Vivem vidas solitárias, entrincheiradas no interior Esse jogo toma uma amplitude simbólica tanto maior na medida em que sabe-

delas mesmas. Podem ser os rapazes mais gentis do mundo, mas seus mos que esta criança sofria de 'uma verdadeira fobia dos répteis. Nem sequer
tinha a ousadia de tocar as respectivas ilustrações da enciclopédia com medo de
corações permanecem fechados. No momento em que desejam ardente- .
que elas se materializassem. Tinha pesadelos nos quais era lançado em uma cama
mente que alguém se aproxime e venha curá-los proporcionando-lhes
de cordas que se transformavam em serpentes. Durante alguns anos, nem teve a
um acolhimento caloroso, eles não deixam ninguém entrar em sua inti-
ousadia de se estender completamente quando deitado, porque tinha a convicção
midade porque isso significaria deixar fundir o gelo e, de novo, sentir
de que um réptil se escondia debaixo das cobertas, aos pés da cama. Foi aí que
toda a dor dos maus-tratos recebidos. Contra sua vontade, hão de armar depositou a agressividade mortal que sentia e não podia expressar.
todas as resistências possíveis para se opor à ternura e à compreensão. Tornou-se um rapaz simplório que nem ousava falar uma palavra mais alta do
152 Hão de detestar todos aqueles que desejarem aproximar-se deles para 153
que outra. Sofria de humores depressivos e suicidas, e toda a sua combatividade
era minada por essa violência escondida. Veio consultar-me a conselho do médi- plenamerne,-qualquer gesto. O medo de ser envolvido de novo nos anéis
co, porque aos trinta e poucos anos tinha sido acometido por uma doença grave. da serpénte impede qualquer compromisso. O medo e o ódio: com efei-
. decorre.> &V terapia; ectinpreendeu -que só reencontraria à to; -o que podetá sentir. Ornietifito-que áca a e ser-espancado
- pela Mãe?
criatividade depois de ter entrado em contato com toda essa violência contida Ele tem ódio. Odeia as mulheres com todas as forças de seu coração de
que, sem seu conhecimento, estava envenenando sua existência; Sofria da doença filho. Torna-se rapidamente independente, mas muitas vezes trata-se de
dos rapazes bonzinhos: a superadaptação, uma superadaptação praticada com
uma falsa autonomia que dissimula uma grande necessidade de amor e de
complacência que dissimulava um grande medo da rejeição. Tinha-se tornado
ternura à qual talvez nunca chegue a dar plena satisfação, com medo de
um campeão da resistência; e havia reprimido de tal modo suas reações espontâ-
que, de novo, sua espontaneidade seja acolhida com picadas. Tem medo
neas que, melhor do que qualquer outra pessoa, podia sobrevive> por meio de
situações inadmissíveis.
de ser ferido mortalmente se tiver a ousadia de ser ele próprio. Teme,
igualmente, provocar rejeições definitivas na medida em que pensa não
Essa ruptura profunda com a espontaneidade psíquica e física consti- ser capaz de sobreviver a elas. Permanecerá vítima do complexo materno
e das mulheres enquanto não tiver recuperado por si mesmo o poder da
tui um problema central para um ser que, na infância, foi vítima de abu-
sos físicos. Ele se resigna e torna-se intocável. Uma parte de sua persona- sombra e não tiver descoberto seu poder de afirmação.
Se esse trabalho não for feito, a raiva do , filho virá reproduzir no
lidade está. adaptada perfeitamente às pessoas que estão à sua volta, ao
passo que a outra continua uma vida solitária e resignada que não espera terreno da vida conjugal a frustração materna. Tendo sido proibida e -
mais nada de ninguém. Na. aparência, apresenta um aspecto discreto e reprimida sua expressão na infância, essa raiva ameaça explodir contra as
racional quando, afinal, a paixão ferve dentro de si. Não pode deixar sair mulheres quando ele se tornar adulto. Lutará cóntra a cônjuge quando,
o vapor com medo de que "a panela de pressão venha a explodir", como afinal, seu verdadeiro alvo deveria ser o complexo materno que o torna
dizia muitíssimo bem um participante de M-ri grupo de terapia. Tal con- briguento.
Tanto para a mãe como para o filho, tanto para as mulheres como
texto favorece o desencadeamento iminente de uma doença somática.
A fobia pelas serpentes desenvolvida por esta criança toma toda a sua para os .homens, trata-se de evitar a projeção de nossas partes sinistras
significação quando se sabe que as Grandes Mães da mitologia tanto egípcia sobre o outro e aceitar o que mais detestamos tomo sendo uma dimensão
— Isis — quanto indiana — Kali — são quase sempre representadas com de nós mesmos. Só assim é que recuperaremos 'a energia de tais comple-
répteis em volta do pescoço ou dos braços. Esses animais não se voltam xos, nos colocaremos ao abrigo das passagens aos atos brutais e deixare:
mos de escolher companheiras que encarnam nossos piores demônios -
contra elas, como nas representações dos heróis que lutam contra mons-
tros. Mas antes, simbolizam certos aspectos do poder das mães e da mu- porque- não queremos exorcizá-los.
lher em geral. A conivência entre Eva e a Serpente, descrita na Bíblia,
reflete a mesma idéia. Alguns mitologos chegam mesmo a pensar que, O peso dos suspiros
através das épocas, esse animal tem sido o principal símbolo do femini-
Como eu dizia no início de nossa reflexão, todas as dinâmicas associa-
no. Isso revela-nos sua natureza dupla e profunda: o réptil pode dar a
das acíperfeccionismo, à superproteção e à violência têm um componen-
morte, mas sua capacidade em trocar de pele outorga-lhe o segredo da
te comum: a culpabilidade e sua conseqüência na vida da criança, ou seja,
transformação; seu veneno possui o poder de curar ou de matar.'
o sentimento de culpa. A presença desse sentimento é sinal de que o
complexo materno negativo está bem instalado e oprime o ego. Assim,
O que provoca o medo é uma dimensão de nós mesmos acaba criando uma espécie de vínculo em que o filho sente que deve
O filho de uma mãe possuída, sem seu conhecimento, pelo poder da responsabilizar-se pelo bem-estar da mãe. Não tem o direito de ser feliz
serpente é marcado pelo medo, um medo da morte que habita cada unia uma vez que aquela que se sacrifica tanto por ele não é feliz por causa de
de suas respirações e que o irrita tanto ao ponto de não ser possível fazer seus comportamentos.
Para o que der e vier, o peso dos suspiros impede o filho de se separar
da mãe. Com efeito, esta enraiza nele a convicção de que não poderá
8. Joëlle de Gravelaine. La Déesse sauvage. Les divinités léminines: metes et prostitules, magiciennes
154 existir sem ele, nem sobreviver a suas crises e a suas tentativas de separa- 155
.. 'et initiatrices. França: Dangles, 1993, pp. 79:105.
ção. Deste modo, é destruído o impulso de autonomia do filho. O Sentir espiritualidade. Têm o aspecto de flutuar acima da realidade comuni,
-mento de culpa asfixia_suas intenções sem. dúvida, para evitarem o. despertar-do; dragão adormecido...
_ de-independência antes Mesntolue Eis aqui esboçado o que designamos por' cliaina do "menino bonzi-
estas sejam formuladas. Ele sente que não tem o direito de rompèr o
nho", aquele que não seria capaz de fazer mal a uma mosca, mas que tem
vínculo sagrado que o une à mãe. Muitas vezes, tal situação dura toda a
medo de amar. Sua anima está prisioneira do complexo materno negati-
vida e terá conseqüências .sobre seus relacionamentos.
vo, assim como o animus estava prisioneiro do complexo paterno negati-
Diante de tal realidade psicológica, já não é difícil imaginar, por exem-
vo. Para libertá-la e retornar contato com seu coração, sua inspiração e
plo, que as dificuldades experimentadas por um grande número de ho-
sua criatividade; ele deverá — à semelhança da menina — enfrentar sua
mens diante de toda forma de separação afetiva, e até mesmo diante de
sombra e lutar contra seu dragão materno.
toda forma de compromisso, possam encontrar sua origem no sentimen-
to de culpa. Ainda crianças, sentiam-se responsáveis pela felicidade da
mãe. Atualmente, julgam-se responsáveis pela felicidade da companhei-
ra. Não têm a ousadia de se separarem desta última e, com medo de
machucá-la, fazem com que situações malsãs se arrastem indefinidamen-
te. Receiam perder sua imagem de "bom filhinho de mamãe" e ter de
tolerar o sentimento de culpa interior que, com toda a certeza, será susci-
tado pelo gesto de ruptura. Não conseguem suportar que alguém esteja
sofrendo por sua causa.
Uma vez que não reivindicam o direito de serem eles mesmos, esse
sentimento de culpa leva-os a sentir vergonha igualmente diante de suas
necessidades reais. Ficam envolvidos pelo mesmo círculo vicioso da mãe
que, não tendo a ousadia de expressar suas necessidades abertamente,
acaba por manipular as pessoas que estão à .sua volta para conseguir o
que deseja. Extenuada, as companheiras desses homens acabam por rom-
per elas próprias, quando chegam a compreender o que se passa.
Diante da dificuldade que têm para administrar o amor e os choques
afetivos, vários homens decidem simplesmente não assumir qualquer com-
promisso. Conheço alguns que, não tendo a coragem de enfrentar o peso
dos suspiros interiores, condenam-se literalmente a viver vidas de solidão
desértica. Outros tornam-se totalmente artificiais. Abandonatam .com-
pletamente o esforço de crescimento pessoal e vivem apenas para cuidar
de sua imagem. Às vezes, tornam-se personagens públicos que, na cena
política ou artística, prosseguem em busca de amor. No plano fantasmático,
ainda tentam ser os pequenos deuses da mamãe. Muitas vezes levam uma
vida dupla, encontrando assim o único meio de entrar em contato com
seus instintos sem desagradarem ao complexo materno. Até o dia em que
são pegos na própria armadilha. Então, resta-lhes escolher entre arrepen-
der-se como filhos ingratos ou assumir sua humanidade com as respecti-
vas vicissitudes.
Finalmente, para suprimir um complexo castrador e devastador, al- 157
. 156
..... guns homens refugiam-se nas alturas do sonho, do pensamento ou da
netração seXual. De repente, aparece a mãe e o herói perde instantanea-
mente toda a concentração. A mão começa a tremer e — obedecendo. à
mãe, que grita com uma voz desesperada: "Mate-a! Mate-a!" — ele aCa-
ba por assassinar sua dulcinéia, atingindo-lhe o ventre com a faca. Todo o
7 • poder do adolescente foi minado pela autoridade materna.
Vamos reencontrá-lo mais tarde, no cemitério, no momento de enter-
O Drama do Menino Bonzinho rar a vítima. Como se fossem espíritos e formas evanescentes, outras
mulheres saem então dos túmulos vizinhos e vêm colocar-se à sua volta.
Compreendemos que todas, uma a uma, foram mortas por ele. Na se-
qüência, assistimos a uma cena muito emocionante durante a qual, cho-
Se eu quiser ser um menino bonzinho
rando sobre o corpo daquela que tinha acabado de assassinar, pede per-
Nada de bebidas, nada de cigarros...
RICHARD DESJARDINS
dão às namoradas.
Finalmente, o herói mata a mãe para proteger seu amor por uma
mulher que tinha conhecido na infância e com a qual deseja viver. De
Santa Sangre, o Santo Sangue fato, trata-se da própria filha da mulher-serpente. O filme termina no
Como se tivesse pretendido dar-nos um exemplo do que significa,. momento em que os policiais vêm prendê-lo pelo assassinato da mãe
para um homem, estar prisioneiro do complexo materno e do sentimen- quando, afinal, todos os. outros crimes tinham ficado impunes.
to de culpa, o cineasta Alexandro Jodorowski dirigiu, há alguns anos, o No plano da interpretação simbólica, o episódio do lançamento das
filme Santa Sangw.' facas representa a entrada em cena do complexo materno em uni homem
Conta aí a história de um menino que vive ena um circo. O pai, patriarca que não desenvolveu uma 'autonomia suficiente em relação à mãe posses-
por excelência, é proprietário e diretor da pequena companhia. O ho- siva. No momento mais inoportuno, o dragão materno intervém e retira-
mem é muito sensível ao charme da mulher-serpente, unia contorcionista lhe seus poderes. No amor, ele é levado a matar as parceiras, ou seja, a
com curvas bem atraentes. Um dia, no momento em que fazia andor com, esMagá-las, traí-las e enganá-las no momento em que, com toda a confian-
ela; é surpreendido pela esposa, que .o castra. Para se vingar, o patriarca, ça, se abandonam em seus braços. Em Vez de procurar a colaboração,
fora de si, corta-lhe os braços e suicida-se. O menino é testemunha do cultiva, sem o saber o desentendimento e a luta de poder sob as injunções
drama e torna-se completamente introvertido. É internado em uma clíni- de um complexo materno ciumento.
ca psiquiátrica de onde sai, alguns anos depois, já adolescente, quando a No que diz respeito à cena do cemitério, poderíamos dizer que, psi-
mãe vem buscá-lo. A partir deste momento, torna-se prisioneiro da in- cologicamente.falando, ela representa o momento em que o herói decide
fluência da mãe viúva e impotente. E chega ao ponto de lhe emprestar' os desembaraçar-se de seu complexo. Por se deixar tocar até o fundo do
braços e as mãos. Veste-se igual a ela, dá-lhe de comer, tricota e toca coração pelo sofrimento que provoca à sua volta e pela infelicidade em
piano em seu lugar. que está confinado, a transformação torna-se possível. A tomada de cons-
No entanto, um dia, escapa ao controle materno e deixa-se seduzir ciência do drama serve pará despertar sua capacidade de amar. O sofri-
por outra mulher. Esta pretende criar com ele — lançador de facas, como mento abriu as portas de seu coração. O tema do novo amor que toma a
o pai — uma nova atração. Tal propósito conduz-nos a uma cena bastan- forma de uma jovem conhecida na infância representa, por sua vez, a
te erótica em que ele hipnotiza sua vítima a fim de que esta não tenha libertação da anima, a capacidade de relação de um homem. Enquanto a
medo de seus lançamentos. As facas vão sendo cravadas, com precisão, anima estiver prisioneira . clo complexo materno, o homem não poderá
em volta dela. Chega o momento de fazer o último lançamento: a faca seguir o caminho do verdadeiro amor.
deverá ser cravada entre as pernas abertas da jovem, simbolizando a pe- O tema da prisão, que encerra o filme, é também altamente significa-
tivo no plano psicológico. Com efeito, a vitória sobre o complexo mater-
no significa que o homem assume suas responsabilidades, deixando de
158 159
1. Alexandra Jodorowski, diretor do filme Santa Sangre, Itália, 1989. utilizar os outros como paravento ou de dar COMO pretexto uma infância ..
difícil para explicar 'seus comportamentos. Torna-se livre, mas, ao mes- o mais charmoso jovem do mundo, mas conhece uma grande solidão'
mo tempo, plenamente responsável por seus atos. Não pode continuar intetiõr. ESta é dominada.porum coinplexo materno—grave qué-ihe proí-
sendo o menino incessantemente polido, gentil, cortês, mas deve assumir be expressar espontaneamente suas reações. Seu comportamento tem algo
sua sombra, sua capacidade de fazer sofrer. Deve, igualmente, assumir o de constrangido e não corresponde à sua personalidade fundamental. Não
sentimento de culpa associado a seus gestos. Já não pode brincar de ino- entra em contato com suas profundezas porque nelas está escondido muito
cente. Ao matar simbolicamente a mãe, ele mata a infância. Mediante tal sofrimento de criança mal-amada.
sacrifício é que poderá ser um homem. O enfrentamento desse problema e a afirmação de seus verdadeiros
Por último, vocês observaram, com toda a certeza, que o filme de gostos significam mudanças desestabilizadoras que ameaçariam levá-lo a
Jodorowski retoma o motivo central do conto A jovem das mãos corta- perder a estima das pessoas à sua volta, das quais é dependente. Tal situa-
das. É como se o cineasta tivesse pretendido imaginar uma seqüência
ção implicaria, sobretudo, uma verdadeira ruptura com a mãe e a traição
para tal relato, transformando a mãe de seu herói em uma mulher com os da união simbólica entre os dois. Com efeito, quando pais e filhos estão
braços mutilados. Assim, o filme prolonga a fábula ao ilustrar o que se . ligados pelo mesmo problema psicológico, existe como que urri pacto
passa com uma mulher com as mãos cortadas quando se torna mãe. Esta inconsciente que impede qualquer um deles de desfazê-lo.
serve-se dos filhos como extensões de si mesma. Devem estar a serviço de
Para mudar, o menino bonzinho deverá enfrentar o sentimento de
sua criatividade ferida e dedicar-se completamente a ela .. Tornam-se seus
culpa por deixar atrás de si a própria mãe, correndo o risco de causar-lhe
braços e mãos perdidos em razão dos maus-tratos de um patriarca. Eles
sofrimento. Terá de superar o medo de que, ao mudar de atitude, ela não
não têm direito à própria autonomia. Tal situação é particularmente
consiga sobreviver. Mas sobretudo, deverá tomar contato com seu fogo
paralisante para o filho. Pelo viés da formação de um complexo materno
interior, para reencontrar a vitalidade.
negativo, a influência da mãe faz com que nenhuma mulher possa apro-
Gostaria de ilustrar esta reflexão com a ajuda do•caso de Henri. De-
ximar-se 'do filho. Se ele chegar à uma verdadeira entrega de seu amor a
pois de nurnerosos meses de trabalho terapêutico, ele chegou à sessão
outra mulher, esta correrá perigo de vida.
com um sonho que lhe tinha provocado Um intenso pânico:
Assim, o ciclo" da miséria humana repete-se sem firfi, e o sangue sagra-
do da vida não cessa de ser derramado. Os homens cortam os braços das
Estou lavando meu diário íntimo na pia da . zinha. Dando-me conta, de repen-
mulheres que castram filhos que, por sua vez, cortarão os braços dás• •
te, do que estou fazendo, recolho-o antes que fique amassado demais e, com
companheiras para se vingarem. Até que O verdadeiro amor venha pro- determin4ão, procuro 'secá-lo; em seguida, coloco-o sobre o aquecedor da sala,
vocar o indivíduo a tal ponto que decida libertar-se de seu complexo, em cima do qual se encontra uma enorme estátua de Buda. Constato, então, que
deixando de ser o filhinho-de-mamãe. existe algo de errado ali. Em primeiro lugar, está repleta de uma espessa camada
de poeira, como se fosse um sótão abandonado. Em seguida, observando de mais
O coração empoeirado de um menino bonzinho perto, descubro que a casa foi assaltada; os ladrões roubaram o tapete da sala e
depois. voltaram a colocar todos os móveis no devido lugar. Dou um grito de
O filme Santa Sangre descreve o melhor possível o drama do menino horror ao constatar essa má ação e uma nuvem de partículas sai dos meus pul-
bonzinho, prisioneiro do complexo materno negativo. Ele tem medo do mões na altura do coração, como se alguém tivesse apertado um saco de aspira-
controle feminino e de amar. É uni ser que, sob aparências evidentes, sente dor cheio de poeira.
todo o sofrimento do mundo para se comprometer em um relacionamento
porque seu coração está fechado. Para se tornar livre, deverá enfrentar, à O sonho reflete até que ponto o trabalho de desempoeirar a vida
semelhança do herói do filme, seu dragão materno e reencontrar sua íntima era penoso para Henri. O fato de ficar surpreendido por estar
sombra, a fim de libertar a criatividade e a capacidade de amar. lavando o diário íntimo e, em seguida, salvá-lo, dá testemunho de sua
O menino bonzinho sofre da mesma doença da menina boazinha, a grande ambivalência em relação ao processo terapêutico. Ele estava afo-
saber: uma superadaptação às demandas das pessoas que estão à sua vol- gando seus textos para esquecer toda a dificuldade do trabalho consigo
ta. O homem que conheceu uma mãe ferida, do ponto de vista narcísico, mesmo. Na vida real, tinha encontrado refúgio em uma espiritualidade
160 exigente demais ou criadora de culpas, tem o coração trancado. Pode ser ascética, a fim de manter à parte sua criança interior, aquela que reagia 161
vivamente aos acontecimentos. Achava que eram malvindos os movimen- Henri não tinha liberdade. Tinha-se tornado um ser de deveres e de
tos de humor e reprimia-os com todas as forças, do mesmo modo que a princípios, como sua própria mãe. Sua vida era dedicada a causas cada
— mãe ti—nha reprimido sua espontaneidade de criança.-Eis a raz-ão pela qual
vez mais nobres. Era uh verdadeiro inissionárro, sempre Pronto a defen-
estava levando o diário íntimo para secar ao pé de Buda, esperando que der a viúva e o órfão. Sentia a obrigação de tornar-se um santo solitário,
lhe fosse poupado o confronto com as emoções. sem ter a força, no entanto, para resistir a fantasias sexuais obsessivas, o
Essa ascese só lhe convinha pela metade, na medida em que evitava a que acabava por lhe criar um sentimento de culpa ainda maior. Esse gos-
tarefa de limpar a sala e o coração, asfixiados pela poeira. Ele recuava de to pela santidade tinha, inclusive, uma vertente ascética. Henri tinha medo
horror diante de tal idéia, mas era tarde demais. O tapete tinha-lhe sido do conforto físico, e contou-me que durante muito tempo .a sala do apar-
tirado debaixo dos pés, por assim dizer, por esses ladrões que tinham tido tamento onde se desenrolava o sonho tinha permanecido vazia, como se
a preocupação de colocar tudo no devido lugar depois da má ação. Tais pertencesse a uma casa sem calor nem coração.
malfeitores infantis simbolizam perfeitamente Hermes, o deus das más
ações da Grécia antiga. Além de patrono do, comércio e dos ladrões, o
deus grego é também patrono da transformação psicológica, porque o As portas do inferno
metal que o representa é o argento-vivo, ou seja, o mercúrio, com todas O rapaz bonzinho não poderá curar-se antes de passar pelo tormento
as suas reviravoltas rápidas e inesperadas. das emoções ardentes. Não é por nada que Cristo desce aos infernos
Associava a nuvem de. poeira que lhe saía dos pulmões aos mineiros antes da ressurreição. Simbolicamente, tal atitude significa que o ser não
que sofriam de amiantose. Os pulmões deles estavam literalmente pode simplesmente ressuscitar sem que despertem nele as grandes forças
emporcalhados pela poluição do minério. Ao observar que tal nuvem vitais, sem que o diabo meta sua colher de pau. O indivíduo que preten-
saía-lhe diretamente do coração, começou a chorar copiosamente. Com der recuperar a criatividade ferida.não poderá evitar tal provação, seja
toda a evidência, estava compreendendo que esse coração asfixiado era o passando por cima, pela simples compreensão intelectual, ou por baixo,
produto de sua infância. Não tinha o direito de amar. Não tinha direito a lançando-se todo inflamado em um novo credo. Também não poderá
uma relação amorosa satisfatória. Continuava escolhendo mulheres que passar ao lado, fingindo ignorar a existência de tal sofrimento; resta-lhe .
também padeciam do seu problema e fugia das outras. Em cada situação, — assombrado, possuído, febril — assumi-lo com consciência e coragem,
sua criança interior esperava tudo do amor. Desejava, inconscientemen- no momento em quê as forças reprimidas se apoderam de sua pessoa e
te, que uma mulher o libertasse da má sorte que lhe tinha sido lançada rememoram-lhe a brutalidade do drama que lhe foi infligido ou que infli-
pela mãe. Estava à espera de que urna mulher o acolhesse e finalmente o giu a si próprio.
compreendesse, e lhe desse a permissão de viver, de maneira plena com À medida que a tensão aumentava, Henri deveria aceitar enfrentar,
suas paixões e seus sentimentos. No entanto, ficava sempre decepcionado. pouco a pouco, o complexo materno que lhe proibia a fruição de sua
Repugnava-lhe a idéia de ele próprio fazer esse trabalho e de assumir vitalidade. Era inclusive essa, diria eu, a única possibilidade que tinha de
a responsabilidade por suas necessidades. Sentia um nojo profundo dessa poder restabelecer, um dia, a relação com a verdadeira mãe, essa mulher
criança interior. Tinha medo de sua cólera violenta, à semelhança das" que estaVa 'envelhecendo e agora tinha necessidade da ternura familiar.
manifestações de raiva da mãe. Não tolerava nada que, dentro de si, vies- Apesar de suas resistências, o trabalho estava avançando. Seus sonhos
se a assemelhar-se a ela. Tinha horror em dar-se conta do quanto estava eram recheados de cabritos congelados, conversíveis de cor vermelho
castrado de seu próprio poder. Sentia-se dividido, fragmentado e vulnerá- berrante na neVe branca e bilhetes de metrô para destinos tão surpreen-
vel sempre que tocávamos nesse espaço psíquico. Comparava a terapia a dentes quanto as portas do inferno. A cada sessão, eu o encorajava a dei-
uma descida desconfortável em um ninho de víboras, e tinha a impressão xar emergir as intensas emoções que se manifestavam nele. Assim, aos
de que era eu quem lhe impunha tal viagem. As vezes expressava aberta- poucos, acabou tendo a ousadia de abrir-se.
mente seu ódio contra mim, e com regularidade falava em abandonar a Por trás das portas -do inferno, encontrou a raiva ardente, como se
análise. Suas sessões eram seguidas, inevitavelmente, por pesadelos e dores fosse urna ferida em carne viva. Encontrou a cólera de um esfolado, uma
de cabeça provocados por má digestão. No entanto, ele sabia muito bem cólera que nada parecia poder aplacar. Eu acompanhava atentamente o
162
que isso não tinha absolutamente nada a ver com o que comia. processo, convidando-o a libertar-se de seu tormento interior, mesmo 163
que corresse o risco de perder o sono, de encher cadernos com seus tex- ção não sofrerá qualquer, mudança enquanto não enfrentar o conflito
tos, de se tornar louco e de ficar entrincheirado em _casa. Dura_ntemm . -que.se .enraizou nele pró-pá°. O exemplo de Caim;- que ivatá •o iánão
certo tempo, interrompeu suas meditações apaziguadoras ao pé do Buda. • Abel e acaba sendo perseguido impiedosamente pelo olho de Deus que,
Esse ser não tinha necessidade de fugir para o céu, mas de reencontrar o sem cessar, lhe recorda seu crime, constitui uma perfeita metáfora desse'
fogo vital no fundo de suas entranhas, o fogo interior que é o elemento pecado contra si. Ao matar Abel, Caim acabou aniquilando o melhor de
primeiro e essencial de qualquer transformação. Sem ele, todo êxtase é si mesmo: a sensibilidade e a espontaneidade.
ilusório. Tanto os alquimistas quanto os budistas têm conhecimento disso. No plano psíquico, o assassinato de Abel por Caim condena um indi-
Qualquer biografia de iogue descreve essas febres em que todo o ser está víduo a limitar-se a ser a sombra de si mesmo e a viver privado de entu-
em fogo. Porque sem esse fogo, a meditação não passa de um fingimento. siasmo. 9 preço a pagar é elevado, porque ninguém pode recusar sua criati-
Até então, Henri tinha-se contentado em ser amável e compreensivo, vidade sem ter de pagar caro por essa atitude. Assim, o destino parece não
vítima compassiva que perdoava tudo; mas, de um dia para o outro, tor- possuir qualquer noção de moralidade. Compete a nós — pobres huma-
nou-se um verdadeiro leão enjaulado. Empenhava-se em permanecer em nos, mais ou menos submersos nesta traição de nós mesmos, neste assassi-
contato com o fogo sem tentar extingui-lo. Fazia tudo para retê-lo, ali- nato de Abel, deste sacrifício da criança interior— exercer toda a compai-
mentando-se dele; para mim, a transformação era evidente. Quando ti- xão de que formos capazes diante de nossas próprias covardias. Aqui não
nha a ousadia de ser esse animal selvagem, todo o corpo ficava mais pre- tem lugar o olhar de desprezo. "Aquele de vós que estiver sem pecado,
sente na sala, embora não chegasse a praticar cjualquer exercício físico. atire-lhe a primeira pedra", poderíamos dizer,.parafraseandO Cristo. •
Sua força estava liberada. Dizia-me que raramente tinha-se sentido tão Mais tarde, ein um sonho elaborado pela imaginação ativa, Henri
inteiro como nesse momento. Usufruía dessa sensação profundamente. encontrou seu lindo Abel sacrifiçado. Reconheceu-o sob os traços de um
Durante várias semanas, abandonou sua perpétua indecisão, que foi subs- jovem tímido e reservado, vivendo em um quarto decrépito, fabricando
tituída por uma coragem e uma determinação que, até então, eu ainda pássaros multicolores de papel. A aproximação não foi fácil. No início; o
não tinha visto nele. diálogo tomou o aspecto de uma perigosa descida sinuosa. Às vezes,. o
Tinha decidido mudar, mesmo se isso lhe custasse a vida — segundo jovem transformava-se em serpente venenosa, outras vezes, assumia d.
afirmação sua. Estava queimando o passado com o fogo da paixão inte- papel de um terrorista que pretendia enfrentar o mundo consciente a
rior. De repente, sentia a força do ferreiro que dobra o ferro em brasa ferro e fogo, 'ou ainda assemelhava-se a um verdadeiro gato do mato
quando, afinal, até então tinha sido apenas esse metal em brasa martela- batalhador e vingador. 1;
do. Nunca rinha ousado manipular o martelo. Estava em via de romper Um dia, produziu-se o inevitável. O conflito interior explodiu com 1[i
com o rapaz bonzinho e, ao mesmo tempo, com o dragão materno. Por toda sua força. Manifestou-se todo o ódio e ressentimento que Abel sen-
mais mal-amado que se considerasse, já não conseguia dissimular que sua tia por Caim. Tomava forma uni conflito mortal entre dois irmãos inimi-
verdadeira mãe nada tinha a ver com o que sentia interiormente. Compe- gos. Se não fosse estabelecido um novo equilíbrio, e se Henri não apren-
tia-lhe, agora, reverter a situação para transformar a raiva em criatividade. desse a respeitar sua criatividade, o lindo Abel das profundezas ameaçava
Neste ponto da terapia, Henri estava sentado em cima de um verda- matá-lo. Neste caso, já não haveria existência possível além do desespero
deiro vulcão em atividade. Com o desencadeamento das forças primá- glacial daqueles que sabem que deixaram sua vida fracassar.
rias, voltam à. tona os conflitos primordiais e, inevitavelmente, reapare- Creio que, em terapia, nunca tinha assistido a uma cena tão violenta
cem os dinossauros da infância. Agora, o terreno estava preparado para o quanto o confronto imaginário entre esses irmãos inimigos. Em um esta-
encontro com sua sombra. do próximo do transe, Henri retorcia-se no divã, agitado por esse
enfrentamento em que se misturavam prantos e gritos, cinismo e acusa-
O pecado contra si mesmo ções mútuas. Estava sendo revelada a divisão interior, assim como o ódio
a si próprio, de um ser que, para sobreviver e agradar aos pais, teve de
Chega um tempo na vida do indivíduo em que as forças vitais já não sacrificar um aspecto essencial de si mesmo. Esse drama que se desenro-
aceitam contribuir para o pecado contra si mesmo. Ele pode relaxar-se, lava à minha frente me pareceu de tal modo real para cada um de nós que
164 comer adequadamente, fazer exercícios, distrair-se: nada muda. A situa- 165
fiquei emocionado até as lágrimas.
A dinâmica psicológica do menino bonzinho
Depois da manifestação dessas grandes emoções, aconteceu o que eu
mais temia. O conflito era demasiado vivo, a lucidez demasiado ofuscan- .! Por que motivo, então, os meninos bonzinhos continuam a ser bons
te. Quando um ser penetra assim até o âmago de si mesmo e abarca com ao mesmo tempo que constatam que o preço que pagam por suas dificul-
um só olhar toda sua vida, quando fica conhecendo os conflitos que pro- dades de afirmação se contabiliza em bebedeiras regulares, doenças
vocaram o tormento interior durante toda a sua existência, é freqüente psicossomáticas, fadiga crônica ou tormentos interiores? O que é que os
verificar-se um grande movimento de recuo que, aliás, pode ser observa- leva a dizer "sim" no momento em que gostariam de dizer "não"? O que
do pelo terapeuta. é que os impede de afirmar o que pensam, mesmo correndo o risco de
Henri associava Abel a essa parte proibida e moribunda que carrega- desagradar as pessoas à sua volta? Por que motivo julgam preferível trair
va dentro de si, como se fosse de um brinquedo quebrado; simplesmente, suas convições íntimas?
afirmava ele agora, não tinha forças para repará-lo. De novo estava ator- Existe uma só resposta possível para todas essas interrogações. O
doado com deveres e responsabilidades para evitar o confronto com seu menino bonzinho possui dentro de si um monstro devorador que o lança
fogo interior. Nos tempos livres, masturbava-se de forma frenética e cri- em um inferno de remorsos, dúvidas e sentimentos de culpa, mal tem a
ticava-se amargamente' por tal atitude. Sem razão; com efeito, nesses ousadia não só de dizer verdadeiramente o que pensa, mas também de
momentos de resistência, a sexualidade Manifestava a presença irrepres- agir segundo seus sentimentos. Torna-se mil vezes preferível ser amável e
sível de algo espontâneo nele. complacente, mesmo correndo o risco de prejudicar a saúde, em vez de
Reapareceram os sonhos com neve. Nesses conflitos do princípio do ser obrigado a enfrentar esse dragão que tem o poder de despedaçá-lo e
mundo, os extremos tocavam-se sem cerimônia. De uma semana para a de golpear a pouca auto-estima que lhe restaria se porventura tivesse a
outra, passava-se da era tropical para a era glacial. Mas o centro tinha ousadia de transpor as linhas proibidas.
sido atingido. Agora", tratava-se apenas de uma questão de tempo. Eu De onde vem esse monstro interior? De onde vêm essas regras táci-
tinha confiança que meu paciente saberia operar asMudanças necessárias tas? O monstro interior é o produto de experiências primeiras vividas
para refazer a vida e reparar o erro cometido ao se renegar ç trair profun- Com uma intensidade muito forte no momento em que a criança ficou
damente. expciista a traumatismos que colocaram em perigo sua jovem identidade
Na- seqüência, o trabalho de integração tomou uma velocidade de em desenvolvimento. Quanto mais devastadores tiverem sido esses •
cruzeiro confortável. No decorrer do tempo, Henri acabou até mesmo traumatismos, tanto Mais gravemente terá sido sentida a ameaça de de-
por sorrir quando voltou a se encontrar prisioneiro do menino bonzinho. sintegração interior, tanto mais firmes serão as regias que virão dizer ao
Reservou um espaço cada vez maior à expressão de suas preferências e ego o modo como se comportar se ele pretende sobreviver em um am-
emoções. Sua sexualidade, assim como sua espiritualidade, me arriscaria biente precário. A violência de um progenitor, a frieza da mãe, os aban-
a dizê-lo, perderam o aspecto compulsivo e defensivo, além de se harmo- donos precoces e mal preparados, as doenças infantis, são outras tantas
nizarem melhor no movimento geral do ser. Reencontrou igualmente um experiências que podem contribuir para a formação de uma identidade
contato mais gostoso com a mãe real depois que aprendeu a resistir aos que repousa na doçura exagerada. Eis o que é fácil de compreender: a
ataques de seu dragão interior. única coisa que a criança tem para lisonjear e conservar o amor do proge-
Suas relações amorosas continuavam sendo problemáticas, mas ele nitor — mesmo que este seja abusivo — é a doçura, a obediência, a com-
compreendia melhor a maneira como sua ambivalência podia fazer so- placência e a cumplicidade. Esse amor é primordial para a criança porque
frer as companheiras. Já não as considerava responsáveis pela sua sorte. é a base do sentimento de seu próprio valor.
"Nunca mais farei isso, mamãe, nunca mais!" Será que o grito deses-
Aos poucos, surgiu nele um real desejo de se comprometer que não era
perado da criança que é espancada por unia bobagem nos desperta a
motivado pelo dever, mas por um real prazer em compartilhar a vida
com alguém. Com a libertação de sua criatividade, brotou nele o gosto de lembrança de algo? Além de ser agredida fisicamente, a criança está sen-
do maltratada em sua individualidade, impedida de explorar seu corpo e
amar profundamente. Agora, tinha acesso a suas intuições e a seus senti-
o mundo. É como se estivéssemos dizendo que a curiosidade e a sensua-
mentos, além de manifestar uma confiança cada vez maior nessa sensibi-
166
lidade, em sua anima. lidade não lhe são permitidas, e que, acima de tudo, ela não tem direito 167
...
de expressar espontaneamente seus Séritimentos'e 'idéias. Afinal de con- possa escapar a seus afetos asfixiando-os no frabalho. Pelo contrário, é
tas, teremos uma criança performática,. que seráo.orgulho .dospais,tnas :uma forma de dar-lhes' ainda mais. poder, mas hm poder megativo;COM
sob a ameaça de tornar-se ufri adulto que, na vida, não fará o que gosta efeito, quando eles não têm a capacidade de nos dar a vida, associando-se
com medo de desagradar ou ter de enfrentar seu monstro interior. à consciência, acabam tendo a capacidade de nos dar a morte e de nos
Os homens mais charmosos, mais violentos, mais torturados e Mais levar à nossa destruição.
separados de si próprios que tenho encontrado no exercício da minha Os meninos bonzinhos carregam em si um grande vazio que o sucesso
profissão foram criados, na maior parte das vezes, por mães que não nunca conseguirá preencher. Essa busca exterior de amor e de aprovação
tiveram condições de acolher o sofrimento e a aflição dos filhos. Alguns implica, pelo contrário, desespero e depressão crescentes. Acabam por
chegam mesmo a contar que foram espancados para deixarem de chorar, não terem férias e, de antemão, ocupam todos o seu tempo livre. Incons-
em decorrência da perturbação da mãe, que era incapaz de responder à cientemente, temem oferecer-se como pasto à criança interior e à anima
sua angústia. Atualmente, continuam a proceder em relação a si mesmos que reivindicam sua atenção. A única solução reside, no entanto, do lado
da forma como foram tratados pela mãe: também não são capazes de
da responsabilidade pessoal, em relação à sensibilidade e à criatividade.
acolher a criança que existe dentro de si. Não cessam de brutalizar sua Os meninos bonzinhos devem acolher a criança da sombra que carregam
natureza brincalhona ou animal e aceitam com dificuldade as necessida-
em si e encontrar para ela vias de expressão.
des afetivas deSsa criança que nunca recebeu a Parcela de ternura a que No menino bonzinho, as qualidades femininas são muitas vezes su-
teria direito. Procuram satisfazer suas necessidades inferiores com mais
perativadas. Resulta daí o medo de se afirmar na virilidade e na sexuali-
trabalho, mais sexo ou mais bebida.
dade. No entanto, sua anima não apresenta a figura de uma mulher mei-
ga. Ele permanece um homem amável com medo da castração, mas dissi-
Você não está separado! Você não 'é livre! mula uma infinidade de sentimentos negativos para com as mulheres.
Tenta fazer as.pazes com o mundo feminino por meio da doçura e genti-
O acolinmento da própria sensibilidade pelo homem é uma tarefa
tanto mais difícil, que nada . no organismo social facilita tal atitude. No leza, mas sua anima ainda tem o semblante de uma mãe devoradora ou
bruxa. Enquanto não tiver enfrentado seu dragão materno, correrá o ris-
entanto, não pode existir verdadeira virilidade sem esse acolhimento da
co de vir a encontrar mulheres "controladoras". Ou então, há de procu-
sensibilidade das profundezas. Caso contrário, os sentimentos dos ho-
rar relacionar-se com mulheres autoritárias, animado pela secreta espe-
mens são copiados a partir do mundo feminino. Não alcançam o belo
calor sólido e terreno que é o sinal de uma masculinidade integrada que rança de que estas possam opor-se à mãe e desligá-lo dela.
sabe aliar firmeza com doçura. Tal integração só é possível a partir do Aqui, importa compreender que a anima masculina está fortemente
momento em que o homem cortou verdadeiramente seu cordão umbili- marcada pela 'personalidade materna; assim, enquanto não tiver conse-
cal. Aliás, o célebre protagonista deZorba, o grego, de Nikos Kazantzakis, • guido separar-se da mãe, essa anima não terá possibilidades de evoluir. O
diz ao discípulo que ele não consegue conhecer sua espontaneidade e sua homem não poderá ser completamente ele próprio, nem amar verdadei-
alegria de viver porque não está separado! Ele não é livre! ramente, enquanto não tiver enfrentado interiormente o medo de ser
rejeitado Por aquela que lhe deu a vida, tendo a ousadia de separar-se
Você que é patrão, você está preso por um barbante comprido; você vai, vem, dela. Em outras palavras, se pretender ganhar sua independência real, ele
Julga que é livre, mas não chegou a cortar o barbante. E enquanto este não tiver deverá ter a ousadia de ser infiel no .casamento simbólico que consumou
sido cortado... [...] Mas se você não cortar o barbante, diga-me, que sabor poderá com a mãe e enfrentar o sentimento de culpa e os remorsos daí decorren-
ter a vida? Um gosto de camomila, de insípida camomila! Isso não é rum, que tes. Um dia ou outro, será obrigado a lutar contra o dragão materno,
leva você a ver o mundo de ponta cabeça!' correndo o risco de causar sofrimento à mamãe.

Na minha posição de terapeuta, e* sempre surpreendente constatar


como o inconsciente permanece vivo. É ingênuo julgar que um indivíduo A cólera do menino bonzinho
O que se encontra por trás da superadaptação do menino bonzinho,
168
... 2. Nikos Kazantzakis. Alexis Zorba. Paris: Plon, 1994, p 36. assim como de seu sentimento de culpa e do medo de assumir compro- 169
missos? Nesse comportamento, dissimula-se uma cólera contra as mulhe- rior é uma coléra sem nome, no térreo é raiva de viver, e nos andares
res que se origina no primeiro relacionamento com uma figura feminina: superiores, pura alegria de existir.
a mãe-. Por tráS'de seuS fingimentos- COmplacénteS, existe 'raiva. Trata-se Portanto, a plena aceitação -do .contato com a raiva-irá ti-eu-Unir Uma
de uma profunda irritação relativa ao fato de que seus limites não foram reabilitação do mundo afetivo e, sobretudo, das emoções ditas negativas.
Tornar-se-á mais nítido o papel desempenhado por estas na harmonia
respeitados pela mãe. O incesto afetivo fez surgir nele um veemente pro-
geral do ser. São invariavelmente o sinal de que urna necessidade funda-
testo devido à violação incessante — por carícias ou' pancadas — de sua
mental não está sendo respeitada. Reconhecidas plenamente, hão de per-
privacidade. Não é por nada que ele se tornou tão fechado e cheio de
mitir que o ser reencontre o sentido de sua inteireza. Assim, ele ficará
segredos. Assim, tenta delimitar um espaço pessoal em relação ao dragão
curado da divisão entre razão e paixão. Aliás, o desaparecimento desse
materno e à mulher sobre a qual projeta esse mesmo dragão.
fosso constitui a verdadeira libertação da anima, porque, a partir do
Sua reação às intrusões maternas consistiu em fechar completamente
momento em que a capacidade de sentir e amar já não é julgada como
o coração. Tendo-as sentido como uma traição de seu amor pela mãe,
uma fraqueza, o indivíduo tem acesso aos sentimentos e às intuições que
jurou que mais ninguém haveria de abusar dele da mesma forma. Mas, à
podem servir de guia para sua vida. Neste caso, a anima desempenha seu
semelhança da jovem boazinha, agora sente medo de entrar em si e entrar
devido papel.
em contata com essa cólera. No entanto, é esta que o impede de amar e
abandonar-se, com toda a confiança, a uma mulher. Portanto, deverá ser
manifestada, e o destino não deixará de meter sua colher de pau... Entre dois males, o pior
Quando Uma mulher aparece na vida de um menino bonzinho com Em resumo, a psicologia do menino bonzinho repousa em uma baixa
seu vazio, a cólera dele começará a‘ ferver novamente., A não-satisfação auto-estima. Ele chega a manter um bom senso a seu respeito: é no de seu
da sede de atenção da companheira, que o acha decepcionante, ameaça entorno profissional, familiar e sentimental'que procura o reconhecimento
criar, uma vez mais, uma situação em que seus limites não serão respeita- de que tem necessidade para permanecer à tona. Por isso, é bom, prestativo;
dos. Além disso, sua privacidade será. tratada como se ele não valesse mostra humor inalterável, além de ser uma besta de trabalho. No dia em
nada: suas cartas serão lidas, suas mensagens telefônicas escutadas e, ain- que deixar de contar com esse reconhecimento, as críticas interiores não
da por cima, será acusado de não desejar comprometer-se. A panela de estarão longe. Em resumo, estas provêm de duas instâncias. Em primeiro
pressão- vai explodir. lugar, reencontramos a mãe interior, que se tornou unia personalidade
No entanto, tal repetição, de alguma-forma obrigatória em razão das tirânica que exige bondade e perfeccionismo em grau cada vez mais ele-
histórias respectivas do menino bonzinho e da jovem boazinha, pode tor- vado. Em segundo lugar, o irmão da sombra aproveita todos os momen-
nar-se uma oportunidade inesperada. Em todo caso, pode colocar de novo tos de vazio para fazer tropeçar o ego e levá-lo a mergulhar na melancolia
o menino bonzinho em contato com suas necessidades fundamentais, en- da depressão, neste aspecto, cúmplice da anima que não pode exercer
tre as quais, a privacidade. Ela pode levá-lo a definir melhor seus limites seus talentos no terreno do amor. A mãe interior é partidária do statu
e obrigá-lo a superar a complacência para se afirmar. Tal afirmação cons- quo e do respeito-pelos valores estabelecidos. As vontades do irmão ini-
titui exatamente o contrário de uma simples descarga de cólera contra a migo procuram a reviravolta da ordem atual e o estabelecimento de um
companheira. Consiste muito mais em urna transformação dessa raiva novo modo de vida. O conflito que existe entre essas duas figuras deixa o
em poder positivo, mesmo se à primeira vista parece ser algo diabólico. sujeito submerso em um estado de ambivalência que, no decorrer do tem-
po, prejudica sua saúde e suas resistências, provocando-lhe doenças.
Não há transformação sem o poder do fogo, quer se trate de preparar
sopa, criar planetas ou seres humanos. Se escutar o lindo Abel, o indivíduo irá encontrar-se rapidamente em
um estado vizinho do terror, porque, neste caso, o complexo materno
Através da experiência de Henri, comecei a apreciar a presença das
eleva o tom e assume todas as aparências de um dragão que ameaça o ego
divindidades infernais nas cosmogonias religiosas. Em suma, os diabos
com a vergonha e a desonra se porventura tiver a ousadia de afirmar sua
são os preciosos guardas do fogo vital. Sem seu apoio e seu calor, não
criatividade. Se, pelo contrário, obedecer ao dragão materno, o desespe-
seria possível elaborar seja o que for, e os rapazes bonzinhos permanece- 171
170 ro será seu quinhão.
riam anjos com asas quebradas. Com efeito, se no subsolo esse fogo inte-
•• Aliás., aqui, importa observar que, ao ter conhecido importantes ca- - dM de se encia-ntrar consigo mesmo não pode se beneficiar da graça
• rén-cias na infância em-razão de acontecimentos familiares por causa do .-- --diSfarçada -qMe represerita uma infância difícil. Nunca -conseguirá apreen-
'earater dds. Pais, o indivíduo acaba por interiorizar figuras parentais que, der o (Manto to'da'S essas dificuldades podem servir ao profundo conheci-
muitas vezes, conservam sua forma arcaica ou mitológica, ou seja, a for- mento de si mesmo, no sentido em que estas favorecem uma superação
ma que. aparece em todos os contos para crianças. Normalmente, tais que, a longo prazo, promete alcançar o êxtase de viver.
personagens humanizam-se à medida que se cresce. Mas, sob a influência O menino bonzinho não poderá resolver o conflito interior que o
do choque ou da carência, um grande número de seres revelam atrasos de neutraliza a não ser escolhendo, entre dois fogos (o do dragão materno
desenvolvimento e ainda carregam em si forças arcaicas que os forçam a ou o do inferno), o Pior, ou seja, o do inferno. Caos, raiva, medo e senti-
viver de joelhos para o resto da vida. mento de culpa são os efeitos inevitáveis, mas passageiros, de tal escolha.
O conflito é verdadeiramente torturador. Se o ego se confinar no Não será possível evitar que nos queimemos com tal fogo, e, inclusive,
perfeccionismo, ajoelhando-se diante da mãe interior, evitará as labare- podemos ate mesnao•perder a vida. Para suportar o suplício, será necessá-
das do dragão materno e obterá uma paz relativa. No entanto, no decOr- rio perguntarmo-nos incessantemente se, atraiçoando a nós mesmos, a
rer do tempo, essa paz não será satisfatória porque é estabelecida sobre o vida vale a pena ser vivida.
túmulo de uma criança morta que acaba voltando para assombrar as noi- A vida transbordante, "deslizante",, sorridente e espontânea é nossa
tes do adulto: Essa calma carece de vitalidade. O indivíduo tenra superar mais preciosa essência. De que serve ao Menino bonzinho ser amado por
o mal-estar envolvendo-se em um conforto adocicado, comendo do bom todos se acabar perdendo todo valor para si mesmo? O respeito pela vida
e do melhor e usufruindo dos prazeres da carne. Conforma-se com a é nosso primeiro dever e, por mais inábeis que possamos ser,, essa missa
situação, como se diz. Somente o ego sabe, no fundo de si mesmo, que se posnira ainda será preferível a levar uma existência perfeitamente policia-
trata de uma pura impostura. No entanto, adia constantemente qualquer - da no controle da vida dos outro;, porque, neste caso, teríamos chegado a.
mudança e, por fim, se não é infeliz, também não é assim tão feliz! uma espécie de morte psíquica. A verdadeira beleza tem a ver com o res-
Para os seres que sentem repugnância por todo esse conforto, como peito pela criatividade e nunca é enfadonha. A morte psíquica assemelha-
era o caso de Henri, a espiritualidade torna-se o exutório em que tentam se à seca e, com toda a certeza, é mais mortíferado que a. forne ou a guerra:.
escapar, ao mesmo tempo,. da mãe e da criatividade ferida. Mas assim, Resta deixarmo-nos levar pelas forças da primavera no momento em
correm o risco de passar completamente ao lado da vida, confinados em que o degelo das forças vivas já não tolera subterfúgios e ameaça quebrar
um medo que transforma o irmão da sombra em um demônio do inferno tudo. Resta-nos continuar felizes e contentes. Finalmente, quebra-se o
que tem todos os vícios e sensualidades. gelo. De um dia para outro, mais cedo ou mais tarde, convirá ter cora-
Não se deve confundir espiritualidade com medo de viver. A verda- gem para confessar nosso pecado contra a.vida e obedecer à nossa voz
deira espiritualidade representa a flor de unia vida. Não teme o esterco, interior. Caso contrário, com a perda dõ sentido de nós mesmos e o- esgo-
as profundezas da terra e o calor do sol. Alimenta-se com tudo isso, Tem' tamento das fontes da renovação interior, acabaremos morrendo no mais
necessidade- de fazer amor, se me é permitido falar assim. Não pode-ela total absurdo.
borar-se contra a sexualidade, contra o próprio impulso de vida. Se a
espiritualidade não integrar a sexualidade em um grande movimento vital,
ela acabará por tornar-se árida. Torna-se a escrava do complexo materno
negativo que proíbe a vida. Apóia-se em um ódio inconsciente pela vida e,
por isso mesmo, perde todo valor de crescimento para o indivíduo.
Somente a criatividade, por meio de seu fogo, tem o poder de trans-
formar as obsessões, as carências, as feridas e as covardias. Com a condi-
ção, é claro, de que o indivíduo tenha a coragem de aproximar-se dela. Se
não o fizer, todo o sofrimento que vier a experimentar perde sia razão
de ser e ninguém poderá tirar proveito disso. É então que a vida confun-
172 173
de-se com as acerbas acusações contra os pais. O ser que não teve a ousa- .....
O divórcio mãe-filho: Um sacrifício
No adolescência ou no início da idade adulta, a separãção entre a mãe - •
e os filhos passa, em geral, despercebida. Trata-se de um momento que
8 não é objeto de qualquer ritual especial, tampouco de qualquer discus-
são. Não há permuta de declarações de amor ou pesar. Tudo se passa em
silêncio e deveria ser resolvido como por magia. Ora, na realidade não é
Reflexões sobre o Papel da Mãe esse o caso. O filho continua vivendo na mãe e a mãe no filho sob a forma
de dinâmicas benéficas ou malsãs que se repetem porque não são
conscientizadas. Além disso, tal separação provoca um verdadeiro sofri-
mento nos dois lados, porque há sacrifício de um vínculo. Ao escamoteá-
lo, nossa sociedade limita-se a condenar esse homem e essa mulher ao
desempenho de seus papéis passados; no entanto, eles devem sobreviver
ao divórcio e continuar a criar suas respectivas vidas.
O divórcio mãe-filho Quando uma relação entre dois seres foi íntima a esse ponto, os par-
ceiros ficam ligados para a vida; neste caso, deve ser empreendido um
Por que é importante a separação entre mãe e filho?
trabalho consciente para evitar o desenvolvimento de dinâmicas nefastas.
Este capítulo não faz parte, propriamente falando, da trajetória desta Mesmo se já não vivem juntos há muitos anos, mesmo se nunca chegam a
obra. No entanto, uma vez que as últimas páginas do capítulo precedente falar entre si ou, quando o fazem, limitam-se a dizer coisas banais, a mãe
- foram dedicadas à relação mãe4ilho, pensei em aproveitar tal ensejo para e o filho estão ligados no inconsciente. É, aliás, a partir daí que a infância
propor algumas reflexões sobre o papel materno, esperando simplesmente continua a exercer sua influência sob a forma de idéias, sentimentos e
que possam servir para acalmar as inquietações porventura suscitadas comportamentos que, sem o sabermos, adotamos em cada momento de
por minhas afirmações. nossa existência.
Uma vez mais, as mães devem tomar consciência de como é difícil a
Em um grupo de terapia sobre as relações mãe-filho, um homem de 50 'anos passagem do filho adolescente para o homem, sobretudo se o pai está
relatou que estava suportando uma enorme pressão por parte da família para que pouco presente. A mãe deve aceitar que ele não venha a se'r seu compa-.
permitisse que os pais viessem morar em um apartamento do prédio que lhe nheiro, nem seu amante. Uni verdadeiro luto está em jogo. Ela deve apren-
pertencia. Mas simplesmente não estava conseguindo aceitar tal idéia. Ao tentar
dera deixar livre seu menino e situar-se em relação à sua vida de mulher
discernir a razão de suas hesitações, acabou por dizer o seguinte: "De fato, até
sem tentar compensar a solidão tornando-se indispensável para o filho.
posso admitir que meus pais se mudem para um apartamento em cima do meu,
Dá' a impressão de que tal luto é mais difícil para as mães do que
Mas estou com medo de que meu pai morra e eu tenha de ficar sozinho com
minha mãe. Estou obcecado pelo pensamento de que minha mãe venha morar possa parecer à primeira vista. Nos grupos de terapia destinados a elas,
exatamente no apartamento em cima do meu. Sinto-me incapaz de lhes dizer pude constatar até que ponto tinham dificuldade em estabelecer a distin-
sim, como de lhes dizer não!" ção entre a mulher e a mãe. Aceitavam facilmente reencontrar suas prefe-
rências e desejos de mulheres, mas desejavam que os filhos permaneces-
Não há necessidade de fazer longos comentários a respeito de tal tes- sem as testemunhas privilegiadas de tal evolução. Parecia-me que às vezes
temunho. Este homem não desejava reproduzir as condições de vida da tinham necessidade de serem consideradas por eles do mesmo modo que
infância, no momento em que temia que a forte dominação da mãe o as namoradas desejam ser reconhecidas pelos namorados.
impedisse de tórnar-se um homem.. Com cinqüenta anos, poderíamos Por exemplo, uma delas, bastante atraente, desejava fazer chegar às
dizer que ainda não está separado da mãe. Ainda se encontra sob a influên- mãos do filho, com trinta anos, a correspondência que tinha mantido
174 cia do complexo materno. O que fazer para evitar tal drama? com o marido e os amantes. Seu desejo era que o filho a ficasse "conhe-
cendo" antes que ela morresse. Queixava-se das resistências que este opu- 175
=1.

nha a tal aproximação porque ele repetia-lhe ineVitavelniente: João de Ferro,' a chave da virilidade está escondida debabco dó travessei-
sempre minha mãe!" O filho devia manter
, - a barreira do inceStb afetivo. H: ro da mãe; ora; o filho não podelimitar7se a pedi-Ia, Mas deverá rouba-
_ _
No entanto, podemos compreender. quão difícil possa se-r7 abandêmâr ã la. Eis, sem dúvida, a razão pela qual os filhos escondem Muitas coisas à
própria vida o homem que ela mais amou e a quem mais se doou. Trata- mãe. Sabem que, se agirem de outra forma, ela acabará por perder o
se de um aspecto do drama materno que não tem sido levado suficiente- sono. Portanto, tentam reservar um espaço privado onde se elabora a
mente em consideração porque é apenas confessável. masculinidade. É claro, o ideal seria que essa aprendizagem se fizesse na
Do mesmo modo, o desejo físico da mãe pelo filho permanece um presença _do pai. Mas se isso não for possível, e na medida em que tal
tema completamente tabu -em nossa sociedade, embora tenha sido revela- comportamento não leve a graves excessos, -as mães devem respeitar os
do por um grande número de mães com as quais tive a oportunidade de segredos do filho.
trabalhar. Aliás, esse desejo, reprimido emerge no momento em que o Os filhos têm a vida para viver e a própria estrada para percorrer;
filho escolhe a primeira companheira e tem as primeiras experiências neste caso, a atitude mais adequada da mãe — o que talvez seja difícil —
sexuais. Ouvi o desabafo de várias mães que teriam 'preferido francamen- é, sobretudo, retirar-se do caminho mais cedo e intervir o menos possí-
te não encontrar sua namorada. Esse problema do incesto não resolvido vel. Postura tanto mais difícil de assumir na medida em que ela própria
por parte das mães não é, com toda a certeza, estranho às dificuldades tem a impressão de ter traçado tal rota com o que havia de melhor em si,
freqüentes entre elas e as noras. Aliás, com toda a evidência, a única ou seja, o amor que a habita, sua capacidade de servir de guia, de cuidar
solução consiste em situar-se como mulher diante de outros homens que e de dar Sua mão.
não o filho. A mãe pode atenuar, igualmente, o risco de conflito_recusando-se a
tornar-se a mensageira do pai. De preferência, ela deve deixá-lo entrar
Na ausênciarle diálogo, muitas vezes o filho não acha que seja honro-
em comunicação com os filhos. Em hipótese alguma, deverá temer envia-
so abandonar a mãe, sobretudo.quando está substituindo o marido. Em
los a ele para que assuma seu papel, procurando saber as razões do com-
. geral, afasta-se com estardalhaço ou com um silêncio polido. Neste caso,
portamento dos filhos. Talvez fique surpreendida com os resultados.
a distância quilométrica a que se coloca dá um testemunho eloqüente da
Essas atitudes resumem-se a cessar de inquietar-se e prever o .pior,
importância do problema que está por resolver e dá agressividade que
aprender a desliga.r-se e relaxar-se. Para tal.efeito, é'bom que nos lembre-
não foi manifestada. .
mos da história da avó que, no alio de uma encosta gelada, deixou o neto
Para evitar que os acontecimentos assumam tal expressão, a mãe deve
subir sozinho no trenó. Apesar das numerosas quedas, a criança recusava
preparar-se para deixar o filho prosseguir seu caminho rumo à autono- sua ajuda; assim, ela acabou por resignar-se a deixar o neto agir a seu
mia desde quando ele atinge os quatorze anos. E deve compreender que, modo. Mas foi recompensada com o sorriso de trend° que ele lhe deu ao
para vencer o complexo materno e conseguir seu lugar no mundo, Para chegar no alto, declarando-lhe com orgulho: "Consegui, vovó! Conse-
desabrochar e chegar à expressão de si mesmo, ele deve superar sua ten- gui!". Ela confiou-me que se estivesse na pele da mãe, nunca teria con-
dência natural para acreditar que a vida será sempre fácil e sem proble- sentido que o garoto tivesse procedido dessa forma; não teria conseguido
mas; além disso, deve vencer o medo e enfrentar com destemor as difi- manter a devida distância. Mas também teria sido privada desse sorriso
culdades. Por isso, deverá mobilizar uma força de caráter que só poderá de triunfo. Portanto, na maior parte das vezes, trata-se de representar a
ser forjada na adversidade. Eis a razão pela qual, na medida do possível, avó antes do tempo.
ela deve proceder, a partir de um certo momento, contra a sua vontade e
deixá-lo amargar sozinho os infortúnios do destino. Contrariamente ao
Quando os filhos ficam incrustados
que se acredita, os homens não são motivados pelo poder, mas pelo medo,
o medo dos espancamentos, da derrota, de serem obrigados a medir for- Nos nossos dias, a recessão econômica, o desemprego e o alto preço
ças com alguém mais forte do que eles. Ora, não é refugiando-se debaixo dos estudos não facilitam a separação necessária entre pais e filhos. São
das saias da mamãe que irão exercitar a coragem.
Na realidade, a mãe não poderá iniciar o filho na masculinidade, que 1. A propósito deste conto, ver o livro que lhe foi dedicado pelo poeta americano Robert Bly: lron
176 John, A Book Abou! Men. Massachusetts: Addison-Wesley Publishing Company, 1990. Ver também
..... . 177
está sempre relacionada com a perda da inocência. Em um conto intitulado a interpretação que lhe dou no meu livro: Père manquant, fils manqué, op. cit., pp. 113-115. .....
outros tantos fatores que levam filhos e filhas a permanecerem durante ainda contra os filhos, se estes manifestarem uma tendência exagerada a
muito tempo na casa familiar ou voltar a ela. Em certos_ casos, isso con- ficar incrustados. De qualquer forma, eles têm necessidade de encontrar
vém à mãe, para quem o inevitável sacrifício e o penoso.confroind com o imperfeições na mãe, e até mesmo-de odiá-la, para chegarei a se sepa-
ninho vazio são adiados para mais tarde. Em outros casos, ela, que julga- rar; neste caso, será preferível fornecer-lhes verdadeiras razões! Isso fun-
va haver terminado as tarefas domésticas e tinha pressa em encerrar sua ciona de um modo semelhante ao da separação de um casal. Mesmo se o
atividade, é forçada a prolongar indevidamente o tempo de serviço. Na desejo dos dois parceiros é que tudo se faça amigavelmente, em geral
realidade, não existe benefício psicológico em Permanecer por tempo tão acaba sendo necessário brigar para que um se desfaça do outro. Assim, a
longo na função materna ou na função filial. Tal postura prejudica a au- agressividade aparece como uma ajuda natural à tomada de distância en-
tonomia de ambos os lados. tre eles. Eis a razão pela qual, entre outras coisas, as mães não deveriam
Em particular, os filhos têm tendência a ficar adormecidos no confor- considerar trágicas as acusações que lhes são dirigidas pelos filhos no
to de uma situação em que continuam a ter unia empregada às suas or- momento da separação.
dens. Beneficiam-se de uma casa limpa na qual vão encontrar as roupas Com tudo isso, o que devemos, sobretudo, guardar na mente é que a
lavadas e refeições quentes. Acham que tudo isso lhes é devido. Nem boa separação dos territórios psicológicos entre mãe e filho é precisa-
chegam a tomar consciência de que uma pessoa sacrifica suas próprias mente o que, no decorrer do tempo, permitirá que estabeleçam melhores
necessidades para lhes prestar todas essas atenções. À semelhança dos relacionamentos. Em São Paulo, no Brasil, visitei há alguns anos um casal
homens da geração precedente, acabam por pensar que a função de ser- de amigos que tinha construído sua casa no terreno da moradia dos pais
vir é natural para a mulher, que ela é feita para isso. do marido. De fato, as duas casas encontram-se tão perto unia da outra
Nesse momento, importa que a mãe tenha coragem para enfrentar a que são ligadas por um corredor. O preço exorbitante e a escassez dos
família a fim de proceder à distribuição das tarefas domésticas por cada terrenos na cidade justificavam tal proximidade. Quanto a mim, estava
um de seus. membros. Quando não lhe for possível tomar distância do pouco à vontade, porque, como psicanalista, não podia evitar de ver nis-
ponto de vista físico, será urgente fazê-ío do ponto de vista psicológico, so a marca de uni cordão umbilical mal cortado. Finalmente, decidi falar
gerando novos comportamentos no espaço familiar. do assunto ao meu amigo que deu uma gargalhada: "Os norte-americanos
Se os filhos não desejam colaborar na redefinição das tarefas, nem são doidos", disse-me ele, "julgam que se ficarmos perto de nossa mãe, a
fazer sua parte, resta sempre a opção — a mais cruel de todas para nina simbiose continua, ao passo que se morarmos longe dela, o problema fica
mãe — de mandá-los embora. É claro, trata-se de um gesto tabu que resolvido. Entre meus pais e eu, as fronteiras são bem definidas. Apesar
implicará uma parcela de sentimento de Culpa. Mas este, aqui como em da proximidade das casas, eles nunca teriam a coragem de fazer comentá-
outros lugares, é o preço a pagar para que o indivíduo consiga se libertar rios sobre a maneira como organizo minha vida conjugal e também nun-
do jugo da história. ca teriam a ousadia de bater na minha porta sem ligar antes!"
Se as coisas se complicarem a tal ponto que os filhos se tornem frios,
que deixem de falar com a mãe e a utilizem unicamente para lhe surrupiar Quando os filhos 'ião embora
uns trocados, neste caso é bom passar a esponja, ignorá-los e refazer a
própria vida. Quanto. mais apegada ela estiver a tal situação, maior é o Na medida em que uma mulher investiu toda a sua identidade na
risco de que lhe cause sofrimento. É o filho que voltará para a mãe quan- maternidade, acaba sofrendo amargamente por ver o ninho vazio uma
do tiver conseguido uma autonomia suficiente e quando ela tiver encon- vez que os filhos vão deixando a casa familiar. Sente-se abandonada no
trado a mulher que existe dentro de si. No entanto, importa saber que momento em que suas forças declinam e em que teria mais necessidade
isso pode levar alguns anos. É quase sempre na casa dos trinta que, de de apoio daqueles que tanto amou. Prisioneira da função materna, come-
repente, os filhos se lembram que tiveram pais que são também seres ça a viver através dos filhos. Acompanha as peripécias de suas vidas como
humanos. se fossem telefilmes. Perdeu sua própria individualidade. Sua vida foi
A mãe deve lutar sempre para permanecer em contato com a mulher devorada pelo arquétipo.
que existe nela. Deve lutar contra o arquétipo materno, contra o patriar- Creio que devemos acolher nossas mães com compaixão neste desti-
178 179
cado, contra os preconceitos da sociedade, às vezes contra o marido e no que a história lhes traçou, um destino que leva a refletir. No fundo, o
árquétipcique insPira .o maior sacrifício de si deve ser concebido como será verdade-que uma Mãe inonoparental não pode fazer nada em favor
da masculinidade dos filhos. ? JOuaindarformuluda
- um -país no qual fazemos uma estada temporária. Mesmo que tenha nos
• . ..• - de. uma forma -Mais-
alimentado com toda 'a espécie de iguarias, um dia será necessário que persitiva:. o que pode fazer drná .nzãe noparental para ajudar o desen-
nos resignemos a deixá-lo para seguirmos nosso desenvolvimento. Neste volvimento da identidade masculina dos filhos?
caso, trata-se de viver a tristeza, o desespero e a depressão da mãe no fim Antes de tudo, digamos que é verdade que a mãe que cria sozinha os
de -carreira e, em seguida, virar a página para renascer como mulher. filhos tem numerosos paradoxos para resolver. Quando trabalha fora de
Quando os filhos já se encontram fora da casa familiar, no momento casa, diz-se que, em tais condições, não pode ser uma boa mãe; quando
em que a mãe faz o balanço, em vez de se criticar e sentir-se culpada, fica em casa, diz-se 'que deveria, de preferência, ir trabalhar, para que os
deve, de preferência, valorizar tudo o que fez por eles. Quer tenha feito filhos não tenham falta de nada e usufruam dos mesmos bens de que se
demais ou não tenha feito o suficiente, deve respeitar e amar o que reali- beneficiam os outros. Se fica exausta e não tem o cuidado de recuperar as
zou. Ao rememorar todos os sacrifícios que teve de fazer como mãe, será energias, corre o risco de tornar-se permissiva demais ou demasiado rígi-
preferível. que permaneça positiva e indulgente para consigo mesma. A da; deixará cada um agir à sua maneira ou há de impor a todo mundo,
melhor atitude consiste ainda em considerar as dificuldades passadas e incluindo ela própria, limites em demasia e estritos demais. Muitas vezes,
presentes como outras tantas provações que terão servido para se conhe- frustrada em seus desejos e em suas ambições de mulher, ela corre o sério
cer melhor. risco de tornar-se dependente dos filhos para a satisfação das próprias
Finalmente, para reencontrar a mulher que,existe dentro de si, será necessidades afetivas, com todas as conseqüências de que já falei ante-
necessário empreender o caminho dos pequenos prazeres. Qualquer mu- riormente. Neste caso, não é surpreendente que um grande número de
lher detém em si, igualmente, uma alma de criança que tem necessidade mães experimentem muita ansiedade quando se trata da educação dos
de receber autorização para -viver e brincar. AO tomar o caminho dos filhos. Entregam-se com amor e generosidade, mas são muito 'sensíveis
pequenos prazeres cotidianos — aqueles que não custam nada, mas aque- aos pequenos e grandes problemas que Miá cessam de ocorrer. Creio que
cem o coração —, a mulher volta, aos poucos, a se encontrar. O tempo podem ser ajudadas se tomarem as seguintes atitudes.
dos sacrifícios acabou. E chegou o tempo de pensar em si — atividade
que, durante tantos anos, foi proibida pela cultura vigente. Afastar-se de tempos em tempos
A felicidade vivenciada pelo reencontro da mulher é o que permitirá,
Já afirmei que, para desabrochar e conseguir um lugat no mundo, o
com toda a certeza, a retomada dos vínculos com os filhos que se torna-
filho tem necessidade de unia força de caráter que só se adquire na adver-
ram adultos. Eis a melhor via de reconciliação possível.
sidade. Ora, a ausência da mãe — mesmo que se trate apenas de curtas
ausências — representa a primeira provação que ele terá de enfrentar. É
o primeiro fracasso, o primeiro limite imposto a seu sentimento de oni-
Mãe monoparental: potência. No melhor dos mundos, é o pai que, participando do impor-
A quadratura do círculo tante triângulo pai-mãe-filho, impõe à criança esse aprendizado necessá-
rio da frustração. No entanto, a mulher que vive sozinha com os filhos
Pai ausente, filho carente... ?
pode reproduzir, mais ou menos, as mesmas condições — no mínimo, no
Na França; em várias ocasiões, disseram-me que o título de meu pri- que diz respeito à frustração do rapaz —, criando o que a psicanalista
meiro livro — Père manquant, fils man quê — poderia culpar e até mes- Françoise Dolto chama de terceiro simbólico.
mo ofender as mulheres que criam sozinhas os filhos. Parece que, ao Em traços largos, trata-se de uma atividade que permite à mãe sepa-
pretender despertar o senso de responsabilidade nos pais, acabei também rar-se com regularidade da criança durante períodos mais ou menos lon-
por despertar a ansiedade das mães. As questões que me foram formula- gos. Pouco importa que tais ausências sejam motivadas por um emprego,
das por estas mulheres e a inquietação bem real que senti nelas levaram- um passatempo, uma relação amorosa ou um círculo de amigas. O im-
me a elaborar em sua intenção as reflexões seguintes. Em seu aspecto portante é que a satisfação que tira daí lhe permita suportar o sentimento
180 fundamental, essa inquietação poderia expressar-se da seguinte maneira: de culpa associado a tal separação. É claro, tudo é uma questão de equi- 181
líbrio; além disso, é evidente que também pode haver exageros neste
qual importa encorajar e ajudar os-Cônjuges,em conflito na resolução de
aspecto. No entanto, o princípio é sempre o mesmo: nos limites do bom
suas diferenças. Quando isso não for possível, será necessário preveni-los • .
senso e na medida em que- isso permite escapar a todas as Conseqüências
'do perigo que existe.em não resPeitar o amor da criança pelo progenitor
nefastas da fusão mãe-filho, o que é bom para a mulher também é bom
ausente. Mesmo que o pai seja alcoólatra ou criminoso, o filho ama-o, e
para a criança.
a não ser que exista perigo moral ou físico para a criança, convém tentar
Neste aspecto, importa ter em mente que, excetuando a privação da
providenciar uma forma de contato entre os dóis.
presença dos progenitores, a pior coisa para os filhos consiste exatamen-
te em terem sido obrigados a suportá-los demais. Do mesmo modo que o
filho não deveria tentar agradar à mãe a qualquer preço, é extremamente Prestar atenção à maneira como se fala do pai
importante que a mãe não tente ser perfeita em tudo. "Devo confessar A importância que deve ser dada à maneira como se fala do pai, a
honestamente que fico feliz quando ele vai ao encontro do pai", confiou- importância das qualidades que lhe são reconhecidas e dos nomes que
me uma mãe depois de unia discussão sobre as relações que mantinha lhe são atribuídos quando não está presente, tudo isso sobressai, com
com o filho. Nessa confissão, seu coração de mulher recomeçara a ba- toda a evidência, nos estudos empreendidos com filhos de viúvas! Foi
ter... e o filho não ficava no prejuízo, muito pelo contrário! constatado que tais crianças, que tinham conhecido pouco o pai e cujas
máes não chegaram a contrair segundas núpcias, eram mais bem-sucedi-
Deixar o filho assemelhar-se ao pai dos do que aquelas que tinham sido abandonados pelo pai. Isso explica-
se facilmente: as viúvas têm tendência a idealizar o marido falecido e a
Sabe-se que as chanças têm necessidade de cuidados maternos e pa- lembrar-se apenas das boas coisas. "Quando seu pai ainda era vivo... ",
ternos. O masculino constrói-se com o masculino, assim como o femini- começam elas, e vão compondo assim, com pequenos toques, uma ima-
no com o feminino. Portanto, importa ter a certeza de que as crianças gem positiva do pai que acabará sendo adotada pelo filho. Na realidade,
mantêm um número suficiente de interações com pessoas significativas este não tem pai, mas sente-se amparado e acompanhado Por uma figura
dos dois sexos. No entanto, pode acontecer que, sob o choque da separa-
interior que lhe dá sua legitimidade.
ção, a mãe prefira manter o filho separado do pai biológico ou de outras•
Um órfão de pai nascido em uma pequena aldeia contava que sempre
fontes de influência masculina que seriam necessárias para o desenvolvi-
tinha ouvido falar bem do genitor e sentia nisso um grande orgulho. Ape-
mento de sua própria identidade de homem. Tal postura não é benéfica e
sar de ter se divorciado, esse homem nunca teve dificuldades em ser pai e
mostra as duas mais importantes necessidades desta mulher: resolver os
suas duas filhinhas nunca deixaram de ser uma prioridade - em sua vida. •
problemas com o ex-cônjuge, é claro, na medida em que isso for possível, Portanto, a estima mútua de dois ex-cônjuges desempenha um papel
e analisar como foi sua vida com o próprio pai. Simplesmente porque,
fundamental na elaboração de imagens positivas femininas e masculinas,
enquanto não tiver resolvido seus problemas com esses homens, tenderá
a partir das quais a criança construirá sua própria identidade. Com efei-
a reprimir no filho os comportamentos e tendências que lhe fazem lem-
to, os dois progenitores, mesmo separados, continuam a formar um casal •
brar todos aqueles que amou e já não ama. Em outras palavras, terá difi-
na mente da criança, e é a partir desse casal que ela baseia as noções de
culdades para deixar o filho assemelhar-se ao pai ou ao avô, o que é, no
unidade, colaboração e complementaridade que hão de servir-lhe de re-
entanto, inevitável: está inscrito nos genes, como se diz.
ferência durante toda a vida. Para os filhos, não é tanto o divórcio que é
Para a criança, tal atitude pode implicar conseqüências graves. Por
catastrófico, mas o que os pais fazem da separação. O respeito mútuo
exemplo, a mãe que denigre abertamente o pai (e vice-versa), colocará o
continua sendo o melhor guia de comportamento.
filho em um verdadeiro conflito de lealdade. Ele acabará manifestando
determinada atitude com a mãe e uma outra com o pai, comportamento
que traduz bem sua profunda divisão interior e augura um futuro nada
risonho. Mas se a criança se der conta de que, apesar de separados, os
pais podem colaborar, de que persiste uma forma de amor e de amizade 2. Ver Henry B. Biller. "Fatherbood: Implications for child and adult clevelopment". In Benjamin B.
182 para além da ruptura, tal atmosfera irá tranqüilizá-la. Eis a razão pela Wolman (sob a direção de). Handbook of Developmental Psychology. Englewood Cliffs, N. J.:
183
Prentice-Hall, 1982, p. 709.
Antes de tudo, pensar no bem-estar dos filhos lhor será seu comportamento, assim como o dos filhos. Sentir-se-á mais
_ - livre para' adotar modelos de educação e colaboração mais be.m:adapta;.
- Quando os pais dispõem-se a colaborar, parece ser des
- ejável a gtiarda
dos à própria situação, mesmo se não tiverem nada a ver com o que se
compartilhada, segundo toda a espécie de fórmulas pelas quais importa
fazia na época, em seu meio de origem.
privilegiar o bem-estar dos filhos. Quando não houver meio de chegarem
A mãe deve permanecer em contato consigo mesma, fazer as coisas à
a um acordo, é preferível que seja confiada a guarda exclusiva a um dos
sua própria maneira. Não deverá deixar-se influenciar pelos palpites, seja
dois, para evitar que os filhos se tornem reféns dessa guerra de amor. A
lá de quem for que pretenda ditar-lhe uma linha de conduta em relação
grande psicanalista infantil..Française Dolto chegava mesmo a aconselhar
aos filhos ou ao ex-cônjuge. Em outras palavras, não deve deixar passar a F
que, nesses casos, os meninos ficassem com o pai, enquanto as meninas
fossem confiadas à mãe, a fim de garantir a formação da identidade sexu- honra ou o orgulho da família à frente do bem-estar das crianças.
al que se apóia na relação com o progenitor do mesmo sexo. Convém
acrescentar que se os direitos de guarda puderem permanecer flexíveis Ter confiança nos filhos
no decorrer dos anos,. e se os pais separados puderem morar na proximi-
Em vez de tentar colmatar todas as brechas à medida que aparecem, é
dade um do outro, tal situação irá facilitar enormemente as coisas para os
filhos. preferível dizer francamente o que não está bem e deixar os filhos encon-
trarem soluções para os próprios problemas. Eles vivem melhor com uma
Ao terem a garantia de contar com o -amor dos pais, eles conseguem
frustração consciente do que com o não-dito, porque a frustração é fonte
'desabrochar até mesmo em. situações muito delicadas, Conheci uma me-
de criatividade. O exemplo seguinte resume o que acabamos de dizer.
nina de dez anos que tinha deixado o pai biológico aos três; acompanha-
Trata-se do testemunho de uma viúva de setenta anos que foi obrigada a
ra a mãe, que mais tarde morou com outro cônjuge durante cinco anos; e
criar sozinha três filhos.
agora, vivia .sozinha com ela. Em minha opinião, tornou-se um modelo
de sensibilidade e criatividade. Estabelecia relações com facilidade, mas
'Quando meu marido faleceu, o mais velho de meus três filhos tinha treze anos e
sem complacência. Tinha desenvolvido uma grande autonomia; além disso,
o caçula seis. O choque foi terrível. De um dia para outro, tive de começar a
parece não ter ficado conturbada com todas as atribulações de um casal
trabalhar fiara garantir a subsistência da família. Estava bem consciente da falta
para outro, de um pai para outro. Qual teria sido o segredo? O amor do do pai para a educação dos meninos; então, tomei as seguintes medidas. Em um
pai biológico e do padrasto. Os dois disputavam, literalmente, a menina. primeiro tempo, fiz o inventário dos homens da minha família e da família de
Ela sentia-se amada e desejada. Era bem-vinda e sentia-se à vontade por meu marido que poderiam desempenhar um papel de substituto junto de cada
toda parte em que estivesse. A colaboração entre a mãe e os ex-compa- uma das crianças. Não lhes pedia uma presença prolongada do ponto de vista
nheiros era exemplar. Parecia que cada um se tinha adaptado bem à situa- quantitativo, mas que esta se mantivesse constante no decorrer do tempo. Foi
ção, além de terem eleito o bem-estar da criança como única prioridade.' assim que cada uma das crianças teve uma espécie de tutor que, de tempos em
Esta nunca se sentiu rejeitada ou responsável pelas separações da mãe. tempos, chamava o protegido para participar de uma atividade agradável.
Pelo contrário, sabia que era amada por todos; eis a fonte de sua grande Disse a-meus filhos: "Seu pai faleceu e vocês precisam de um pai; neste caso,
confiança. devem encontrar homens que possam desempenhar esse papel!" Em vez de ter
medo da pado filia, comecei a encorajar os vínculos que eles estabeleciam com
professores, treinadores ou homens mais velhos. Tentei amparar o melhor pos-
Fazer as coisas à própria maneira
sível as amizades masculinas deles e sua participação em grupos organizados,
Algumas pesquisas mostram-nos, igualmente, que a independência de como escoteiros ou clubes de beisebol do bairro. Em suma, acho que tudo isso
espírito da mãe monoparental — sobretudo em relação ao meio no qual funcionou muito bem. Atualmente, meus três filhos estão casados e ganham
bem a vida.
cresceu — constitui um fator de sucesso na educação dos filhos.' Quanto
menos obrigação sentir em fazer as coisas como a mãe fazia, tanto me-
A genialidade desta mulher consistiu em não ter tratado os filhos como
se fossem matéria morta, assumindo sozinha todas as responsabilidades.
184
3. Cari Gustav Jung. Les Ratines ele Ia consciente. op. cit., p. 106. Estava consciente da falta fundamental de que padeciam, mas tinha con- 185
fiança na capacidade deles para preencherem por si mesmos o vazio cau- _
repente, lhe tivessem tirado sua identidade. Não compreendia que pudesse ter
sado pela ausência do pai. Também conseguiu superar o medo bem com- cometido alguns erros no exercício de seu papel materno; ainda pior, .o.que.ficou
preensível de que Iheá acontecesse algo de lamentável, O que era outra percebendo é que cr.a uma má pes. soa.
prova de confiança nos filhos e no destino. Em outras palavras, ela não Nos meses seguintes, a pobre mãe julgou que iria endoidecer. Sentia-se julgada.
quis que, por culpa de seus próprios temores, o meio familiar ficasse Um tribunal estava reunido em seu foro íntimo e repetia-lhe, de forma obsessiva,
confinado em si mesmo. que não tinha sido uma boa mãe. Então, desligou-se do filho, erguendo entre eles
Em toda coisa e em todas as circunstâncias, importa procurar a atitu- um muro de silêncio. A situação perdurou até que ele conseguiu persuadi-la de
de adequada. Convém ser sensível ao sofrimento da criança e, simulta- que o confronto não tinha intenção de causar-lhe sofrimento, mas de restabelecer
com ela uma relação mais autêntica. Esse argumento inspirou-lhe confiança e os
neamente, deixar-lhe o tempo de viver sua frustração e a possibilidade de
vínculos desfeitos entre os dois foram reparados.
satisfazer sozinha suas próprias necessidades de uma forma criativa. Por
No ano seguinte, a mãe ficou doente e teve de ser hospitalizada. O filho foi
último, importa que a mãe se lembre da mulher que existe em si, dan-
visitá-la, ficando à cabeceira da cama e segurando-lhe a mão frágil. Ele sentia o
do-lhe também a possibilidade de satisfazer suas necessidades, de per-
corpo ser percorrido por grandes vagas de amor e de emoção. Desejava a mãe
manecer viva, apesar das exigências da tarefa materna. Os filhos nem com vida. Estava cheio de alegria por sentir tanto amor por esse ser que lhe tinha
sempre seguem os conselhos dos pais, mas nunca esquecem o exemplo dado a vida. Nesse momento, ficou sabendo que não tinha sido inútil o período
de uma mãe corajosa que tenha permanecido jovem de coração e plena sinistro que a família tinha atravessado por sua causa. Pela primeira vez, ao fim
de vitalidade. de muitos anos, experimentava conscientemente um sentimento de amor pela
. mãe. Finalmente podia amá-la. Sua afeição já não se encontrava prisioneira do
ressentimento que até então tinha experimentado.
fit reconciliação Eu quis saber se ele teria visitado a mãe mesmo se não tivessem conversado
antes. Sua resposta foi afirmativa, mas nesse caso a visita teria sido feita por
O tempo da reconciliação entre mãe e filho começa, freqüentemente, dever, como bom filho que deve amar a mamãe. Ao passo que, agora, tinha toma-
com a distribuição de acusações, que dificilmente a mãe chega a enten- do a decisão por amor e com o objetivo, sincero de restituir um pouco de afeição
der. Identificada há muito tempo com a função materna, ela sente neces- àquela que tinha feito tanto por ele.
sidade de cultivar a imagem da boa mãe porque é tudo o que lhe Festa.
Não compreende que tais acusações, longe de serem uma espécie de Diante da eloqüência deste testemunho, só me resta encorajar mães e
ajuste de contas, representam o início -da aproximação. Importa que a filhos a erguerem o véu do passado a fim de viverem melhor os dias que
raiva se manifeste de uma vez por todas, a fim de que o amor e a afeição lhes restam na vida. Não se trata de se deixar dominar por acusações sem
verdadeiros possam retomar seus direitos. fim, mas de reservar um espaço em que cada um possa contar a própria
história, sentindo-se escutado e respeitado. Mãe e filho não têm de che-
Acompanhei, em sessões de terapia, um homem na casa dos quarenta cuja princi- gar a um acordo em relação a uma história comum. Importa simplesmen-
pal lembrança da infância era ter sido espancado pela mãe. Um dia, resolveu te que tentem compreender-se, sem qualquer julgamento.
falar com ela a respeito desse acontecimento. Então, ela afirmou que não se Um grande número de adultos sentem repugnância por incomodar
lembrava de ter erguido a mão contra ele. O filho revoltou-se e tentou apontar desta forma a aposentadoria dos pais com medo de machucá-los. Repito-
situações bem determinadas. Nesse momento do confronto, ela começou a cho- lhes incansavelmente que se coloquem, por um instante, no lugar deles,
rar, acusando-o de louco e malvado, afirmando que tudo o que fizera tinha sido que não compreendem a razão pela qual os filhos tomaram distância e
por seu bem. Refugiou-se, então, em um sofrimento impenetrável pontuado por acabaram por cortar as pontes. Não seria preferível que cada um fizesse
profundos soluços.
ouvir sua verdade para que o relacionamento, em vez de se extinguir aos
Meu paciente compreendeu que, por trás da mãe já não havia mulher, ou seja,
poucos na indiferença e nas cortesias de costume, pudesse renascer das
ela tinha investido tanto em sua função materna que acabara perdendo de vista a
cinzas? Eis a resposta que um dia ouvi um colega meu dar a um paciente
pessoa que era. Daí em diante, sua identidade pessoal confundia-se com sua
que, ao agir desta forma, temia colocar, literalmente, os pais na cova:
função familiar. Ela não conseguia lembrar-se do que se tinha passado porque
186 isso teria sido ameaçador demais para seu equilíbrio psicológico. Era como se, de
"Em vez de matá-los, você lhes dará mais dez anos de vida, na medida em
187
que irá libertá-los do peso do passado."
_
De que maneira esperamos encontrar solução para os problemas mun-
diais se não ternos coragem de falar com aqueles que nos- &rani- a vida?
.
De que maneira poderemos pensar rep-arar o tecido social e familiar se
não temos a ousadia de abordar o que não foi dito, o que não podia ser
dito durante a infância? Tendo feito a experiência de um diálogo franco
com meus pais, acabei constatando o quanto isso foi libertador para mim.
Deixei de ter medo das pessoas que são mais velhas do que eu, chego O Amor no Sofrimento
mesmo a apreciar sua companhia. Consigo usufruir de uma energia mais
profunda, porque já não me sinto em ruptura com aqueles e aquelas que
me precederam. Sei que, na medida dos meus meios, continuo simples-
Quando se ama, já não se faz diferença
mente o caminho iniciado há 30.000 anos com a chegada dos primeiros entre morder ou beijar.
humanos na Terra. Assim, reencontrei meus pais e o sentido da minha HEINTUCH VON KLENT
própria história.

'Ela e Ele em maus. lençóis


O reino das repetições
. Eis-nos chegados às relações homtm-mulher, principal objetivo desta
obra. Como já expliquei desde o início, os impasses do presente são am-
plamente explicados pelos do passado, urna vez que simplesmente vol-.
tam a representar-se no momento das relações afetivas.
Creio que Incansavelmente repetiremos o meSmo tipo de relaciona-
mento enquanto não colocarmos em evidência a figura simbólica que se
encontra por trás de todas as repetições e acaba por nos bloquear. A lição
é sempre a mesma: importa ganhar o direito de sermos nós mesmos,
tendo a ousadia de enfrentar o "monstro" paterno ou materno.
A maior parte dos seres humanos experimentam dificuldades para
sentir, validar e expressar suas necessidades reais com medo de serem
julgados ou ridicularizados. Toda a espécie de complicações interiores
impedem tais seres de irem à procura do que é bom para eles; ora, antes
de tudo, isso acontece em relação à escolha dos parceiros amorosos. Aliás,
não seria possível fazer qualquer julgamento a respeito desses relaciona-
mentos. Quem poderá dizer de que tipo de parceiro um homem ou uma
mulher têm necessidade para chegar a conhecer-se melhor e enfrentar o
que jaz no fundo de seu inconsciente? Portanto, vamos verificar a ampli-
tude dessas repetições no terreno da vida conjugal, conservando na men-
te que elas Constituem outras tantas ocasiões de tomar consciência das
dinâmicas inconscientes que estão em jogo.

188 189
Viver a dois não é uma obrigação de qualquer forma, será necessário agir; caso. contrário, do jeito como as
coisas estão... enfim, prefere
. , •- .•nem pensar no assunto. Ele ainda estimo
Parece ser necessário dizer uma- palaVrinha-.de• advertência.-A, idea- _ •• .
- banheiro quando viacê vai para o quarto. Você tecorda-se vagamente das
lização da vida a dois pode tornar-se 'tirânica:. assim, devemos manter
palavras da amiga que lhe dizia que, nas situações desesperadas, pode-se
nossas distâncias em relação a tal vida a fim de podermos falar franca-
sempre apelar para a lingerie preta e a vodca. Esta noite, você não está
mente a seu respeito sem termos a impressão de cometer um crime de
muito a fim de vodca, mas quanto à lingerie preta, por que não tentar?
lesa-majestade. Com efeito, parece-nos impossível defender uma posição
O sutiã de renda e as ligas têm o dom de levá-lo a perder a cabeça'.
no que concerne à vida amorosa se, em primeiro lugar, não tivermos
recuado um passo para poder analisar a situação com a necessária pers-
pectiva. Apesar de admitirmos a importância fundamental da vida a dois Ele
na sociedade, não devemos transformá-la em algo de absoluto. Existem Você entra no quarto. Dir-se-ia que ela já está dormindo. Melhor
indivíduos que conseguem alcançar a felicidade e a plenitude vivendo assim, porque você já não tem cabeça seja lá para o que for, ainda me- .
sozinhos, mantendo relações pontuais, sejam heterossexuais ou homos- nos para as intermináveis discussões na cama que agradam tanto a ela.
sexuais, ou ainda evitando qualquer tipo de sexualidade. Chama isso de intimidade. Tudo bem! Em termos de intimidade, ela
Se consideramos verdadeira a idéia segundo a qual na sociedade só pode ficar à espera... Você apaga a luze, debaixo dos lençóis, suas mãos
'deveriam existir casais heterossexuais, fiéis ,do ponto de vista sexual e nãO acreditam no que estão descobrindo. Ah! a moleca está com as ligas
comprometidos para toda a vida, também deveríamos deixar de falar das e o sutiã de renda. Mesmo se você finge não tocar nela, seu coração já
dificuldades da vida a dois; com efeito, as 'provações da vida a dois só têm está batendo um pouco mais forte do que antes. Chega mesmo a sentir
sentido se conduzirem cada parceiCo a uni questionamento.que inclua a o despontar da ereção. Você aproxima-se e aperta em seus braços o
sexualidade e modo de vida. Não se deve fazer da vida conjugal uma corpo dela bem quente. Suas preocupações já se desvaneceram. Ela re-
condição essencial da existência, porque essa postura equivaleria a consi- siste ao seu abraço, mas, por fim, aceita seu beijo e pede-lhe para acen-
derar como "anormais" todos aqueles e aquelas que não consegucm adap- der uma vela. Ela tenta representar um pouco as virgens inexpugnáveis
tar-se bem a ela. E não são raros. - e você deve confessar que isso funciona sempre. Gosta do fato de que
Na realidade, o modelo da vida a dois não convém a todo mundo, ela nunca se deixe conquistar totalmente, como se fosse sempre a pri-
embora quase todos tentem a sua chance com maior ou menor sucesso.
meira vez.
Acontece que já não temos os conventos e os monastérios para justificar
vidas sem parceiro! Diante de tal estado de fato, seria mais vantajoso,
talvez, falar da vida conjugal, do celibato, da homossexualidade e até Ela
mesmo do "don juanismo" como se fossem vocações, ou seja, de apelos Você. sente as mãos dele apalparem seu corpo, isso lhe inspira con-
da"alma que, por meio de tais formas de vida, procura sua expressão mais fiança. Seu pequeno estratagema está funcionando. Aos poucos, você vai
adequada. Isso nos evitaria pronunciar um julgamento a respeito de tudo, ficando descontraída. No fundo, não era assim tão difícil: um par de
condenar tudo e... explicar tudo. meias-arrastão e pronto! As mãos dele percorrem seu corpo e você sente
Feita tal advertência, comecemos nossa reflexão fazendo unia visitinha vontade de aninhar-se nele. Você o sente nas suas costas todo vibrante e
a Ela e a Ele. Vamos encontrá-los no quarto de dormir, depois de um excitado. Esfrega-se nele e abandona-se com volúpia. O problema é que
princípio de noite um tanto difícil... ele já está concentrado em seu sexo.e em seus seios. Já está beliscando a
ponta dos seios, mas você ainda não se sente pronta. Mesmo assim, tenta
Ela entrar no jogo. Quanto maior é a excitação dele, mais desligada você
está. Depois de um certo tempo, a situação começa francamente a enervá-
Bom! Você não pode dizer que a noite esteja decorrendo da melhor
la. Cresce o sentimento de que é um objeto, um brinquedo que serve
forma. Depois da altercação do fim da tarde, tanto você como Ele fica-
190 apenas para lhe dar prazer. 191
ram muito tensos. Você está triste. Está comentando para si mesma que,
Ele sa! minhaprincesa!", tudo isso lhe parece cada vez mais grotesco. Se você
não o interromper agora, daquji,a cinco minutos. terá a impressão de ter-
_ _"Tudo estava indo tão bem. Estava tão excitante: Só faltava que ela sido vítima de MO eituPro. —
começasse a complicar as coisas: "Faça-me carícias! Faça-me carícias nas
De uma vez só, você se levanta e acende a luz. Com um tom que
costas, nas pernas, nos ombros, em todo o corpo! Tenho necessidade de
não admite réplica, declara: "Não quero que volte a me chamar 'minha
um pouco de ternura. Tenho necessidade de um pouco de romantismo."
princesa'!"
Romantismo! Eis que ela acaba de soltar o palavrão. Acha sempre que
você não é suficientemente romântico, que vai rápido demais ao negócio.
Seu orgulho de macho acaba de s-er atingido de frente. Na verdade, você Ele
não consegue compreender o romantismo dela. Quando você está verda- Ah! Isso é o cúmulo! No mesmo tom, você lhe responde que não só
deiramente a fim dela, é apenas "sexo"; e quando não está, ela acha que deixará de haver "meu tesouro", mas também deixará de haver cochi-
existe um "problema" no relacionamento. Num dia destes, depois de ter chos. Você está farto de ser aquele que está sempre à disposição. Ela
tomado todas em uma festa na casa de amigos, você tentou abraçá-la ao nunca toma a iniciativa de fazer carícias. Nunca propõe fazer amor. Tem
luar, antes de entrar no cario. Para yocê, não havia nada de mais român- de ser sempre você. Agora basta! Daqui em diante, ela é que terá de dar
tico do que isso. É evidente que você não queria fazer amor na rua, mas os primeiros passos. Ela é que deverá adivinhar qual é seu desejo. Ou ela
tratava-se simplesmente de brincar de adolescentes. E, ainda aí, acabou julga que é assim to fácil ser continuamente rejeitado e ter de voltar
•ouvindo que não pensa senão naquilo. No dia seguinte, ela-se .desculpou sempre à carga? Tudo bem! Você vai tirar férias do erotismo, férias do
dizendo que estava simplesmente preocupada com o trabalho. Mas você romantismo, férias de tudo. Agora, compete a ela organizar a viagem.
está cada vez mais confuso. Será que Ser romântico significa que você Você está no meio dessas reflexões e, de repente, tem a impressão de
nunca deveria ter, ereção ao abraçá-la? No entanto, simplesMente você ouvir dentro de si a voz de seu pai. Você tem vontade de berrar, pois a
não eleito desse jeito; além disso, será necessário que, um. dia, ela com- cena faz pensar demais em um casal velho: a mesma tensão, o mesmo
preenda isso. Xingando, você lhe vira as costas e apaga a vela- silêncio, o mesmo problema. A mesma fadiga da mulher, ou seja, de sua
mãe, e os- mesmos desejos insatisfeitos de seu pai, CQ1110 é costume ocor-
Ela rer com você. Será que isso é verdadeiramente pOsSível? Depois de uma
" revolução sexual..: é sempre a mesma coisa." Você se cala e apaga a luz.
Uma vez mais, eis que estamos em maus lençóis! É caso para dizê-lo. Você procura a mão dela na escuridão, mas ela se esquiva. Agora, está
Você tentou ajeitar as coisas que acabaram por ficar piores. Você sente-se toda retesada. Com _certeza, suas palavras machucaram-na. E você fica
ridícula com o sutiã e as ligas, e tira tudo com gestos bruscos, para inco- assim, com os olhos abertos na escuridão, incapaz de dizer qualquer coi-
modá-lo o mais possível. Mas será; então, que é difícil compreender que sa, esperando que o ternpo passe.
você gosta de ternura? Será, portanto, tão difícil compreender que gosta
de ser conquistada lentamente, de ser desejada, de ser adivinhada? Não é
Ela
que você evite fazer amor, mas é a maneira de fazê-lo. Tudo está na ma-
neira. O sexo pelo sexo não lhe interessa. Mas o sexo com carícias e Você sabe que ele está aí, com os olhos abertos, na escuridão. Sabe
palavras meigas, uau! Que coisa gostosa! que ele está à sua procura, para se consolar. Mas não pode fazer nada, tão
Ah, vejam só! Está repetindo a mesma coisa! Os homens não têm grande é o sentimento de que é incompreendida. Você tem a impressão
orgulho. Uma vez que ficam excitados, já não sabem se controlar. Ei-lo de se doar demais. Faz tudo por ele, para que sua vida seja agradável.
de novo acariciando seus seios. Francamente, nunca chegará a compre- Você está à escuta de todas as suas necessidades. Será que ele não poderia
ender seja lá o que for. Mesmo assim, não tem cabimento que você apre- aproximar-se de você com um pouco de doçura? Será que isso é pedir
sente queixa por assédio sexual contra seu companheiro! Você deixa que demais?
ele continue, mas está completamente desligada. Esse corpo que se esfre- Você ouve sua mãe suspirar: "Os homens são todos uns porcos!" Você
192 193
..... ga no seu, essa voz ofegante que lhe diz maquinalmente: "Minha prince- ainda não chegou nesse ponto, mas não está longe. Será que isso vai ....
durar muito tempo desse jeito? Será para você, como foi para ela, uma ça estupidamente'a acusá-la de todos os males da terra. E ela lhe explica
longa expectativa sem outra saída senão conformar-se
.- com a situação? que isso não é comunicar, que entre dois seres responsáveis.,.
_fiso seita estúpido dem- ais. Com a Morte na alma, voa diz para si mesma ElaS dirige-se a Ele,e de fiea irritado. Ela vira-lhe as costas, ele vai à
que não há nada grave. Mas o que existe entre vocês é tão pesado... Dir- sua procura. E procura mantê-la a distância, Mas se ela ameaça ir embo-
se-ia que nunca estão, ao mesmo tempo, no mesmo lugar. ra, a retém. Fuja de mim e eu seguirei você! Siga-me e eu fugirei de
você! Entre eles, a distância permanece sempre igual. Nunca chegam a
Fuja de mim e eu seguirei você! Siga-me e eu fugirei de você!l* se encontrar.
Fazem tudo o que lhes é possível para manter tal distância porque, no
Eu sei, eu sei... Pensavam que isso só acontecia com vocês! Lamento nível do inconsciente, estão demasiado misturados um ao outro. A rede
muito por essa decepção... Isso acontece por toda parte! Até mesmo quan- das projeções e das expectativas que tecem entre si, sem saberem, impede
do se trata de dois homens ou de duas mulheres. Há sempre o sexual e o unia verdadeira comunicação. Seus territórios estão confundidos e aí re-
romântico. E isso é verdade! O exemplo assemelha-se tanto à situação side a 'razão da guerra. Não lutam somente para saber "quem é que serve
vivenciada por papai e mamãe. e quem é servido", mas para saber "quem é quem".
Eu sei, eu sei... Existe também outro cenário. Ele é completamente Com razão, seríamos tentados a dizer, com efeito, que para romper
gentil, meigo, enrosca-se em você como um meninb se enrosca na mãe. com a herança histórica e chegar a formar um casal em que as duas indi-
Recebe suas carícias, mas a ereção não vem. Nunca vem. Você tem a vidualidades possam existir, cada um deve diferenciar-se e tomar cons-
impressão de que a causa está em seu corpo, que envelheceu, mas na ciência de si mesmo. As fricções da vida a dois oferecem, assim, uma
realidade, mesmo que você fosse uma tO-model, a situação não seria oportunidade por excelência para essa tomada de consciência.
melhor. A verdade é que você lhe mete medo e ele nem sabe muito bem o Vista do prisma positivo de uma busca de diferenças que permitirá uma
motivo. melhor comunhão, essa guerra pode, portanto, ser interpretada como um
Eu sei, eu sei... Existe até mesmo este cenário. Entre você e Ela, no combate em favor do amor. Ela está a serviço da igualdade e da
plano sexual, o relacionamento funciona bem. O problema é que, para complementaridade entreEla e Ele. Mas é verdade que pode também mantê-
além disso, nada mais funciona. Você toma a iniciativa de fazer carícias. los coMpletamente afastados se os dois não chegarem a conter a tensão.
Por sua vez, ela faz o mesmo. Você inventa pequenos truques excitantes e - Essencialmente, essas fricções remetem cada uni ao que o outro pro-
ela propõe. a.S mesmas coisas. Ela até que gosta de se vestir e se despir voca em si. Aí começa o conhecimento de nós mesmos. Com efeito, nos-
para você. Não é aí que o sapato aperta. Sempre que você quer resolver sas reações não pertencem a outrem, elas são nossas. Independentemente
um problema, existe um impasse no plano da comunicação. Se tem a de serem negativas ou positivas, as emoções, os pensamentos, até mesmo
infelicidade de fazer uma observação, ela sente-se imediatamente ataca- as sensações que nossos parceiros estimulam em nós revelam o que so-
da. Sente-se culpada e fecha-se. Ou ainda, acusa você e arrasa-o com mos, o que ignorávamos. Esse conhecimento de si prepara o terreno para
críticas. Você já não está diante de uma mulher, mas diante de uma meni- a comunhão consciente-no amor em que cada um abandona suas armas e
na. Por mais que você lhe explique a maneira como funciona a comunica- poderes para experimentar a Unidade.
ção entre dois seres responsáveis, por mais que lhe diga que basta ser um Portanto, mergulhemos nesse mundo de repetições que, bem com-
pouco racional, um pouco lógico, um pouco coerente consigo mesmo, tal preendidas, podem permitir o conhecimento de nós mesmos e da vida.
atitude não leva a nenhuma mudança. Então, escorado em sua grande
sabedoria, em seus diplomas e conhecimentos de psicologia, você come-
O medo do compromisso
I. A expressão é da psicóloga de relações humanas Tine Corneau. Nunca faça sua parceira chorar!
* No original: Fuis-moi, je te suis! Suis-moi, je te fuis!, impossível reproduzir a força evocativa do
original, em particular, da utilização dos pronomes pessoais moi, je, te; além disso, assinale-se Em virtude do desequilíbrio no triângulo pai-mãe-filho, os dois últi-
que a forma verbal suis — respectivamente, 1, pessoa do presente do indicativo e 2, pessoa do
singular do imperativo presente de sitieis, seguir — corresponde também à 1, pessoa do presente
mos são levados a viver um casamento simbólico que, no futuro, tornará
do indicativo de etre, significando, neste caso, "sou". (N.T.) perigoso o relacionamento do filho com uma mulher. Para tal filho, as 195
primeiras uniões servem simplesmente para desmistificar a fira mater- o território doméstico e afetivo, o que implica uma perda de vitalidade
na.'É evidente que—uma grande parte dessas complicações poderia .ser na vida do casal. - ,
evitada se o pai tivesse tomado seu lugar de cônjuge junto a -esposa e Por -ocasião de uma sessão de terapia, ouvi um "menino bonzinho"
tivesse prestado ao filho a atenção de que este necessitava. Mas, como refletir em voz alta sobre a dificuldade de se separar da mulher, apesar de
esse não foi o caso, o filho anda às voltas com um complexo materno ter uma amante há vários anos. Ele dizia: "Creio que só poderei separar-
que, inconscientemente, o devora; além disso, irá projetá-lo sobre a com- me quando estiver convencido de que ela poderá perdoar-me." Ele teria
panheira. Tal projeção provoca automaticamente a repetição do passado, desejado que a parceira absolvesse, de antemão, o golpe que lhe seria
porque ele começará a agir com a companheira como se esta fosse sua mãe. infligido pelo divórcio. Ele privilegiava urna situação-ambígua com medo
Na realidade, raros são os homens que venceram seu dragão mater- de ferir o outro. Na realidade, sob o pretexto de proteger a companheira,
no. Aliás, encontramos os vestígios da influência do complexo materno ele protegia a si mesmo; preservava a própria imagem. Não queria ser o
negativo na queixa, quase universal, apresentada pelos homens: "Sinto- malvado, o carrasco, aquele por quem chega a infelicidade. Assim, havia
me asfixiado pela minha companheira!" Ao ouvi-los, temos a impressão tolerado vários anos de vida conjugal insatisfatória por causa do medo de
de que todos sofrem da síndrome da corda no pescoço. enfrentar seu dragão materno.
Mais bem conhecida pelo nome de medo do compromisso, tal A frustração de suas necessidades de afirmação e de autonomia impli-
.síndrome repousa no sacrifício 'das necessidades de afirmação e de auto- ca também conseqüências para Ele. Vemos freqüentemente os "meninos
nomia, na interdição de expressar sentimentos negativos e na repressão bonzinhos" serem subjugados por surtos de agressividade. O poder de
da sexualidade — fenômenos que. ocorreram durante a infância. Os ele- expressão reprimido manifesta-se, então, em sua forma negativa e des-
mentos desse contrato tácito entre mãê e filho são transpostos, quase truidora. A cólera pode explodir a qualquer momento, por ocasião de-
sempre, integralmente para a vida a dois. uma observação incongruente, ou ainda se o indivíduo bebeu um copo a
Cdmo disse anteriormente, um grande número de homens não con- mais no decorrer do jantar. Neste caso, torna o outro responsável por sua
seguem vencer o complexo materno e permanecem enredados nas ma- própria impotência. Assim, desembaraça-se da pressão interior, mas nos
lhas do sentimento de culpa. Seu poder
• de afirmação encontra-se inibido piores casos acaba por estragar a vida de todas as pessoas mais prOximas.
nessa mesma proporção. Para eles, "Nunca faça chorar sua mãe!" torna- Apesar de se sentir culpado por suas raivas, -Ele não compreende a
se "Nunca faça chorar sua companheira!". Esse medo de fazer chorar a razão profunda de sua atitude. Não compreende que o inconsciente pro-
companheira, o medo de dizer "não" àquela que amamos tem, no entan- cura quebrar, desta forma, o statu quo estabelecido artificialmente pelo
to, um efeito muito perverso. Com efeito, o indivíduo que é incapaz de ego. Não compreende a importância psíquica de tais manifestações de
afirmar sua resistência também não é capaz de se abrir e dizer "sim". mau humor. Não ouve a voz de sua anima criadora que procura fazer.
Quando um homem, como Ele, sente dificuldades em tomar seu lugar na com que abandone a melancolia para arrastá-lo em direção a uma real
relação amorosa, quando tem o costume de se anular, supostamente para . . vitalidade. Limita-se a pedir desculpas por seus exageros para voltar a
dar prazer à companheira e não lhe causar desgosto, esta acabará por se fazer o mesmo na primeira ocasião. Tal situação não poderia ser resolvi-
sentir extremamente sozinha. da sem que ele entre em contato consigo mesmo e deixe de julgar o que
Com medo de desagradar, ele se superadapta. Presta serviço à parcei- se passa em si. Aqui, já não se trata de dar prazer à mãe, mas de dar prazer
ra como prestaria serviço à mãe. Tudo isso com o objetivo de torná-la à sua alma em busca de uma expressão mais completa.
feliz e obter dela um sorriso. De tal modo que, às vezes, Ela vai fazer Às vezes, Ele consegue sufocar o medo de desagradar e a agressividade
terapia para se queixar: "Oh! ele é muito gentil, põe o lixo na rua, prepa- refugiando-se no silêncio. Se eu lhe perguntasse o motivo pelo qual é tão
ra as refeições. De tempos em tempos, chora. Mas sinto-me abandona- difícil falar no âmbito de sua relação mais íntima, ele poderia muitíssimo
da!" Se fosse mais ousada, acrescentaria: "Tenho a impressão de que não bem acabar por me dizer que tem vergonha do que sente. Tem vergonha
tem colhões!". de sua agressividade e de seus sentimentos negativos. Sente dificuldade
Com toda a evidência, a estratégia mie Ele emprega para evitar entrar em tomar lugar na vida conjugal, urna vez que não tem lugar em si mes-
196
.... 197
em conflito com Ela não a torna feliz. Para evitar brigas, reserva-lhe todo mo. Com efeito, importa dizer que, ao lado do sentimento de culpa, apa-
rece sempre a vergonha; a vergonha de seus movimentos interiores e de em se afirmar e têm tanto medo de ficar sob a inflüência &Mina n-iálher
suas próprias necessidades.' que decidem controlar tudo o que se passa em casa., Empenham-se em
Tal atitude explica-se também pelà cirdinstância de .que oS boi-trens desvalorizar e criticar a parceira com medo de que et a acabe por ádqiii:
são educados para viver fora de si mesmos. O mundo interior lhes é in- rir demasiado poder. Essa necessidade de dominar o outro só pode ser o
terdito. Para eles, falar de sentimentos é agir como uma mulher. Além testemunho da amplitude de um complexo materno inconsciente. Ten-
disso, ao expor sua intimidade, o homem receia fornecer munição à com- tam conjurar o sortilégio interior, submetendo e subjugando a mulher
panheira. Tem medo de ser controlado e perder o pouco de território que com a qual vivem. Reduzindo-a ao papel de objeto, procuram vingar-se
ocupa. Assim, defende sua identidade mantendo o silêncio. de uma infância passada nas mãos de uma mãe influente demais. No
Se, além disso, eu quisesse saber o motivo pelo qual o pranto de unia plano simbólico, seu comportamento fala-nos de uma infância em que
mulher lhe mete tanto medo, ele me diria que, ainda pequenino, o pranto eles próprios sentiram-se reduzidos ao papel de simples coisa submetida
da mãe, que era um "gigante", assemelhava-se a uma tempestade catas- às vontades do desejo materno.
trófica em seu coração de criança. Os sofrimentos dela tornavam-se seus Parece-me, em todo caso, que a maldade masculina em relação às
próprios sofrimentos. Atualmente, é a mesma catástrofe que explode nele mulheres, as brincadeiras que as denigrem e a. vontade de submetê-las
quando se considera a causa da infelicidade da companheira. visam apenas um só objeto oculto: o complexo materno negativo que,
Dê fato, com sua educação de herói, aprendeu a ser responsável pelos das profundezas do inconsciente, continua a oprimir um ego que nunca
humores da companheira, como já era responsável pela felicidade da mãe. ousou afirmar-se. Neste caso, os homens tornam a mulher responsável
No entanto, não chegará a encontrar sua liberdade e seu desabrochar na por sua amargura e impotência. Mas o que, do exterior, aparece como
relação íntima sem ter assumido que a expressão de suas necessidades um desprezo soberano pelos valores femininos, apresenta-se, do interior,
pode ir contra as da parceira, que isso póde causar-lhe sofrimento-, mas como o único meio de defesa de meninos desamparados que não chegam
que nem por isso é responsávê1 por tal desgosto. No plano simbólico, o a assumir o próprio poder de afirmação.
homem começa a fazer recuar o dragão materno ao aceitar que, ocasio-
nalmente, possa causar sofrimento e desprazei- àqueles que estão à sua
A 'sexualidade-obrigatória
volta. Para vencer seu complexo, deve abandonar a sacrossanta imagem
do menino bonzinho. A sexualidade constitui um dos principais modos de expressão huma-
A decisão de ser ele próprio, de tomar seu lugar, subverterá, sem dú- na. Não é verdade que somos o produto do encontro de duas células
vida, a dinâmica da vida conjugal. Tal atitude ameaçará colocá-la em pe- sexuais? Cada uma das fibras de nosso ser respira a sexualidade, e e ilusó-
rigo, mas se Ela e Ele passarem pela provação, a união adquirirá mais rio pensar poder reprimi-la sem esperar que ela tome toda a espécie de
vida. Deixará de ser uma relação de princípios e convenções para colocar caminhos distorcidos.
frente a frente dois seres autênticos. A intimidade só é possível a esse Nas famílias tradicionais, além de não ter lugar para a sexualidade
preço. ". entre mãe e filho, o que é evidente, também não havia lugar para o desejo
nem para o eros compartilhado. Simplesmente não se falava dessas coi-
O desprezo pelas mulheres sas. Essa atmosfera austera tem profundas repercussões sobre a vida se-
xual do casal.
Nem todos os homens dissimulam sua fraqueza, corno Ele, sob a apa- Resulta daí que a maioria dos homens está convencida de que as mu-
rência de uma superadaptação dengosa. Alguns sentem tanta dificuldade lheres não têm desejos sexuais. Isso deve-se ao fato de que, ao darem à
luz, um grande número de mães tornaram a ganhar a virgindade. Como
se, a partir do momento em que elas se dedicavam à família, os pais
2. O sentimento de culpa implica o outro, a pessoa se sente culpada em relação a alguém; quanto à
vergonha, ela é sentida em relação a representações mais ou menos conscientes que servem de
fossem os únicos a carregar essa coisa inominável que é o sexo.
valores de referencia ao ego. Quando o ego é fraco, essas representações podem esmagá-lo. Ora, os julgamentos negativos feitos a respeito da sexualidade mascu-
Neste caso, ele desmorona sob o peso da vergonha. Elas coincidem com o que a psicanálise
designa por superego e ideal do ego. Uma nítida distinção entre sentimento de culpa e vergonha
lina predispõem mal os homens para a vida conjugal. No terreno sexual,
198
é estabelecida por Mario Jacoby no livro Shame and the Origins of SeltEsteem, op. cit., pp. 1-4. mais do que em qualquer outro, os homens devem representar os heróis 199
e tomar as iniciativas. Na maior parte dávezes, são eles que assumem o objeto, de que é possível se dispor sem qualquer compromisso e sem
risco .da rejeição .ou da ,recusa da parceira. Outras tantas feridas de amor- correr-b TISC6 de asfixia, ou- ainda;a utilifação da boneca que .se pode .
próprio que aprenderam a não verbálizár, acabam permanecendo ignora- inflar e guardar depois do uso, denunciam a angústia de castração que
das pelas companheiras. • habita um grande número de homens.
Tanto no quarto de dormir como em outras situações, os homens Com efeito, a não desmistificação da figura materna favorece, no
desejam mostrar-se performáticos. Cria-se aí também uma mentalidade menino, o medo que perdura até a idade adulta. Esse fantasma expressa-
de dever que os impede de estar verdadeiramente presentes junto do se sob a forma primitiva da vagina com dentes da bruxa que pode cortar
outro. Por não terem aprendido a se descontrair e a compartilhar o o pênis do homem. Em sessões de terapia, encontrei homens com medo
prazer com a parceira, sentem, muitas vezes, dificuldade para se entre- da felação por terem a impressão de que perderiam seu órgão.
gar sem reservas a alguém. Afinal de contas, julgam-se obrigados a res- As fantasias e as práticas sadomasoquistas expressam perfeitamente
tituir carícia com carícia, em um balé quase programado. No fundo, essa relação não resolvida com a mãe. Amarrar a mulher, torturar-lhe os
continuam a ser meninos bonzinhos que, uma vez mais, tentam dar pra- seios, Causar-lhe sofrimento e subjugá-la, tudo isso expressa simbolica-
zer à mamãe.
mente a tentativa de conjurar o poder feminino, a saber, o controle ma- !d1
terno. Aliás, o contrário dá testemunho exatamente da mesma coisa. O
"Desculpe-me, mas fico extitado quando a acaricio!" homem acorrentado e- humilhado volta a representar, no plano sexual, a
•• atmosfera psicológica da infância.
Às vezes, os homens sentem-se de tal modo culpados de sua sexulidade
e de seus desejos sexuais que acabam por tomarem atitudes completa- É interessante observar, por exemplo, que os clientes das prostitutas
mente surpreendentes. Em -um grupo de terapia em que eu discutia com do tipo "dominadoras" são, muitas vezes, homens que atingiram posi-
outros homens a respeito da intimidade amorosa, tim dos participantes ções de poder na empresa em que trabalham ou na sociedade de que
confiou-nos que o principal problema que encontrava quando fazia amor fazem parte. O jogo sexual masoquista serve para expiar aos pés do dra-
residia no fato de que ficava sempre em ereção no. momento das preli- gão materno o fato de ter ousado roubar-lhe a autoridade.
minares. Pensava que sua ereção denunciava um egoísmo fundamental Mas, aqui, não é somente a influência matefna .que está em .causa.
e traduzia uma forma de desprezo pela mulher. Tinha a impressão de Vemos também de que maneira a ausência do pai ou sia falta de partici-
que deveria estar totalmente a serviço da companheira e esquecer seu . pação na educação das crianças implicam uma grande fragilidade da iden-
próprio prazer. tidade sexual dos filhos. Estes não estão seguros de serem homens e, no
Dei-me conta de que, à semelhança de alguns homens de nosso gru- plano concreto como no plano simbólico, têm medo de penetrar a mu-
po, ele tinha vergonha de seu mundo interior repleto de fantasias se- . lher. No plano concreto, o resultado é a ejaculação precoce ou a impo-
xuais. Tinha dificuldade em sentir prazer dando prazer. Acariciava os tência sexual; e, no plano simbólico, é o medo da intimidade. É possível,
seios e o sexo da parceira, esquecendo sua alegria de tocar os seios e igualmente, associar o don-juanismo — ou seja, a necessidade de pene-
acariciar um sexo. A negação da sexualidade em sua família chegou ao trar todas as mulheres — a uma tentativa de escapar do medo de castra-
ponto de inibir fortemente suas pulsões. Não conseguia acreditar que sua ção materna. De maneira desenfreada, Don Juan tenta provar a si mesmo
própria excitação despertava e estimulava a companheira. que não tem medo das companheiras.
Assim, na primeira vez em que vivem uma relação a dois, numero-
A vagina com dentes •sos homens acabam projetando sobre a parceira a imagem de uma diaba
que ameaça castrá-los. Aliás, tal medo da castração encontra uma cor-
Julgo que a popularidade dos telessexos, em que as mulheres tomam respondência na realidade, porque a raiva por terem sido privadas da
a iniciativa e os homens podem confessar suas fantasias mais profundas, atenção paterna faz com que, muitas vezes, as mulheres inconsciente-
traduz perfeitamente esse gênero de impasse sexual. Tanto mais que, com mente se tornem castradoras em relação ao parceiro masculino. Trata-
uma prostituta, ou na outra extremidade do fio, não é preciso ser um se de um desejo de vingança inconsciente em relação ao pai, transposto
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herói. A pessoa paga e não fica devendo nada. Assim, o recurso à mulher- para a vida conjugal.
O botão do pânico é demonstrado, de forma-p-rofusa, pela proliferação da pornografia e pelo
Como afirmei anteriormente,- a atividade.de um voyeur assistindo a _turismo
_ sexual. Se tentarmos compreender o aspecto simbólico dos com-
uni peep show ou a um- vídeo•pornográfico, ou fazendo amor na realida- portamentos sexuais, teremos a possibilidade de apreender o que, através
de virtual pelo viés do computador, expressa também perfeitamente o deles, é colocado em cena. Vislumbramos, então, uma miséria afetiva mas-
medo da castração. Ao abolir uma relação duradoura com alguém, ele culina que, muitas vezes, tem pouco a ver com a própria sexualidade.
escapa do mundo das dívidas e dos deveres, mas, mesmo assim, acaba por Por exemplo, fez terapia comigo um paciente que viajava muito e
se encontrar em posição castrada. Usufrui de uma posição auto-erótica que, nos diferentes quartos de hotel por onde tinha passado, havia desen-
em que o outro não existe, ou seja, só existe como objeto que lhe obedece volvido uni verdadeiro arsenal de meios para conseguir ouvir o que acon-
e está a serviço de sua satisfação. Não há investimento amoroso com tecia no quarto ao lado. No momento em que escutava um casal de estra-
tudo o que isso comporta como riscos. Sem contar que o excesso de nhos fazendo amor é que ocorriam suas masturbações mais frenéticas e
consumo de material pornográfico acaba por engendrar uma dependên- mais satisfatórias. Ora, durante a infância, esse paciente tinha sentido,
cia que dissimula a máscara real, a saber: a necessidade de amor. No sobretudo, a falta de atenção por parte dos pais. Ele estava agindo por
decorrer do tempo; tal situação só pode tornar-se cada vez mais vingança. Ao roubar a intimidade de estranhos, tinha a impressão de po-
insatisfatória para a alma que procura a união íntima. der "sacanear" os pais, principalmente o pai por tê-lo excluído da célula
Todo mundo sabe que nada existe de mais agradável do que fazer familiar. Ao aceitar ouvir falar do próprio comportamento sem julgá-lo,
amor quando estamos apaixonados, põrqUe todas as dimensões de nosso pudemos recuar até sua origem. Sua obsessão disfarçava e, ao mesmo
ser participam, então, da sexualidade. NesSes momentos, as diferenças tempo, expressava sua cólera e sua decepção de criança rejeitada. -
aniquilam-se na fusão profunda com o outro. Mas quantas dificuldades e Os homens encaram a relação romântica e o amor através da sexuali-
rejeições tiveram de ser negociadas para se chegar a esses êxtases às vezes dade, enquanto as mulheres a abordam por meio do. amor e do romantis-
Muito curtos? Ter gozo na ausência do outro ou manipulando sua ima- mo. Neste aspecto, as culturas masculina e feminina são muito diferen-
gem pode aparecer, então, como um sucedâneo aceitável de um êxtase tes. Para que os homens possam desabrochar na vida em casal, tenho a
raro demais e demasiado difícil de atingir. impressão de que sua sexualidade deve ser levada a sério, até mesmo em
No entanto, a pornografia ameaça reforçar o sentimento de culpa seus aspectbs repulsivos. As fantasias devem 'ser entendidas como unia
experimentado em relação à mulher e submeter ainda mais o homem ao "expressão profunda do ser. Para que úni homem possa investir completa-
poder do dragão materno. Com efeito, como essa sexualidade se desen- • mente na relação íntima, é necessário que sua vida sexual possa ser aco-
rola na maior parte das vezes às escondidas, ela volta a colocar o homem lhida sem julgamentos, porque ela é o espaço de simbolização por exce-
na posição de menino que dissimula à família sua verdadeira libido. Aquele lência da relação não resolvida com os complexos materno e paterno.
que não tem a ousadia de assumir completamente seus desejos diante da Não se trata de colocar em ação, forçosamente, tais fantasias, mas de
companheira acaba escondendo suas imagens "abençoadas" embaixo do formula-las a fim de que seja compreensível seu objetivo inconsciente.
colchão, em gavetas esquecidas, no guarda-roupa e no computador.
Uni amigo confiava-me que, em um CD-Rom, tinha a possibilidade O voyeur de olhos fechados
de assistir a cenas em que casais fazem amor. Este programa é dotado de
um "botão do pânico", que pode ser apertado se alguém entrar inespera- Como vimos, muitas vezes a força sexual do macho permanece refém
damente no escritório. Neste caso, aparece na tela unia folha de contabi- do silêncio e do constrangimento. Um grande número de homens não
lidade. Nada de mais prosaico, estarão vocês comentando, mas trata-se consegue dizer à parceira o que lhes dá prazer; às vezes, nem chegam a
de uma folha de contabilidade das obras de Madre Teresa! Não consegui dizer-lhe o grande prazer que sentem em toca-la e olhar para ela. Tudo
evitar dar uma gargalhada quando ele me contou essa história. Em minha isso lança-nos em unia situação totalmente paradoxal, uma vez que as
opinião, era a cabal confirmação de que a sexualidade dos homens se mulheres esperam com impaciência essa palavra do homem que final-
desenrola à sombra de uma santa mamãe, virgem e mártir. mente as valoriza. A mulher consagra muita atenção ao corpo para que
A sexualidade é uma dimensão muito importante da vida dos ho- este seja lindo, para que a pele permaneça macia. Em compensação, tem
202 necessidade de ser valorizada pela palavra e pelo olhar masculino. 203
mens. Muito mais importante do que pretendemos admitir. Eis o que nos
'este propósito, um homem de trinta e cinco anos contou-me-o se- állatide 'eSfoirçO é que o indivíduo alcançará a soberania em relação a
.1112/3

guinte episódio: _ _ si mesmo ë se libertará closussado. Muitas vezes, estas tomadas de cons-
Ciência são difféds; além' de implicarem escolhas que podem ser doloro-
Depois de seis meses de casado, havia mudado com a mulher para outro aparta- sas; no entanto, resulta daí uma vitalidade acentuada e uma criatividade
mento. Ora, a janela da sala encontrava-se em frente do quarto de uma mulher mais forte. Assim, a relação com os outros, consigo mesmo e .com a vida
que se despia com a luz acesa. Para este homem, que confessava ter tendências será consideravelmente aprimorada.
para voyeurismo desde a mais tenra infância, a surpresa era considerável. Aos
O mais desolador é que essa miséria sexual marca o triunfo do espíri-
poucos, habituou-se a deixar que, após as informações televisivas, a esposa fosse
to de seriedade. Não há alegria nem orgulho em ser homem quando a
deitar-se sozinha. Desta forma, podia permanecer na sala, masturbando-se ao
sexualidade foi mal acolhida na família. É escasso o número de seres que
contemplar a vizinha.
conseguem conservar sua leveza até a cama; inclusive, entre os parceiros
Após alguns meses utilizando esse estratagema, ele acabou por sentir-se tão
mal que decidiu falar com a esposa sobre o assunto. Então, esta deu-lhe uma mais fantasistas, parece não haver nada de mais sério do que fazer amor.
resposta extraordinária. Disse-lhe de uma forma bastante terna: "É cudo.so, por- O silêncio, as expectativas, o constrangimento e, às vezes, a vergonha
que ao fazermos amor você tem sempre os olhos fechados! Como é que você, que impregnam nossos gestos eróticos. Um número incalculável de fantasmas
é tão observador, não olha para mim qUando fico' tOcla linda-para você e quando povoam nossos quartos de dormir: papai, mamãe, o senhor vigário, nos-
estou gozando? Também tenho necessidade de que me diga que me acha linda. sas e nossos amantes passados ou presentes. Eis a razão pela qual a verda-
Gostaria que inc dissesse que meus seios são belos e dna você acha agradável meu deira revolução consiste em criar um espaço realmente único, uma ver-
sexo. Gostaria que deixássemos a Sexualidade convencional na qual estamos con- dadeira relação a dois.
finados. Gostaria que inventássemos jogos e criássemos cenários. Já não quero Na mesma linha de pensamento, o espírito brincalhão e fantasista fica
mais fazer amor com os olhos fechados." sem graça logo que se encontra diante da parceira. Um homem contou-
me que o único momento em que via o pai mostrar sua exuberância era
Este homem fecha os olhos para que sua verdadeira sexualidade não quando a mãe estava ausente. Em um instante, a casa transformava-se em
seja vista pela parceira. Por causa do sentimento de culpa, ele nem chega uma im'ensa sala de jogo na qual, com grande desenvoltura, apresentava
a compreender o quanto â mulher tem necessidade•de ser observada e passes de mágica e dirigia a caça ao tesouro. Logo que a mãe reaparecia,
apreciada. Na realidade, um grande número de homens julga que não ele voltava a ficar sério. O que impede um ser de mostrai seu entusiasmo
tem a pOssibilidade de levar seus desejos e prazeres até o quarto de dor- e sua alegria à parceira? Será o fato de que ele ainda não está separado da
mir do casal. Continuam a gozar às escondidas, como na infância. O mãe? Será o receio dos julgamentos do outro a respeito de Sua esponta-
corpo da parceira permanece proibido, como o era o corpo da mãe. neidade e vulnerabilidade? Por que motivo ainda é mais difícil assumir a
alegria do que o desejo erótico?
O triunfo do espírito de seriedade (bis) Afinal de contas, poderíamos dizer que a verdadeira vítima da castra-
ção nas nossas famílias não é a sexualidade, mas a alegria, a simples ale-
De qualquer modo, independentemente de sermos homens ou mu-
gria de existir. O entusiasmo, a vitalidade, eis o que foi sacrificado em
lheres, nossos corpos e nossas psiques pertencem, durante muito tempo,
nome do puritanismo e da seriedade da sociedade patriarcal. Aliás, um
a nossos pais e a todo o meio do qual somos oriundos. O estado de con-
ser não poderá reencontrar tais presentes da existência sem libertar sua
fusão entre o ego individual e os bastidores psíquicos que o religam ao
sexualidade.
inconsciente familiar é tido como normalidade. O que acabo de dizer
A alegria é a marca da relação bem-sucedida e de um eros pleno de
sobre a psicologia dos homens, mesmo se esta nos revela a imagem de um
vida que une homens e mulheres. Por evitar usufruir dele, contentamo-
menino que ainda luta contra a mãe,- não é patológico. Tais situações
nos com um eros triste e convencional, cujas asinhas já perderam muitas
poderão tornar-se patológicas se o homem não conseguir gozar senão
penas e cujas flechinhas estão envenenadas.
amarrado ou se mantiver unia ereção unicamente quando se masturba e
204
.... nunca com urna parceira real. Mas quanto ao resto, somente ao preço de 205
De que maneira os homens tentam fim de -conservar a imagem social e permitir que os filhos cresçam sem
superar .o medo das mulheres? perturbações, ou simplesmente porque não teve coragem de separar-se. -
__Ern várias 'sociedades antigas, entre as quais as da China e do Japão, esse
No próprio âmago do relacionamento, os homens utilizam diversas
costume estava oficializado. A amante deveria, inclusive, ser apresentada
estratégias para superar o medo profundo da mulher. A primeira delas, à
e aprovada pela esposa oficial. Mas, fato notável, nessas sociedades o
qual já fiz alusão, poderia ser designada por dependência total em relação
estatuto de mãe é o último ao qual uma mulher pode aspirar; além disso,
à parceira que se instala automaticamente na posição de mãe de substitui-
são enormes os complexos maternos dos homens.
ção. É ela que o salva, o lava, escolhe as roupas e o "fode".. Permite que
Considerando de mais perto o leque destas estratégias, damo-nos conta
ele permaneça na doce irresponsabilidade da infância, mesmo que as ne-
de que a adoção de uma delas não está realmente condicionada ao medo
cessidades de afirmação, de autonomia e de independência acabem sen-
das mulheres, mas sobretudo ao medo de uma mulher. O homem tem
do espinafradas.
receio de encontrar-se sozinho na intimidade com uma mulher porque o
Para o homem muito sensível à asfixia e que não pode tolerar que
fantasma da influência materna continua assombrando seu psiquismo.
uma muher se ocupe dele, a segunda estratégia consiste em fazer-lhe uni
filho. Assim, ela poderá dedicar toda a atenção a alguém; neste caso, ele
se sentirá, ao mesmo tempo, libertado dos deveres afetivos. Aqui, o ápice
da arte consiste em deixar a criança tornar seu lugar na cama do casal,
A necessidade de romantismo
entre os dois cônjuges. Deste modo, fica garantido que a raça dos ho- Por que motivo as mulheres atribuem tanta
mens que sofrem da influência materna e têm medo de estabelecer rela- importância à vida a dois?
ções íntimas com a parceira poderá perpetuar-se...
A terceira estratégia diz respeito àquilo a que dou o nome de Os homens são criados para ser heróis, e as mulheres para viver a
contradependência. Trata-se de uma espécie de celibato defensivci. Seu dois. Se o complexo materno masculino entra em cena, sobretudo no
protagonista poderia expressar-se, desta forma: "Sou autônomo, assumo terreno da sexhalidade, o complexo paterno feminino voltará a ser re-
minha responsabilidade em todos os planos, não tenho necessidade de presentado no terfeno do romantismo e do amor. Se os primeiros sofrem
uma mulher para viver!" Em outras palavras, o contradependente esco- da síndrome da corda no pescoço, poderíamos dizer que as segundas so-
lhe sozinho as roupas, come sozinho e fode-se sozinho! Seu quinhão é o frem da síndrome do laço. Elas pretendem agarrar um homem.
leito vazio, a solidão e, ocasionalmente, um bom desempenho. Suas ne- Como já expliquei, a ausência do pai tem como conseqüência essen-
cessidades de união e de dependência são reprimidas. Suas entranhas es- cial uma ferida do amor-próprio que atinge a mulher em seu poder de
tão em prantos, enquanto ele pratica a autodisciplina e a ascese. relacionamento. Ela se sente tranqüilizada em sua identidade pela pre-
Desde a liberação sexual, uma quarta estratégia parece ganhar uma sença da mãe, mas sua diferença sexual não foi validada pelo pai. Seu
crescente popularidade. Satisfaz a quem não consegue instalar-se na de- valor como mulher sexuada não chegou a ser reconhecido. Ela não pode-
pendência-ou nã contradependência. O praticante de tal arte freqüenta, rá amar a si mesma enquanto não for amada por um homem: eis a origem
por assim dizer, pedaços de mulher. Explico-me: sai com uma porque faz de sua obsessão de querer viver a dois. Ela procura, a qualquer preço, o
bem amor, freqüenta outra porque esta gosta de teatro e ainda se rela- olhar e as palavras meigas do homem para obter a confirmação de seu
ciona com outra por seus interesses místicos. Assim, ele consegue respei- próprio valor. Aqui, não é o amor que fala, mas a ferida do amor-pró-
tar, ao mesmo tempo, suas necessidades de união e de separação. prio. A herança psicológica leva algumas mulheres a confundirem as duas
Agora vejamos.uma tática que, essencialmente, consiste em uma ela- coisas. Elas têm a impressão de serem completamente altruístas quando,
boração pós-moderna da famosa divisão entre a virgem e a prostituta, afinal, todo seu comportamento visa ocupar uma posição central e pro-
comum a um grande número de machos. Eis a quinta estratégia. Neste var que existem.
caso, o indivíduo casa-se com uma mulher honesta e respeitável que é Para elas, não existe um estatuto próprio da mulher. Têm a impressão
aceita pela família, confinando-a em casa, e mantém unia amante com a de que não podem ser felizes e, inclusive, não podem viver sem um com-
206 qual dá umas escapadas. Assim, vai levando unia espécie de vida dupla a panheiro. Acreditam que o amor vai resolver tudo, irá compensar o vazio 207
. .
e há de trazer-lhes o sentimento de plenitude. Pensam que, ocupando-se poema de amor para dar plena satisfação à alrilá feminina. Ainda estou
de um homein-ou de um -filho, acabarão encontrando a• felicidade.
_ - ouvindo a letra de uma antiga canção que eXpressa, com. miuta exatidão,
Além disso, a mulher criada sem a atenção paterna Pode até mesmo o que acabo de dizer:
acreditar que, exercendo sua influência, irá conservar o olhar masculino
fixado nela. Portanto, fará toda a espécie de contorções e manipulações Fale-me de amor, volte a dizer-me coisas ternas
para atingir seu objetivo. Neste caso, todos os meios são bons para levar Meu coração não se cansará de ouvir seu belo discurso,
o companheiro — sem que este se dê conta do que se passa — a prestar Contanto que você repita sempre estas palavras supremas:
atenção nela. Sedução, submissão, retirada silenciosa, suspiros, crises de "Eu te amo!"
lágrimas — eis as manifestações pelas quais tentará convencê-lo de que
deve ocupar-se dela. Essa canção exprime, por si só, a essência do desejo feminino. Nada
Tal comportamento acaba por produzir o efeito contrário ao objetivo como o espírito que se torna poesia, como o Logos que esposa a lingua-
perseguido. A tentativa de controle motivada pela insegurança da 'mulher gem floreada, para expressar com maior fidelidade a alma feminina.
leva o homem a fugir ou deixa-o preso a ela por razões que nada têm a
ver com o amor. Por exemplo, poderá sentir-se culpado por abandonar Essa tinta é meu sangue...
uma mulher deprimida. Esse sentimento de culpa será tanto mais ativo se
ele ainda não superou seu complexo materno negativo. Em Cyrano de Bergerac,3 Edniond Rostand faz-nos uma demonstra-
ção magistral do que acabo de expor. Desfigurado por um enorme nariz,
o honrado Cyrano não pode esperar os favores da prima amada, Roxane,
Fale-me de amor
que está apaixonada por um jovem lindo e bem apessoado, mas que é
Os rituais de feitiçaria dos índios yaquis, do Nordeste mexicano; en- tolo. Portanto, Cyrano oferece seus talentos poéticos ao pretendente
sinam que os homens recebem a força do cérebro, ao passo que a energia ignaro; deste modo, espera conquistá-la com suas cartas. A primeira de-
das mulheres vem da vagina. O Oriente professa que. os homens depen- claração de amor que põe em sobressalto ci coração da bela jovem é a
dem do princípio Yang, ativo e criador do universo, ao passo que as Mu- seguinte: ."Este papel é a minha voz. Esta tinta é o Meu sangue. Esta carta
lheres identificam-se com seu contrário, o princípio Yin, receptivo. Jung soU eu!" Aqui, estamos vendo de que maneira o "verbo feitd carne" encarna
pensava que o princípio masculino dependia do Logos, ou seja, do espíri- perfeitamente o animus feminino. Ao ler "Esta carta sou eu!", Roxane
to no sentido geral, ao passo que o princípio feminino dependia do Eros, tem a impressão de tocar na alma de seu bem-amado.
o sentido da relação. Em suma, Ele obedece à lei da Razão, enquanto Ela Assim, ao encontrar pessoalmente o namorado, está pronta para re-
obedece à lei do Amor. ceber suas declarações de amor, mas ele limita-se a repetir insipidamente
Em grande parte, isso é verdade. Em ieral, as mulheres dedicam um' "Eu a amo! Eu a amor, tentando beijá-la. Roxane fica de tal modo de-
verdadeiro culto ao amor. Propositalmente, utilizo a palavra culto por- cepcionada que acaba por repudiá-lo. Isso nos conduz à famosa cena do
que, em certos aspectos, trata-se de uma religião cuja deusa é Vênus. Elas balcão em que, no breu- da noite, Cyrano toma o lugar do jovem e, graças
sacrificam-se pelo amor, fazem-lhe oferendas e tornam-se disponíveis para a suas declarações, volta a ganhar o coração da moça.
sua epifania. De urna relação amorosa para outra, vivem períodos de Para Roxane, assim como para Ela e um grande número de mulhe-
repouso. Quando o amor está presente, reservam-lhe todo o espaço pos- res, o espírito de amor que inspira ao namorado é muito mais impor-
sível. Esse mundo amoroso tem seus filtros e sortilégios, seus mistérios e tante do que suas reações físicas. Ela também deseja beijá-lo, mas a
neblinas anestesiantes. Aliás, com seus ventos e marés, trovões e relâmpa- atmosfera desse beijo conta tanto quanto a coisa em si. Quando esse
gos, suas secas e inundações, a natureza mostra tal universo muito me- clima propriamente erótico não está presente, quando os dois seres não
lhor do que a mais bela descrição psicológica. estão ligados pelo eros no mesmo espírito, quando o ato não tem alma,
Eis a razão pela qual as mulheres mostram-se sensíveis à poesia. Ela a mulher sente-se reduzida ao papel de objeto. O sexo pelo sexo não lhe
quebra a linearidade da linguagem racional, levando-a a desabrochar em
208 figuras de estilo, metáforas e ambientes. Nada corno a inspiração de um 209
3. Edmond Rostand. Cyrano de Bergerac. Pari Gallimard, 1990.
interessa. Eis, sem dúvida, a razão pela qual a pornografia exerce pouca Aquele que tem medo de amar não sabe tine a mulher. põdéMultipli;
atração sobre as mulheres. Estas procuram no amor a manifestação de car, graças à sua generosidade, o pouco de amor que ele tem para dar,
um suplemento de alrhã. • coma condição expressa de que elesé comprometa. Poderíamos quase
Ora, à semelhança do jovem pretendente de Roxane, Ele já não sabe dizer, com a condição de que aceite precisar dela, com a condição de que
falar de amor. Está prisioneiro do silêncio, como acontecia como pai. aceite depender dela. Com efeito, por amor, a mulher pode dar tudo. Aí
Em tal contexto, Ela vai fazer tudo Para que "seu homem fale". Contra a reside uma grande parte do mistério feminino. E a mulher pode servir de
vontade dele, vai procurar colocá-lo — por meio do que pode parecer iniciadora do homem em tal mistério. Pode iniciá-lo na atitude de serviço
caprichos e manipulações de toda a espécie — em situação de escudeiro e dedicação, tanto mais que ela não põe como condição sentir-se verda-
fiel. Poderíamos pensar que se trata essencialmente de uma manifestação deiramente amada, escolhida e apreciada.
dá egoísmo feminino ou da reivindicação de um ser ferido pelo amor que A essência feminina manifesta-se plenamente no encontro pessoal e
afinal reivindica a parcela de atenção a que tem direito. Mas há mais do individual, na medida em que ela implica, de saída, o outro. Mas, quase
que isso. sempre, a beleza e a simplicidade de tal mistério deixam os homens assus-
No fundo das entranhas, no claro-obscuro das coisas que sabemos sem tados. Como eu dizia anteriormente, convém afirmar que, na maior par-
conhecermos, Ela pressente que sua realização encontra-se no fato de se te das vezes, eles tiveram mães amargas — privadas de Eros —, que se
doar sem medida, por amor. Ela procura no amor pessoal uma forma de tornaram imponentes castradoras ou mulheres em constante demanda
desencadear sua fcirça. Portanto, tenta levar o companheiro a dar uni pou- afetiva em relação aos filhos: outras tantas marcas de infância difíceis de
co de si mesmo porque, em compensação, ela saberá multiplicar esse apagar...
pouco para torná-lo feliz. Eis a razão pela qual Roxane. pede ao pretenden- Na realidade, o romantismo feminino traz em seu bojo o fermento da
te para representar os heróis românticos antes de se entregar a ele. história. Constitui a herança ainda a ser utilizada pela humanidade. A
mulher carrega tal herança como um grilhão atado ao pé, porque tanto
os homens como as mulheres ainda não souberam reconhecer a beleza do
O sentido do romantismo
feminino profundo. Mas não conseguirão se esquivar por muito tempo
Em outras palavras, mesmo se está exacerbada pela falta de pai, a da necessidade do encontro real, intenso e harmonioso no seio do amor.
necessidade de romantismo desempenha uma função psicológica muito Acontece que, enquanto não for reconhecida a primazia ao coração, a
importante. Com efeito, em sua essência, representa o sentido da relação situação entre eles ficará cada vez mais degradada, porque a esperança de
e do encontro da mulher. Ela sabe que só o amor humano consegue rea- comunhão no amor será sempre decepcionada em ambos.
lizar um aspecto fundamental do ser. Sua expectativa romântica procura
levar o homem até sua própria realização no encontro profundo, através
A prática do erro sistemático
do corpo e do coração.
Incessantemente decepcionada por não receber as atenções por parte O mundo do devaneio romântico tem, igualmente, seu lado negativo.
do companheiro, a expectativa feminina torna-se amargura, depressão e Ele pode até compensar a afetação do cotidiano e permitir escapar ao
desprezo pelos homens em raião de sua negligência. Neste caso, a mu- sofrimento; no entanto, a mulher corre o risco de perder-se facilmente
lher fica inflexível, já não espera nada dos machos, mas seu coração per- em tal universo, porque este coloca um anteparo de miragens entre ela a
manece ferido. realidade. De tal modo que, no parceiro que acaba de encontrar, irá pro-
Sem esse encontro, também o companheiro fica sozinho, mas não jetar o príncipe encantado que não é. Em sua imaginação, irá transforma-
tem consciência de tal solidão.., ou não será verdade que os homens têm lo em um escudeiro fiel e, aos poucosr o choque da realidade irá reconduzi-
muita coisa para fazer? No entanto, chegará o dia em que ele irá encon- la a si mesma: o homem com quem vive não é o que tinha imaginado.
trar-se sozinho diante de si mesmo e, então, compreenderá que de nada O romantismo chegará mesmo a impelir algumas mulheres a se enga-
serviu ter conquistado glória e dinheiro se não chegou a amar, se não narem sistematicamente em suas escolhas amorosas. Certa mulher pode-
vibrou intensamente com o amor. Sem amor, a vida fica vazia. No fundo rá confundir, por exemplo, o machismo com a firmeza: pensa ter encon-
210 trado segurança junto a um parceiro porque este tem o aspecto forte, mas 211
do coração, pelo menos uma vez, todos os homens se dão conta disso.
•"ficará surpreendida quando a -agressividade vier a manifestar-se contra desfaz-se o encanto. Parece-lhe - que fica depreciada a gratificação
ela..Outra irá considerar o silêncio como se fosse.urn sinal de sabedoria.; associada a .um desejo que teve de sei-Manifestado- abertamente. Ser obri-
para dar-se.conta,'Mais tarde, de que'd homem em questão simplesmente gada a falar de suis vOntades priva, sem dúvida, o relacionamento de
não tinha nada para dizer. Ainda outra ficará "apaixonada" pelas lindas uma certa aura de mistério, mas como poderia haver comunicação bem-
palavras de um sedutor, considerando a atenção dele como um interesse sucedida entre dois seres se estes não estão preparados para 'esclarecer
pessoal; depois de se ter entregue de - corpo e alma, se dará conta de que seus desejos autênticos?
caiu em uma armadilha. As mulheres pensam que os homens são como elas, ou seja, deveriam
A mesma coisa é válida para a jovem que mostra tendência a encarnar estar em condições de dar as cartas no jogo da adivinhação; no entanto, a
a anima de um pai angustiado e corresponder à sua sensibilidade a fim de capacidade dos companheiros relativamente à intuição e à manifestação
encontrar um lugar entre a mãe e ele. Tornando-se a confidente de um dos sentimentos encontra-se, muitas vezes, atrofiada por não ter sido
pai alcoólatra ou deprimido; aprendeu seu papel de vítima. Com o decor- estimulada pela educação. Os homens situam-se melhor em relação à
rer do tempo, na busca de um salvador, irá encontrar várias vezes seres expressão direta dos desejos. Prefiro que minha companheira me diga:
dependentes que abusam de drogas ou de bebidas alcoólicas, ou que têm "Tenho vontade de um jantar a sós no restaurante"; em vez de ouvir em
dificuldade em garantir sua subsistência. Acabará por tentar tirá-los do um tom de crítica: "Você nunca tem vontade de estar a sós comigo."
sufoco, desempenhando o papel de salvadora. Por outro lado, a mulher pode também abusar da própria intuição.
rnülher que desposa um homem angustiado espera, inconsciente-. Neste caso, considera como verdadeiro o que imagina á respeito do
mente, despertar o príncipe encantado que se encontra adormecido. As- mundo do homem. De antemão; coloca-lhe pensamentos na cabeça,
sim, ele lhe mostrará seu coração e há. de confirmá-la em seu valor. "Um sentimentos no coração e palavras na boca. Duvida do que ele diz se,
dia, meu príncipe virai", pensa ela interiormente. Mas se, por acaso, o por infelicidade, sua palavra não é a expressão do universo interior que
sapo se transformar em príncipe, é muitas vezes pára abandonar aquela ela acreditava ser o dele. Não é surpreendente que, em tal contexto, os
que . o apoiou em seu combate. homens mantenham-se silenciosos: Não se sentem escutados nem res-
Então, essa mulher deverá tomar consciência desua pobre auto-esti- peitados em sna verdade, mas controlados, de antemão., e acabam por
ma --- resultado de sua infância —, que a impele a escolher homens que deixar de falar, uma vez que regularmente se encontram diante de par-
não a respeitam. Um dia, irá descobrir que Sua capacidade de amar com • ceiras que julgam saber melhor do que eles o que se passa dentro de si
tanta • abnegação rem a ver, simplesmente, com a falta de amor por si mesmos.
mesma. A ajuda prestada ao outro para controlar sua dependência não
passa de uma forma de dissimular. que é dependente.
A dificuldade de se comunicar com clareza

O jogo da adivinhação Para se comunicar verdadeiramente, é necessário que a pessda esteja


aberta para a realidade do outro, tomando una pouco de distância em
O romantismo apresenta também outras ciladas. A expectativa do relação a si mesma. Se a mulher chora ou manifesta sua decepção quando
príncipe encantado leva a mulher a manter um fundo de amargura cons- o companheiro abre a boca para falar de seus sentimentos, ele acabará
tantemente estimulado pelas decepções que lhe causa o companheiro, por evitar comunicar-se. Irá experimentar uma sensação de asfixia, re-
sobretudo no que diz respeito à incapacidade dele para adivinhar o mun- volta e impotência. Irá encontrar-se em um duplo vínculo. Ela convida-o
do feminino. Ela gostaria de encontrar uni homem que soubesse anteci- a expressar-se e afirma que sofre com o seu silêncio, mas no momento em
par-se a seus desejos sem ser obrigada a formulá-los. que o homem abre a boca, ela toma a palavra para falar de si mesma ou
Aqui, estamos diante de uni paradoxo. Apesar de se gabar de sua com- contradizê-lo. E ao praticar esse estilo de comunicação, tece sua própria
petência no terreno das relações sentimentais, muitas vezes a mulher não infelicidade e a do companheiro.
tem a ousadia de revelar seus desejos reais ao homem com quem vive. Em tais casos, às vezes temos a impressão de que, para essa mulher, a
Julga, sem razão, que ele deveria conhecê-la bem e, interiormente, criti- comunicação consiste, antes de tudo, em ouvir do companheiro o que
212 ca-o por não satisfazer tais desejos. Ela considera que se tiver de dizer este pensa a seu respeito. Quando ela se posiciona desta forma, no centro 213
•-----
da vida e da comunicação do homem, seu comportamento expressa uma utilizar tais atributos corno base da comunicação? A razão masculina con-
ferida narcísica que pode impedira vida a dois no respeito mutuo. É tribui com um grão de relatividade_ muitas vezes necessário diante dos
legítimo nosso desejo de ouVir - do ciutró o qUe sente —em relação a nós arroubo&clo sentimento-feminino:Por que não iioS divertirmos com isso,
mesmos; neste caso, por que não dizer-lhe claramente: "Desejo conhecer em vez de ficarmos ofendidos?
seus reais sentimentos para comigo!" Ou ainda: "Tenho necessidade de
ouvir o que você pensa a meu respeito." Uma vez formulado o desejo,
convém estar preparado para acolher a reação como for manifestada e A guerra dos sexos
agir de acordo com ela.
Apesar da facilidade que têm para navegar no mundo afetivo, as mu- A infantilização do homem
lheres sentem dificuldade, muitas vezes, para se comunicar claramente. Por obrigação da sociedade patriarcal, nossas mães tornaram-se mu-
Entre elas, as frustrações são expressas com toda a franqueza; diante do lheres de dever e de princípios, que faziam reinar o espírito de seriedade
homem, é outta coisa_ Ora, enquanto essa atitude não for. posta em ques- na família. Confinadas às panelas e à educação dos filhos, perdiam rapi-
tão, continuará existindo.° sério risco de que essas expectativas não ditas damente o sentido do jogo e do prazer. Seus desejos pessoais eram
acabem por exercer sobre o relacionamento unia pressão que leve o ho- submersos na amargura por terem sido desamparadas pelos maridos. Ao
mem a fugir. Não poderá haver comunicação frutífera entre dois seres se verem a vida por este prisma, várias mulheres acabaram por ter uma
não for feitoesforço no sentido de serem compreendidas as necessidades lastimável opinião a respeito daqueles que compartilhavam sua vida. EM_
dissimuladas por trás de sentimentos e frustrações, se tais necessidades Quebec, durante muito tempo, as mães repetiram à jovem noiva que o
não chegarem a ser explicitadas e se não houver a paciência de expressá- primeiro filho que teria de criar seria seu próprio companheiro!
las sob a forma de demandas realistas. . Assim, as mulheres jovens aprendiam ,a controlar o parceiro, como
A mulher deve compreender — e, claro, o homem também — que tinham visto a mãe dominar o marido. Com a palavra, o sexo, as queixas,,
não existe parceiro mágico que irá descer do céu e, de antemão, compre- os suspiros e as humilhações, elas tentam educar o companheiro para o
ender suas necessidades e satisfazê-las plenamente, antes mesmo que se- relacionamento, considerando, às vezes, seus longos monólogos a respei-
jam formuladas. O príncipe encantado não virá nunca. Trata-se de urna to da vida a dois como diálogos autênticos.
figura mítica que fala de um estado de bem-estar interior, mas que tem Na realidade, um grande número de mulheres não se dá conta de
pouco a ver com as criaturas de carne e osso que são os homens. como podem ser "controladoras" porque, nos casais das gerações prece-
A mesma coisa é válida no plano sexual. A maioria das mulheres sen- dentes, essa coerção sutil tinha como nome "amor". Assim, muitas vezes
tem repugnância por serem tratadas como um objeto sexual à disposição o autoritarismo feminino permaneceu inconsciente. Ao tratarem da edu-
do parceiro e queixam-se disso ardorosamente a ele. No entanto, se hou- cação dos filhos e da intimidade amorosa, as mulheres julgam sincera-
ver uni esmorecimento do desejo masculino, elas deixam de se sentir dese- mente que sabem o que é melhor para todo mundo. Mas quando a mu-
jadas e formulam-s.e questões a respeito da vitalidade da vida conjugal! lher se impõe em uni relacionamento como a única especialista dos senti-
Eis outro duplo vínculo que torna difícil a vida a dois. Neste aspecto, mentos, ela procede como se tivesse encontrado, contra sua vontade, o
ainda é preferível que a mulher manifeste francamente os próprios desejos. pai, ou seja, um homem silencioso e fechado. Neste caso, seu ideal da
Tal atitude é mais benéfica do que apresentar queixas que continuamente vida a dois — que, em sua opinião, deveria ser aceito por todos os ho-
vão depreciando o homem. Além disso, complicam a relação amorosa e mens — exerce uma verdadeira tirania que esmaga, em vez de facilitar, a
acabam por desencorajá-la. Embora, com toda a evidência, para comuni- união do casal.
car o que sentem, os homens tenham mais dificuldades do que as mulheres. Várias mulheres julgam que essa coerção é Praticada com todo o di-
Ao adiar por muito tempo o reconhecimento de um lugar em si para reito diante da irresponsabilidade dos homens, assim como da opressão
a diferença fundamental que representa o mundo masculino, a mulher exercida por eles. Talvez. Apesar disso, tal coerção perpetua, no plano
impede que se estabeleça a igualdade que procura com o parceiro. Por social, uma verdadeira luta de poder entre homem e mulher no âmbito
que não aceitar o homem com sua diferença? É verdade que, em geral, os da vida privada. Essa atitude dissimula a raiva e o desprezo mantidos
214 homens são mais cerebrais e as mulheres mais instintivas: por que não 215
durante séculos contra os homens. Além de não conduzir à igualdade,
mina a vida do casal sem que as pessoas se dêem conta disse,. Essa optes- Na peça de teatro Père, o dramaturgo norueguês August Strindberg4
são reflete-se-na angústia da castração masculina e faz com que .o.horneM . faz
uma magistral demonstração dessa situação. O autor coloca em•
acabe por revoltar-se ou por aceitar o lugar de criança que lhe é prOpos---- - dência a dinâmica inconsciente que se instala na vida a dois no -âmbito da
to. Tal postura não resolve nada, uma vez que se ele se submete, perde o sociedade patriarcal. O contexto social da peça é também-bastante inte-
respeito da parceira, e se decide revoltar-se, sua atitude arrasta o casal ressante, uma vez que foi escrita no momento em que o feminismo apare-
para discussões sem fim. cia na Noruega, ou seja, no final do século •XIX. As mulheres de então
A mulher que infantiliza o marido acaba por encontrar-se, invariavel- enfrentavam um mundo em que tudo estava regulamentado pela lei do
mente, nos braços de um homem que se assemelha ao pai — tão depre- pai. Em tal universo, elas só tinham o direito de existir na cozinha ou no
ciado por ela durante sua juventude --, ou seja, um homem indolente quarto. Elas deviam exibir um eterno sorriso de serviçal resplandecente.
que carece de solidez e não pode merecer sua admiração. Por conseguinte, Não tendo lugar para exercer seu poder, este se manisfestava de forma
ela nunca poderá realizar-se plenamente em sua companhia. Neste caso, bastante perversa.
irá sentir a dádiva de si mesma como uma exploração e uma servidão. A obra apresenta-nos Adolphe, um capitão do exército apaixonado
pela pesquisa científica, e a mulher Laura, que acaba por torná-lo louco
O assassinato do patriarca ao ponto de ser necessário interná-lo. Ela mostra-se azeda e está pronta
para tentar tudo para subvertera razão do marido, a fim de se libertar da
Os homens e as mulheres não estão ordenados em blocos monolíticos
influência exercida por ele. Em Um mundo de patriarcas, o argumento
que seriam correspondentes, de um lado, a oprimidos, e, do outro, a
utilizado é terrível. Adolphe pretende que a filha vá estudar na cidade;
opressores. A opressão social e ideológica masculina encontra ocasional-
mente sua contrapartida no terreno afetivo e privado no qual certas rrni- para conservá-la em casa, Laura insinua que ele não é o pai da menina.
lheres acabam por exercer uma forma de ditadura. Habituadas a conside- Essa idéia provoca a raiva de nosso capitão e chega a levá-lo à loucura.
rarem-se "vítimas", nem chegam a dar-se conta de seu poder opressor. Em um momento importante da Peça, ele declara à mulher que ela é
. • Neste aspecto, Jung apontou, em várias ocasiões, que o oposto do a causadora de sua loucura porque a única coisa que lhe interessa é o
amor não era o ódio, mas o poder. Quando já mão amamos ou já não nos poder. Ela admite que, de fato, essa é realmente a questão. Encontra-se
sentimos amados, entramos em conflito. Essa observação é particular- tão obcecada pela necessidade de dominação que coloca toda a inteligên-
mente válida em relação à vida conjugal. À medida que o amor diminui, cia a serviço da aquisição de um poder que, durante muito tempo, lhe foi
é substituído por uma espécie de guerra de usura. negado.
Tal fenômeno é verdadeiro igualmente em relação à mulher decep- Do exterior, compreendemos sua maldade, mas do interior — como.
cionada com o cônjuge. Emerge interiormente um protesto surdo que a espectadores e, sobretudo, como homens — ficamos com receio dela
opõe ao marido e aos filhos. Anteriormente, falamcis disso como se fosse porque se trata da maldade de uma deusa traída e ferida. Aliás, em deter-
a voz do animus prisioneiro de um complexo paterno negativo; mas na minada ocasião, Adolphe declara: "Nesse caso, quem é que dirige a vida?"
formação dessa atitude dominadora, Jung via também o efeito de um E ela responde: "Deus, e somente Deus." Ele replica: "Então, o deus da
complexo materno negativo. Ele afirmava que, em decorrência da má guerra!" E acrescenta: "Ou, antes, a deusa."6
relação com a mãe, tal mulher não consegue identificar-se com os com- Esse trecho é perturbador, porque faz sobressair a capacidade de vio-
portamentos e as atitudes femininas tradicionais. Deseja viver em um lência da mulher oprimida. Ela não chega a matar o 'marido com um
mundo claro desprovido das obscuridades do mundo materno. Se encon- fuzil, mas antes empenha-se em matá-lo psicologicamente. O próprio
tra um companheiro que pode acolher a força e a originalidade de seu Strindberg utilizava o termo "assassínio psíquico" para descrever o que
espírito, seu animus acaba desabrochando. Caso contrário, ela soçobra tinha vivido nas mãos da própria mulher.
na melancolia e torna-se possuída por um animus que faz tudo para que-
brar a força do homem.4
5. August Strindberg. Pére, tragédia em três atos. Paris: L'Arche, col. "Répertoire pour no théâtre
216 populaire", 1958.
4. Cari Gustav Jung. Les Racines de la consciente, op. cit., p. 117 217
6. August Strindberg, op. át., p. 73.
A forçadas mulheres, a fragilidade dos homens mente ao contrário. Em compensação, reina na mulher um-a-convicção
de superioridade. Aliás, isso é verdadeiro para todo ser humano: aquele
Nesta peça, existe outro momento verdadeiramente terrível.-Ao
que é inferiorizado sonha sempre em mostrar édin todO-O brillI6 sua
der-se nas lembranças da infância, Adolphe fica todo enternecido. Quan- mazia. Assim, a força de afirmação das mulheres apóia-se, munas vezes,
to à mulher, que é constantemente dura e implacável, de repente, torna- nesta convicção de superioridade que elas carregam interiormente. Du-
sé meiga e terna para com ele. Pega sua cabeça nos braços e embala-o rante um lapso de tempo, correm mesmo o risco de se identificar com
acariciando-lhe os cabelos, como é costume se fazer a uma criança. Ela isso e, como Laura, sofrer de uma certa cegueira.
lhe confessa que só se sente verdadeiramente feliz quando estão nesta Nos homens, encontramos uma postura exatamente oposta. Um grande
posição e quando ele a trata como mãe.
número deles acredita em sua preeminência, uma crença escorada desde
Para Laura, todos os homens vêm de um ventre feminino e, neste a infância' na cultura patriarcal. No entanto, a exibição de tal superiori-
sentido, todas as mulheres são suas mães. Eles deveriam permanecer crian- dade dissimula uma grande vulnerabilidade. Assim, o capitão Adolphe,
ças durante toda a vida'. Aliás, é assim que conseguem atrair o amor das que usufrui de ótima reputação entre os militares, perde a autoridade em
mulheres. Laura diz ao marido que ele cometeu uma loucura ao procurar um abrir e fechar de olhos e se declara menos do que nada, desde que a
a mulher que existe dentro dela porque é infinitamente superior ao ho- mulher insinuou que ele não é o pai da filha do casal. O complexo de
mem, mais forte e mais inteligente'. Diz-lhe'que, a partir do momento em inferioridade que se dissimulava no inconsciente acaba por vir à tona e
que ele tentou abandonar a posição de criança apaixonada, declarou-se a • subjugar a personalidade consciente.
guerra entre eles.
Aliás, tal inferioridade dissimulada explica o motivo pelo qual os ho-
mens reagem à decepção amorosa abusando das drogas, das bebidas alcoó-
O CAPITÃO. — ... Eu, que na caserna-ou d.frente de meus homens era sempre o
licas ou do sexo — conjunto de comportamentos que denunciam essa
chefe, junto de você tornava-me aquelé qUe obedece. E olhava para você corno
fragilidade interior. Aliás, as estatísticas confirmam tal interpretação: entre
•uma criatura sobrenatural, cumulada de todos os dons, e bebia suas palavras
os toxicômanos, o número de homens é três vezes superior ao de mulhe-
como uma criança estúpida...
LAURA..—•- Sim, e essa é a razão pela qual eu amava você como se fosse uma
res.' Somos levados a crer que a pretensa virilidade masculina não passa,
criança. Mas como você pôde ver, sempre que mudava a natureza de seus senti-
muitas vezes, de um adereço que dissimula uma grande dependência.
mentos, sempre que você se comportava como meu amante, eu ficava envergo- Aliás, podemos associar essa dependência à falta da presença paterna,
nhada; eu tinha vergonha como uma mãe que fosse acariciada. pelo 'filho! Que que implica uma fragilidade psicológica no menino. A falta de modelo
horror! masculino engendra uma ferida de identidade que fará com que esse ho-
O CAPITÃO. — Dei-me conta disso, mas não . cheguei a compreender seu alcance. mem rente compensar o sentimento de sua fragilidade pela construção de
Ao .sentir seu desprezo, eu pretendia conquistar você provando-lhe minha virili- uma rígida armadura. Isso produz o machismo masculino pelo qual ele
dade. tenta afirmar sua superioridade em relação às mulheres. Podemos até mes-
LAURA. -- Pois bem, eis aí seu erro. A mãe era sua amiga, ao passo que a mulher mo ver aí as raízes neuróticas da sociedade patriarcal. Os homens instalam
era sua inimiga, porque o amor entre os sexos é luta e ódio. Não pense que, um andaime ideológico e social para'dissimularem uma profunda ferida e
algum dia, eu cheguei a me entregara você; nunca dei nada, mas sempre tomei o
convencerem-se de sua própria força com medo de sua fraqueza.
que eu desejava, é isso ai.'
Além disso, basta observar o que se passa com a pornografia masculi-
na para nos convencermos de tal interpretação. Em poses sugestivas, a
Esse trecho do diálogo é bastante revelador de uma dimensão escon- maioria dos manequins declara ter necessidade, a qualquer preço, do ór-
dida de um grande número de relações homem-mulher. Durante nume- gão sexual masculino para satisfazer um impulso urgente. Sabemos per-
rosos séculos, a sociedade patriarcal manteve as mulheres em estado de feitamente que, no que tange à realidade, as coisas nem sempre são
inferioridade, mas isso é apenas o aspecto superficial das coisas. No cla-
assim; não são raros os casais em que a esposa can-sa-se das expectativas
ro-obscuro do inconsciente, poderíamos dizer que tudo se passa exata-

8. Huguette O'Neil. "Santé mentale: les hommes, ces grands oubliés...". In L'Actualité médicale,11
218 219
.....
7. August Strindberg, op. cit., p. 53. de maio de 1958, p. 27.
do cavalheiro. Assina, portanto, a--pornografia serve para reforçar uma de esperar do homem uma- confirinação que não chegiiva a manifestar-se.
auto--estima deficiente-e lança um bálsamo-sobre o frágil.egomasculino. No plano .coletivo;, tudo ísso.levou.à.criação deumaáiérdadeira'geração •
Parece que os homens têm nece-Ss-iclaele de um" constante reforço da de amazonas, e no plano amoroso, dá-nos difeito -a-r-e.;h-ravoltas inespera-
virilidade para manterem o equilíbrio narcísico. Em certos aspectos, toda das. Outra peça de teatro, desta vez do escritor alemão Heinrich von
a cultura parece construída a partir da manutenção desse reforço. Eis a Kleist, descreve admiravelmente tal situação.' Há quase dois séculos, ele
razão pela qual o questionamento da sociedade patriarcal só podia levar já prefigurava o amor contemporâneo.
ao aparecimento da vulnerabilidade, da fragilidade e da impotência que Pentesiléia era a rainha das amazonas, essas guerreiras lendárias que
se dissimulavam sob a carapaça masculina. amputavam um dos seios para não serem incomodadas no manuseio das
Se as mulheres podem ser possuídas. pela certeza interior de terem armas. Elas não toleravam os homens, matavam-nos no nascimento ou
razão, em compensação, os homens podem ser possuídos pelo desespero, faziam-nos "escravos do amor" a fim de garantirem sua -descendência.
e reagem por meio de gestos'que, de maneira bem ilusória, tentam resta- Em suma, o inverso da sociedade patriarcal, na qual as mulheres é que
belecer a superioridade perdida. Freqüentemente as notícias do dia fa- são feitas escravas.
lam-nos de exaltados que se entrincheiram em casa depois de terem feito Na peça de Kleist, as amazonas vão para a guerra e, no caminho,
mulher e filhos como reféns. De forma gritante, tais gestos colocam em encontram os gregos, que têm como comandante o belo Aquiles:Tendo-
cena a situação. de isolamento interior que é a realidade de muitos deles. se desencadeado a luta entre os dois campos, na febre do combate, Aquiles
São produtos de uma sociedade que 'lhes solicitou para ficarem calados e e Pentesiléia se apaixonam. Procurando por todos os meios aproximar-se
expressam dessa forma o quanto estão entrincheirados em si mesmos. É da rival para dar-lhe testemunho do seu amor, ele acaba. por desafiá-la
lastimável ver homens que matam os vizinhos por não encontrarem pala- para um duelo singular no centro do campo de batalha. Apesar das inci-
vras para designar seus sentintentos e por não estarem cai condições de tações à prudência feitas 'pelas companheiras — que tinham observado-
enfrentar a revelação de sua vulnerabilidade. que o sangue da rainha não fervia somente com a febre do combate, mas
Um grande número de casais modernos vivem a partir de permutas também com a febre, muito mais perigosa, do amor —, Pentesiléia não dá
em que a dinâmica tradicional dos poderes está invertida. Quando a mu- ouvidos às suas súplicas e aceita o desafio. Não quer reconhecer -seu amor.
lher se afirma com paixão, orgulhosa da nova força •que nasce bela, o por Aquiles e jura que lhe dará a morte com um golpe de espada.
homem encontra-se, de repente, aniquilado sem razão. Isso torna bastan- No entanto, eis que, no meio do combate, ele a domina, mas recusa-
te difícil a comuniéação entre eles. À paixão e à colera da deusa, se a matá-la. Decide oferecer-se com o peito descoberto à sua amada e
corresponde um menino que tem medo de perder suas prerrogativas. tornar-se seu escravo para ter a garantia de ficar com ela. Recusando-se a .
Tudo se passa como se uma relação -do tipo pai-filha .na superfície ceder à fraqueza do amor, Pentesiléia não reconhece o gesto de Aquiles e
dissiinulasse uma relação do tipo mãe-filho na profundidade. Aliás, não, o mata. Tendo voltado ao campo, a rainha vitoriosa transportada pelas
estou convencido de que passar para uma relação do tipo mãe-filho na companheiras, completamente inebriada pelo combate, recusa-se a acre:
superfície, dissimulando uma relação do tipo pai-filha no incOnsciente, ditar, em um primeiro momento, que matou seu apaixonado. Então, a
venha a facilitar alguma coisa. Os cônjuges devem lutar para não soço- sacerdotisa manda que lhe mostrem o corpo estraçalhado do herói.
brarem no arcaísmo das relações mãe-filho e pai-filha. Isso não significa
que regularmente não passemos por essas vivências, mas a fixação em A SACERDOTISA. — Ele amava você! Desejava ser seu prisioneiro! Estava pronto
para seguir você até o templo de Artemis. Tinha vindo ao seu encontro com o
determinada dinâmica prejudica o desenvolvimento psicológico. Somen-
coração cheio de alegria.., e você.., você o...
te uma vigilância acentuada poderá permitir a igualdade psicológica dos
PENTESILEIA. — Não! Não! Não! Não fui eu!... Não poderia desfigurado.., a não
parceiros.
ser que o dilacerasse com meus beijos. Fiquei exaltada. Quando se ama, já não se
faz diferehç-a 'entre morder ou beijar. .(Ajoelha-se diante do cadáver). Meu pobre
A ascensão das amazonas

O feminismo permitiu que um grande número de mulheres colocasse 9. Heinrich von Kleist.Penthésdée, tradução e adaptação em francês de Julien Gracq. Paris: Librai ri
220 221
em evidência seu lado de amazonas, realçasse seu amor-próprio e deixasse )1,0 Corti, 1970. ....
Aquiles! Perdoe-me! Não consegui conter meus lábios apaixonados. Eu desejava a de seus homólogos masculinos. Por exemplo, entre- os gregos, conhece-
apenas beijar você... (Beija o cadáver). _ mos as três Graças, mas também as três Fúrias. Tratava-se de mulheres •_
--- =A SACERDOTISA. Afastem-na daqui! .. •
completame-ntelfistéricas que- representavam o -ladorirracional da Cólera •
—. — Vocês todas já amaram até o P. orno de desejarem morder! Voas
PENTESILÉIA
feminina. A linda Artemis, deusa selvagem, lançava seus cachorros na
todas já murmuraram ao ouvido dos amantes que desejavam devorá-los.., pois
perseguição de quem a visse no banho. Deixava que, sob seu olhar impas-
bem, foi isso o que eu fiz!... Não sou louca!
sível, os animais estraçalhassem o intruso.
Na realidade, a história está repleta da violência das deusas. Tanto
Finalmente, reconhecendo que havia assassinado o único homem que
mais que a principal característica de várias delas consistia em uma espé-
tinha amado, ela acaba por se suicidar.
cie-de desmesura. Quer se trate de piedade, dádiva de si ou ainda malda-
'Sem dúvida, tentando resolver alguns infortúnios pessoais ao escre-
de. A amazona moderna que reivindica as prerrogativas das deusas anti-
ver a peça, o romântico autor estava longe de imaginar que, ao fazer
gas pode também ser, à imagem de Pentesiléia, vítima de sua desmesura.
apelo às amazonas míticas, estaria esboçando o quadro das relações amo-
Neste caso, derruba o companheiro e desfaz o casal; só mais tarde é que
rosas do futuro. Com efeito; a inversão dos papéis tradicionais é, nos
irá dar-se conta de sua intransigência e de que seu amor era sincero.
nossos relacionamentos, cada vez mais corrente. Isso é válido, em parti-
Mas, em razão da atrocida'de das violências cometidas por homens,
cular, para as gerações jovens. Um número cada vez maior de homens
falar da violência das mulheres é, na nossa sociedade, um tabu. Tal postu-
jovens acusam agora as parceiras de sua idade de serem duras e intransi-
ra leva a psicanalista Jan Bauer a dizer que as mulheres atuais tornaram-
gentes. Elas é que tomam conta de tudo do Princípio ao fim. Decidem
se intocáveis; além disso, lançam todas as culpas para cima da sociedade
quando começa o relacionamento, de que maneira deve desenrolar-se e
patriarcal. Cansadas de carregar a sombra coletiva e de servir de bodes
quando deve terminar. Quanto aos homens, sendo eles próprios os com-
•expiatórios dos homens,elas desembaraçam-se, com toda a razão, desse
panheiros das primeiras feministas, e prestando mais atenção às reivindi-
•aspecto, mas esquecem a dimensão da sombra individual, a parte de mal
cações das mulheres, acabam por oferecer-se às namoradas, por assim
que aflige todo ser humano, quer queira ou não. É assim, continua ela,
dizer, de peito descoberto, como fez Aquiles. No entanto, estas aprende-
que aparecem novas hipocrisias e novos tabus:
ram, justamente com as mesmas mães, a deSconfiar de seu sentimento
amoroso. Aprenderam a ser inflexíveis e, às vezes, levam dernasiado lon-
Como se as mulheres nunca se enganassem e se tornassem más apenas quando
ge tal aprendizagem. Matam o relacionamento e mais tarde é que chegam
fossem empurradas pelos homens, a menos que sejam éxcepcionalmente demo-
a compreender o aspecto inconsciente do drama.
níacas! Supostamente, são sempre boas, sempre vítimas. Não só esta maneira de
ver é aberrante, mas, afinal de contas, tira-nos toda a dignidade. Para quem pre-
O exagero das deusas tende chegar à plenitude, a autocrítica é essencial. [...] O grande desafio para as
mulheres é justamente abarcar toda a humanidade, tanto seu lado obscuro quan-
É notável que tanto Latira, na peça Père, quanto Pentesiléia reivindi- to seu lado lurninosol"
quem as prerrogativas da diyindade. Do mesmo modo, ao redescobrirem
as deusas antigas, váfias mulheres chegam a acreditar que estas não têm
sombra." Como se elas se limitassem a ser generosas, férteis, boas e mei- Cada coração chegará ao amor
gas, e como se, sob seu regime, só houvesse paz. Elas desejam ardorosa- Ao explorarmos as dinâmicas de poder que vêm substituir a colabora-
mente a passagem rápida para o matriarcado, julgando que assim o mun- ção e o entusiasmo quando falta o amor, acabamos por compreender
do se tornará amável e acolhedor. No entanto, importa observar que a que, há muito tempo, reina uma guerra surda entre os sexos. Tal guerra
capacidade de violência das deusas da mitologia era tão importante quanto começou bem antes do feminismo. No entanto, tenho a impressão de que
só foi levada a sério pelos homens a partir do momento em que aparece-
ram as primeiras vítimas no seu campo.
10. Como mencionei anteriormente, para Jung, a sombra é uma estrutura arquetípica de nosso
psiquismo, o que significa que cada ser tende a dissimular os aspectos menos brilhantes de sua
personalidade. Sem assumir essa parte de sombra — o que não é uma tarefa fácil —, o ser não 11. Faule Lebrun. "Face à Fiambre", entrevista concedida à psicanalista junguiana Jan Bauer. In
222
....... pode "tornar-se completo". 223
revista Guide Ressources, vol. 11, ri2 8, maio de 1996, Montréal, p. 41. ...
. De qualquer maneira, atualmente, Ela e Ele, corno muitos outros ca- se comprometer Ou a mulher forte e racional que ama um homem dotado
sais, são vítimas desSe.conflito. De que modo há de terminar essa-guerra? - - de forte sensibilidade feminina,-importa reconhecer que a vida é perfeita.:
Por fafra- de .combatentes... ? Por esgotamento... ? Às vezes pergunto-me Não no sentido 'de que é sempre amável e boa, concedendo-nos o que
se o cantor Leonard Cohen não terá razão quando afirma: "Cada cora- desejamos, mas antes no sentido de que nos dá sempre aquilo de que
ção chegará ao amor, mas como um refugiado. ”12 Quem sabe, a guerra temos necessidade para prosseguirmos nossa evolução. Assim, ela acaba
continuará sendo demasiado violenta até que o campo de batalha fique despertando todos os nossos complexos, obrigando-nos a assumi-los, em
completamente devastado e tudo esteja destruído. Neste caso, talvez o vez de evitá-los. Não nos deixa tranqüilos, impelindo-nos sempre para a
homem e a mulher, tendo-se tornado exilados e refugiados, estejam.pron- frente, forçando-nos a descobrir os aspectos claros e sombrios de nós
tos para reconhecer sua necessidade de amor. Essa guerra terá servido mesmos e levando-nos a tomar consciência de que cada um é o primeiro
para prepará-los, para trabalhá-los. Por seu intermédio, terão sido lavra- artesão da própria alegria.
dos, despedaçados, torturados, atormentados. Terão sido levados a co-
nhecer a ilusão tanto da vitória quanto do fracasso. E a viver, durante
horas, uma grande escuridão nas prisões do coração... Até que mais nada
conte para eles a não ser a mão estendida no escuro.
Não será Verdade que foi assim que muitos de nós chegamos ao amor?
Espancados, humilhados, andávamos à procura de . um derradeiro refú-
gio. Então; resplandecente, apareceu o amor e retomamos nossas vidas,
expurgados dessa imensa pretensão que é a vontade de exercer um poder
qualquer sobre o outro. Afinal, o único poder que nos interessa é o de
amar com vigor e humildade, sem orgulho nem Vergonha, como seres
humanos.
Eis á situação em que nos encontramos. O casal moderno tornou:se
um campo de batalha; agora, as notícias da frente de combate chegam-
nos do quarto de dormir, da cozinha e da sala das 'casas, nas cidades e
aldeias. Pode ocorrer que as dinâmicas de dominação estejam em via de
se reverter e que o futuro venha a pertencer às mulheres, como o passado
pertenceu aos homens. O pêndulo está prestes, talvez, a passar de um
extremo para outro. Esses movimentos são os próprios movimentos da
vida. Quanto a mim, desejo que, na passagem da antiga sociedade patriarcal
para um eventual matriarcado, os homens e as mulheres venham ainda a
se benefiar de algumas gerações para caminharem lado a lado em uma
real fraternidade. Quem sabe, tomem gosto por isso e acabem por adotar
esse modelo de caminhada.

A vida é perfeita

Quer continuemos a viver segundo o modelo das dinâmicas dc poder


tradicionais ou adotemos dinâmicas opostas, quer consideremos a mu-
lher que ama demais relacionando-se com um homem que tem medo de

225
224
12. Leonard Cohen. "Anthem", canção extraída do disco The Future, Columbia Records, 1992.
compará-los -aos vidros utilizados em laboratório, nos quais é criado o
vácuo. Aoj menor movimento, aspiram,tuclo jo que está à sua volta, Os..
seres carentesJe desesperados produzem o mesmo efeito. Atraem e exer-
cem fascínio porque seu vácuo interior desempenha o papel de ímã?
10 Quando dois desses vidros vazios se encontram, ficam totalmente gruda-
dos um no outro.
O Amor na Alegria O amor é uni choque, até mesmo um traumatismo. Nunca devemos
esquecer que a deusa do amor, Afrodite, nasceu dos testículos do deus
Uranos; estes tinham sido lançados ao mar depois que o filho Cronos os
Bebamos á liberdade e ao amor!
tinham cortado, atendendo a insistentes pedidos de sua mãe, Gaia, exau-
Uma coisa não excluindo a outra.
rida pelo número de filhos que tinha feito como marido.'
jULOS BEAUCARNE No entanto, não devemos confundir "apaixonar-se" com estabelecer
uma relação. A paixão difere da criação de uni relacionamento, no senti-
do em que este é uma escolha consciente e articulada que se baseia na
partilha de valores, assim como na negociação de um objetivo comum.
• O trabalho do amor
Em geral, estabelecemos uma relação no momento em que vamos para a
"Apaixonar-se" não é estabelecer unta relação cama com alguém; ora, daí é que surge uma parte do problema.

Corno vimos, a ignorância de cada um relativamente a suas feridas


A fase narcisica do amor
torna inevitáveis as repetições que constituem oinras tantas possibilida-
des de tornada de consciência e de evolução. No entanto, para tornar Passar de uma paixão amorosa para um verdadeiro relacionamento
possível a vida a dois, importa ainda combater certas idéias preconcebi- significa passar do casal narcísico para a vida a dois na qual predomina a
das. Tal postura nos permitirá avaliar a amplitude do desafio que está à colaboração e a ajuda mútua. Por ocasião da fase narcísica do amor, vive-
nossa frente e vislumbrar atitudes que possam facilitar sua realização. mos rins olhos do. outro como Se estes fossem unia espécie de espelho
Formar um casal é, antes de tudo, ficar apaixonado. O amor-paixão idealizado que constantemente nos remete para uma imagem positiva de
lança-se em uni espaço vazio no qual os amantes não existem. De repen- nós mesmos. Esses olhos permitem-nos descobrir que somos lindos, ge-
te, os desejos incendeiam a floresta das fantasias. Em uma só noite, ve- nerosos e sedUtores.
mos desfilar diante de nós a possibilidade de realizar tudo aquilo a que Quanto menos reconhecidos tivermos sido, tanto mais frágil será nossa
secretamente aspiramos em virtude de nossas carências. Eis-nos, de re- identidade, e tanto mais importante será o amor na nossa vida. Pelo me-
pente, transformados, mais abertos para a vida, unidos com a vida! Neste nos essa espécie de amor que, nos seus primeiros arroubos, ainda não
caso, o outro aparece como a condição sina qua non da manutenção des- reconhece o ouj tro; aliás, este só nos servé, Por assim dizer, de reflexo.
sa abertura. Portanto, não podemos perdê-lo de modo algum. Também já Essa fase tem, mesmo assim, a grande vantagem de levar-nos a vislumbrar
não podemos deixá-lo livre, temos de controlá-lo em suas idas e vindas. nossa personalidade sob seu melhor aspecto. Tem, igualmente, a vanta-
Assim, perde-se a alegria que tinha sido vislumbrada. gem de levar-nos a conhecer uni estado de fusão amorosa em que tudo é
O amor não pode livrar-nos de nós mesmos. Nosso companheiro não harmonia. Essas impressões iniciais hão de permanecer como apoios no
pode responsabilizar-se por nós. Não pode subtrair-nos à nossa miséria caminho que resta percorrer até se chegar ao verdadeiro casal.
interior. Tal ilusão só pode tomar forma no fogo da paixão. Ora, as pai-
xões amorosas estão baseadas nas carências de cada um. Tornam-se rapi-
* No original, aimant. Assinale-se, de passagem, que este termo também pode ser considerado
damente prisões porque exigimos do outro que, além de salvar o ser adjetivo verbal de ai= (amar). (N.T.)
angustiado que somos, não nos mostre suas fraquezas. Os seres vítimas 1. Esta idéia foi elaborada pelo psicanalista junguiano Michel Cautaerts em lima conferência, ainda
226 inédita, intitulada "I love you. Let's separater, apresentada no 135 Congresso da Associação
.... da paixão sofrem, sem o saberem, de um grande vazio interior. Podemos Internacional de Psicologia Analítica (AIPA), em Zurique, em agosto de 1995.
227
.......
-

Os casais contemporâneos não têm vida longa porque, muitas vezes, Idealmente, a trajetória do amor vai do "eu o amo e não— pOsso.passar
seus protagonistas não superam a fasemarcíica. Mantém-se- em funcio- sem você porque, na realidade, não.tenhompor.por mime . . necessito que„
•namento enquanto os dois parceiros podem contemplar-se no reflexo você confirme meu valor" até "adoro que você esteja aqui, meu amor,
positivo que oferecem um ao outro, por meio. das -primeiras emoções. você não poderia deixar de existir, mas já não tenho necessidade de que
Mas seis meses depois, o espelho torna-se completamente embaçado. confirme incessantemente minha existência". O casal possível exige que,
Então, cada um começa a descobrir o interlocutor fora da projeção que antes de tudo, os parceiros amem e respeitem a si mesmos. Ao aprender a
tinha sido feita a seu respeito. Aparece sua realidade de indivíduo ferido apreciar-se, o ser se libertará da dependência do outro e poderá relaxar
que restitui uma imagem menos lisonjeira. seu controle sobre ele. No entanto, a passagem de unia Vontade de con-
"Você não passa de um saco de ossos, já não consigo te beijar!", recla- trole absoluto do outro, por medo de perder o amor que oferece, para
mava um jovem apaixonado à namorada após alguns meses de uma tórri- um ponto de vista mais solto em que seja reconhecida a ele a possibilida-
da aventura durante a qual a moça, um pouco mais velha do que ele, de de viver livremente, leva a pessoa a travar um verdadeiro combate
tinha-se mostrado paciente e iniciadora. A expressão desse amante ppde- interior.
ria .ser traduzida da seguinte forma; "Já não consigo beijar-me nem reco- Neste sentido, o amor faz estremecer o egocentrismo de maneira in- .
nhecer-me através da imagem de mim que você me restitui!" Quando os suportável. Tal egocentrismo reveste-se de mesquinharias, suscetibilidade,
olhos do companheiro deixam de refletir com fidelidade o sentimento de ciúme e. intolerância, outras tantas expressões que mostram as resistên-
perfeição, começa a prova da vida a dois. cias ao verdadeiro amor. O próprio orgulho não tem um momento de
Por que será tão difícil abandonar o sonho que temos a respeito da descanso, na medida em que é atacado por todos io.s lados pelo amor. Ao
vida conjugal, assim como o do companheiro ou companheira ideais? mesmo tempo que pretende beneficiar-se dos grandes eflúvios apaixona-
Simplesmente porque, no plaho psicológico, o abandono desse sonho dos e das aberturas iluminadas, o pequeno eu egocêntrico não deseja
constitui uma real perda da virgindade. No entanto, sem ela não haverá ceder terreno e transformar-se. Lutará contra o amor até que o relaciona-
relacionamento completo. Verifica-se uma resistência, tanto dos homens mento esteja em ruínas; em seguida, há de queixar-se amargamente de
como das mulheres, porque trata-se de entrar em contatocom o outro tal seu infortúnio, tentanto ignorar a circunstância de que sua infelicidade
como ele é, e não Mais tal como gostaríamos que fosse. Trata-se de amar foi provocada por ele próprio.
•alguém, mesmo se ele não corresponde perfeitamente à nossa imagem de Portanto, a vida conjugal é um campo de batalhá em que se trava a
anima e de animus. Uni retacionamnto pode construir-se a partir do luta contra o orgulho pessoal. Ao sacrificar nossas reivindicações ego-
momento em que dois parceiros aceitarem essa perda da virgindade. cêntricas, aproximamo-nos da intimidade. Esse processo irá engendrar
Se a relação vier a ser estabelecida a partir de bases menos 'famas- muitos sofrimentos para o egocentrismo, que há de revoltar-se. Em cer-
mancas, a verdadeira comunicação poderá tomar forma. Neste caso, os tos dias, parece que o sacrifício é demasiado pesado e, de novo, assiste-se
sonhos e os ideais poderão ser permutados como se fossem preciosas ao triunfo da mesquinharia. No entanto, aos poucos, a consciência se ilu-
linhas diretrizes, mas deixarão de implicar comportamentos compulsivos mina e o »flor impõe-se até conseguir o controle final sobre o coração.
ou decisões categóricas. O relacionamento poderá desabrochar no res-
peito mútuo. O amor com A maiúsculo
Unir-se e permancer juntos por amor, eis o que para os cônjuges re-
O amor como combate
presenta, incontestavelmente, um desafio. Para que isso se torne possível,
Podemos dizer que o verdadeiro trabalho do amor só começa quando é necessário colocar em questão algumas idéias preconcebidas. A primei-
as individualidades voltam à tona com seu cortejo de orgulho, pudor e ra pretende que o ser completo implica ser dois. Na realidade, se uma
diferenças. Mas tal trabalho só poderá ser feito se for conservado na pessoa se une a algtiéiii para encontrar a eára-metade, corre o risco de
memória, como fonte e objetivo derradeiro, esse primeiro e espontâneo fracassar. Simplesmente porque, na vida a dois, existe tanta fricção entre
momento de eclosão em que, através das emoções da paixão, foi pronun- os parceiros que não se trata de proceder a uma adição (1/2 + 1/2 = 1),
228 ciada, sem quaisquer reservas, a declaração "eu te amo". mas antes a unia multiplicação. Ora, a multiplicação de 1/2 por 1/2 não dá 229
....
uma unidade, mas uma quarta parte. Eis o "x" da questão. Os indiví- A respiração do casal
duos que vivem juntos tornam-se rapidamente a quarta parte de si mes- O sentimento Amoroso é motivado_por uma necessidade de. comu-
mos. Se são vistos sozinhos;mostratn:se" vivos e criadores; inasse estão nhão que procuramos concretizar em nós, unindo:nos a outra pessoa...
na frente do parceiro, parece que se tornam carrancudos e convencionais. Desejamos que as diferenças e os conflitos se desvaneçam para que, final-
Como já disse antes, para ter a possibilidade de viver a dois, importa mente, desapareça o sentimento de solidão e de separação que nos esma-
saber, igualmente, que se pode viver sem a companhia de um parceiro. O ga. Inconscientemente, desejamos reparar essa ferida narcísica associada
celibato deve ser aceito como uma opção válida e séria. Este estilo de vida ao fato de sermos homens ou mulheres. Portanto, procuramos responder
não representa necessariamente uma situação de inferioridade ou urna à incompteteza de base, grudando-nos a outra pessoa.
escolha egocêntrica, mas pode ser considerado como um retiro durante o No entanto, para além da tentativa de reparação narcísica, parece que
qual a pessoa tem como objetivo recuperar suas forças. Pode até mesmo um impulso em nós procura essa vida em duo. Como se, para resolver o
prolongar-se por toda a vida se o indivíduo decidir consagrar as energias paradoxo central de nossa identidade, que oscila entre individualidade e
a outra causa que não a vida a dois ou a família. Graças a Deus, o estado universalidade, a comunhão profunda com outra pessoa pudesse nos ofe-
amoroso escapa à vida a dois. É, inclusive, nos períodos de extrema soli- recer unia ponte essencial. Se conseguir permanecer eu mesmo na pre-
dão que às vezes o experimentamos de forma mais intensa. sença de outro sem me fundir totalmente nele, se conseguir reconhecer-
No entanto, a vida em comum continua sendo o grande negócio. me completamente no outro sem perder o sentido do que eu sou, então o
Considerando-a a partir de uma reviravolta dePerspectiva, pode ser salu- paradoxo estará resolvido. Saberei de que modo ser, ao mesmo tempo,
tar. Com efeito, na maior parte das vezes, concebemos o amor como algo um e dois, effl vez de ser completamente um dos parceiros ou .compfeta-
que devemos cultivar. Mas, na realidade, não somos nós que trabalhamos mente o outro.
e lavramos o campo do Amor, mas é antes ele que nos trabalha e lavra até - A felicidade repousa no respeito pelos dois pólos opostos, mas com-
que estejamos em condições de dar nossos mais belos frutos. No decorrer plementares: por um lado, a necessidade de união e, por outro, a necessi-
dade de separação. A capacidade de.regeneração da vida em casal baseia-
da vida, são os próprios obstáculos e as dificuldades que agem sobre nós,
se em uma respiração entre esses pólos. A fase de inspiração é constituída
pressionando-nos a abrirmos ao seu labor. Quanto maior for nossa resis-
pelos momentos em que os dois se encontram em harmonia; a fase de
tência, tanto maior será nosso sofrimento, comprovando desta forma nossa
expiração é representada pelos momentos em que cada um se encontra
participação íntima no Amor. O objetivo da vida é realizado quando nos
sozinho e retoma contato com a própria individualidade.
tornamos Uni com o divino lavrador.
Com toda certeza, as necessidades de autonomia podem ser penosas
Portanto, o casal serve sobretudo de espaço de evolução em relação
para o sentimento de unidade conjugal. Freqüentemente preferimos es-
ao amor com A maiúsculo. Desde que penetramos no campo do Amor,
quecer que ainda existimos como individualidade separada. Mas o modelo
são estimulados todos os nossos pontos de resistência. Todas as espinhas do casal grude-no-grude no qual dois. seres vivem juntos vinte e quatro
que não apareceram na adolescência hão de surgir na intensa fricção do horas por dia, na mais perfeita harmonia sem nunca brigar, não irá manter-
cotidiano. É tão grande o atrito entre duas almas em frente uma da outra se por muito tempo. Aliás, ele é a causa de numerosos sofrimentos..
que todos os medos hão de emergir. Estes devem manifestar-se para que Em geral, os casais que vivem de forma mais fusiona] tornam-se os
possamos compreendê-los e superá-los. mais violentos. Neste caso, as explosões de afetos negativos manifestam a
É perfeitamente normal que os homens e as mulheres invoquem o necessidade de separação não reconhecida. Seria mais simples reconhe-
Amor e, ao mesmo tempo, tenham receio dele, porque se trata, antes de cer os sentimentos de cólera e de irritação como sendo as manifestações
tudo, de urna prova de abertura e de, expansão do ego. Paira sempre a de uni desejo frustrado de expansão individual. Tal reconhecimento per-
possibilidade de uni indivíduo se perder no outro ou, inversamente, a mitiria formular demandas realistas ao outro em relação a essa necessida-
possibilidade de ensimesmar-se e viver unia solidão mortal a dois, que é de pessoal de autonomia, assim como atribuir-lhes um lugar no relacio-
como o purgatório da intimidade. Portanto, não se deve ter vergonha do namento. Quando as exigências individuais não são levadas a sério, con-
medo da relação íntima com o outro, porque, no plano da identidade, o duzem a passagens ao ato lamentáveis ou a uma guerra larvada que impe-
230 desafio é real. 231
de a intimidade real com o companheiro ou a companheira.
A questão da autonomia de cada um dos parceiros faz sobressair toda e ao amor, uma coisa não excluindo a outra", como é proposto pelo
--á.difieuldade da vida a doiS. Aqui, mais do que em outra parte, °medo de poeta belga-P.11os Beaucarne?. - .
;-
machucarmos 6 outro ou de serm-OS abandonados se tivermos a ousadia Dificilmente. Dir-se-ia que, mal nos enjoritramos na vida a dois, ten-
de tomar tempo para nós estimula o registro dos medos primários. Eis a tamos ignorar a realidade incontornável da individualidade dos seres. É
razão pela qual a questão da autonomia individual, de seus limites ou de comb se lutássemOs com todas as nossas forças contra a tomada de cons-
sua abertura, deve ser discutida a dois. Trata-se de estabelecer a escala ciência de que o outro existe verdadeiramente, com uma história, dese-
do que é tolerável, assim como do que é intolerável, para cada um. É jos, sentimentos e necessidades diferentes dos nossos. Oferecemos resis-
possível que venham à tona as divergências de fundo. Às vezes, o sim- tência porque, justamente, vivemos a dois para tentar reparar o dilace-
ples fato de abordar essa questão já é da alçada do insuportável. Neste ramento de nosso narcisismo de base que afirma que somos o único deus
caso, importa discutir a .respeito das ameaças interiores que tornam ou deusa do universo, o único comandante a bordo. Eis a razão pela qual
penosa a abertura. o ser apaixonado adota, de saída, atitudes que têm como objetivo evitar
É importante que cada parceiro reserve para si alguns minutos todos levar em consideração a existência do outro.
os dias, ou algumas horas todas as semanas, para recuperar as energias e A primeira delas consiste em tornarmo-nos tudo para o outro. Tor-
estar em condições de regenerar a vida dacasal; caso contrário, o enfado nando-nos completamente indispensáveis, acabamos por abolir a realida-
instala-se rapidamente. O casal entrá, então, em uma rotina em que já de e a diferença que nosso parceiro representa. .A atitude inversa consiste
não se produz nada de novo. A longa prazo, é a aridez total. Para per-
em fazer com que o outro-se torne tudo para nós. Neste caso, o amamos
manecer viva, a união deve ser a de dois indivíduos que se encontram e se
mais do que a nós mesmris, sacrificamos voluntariamente nossa- própria
redescobrein com regularidade.
individualidade para não rebentarmos a bolha do amor. Quanto mais
Quando os membros de tini casal não respeitam suas necessidades
confinados estiverem os seres em suas posições básicas, maior será o
individuais de isolamento tempciiário, toda a espécie de sentimentos ne-
.risco de formarem um casal baseado no controle, na possessividade e
gativos acaba por obrigá-los a retraírem-se em si mesmos e reencontra-
rem a introversão que conscientemente é recusada por eles..Desta forma, no ciúme.
- Ora, todas as condições impostas ao amor criam uma tensão que, por
cada um irá retirar-se para sua bolha, deixando de comunicar-se com o
outro, e assim o casal morre. si só, acaba por causar . sofrimento. Em nossa vida a dois, tal sofrimento
vem, em grande parte, simplesmente da tentativa que fazemos para con-
Portanto, reservar o espaço de que a pessoa tem necessidade .para
crescer revela-se um ingrediente essencial para a vida a dois possível. trolar a vida do outro. Controlamos a maneira com& ele come, o ruído
Com efeito, é evidente que a pessoa que mais amamos é igualmente aquela que faz enquanto dorme, o que pensa, as fantasias que povoam sua cabe-
. que corre o risco de ser a mais odiada por nós, porque constitui a maior ça e, acima de tildo, os atrativos que prendem sua atenção fora do nosso
ameaça para nossa identidade pessoal. Diante das dificuldades, importa relacionamento.
lembrarmo-nos de que a liberdade é, sem dúvida, o presente mais pre- . Por exemplo, por que nos empenhamos tanto em controlar a sexuali-
cioso que podemos oferecer a nosso companheiro. Com efeito, em sua dade de nossos parceiros? Será que isso significa 'que, para nós, a intimi-
essência, o amor é liberdade absoluta. Dá-se sem condições nem cadeias. dade resume-se na sexualidade? Como é que o destino de tantas pessoas
A vida a dois serve para a aprendizagem desse amor incondicional à ima- acaba sendo decidido em volta de algumas polegadas de pele? Por que
gem da natureza, que se oferece a nós sem que tenhamos necessidade de temos a impressão de que, se abríssemos a porta a essa liberdade, tal
cumprir qualquer exigência. atitude levaria a uma total . devassidão? Não será que esse fantasma de-
nuncia toda a frustração que vivemos em relação a nossas necessidades
Será tolerável viver sem controlar alguém? sexuais? Será porque nossas vidas estão vazias de alegria e o sexo é o
único espaço em que é possível encontrada que estamos tão empenhados
No entanto, pensando bem, será verdadeiramente tolerável viver sem em controlar a sexualidades das pessoas mais próximas de nós?
controlar seu parceiro ou parceira? Ou até mesmo, será tolerável viver
232 sem controlar alguém? Será verdadeiramente possível "beber à liberdade 233
....
A infidelidade enterrar em-mim os- sofrimentos associados ao fato de ter sido enganado em
várias ocasiões, sofrimentos intensos que me tinham deixado sem ilusões em
A sexualidade_ é. um:ponto.delicado-na-yida.cle. quase todos. o.s casais --- relação aetanfor..-É- corno se eirtheesie - firrado a Mirnfiiesinokuitcá Miais sef fiel á
porque, muitas vezes, o que designamos por infidelidades sexuais e trai- uma mulher. Tal postura levava-me a sentir-Me mais à vontade em uniões em
ções conjugais faz parte do que, na vida a dois, é considerado intolerável que eu amava pela metade, vivendo em uma espécie de desapego em que podia
e, inclusive, pode pôr termo ao relacionamento. É claro que podemos professar a meu bel-prazer o questionamento do ciúme.
julgá-las e condená-las, sem maiores formalidades. Mas ao contrário, se O sofrimento gritante — em todas as acepções da palavra — de minhas com-
aceitamos aprender algo com isso, não há dúvida de que tais atitudes panheiras acabou por me levar a compreender não só o quanto eu faltava ao
_ obrigam-nos a fazer um trabalho conosco mesmos, porque agitaria os respeito pelo presente de amor que elas me ofereciam, mas igualmente o quanto
medos e inseguranças de base, aliás, independentemente do fato de ser- eu pisoteava meu próprio ideal amoroso. Os romances passageiros permitiam-
mos nós seus autores ou vítimas. Trata-se de permanecermos em contato me escapar desse impulso muito profundo em mim que, desesperadamente, pro-
cura alcançar uma união íntima bem-sucedida.
íntimo com a natureza da experiência interior sem soçobrar no sentimen-
Lamento profundamente o sofrimento que porventura tenha provocado nos
to de culpa ou na acusação recorrente do parceiro que nos traiu.
outros. Ao mesmo tempo, não me sinto. esmagado sob o peso do sentimento de
Se observarmos as coiSas sob este prisma, podémos descobrir que não
culpa. Essa história é minha, e hoje permite-me vislumbrar uma noção de com-
nos respeitamos ao permanecermos com um parceiro infiel, do mesmo promisso desembaraçada de uma rigidez moral imposta. Quando o coração é
modo que podemos . perceber que essas traições são o sintoma de que
tocado, acaba reencontrando por ele próprio sua integridade.
algo não -vai bem no relacionamento colocando a . ambos em questão: Sei que já não conseguiria viver com uma parceira que tivesse uma concepção
Assim, podemos ser levados a alargar urna concepção limitada da sexua- estreita demais da liberdade. Cada dimensão íntima deve ser avaliada à luz da
lidade ou, pelo contrário, a abandonar a pessoa que amamos porque já história de cada um. Preciso ter uma vida conjugal aberta na qual cada um dos
não nos sentimos - amados nem respeitados. Nos dois casos, teremos parceiros esteja suficientemente enraizado em seu processo pessoal para compre-
vivenciado um momento de crescimento. ender que, antes de tudo, a infidelidade coloca aquele que a comete diante de si
É importante que o-infiel se coloque em questão. Qual tomada de mesmo.
consciência, em relação a Si ou ao casal, é evitada por essa atitude? Qual
é o não-dito. Ou a frustração 'que se desenha por trás desse comportamen- Com tOda a evidência, a questão da autonomia sexual deve ser discu-
to? Qual aventura de criatividade interior encontra-se. assim distorcida? tida à luz das necessidades de segurança afetiva de cada um. Mas tem o
Qual insatisfação •profunda é negada desta forma? Tal exame de cons- seu interesse, nem que seja de um ponto de vista retórico, porque faz
ciência e. mais produtivo do que o fato de se conformar .com as prescri- sobressair outro tema que me parece essencial para que a vida a dois se
ções da lei moral ou as recriminações de um parceiro ou parceira. Não se constitua em algo libertador, a saber: a amizade entre os dois parceiros.
trata de representar o menino bonzinho ou a menina boazinha, mas de
apreender essa oportunidade para se compreender. • Amai-mo-nos com amizade
No decorrer de um grupo de terapia que tinha como tema as relações
Quantos casais podem dizer que verdadeiramente se amam com ami-
amorosas, uni homem que era obrigado a viajar muito fez-nos, a propósi-
zade? A fusão das identidades na vida em casal faz com que não possamos
to de suas numerosas infidelidades conjugais, a seguinte confissão:
ouvir de nosso parceiro a quarta parte do que um amigo ou amiga pode-
ria nos contar. Não fazemos julgamentos sobre nossos amigos, mas julga-
Dei-me conta de que, na maior parte das vezes, minhas escapadas dissimulavam
mos nossos parceiros, porque identificamo-nos com eles. Eles são "nós".
unia profunda insatisfação na minha vida conjugal, uma insatisfação que eu não
No entanto, um dos fatores que mais contribuem para a criação da verda-
tinha a ousadia de expressar com medo de fazer explodir tudo. Em suma, a infide-
lidade permitia-me aceitar um statu quo que, de outra forma, parecia-me intolerá- deira intimidade chama-se amizade. Esta permite-nos acolher o outro e
vel. Essa estratégia preservava-me de ter de encarnar o "malvado" ao provocar a compreendê-lo em sua vivência individual, com uma história e uni certo
crise e, acima de tudo, evitava que eu passasse pela dolorosa prova da ruptura. número de vicissitudes que não são as nossas.
Dei-me conta„ também, de que minhas infidelidades colocavam-me ao abrigo Além de permitir a respiração do casal, ela representa um ancoradou-
234 235
de um eventual abandono por parte de minha companheira. Eu tinha procurado ro mais sólido e durável do que a sexualidade para o estabelecimento de
unia relação a longo prazo. Repousa na comunicação autêntica e verda-
A felicidade é intolerável. Aprendemos a sonhar com ela, mas não a
deira que, por sua vez, apóia-se em uma palavra que expressa o-sentimen-
vivê-la. Portanto,, devei-fios habil:liar-nós a evolui-É entre energias pósiiii:--
to. QuariclO existe amizade, tudo pode ser dito e recebido sem julgamento.
vas. Trata-se de cultivá-las compreendendo, aos poucos, de que maneira
Os raros casais que chegam a tal entendimento transportam uma aura de
é possível estimulá-las. Tal postura poderá levar-nos a romper com certos
criatividade e de verdadeiro amor.
costumes que muitas vezes nos conduzem à lentidão e à melancolia.
A amizade no amor é difícil porque obriga a um trabalho real de
Tenho a impressão de que, mal saímos da infância, a maioria de nós
desapego. Não um desapego estóico que leva à indiferença, mas uma
esquece que estamos na Terra para nos divertirmos e celebrarmosa vida.
atitude de relaxamento que permite deixar o outro ser o que ele é. Neste
caso, deixamos de pretender controlar as atitudes de nosso companheiro É como se estivéssemos de acordo com a fórmula: "Quanto pior, me-
que nos incomodam. Aceitamos que se trata de componentes de nossa lhor". Talvez simplesmente porque na infelicidade temos a sensação de
própria personalidade que, Mesmo sendo despertados por sua presença, existir. A infelicidade é palpitante, intensa! Como é excitante quando se
não poderiam ficar sob sua responsabilidade. No entanto, pode ocorrer trata de reparar uma situação difícil, reconquistar nosso companheiro ou
que, sem pretendermos julgá-lo, venhamos a considerar que o que ele representar os heróis na superação de uma crise! Nos momentos de infe-
provoca em nós é, no momento, intolerável. Em tais casos, talvez seja licidade, que nos levam a centrar-nos em nós mesmos, em nossa vida, é
preferível seguir caminhos diferentes. quando temos realmente a impressão de viver.
Em compensação, nossa idéia da felicidade é bastante estática: ficar
Quanto pior, melhor! sentados em um â pequena nuvem a contemplar o Bom Deus atéo fim de
nossos dias. Acabou-se a aventura! Devemos nos tornar anjos e nos con-
Cada dificuldade da vida a dois coinporta questões essenciais. Será tentar com os odores de santidade! Essa concepção erige-se contra a vida.
que acreditamos verdadeiramente que seja possível sermos felizes indivi- Há mesmo quem diga que as pessoas felizes não têm história. Mas quem.
dualmente e que merecemos tal felicidade? Será que acreditamos verda- não deseja ter historia?
deiramente que seja possível à felicidade a dois? Será que preferimos ver- Freqüentemente associamos o estado de bem-aventurança à ascese e à
dadeiramente a paz à guerra? rigidez. Faz falta a esta idéia a força da emoção e a criátividade quando,
Pretendemosencontrar a felicidade e o amor, mas é disso mesmo que; afinal, somos essencialmente unia coisa e outra. Para encontrarmos o
na realidade, temos mais receio. Quantas pessoas conseguem tolerar mais caminho de 'uma felicidade viva, devemos desempoeirar essas noções
de dois ou três dias de felicidade sem nenhum incidente? Por exemplo, desencarnadas e adotara idéia de uma felicidade palpitante, ávida de
no período das férias, a maior parte dos casais saem de casa sorridentes conhecimento e aventura. À noção de uma alegria estática e monótona,
— a menos que não tenham brigado enquanto arrumavam as malas, o devemos opor a idéia de uma alegria vibrante que utiliza todos os recur-
que é uma situação "clássica" da resistência à felicidade —, mas voltam
sos do ser humano..
silenciosos e carrancudos. Depois de dois ou três dias de uma vida sen-
Estamos na terra 'para ser felizes por meio dos sentidos e de todas as
sual e paradisíaca, uma bela manhã, um deles acorda simplesmente de
possibilidades do espírito e do corpo humanos. Se esse não fosse o caso,
mau humor, assim mesmo, sem qualquer motivo, porque a felicidade
então, seríamos anjos. Portanto, cada casal, assim como cada indivíduo, é
estava tornando-sé insuportável.
convidado a estar em comunhão com o impulso de vida. Agora, que pra-
Outro exemplo? Imagine que você está voltando do trabalho, exaus-
ticamente todas as razões de estarmos juntos desvaneceram-se com a cri-
to e que sua companheira preparou uma refeição à luz de velas... Que
se, a única verdadeira motivação para vivermos a dois é a busca de har-
prazer! Que amável atenção! Mas se, ao voltar do trabalho, encontrar
uma segunda vez as velas em cima da mesa, você começa a se questionar monia na alegria.
e vai ter alguma desconfiança. Na terceira vez, tudo isso se tornará abso-
lutamente asfixiante. Será necessário romper com essa atmosfera român-
tica demais. Um de vocês irá derrubar o copo de vinho, o assado ficará
236
..... queimado ou irá estourar uma briga por uma bobagem.
237
O contrato de casamento psicológico ciado e permutado permite criar uma referência comum. Esses valores
agem como árbitros em situações difíceis e facilitam o abandono r, da luta
. . .
Uma relação libertador-a -rep
- ousa em uma escolha .concienté pelo_ poder servi que- nenhuni do- sdois Venha a perder completamente‘a
face. É mais fácil uni deles admitir que é deficiente em relação a um valor
No momento em que nossa cultura está em via de explodir, devemos
comum do que confessar seu erro ao outro.
mergulhar cada vez mais profundamente em nosso interior para encon-
trar bases sólidas. Atualmente, já não é apenas um contrato de casamento
religioso ou civil que poderá oferecer tais bases. Eles devem ter unia O casal dos sonhos
contrapartida psicológica. É possível firmar um contrato de confiança Darmo-nos a permissão de sonhar juntos a respeito do .que indivi-
mútua em que cada um enuncia os princípios que lhe são caros e em que dualmente vislumbramos como o casal ideal parece-me igualmente capi-
exista entendimento sobre um mundo a compartilhar. Para um casal, há tal para o estabelecimento de parâmetros e valores comuns. Em Mon-
todas as vantagens em formalizar tal contrato íntimo, negociá-lo e, oca- treal, com a minha colega Danièle Morneau, criei grupos de terapia so-
sionalmente, renová-lo. • bre a intimidade amorosa. Entre outras atividades, tínhamos o costume
Ora, preferimos pensar que tudo irá prosseguir espontaneamente, de propor o seguinte exercício. Os participantes que não se conheciam,
porque é menos complicado dessa forma. Não estamos habituados a ne- eram convidados a formar casais fictícios. No primeiro período de qua-
gociar juntos de forma franca e autêntica o que diz respeito ao nosso renta minutos, a situação ideal formulada por cada um deveria ser nego-
mundo interior. Não estamos habituados a falar de tudo e estabelecer a ciada. Em outro período de quarenta minutos, os dois deveriam chegara
dois os quadros do que desejamos que seja nossa vida em comum. Por uni acordo sobre os menores detalhes das férias ideais. Em seguida; o
exemplo, será que existe suficiente intimidade entre nós dois para evitar exercício assumia uni aspecto dramático, no momento em que um dos
basear nossa vida conjugal na possessividade? Quais são as necessidades parceiros deveria anunciar ao outro que tinha decidido separar-sé.
em tempo pessoal e privado de cada um? De que maneira organizar esse -Essa simples proposta de imaginar umá situação real reativava
tempo? De que maneira desejaríamos resolver as inevitáveis situações de traumatismos muito profundos. O mais surpreendente era observar a
conflito etc.? É necessário abordar francamente todas essaS questões e importância" atribuída ao casal formado por péSsoas que se conheciam
muitas outras; porque um relacionamento libertador repousa em unia apenas há noventa minutos. A cada vez, eu era obrigado a constatar o .
consciente escolha de vida. poder do sonho compartilhado. Eu me perguntava o que aconteceria a
Trata-se, igualmente, de tomar consciência de que uni relacionamen- nossas intimidades se, em cada casal, os parceiros tivessem a preocupa-
to existe com sua dinâmica própria que inclui os dois indivíduos. Ele ção de elaborar, sem entraves, uma situação ideal, comprometendo-se a
representa uni terceiro simbólico cuja realidade deve ser reconhecida. realizar, em seguida, o que fosse possível.
Neste caso, a união torna-se uni continente ao qual podemos nos referir Não temos utilizado suficientemente o poder do sonho. Deveríamos
fazer como os políticos e homens de negócios, que estão sempre à procu:
em período de dificuldade. Colocar o lixo na rua ou fazer as compras não
cria qualqfier problema quando estambs *apaixonados. Mas quando ra do que chamam um objetivo para orientar suas ações. Para poder se
alimentar, a intimidade tem necessidade da partilha dos objetivos de cada
estamos vivendo em clima de tensão, essas atividades tornam-se proble-
um. Se o casal conseguir ajustá-los, irá encontrar menos obstáculos insu-
máticas. Então, não queremos fazer mais nada pelo outro e travamos
peráveis em seu desenvolvimento. De qualquer maneira, tudo evolui a
uma luta pelo poder com nosso parceiro.
partir do ideal que trazemos em nós. Então, por que não o colocar, com
Ao contrário, se tivermos a preocupação de elaborar juntos nossa idéia
toda a franqueza, em cima da mesa, uma vez que é ele que servirá de
de vida a dois que nos deixa à vontade, é mais fácil participar das tarefas
árbitro consciente ou inconsciente?
Comuns. Então, um indivíduo coloca o lixo na rua não pelo outro, mas
pelo casal, por "nós". Vai sacrificar seus romances pasageiros, não para
dar prazer ao parceiro, mas com o objetivo de alimentar a união. A importância do jogo e da sensualidade
Em minha opinião, enquanto não tiver chegado a tal entendimento, o Nos meus grupos de terapia, observei igualmente que, para conseguir
238
.... 239
casal ainda não terá tomado forma, nem existirá realmente. O ideal enun- abandonar o espaço mental de onde provêm os julgamentos e as etique-
tas que são aplicados aos outros e a nós rifetn.os', importa lezar em consi- Deus pela celebração do corpo e da sexualidade. A -iec'uSa. desta última
deração, muitas vezes, a dimensão corporal:Para tal efeito, utilizo toda. a: reflete um ódio oculto à vida e uma percepção linnitada da existência
espécie de técnicas que vão .da-dança ao toque terrestre.
esta última prática é particularmente eficaz; além disso, pode ser aplicada De fato, parece-me que, ao reprimir a sexualidade, estamos abordan-
muitíssimo bem à vida a dois. Trata-se simplesmente de tocar o outro do a questão pelo avesso, como se pretendêssemos fazer crescer uma
com toda a autenticidade e a benevolência de que somos capazes. Nosso árvore com as raízes voltadas para o alto. A experiência da sexualidade
companheiro coloca-se, então, em estado de receptividade, e emitimos na comunhão amorosa de dois seres pode servir-lhes de trampolim para
para ele um simples sentimento de presença. Tal vivência pode durar - um êxtase que talvez acabe desejando dispensar o sexo, mas que começa
alguns minutos ou ser mais prolongada. Não é uma massagem, mas uma mesmo assim por este. Aliás, enquanto o sexo permanecer um ponto de
atenção silenciosa que passa pelas mãos e, em geral, tem como efeito atração, parece-me que deve ser vivido e utilizado como ponte para a
tranqüilizar os parceiros. Assim, um clima de confiança e de amor pode alegria. O que é mau não é o sexo, mas o que fazemos dele. .
estabelecer-se fora da sexualidade ativa.2
Estas novas atitudes em relação ao corpo são absolutamente necessá-
A crise é necessária
rias porque todas as tensões e resistências ficam gravadas nele. Isso é
verdadeiro em particular para os homens, cuja estrutura corporal é, mui- É grande o desafio lançado pela nova intimidade que se instala com
tas vezes, rígida. Durante a nossa infância, foi-nos dito para não apresen- dificuldade na vida a dois; com efeito, esta é como unia nação que peno-
tarmos o aspecto demasiado sensível ou sensual porque tais manifesta- samente se ergue após séculos de -ditadura. Terá de ser ,feita toda uma
ções davam a impressão de sermos afeminados. Portanto, devemos apren- aprendizagem, assim como terá de ser operada toda uma desprogramação
der a relaxar tal rigidez defensiva. em relação aos reflexos de dominação e submissão que, durante séculos,
Conseguir realizar-se a dois através do corpo 'exige, igualmente, o condicionarám a vida a dois. Eis a razão pela qual tínhamos necessidade
questionamento da crença que pretende que a sexualidade afasta de Deus. de uma.crise fundamental para permitir uma tão grande mudança.
Nas religiões patriarcais.tradicionais, são os padres e as religiosas que se Estamos vivendo um momento único, excepcional. A comunicação real
realizam através do divino e vivem perto' dele. A sexualidade continua deseja nascer entre homens e mulheres. A democracia deseja criar raízes
sendo uma escolha de segunda categoria e a viela a dois é concebida como na vida a dois.
uma espécie de fraqueza para aqueles que não podem abster-se de uma Ouço homens e mulheres que dizem: "Tudo bem, mas durante esse
vida sexual. À semelhança da maioria dos grandes mestres, Jesus Cristo tempo, nossas vidas são sacrificadas...." Se pensarmos dessa fOrma, cor-
não tem vida sexual e seu grupo é formado unicamente por homens. reremos o risco de sofrer a crise sem contribuir para sua solução. Esse
Acabamos por sentir vergonha de nossa própria humanidade. Às vezes, modo de pensar faz parte da crença que diz que uma vida não tem senti-
fico pensando que se Jesus tivesse ido para a cama com Maria Madalena do a não ser que seja vivida a dois. Trata-se justamente de reencontrar o
e se não.tivesse nascido de uma virgem, isso teria facilitado as coisas para sentido da vida em si mesma, com ou sem vida a dois. Enquanto a feli-
nós"! Até mesmo a espiritualidade moderna convida-nos a uma comunhão cidade pessoal depender da presença de um parceiro amoroso, haverá
abstrata com o universo em uma espécie de fusão com o self cósmico, uma importante falha no ser. A descoberta feita pelo homem ou pela
reprimindo nossas necessidades sexuais de homem ou de mulher. mulher da aptidão para ser feliz sem amor romântico é crucial para a
No entanto, o desejo existe. Heterossexuais ou homossexuais, os ho- nova intimidade. Quanto menos a felicidade de uma pessoa depender
mens e as mulheres sentem atração mútua. A existência dessa atração é a do parceiro, mais enriquecedora se tornará a vida a dois. Apesar de ser
própria essência do mistério do amor que nos arrasta para a aventura da absolutamente necessária para que a vida tenha um sentido, ela acabará
vida. Portanto, devei-nos encarar uma mudança radical de concepção e por envenenar qualquer possibilidade de encontro real entre homem e
começar a pensar que os seres podem muitíssimo bem aproximar-se de mulher.
Em outras palavras, a mulher e o homem devem saber superar por si
mesmos o sentimento de vazio e de depressão que os habitam quando
240 2. Faço questão de agradecer ao fisioterapeuta François Dufour por ter introduzido este exercido
..... nos meus grupos de terapia e por ter me iniciado na Faptonoinia. não estão apaixonados. Somente a descoberta da alegria de viver que 241
existe independentemente do amor romântico permite .que ela se torne a
base de uma vida a dois honesta, íntegra e autêntica.
- • - -
Assim, não será . po§siel termoS- ifitimidade com -o outió.sem term6s
intimidade conosco mesmos. Eis aí a amplitude da revolução amorosa
que será realizada pelas gerações futuras. No entanto, desde já podemos 11
participar dela se aceitarmos a crise e os ensinamentos daí resultantes.
A Intimidade Conosco Mesmos

Nós temos a idade de nossa ternura.


Nossa usura-é amor jogado fora!
STAN RbUGIER

A intimidade bem ordenada começa por nós mesmos


Na introdução afirmei que, para sair do campo de-batalha do amor,
conhecia apenas o caminho que consiste em nos debruçarmos com assi-
duidade sobre nosso interior. É ainda a única coisa que tenho para pro-
por a vocês no final deste livro. Estamos diante da seguinte escolha: ou
tudo o que vivemos e encontramos tem realmente um sentido, ou então
trata-se de uma comédia absurda; ou todas essas dificuldades refletem
verdadeiramente dimensões desconhecidas de nós mesmos, ou então a
vida é uma loteria e, neste caso, limitamo-nos atirar o número errado, ou
seja, o parceiro ou parceira inadequados. Quanto a mim, creio que as
repetições que ocorrem em nossa vida pão dependem de modo algum
do acaso, mas revelam-nos -as dimensões ocultas de nós mesmos que
devemos conhecer não só para explorá-las, mas também para que sejam
superadas. •
Em outras palavras, a intimidade com os outros remete-nos a nós
mesmos, ao passo que a intimidade conosco mesmos permite-nos avan-
çar na intimidade com os outros. Em suma, trata-se do vaivém do amor.
Na maior parte, das vezes, ficamos confinados no pólo do encontro com
o outro, sem nunca nos debruçarmos sobre nós mesmos. Tal postura equi-
vale a lançarmo-nos de pés e Mãos amarrados à mercê dos acontecimen-
tos e condena os seres a uma atitude de expectativa e dependência. É
verdade que, no lado oposto, existem' pessoas que se confinam no pólo
da intimidade com as profundezas de si mesmas, negligenciando as rela-
ções com os outros. Trata-se de uma atitude um pouco fria que, por sua
242 vez, pode levar ao impasse da insensibilidade interior. 243
....
amor é. eminentemente difícil. e continuará a sê-lo. Representa um que, pára ehegálc a nos proporcionar o que é bom, devemos cultivar em
_constante desafio. Mas se aceitarmos a proposição de que as dificuldades ,pós estados de bondade. Em Rima, para recusar- o_fascinio doa-Parceiros

que ele nos aprêsenta não são fruto do acaso, acabaremos por encontrar que não nos fazem bem e nos levam a repetir o passado, devemos conhe-
nelas, com toda a certeza, um sentido; além disso, prestando-lhes a devi- cer outra atração, ou seja, a da paz e alegria interiores.
da atenção, elas se tornam o trampolim de uma profunda comunhão com Amarmo-nos significa viver no amor do que é dado, em vez de viver
o outro, conosco mesmos e com a vida. em busca do que nos falta; significa, igualmente, o cultivo da relação com
A intimidade com o outro repousa em uma capacidade de interioridade o que o misticismo sufi chama o Bem-Amado interior. Quando o amor
pessoal. A crise atual da vida a dois leva-nos inevitavelmente a essa toma- está em nós e não somente fora, quando assumimos a responsabilidade
da de consciência. Quando o dinheiro, os filhos e os julgamentos dos de satisfazer nossas próprias necessidades, deixamos de ser vítimas. En-
outros deixam de ser razões suficientes para que os cônjuges permane- tão, clamo-nos-conta de que o amor que procuramos está em toda parte
çam juntos, a evolução pessoal pode tornar-se o fator que permite a per- em nós e à nossa volta; por conseguinte, não é possível perdê-lo. A única
sistência da união. coisa que existe é o amor. Trata-Se de reconhecê-lo, através dos menores
O desafio da intimidade é um convite ao trabalho conosco mesmos. detalhes, e acolhê-lo. Não há necessidade de sermos perfeitos ou imper-
Ele nos leva a satisfazer por nós próprios as necessidades afetivas estimu- feitos, nem de esperarmos realizar isto ou aquilo. O amor está aí! Conti-
ladas pelos conflitos da vida conjugal, em vez de esperarmos que o outro nuamente, à nossa espera. Basta aceitá-lo.
venha a satisfazê-las. Trata-se de nos comprometermos profundamente
cru relação a nós e à vida., O sentido das dificuldades
Não é uma coisa simples escolher o que é bom para nós, abandonan-
doconscientemente o que nos faZ sofrer e nos degrada. Experimentamos Outra forma de cuidar de nós mesmos consiste em observar cada re-
um verdadeiro apego aquilo que nos destrói e aniquila: Como se um mau lacionamento à.luz do que nos faz viver interiormente e decidir se quere-
- hábito de ódio e conflito interior nos impedisse de fazer o que é bom mos ou não conservá-lo. Neste caso, podemos ser levados a romper Cer-
para nós. Por exemplo, sabemos todos que um pouco de exercício físico tos vínculos ou verificar que, com toda a evidência, certos relacionamen-
cotidiano faz bem à saúde. No entanto, não são raros aqueles que, mes- • tos negativos ainda nos retêm porque sofreríamos demasiadamente se
mo reconhecendo essa verdade, continuam sem fazer nada, esperando tentássemos nos desembaraçar deles. Devemos perdoar-nos tais apegos e
que um golpe de varinha mágica os proteja de doenças. ' vivê-los plenamente com toda a consciência, a fim de extrairmos conhe-
Do mesmo modo, preferimos viver na ilusão de que um amor fantás- cimento emotivo e sabedoria dessa experiência. Os arrancamentos bru-
tico virá transformar todo e evitar que venhamos a assumir nossas pró- tais acabam por adiar a exploração dos aspectos mais ruins de nossas
prias responsabilidades. No entanto, um pouco de amor-próprio pratica- relações. Não se trata de passarmos por cima das dificuldades, mas de
do todos os dias pode levar-nos muito longe na via de uma existência assumi-las com o objetivo de aprendermos algo sobre nós mesmos e so-
mais bem vivida. Um pouco de atenção a nós mesmos, a nossos males, a bre o mundo.
nossas tristezas, 'prestada com benevolência e selai julgamentos, poderá O ódio por nós mesm . os está no cerne da manifestação de amor ro-
desencadear uma importante mudança. Aprender a atribuir a nós um mântico que representa a dificuldade de nos separarmos de um ser que
pouco da solicitude reservada ao ser amado pode curar nosso coração. nos desvaloriza. A magia da liberdade individual faz com que, em tal
Essa compaixão é o segredo do respeito por nós mesmos e o germe da situação, sintamos tanto prazer quanto desejarmos, sem a intervenção de
• auto-estima. Basta reservar, todos os dias, um pouco de tempo para isso. quem quer que seja. De qualquer forma, enquanto a melancolia nos habi-
Na verdade, não podemos amar o outro se não nos amamos. Amarmo- tar, correremos o risco de fazer voltar qualquer história contra nós. Pode-
nos significa sermos bons para nós e darmo-nos uma oportunidade, em mos até mesmo perguntar-nos se, em tal contexto, será desejável encon-
vez de sermos impiedosamente exigentes; significa, sobretudo, passar da trar o amor ideal, uma vez que este acabará por atrasar a tomada de
fase de criança a quem tudo acontece por acidente para a fase do adulto, consciência de nossa miséria interior e nos levará a viver na ilusão do
responsável por seus estados interiores. Amarmo-nos significa, também, amor restaurado quando, afinal, nada foi realizado no plano consciente e
244 compreender que o universo responde-nos como que por imantação, e nenhuma escolha foi feita em favor da abertura e da alegria. 245
....
Quando aceitamos reconhecer que os acontecimentos pequenos ou O que precede não significa que; Com as situações bloqueadas e a anu-
grandes são a obra secreta de nossos desejos, não só dos que não deseja- lação cla peimuta criadora, esteja tolhida a possibilidade de cada um seguir
mos confessar a nós mesinos, mas também dóS que -mais acalentámos, se-u caminho:Mas, em geral, não é algo negativo Permanec. ér emi condições
acabamos por libertar os outros de responsabilidades em relação a nós. críticas até que se tenha conseguido o desligamento suficiente para que se
Quando deixa de ser a culpa de papai, de mamãe ou do governo, quando faça a separação sem que seja necessário acusar o companheiro por todos
admitimos nossa inteira responsabilidade em relação ao que se passa em os erros. Essa observação vigilante e sem julgamentos de uma conjuntura
nós, então as dificuldades ganham seu sentido. acabrunhante permite compreender a dimensão de nós mesmos que nos
Na realidade, de um ponto de vista terapêutico, podemos até mesmo levou a tal situação e evitar reproduzir a mesma coisa no futuro.
dizer que as dificuldades — quer se trate de provações psicológicas, aci-
dentes ou doenças — colaboram para a compreensão de nós mesmos e O espelho quebrado
do mundo. Elas não são gratuitas. Conduzem-nos para nós mesmos. Ao
A mais profunda revolução que no decorrer da vida um indivíduo
aceitá-las plenamente, damos-lhes a possibilidade de se articularem em
pode efetuar consiste em passar de uma posição de vítima para a percep-
nós e revelarem sua preciosa mensagem. Caso contrário, hão de repetir-
ção concreta da maneira como ele próprio cria seu destino. Trata-se de
se até que tenhamos a sabedoria de prestar-lhes a devida atenção. um momento de transição que ninguém poderá evitar, embora a maioria
Vistos por este prisma, poderíamos até mesmo acrescentar que, a par- das pessoas não lhe prestem a menor atenção. Esta verdadeira passagem
tir do momento em que se tornam conscientes, os 'relacionamentos mais ipiciática é comparável à transição da infância para a idade adulta. Parado-
difíceis são verdadeiramente os que produzem mais frutos. Obrigam o xalmente, ao exigir o luto da infância, tal passagem não poderá efetuar-se
ser a um imenso esforço de abertura que o leva a reconhecer-se plena- com espírito real de jogo, de liberdade e de leveza sem essa mudança.
mente em um companheiro -que lhe provoca repugnância. Ao integrar
A tomada de 'consciência da necessidade de assumii. nossa própria
•uma sombra maior, é possível 'avançar mais rapidamente. Era isso, sem
responsabilidade, na medida em que o amor não nos livrará desse encar-
dúvida, o que queria dizer o poeta Rainer Maria Rilke quando escreveu: go, convida a libertar o outro da carga de nossas exigências. Trata-se de
"Sabemos poucas coisas, salvo que é necessário limitarmo-nos ao que é. deixar de lhe pedir para se submeter à imagem ideal do homem ou da
difícil... -"
mulher que carregamos em nós. As projeções do animus" e da anima de-
A verdadeira razão dè compartilhar a vida com alguém parece ser o vem ser retiradas. Tal procedimento revela-se como o único meio de re-
estímulo mútuo com o objetivo de fazer explodir a criatividade de cada cuperar nosso poder pessoal e alcançar nosso ser fundamental. Para che-
um. Mas para viver tal criatividade, os protagonistas de um casal devem gar a conhecer a essência de sua identidade, o indivíduo deve aceitar de
aceitar, de saída, o seguinte: o que consideram como "positivo" ou "ne- forma absoluta a parte de sombra que carrega em si. Enquanto viver na
gativo" não tem grande coisa a ver com o negócio. A vida estimula-nos ilusão de sua projeção, não será possível falar de progresso psicologiCo,
para a vida em nós, incentivando ou criando obstáculos. Compete a cada tampouco espiritual.'
um julgar se o que está experimentando é ou não tolerável. A fim de tomarmos consciência de nossa própria essência e, por con-
Afinal de contas, é forçoso admitir que a evolução na alegria, em vez seguinte, da essência da vida no universo, as projeções devem ser retira-
da evolução no sofrimento, implica ter conhecido, em geral, grandes di- das, porque não vemos o outro como ele é, mas como somos. Portanto,
ficuldades. A sabedoria exige a aceitação da vida tal como ela é, sem isso equivale a dizer que tudo o que reconhecemos nele revela-se, igual-
julgamentos. Em geral, adquirimos essa habilidade à força de repetir, até mente, como um aspecto de nós mesmos. É claro, na maior parte das
mais não poder, os mesmos esquemas limitativos. Mas ao estimularem o• vezes, é necessário que ele possua, por assim dizer, um "gancho psicoló-
conhecimento de nós mesmos, as dificuldades da vida a dois abrem o gico" no qual seja possível atrelar a projeção. Mas, basicamente, para
caminho para urna comunhão mais intensa com o universo e com o im- estarmos em condições de reconhecer um traço de caráter em alguém, é
pulso de vida que cada um carrega em si mesmo. Essa intensa comunhão necessário o possuirmos em nós mesmos.
pode revelar-se através do tormento, assim como através do êxtase. Pare-
ce que, para a vida, todos os meios são bons para despertar-nos e levar- 1. Sobre a questão da retirada das projeções, ver a obra de Jolanda Jacobi, La Psychologie de C. G.
246 247
nos a descobrir nossa identidade fundamental. Jung, op. cit., pp. 146-148.
-,.. •
Para fornecer uma ilustração do jogo das projeções na -Vida- a doiã, precisão que existe uma imensa vantagem em que o conteúdo do que
-
utilizarei_o seguinte-exemplo. Ela acha que Ele é verdadeiramente doente tomamoS consciência etrrum relacionamento seja comunicidà eorn-
_
no que diz respeito à expressão dos sentimentos. Ela sofre com" o silêncio panheiro. Com efeito, a cura vem desse procedimento. Somos, essencial-
dele e torna-o responsável pela deterioração do relacionamento. Sua pri- mente, seres de comunicação, o que significa que devemos transformar o
meira atitude é acusadora. Ela permanece em projeção ativa, sem ter que age sobre nós para restituí-lo aos outros sob uma forma modificada.
feito seu próprio exame de consciência. A expressão permite a circulação da energia e a continuidade do proces-
A retirada de sua projeção vai conhecer várias etapas e a conduzirá a so. Sinto-me provocado pela comunicação de alguém, reajo, interpreto
verificar a maneira como contribui para a dinâmica desta situação. Por seu conteúdo e restituo-lhe tal conteúdo sob uma forma diferente, atitu-
exemplo, será que aceita o que lhe é dito pelo companheiro quando este de que, em compensação, estimula meu interlocutor; por sua vez, este
expressa os próprios sentimentos? Será que emite rapidamente julgamentos recebe minha mensagem, oferece-lhe resistência, vai recusá-la ou acená-
sem nunca deixá-lo ir até o fim da emoção? la, integra-a de uma forma qualquer e a transforma para se expressar. E
- A segunda etapa da retirada das projeções consistirá em buscar em si assim por diante.
mesma a maneira como se expressa sua própria doença relativamente à Tudo o que acontece conosco ou nos é comunicado age sobre nós a
partilha dos sentimentos". Assim, Ela poderá descobrir que, em certos fim de que possamos transformar seu conteúdo ao nos expressarmos.
casos ou ern"relação a certos sentimentos, mostra-se bastante deficiente. Assim, a vida serve de estímulo à vida e os seres tornam-se eles próprios.
A constatação de uma ferida similar em si mesma lhe permitirá construir Não é a intensidade de um estímulo que. leva uma pessoa a adoecer, mas
uma ponte até Ele e encontrar a base de um entendimento. a incapacidade de transformá-lo por urna criação qualquer. Quando uma
A terceira etapa consistirá em compreender a maneira corno sua visão necessidade fica frustrada, quando um afeto permanece bloqueado, o fluxo
das coisas é pré-construída Por 'uma' realidade anterior. Neste caso, Ela vital reflui para o. interior e estagna. A doença física ou psicológica não
toma consciência dos bastidores`de sua irritação. Se quando era menina está longe.
sentia-se responsável pelos 'silêncios do pai e tinha receio de seus surtos No limite; é mais importante fazer com que os afetos se manifestem
de cólera, poderá muitíssimo bem" estar em via de aplicar o mesmo esque- clo que resolver rtossos problemas. Até mesmo a descarga brutal e impul-
ma à situação que está, vivendo com Ele. siva de um afeto que não chegou a passar por um trabalho de transforma-
Em vez de acusá-lo estupidamente, poderá comunicar-lhe sua pertur- ção é mais saudável do que sua inibição. É claro, nossas reações" aos estí-
bação interior. Poderá dizer-lhe: "Quando você permanece silencioso, mulos podem tornar-se mais conscientes e permitir-nos controlar. me-
sinto-me como uma menina diante do pai e fico com medo de suas rea- lhor, de forma progressiva, nosso destino. Para tal efeito, a retirada das
ções." A confissão da vivência afetiva implica a comunicação com o ou- projeções e a partilha de nossos achados pela comunicação permanecem
tro, em vez de contribuir para aunar suas defesas, como ocorre invaria- instrumentos privilegiados. Somos seres de linguagem e, neste sentido,
velmente quando ele se sente acusado. Tal postura permitirá que Ele com- comunicar verbalmente na relação íntima representa uma dimensão es-
preenda o. que. Ela está vivendo interiormente. Neste caso, ela poderá sencial de nossas vidas. Embora a dança, o desenho ou qualquer outra
falar-lhe da necessidade de segurança afetiva que sente. Poderá, inclusive, forma de expressão sejam, igualmente, ferramentas válidas para"transfor-
completar sua reflexão com uma demanda do tipo: "Tenho necessidade marmos nossos afetos e comunicá-los a outrem.
que você me tranqüilize, dizendo-me algumas palavras sobre o que' está Passar de uma transmissão que descarrega o afeto sem transformá-lo
vivendo atualmente em relação a nós dois e sobre o que torna tão difícil para uma comunicação criadora de paz e de intimidade é, essencialmen-
a comunicação comigo." te, passar da utilização do "tu", que mata* o outro para a utilização do
"eu", que fala de si, respeitando a liberdade inalienável do interlocutor.'
Comunicar-se para viver

As etapas citadas resumem o processo de comunicação não violenta * No original, tue (mata); como o "e" é mudo, esta forma verbal acaba sendo homófona do pro-
elaborado pelo psicólogo Marshall Rosenberg. Se elas não acompanham nome pessoal "tu". (N.T.)
248 2.A este propósito, ler o livro de Jacques Salomê e Sylvie Galland,Sije m'écoutais.., je m'entendrats.
........ necessariamente qualquer retirada das projeções, devemos indicar com 249
Montréal: Éditions de l'Homme, 1990. ....
Em um primeiro tempo, Ela poderá ter um comportamento sem pro: O confronto com a sombra 4
nunciar qualquer julgamento (sobre o silêncio dEle). Em um segundo
tempo, • Ela deverá verificar o que tal comportamento lhe faz viver no laborioso-fazermos mossa- a parte de sombra viSlumbrádá em 'todos'
os que, sem o saberem, nos fizeram mal. No entanto, ao aceitarmos reco-
plano dos sentimentos (medo e insegurança). E. depois, esticando, por
nhecer o lado autoritário, mentiroso, traidor, hipócrita que, porventura,
assim dizer, a corda afetiva, poderá descobrir, em um terceiro tempo, a
venha a residir em nós, acabamos por adquirir um poder sobre essas for-
necessidade fundamental (a segurança) que é atingida pela atitude dEle.
mas de expressão, em vez de sermos suas vítimas quando são os outros
Finalmente, poderá formular uma demanda adequada ao parceiro para
que as encarnam. O outro simboliza, muitas vezes, um aspecto de nós
convidá-lo a satisfazer sua necessidade ("Diga-me algumas palavras... ").
mesmos que nos deixa pouco à vontade ou ainda é desconhecido; ora,
Portanto, observar sem julgar, sentir, identificar a necessidade que está à
ficaremos ligados a ele enquanto esse aspecto não tiver sido reconhecido.
espera de ser satisfeita e formular uma demanda realista, todas essas eta-
O reconhecimento da sombra em nós abre, assim, o caminho do perdão
pas resumem simplesmente um processo que, na prática, exige muito
tato.3 Evidentemente, o mesmo é válido para Ele. e da compaixão. Estas atitudes tornam-se possíveis quando admitimos
que, em sua fraqueza e maldade, o outro é semelhante a nós.
O trabalho de retirada das projeções apóia-se em uma comunicação
Jung designava por confronto o encontro com a sombra, para assina-
autêntica que aproxima os parceiros, em vez de opô-los através de acusa-
lar até que ponto ele era difícil. No entanto, é necessário tomar consciên-
ções e julgamentos. Ao desenvolver a capacidade de Comunicação, o ca-
cia de que só a este preço é que se consegue ganhar a verdadeira liberda-
sal pode tornar-se um elemento de libertação e•de conhecimento de si. As
de. Ao contribuir para libertar a família, os parceiros e amigos do peso
percepções do outro e o que se vive em relação ao interlocutor podem
das próprias ignomínias, ao clarificar em seu coração ^a natureza de suas
ajudar a superar certas limitações. Lembro-me de ter ficado bastante
diversas relações, o indivíduo torna-se mais leve.
emocionado ao acompanhar em terapia umnomem cuja mulher era mui-
Por que motivo rejeitamos a integração da sombra? Porque esta vem
to tímida e silenciosa.'Os dois estavam consciente S dessa dificuldade e ela
percutir a ilusão que, todos os dias, construímos de nossa própria perfei-
acabou aceitando ajuda no sentido de adquirir novos meios de expressão.
ção e da inocência de cada um de nossos gestos. Nem por isso o trabalho
Essa provação levou ambos a se unirem de forma bastante íntima, mas
com a sombra conduz a uma posição resignada e depressiva. Pelo contrá-
tinha exigido de cada um o abandona dos sonhos de perfeição.
rio, permite introduzir um espaço de escolha exatamente onde ele não
No papel, estas coisas têm a aparência de ser simples, mas constituem
existia, uma vez que eram os (nitros que tinham o poder de nos prejudi-
provações quase insuperáveis no terreno do relacionamento. Cada um de
car; quanto a nós, não tínhamos qualquer influência sobre eles. Ao des-
nós sente uma repugnância maior ou menor em fazer tal trabalho de
cobrir que esse poder é seu, o indivíduo ganha a possibilidade de com-
retirada das projeções porque, com toda a certeza, este acaba desvelando
portar-se de maneira diferente. Em 'vez de brincar de avestruz e de se
nossa vulnerabilidade. Colaborar ou ajudar-se mutuamente, em vez de
queixar do que lhe é imposto pelo destino, fazendo tudo para ignorar
ficar no "cada um, por si" e nas acusações constantes, permanece e conti-
que é o artesão de sua própria infelicidade, ele pode começar um diálogo,
nuará sendo por muito tempo o desafio de unia intimidade a ser construída.
com essa sombra que reside sob seu teto.
No entanto, o princípio básico de tal colaboração é fácil de formular:
O que nos arrasta irresistivelmente a ser negativos diante de certas
cada um dos parceiros é cem por cento responsável por tudo o que acon-
situações? Quais são nossas motivações? Quais são nossos desejos e ciú-
tece na vida do casal. Esta formulação retoma, no terreno da vida a dois,
o princípio de responsabilidade global professado pelo budismo tibetano. mes ocultos? Por que temos tendência a nos comportarmos de tal modo
que ás situações voltam-se contra nós? Qual é esse personagem interior
que prefere que nada fique resolvido? Quem é que se deleita com nosso
mau humor? Quem é que gosta de fazer a guerra? Que prazer ele tem em
resolver os conflitos por meios de ações de efeito que humilham os ou-

4. Marie-Louise von Franz. "Le processos crindividuation". In L'Homme et ses 5)00 boles, op. cit., p.
3. Estas quatro etapas constituem a base do Processo de comunicação não-violenta elaborado pelo 68. Ver também "Les techniques de différenciation entre le Moi et les figures de l'inconscient",
250 251
psicólogo americano Marshall Rosenberg. do livro de Jung intitulado Dialectique du Moi et de l'inconscient, op. cit., pp. 201-233.
tros, aniquilando toda possibilidade dê relacionamento? 'Eis-outras tantas volver ativamente seu componente - nueleeteal; ela há de projetá-lo sobre
questões que conduzem .diretamente ao encontro da sombra. - . os outros e repetirá o-mesmciestiló de apego.:
A percepção desse personagem obscuro em relação a cada situação Para superar tal desgosto de amor, uma pai:Cela' doLtfabalho de luto
conflitante em nossa vida fará com que, em breve, nos convençamos de consiste neste esforço de retirada das projeções positivas e negativas. As-
que a causa das brigas entre cônjuges, assim como da guerra no mundo, sim, cada relação torna-se o espaço de um conhecimento profundo de si.
não reside inteiramente fora de nós. Tal exame repugna-nos porque sig- Como a vida psíquica é muito movimentada e como cada um de nós é o
nifica o deslocamento do espaço do conflito do exterior para o interior. resumo do universo, não há que temer que um dia estejamos à míngua de
A ênfase com que todos os dias sublinhamos a negatividade de uma par- projeções. No entanto, estas tornam-se cada vez menos restritivas à me-
ceira poderá transformar-se no combate contra nossa própria negatividade. dida. que nos tornamos mais conscientes delas. Chegamos mesmo a ga-
Simplesmente, em vez de enfrentá-la no nosso interior, parecia mais cô- nhar a liberdade diante do fascínio que alguém venha a exercer sobre nós
modo proceder a tal projeção. ao explorarmos antecipadamente o gênero de projeções de que é alvo
Aliás, uma função psicológica primordial do casal tradicional consiste por nossa parte. Neste caso, surge a escolha de continuarmos a fazer ou
em encontrar um bode expiatório para que carregue o peso dos seus não essa experiência que se apresenta sob a aparência do amor.
erros. Apesar de não resolver nada, o fato de criticar leva a pessoa a Nossas projeções obrigam-nos a seguir nossas paixões. É por esse viés
sentir-se bem! Na realidade, no dia-a-dia, nossos parceinis servem sobre- que nosso ser inconsciente manifesta-se à consciência. Eis a razão pela
tudo para o seguinte: ter alguém para acusar. No plano coletivo, temos qual o comportamento que designamos por apaixonar-se é acompanha-.
os russos, os islamitas, as mulheres, os homens etc. No plano pessoal, não do por dores de barriga e noites de insônia. No entanto, podemos intro-
temos ninguém para servir de alvo de nossas projeções. O parceiro íntimo duzir uma escolha exatamente onde só existe determinação cega. Ganha-
desempenha muitíssimo bem esse papel, t'anto mais que o relacionamento mos tal liberdade aceitando confrontarmo-nos à sombra que projetamos
duradouro não pode deixar de nos revelar essas falhas; ora, somos sempre sem proceder ao julgamento do outro ou de nós mesmos.
mais hábeis a observá-las no vizinho ou na vizinha do que em nós. A integração da sombra abre-nos para a universalidade. Ao aceitar
A projeção da sombra é um dos mecanismos de defesa favoritos do intimamente o que interpreto como negativo em Mim, posso acolher o
ego, que, assim, tenta preservar a ilusão de sua inocência. Quanto mais que me parece mau no universo. Sem esse trabalho comigo mesmo, nun-
fraco for o amor-próprio, mais ativamente será utilizado o recurso ao ca poderei chegar à Unidade, porque a minha visão do universo exclui
outro como bode expiatório. Eis a razão pela qual certos conflitos entre sempre uma metade e obriga-me a abandonar essa parte para ganhar um
namorados não podem absolutamente ser resolvidos de uma forma apazi- pouco de paz. A via da sombra é mais eficaz. Ao resolver meus conflitos
guante. O grande empecilho será a fragilidade da auto-estima de um dos interiores entre o bom e o mau, alcanço a unidade em mim mesmo e, sem
parceiros. Neste caSo, o reconhecimento dos erros e fraquezas diante do conflitos, posso tornar-me Um com o cosmos. Aos poucos, constato que
outro seria vivido como um fracasso suplementar que ameaçaria demais não há nada para mudar. Do mesmo modo que as forças de criação, tam-
a estrutura do ego. Para não perder tudo, o indivíduo prefere conservar' bém as forças de destruição.encornram-se a serviço da renovação da vida.
uma auto-imagem forte e considerar-se vitima da maldade do outro. A dança da vida é perfeita, não há nada a retirar dai. A integração da
Como já mencionei anteriormente, a sombra não tem apenas aspec- sombra facilita o desapego, que permite o nascimento de uma serenidade
tos negativos. Projetamos, igualmente, certos aspectos de nós mesmos que se situa para além da dor e do prazer. Ou seja, ainda existe dor e
que são positivos, mas pouco desenvolvidos. Estes grudam-nos a nossos prazer, mas tais sensações tornam-se mais relativas. São levadas com me-
parceiros tanto quanto os aspectos negativos. Devemos também reapro- nos seriedade. Constituem o jogo da, vida em si, que permite o prazer da
prianno-nos deles para abandonarmos os apegos que nos causam sofri- expressão e da comunicação.
mento. Uma pessoa pode estar convencida de que é idiota e apaixonar-se Neste caso, o ser é inundado por uma alegria concreta. Em primeiro
por outra muito dotada no plano intelectual. Se vierem a separar-se, a lugar, pelos pequenos influxos cuja freqüência e intensidade aumentam à
primeira terá a impressão de que lhe foi arrancada uma parte de si mes- medida que se torna consciente do processo. Até que acabe por enraizar-
ma, de que foi mutilada, nem mais nem menos. No plano psicológico, é se em uma paz duradoura. Não se trata de uma paz mental artificial obti-
252 253
exatamente disso que se trata. Enquanto não tiver feito nada para desen- da à força de renúncia a si mesmo, mas de um dinamismo engendrado
por um consentimento total ao que é vivo. Tal vibração de entusiasmo escrever, a dar conferências, voltei a estiídairnMáSica edediquei-me à poe-
não exige horas cotidianas de meditação, nem a interrupção cias relações sia. Depois disso, toda a minha vida me parece mais forte e mais feliz.
sexuais, tampouco uni silêncio a so uto do espírito; Pelo CrintráriO,'Conl". Eis aí um simplesexernplo."Mas piSsando em rvistá-sentiméntostle
ciente de si mesma, está submersa na alegria de viver. culpa, ressentimentos, apegos e julgamentos, começamos a nos compre-
ender e sentimo-nos mais leves. À medida que abandonamos Certos as-
A paz da alma e à alegria do coração pectos de nós mesmos, a leveza vem, e com ela vem a alegria do coração
que se encarna cada vez mais no presente. •
A comunhão com essa alegria exige a liberdade quanto aos relaciona- Nosso objetivo consiste em tornarmo-nos disponíveis ao real; estar-
mentos que fomos estabelecendo na vida, a todos os relacionamentos e, mos aqui e agora, como é dito de forma tão admirável por uma expressão
em particular, àqueles que ficaram incompletos e problemáticos. Para aviltada. Não conseguiremos estar presentes a nós mesmos, ao outro e ao
sermos livres, importa libertarmo-nos de cada um deles, ou seja, importa mundo se tivermos as entranhas e o coração divididos por relações não
voltarmos conscientemente para as memórias passadas e deixarmos fluir resolvidas. Portanto, importa resolver e encerrar cada uma delas. Neste
o que vier espontaneamente. Seguimos os fios e vamos desfazendo a meada caso, a alegria de viver surge na paz da alma e do coração.
tecida em nós por cada unia dessas uniões. Tal procedimento poderá que- Haverá quem apresente ,como objeção que tudo isso não passa de
rer dizer, entre outras coisas,.escrever algurrMs 'linhas, fazer algumas liga- uma série de momices para encontrar o caminho da liberdade; seja como
ções telefônicas, organizar alguns encontros para chegarmos a uma per- for, enquanto este trabalho não tiver sido realizado, a felicidade continuará
muta profunda de idéias; aliás, ,é a esse preço que se ganha a leveza do sendo um acidente de percurso. Não há de enraizar-se profundamente no
coração. ser e este poderá ser eliminado pelo mais insignificante acontecimento
Não devemos deixar nada atrás deMos. Deve ser feita a análise minu- adverso. O trabalho conosco mesmos representa o único meio de ganhar
ciosa de todos esses apegos, unra um. Importa examinar cada sentimento a liberdade diante dos condicionamentos que nos acorrentarn.-Sim, ver-
que habita o ser e fazer tudo o que parece adequado para apaziguar o dadeiramente, a intimidade ordenada começa por nós. Trata-se de uma
tormento interior. Às vezes, trata-se simplesmente de uma resolução ínti- caridade que cada ser deve.ter para consigo.
ma que não implica o outro, ou então é necessário retomar contato com
alguém para encontrai concretamente a solução para certos conflitos que
tinham ficado por resolver. O caminho é a alegria

Essa análise permite que fiquemos em paz com tudo o que sé passou Em um mundo que muda com tamanha rapidez, a única solução resi-
em nossa vida. Permite fazer as pazes com nossos pais, com os acidentes de na interioridade, exatamente onde as coisas não mudam tão rápido.
de percurso, com os acontecimentos difíceis e com os relacionamentos Confrontados com tanta mudança e instabilidade, devemos procurar e
atormentados. Permite avaliar a maneira como tudo isso contribuiu é cultivar em nós o que é duradouro,.permanente. Ao estabilizar em nosso
ainda contribui para o que somos. E permite tomar consciência de como ser o prazer de viver e existir, começamos a tocar na imortalidade de
indo isso se assemelha a nós: nossa própria essência. Estou falando da experiência de um apoio inte-
Ao fazer tal exame, pude compreender, por exemplo, que algumas rior em uma profundidade de ser que, ao mesmo tempo, abarca, contém
das minhas companheiras tinham um real problema de expressão que, e supera a contingência de nossa vida atual.
em minha opinião, havia contribuído para acabar com a nossa vida em Nossa vida começa e termina no simples prazer de existir. Portanto,
comum. No entanto, encontro também em mim essa dificuldade em trata-se de cultivá-lo, todos os dias, da forma mais simples do mundo,
manifestar as emoções profundas. Minhas escolhas amorosas permitiram aceitando orientar nossas escolhas em função do que nos mantém vivos.
que, durante numerosos anos, eu me descarregasse de minha própria in- Se o indivíduo tivesse a ousadia de utilizar realmente esses parâmetros,
capacidade, tornando minhas companheiras responsáveis por meus in- 'ocorreria em sua vida uma incrível limpeza profunda, certamente dolo-
fortúnios. Até que o sofrimento das rupturas me ajudou a reencontrar o rosa, porque o levaria a romper com um bom número de costumes, res-
fio de minha própria história, não só para compreender, mas para passar ponsabilidades e rotinas. Quando avalio cada coisa que faço, perguntan-
254 à ação no plano da expressão. Decidi fechar o consultório. Comecei a 255
do-me se isso reaviva ou diminui meu prazer de viver, dou-me conta de
'que_ possuo uma Medida-padrão para começar a agir no sentido de uma Sempre que penso em tua . bondade
. _mudança positiva. - Tão-simplesmente profünda
tratamos o amor como um acidente feliz que deveria nos acontecer. Eu me confundo com preces. dirigidas a ti.
Isso se assemelha à loteria, cuja sorte contempla um reduzido número de
pessoas. A solução duradoura não se encontra aí. Antes, importa que Cheguei tão tarde
À doçura de teu olhar
procuremos cultivar o amor em nós, independentemente das condições
E vim de tão longe para segurar tuas mãos estendidas,
da vida a dois, para sermos capazes de oferecer algo à nossa união e Tranqüilamente, através das imensas planícies!
salvá-la, em vez de pedir-lhe sempre alguma coisa. De que maneira aqui-
lo que nem chega a receber os nossos cuidados poderia alimentar-nos Tinha em mim tanta ferrugem tenaz
indefinidamente? A questão do que cada um está pronto a investir para Que me corroia, com dentes rapaces,
conservar a união encontra-se, portanto, no âmago de qualquer relacio- A confiança;
namento. Conta muito a qualidade das energias que são investidas nele.
Se continuamente nos limitarmos a oferecer à vida em casal energias es- Sentia-me tão pesado, estava tão cansado,
gotadas, acabaremos por receber, em compensação, fadiga e irritação. Tinha envelhecido de desconfiança..
O desafio consiste em passar de um mundo em que sou tudo para o Sentia-me tão pesado, estava tão cansado,
outro., e onde o otitro é tudo para mim, a um mundo em que amo a Do inútil caminho de todos os meus passos.
existência do outro e em que, finalmente, amo a vida. O amor emotivo é
feito de ações e reações inscritas integralmente na paixão e nos ciúmes. Eu merecia tão pouco .a maravilhosa alegria
De ver teus pés iluminarem minha via,
Pelo contrário, o amor do 'coração está baseado na alegria, na alegria
Que ainda permaneço irêmulo e quase em prantos,
profunda de existir e contemplar a existência do outro. Esse amor existe
E humilde, para sempre, diante da felicidade.
no amor por nós e no amor pela vida em nós e no outro. •
A alegria não acorrenta, nem prescreve, nem condena. Está sempre
livre e disponível, acessível para quem pretender freqüentá-la. É a me-
lhor amante interior. Por conseqüência, o ser que vive na alegria repre-
senta o melhor parceiro possível. A alegria a dois é aprendizagem da
liberdade, cultura de um estado de alma de abertura e harmonia. Culmi-
na na comunhão com a leveza e a doçura de viver.
A melhor coisa que podemos fazer para nós mesmos e para nossos
companheiros é fixar em nosso interior estados de alegria. Lentamente,
esses estados abolem-o sentimento de separação em relação ao outro e ao
mundo. Procuramos desesperadamente a alegria e a harmonia na vida a
dois porque não as conhecemos no nosso interior. De que maneira dois
seres poderiam conhecer uma alegria duradoura a dois, e por qual im-
provável acidente o prazer de estarem juntos poderia durar se nenhum
deles alimenta a alegria. profunda de existir?
A intimidade conosco mesmos permite o acolhimento do outro na
comunhão profunda. De forma admirável, o poeta belga Émile Verhaeren
dá um testemunho dessa atitude em um poema que se intitula Sempre que
penso em tua bondade (Chague heure oit je pense à ta bonté). 5
257
256
S. Émile Verhaeren, Les Heures claires, 1896.
• realização ainda mais importante, a saber: o Amor não é um relaciona-
mento, mas um _ estado.
_ A finalidade secreta de ral .processo de transfor-
mação corisisteem levar-noS aCOrnbreelriCler'que—õ'AMOr. já existe em nós.
Ele preexiste a qualquer relacionamento; além disso, podemos alimen-
Conclusão tar-nos dele ininterruptamente.
A prova da relação provoca um retorno á nós mesmos que, no decor-
rer do tempo, permite a união entre dois seres soberanos que celebram
O amor é que nos mantém juntos!
juntos a alegria de existir. Com efeito, eis exatamente ao que somos con-
OSHO
vidados pelas forças vivas da existência: a celebração consciente e com-
partilhada da alegria de viver. Muitos sábios conseguiram concretizar a
identificação suprema com o Um sozinhos em uma caverna ou em um
monastério; agora, é tempo de estender tal proeza à vida coletiva, pas-
sando pela vida a dois e pela vida em família.
O amor não .é um relacionamento, mas um estado Enquanto tal objetivo não tiver sido reconhecido, a Terra corre o
risco de permanecer um lugar de perdição. Neste caso, os verdadeiros
Somos matéria bruta, mal preparada paia a felicidade e o êxtase de presentes que são a sensualidade e a sexualidade não servem para nada.
viver. Nossas experiências difíceis na infância ou na vida a dois servem. São percebidos como tentações que atrasam a evolução de quem estiver
para nossa purificação. Abrem-nos e nos tornam capazes do sublime. apegado a elas. Mas não pode ser que se trate simplesmente de celebrar
Revelam nossa substância íntima, forçando-nos a abandonar, uma a uma, a Vida através da sexualidade e da sensualidade? De usufruir de nossa
nossas carapaças.e definições limitadas. .• capaéidade de transformar a matéria física e psíquica sem sentimento
Para os alquimistas, que procuravam transformar o vulgar chumbo de culPa? De ter pleno prazer na capacidade de sentir e de se expressar?
em ouro, a primeira fase dessa purificação tinha o nome de nigredo, ou De participar simplesmente do êxtase de viver em comunhão com tudo
seja, a obra eia) negro. As principais operações deSite período eram a pu- o que é?
trefação, a calcinação e a fragmentação. Eis uma boa metáfora tanto para O planeta está morrendo com nossa ausência. A vida terrestre tem
a vida a dois como para a vida em geral. Quando as coisas fedem, esquên- necessidade de nossa presença e atenção plenas. A Encarnação é o próxi-
tam, queimam, desfazem-se, a nigredo está em via de realizar sua obra de mo paradigma, a próxima etapa da evolução, o desafio que nos instiga. A
purificação. Neste caso, ti perigo é que o fogo da emoção seja demasiado interpretação que tem sido dada às palavras de sábios como Jesus ou
forte e acabe precipitando a explosão. Nesses momentos, a mãe e o filho Buda implicou a negligência da vida no corpo em benefício da vida do
machucam-se, o pai esmaga a filha, uni casal separa-se. Pelo contrário, espírito. Tal concepção da vida espiritual é limitada e ofensiva para a
quando o fogo é fraco demais, não há transformação. Os indivíduos per- integridade do ser. Oindivíduo que fez a experiência da Unidade de to-
manecem juntos em uma espécie de conforto indiferente em que a comu- das as coisas sabe que não há outro lugar para onde possamos ir, que a
nhão não pode ocorrer. Portanto, toda a arte reside na produção do fogo' realização procurada existe tanto aqui quanto em outros planos de cons-
adequado. ciência. A energia é a mesma por toda parte. A energia do amor que
O mesmo acontece com a crise. Não é grave que nossos relaciona- mantém todas as coisas unidas é semelhante a si mesma em todos os
mentos estejam no forno alquímico da transformação; aliás, isso é até planos da existência. O que procuramos já se encontra aqui.
mesmo necessário. Não seria possível evitar a crise. Esta permite passar
para novos valores. Trata-se de um processo de purificação natural.
Somos livres para nos destruir
Seu objetivo consiste em levar-nos a abandonar a ilusão da felicidade
que estaria no outro, no bom companheiro, no ser perfeito que porventura O universo é composto por essa energia indefinível que, em seu amor
viéssemos a encontrar e que acabaria resolvendo tudo para nós. Essa to- infinito — como seria possível falar de outra forma? —, satisfaz todos os
258 mada de consciência é essencial porque é a condição sina qua non de uma nossos caprichos sem julgamentos nem qualquer recusa. Portanto, a esco- 259.
.....
lha está em nossas mãos. Nada, absolutamente nada, pode impedir clue o
ser humano se destrua se o desejar. Eis aí a extensão da liberdade de cada
um. Nem chega a existir julgamento a pronunciar sobre tais experiências.
Talvez até mesmo cada um de nós tenha necessidade de vivê-las, em par-
te, para nos conhecermos e entrarmos em contato com a energia do Amor.
Epílogo
Do mesmo modo, nada, absolutamente nada, pode impedir que o ser
humano avance em direção à sua alegria e libertação, tomando em mãos
seu poder pessoal.
A vida é perfeita em sua manifestação inteligente, consciente de si
mesma e alegre. Possui uma capacidade de autogeração e autocriação. Tal
gênio habita cada célula viva e o ser que se reconhece no espelho cósmico
realiza sua soberania sobre ele próprio e sobre a aptidão para criar sua
vida a partir desse campo de todos os possíveis que é a existência.
Estamos em incessante comunhão com o. universo. Não há qualquer Ela
separação. Participamos dele com cada uma de nossas' fibras. Somos da
Até que enfim, férias! Levando em consideração os antecedentes em
mesma natureza. Somos feitos dos mesmos materiais. Somos 'o universo e
podemos usufruir dele profundamente, graças à nossa consciência; essa companhia dEle, pode-se dizer que as coisas estão decorrendo bem. Pe-
consciência que é, por assim dizer, sua propriedade emergente. O desafio quena cidade à beira-mar nos Estados Unidos. Reserva feita às cegas pou-
co antes da partida. Apartamento lastimável ainda por cima equipado
da intimidade continua sendo a celebração desse gozo a dois, a três, a
dez, a mil, a uni bilhão. Despertos, nos tornaremos co-criadores.consci- com um ventilador barulhento. Alimentação que deixa a desejar. Tudo
entes dessa trepidante aventura da criação. Em vez de sermos vítimas do para irritar você. De forma bizarra, tal situação está contribuindo para a
Diabo e do Bom Deus, seremos seres responsáveis pelo nosso destino. aproximação de vocês. No ar, existe algo como uma renovação. amorosa.
Mas você está falando depressa demais... Ei-lo prestes a torcer o pescoço
•para observar uma adolescente com os seios à mostta na praia. Instanta-
O melhor Meio de ser feliz
neamente, você se sente magoada. Sua primeira reação seria dar-lhe uma
Oito horas da manhã. Levanto a cabeça do computador. Lá fora, des- bronca, mas ele é de tal modo engraçado com seu aspecto de menino
perta a primavera. A árvore diante do escritório exibe grandes brotos que culpado,.pronto para jurar que não estava olhando, que você acaba desa-
estão à espera somente do calor do sol para se tornarem folhas. Os pássa- tando a rir. Não, decididamente, ele nunca conseguirá abandonar a mãe.
ros chilram. O tráfego fez-me lembrar dê um mar sem fim com suas on-
das sucessivas de clamores. A primavera está também em mim. Sinto um Ele
gosto por viver, assim como uma força inaudita que escorre rias minhas
veias. Agora, basta de refletir! A vida me chama com todas as suas forças. Você estava correndo atrás dela nesse estacionamento sobre o asfalto
escaldante, carregando uma Coca-Cola e um saco de batatas fritas com o
Sinto-me tão excitado como quando tinha meus dez anos: ao acordar,
impelido pela refulgência de um lindo sol, eu saltava para a bicicleta e óleo escorrendo. Foi então que essa deusa passou... Uau! Que peitos! Isso
pedalava sem rumo definido. não deveria ser permitido. Você até que nem queria olhar, para que Ela
não ficasse magoada. Mas seria pedir demais... De repente, você sente as
No entanto, antes de terminar, quero deixar a vocês uma última men-
sagem, é claro, a mais importante. Ainda estou ouvindo Vlady, meu pro- pernas dobrarem-se. Não, não é possível: Ela tinha-se aproximado de
fessor de tai-chi-chuan, repeti-la incansavelmente aos alunos: "O melhor você unicamente para passar uma rasteira e afastar-se a galope, gritando-
meio de ser feliz é ser feliz!" lhe: "Eu te amo, meu amor! Eu te amo, meu amor!" Como isso é lindo,
mas você acaba de deixar cair o saco com as batatas fritas. Durante al-
260 guns segundos, sente-se invadido por uma imensa cólera. Conclusão: ela 261
nunca deixará de chateá-lo. Mas tudo ISSO é cômico demais. De repente,
você tem a impressão de que a situação é o cúmulo dcrridículo._E aí, neste,.
. asfalto escaldante, os pés engordurados pelas batatas fritas e Pela Cocai
s- ente-se transportado Por -Unia ofiltla- de ertfoção-tão :bela e
profunda que acaba gritando: "Eu te amo, meu amor! Eu te amo!" Bas-
tante alto para ser ouvido por metade dos banhistas. Ela poderia muitís- Bibliografia
simo bem gravar em cassete essa declaração "Eu te amo". Brota do mais
íntimo de você. Há muito tempo que estava à espera deste momento. Sua
satisfação é tão grande que você começa a chorar de alegria, como uma
criança. Por entre as lágrimas, consegue vê-Ia sorrindo. Carinhosamente,
Ela abraça você...

O autor
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