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ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

CURSOS DE GRADUAÇÃO – EAD

Antropologia Filosófica – Prof. Juan Antonio Acha e Prof. Dr. Pe. Sérgio Ibanor Piva

Meu nome é Juan Antonio Acha. Sou graduado em Licenciatura


em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano e realizo pós-
graduação na área de gestão e filosofia. Atuo como docente em
Antropologia Filosófica. Sempre fui preocupado com o valor da
vida e da vida humana em especial, por isso tenho presente
as palavras de Sócrates, referidas por Platão na Apologia de
Sócrates: "Uma vida que não é examinada não vale a pena ser
vivida".
e-mail: juan@claretiano.edu.br

Meu nome é Pe. Sérgio Ibanor Piva. Sou Doutor em Ciências


da Educação pela Università Pontificia Salesiana (Roma/1966),
especialista em Perfezionamento Didattico in Psicologia pela
Universidade Salesiana (Roma/1963), em Psicologia da Educação
pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Barão de Mauá
(Ribeirão Preto/1972) e em Logoterapia aplicada à Educação
pela Sociedade Brasileira de Logoterapia (1993). Atuo, dentre
outras atribuições, como Reitor – Centro Universitário Claretiano
– e Orador Sacro, com mais de 10.000 homilias proferidas.
e-mail: reitor@claretiano.edu.br

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Juan Antonio Acha
Sérgio Ibanor Piva

ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
Caderno de Referência de Conteúdo

Batatais
Claretiano
2013
© Ação Educacional Claretiana, 2012 – Batatais (SP)
Versão: dez./2013

128 A16a

Acha, Juan Antonio


Antropologia filosófica / Juan Antonio Acha, Sérgio Ibanor Piva – Batatais,
SP : Claretiano, 2013.
181 p.

ISBN: 978-85-67425-55-9

1. História da antropologia filosófica. 2. Conceito de pessoa humana e as diferentes


concepções filosóficas sobre o homem. 3. Estrutura do ser humano: ser bio-psíquico-
espiritual-transcendente. 4. Características da pessoa humana: história e
constitutivos. 5. Amor interpessoal: dimensão constitutiva da pessoa humana. 6. O
eu e o mundo. I. Piva, Sérgio Ibanor. II. Antropologia filosófica.

CDD 128

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SUMÁRIO

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO


1 INTRODUÇÃO.................................................................................................... 9
2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO....................................................................... 10
3 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 31
4 E-REFERÊNCIAS ................................................................................................. 33

Unidade 1 – HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 35
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 36
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 36
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 38
5 CIÊNCIAS POSITIVAS E CIÊNCIAS DO ESPÍRITO............................................... 39
6 ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA........................................................................... 40
7 MÉTODO DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA.................................................... 46
8 ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA: CIÊNCIA CONTEMPORÂNEA.......................... 48
9 DIFERENTES CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS DE HOMEM................................... 51
10 CONCEPÇÕES DE HOMEM NA ANTIGUIDADE................................................ 53
11 CONCEPÇÕES DE HOMEM NA IDADE MÉDIA................................................. 58
12 VALOR DO HOMEM PÓS-RENASCENTISTA..................................................... 61
13 O HOMEM NA ANTROPOLOGIA MODERNA................................................... 64
14 CONCEPÇÃO MATERIALISTA DO HOMEM....................................................... 67
15 PENSAMENTO EXISTENCIALISTA OU A FILOSOFIA DA EXISTÊNCIA
(EXISTENSPHILOSOPHIE)................................................................................. 69
16 FILOSOFIA CRISTÃ E VIDA NO ESTEIO DA FILOSOFIA MEDIEVAL: A VIDA NÃO É
SOMENTE IDENTIDADE COM O ORGÂNICO .................................................. 70
17 PESSOA HUMANA E A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO CRISTÃO.................. 71
18 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 74
19 CONSIDERAÇÕES .............................................................................................. 76
20 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 78
21 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 78

Unidade 2 – ESTRUTURA DO SER HUMANO:


SER BIO-PSÍQUICO-ESPIRITUAL--TRANSCENDENTE
1 OBJETIVOS ........................................................................................................ 81
2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 82
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 82
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE ............................................................................... 83
5 HOMEM: UM ÚNICO SER E UM ÚNICO SUJEITO............................................ 84
6 REGIÕES ESSENCIAIS DO HOMEM................................................................... 89
7 HOMINIZAÇÃO.................................................................................................. 97
8 PARALELISMO "PSICOFÍSICO".......................................................................... 99
9 SUJEITO.............................................................................................................. 103
10 DIMENSÃO MUNDANA DO SERBIO-PSÍQUICO-
-ESPIRITUAL....................................................................................................... 105
11 OS ATOS HUMANOS.......................................................................................... 107
12 SER SOCIAL ....................................................................................................... 107
13 PESSOALIDADE E PERSONALIDADE: PARTICIPAÇÃO DO TU.......................... 108
14 O SUJEITO ABERTO AO MUNDO...................................................................... 111
15 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 114
16 CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 116
17 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 117
18 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 117

Unidade 3 – CARACTERÍSTICAS DA
PESSOA HUMANA, CONSTITUTIVOS ESSENCIAIS
1 OBJETIVOS......................................................................................................... 119
2 CONTEÚDOS ..................................................................................................... 119
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 120
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 121
5 CATEGORIAS PARA COMPREENDER O HOMEM............................................. 121
6 LIBERDADE......................................................................................................... 124
7 HISTORICIDADE................................................................................................. 133
8 COMUNICAÇÃO................................................................................................. 134
9 HOMEM: SER HISTÓRICO E VALORES.............................................................. 141
10 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 148
11 CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 149
12 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 150
13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 150

Unidade 4 – SER EM RELAÇÃO


1 OBJETIVOS......................................................................................................... 153
2 CONTEÚDOS...................................................................................................... 154
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE................................................ 154
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................ 154
5 INSTINTOS E PAIXÕES, A CONTINGÊNCIA DO HOMEM................................. 155
6 SEXUALIDADE COMO CONDIÇÃO DA PESSOA................................................ 156
7 AMOR INTERPESSOAL, DIMENSÃO CONSTITUTIVA DO HOMEM................. 161
8 EU-MUNDO........................................................................................................ 169
9 NATUREZA.......................................................................................................... 169
10 CONHECIMENTO DO SER HUMANO BIO-PSÍQUICO-
-ESPIRITUAL....................................................................................................... 173
11 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS......................................................................... 178
12 CONSIDERAÇÕES.............................................................................................. 179
13 E-REFERÊNCIAS................................................................................................. 180
14 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 180
Caderno de
Referência de
Conteúdo

CRC

Ementa––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
História da antropologia filosófica. Conceito de pessoa humana e as diferentes
concepções filosóficas sobre o homem. Estrutura do ser humano: ser bio-psíqui-
co-espiritual-transcendente. Características da pessoa humana: história e cons-
titutivos. Amor interpessoal: dimensão constitutiva da pessoa humana. O eu e o
mundo.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1. INTRODUÇÃO
A Antropologia Filosófica é um campo de estudo que tem
como objetivo desvendar o fundamento da existência do homem. O
tema do homem não é novo, desde sempre impulsionou a reflexão
filosófica. Conhecer-se a si mesmo – essa inquietude, que o homem
carrega consigo desde que existem registros históricos, constitui a
discussão central deste Caderno de Referência de Conteúdo Antro-
pologia Filosófica.
Mesmo que a intenção primeira desse saber seja conhe-
cer o homem em sua metafísica essencial (para poder antecipar
10 © Antropologia Filosófica

sua essência), a interpretação filosófico-antropológica o aborda


de forma integral, e, portanto, não deixa de lado sua dimensão
existencial, o mundo das realizações culturais, o desenvolvimento
histórico. Neste CRC, assentaremos as bases para uma discussão
ampla sobre o ser do homem.
Após essa introdução aos conceitos principais, apresentare-
mos, a seguir, no tópico Orientações para o estudo, algumas orien-
tações de caráter motivacional, dicas e estratégias de aprendiza-
gem que poderão facilitar o seu estudo.

2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO

Abordagem Geral
Prof. Juan Antonio Acha

Neste tópico, apresenta-se uma visão geral do que será estu-


dado deste Caderno de Referência de Conteúdo. Aqui, você entrará
em contato com os assuntos principais deste conteúdo de forma
breve e geral e terá a oportunidade de aprofundar essas questões
no estudo de cada unidade. Desse modo, essa Abordagem Geral
visa fornecer-lhe o conhecimento básico necessário a partir do
qual você possa construir um referencial teórico com base sólida
– científica e cultural – para que, no futuro exercício de sua profis-
são, você a exerça com competência cognitiva, ética e responsabi-
lidade social. Vamos começar nossa análise pela apresentação das
ideias e dos princípios básicos que fundamentam este CRC.
Embora esta seja uma disciplina nova, vocês irão se familia-
rizar rapidamente com seu conteúdo, já que a evolução do pensa-
mento antropológico coincide com as etapas de desenvolvimento
da filosofia ocidental, que vocês já conhecem.
A Antropologia Filosófica consiste, como comentamos na in-
trodução, num estudo filosófico sobre o homem.
© Caderno de Referência de Conteúdo 11

A Antropologia, para estudar o homem, formula as seguin-


tes perguntas: como deve ser o homem para que seja possível sua
existência, e quais situações devem ser ponderadas para preservar
sua humanidade?
Para facilitar ao aluno o acesso ao tema, os conteúdos do Ca-
derno de Referência de Conteúdo foram divididos em quatro temas
principais:
1) Corpo Etimológico da Antropologia Filosófica. Evolução
da ideia do Espírito. História e antecedentes da Antropo-
logia Filosófica.
2) Níveis ontológicos do homem. Núcleo central da pessoa
humana.
3) Constitutivos essenciais do homem
4) O sentido da existência.
Por que é importante o estudo da Antropologia Filosófica?
Como diz CORETH (apud RABUSKE, 1986, p. 68),
Porque cada um de nós se experimenta como um eu, possuímos
uma experiência própria, sabemo-nos únicos e irrepetíveis. Por
isso, ante a pergunta: quem é o homem?, cada um experimenta a
sensação de estar perguntando: quem sou eu?

Todo método educativo, todo sistema político, social ou


econômico supõe uma teoria antropológica, que é baseada numa
determinada filosofia, a qual, por sua vez, é fundamentada numa
concepção de homem. Portanto, para desenvolver os princípios
que regerão a aplicação dessas ciências, a primeira coisa que deve
ser feita é definir o que ou quem é o homem, para logo pensar de
que forma ele pode se aperfeiçoar.
É de domínio da reflexão filosófica e não da observação cientí-
fica enunciar o que o ser humano precisa para realizar sua essência.
Se não sabemos o que é o homem, como vamos poder ana-
lisar as consequências das políticas de mercado, da clonagem, das
técnicas reprodutivas, do uso de seres humanos em experiências
científicas, do prolongamento artificial da vida, e de muitos outros
temas relacionados à sua realização?

Claretiano - Centro Universitário


12 © Antropologia Filosófica

Só o conhecimento integral do homem e o reconhecimento


deste como pessoa humana vão possibilitar o estabelecimento de li-
mites éticos à ação das tecnologias, da biotecnologia, das experiên-
cias médicas etc. Problemas desse tipo aparecem quase que diaria-
mente. Discute-se se é valido sacrificar um ser humano que não tem
importância social ou que não faz uso correto de sua consciência
para salvar a vida de alguém que tem um status social reconhecido.
Para a construção da bioética, o conhecimento antropoló-
gico do homem – a antecipação de sua estrutura ontológica – é
uma das condições principais. A bioética ou ética aplicada à vida
não terá uma direção válida e verdadeira se não conhecemos de
antemão o que é o homem.
Para desenvolver uma educação que corresponda à dignida-
de que é própria ao ser humano, também se faz necessária uma
compreensão integral do homem: quais são suas potencialidades,
sua grandeza por ser único, irrepetível e, também, qual é a univer-
salidade de sua essência.
Nesse processo, é necessário que fique muito claro quem é a
pessoa humana e o que ela precisa para sua sustentabilidade.
Atualmente, é muito comum ver autoridades de órgãos go-
vernamentais discutindo o grau de instrução que a escola deve dar
levando em conta somente as necessidades do mercado, sem con-
siderar a pessoa que está por trás do processo, que é receptora
dessa educação.
É fundamental saber como é o ser humano para poder argu-
mentar em sua defesa ante os processos alienantes ou massificas-
tes que a sociedade atual apresenta. Explicitar os princípios para
se posicionar ante as leis essencialmente positivistas, ante a des-
truição dos verdadeiros valores ontológicos e a substituição destes
por valores de conveniência apoiados em uma moral fundada em
construções puramente sociológicas – que partem de dados esta-
tísticos ou de interesses de grupos de poder.
© Caderno de Referência de Conteúdo 13

O homem biológico, psicológico e espiritual explicado pela


Antropologia Filosófica adere à explicação do homem como pes-
soa humana, que possui uma estrutura universal, que é o núcleo
pessoal, que é metafísico, e é a condição "a priori" da existência.
Existe um ponto de concordância que deve ser destacado: o ho-
mem é "ser que decide o que é", e por isso deve poder ser responsável
por suas decisões e capaz de encontrar um sentido para suas ações.
Sua dignidade está condicionada a seu reconhecimento como
pessoa humana, e, para ser pessoa, precisa ser livre para realizar
sua humanidade. Precisa ter condições de autodeterminação.
Os principais inimigos da liberdade, no homem, são os re-
ducionismos, os psicologismos, os economismos, o historicismo,
os fisiologismos etc. Qualquer tipo de reducionismo é frustrante,
principalmente os que reduzem o homem a um produto histórico,
ou os que o condicionam a estruturas socioeconômicas ou a me-
canismos psíquico-biológicos. Todos eles o levaram a perder sua
identidade, a se desnaturalizar. Por isso, é válido o esforço levado
a cabo pela Antropologia Filosófica para desvendar a estrutura do
ser humano, para explicar quem é o homem. Para poder ter um
ponto de referência na hora de escolher qual sistema é ou não
importante para construção da personalidade.
Será que vocês já imaginaram um mundo organizado uni-
camente pela técnica e pela ciência? Este mundo, com certeza,
ficaria rapidamente inabitável do ponto de vista biológico, sem
identificação cultural. Vocês se recordam da Segunda Guerra Mun-
dial, surgida em um momento de esplendor do desenvolvimento
político-científico?
O grande aumento dos conhecimentos técnicos e o alto grau
de especialização da ciência trouxeram grandes benefícios em pra-
ticamente todas as áreas de atuação humana: na medicina, na pre-
visão de catástrofes atmosféricas etc. Mas não resolveram a crise
de identidade de que sofre a sociedade moderna.

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14 © Antropologia Filosófica

A tecnologia não resolveu, e nos atrevemos a arriscar que


acentuou, o uso do homem pelo homem, a degradação do habitat
natural, o consumo pelo consumo, o emprego exagerado de agro-
tóxicos em benefício da exploração além da capacidade do meio
ambiente e das necessidades não satisfeitas das populações me-
nos favorecidas etc.
Você se lembra de quando estudou a cultura dos gregos?
Aquela célebre frase inscrita no portal do templo de Delfos:

Conhece-te a ti mesmo
Muito bem, todos os filósofos de alguma forma tem acatado
essa máxima. Sem dúvida, são muitas as interpretações, mais o
sentido do que foi escrito ninguém discute.
Essa frase está dirigida ao homem concreto, a esse homem
que é sujeito de toda a religião e de toda a filosofia.
Temos perguntas muito antigas, como:
• Quem é o homem e, portanto, que sou eu?
• Qual é o sentido da existência?
• Em que medida o homem é ser?
• Qual é seu nível ontológico?
Elas resumem o sentimento do homem, que quer saber o
que o constitui e em que ele se diferencia do resto da natureza.
Essa é a principal preocupação que move o estudo da Antropolo-
gia Filosófica.
Vejamos a seguinte definição de Antropologia Filosófica:
Pode chamar-se antropologia filosófica a todo intento de assumir
os problemas específicos do homem para esclarecer, segundo uma
reflexão metódica filosófica, o grande interrogante que o homem
faz para si mesmo: que significa ser homem? Noutros termos An-
tropologia Filosófica é a disciplina que tem o homem como objeto
de sua investigação com a finalidade de esclarecer os aspectos fun-
damentais de sua essência e existência (GEVAERT, 1995, p. 21).

Para melhor compreender nosso campo de pesquisa, veja-


© Caderno de Referência de Conteúdo 15

mos o que cada um dos conceitos significa separadamente:


• Antropologia: essa palavra provém da raiz grega anthropos
(homem), que, por sua vez, deriva de ándrios, termo
que designa o gênero humano (mulher/homem), e da
terminação logia (ciência). Seu significado completo é ciência
do homem.
• Filosofia: também deriva de um termo grego, philosophia,
e indica um saber. A palavra saber pode ser interpretada
de duas formas diferentes. Por um lado, está a opinião ou
doxa e, por outro, o saber cultivado ou episteme – este
se destina a compreender e explicar a realidade. No caso
da philosophia, ela se refere ao segundo termo, ou seja, a
um saber elaborado metodicamente.
A Antropologia Filosófica leva o nome anthropos por ser o
homem seu principal objeto de investigação. Poderia levar o nome
bios, já que o termo grego bios abarca toda a vida orgânica, psi-
cológica, espiritual e contemplativa, ou seja, a vida humana. Mas,
como bios já está sendo utilizado pela Biologia para indicar o que
é orgânico, mesmo que em grego "orgânico" equivalha a Zoe, o
estudo do homem adota anthropos.
A Antropologia Filosófica não é e nem pode ser uma parte
das ciências humanas positivas, mas trabalha com dados científi-
cos. Tampouco é uma psicologia, ainda que utilize seus conceitos
sobre a psique humana.
A ciência positiva porta conhecimentos concretos e precisos
sobre o homem, mas nada diz de concreto sobre o significado da
existência. É por isso mesmo que esses conhecimentos precisam
ser complementados por uma forma de conhecimento que supere
as análises existenciais do ser humano, que, partindo dessas análi-
ses existenciais, enxergue sua estrutura essencial.
Nem é preciso falar da importância desta disciplina na for-
mação profissional de vocês. O homem é estudado desde muitas
perspectivas: social, teológica, econômica, filosófica, cultural etc.

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16 © Antropologia Filosófica

Todas essas antropologias se diferenciam em sua abordagem. Mas,


na Antropologia Filosófica, o homem é pensado de forma integral,
passando por cima de estigmas ou conceitos sociais.
O termo "Antropologia Filosófica", não o saber que identi-
fica, é recente, surgiu no século passado. Foi com a obra de Max
Scheler, A posição do homem no cosmo, que se começou a procu-
rar uma ideia abrangente sobre o homem. Esse filósofo alemão
escreve, na obra citada, a seguinte reflexão: "Hoje possuímos uma
antropologia de ciências naturais, uma filosofia e uma teologia que
trabalham diferentes áreas do comportamento humano, mas não
possuímos uma idéia unitária do homem" (SCHELER, 2003, p. 8).
Precisamos levar em conta que nenhum dado sobre o ho-
mem pode ser alheio ao estudo da Antropologia filosófica.
O homem biológico, psicológico e espiritual é o objeto de
estudo da Antropologia Filosófica.
Três regiões essenciais (a física, a psicológica e a espiritual)
caracterizam o ser humano. Um homem sem a região psíquica, a
física ou sem espírito não seria um homem. Seria qualquer outra
coisa menos um ser humano, talvez um androide ou qualquer tipo
de mutação, mas não um homem.
A Antropologia Filosófica é uma ciência nova, não tem mais
de cem anos de existência, enquanto a filosofia ocidental tem mais
de dois mil e quinhentos anos. A antropologia atual tem como an-
tecedentes aquelas célebres perguntas Kantianas:
• O que posso saber?
• O que posso esperar?
• O que devo fazer?
• E, finalmente: o que é o homem?
Então, cabe-nos perguntar: como é o "homem" na visão da
Antropologia Filosófica?
© Caderno de Referência de Conteúdo 17

A Antropologia Filosófica primeiramente diferencia no ho-


mem as regiões essenciais:
• CORPO FÍSICO
• PSIQUE
• ESPÍRITO
Vamos ver rapidamente o que significam esses termos. O ser
humano é uma estrutura unitária, apoiada em uma unidade es-
sencial (é fundamental que você sempre tenha isto em mente no
estudo desta disciplina). Essa unidade é composta por três regiões
ou princípios: o vital, o psíquico e o espiritual.
E o que significa espírito no homem?
Em sua antropologia, Scheler destaca o conceito de que o
espírito é uma potência que complementa e direciona as outras
potências, tanto a biológica como a psicológica.
O termo "espírito" indica uma autoconsciência de si mesmo.
As manifestações espirituais ou próprias do ser humano são: com-
preensão do sentido, prefixação de metas, de fins, de ideais, a reli-
giosidade. Todas são possibilitadas pela dimensão espiritual.
A espiritual é a dimensão essencialmente humana, formada
por tudo o que é humano é não está presente nem em animais
nem em vegetais. Essa dimensão é responsável pela capacidade
do homem para atuar por cima dos condicionamentos de qualquer
tipo: biológicos, psicológicos, sociais etc. Isso é possível porque o
espírito é uma substância sem limites materiais ou espaciais. É a
capacidade de oposição aos condicionamentos tanto físicos como
psíquicos. A pessoa espiritual possui a capacidade de se distanciar
de dimensão psicofísica.
Essa particularidade de oposição, meramente humana, não é
uma condição obrigatória, é uma possibilidade. Dizemos "humana"
porque o animal não pode se opor a seus instintos, à suas pulsões.

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18 © Antropologia Filosófica

A concepção aristotélico-escolástica defende a ideia de que


a alma humana (interprete-se como "alma intelectual" ou "espí-
rito") necessita das potências que operam por meio dos órgãos
corporais (a dimensão psicológica e a física). Unidas naturalmente,
as três potências conceituam o ser humano, estando o espírito pe-
rante a vida.
Só para lembrar: pelo poder do espírito o homem pode dizer
"não" ao meio, aos impulsos.
Para os pensadores da Antropologia Filosófica, a PESSOA, é a
realidade substancial composta de corpo e espírito.
Segundo V. Frankl, psiquiatra fenomenologista criador da
Logoterapia, no homem espiritual as três dimensões (corpo, psi-
que e espírito) atuam em conjunto, mas, deixando suas diferen-
ças ontológicas aparecerem, nunca se confunde o espírito com o
psicofísico. Esse cientista explica que pode ser que o psicofísico
adoeça, sendo a doença tão grave que comprometa a autonomia
de atuação da pessoa espiritual, como, por exemplo, no caso da
esquizofrenia. Nesse caso, o espírito fica impedido de atuar, po-
rém ele nunca adoece, perde sua capacidade de atualizar-se, mas
continua presente.
Ante toda esta exposição, surge a pergunta: de onde provem
o espírito?
O biólogo W. Keller apud Frankl V. (1979, p. 109) diz que "O
princípio espiritual tem sua origem no momento em que o ser
aparece, mesmo que exista uma evolução posterior". Apareceu o
homem na Terra, o que significa que apareceu um ser diferenciado
pela dimensão espiritual. Sem espírito não temos homem.
Arnold Gehlen apud Frankl V. (1988, p. 210), também biólo-
go, concorda com isso. Ele defende a ideia de que o homem não é
um animal que "ganhou"espírito; o homem é um ser constituído
por uma peça só. Não aceita a teoria de que o homem provenha
de fusões não humanas, tampouco que seja um macaco desenvol-
© Caderno de Referência de Conteúdo 19

vido. A capacidade espiritual, para ele, reside no mais profundo es-


trato do humano, é da própria natureza do ser humano. Não aceita
que alguma coisa esteja por cima, no sentido de um princípio di-
vino, e tampouco aceita "biologizar", ou seja, explicar o homem
como produto do desenvolvimento. O ser humano é assim porque
possui biologia, psique e espírito.
O espírito está descrito como uma potência originária que se
complementa com as outras que também são constitutivas do ser
humano. Se falta alguma, estamos diante de alguma criatura da
escala zoológica mas não estamos ante um ser humano.
O espírito, como diz V. Frankl (1988) em oposição ao natura-
lismo, é uma força de oposição.
Para o filósofo, é fundamental chegar a formular uma expli-
cação completa da essência humana. Para chegar a esse fim, ele
recorre às categorias fundamentais.
Categorias fundamentais do homem
Segundo J. Jolif (1970), as categorias fundamentais do ho-
mem são cinco:
1) Totalidade – significa que existe um princípio único com
atividades diversas.
2) Alteridade – indica o vínculo do homem com o mundo.
3) Diferenciação – é a identidade consigo mesmo. Identi-
dade que persiste às mudanças acontecidas ao longo da
vida. Você muda, mas a identidade continua. Você é o
mesmo sujeito de quando tinha três anos.
4) Dialética – o processo humano da dialética contém as
três categorias vistas anteriormente.
5) Metafísica – trata da compreensão do homem além do
dado fenomênico. Explica-se por essa categoria consti-
tutiva o caráter de progresso constante que caracteriza
o homem.
As categorias formam a estrutura humana não são abstratas
(o filósofo descobre as categorias observando a existência), tam-
pouco subjetivas. Elas respondem a uma ordem ontológica, porque

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20 © Antropologia Filosófica

as categorias pertencem ao ser. Por último, o filósofo distingue as


propriedades essenciais do homem:
• liberdade espiritual;
• historicidade;
• dimensão transcendente.
Vamos conhecer rapidamente cada uma delas?
A liberdade espiritual é uma característica central da exis-
tência. A liberdade supõe que a pessoa, ainda que ligada ao mundo
pelo corpo, não está condicionada como o animal pelos impulsos,
não depende exclusivamente das pulsões, do patrimônio genético,
do meio social, das características históricas. Em outras palavras,
não está determinada pelas forças da natureza. Depende delas,
mas possui uma margem de independência.
Por quê? Porque a pessoa, por ser espiritual, atua sabendo
o que está fazendo e principalmente podendo concordar ou não,
segundo o juízo da razão.
A liberdade da vontade é a possibilidade de construir-se de
que dispõe o homem. É uma propriedade específica, pertence ao
próprio ser, não é uma característica adquirida, não é social é cons-
titutiva do ser homem. Nunca é uma imposição, é por si mesma. O
homem é livre porque não pode ser de outra forma ou não seria-
mos seres humanos.
Pela liberdade, o homem pode planificar e executar a idea-
lização de sua vida. Ninguém, nem o próprio Deus, pode se posi-
cionar no lugar do homem e decidir. Pena que essa propriedade
humana possa ser neutralizada, abafada.
Vamos conhecer a segunda propriedade, a dimensão de his-
toricidade.
O ser humano é diferente dos outros seres da natureza. Seu
comportamento é outro: enquanto os animais se ajustam ao con-
junto da natureza, o ser humano sente necessidade de construir
por cima do natural, de modificar a natureza, de obrar. Para sa-
© Caderno de Referência de Conteúdo 21

tisfazer essa necessidade, parte da cultura que herda de seus an-


tecessores. Para fazer uma casa, para cultivar, para escrever, para
levar adiante uma conduta moral, para se proteger, para orar, para
se comunicar etc. O homem é o ser que sempre está a caminho,
que entende sua existência em termos de realizações.
A partir dessa particularidade humana, a Antropologia Fi-
losófica conclui que o homem atua assumindo o passado para
construir o presente, tendo em vista uma realização futura. A esse
processo de tempo humano, os antropólogos denominam histori-
cidade.
Vamos ver algumas particularidades dessa propriedade hu-
mana, a historicidade:
• Primeiro: ela depende da liberdade, da comunidade hu-
mana e da cultura.
• Segundo: é dinâmica por estar motivada pela dimensão
de liberdade.
• Terceiro: abarca o passado, o presente e o devir.
Agora muito cuidado! A historicidade é um conceito que
tem um significado oposto ao de historicismo.
Para finalizar, podemos dizer que a historicidade da existên-
cia precisa partir do humanismo herdado do passado para se diri-
gir ao futuro.
Vejamos então a terceira e última propriedade essencial: a
dimensão transcendente.
O homem é um ser aberto ao mundo. É no mundo que vai
desenvolver seu projeto pessoal. Com o mundo, leva adiante uma
constante troca. Em cada situação existencial, ele capta os valores
contidos nas coisas. Em cada situação que tem de viver, escolher,
decidir.
No sentido religioso, "transcendência" significa transcender
às limitações humanas em direção a um sentido maior. Um sentido
que está por trás do mundo que percebemos pelos sentidos. Pre-

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22 © Antropologia Filosófica

cisamos da transcendência porque precisamos dar sentido a nossa


existência, aos valores que executamos, a nossa conduta moral.
Psicologicamente, o termo significa transcender o próprio
ego, superando com esse movimento excêntrico (de dentro para
fora) o narcisismo.
Esse movimento é impulsionado pelo amor, pela ternura,
pelo interesse pelo outro. O amor sempre é reconhecido como
uma experiência transcendente do ser humano.
A intersubjetividade e o amor se fazem presentes pela di-
mensão transcendente que constitui o homem.
Chegamos ao fim dessa abordagem geral da Antropologia Fi-
losófica e esperamos que você tenha compreendido o quanto ela
é importante para sua formação filosófica. Não deixe seu pensa-
mento se tornar reducionista! Abra o leque de possibilidades para
investigar o que é o homem! Leve essa prática para sua vida profis-
sional e pessoal e construa o sentido de sua existência!

Glossário
O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rá-
pida e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um
bom domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de
conhecimento dos temas tratados no Caderno de Referência de
Conteúdo Antropologia Filosófica. Veja, a seguir, a definição dos
principais conceitos:
1) Acidente: tudo aquilo que não é essência, que é circuns-
tancial.
2) Ágape: amor profundo, sublime, termo para diferenciar
o amor de Deus para o mundo.
3) Alétheia: palavra grega que faz referência às coisas que
são vistas como são.
4) Alteridade: vem do latim alter, cujo significado é outro.
Esse termo é tomado no seguinte sentido: existência do
próximo; encontro com o outro; reconhecimento do outro.
© Caderno de Referência de Conteúdo 23

5) Antropologia: vem do grego anthropos (ἄνθρωπος), que


significa ser humano, sem distinção de sexo. O termo
grego para designar o sexo masculino é andros (άνδρός),
e, para o sexo feminino, é gino (γυνή-γυναικός) que de-
riva para ginecologia: parte da medicina que estuda o
aparato genital da mulher.
6) Antropologia social: estuda a evolução humana e cul-
tural: tudo o que o homem inventa e usa: objetos ma-
teriais, valores, crenças, símbolos, costumes, compor-
tamento etc. Pesquisa as semelhanças e as diferenças
culturais entre os vários agrupamentos humanos.
7) A priori: (do latim, "partindo daquilo que vem antes"),
é uma expressão filosófica que designa um tipo de co-
nhecimento adquirido unicamente por meio do pensa-
mento dedutivo, ou seja, o conhecimento proposicional
não pode ser adquirido por meio da percepção, mas in-
dependentemente da experiência. Assim, é designada
uma anterioridade lógica, não cronológica, na noção a
priori. O conhecimento a priori costuma ser contrastado
com o conhecimento a posteriori, aquele que requer a
experiência.
8) Ato: o que existe atualmente. É contraposto à potência,
o que pode vir a ser.
9) Coercitividade: característica relacionada com a força
dos padrões culturais do grupo que os indivíduos inte-
gram.
10) Conhecimento sensível: apreende as formas concretas
particulares.
11) Conhecimento intelectivo: apreende as essências, as
formas abstratas e universais.
12) Contingente: o termo vem de latim continger, que significa
acontecer, suceder. O ser contingente é aquele que pode
ou não existir, é o contrário de "ser necessário". Com ele ou
sem ele, o mundo continua, é um ser ens ab alio (depende
de outro ser, o necessário).
13) Deontologia: do grego déon (δέον) significa o obrigató-
rio, o justo, o adequado. É a ciência que estabelece nor-
mas diretoras das atividades profissionais sob o signo de

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24 © Antropologia Filosófica

retidão moral ou honestidade, estabelecendo o bem a


fazer e o mal a evitar no exercício da profissão. Daí onde
deriva o termo Deontologia (teoria moral que orienta
nossas escolhas sobre o que deve ser feito).
14) Dialética: termo empregado para operar a passagem de
um grau ao outro, mostrando as contradições intrínse-
cas a cada nível. Atribuir tal tarefa à dialética significa
concebê-la como pedagogia (Paideia).
15) Dignidade: deriva do latim dignitas, do adjetivo dignus,
que está relacionado com o verbo decet: decente. Coin-
cide com a atitude de respeito a si mesmo e aos outros,
de reconhecimento. O respeito baseado no princípio de
dignidade é a garantia suprema da ordem social.
16) Dinâmica: de dynamis (δύναμις), em grego: potência.
Chama-se potência ao princípio do movimento (o da mu-
dança de um estado a outro). Por exemplo, a arte de edi-
ficar é uma potência. Aristóteles na Metafísica (1014b),
vincula a potência (δύναμις) ao ato (ενέργεια).
17) Educação: vem do verbo latino e-ducere, que significa
tirar do interior.
18) Empirismo: do grego empeiria, (εμπειρία) experiência
sensorial.
19) Eros: expressão do amor sexual.
20) Ética: o termo "ética" é utilizado hoje em dia para indicar
o conjunto de princípios, normas, valores que regem a
vida social e individual. No contexto acadêmico em que
nos movimentamos, o termo ética faz referência à filo-
sofia moral.
21) Ética cristã: como a filosofia cristã, parte de um conjunto
de verdades reveladas a respeito de Deus, das relações
do homem com seu Criador e do modo de vida prático
que o homem deve seguir para obter a salvação.
22) Holístico: vem da palavra grega holistiké (ολιστική) que,
em português, significa inteiro, completo, o todo. É uti-
lizado para designar a atitude integradora que permite
entender os fatos desde uma óptica múltipla.
23) Intelecto agente: abstrai, desmaterializa ou desindividua-
liza o inteligível do fantasma ou representação sensível.
© Caderno de Referência de Conteúdo 25

24) Intelecto passivo: a ele pertencem as operações racio-


nais humanas: conceber, julgar, raciocinar, elaborar as
ciências, a filosofia etc.
25) Filosofia moderna: filosofia que se situa historicamente
no período que denominamos Idade Moderna da Histó-
ria. Começa no século 16, com Descartes, e tem como
principais correntes o racionalismo e o empirismo.
26) Hylé (ύλη): termo grego que significa "substrato" ou
"matéria". Aristóteles usava o termo para falar do que
permanece para além da mudança: quando se faz uma
estátua de um pedaço de barro, por exemplo, muda a
forma, mas não a matéria ou substrato.
27) Intellectus: é de origem latina e significa "entre-ler". San-
to Tomás (apud MONDIN, 1983) diz que a inteligência
"entre-lê" as linhas da escritura do mundo fenomênico.
O intelecto vê na natureza das coisas – intus legit – mais
profundamente do que os sentidos, sobre os quais exer-
ce a sua atividade.
28) Liberdade: termo que provém do latim libertas, de liber:
livre. A liberdade é a capacidade do ser racional e cons-
ciente para se autodeterminar, ante a multiplicidade de
alternativas e opções que lhe são apresentadas em cada
situação concreta.
29) Moral: provém de um termo latino (moris) que como
éthos designa os costumes. Nesse sentido, devemos di-
ferenciar os termos: Ethos/ëthos, termo grego que sig-
nifica morada, residência, lugar de residência, de Éthos,
que significa costume, hábito.
30) Natureza: provém da palavra latina natura, que é uma
tradução do grego physis (φύσις), princípios das coisas,
"Natureza", de phyo que significa nascer, brotar, surgir,
produzir, crescer etc.
31) Paixão: tem diferentes significados. Um dos usos do ter-
mo coincide com uma ação descontrolada, irracional.
32) Per se: expressão latina que significa "por si mesmo". Al-
guns teólogos afirmam que Deus existe per se.

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26 © Antropologia Filosófica

33) Percepção: a percepção é o modo como tomamos cons-


ciência dos objetos, em especial daquilo que nos é dado
pelos sentidos.
34) Racionalismo: deriva de ratio (razão), doutrina que dá
total e exclusiva confiança à razão humana.
35) Reducionismo: posição segundo a qual as verdades de
uma área podem ser expressas ou reduzidas como ver-
dades de outra área.
36) Relativismo moral: teoria metaética segundo a qual os
fatos morais são instituídos pela sociedade e, portanto,
podem variar de sociedade para sociedade ou de época
para época.
37) Self: conhecimento de si e do outro; identidade;
autoconceito; "imagem de si-mesmo"; a pessoa que é
"eu", que possui uma totalidade; o conteúdo do aparelho
mental; processo reflexivo da consciência.
38) Substância: o que estrutura o ser.
39) Veritas: palavra latina que faz referência ao discurso. É
sinônimo de relatar algo fielmente.

Esquema dos Conceitos-chave


Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais
importantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um
Esquema dos Conceitos-chave. O mais aconselhável é que você
mesmo faça o seu esquema de conceitos-chave ou até mesmo o
seu mapa mental. Esse exercício é uma forma de você construir o
seu conhecimento, ressignificando as informações a partir de suas
próprias percepções.
É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos
Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações en-
tre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos mais
complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliar você
na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de
ensino.
© Caderno de Referência de Conteúdo 27

Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-se


que, por meio da organização das ideias e dos princípios em esque-
mas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu conhecimen-
to de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos pedagógicos
significativos no seu processo de ensino e aprendizagem.
Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es-
colar (tais como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas
em Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda,
na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que es-
tabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos
conceitos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim,
novas ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem
pontos de ancoragem.
Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, ape-
nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci-
so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure
como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante con-
siderar as entradas de conhecimento e organizar bem os materiais
de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos concei-
tos devem ser potencialmente significativos para o aluno, uma vez
que, ao fixar esses conceitos nas suas já existentes estruturas cog-
nitivas, outros serão também relembrados.
Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é você
o principal agente da construção do próprio conhecimento, por
meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações internas e
externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por objetivo tornar
significativa a sua aprendizagem, transformando o seu conhecimen-
to sistematizado em conteúdo curricular, ou seja, estabelecendo
uma relação entre aquilo que você acabou de conhecer com o que
já fazia parte do seu conhecimento de mundo (adaptado do site dis-
ponível em: <http://penta2.ufrgs.br/edutools/mapasconceituais/
utilizamapasconceituais.html>. Acesso em: 11 mar. 2010).

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28 © Antropologia Filosófica

ESPÍRITO (Geist)

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave do Caderno de Referência de Conteúdo Antropologia


Filosófica.

Como pode observar, esse Esquema oferece a você, como


dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im-
portantes deste estudo antropológico. Ao segui-lo, será possível
transitar entre os principais conceitos deste CRC e descobrir o ca-
minho para construir o seu processo de aprendizagem.
A Antropologia Filosófica, analisando o porquê das experiên-
cias humanas, das propriedades essenciais do ser homem (liberdade,
historicidade, dimensão transcendente) e das categorias mentais que
formam sua estrutura e que pertencem a seu ser (são ontológicas,
não são o produto da experiência), poderá idealizar o Ser do homem.
Vejam que o ser humano é um "combinado" de: biologia;
psique e espírito, acrescentando-se a dimensão social que lhe é
própria, tudo conduzido a partir do "eu" central. O princípio uni-
ficador que configura o ser humano como homem e o constitui
© Caderno de Referência de Conteúdo 29

como pessoa é o espírito. É pessoa pela forma como as dimensões


que o compõem são organizadas desde o centro espiritual, o "eu".
Analisando o mapa de conceitos, concluímos que a Antropologia
Filosófica entende que o homem é uma unidade indissolúvel, um
ser formado pelas dimensões bio-psíquico-espiritual-social atuan-
do em uma unidade substancial gerida pelo "eu".
O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de
aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambiente
virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como àqueles
relacionados às atividades didático-pedagógicas realizadas presen-
cialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EaD, deve valer-se
da sua autonomia na construção de seu próprio conhecimento.

Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem ser
de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas dissertativas.
Responder, discutir e comentar essas questões, bem como re-
lacioná-las com a prática do ensino de Filosofia pode ser uma forma
de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a resolução de
questões pertinentes ao assunto tratado, você estará se preparando
para a avaliação final, que será dissertativa. Além disso, essa é uma
maneira privilegiada de você testar seus conhecimentos e adquirir
uma formação sólida para a sua prática profissional.
Você encontrará, ainda, no final de cada unidade, um gabari-
to, que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as questões
autoavaliativas de múltipla escolha.

As questões de múltipla escolha são as que têm como resposta


apenas uma alternativa correta. Por sua vez, entende-se por ques-
tões abertas objetivas as que se referem aos conteúdos matemá-
ticos ou àqueles que exigem uma resposta determinada, inalterada.
Já as questões abertas dissertativas obtêm por resposta uma
interpretação pessoal sobre o tema tratado; por isso, normalmente,
não há nada relacionado a elas no item Gabarito. Você pode comen-
tar suas respostas com o seu tutor ou com seus colegas de turma.

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30 © Antropologia Filosófica

Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio-
grafias complementares.

Figuras (ilustrações, quadros...)


Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte-
grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustra-
tivas, pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no
texto. Não deixe de observar a relação dessas figuras com os con-
teúdos do CRC, pois relacionar aquilo que está no campo visual
com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual.

Dicas (motivacionais)
O estudo deste CRC convida você a olhar, de forma mais apu-
rada, a Educação como processo de emancipação do ser humano.
É importante que você se atente às explicações teóricas, práticas
e científicas que estão presentes nos meios de comunicação, bem
como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois, ao com-
partilhar com outras pessoas aquilo que você observa, permite-se
descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a ver e a
notar o que não havia sido percebido antes. Observar é, portanto,
uma capacidade que nos impele à maturidade.
Você, como aluno dos Curso de Graduação na modalidade
EaD, necessita de uma formação conceitual sólida e consistente.
Para isso, você contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor
presencial e, sobretudo, da interação com seus colegas. Sugeri-
mos, pois, que organize bem o seu tempo e realize as atividades
nas datas estipuladas.
É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em seu ca-
derno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas poderão ser utili-
zadas na elaboração de sua monografia ou de produções científicas.
© Caderno de Referência de Conteúdo 31

Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie


seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discuta
a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoaulas.
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os
conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos
para sua formação. Indague, reflita, conteste e construa resenhas,
pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadure-
cimento intelectual.
Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na
modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando
sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores.
Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a
este CRC, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto para
ajudar você.

3. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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4. E-REFERÊNCIAS

Figura
Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave do Caderno de Referência de Conteúdo Antropologia
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<http://penta2.ufrgs.br/edutools/mapasconceituais/utilizamapasconceituais.html>.
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34 © Antropologia Filosófica

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EAD
História da
Antropologia
Filosófica
1
1. OBJETIVOS
• Interpretar o significado e a missão da Antropologia Filo-
sófica.
• Analisar, comparativamente, as diferentes concepções fi-
losóficas sobre o homem.
• Reconhecer e analisar a problemática do método, ponto
de partida para entender a disciplina e seu objeto de es-
tudo: o homem.
• Percorrer os caminhos que Max Scheler traça em sua obra
para entender a Antropologia Filosófica Contemporânea.
• Identificar e interpretar os pressupostos básicos das prin-
cipais teses sobre o homem, e, entre elas, o conceito de
"pessoa humana".
36 © Antropologia Filosófica

2. CONTEÚDOS
• Enfoque das principais antropologias.
• Método da Antropologia Filosófica.
• Evolução da ideia do espírito.
• Principais pensadores e suas autorias em relação ao qua-
dro da disciplina.
• Interpretação da obra de Max Scheler.
• Concepção de homem na Antiguidade, na Idade Média e
na Idade Moderna.
• Interpretação materialista e espiritualista do homem.
• Influência da concepção cristã de homem e da pessoa hu-
mana.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) No início e durante o desenvolvimento das unidades, é
importante que você fique sempre atento às informa-
ções contidas no Plano de Ensino. Programe, organize
seus estudos e participe ativamente da Sala de Aula Vir-
tual. Disciplinar-se no estudo pode ajudá-lo a tirar o má-
ximo de proveito em seu curso de Educação a Distância.
2) Amplie seus conhecimentos sobre temas chaves para
analisar os pressupostos da Antropologia filosófica:
• Procure ler sobre os conceitos que foram apresenta-
dos no Glossário de conceitos na História da Filosofia
ou pesquisar no site de busca de sua preferência.
• Sobre a questão do ser na filosofia clássica, pode am-
pliar seus conhecimentos sobre o tema lendo: Meta-
física, livro 5, e De Anima, ambas as obras de Aristó-
teles.
© U1 - História da Antropologia Filosófica 37

• Para entender o problema da união substancial, você


deve dar muita importância à teoria do hilemorfis-
mo formulada por Aristóteles, já que ela tem um pa-
pel fundamental na concepção de homem não só na
Idade Média, mas também na Contemporaneidade.
Para saber mais sobre esse tema, sugerimos também
a leitura das obras Metafísica e De Anima, ambas de
Aristóteles.
3) Refletir sobre os conteúdos estudados é uma estratégia
que pode contribuir para a ampliação de sua compre-
ensão, considerando que possibilita amadurecer nos-
sas ideias e confrontá-las com a realidade. Desse modo,
para saber mais sobre esse tema, você, além de outras
obras, deve ler:
• Antropologia Filosófica, de H. C. L. Vaz, primeira parte
do Capítulo II.
• O Tema do Homem, de Julian Marías.
• Antropologia Física, de Gehlen.
• Fundamentos Antropológicos da Fisioterapia, de
Victor Frankl.
• O que é o Homem, de Pedro Laín Entralago.
• Antropologia Filosófica, de E. A. Rabuske.
• O Capítulo I "A dimensão corpórea do homem" do li-
vro de B. Mondin denominado O Homem que é Ele.
4) Pesquisando, você amplia as fronteiras de sua aprendiza-
gem e pode construir um conhecimento amplo e profun-
do sobre determinado assunto. Sugerimos, portanto, que
você leia os livros citados nas Referências Bibliográficas.
5) Para aprofundar seus conhecimentos sobre as categorias
ontológicas, você pode ler as seguintes obras de Santo To-
más de Aquino: Summa Theológica I e Contra Gentiles.
6) Antes de iniciar os estudos desta unidade, é interessante
conhecer um pouco da biografia de Max Scheler, cujo
pensamento norteia o estudo deste CRC. Para saber
mais sobre ele, acesse os sites indicados.

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38 © Antropologia Filosófica

Max Scheler (1878-1928)


Escritor contemporâneo que, ao morar em Jena, foi discí-
pulo de Eucken, que o iniciou na filosofia idealista. Tem-
pos depois, morando em Munique, faz parte dos discípu-
los de Husserl, evoluindo para um pensamento católico
fenomenologista. Mesmo adepto da corrente fenomenoló-
gica iniciada por E. Husserl, não se fixa ao essencialismo
realista. Sua filosofia traz um declarado antikantismo de
características teísta-personalista (pelo menos numa de
suas fases). Nesse período, escreve, com uma marcante
influência de Santo Agostinho, sobre o valor, o amor, a
ética material e outros temas. No final de sua vida literária,
dá um giro em direção ao paganismo metafísico. Com seu
Figura 1 Max Scheler. legado cultural, começou um movimento sobre o conhe-
cimento do homem consigo, com Deus e com o mundo,
movimento que deu início à Antropologia Filosófica.
Na obra A posição do homem no cosmo, Scheler (2003) descreve a posição do
homem em relação ao animal e as coincidências essenciais do ponto de vista
biológico, mostrando, como diferenciador básico, o espírito do homem, que está
fora da (denominada por ele) categoria da vida. Descreve, também, o espírito e
sua conduta independente relativamente ao fisiológico, podendo o homem, des-
sa forma, atuar contra as pulsões, coisa impossível para o animal. Scheler fala,
ainda, do centro da ação ôntica, que caracteriza a pessoa e faz do homem um
ser superior ao mundo, podendo tomar distância deste e até dele mesmo.
O espírito, para Scheler, é uma sucessão de atos definidos por sua intencionali-
dade. Esses atos são divididos em: saber, sentir e conhecer. Ele escreve que o
sentir emocional é o ato fundamental, e, nele, está contido o amor, peça funda-
mental para a constituição de uma sociedade. O amor é o fundamento perfeito
de todos os atos espirituais. Numa relação saudável, é ele que suscita a vontade
e a inteligência. Para esse filósofo, portanto, o homem só é pessoa quando de-
senvolve a capacidade de levar adiante atos intencionais. Suas obras não podem
ser estimuladas por uma necessidade imediata, nem ser a simples administração
de necessidades imediatas.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Nesta unidade, estudaremos as diferentes interpretações do
homem. Para tanto, começaremos pela análise do ponto de vista
das ciências empírico-formais, cujo alcance se restringe a seu ser
psicofísico. Analisaremos, também, os conhecimentos provenien-
tes das ciências do espírito, da Antropologia Social, da Sociologia,
da História e da Antropologia Filosófica. Esta última tem como ob-
jetivo descrever os conceitos universais de todos os homens, ou
seja, a essência do homem.
© U1 - História da Antropologia Filosófica 39

Além de analisar o enfoque das principais teorias antropo-


lógicas, você terá a oportunidade de analisar o método da Antro-
pologia Filosófica e familiarizar-se com a evolução da ideia de es-
pírito. Você também conhecerá os principais pensadores e suas
autorias em relação ao quadro da disciplina e refletirá sobre a obra
de Max Scheler. Tudo isso objetiva entender por que a antropolo-
gia estudada neste CRC denomina-se filosófica.
Bom estudo!

5. CIÊNCIAS POSITIVAS E CIÊNCIAS DO ESPÍRITO


Todos nós consideramos as ciências chamadas positivas ou
empírico-formais (biologia, física etc.) como sinônimos de exati-
dão e correlação com a realidade devido ao método que utilizam.
O universo científico está claramente definido no que diz respeito
ao estudo dos fenômenos da natureza, pois sua investigação preci-
sa e progressiva baseia-se sempre em dados empíricos.
Também é verdade que o homem faz parte dessa natureza por
ser um ser físico; por isso, a ciência positiva define-o como unitas
multiples (uma unidade com diversos estratos), explica-o como um
ser composto de facetas e, portanto, estuda-o de forma fragmenta-
da ou por especializações. Dessa forma, enquanto alguns cientistas
estudam o cérebro, outros estudam o coração, o sistema digestivo,
o aparelho psíquico etc. O problema é que o homem, sendo ainda
um ser físico, é responsável por atividades de caráter livre e de natu-
reza espiritual, das quais depende a perfeição humana.
Com as ciências positivas (biologia, química, medicina etc.),
encontramos outro grupo de ciências, que são denominadas ciên-
cias do espírito (Wilhelm Dilthey é o autor da classificação "ciên-
cias do espírito"). Nesse grupo, estão a Ciências Sociais, a História
e todas as ciências criadas a partir da liberdade do homem diante
da natureza. Nessa classificação, encontra-se ainda a Antropologia
Filosófica.

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40 © Antropologia Filosófica

As ciências do espírito são assim chamadas – apesar de o


espírito ser também o responsável pelo desenvolvimento das ciên-
cias positivas – para diferenciar seu campo de pesquisa. Em geral,
as ciências do espírito, para alcançar o conhecimento, vão da ex-
pressão cultural (contida nos objetos culturais) para o significado
(por que o homem desenvolveu essa vivência).
Agora que você sabe em qual grupo de conhecimentos a An-
tropologia Filosófica está inscrita, vamos tentar conhecer melhor
suas especificidades.

6. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA
São muitas as disciplinas que estudam o homem. Entretanto,
a única que o encara, de frente, como diz Theilhard de Chardin
(2001, p. 321), é a Antropologia Filosófica, que mantém uma re-
lação estreita com a reflexão filosófica. Sem dúvidas, a ciência
empírico-formal fornece uma compreensão precisa e muito rica
do ser humano. Mesmo assim, o desejo de ter um conhecimento
fundamental sobre homem continua insatisfeito.
Nem as ciências exatas, nem a psicologia, nem as ciências so-
ciais têm acesso à totalidade sobre o que é o homem; por isso, faz-se
necessário um conhecimento que unifique todos esses saberes sobre
o homem, imprimindo-lhes uma direção. A necessidade de um dis-
curso filosófico aplicado à antropologia surge porque o ser humano
não pode ser entendido em sua totalidade se convertido em objeto
de investigação. Para entendê-lo, é preciso seguir o caminho da refle-
xão, superar o nível da doxa e construir uma episteme.

Informação ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Etimologicamente, a palavra "antropologia" deriva da raiz grega anthropos (ho-
mem), que é derivada de ándrios, termo que designa o humano, mulher e ho-
mem, e da terminação logia (ciência). Significa a ciência do homem.
O termo "filosofia" também deriva de um termo grego, philosophia, e indica um
saber. Entretanto, saber compreende não só opinião ou doxa, mas, também, o
saber "cultivado", a episteme, que é um estudo dirigido à compreensão e à ex-
plicação a realidade. No caso da philosophia, estamos nos referindo a um saber
elaborado metodicamente.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
© U1 - História da Antropologia Filosófica 41

O estudo do ser humano que leva adiante as ciências po-


sitivas nunca poderá responder às perguntas: "quem sou eu?" e
"quem é o ser humano?". O filósofo nunca poderá estar satisfeito
com o conhecimento facetado do homem à medida que este o
afasta da resposta do principal questionamento humano. Para sa-
tisfazer a essa inquietude tão humana de saber "quem sou eu?",
é necessário fundamentar os conhecimentos relativos ao homem.
Para isso, faz-se necessário entender a essência do ser humano e
quais são as possibilidades de seus atos. Para o filósofo, portanto,
é preciso antecipar o ser do homem.
O conhecimento antropológico-filosófico é o fundamento
do conhecimento científico à medida que serve para explicar a es-
trutura universal e específica do ser humano. Essa relação entre
ciências e conhecimento antropológico-filosófico sempre deve ser
vista como complementação, como cooperação, e nunca como li-
mitação.

O Homo Sapiens
O homem participa da mesma ordem dos primatas superio-
res. No entanto, não pode ser considerado apenas um primata que
caminha ereto; afinal, ele é algo a mais na escala zoológica.
Teilhard de Chardin (2001, p. 188) escreve: "Nós ficamos
perturbados ao constatar o quanto o Anthropos, apesar de certas
preeminências mentais incontestáveis difere pouco, anatomica-
mente, dos outros Anthropôides".
Situando o ser homem dentro da escala zoológica, podemos
afirmar que ele pertence ao: reino animália, sub-reino dos metazoa,
filo vertebrata. Classe mammalia. Ordem primata. Família hominidae.
Gênero homo. Espécie homo sapiens ou anthropus (CURTIS, 1977).
Então, surge o seguinte questionamento: por que o homem
não pode ser considerado simplesmente um animal? Isso aconte-
ce porque o animal vive imerso no ecossistema, faz parte deste;
seu conhecimento é rudimentar, ele conhece esta ou aquela árvo-

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42 © Antropologia Filosófica

re porque pertencem ao mundo natural que o rodeia. Já o homem,


por conhecer o que é uma árvore em essência (sabe, por exemplo,
que esta pertence ao reino metaphytea, que é fotossintetizante,
composta especialmente de celulose etc.), conhece todas as ár-
vores do mundo. Uma vez que conhece a essência do solo fértil,
pode procurar nos lugares mais recônditos do planeta terras para
cultivar. Ele não está preso a um determinado ecossistema; por
isso (e por muito mais), podemos dizer que o homem é um ser que
se situa além da temporalidade e do imediato, sua realidade não é
só material, como nos animais. É, também, de ordem espiritual.
O homem é um ser que possui a capacidade de refletir (con-
segue se afastar do mundo exterior e refletir sobre este e sobre si
próprio) e analisar o mundo por meio das essências, já que possui
inteligência. É dono de uma estrutura bipolar, relacionando-se não
só com o sagrado, mas também com o mundano.

Tipos de antropologia
As ciências empírico-formais não tratam do homem na con-
dição de homem, apenas investigam a realidade humana sob um
determinado aspecto, no qual são muito eficientes (RABUSKE,
2003). Vamos conhecer, neste momento, as principais escolas an-
tropológicas que existem na atualidade, bem como suas especia-
lizações.
Antropologia Física
A primeira antropologia que aparece no horizonte investiga-
tivo é a Antropologia Física ou Natural, cujo auge se dá no século
19. Esta sempre foi uma parte da biologia – portanto, estuda o
homem a partir do biológico. Dá importância à estruturação óssea
e à medida craniana para determinar diferenças raciais. Estuda a
pigmentação, a forma e a cor dos cabelos, dos olhos, do nariz, das
linhas papilares etc., a fim de estabelecer os grupos de organismos
de morfologia análoga.
© U1 - História da Antropologia Filosófica 43

Antropologia Cultural
É o estudo antropológico mais difundido na atualidade.
Como a Antropologia Física, também esteve presente como ciên-
cia no século 19. A Antropologia Cultural foi impulsionada pela
necessidade de estudar a humanidade do ponto de vista social,
partindo de traços raciais, mas sem deixar de diferenciar suas prin-
cipais características somáticas. Estuda o ente cultural, suas estru-
turas sociais, linguagem, costumes, leis, obras artísticas e estrutu-
rais, dando ênfase aos fatos culturais, como religião, direito, moral,
artes, ferramentas, folclore etc.
Mesmo que a humanidade esteja constituída por uma só es-
pécie, o homo sapiens, para o estudo do homem, a Antropologia
Cultural estabelece subdivisões: o estudo dá-se a partir da cultura
e leva em conta os caracteres somáticos genotípicos, ou seja, he-
reditários, e os adquiridos.
Antropologia Teológica
Baseada na Bíblia e nos tratados canônicos, a Antropologia
Teológica parte da Criação ex nihilo, Gênesis (1,1-2), e toma impor-
tância a partir do Concílio Vaticano II. Mede o homem à imagem
de Deus e, partindo desta, faz conjecturas de seu existir.

A Antropologia Teológica não é uma ciência no sentido estrito,


mas uma Scientia no sentido antigo. Caso tenha dúvidas sobre o
que isso quer dizer, sugerimos que realize pesquisas e/ou consulte
o tutor da disciplina.

Antropologia Psicológica
Existe mesmo uma Antropologia Psicológica? Psicólogos re-
fletem sobre o homem, comparando/analisando o ser humano do-
ente com o "normal". A prática dos trabalhos publicados demons-
tra que esses cientistas acabam sempre abordando a Antropologia
Filosófica.

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44 © Antropologia Filosófica

Um de seus maiores representantes é V. Frankl, que estuda


o homem com base na Antropologia Filosófica. Karl Jasper, Ludwig
Binswanger (médico e filósofo), Von Gebsattel, Igor Caruso e outros
cientistas também partem dos princípios contidos na Antropologia
Filosófica.
Informação ––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Os cientistas citados sempre tentam descobrir o homem que está por trás do
doente. Viktor Frankl percebeu que a ciência médica não consegue abarcar o
homem em sua totalidade, caindo nos reducionismos, que só veem um aspecto
da totalidade do homem, reduzindo-o a um "homúnculo". O autor apoia sua An-
tropologia Médica na necessidade de poupar o homem do "niilismo cientificista",
conforme podemos notar em suas obras: O homem incondicionado: lições meta-
clínicas, O Homem doente e Fundamentos antropológicos da Logoterapia.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Antropologia Estruturalista
Como indica seu nome, a Antropologia Estruturalista trabalha
com estruturas universais, particulares, pares opostos de coincidên-
cias e rupturas, para entender o homem e suas manifestações.
Como afirma seu criador Lévi-Strauss (1970), nenhuma dis-
ciplina por si só pode dar conta de todo o conhecimento; por isso,
não podemos deixar de mencionar, na hora de falar do homem
e seu entorno cultural, a semiótica, a história, a economia, as ci-
ências biológicas, a anatomia, a fisiologia, a embriologia e outras
ciências que estudam o aparato corporal do homem. Também é
importante citar o grande aporte dos geneticistas para poder ex-
plicar comportamentos, adaptabilidades etc.
A contribuição que essas ciências do ser humano trazem
para a análise da existência, considerando o homem como homem
integral – em oposição às correntes anti-humanistas que o redu-
zem a um produto (histórico, socioeconômico ou evolucionista) –,
é, sem dúvida, muito grande. Mesmo assim, a pergunta "quem eu
sou?" continua ecoando nos espíritos humanos.
Antropologia Filosófica
A Antropologia Filosófica aparece como uma ferramenta
indispensável para tentar dar um significado definitivo à reali-
© U1 - História da Antropologia Filosófica 45

dade humana, o qual deve provir da essência do homem e não


de interesses sectários econômicos, políticos, religiosos etc. É a
ciência que investiga a estrutura essencial do homem, que estu-
da as características humanas para entender sua essência. Não
é a mesma coisa que a visão filosófica do homem – ainda que a
Antropologia Filosófica seja um movimento filosófico. É, antes de
tudo, antirreducionista. É uma ciência nova, pois não tem ainda
100 anos.
Assim, podemos afirmar que a Antropologia Filosófica, por
sua natureza, não pode ser colocada num marco de limites. Defini-
da mediante o estudo deste ou daquele lineamento humano, sua
atitude representa um avanço na medida em que reflete sobre a
totalidade do homem.
Por ser filosófica, essa antropologia não se contenta apenas
em conhecer uma determinada área do homem; ela pretende,
ainda, esclarecer racionalmente o núcleo que possibilita que seu
comportamento seja especificamente humano.
Sua função não é recopilar dados sobre o homem, mas de-
senhar uma estratégia para compreender qual é a estrutura do
ser do homem. Isso possibilita formular as perguntas: "quem eu
sou?", "de onde venho?" e "para onde eu vou?". Essas interro-
gações exclusivamente humanas não podem ser produto de um
sistema puramente biológico, como é o sistema do animal, nem
de uma dimensão puramente psicológica, como pretendem alguns
cientistas. Essas perguntas englobam, necessariamente, outras di-
mensões. Por isso, o estudo antropológico do homem pretende
enxergar sua essência, que é seu primeiro princípio ôntico, para
desenvolver, posteriormente, sua análise.
A Antropologia Filosófica, como muitas ciências do espírito,
surge com o propósito de resgatar o homem do anonimato em que
a modernidade o colocou, no qual se faz presente um contexto
niilista de perda de identidade e incerteza.

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46 © Antropologia Filosófica

Ponto de partida para a construção da Antropologia Filosófica


O que é o homem? Qual é o sentido da existência? Quem sou
eu no universo? Essas questões são as que ocupam o campo da An-
tropologia Filosófica. Vejamos o que Max Scheler diz a respeito:
A missão de uma Antropologia Filosófica é mostrar exatamente
como a estrutura do ser humano explica todas as funções e obras
como a linguagem, consciência moral ferramentas, idéias de justiça
e injustiça, estado de direito, mitos, religião, ciências, etc. (SCHELER,
2003, p. 121, tradução nossa).

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


O primeiro projeto para a construção da Antropologia Filosófica teve seu ponto de
partida na definição de animal rationale, que significa que o homem é um ser que
emerge da natureza pela racionalidade, pelo pensamento e pela fala.
Nesse caso, não podemos nos basear nos gregos, já que estes não usaram o
termo rationale, mas definiram o homem como o animal que tem logos – que não
é sinônimo de rationale. Logos, em Platão, converte-se em ideia, palavra formada
pela raiz de um verbo que significa "ver", porque, segundo Platão, o homem possui
como propriedade determinante a intuição intelectual de caráter espiritual.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

7. MÉTODO DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA


O método da Antropologia Filosófica deve possibilitar a des-
coberta da estrutura ou do princípio que caracteriza o ser humano,
ou seja, aqueles traços que são comuns a todos os homens e que
nos diferenciam do resto dos seres da natureza.
A Antropologia Filosófica, diferentemente do conhecimento
científico, não formula hipóteses para orientar sua investigação, pois,
durante a existência humana, os problemas antropológico-filosófi-
cos estão presentes e a própria existência do homem já exige uma
resposta. Ela aparece como uma necessidade na medida em que é
um conhecimento que reconhece os problemas existenciais e pro-
põe respostas para descobrir o sentido da vida (GEVAERT, 1995).
O problema está em saber se esses princípios ontológicos,
universais, serão válidos para todos os seres humanos em qual-
quer momento histórico.
© U1 - História da Antropologia Filosófica 47

Em sua grande maioria, os pensadores da Antropologia Fi-


losófica concordam ao afirmar que a primeira etapa do método é
analisar os dados que surgem da experiência, ou seja, aqueles que
provêm das ciências humanas (biologia, paleontologia, psicologia,
sociologia, história etc.) (SAHAGUN LUCAS, 1996).
Posteriormente, temos a etapa da autorreflexão, na qual o
homem, além do mundo concreto, "habita", também, o mundo da
transcendência, superando, com sua atitude, o espaço temporal.
Suas ações estão cheias de interioridade, pois, no estudo humano,
não é possível deixar de fora a subjetividade (BUBER, 1960).
O método, então, deve possibilitar a captação não só dos da-
dos sensíveis, mas também daquele princípio que é imutável.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


A palavra "método" vem do grego meta hodos, "caminho para"; no latim, deriva
para "via". Na filosofia clássica, o método ou via era apriorístico, ou seja, os
pensadores partiam da intuição reflexiva do ser (produto da capacidade pensan-
te do homem). Assim, o método de caráter intuitivo está caracterizado por um
conhecimento imediato do geral e universal – estamos falando, dessa forma, da
intuição intelectual que possui um alcance maior do que a sensível, a qual pode
ser dividida em eidos, ou intuição intelectual, que coincide com as essências e
capta o que é o objeto, e intuição valorativa, a intuição que capta o valor.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A Antropologia Filosófica, que é um estudo racional sobre o
homem, está voltada para a captação das dimensões fundamen-
tais do homem.
Ela se fixa no homem integral, leva adiante um discurso ra-
cional sobre o ser humano para explicar sua essência a partir de
categorias abstratas. Para tanto, precisa dos dados do saber cientí-
fico, do conhecimento ontológico e das contribuições das ciências
do homem.
Jolif (1960) descreve cinco categorias que permitem o conhe-
cimento filosófico do homem, a saber: Totalidade, Alteridade, Di-
ferenciação, Dialética e Metafísica, que surgem como resultado da
análise das experiências comuns a todos os homens. Baseando-se

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48 © Antropologia Filosófica

nessas categorias, que formam a estrutura do homem, a Antropolo-


gia Filosófica tenta justificar o porquê do dado fenomênico, ou seja,
da conduta existencial.
Observe que o homem não se compreende totalmente. Esse
fato o leva a se perguntar sobre sua essência. Ele sabe que é um
"ser no mundo", porém, o mundo não é seu último horizonte. O
homem é um ser "incondicionado" e, por isso, está para além da
simples análise existencial.

8. ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA: CIÊNCIA CONTEM-


PORÂNEA
Os nomes a seguir descrevem alguns dos principais pensado-
res que influenciaram e contribuíram com seus trabalhos para a for-
mação da Antropologia Filosófica. É importante ressaltar que não
temos a intenção de listar nomes de filósofos indiscriminadamente,
e sim familiarizá-lo com os pensadores que contribuíram com a linha
de evolução do reconhecimento do espírito humano. Acompanhe:
1) Kierkegaard (1813-1855): filósofo dinamarquês que ex-
plicava, no século 19, que o homem é um ser pessoal,
individual e com um valor absoluto diante de Deus.
2) J. G. Von Herder (1744-1803): iniciou, talvez, a Antro-
pologia Filosófica atual. É contemporâneo de Kant, que
tinha forjado uma imagem de homem fechado no inte-
rior de seu espírito e caracterizado pela consciência do
dever e da responsabilidade. Baseando-se nessa ideia,
Herder destaca a capacidade de autoperfeição, produto
da liberdade que o homem possui. Descreve a razão, a
alteridade e a transcendência como formadoras da es-
trutura natural do homem.
3) F. Brentano (1838-1917): na psicologia, trabalha o con-
ceito de intencionalidade da consciência. Criticou o idea-
lismo e investigou o conceito de pessoa vindo da escolás-
tica. Seu discípulo, E. Husserl (1859-1938), orientou suas
investigações ao desenvolvimento de uma fenomenolo-
gia, na qual tem lugar o princípio de intencionalidade.
© U1 - História da Antropologia Filosófica 49

4) M. Heidegger: analisando as perguntas kantianas ("que


posso saber?", "que devo fazer?", "que posso esperar?"
e "quem sou eu?") o autor da obra: Kant e o problema
da metafísica, discípulo de E. Husserl, indicava o caminho
para fundar uma real Antropologia Filosófica ao descrevê-
la como "ciência do homem que investiga tudo sobre sua
natureza, enquanto ser dotado de corpo, alma e espírito
[...]. A Antropologia Filosófica tem que compreender o
que homem faz de si mesmo e o que pode e deve fazer"
(HEIDEGGER, 1954, p. 74-80). Para ele, a condição huma-
na é formada pela existência dentro de uma estrutura que
é o ser-no-mundo (denominado dasein).
5) Jaspers (1883-1969): trabalha a Metafísica da Existên-
cia e enuncia a tríade: Mesmidade-Comunicação-Histo-
ricidade. Com preocupações similares às de Heidegger
quanto à existência no mundo, diferencia-se deste im-
portando-se com a transcendência.
6) Buber (1878-1965): sua obra tem como tema principal a re-
lação eu-tu (sujeito-sujeito) e eu-mundo (sujeito-objeto).
7) Nicolai Hartmann (1882-1950): filósofo alemão existen-
cialista, desenvolveu a teoria do conhecimento integra-
da à ontologia do objeto de conhecimento, descrevendo
o paralelismo sujeito-objeto.
8) P. Lersh: de orientação profundamente personalista,
converte, com J. Y. Jolif, a Antropologia Filosófica à pro-
cura da essência humana e de seu fundamento onto-
lógico. Consideram-na dentro das ciências humanas e
realçam a visão de conjunto.
9) V. E. Frankl (1905-1977): psiquiatra fundador da Logote-
rapia, deixa, definitivamente, os modelos da psicanálise
e behaviorismo para trás. Trata de temas como proble-
mas de sentido e a orientação do homem para algo que
não é ele mesmo.
Note que, de certa forma, como diz H. U. Von Balthasar, sempre
existiu na consciência da humanidade a busca por uma Antropologia
Filosófica. Nesse sentido, podemos, inclusive, retroceder até Sócrates,
Platão, Aristóteles, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.

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50 © Antropologia Filosófica

Partindo do momento em que o homem se descobre num


nível ontológico diferente das coisas e dos objetos, não diferente
no nível cosmológico, e sim como alguém diante do mundo, sur-
ge um novo paradigma cognoscitivo, no qual o homem, pessoa
humana, é abarcado pela Antropologia Filosófica. Com base nas
sistematizações que Max Scheler (1874-1928) faz do conjunto de
conhecimentos sobre o homem. Ele é chamado o "fundador" da
Antropologia Filosófica.
Nos pensadores contemporâneos citados, impera a orienta-
ção fenomenológica combinada com a filosofia da existência e o
agregado do personalismo ou não.
Você deve estar se perguntando: com o avanço científico e
a impressionante acumulação de dados cognitivos, por que ain-
da não foram controlados os grandes problemas humanos nem
respondidos os principais questionamentos sobre o ser humano?
Em outras palavras: como não foi descoberto o significado do
homem?
É fácil comprovar que o aumento assustador dos conheci-
mentos técnicos não tem ajudado a guiar o homem pelos cami-
nhos de seu ser, nem ajudado a descobrir o sentido da existência
humana.
Para tentar responder a essa pergunta, vamos ler uma parte
da obra que Max Scheler escreveu na metade do século 20 (época
que coincide com o apogeu dos grandes domínios cognitivos):
Na história de mais de dez mil anos, é a nossa a primeira época em
que o homem converteu-se para a si mesmo num radical e univer-
sal ser problemático. O homem já não sabe o que ele é, mas perce-
be o que ele não é (SCHELER apud GEVAERT, 1995, p. 12).

Para introduzir a problematização do homem atual, Scheler


narra em sua obra A posição do homem no cosmo uma situação
que se inicia da seguinte forma:
Se perguntamos a um europeu culto no que ele pensa ao escutar
a palavra "homem", quase sempre três esferas de idéias totalmen-
te incompatíveis entre si começarão a aparecer em sua cabeça em
© U1 - História da Antropologia Filosófica 51

tensão umas com outras. A primeira delas aponta para a esfera de


pensamento da tradição judaico-cristã. Adão e Eva, a criação, o pa-
raíso e a queda. Em segundo lugar, aparece a esfera de pensamento
da antiguidade clássica: aqui a autoconsciência do homem elevou-se
pela primeira vez no mundo à compreensão de sua posição singular
através da tese de que o homem é determinado pela posse da razão,
do logos, do phronesis, da rátio, da mens [...]. A terceira esfera de
pensamento é aquela que há muito já se tornou igualmente tradi-
cional: a esfera de pensamento da moderna ciência da natureza e da
psicologia genética. Nesta esfera assume-se o homem como resulta-
do final e muito tardio da evolução da vida do planeta terra [...].
Mas ainda assim não possuímos uma idéia do homem [...].
Em uma certa compreensão todos os problemas centrais da filosofia
deixam-se reduzir à pergunta: o que é o homem? Qual a situação
metafísica por ele assumida no interior da totalidade do ser, no mun-
do e de Deus? Não foi sem razão que uma série de pensadores anti-
gos costumaram tomar a "Posição do homem no universo" – ou seja,
uma orientação sobre o lugar metafísico da essência – como o ponto
de partida de toda colocação filosófica (SCHELER, 2003, p. 91-93).

9. DIFERENTES CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS DE HOMEM


A fim de tentar delinear algumas das principais concepções
filosóficas sobre o homem, vejamos o excerto extraído da obra de
Etchebehere Antropologia Filosófica.
Os antecedentes da antropologia como forma filosófica se iniciam com
Heráclito "tenho-me investigado a mim mesmo" diz abrindo assim o
caminho da introspecção filosófica. [...] Outro autor que é importante
resgatar é Protágoras, porque a partir dele podemos iniciar a leitura
do homem que só conta com ele mesmo: a do antropocentrismo. O
homem que já não se mede pela razão comum, nem pela figura de um
demônio que o guie, "o homem é a medida de todas as coisas".
[...] Uma outra figura sobressalente dentro da antropologia grega
é Sócrates. Nele se afiança o método introspectivo, mas na busca
de si mesmo.
[...] A partir de Sócrates se inscrevem três grandes antropologias
na história da filosofia. A primeira é a platônica. Sua importância
é imensa, e seus textos continuam sendo atuais. Variadas são as
interpretação que faz do homem na vasta literatura, em Fedro con-
sidera o homem metaforicamente como uma carroça com asas; em
Timeo com uma planta celeste, passando pelo mito de andrógino
do Banquete, até chegar ao mito de Er e a realidade da República.

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52 © Antropologia Filosófica

Junto com Platão, seu discípulo Aristóteles é fascinado com a ques-


tão do homem. Dentre suas realizações tiveram grande repercus-
são a teoria hilemórfica e a teoria do intelecto (noûs).
A terceira grande linha é a do estoicismo. Da sua visão totalizante
surge a "philosophia perenne" entendida como a filosofia que todo
homem naturalmente desenvolve. Com esta corrente filosófica
volta, em um certo sentido, a intuição socrática de encontrar um
conceito, mas a busca é um conceito que explique todo o real: um
logos hegemonikón, uma razão que dirige.
Na idade Média os filósofos contam com novo elemento: o vinho
da fé. Mais que converter o vinho ou água, estes filósofos se con-
vertem eles mesmos em teólogos. Variadas são as fontes em que
beberam. Em primeiro momento foi a fonte platônica. Este pensa-
dor se encontra nas obras dos padres Capadócios, em Orígenes e
chega até Agostinho de Hipona. Aristóteles também chega ao pen-
samento cristão, porém mais tarde. Uma terceira fonte que nutre o
pensamento medieval é o Neoplatonismo. [...] No período Renas-
centista, renasce o humanismo clássico [...].
O período denominado Moderno caracteriza-se pela aparição da
razão como fundamento. A figura de René Descartes é aqui em-
blemática. Por um lado o homem é visto desde a perspectiva do
pensar, atividade esta que ocupa todo o horizonte do humano. O
afetivo e inconsciente são deixados no abandono. Por outro lado,
essa razão começa a delinear projetos, o cálculo, as leis físicas e
matemática ficam cada vez mais precisas, úteis e práticas. A isso lhe
segue, novamente, um certo estoicismo que faz das paixões uma
doença como encontramos em Baruch Spinoza. A razão moderna
tem sua plenitude no movimento denominado Ilustração.
[...] se seguimos a imagem platônica do carroça com assa, a Mo-
dernidade acentuou. Ao menos no âmbito filosófico, ao condutor e
os cavalos, mas pouca atenção prestou à carroça, é dizer, ao físico
ou corporal do homem. É por isso que no final da Modernidade
nos encontramos com três movimentos filosóficos. O idealismo e
sua visão espiritual do homem. Como crítica a este movimento,
surgiram os movimentos irracionalistas nos que A. Schopenhauer
é, entre outros, a figura mais destacada. Na segunda metade do
século XIX, o Positivismo, que teve seu esplendor, desenvolvendo
disciplinas como a psicologia experimental e a sociologia.
No século XX, último século da Modernidade, com o Positivismo
surge a psicanálise junto com o avanço das ciências médicas, sobre-
tudo a neurologia.
Mas, frente a esse movimento positivo temos a reação do que
podemos denominar o conjunto das "ciências do espírito" [...]
(ETCHEBEHERE, 2008, p 22-30, tradução nossa).
© U1 - História da Antropologia Filosófica 53

Com esse brilhante resumo de Etchebehere, você está em


condição de vislumbrar as contribuições de vários períodos da his-
tória do pensamento humano. Isso lhe permitirá analisar nos pró-
ximos tópicos cada um destes períodos e contribuições separada-
mente, mas sem perder de vista todo o desenvolvimento histórico
da reflexão sobre o homem. Vejamos então cada período histórico
separadamente!

10. CONCEPÇÕES DE HOMEM NA ANTIGUIDADE


Você já estudou, em História da Filosofia Antiga, que, na
Antiguidade, desenvolveram-se diferentes formas de reflexões fi-
losóficas sobre o homem e suas vivências. Viu, ainda, que a "An-
tropologia Antiga", que não chega a conformar uma Antropologia
Filosófica, parte de diferentes fontes.
Em Platão, convivem a vivência filosófica da alma e a concep-
ção de homem como ser psicofísico (PLATÃO, 1999). Depois, com
Aristóteles, o homem é incluído no conjunto da natureza – porém,
é confrontado com o mundo. Passa a ser "ele e o mundo" (ARISTÓ-
TELES, 2002 e 2006). A fase posterior está matizada pela Antropo-
logia da Vida e pela preocupação com o existencial.
Mais tarde, na concepção agostiniana de homem, reapare-
cem as características da Antropologia Clássica com um matiz reli-
gioso. O homem é natureza e tem um lugar entre os seres, porém,
seu destino está fora do natural. O homem religioso sente-se um
eu diante de Deus, o que implica uma relação entre Eu e Tu.
É importante que você conheça essas concepções de homem
e a relação existente entre os chamados períodos antropológicos
da história, pois estes fazem parte dos antecedentes da Antropo-
logia Filosófica Contemporânea. São vários os pensadores de des-
taque da Antiguidade, como Parmênides, Heráclito, Pitágoras, Só-
crates, Platão e Aristóteles. Vamos conhecer um pouco mais sobre
as contribuições desses pensadores?

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54 © Antropologia Filosófica

Heráclito e Parmênides
Os pensadores gregos, especialmente os denominados pré-
-socráticos, estiveram centrados no estudo da natureza. Heráclito não
demorou a perceber que o homem era o ponto culminante dessa na-
tureza por causa da capacidade própria para perceber o sentido que
as coisas possuem. Já Parmênides viu a capacidade que o homem tem
para raciocinar sobre as aparências e compreender a realidade. Esses
filósofos colocaram o homem, que é parte integrante da physis, em
um degrau (ou patamar) superior ao resto da natureza.

Pitágoras (570-496 a.C.)


Pitágoras, influenciado pelo orfismo, foi o precursor da dou-
trina da metempsicose. Nela, a alma é imortal, preexistente ao
corpo; sua união com este não é natural. A natureza da alma é
divina, enquanto a do corpo é natural, mortal, corruptível.

Sócrates (470-399 a.C.)


Sócrates destaca a consciência reflexiva do homem. Desde as co-
notações do mandamento conhece-te a ti mesmo, o ser humano entra
em contato com sua própria verdade e com a verdade das coisas, com
o logos. Esse homem descrito por Sócrates tem a capacidade racio-
nal de dar respostas aos questionamentos éticos, característica que é
constituinte de um ser espiritual. Uma vez que esse tema será desen-
volvido na Unidade 3, não iremos aprofundar aqui sua explicação.

Platão (427-347 a.C.)


Incorporando os ensinamentos de seu mestre Sócrates, Pla-
tão fala do espírito como constitutivo diferencial do homem. De
orientação pitagórica, afirma que a alma espiritual simboliza a par-
te essencial do homem e o resto, o corpo, é um simples instrumen-
to dessa alma. Na antropologia platônica, portanto, o homem fica
diferenciado pela alma.
© U1 - História da Antropologia Filosófica 55

O esquema platônico do "dualismo substancial" está muito


bem representado na alegoria do carro puxado por cavalos (o cor-
po) e dirigido pelo condutor (a alma). Em sua obra Fédon, o filósofo
ensina que a alma cuida de tudo o que não é alma (PLATÃO, 1999).
O esquema platônico de homem baseia-se nos seguintes
pontos:
a) preexistência da alma;
b) encarnação posterior em um corpo;
c) transmigração da alma (reencarnação sucessiva) se não
é alcançada a purificação;
d) imortalidade da alma.

Aristóteles (384-322 a.C.)


Superando o dualismo platônico (corpo-alma), Aristóteles
faz do ser humano um ser unitário em substância e essência. A
alma informa o corpo e, portanto, não pode existir separadamente
– o homem é um ser no mundo.
Esse pensador desenvolve a teoria do hilemorfismo, que é
baseada no princípio de que toda substância individual está com-
posta de matéria (synolon) e forma (morphé). Juntos, esses prin-
cípios formam a palavra synolonmorphé, da qual deriva hilemor-
fismo. Aristóteles esclarece que nem matéria nem forma existem
separadamente, elas estão sempre em um composto, no ente, na
forma substancial.
Na teoria da potência e ato, o filósofo explica que a matéria é
o substrato que compõe os seres materiais e é indeterminada por
ser potência. Já a forma é o princípio de cognoscibilidade por ser
ato. As coisas ou entes são porque estão feitas de matéria e forma
ou potência e ato. Desse modo, a noção de ato e potência está im-
plícita, na teoria aristotélica, na distinção de essência e existência.
A essência é o que pode existir e está em potência, enquanto a
existência confere, à essência, o ato (de existir, por isso ato).

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56 © Antropologia Filosófica

Para Aristóteles, a alma já não é eterna, como pensava Pla-


tão, por estar unida ao corpo participando da formação do ser hu-
mano. Mas concorda com Platão ao afirmar que a alma é o princí-
pio de atividade do corpo e o princípio do conhecimento.
No livro II do De anima (Cap. I, 412a, 25), Aristóteles explica
a alma como princípio da vida, a ideia de alma atual coincide mais
com a faculdade do entendimento descrita na obra. Para ele, "...
a alma é a enteléquia primeira de um corpo que em potência tem
vida" (Aristóteles, 2006).
Esse pensador não aceita a ideia platônica de reencarnação,
nem a de transmigração das almas. Entretanto, ele se fundamenta
em um princípio básico: o de identidade (mais tarde, colocado em
juízo pelos evolucionistas).
Corpo e alma, portanto, não são substâncias separadas, mas
"coprincípios" constitutivos de uma mesma substância.

Resumindo
O orfismo religioso da Grécia defende a concepção dualista
do ser humano. A alma, para esses pensadores da religião de Or-
feu, é de origem divina, eterna, e anima o corpo. Este, entretanto,
é concebido como o "cárcere da alma".
Essa ideia foi adotada pelos filósofos denominados pitagóri-
cos e se encontra também em Platão. Todos eles defendem que a
alma e o corpo são de natureza diferente por pertencerem a dois
mundos distintos. O corpo pertence ao mundo sensível (aquele
determinado pelas mudanças e sujeito à corrupção depois da mor-
te); a alma, ao mundo ideal (mundo inteligível, eterno e divino,
que é idêntico a si mesmo). O homem, como já mencionamos, fica,
então, diferenciado pela alma.
Para conciliar o princípio grego de que tudo é composto de ma-
téria, Platão concebe a alma como composta da matéria do mundo das
ideias. Para ele, desse modo, a alma é princípio de conhecimento.
© U1 - História da Antropologia Filosófica 57

Aristóteles trabalha o conceito de alma e corpo dentro do


estudo geral dos seres vivos. Todos os seres vivos têm um princípio
vital denominado alma, que é responsável por regular suas fun-
ções vitais. Confrontando o dualismo platônico, baseado nos dois
mundos, o pensador desenvolve o princípio da matéria e forma,
fazendo do ser humano um ser unitário.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Aristóteles (2002) complementa e corrige as ideias de seus mestres (Parmêni-
des, Heráclito, Platão) ao analisá-las. Diante da imobilidade de Parmênides, ar-
gumenta com a "consistência ontológica" presente na realidade múltipla. E, ante
a "mobilidade" de Heráclito, confronta-o com a "potência" ou capacidade real do
ser. Critica o platonismo, afirmando que o que faz que a coisa seja não está fora
(extrinsecamente), mas está na própria coisa. Esses conceitos estão dentro da
doutrina do "ato e potência" e dos fatores da mudança e do movimento.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Filosofia Helenística (300-200 a.C.): Filosofia da Vida


A filosofia greco-romana já não se interessa pela natureza
específica do ser humano (lembremos a situação que esse povo
estava passando). Ela se preocupa com o comportamento, com a
forma de vida.
Essa é a antropologia greco-romana de Sêneca, Epíteto e
Marco Aurélio. Para conceber ou explicar a vida, esses pensadores
não partem da especulação filosófica, mas da própria experiência.
A filosofia existe porque o homem existe; para explicar os questio-
namentos filosóficos, o homem parte de sua experiência.
Na denominada Filosofia da Vida, uma forma de positivismo,
o homem chega a sentir que tem autonomia ante tudo. Já não in-
teressa a explicação filosófica, o que interessa é o que representa
um valor para si.
Tanto Platão como Aristóteles procuravam determinar o que
é o homem, seja a partir da alma, seja a partir da natureza. Os
pensadores greco-romanos, entretanto, não estão interessados
nesses pensamentos especulativos sobre o homem; para eles, o

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58 © Antropologia Filosófica

homem "já está dado antecipadamente". Interessa, pois, a sua ex-


periência de vida.
O estoico Sêneca define o homem como um ser racional em
perfeita harmonia com a natureza, no qual a razão só exige viver
de acordo com sua natureza (GROETHUYSEN, 1975).
Depois de analisar as reflexões mais difundidas sobre o ho-
mem na Antiguidade, convidamos você a uma breve reflexão sobre
as concepções de homem presentes na Idade Média. Vamos lá?

11. CONCEPÇÕES DE HOMEM NA IDADE MÉDIA


Continuando nossa reflexão histórica, aparece a concepção
filosófica de homem da Idade Média. Nesse período, o conceito de
homem é determinado pela antropologia platônica e helenística e
complementado pelo ponto de vista cristão. Essa nova cosmovi-
são, mesmo mantendo pontos em comum com a abordagem clás-
sica grega, traz um novo elemento para a compreensão do mundo
e do homem, destacando o seu ser pessoal como imagem e seme-
lhança de Deus (MARIAS, 1975).
Marcadamente cristã, a filosofia desse momento da história
está determinada por dois períodos principais:
• Patrística: dos santos padres, tem lugar nos primeiros cin-
co séculos de nossa era.
• Escolástica: com São Boaventura (franciscano) e Santo To-
más de Aquino (dominicano), estende-se até o século 15.
Vejamos como podemos entender esse momento histórico
em um breve comentário.
Tanto Santo Agostinho como São Boaventura defendem o
ponto de vista antropológico de Plotino (204-270 d.C.), de forma-
ção neoplatônica. Plotino pensa o mundo platônico por meio de
um filtro: a ideia cristã da Divindade Criadora. Considerando a an-
© U1 - História da Antropologia Filosófica 59

tropologia platônico-aristotélica, destaca o caráter intermediário


ou temporal do homem neste mundo. Sua obra, conservada por
seus discípulos, está dividida em grupos de nove livros, chamados
Enéadas (LA MANNA, 1960).
É Santo Agostinho o principal representante da união dos ele-
mentos vindos do pensamento antigo (greco-romano) com os novos
elementos provindos da fé cristã. Sua obra está caracterizada pela
necessidade de justificar, racionalmente, o conceito de pessoa. O ho-
mem é imago dei (imagem de Deus) e nele está a chave para conhe-
cer Deus, porque este possui o amor, que é a "força possibilitante".
O homem aspira a sair das limitações da vida para ser feliz, o que
não constitui um mandamento, afinal, podemos não querer ser feli-
zes, mas o destino do homem é aspirar ao supramundano, elevar-se
por cima deste mundo e, também, de si mesmo em direção a Deus.
Sua obra toda, que representa o primeiro grande estudo do
homem, tem como objetivo conhecê-lo desde a sua interioridade.
Santo Agostinho não fala em homem, mas em ego ou eu.
Resumindo o que apresentamos até agora, temos que:
• No começo do cristianismo, os padres apologéticos, para
justificar "filosoficamente" a revelação, adaptam os prin-
cípios platônicos com o neoplatonismo de Plotino.
• O esquema platônico, que vimos anteriormente, é adap-
tado culturalmente. Entretanto, cuidado! Isso não implica
uma adaptação dogmática, pois, dogmaticamente, ficam
fora do esquema grego.
• Santo Agostinho concebeu o homem como um composto
de duas substâncias individuais e admite uma pluralidade
de formas que seguem um ordenamento hierárquico.
Nosso próximo passo será analisar o pensamento de Santo
Tomás de Aquino, que ainda hoje se faz presente na Antropologia
Filosófica. Vejamos!

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60 © Antropologia Filosófica

Tomás de Aquino (1225-1274)


Esse pensador, séculos mais tarde, discordando do conceito
de pluralidade hierarquizada de Agostinho, fala em unidade de for-
mas. Para ele, o essencial no homem é o intelecto, ou alma racio-
nal. A alma vegetativa e a sensitiva ficam sujeitas, hierarquicamen-
te, à primeira, ou seja, à intelectiva, que é substância espiritual.
Esse grande filósofo revoluciona, com seu pensamento, a fi-
losofia europeia do século 13 e propõe, de forma fundamentada,
o esquema aristotélico em substituição ao platônico. Desse modo,
Tomás de Aquino trabalha o seguinte esquema antropológico:
• Alma como forma do corpo.
• Alma criada por Deus no momento da informação do corpo.
• Imortalidade da alma.
Para entender o que queremos dizer, analise o seguinte quadro:
ESQUEMA ANTROPÓLOGICO SANTO ESQUEMA ANTROPÓLOGICO
AGOSTINHO SANTO TOMÁS
Baseia-se na subjetividade, na unidade Unidade substancial alma e corpo,
de alma e de corpo. Imagem de Deus. dimensão de pessoa, transcendência e
Necessidade da graça. liberdade.

Segundo Santo Tomás (apud DIRISI, 1985) e observando Aris-


tóteles, em tudo o que existe, é possível distinguir dois princípios:
essência e existência. A essência é a que qualifica e valoriza a exis-
tência; a essência é quididade e compreende a forma, a matéria,
a racionalidade e a "animalidade". Esse pensador diz que são o
corpo e a alma em conjunto que constituem a pessoa humana,
sendo ambos sua essência.
O que dá identidade ou determina o que existe é a essência.
Sem essência, e somente com a existência, tudo o que existe seria
igual, não teria forma nem denominação. Entretanto, sem existên-
cia, no mundo, existiriam apenas seres "possíveis", ou não reais
nesse plano.
© U1 - História da Antropologia Filosófica 61

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


A mudança substancial na visão de ser humano realizada por Santo Tomás não
chega a conformar uma Antropologia Filosófica, já que o homem é visto em uma
perspectiva que está dentro da revelação. Além disso, para falar de Antropologia
Filosófica propriamente, temos de considerar o ser humano em uma realidade
integralmente humana, como na antropologia descrita por Max Scheler na obra:
A posição do homem no cosmo.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A versão cristã de homem é considerada a precursora, ou a
antecedente, da Antropologia Filosófica atual. Você deve ter con-
cluído que o ponto fundamental da antropologia cristã está cen-
trado nas ideias de que:
a) O homem é uma criatura conhecida e querida por
Deus.
b) O homem está deixando a concepção grega, que o analisa-
va dentro da natureza, para ser participação da divindade.
c) O homem deixa de ser "algo" para ser "alguém", e, as-
sim, passa a ter uma identidade, a ser um ego.
d) Deus não quer o homem como mais um ser da criação,
mas como a criatura dona de si e de seus atos.
Com isso, podemos avançar mais um período da história hu-
mana. Do Renascimento até o início do período moderno, várias
mudanças políticas, econômicas, científicas e tecnológicas inse-
rem o homem em um ambiente muito mais amplo, mas também
mais conturbado que o período medieval. Essas mudanças têm
implicações enormes na compreensão do homem. Vamos estudar
um pouco sobre esse período no tópico a seguir!

12. VALOR DO HOMEM PÓS-RENASCENTISTA


O homem, no período do Renascimento, que representa a
passagem do Mundo Medieval para o Moderno, tenta superar as
antigas noções antropológicas e cósmicas para entender a realida-
de. Dentre tantos pensadores renascentistas, vamos destacar uma
das figuras protagonistas: Nicolau de Cusa (1401-1464), que parte
da tradição escolástica (de Tomás de Aquino, de Ockham etc.).

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62 © Antropologia Filosófica

Nicolau de Cusa
Profundamente humanista, é um grande estudioso dos da-
dos herdados da Antiguidade (MARIAS, 1975, p. 133). Destaca-se
em sua obra:
1) Termo microcosmo: termo grego utilizado para designar
a natureza humana intelectual e sensível.
2) Sensibilidade: subordinada à razão – e esta, ao entendi-
mento, que está por cima do mundo e do tempo. Des-
creve o homem como uma criatura de dois mundos.
3) Mente: é depositária da sabedoria infinita, precisa dos
dados sensíveis. Mente "mens", de "mensura": alcança
sua capacidade em relação com as coisas do mundo, en-
quanto o conhecimento é dado por semelhança.
4) Conhecimento sensível: particular – só o conhecimen-
to intelectual, universal e abstrato possui características
divinas.
Para Nicolau de Cusa, em Jesus está a perfeição, que o ho-
mem deve sempre desejar e procurar. Jesus é a natureza intelectu-
al de grau máximo.

Erasmo de Roterdã (1469-1536)


Como descreve Groethuysen (1975), Erasmo de Roterdã foi
um grande humanista. É, sem dúvida, a figura mais marcante do
pensamento do século 15. Suas meditações têm como centro o ser
do homem.
Esse pensador relaciona os escritos dos Santos Padres da Igre-
ja com a realidade humanística de seu tempo. Além disso, descreve
o homem, interior e exteriormente, em relação com o mundo.
Na obra Elogio da loucura, Erasmo escreve sobre a nature-
za do homem: o homem que julga saber mais sobre a Natureza
é porque se desconhece, e inclusive desconhece a sua condição
humana submetida às leis naturais (ROTTERDAM, 1988).
© U1 - História da Antropologia Filosófica 63

Além de ser autor de Elogio da loucura (1509), escreveu De


libero arbitrio (Do livre arbítrio, 1524).

Pico Della Mirandola (1463-1494) e Ficino


Tanto na interpretação de Pico Della Mirandola (1463-1494)
como na de Ficino, o homem passa a ser explicado como sujeito
diante do mundo. Um ser contemplativo vendo-se como objeto de
sua própria contemplação (GROETHUYSEN, 1988).
A antropologia de Ficino e de Pico Della Mirandola está as-
sentada na relevância do homem, no seu valor. Do pensamento
desses filósofos, podemos destacar que:
1) Deus: é o valor máximo do mundo, porém, não no mun-
do, mas por cima dele.
2) O Homem: parte da ideia de Deus para explicar o mun-
do. Percebe que possui uma alma divina, que é especta-
dor espiritual da escala de valores que existe no mundo.
Mas, quando o homem analisa a condição de sua vida,
descobre-se na mesma dimensão que os outros seres do
mundo. Procura em sua autoanálise o sujeito que tem
consciência de si mesmo. Frustrado por não poder co-
nhecer a si mesmo de forma direta, apela às ciências do
conhecimento, criadas para dizer por definição e descri-
ção o que é o homem. O homem nunca está satisfeito
com sua situação psicofísica. Sem separar-se do mundo,
aspira a fins mais elevados que os mundanos. Seu fim
está no caminho do amor.
Você deve ter percebido que o homem, a partir da renas-
cença italiana, apropria-se do geral, do mundo pelo saber metó-
dico e de sua estrutura psicofísica pela análise científica. O es-
tudo antropológico do homem passa a ter um peso importante
e, assim, converte-se em ciência, passando a se relacionar com
outras, como a geologia, a geografia, a história, a economia etc.
Tudo o que é humano passa a ocupar um lugar na engrenagem
científica.

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64 © Antropologia Filosófica

13. O HOMEM NA ANTROPOLOGIA MODERNA


Na interpretação da antropologia moderna, o homem tenta
compreender suas próprias vivências fora do círculo de Deus.
Tomando como referência o pensamento de Petrarca (apud
DIEGUEZ, 2004), podemos concluir que, nesse período, pratica-
mente se deixa de lado a história e Deus para correr por um cami-
nho paralelo. A vida passa a ser responsabilidade do homem, que
continua dentro do cristianismo.
A alma entende-se a si mesma. Dizem os pensadores moder-
nos: a alma reflexiona sobre a vida, sobre o mundo.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Nesse período, começa a se desenvolver uma concepção autônoma da vida, o
que desembocará nos períodos seguintes – em uma relação diferente do homem
com o mundo. O homem se sujeita à ordem cósmica, sente-se um ser deste
mundo dentro de uma escala valorativa.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Alcances da antropologia moderna


Com Copérnico, surgiram duas situações preponderantes.
Se, de um lado, a Terra deixa de ser o centro do universo, por ou-
tro, o homem considera-se o centro do mundo, fazendo tudo girar
ao redor de sua consciência (interpretação idealista do mundo). O
Mundo Moderno é interpretado desde a consciência, diferente-
mente da Idade Média, quando a consciência devia se adaptar ao
mundo (interpretação realista do mundo).

René Descartes
Para falar de Antropologia Moderna, temos de falar sobre
René Descartes.
Pensador, filósofo e cientista que deu início a uma nova for-
ma de pensar o mundo, baseada numa profunda análise metafísi-
© U1 - História da Antropologia Filosófica 65

ca. Em procura da verdade, parte do "eu pensante", dando início a


três séculos de "Idealismo".
Sem dúvida, você, que estudou o CRC História da Filosofia
Moderna II, sabe que René Descartes qualifica ao homem como:
• res cogitans (substância pensante);
• e res extensa (substância extensa mecânica).
Como consequência da interpretação do mundo de René
Descartes, surgem duas correntes de pensamento opostas
(COTTINGHAM, 1999):
• A interpretação idealista do mundo com base na explica-
ção da res cogitans.
• O segundo movimento intelectual, mas em sentido opos-
to ao idealismo, é a interpretação empirista do homem
com base na concepção res extensa.
Em sua vasta obra, Descartes (2005) trabalha com a conjun-
ção indissociável, no homem, de alma e corpo. Reale e Antiseri
(2004, p. 302) citam Descartes sobre esse tema:
Escreve Descartes: "Não basta que ela [a alma] seja inserida no cor-
po como um piloto em seu navio, senão, talvez, para mover seus
membros, mas é necessário que ela seja conjugada e unida mais
estreitamente com ele, para, ademais, experimentar sentimentos e
apetites semelhantes aos nossos, compondo assim um verdadeiro
homem" (DESCARTES apud REALE; ANTISERI, 2004, p. 302).

Descartes pretende mostrar que o corpo ou res extensa é


sempre divisível, enquanto que o espírito, ou alma, ou res cogitans,
era indivisível. Diz:
Pois, com efeito, quando considero meu espírito, ou seja, eu mes-
mo na medida em que sou somente uma coisa que pensa, nele não
posso distinguir nenhuma parte, mas concebo-me como uma coisa
única e inteira. E, conquanto todo o espírito pareça estar unido a
todo o corpo, todavia, estando separados de meu corpo, um pé, ou
um braço, ou alguma outra parte, é certo que nem por isso haverá
algo separado do meu espírito. E não se pode propriamente dizer
que as faculdades de querer, de sentir, de conceber etc., sejam
suas partes: pois o mesmo espírito se dedica por inteiro a querer,
e também por inteiro a sentir, a conceber etc. Mas é exatamen-

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66 © Antropologia Filosófica

te o contrário nas coisas corporais ou extensas: pois não há uma


que eu não ponha facilmente em pedaços com meu pensamento,
que meu espírito não divida com muita facilidade em várias partes
e, por conseguinte, que eu não conheça ser divisível. Isso bastaria
para ensinar-me que o espírito ou a alma do homem é inteiramen-
te diferente do corpo, se, de outro lugar, eu não já o houvesse apre-
endido suficientemente (DESCARTES, 2005, p. 128-129).

Os pensadores modernos valorizam o pensamento como


formador do real e negam valor similar ao corpóreo. Nesse perío-
do, nasce "o eu do pensamento científico" e "o eu do domínio da
técnica", nos quais a realidade do mundo aparece como obra do
eu-consciência. Como consequência, o eu fica privado de sua di-
mensão humana transcendental, da relação eu-tu. Então, aparece
o "eu solitário", que mencionamos no primeiro capítulo.
A tese de Scheler, na qual se funda a Antropologia Filosófi-
ca, contradiz abertamente os postulados racionalistas em que se
funda a teoria de Descartes. Para Scheler, é absurda a ideia de que
os animais e plantas sejam somente máquinas. Para ele, todo ser
vivo, só pelo fato de estar vivo, tem dimensão psíquica. Ainda dis-
corda de que o ser humano se diferencia, segundo a teoria carte-
siana, por ser substância pensante dos outros seres. Para Scheler,
a diferenciação está no que denomina espírito (Geist).
Para a modernidade, a teoria do homem encontrou a sua forma
mais eficaz na Doutrina cartesiana, uma doutrina que só começa-
mos propriamente a superar nos últimos tempos. Pelo fato de ter
dividido toda a substância em "pensamentos" e "extensão" e de ter
ensinado que somente o homem, dentre todos os seres, é consti-
tuído a partir desta substância em uma ação recíproca. Descartes
introduziu na consciência ocidental todo um exército de equívocos.
Em razão dessa divisão, ele precisou escolher o absurdo de recusar
a todas as plantas e animais a "natureza psíquica" e explicar à "apa-
rência" do caráter animado de animais e plantas, que todo o tempo
anterior a ele o tinha tomado por realidade, através da transpo-
sição antropomórfica de nossos sentimentos vitais para o interior
de imagens externas da natureza orgânica – e explicar tudo o que
não é consciência e pensamento humano de maneira puramente
mecânica. A consciência não foi apenas o contra-senso oriundo da
exacerbação máxima da "posição peculiar do homem", sua extra-
ção dos braços maternos da natureza –através daí mesmo a cate-
© U1 - História da Antropologia Filosófica 67

goria fundamental da vida foi simplesmente arrancada do mundo


com um único traço. Para Descartes o mundo não consiste senão
em pontos de pensamento e em um mecanismo violento a ser in-
vestigado matematicamente. Uma coisa que sim vale na doutrina
cartesiana é a nova autonomia e soberania do espírito (SCHELER,
2003b, p. 69).

Sobre esses temas, é importante que você leia, além de outras


obras, a primeira parte do Capítulo III de Antropologia Filosófica,
de H. C. L. Vaz, e a História da Filosofia, de N. A Abbagnano.

Como dissemos, no final do período moderno aparecem


algumas concepções contrárias ao idealismo que se inicia com
Descartes, passando por Kant e culminando no Idealismo Ale-
mão que tem na figura de Hegel seu representante mais ilustre.
Uma dessas correntes é o materialismo, que apresentamos no
tópico a seguir.

14. CONCEPÇÃO MATERIALISTA DO HOMEM


Na concepção materialista, o homem não sobrepassa ao
material. Os pensadores materialistas explicam que a matéria no
universo evolui para formas de vida cada vez mais perfeitas. Nas
formas atuais, a mais aprimorada é a forma humana, que se distin-
gue do resto dos animais por ser a mais perfeita.
Nessa concepção filosófica de homem, então, a pessoa da
concepção clássica perde valor porque é condicionada pela socie-
dade. Deixa de ser por sua racionalidade aberta ao infinito e volta
ao esquema antropológico de "estímulo-resposta".
A interpretação materialista do homem não é um descobri-
mento do modernismo. Na Antiguidade, o atomismo físico levan-
tou essa bandeira. Pensadores como Demócrito e Lucrécio acre-
ditavam que os fenômenos psíquico-espirituais podiam se reduzir
a movimentos dos átomos. Tanto esse materialismo como o pen-

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68 © Antropologia Filosófica

samento moderno dão prioridade à vida sensitiva. Hoje, porém, a


"filosofia sensitivista" está praticamente superada.

Formas do pensamento materialista


Mesmo que o materialismo tenha uma base filosófica co-
mum, existem diversas correntes. Analisemos, pois, as princi-
pais:
1) Materialismo Histórico: concebido por Engels e comple-
mentado por Karl Marx. Nesse movimento, é preponde-
rante a explicação histórica do homem sobre uma base
socioeconômica. Nele, o modo de produção da vida ma-
terial condiciona o conjunto da vida social, política e es-
piritual. O marxismo tem como expressão sobressalente
perseguir fins movidos por um ideário de sentido de jus-
tiça social em prol da liberdade.
2) Materialismo Dialético: também chamado de materia-
lismo marxista, introduz o processo dialético na maté-
ria. Seu grande realizador foi Lênin. Doutrina oficial do
Comunismo Russo, nele, a história do homem deixa de
ser o centro da discussão para trasladar-se à matéria, na
ideia de uma dialética material universal.
3) Formas Materialistas da Psicologia: nela, toda vida psí-
quica não é outra coisa senão o reflexo dos processos
corpóreos materiais. Aqui, encaixa-se não só a teoria de
Freud e sua explicação da libido; também se encaixam as
formas de Psicologia Evolutiva.
4) Positivismo e Positivismo Lógico: os pensadores dessas
correntes não conseguem encontrar nenhuma instância
que transcenda o homem, guiando-se pela lógica que ni-
vela tudo num horizonte material.
Os materialismos partem do pressuposto de que a sociedade
forma o indivíduo; portanto, ela não é a soma das individualidades
e sim o contrário. Essa forma de sociedade (a coletivista) parece
mais uma massificação, visto que o homem é sacrificado em bene-
fício do próprio coletivismo (DIRISI, 1966).
© U1 - História da Antropologia Filosófica 69

15. PENSAMENTO EXISTENCIALISTA OU A FILOSOFIA


DA EXISTÊNCIA (EXISTENSPHILOSOPHIE)
A orientação naturalista-materialista sobre o homem, que
vigorou na filosofia do século 19, rebaixou-o ao submetê-lo aos
condicionamentos físicos e psicológicos, negando, dessa forma, a
liberdade perante essas dimensões, que são sua característica fun-
damental. Com essas visões antropológicas, fica esquecido que o
homem é um ser de responsabilidade que pode desenvolver uma
conduta ética e moral diante dos condicionamentos.
Como resposta a essa desvalorização, surge a Filosofia da
Existência, que trabalha a capacidade do homem de configurar seu
destino. K. Jaspers define o homem como um ser que decide – um
ser que não é (SCHOEPS, 1979).
Como pensamento filosófico, o existencialismo reveste diferen-
tes formas, tendo todas elas, como ponto em comum, a preocupação
com a existência, o dasein; não no sentido de "uma análise da existên-
cia", mas, sim, na direção da compreensão da existência pessoal.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


No pensamento do existencialista ateu de Heidegger, o Dasein (ser-aí) opõe-se a
nada, enquanto Jaspers, pensador existencialista com base na transcendência,
explica que o homem passa por alto o Dasein, assegurando-se na existência,
que tem como característica a transcendência (transcender, passar por alto).
Ambos inspiram-se nas obras de Kierkegaard e Nietzsche, mas, em Heidegger,
o transcender não tem sentido, e, em Jaspers, não possui a fundamentação teo-
lógica, mesmo que mantenha de Kierkegaard a existência da religiosidade e a fé
no homem como possibilidade.
Tanto Karl Jaspers (1883-1969) como Gabriel Marcel (1889-1973) concentram
sua atenção no estudo do existente, que, em relação com o pensamento de
Kierkegaard, é concebido dentro de uma visão cristã de homem. Marcel desco-
bre no homem a estreita relação com a natureza e a Graça Divina e, baseada
nessa condição, reivindica, para o existente, o sein, a esperança de salvação.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Para complementar essas informações, é importante que
você leia: Humanismo e anti-humanismo: introdução à antropolo-
gia filosófica, obra de Nogare Pedro Dalle, e Antropologia Filosófi-
ca, um estudo sistemático, de Edvino A. Rabuske.

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70 © Antropologia Filosófica

16. FILOSOFIA CRISTÃ E VIDA NO ESTEIO DA FILOSOFIA


MEDIEVAL: A VIDA NÃO É SOMENTE IDENTIDADE COM
O ORGÂNICO
Já falamos que o pensamento platônico, bem como o aristo-
télico, chega à filosofia da Idade Média, sendo repensado e adapta-
do a uma nova realidade. Nesse período histórico do pensamento,
a união do corpo e da alma deixa de ser acidental, como colocou
Platão, e passa a ter forma pessoal. Nessa nova concepção, cada
ser humano tem sua alma espiritual (esta deixa de ser material),
que constitui sua essência pessoal.
O conceito de pessoa humana vai diferenciar o homem do
resto dos seres. O ser humano é pessoa porque possui indepen-
dência racional e é dotado de inteligência e vontade livre. Esses
atributos exclusivamente humanos fazem com que ele seja res-
ponsável por seus atos.
A escolástica parte de um conceito racional na explicação da
pessoa, chamando-a de substância pessoal, individual, fechada,
hipóstases ou suppositium rationalis, enquanto possua razão: pes-
soa est suppositiu rationale.

O principio quod, em latim denominado suppositium, traduzido da


palavra grega hipóstasis, significa fundamento, substância, e refe-
re-se ao sujeito individual existente quod, ou seja, sujeito individual
existente. É, portanto, o ser que pensa que realiza atos, formula
juízos, ama e que é atraído para o bem.

Boécio (apud LUCAS, 1996) denominou: rationalis naturae


individual substantia. Em outras palavras: o ser que possui inde-
pendência do meio (de sua condição fática).

Para complementar os conhecimentos desta unidade, recomenda-


se que o aluno leia, entre outras obras: Dizer o homem hoje, de
Nunzio Galatino.
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17. PESSOA HUMANA E A INFLUÊNCIA DO PENSA-


MENTO CRISTÃO
O conceito de pessoa humana, que representa a categoria
de pessoa, é fundamental para o desenvolvimento da Antropolo-
gia Filosófica. Em relação a ele, desenvolve-se uma concepção de
sujeito e de mundo que revoluciona a filosofia ocidental.
A partir dessa concepção, o ser humano não pode ser qua-
lificado somente como indivíduo, pois ele é, também, pessoa. A
pessoa humana está caracterizada pela unicidade por possuir um
núcleo que organiza o biológico e a influência sociocultural: o eu.
Tuteladas pelo eu, ou centro espiritual, atuam as diferentes
dimensões constitutivas do homem: a vital, a psicológica e a social.
O termo pessoa, então, identifica uma unidade que não está sujei-
ta a nada nem a ninguém.
O homem possui a dimensão espiritual como estrato mais ele-
vado. O homem é biológico, psicológico e espiritual, esquema filo-
sófico que provém de Aristóteles. O conjunto bio-psíquico-espiritual
está informado pelo centro espiritual. Pela liberdade, característica
do ser pessoal, o homem é responsável pelo juízo moral de suas
ações.
Leia, a seguir, algumas informações sobre o conceito de pessoa.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


A palavra "pessoa" deriva do verbo latino personare, que, em português, significa
ressoar. Os pensadores comprometidos com essa radical visão de ser humano
colocaram a origem da pessoa na cultura grega. Partem do vocábulo grego
prósopon, que significa máscara, em alusão às máscaras utilizadas nas tragédias
gregas pelos atores, que representavam personagens (pessoas) das diferentes
classes sociais e que tinham as vozes ressoadas através das máscaras utilizadas.
Mas como chega o termo pessoa à filosofia? No direito romano, eram pessoas
os que possuíam direitos e deveres de cidadãos; os escravos e os estrangeiros
não eram pessoa para essa forma de direito. Com a difusão da ideia cristã no
Império Romano, que considera todos os homens filhos de Deus e iguais em
direitos, o conceito de pessoa se universalizou e o termo passou a ser utilizado
para diferenciar o ser homem dos outros habitantes do cosmo. Os pensadores
do Cristianismo influenciaram determinantemente na meditação filosófica sobre

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72 © Antropologia Filosófica

a pessoa. A partir das ideias católicas de espiritualidade e imortalidade da alma,


ela passa a ter um valor preponderante tanto para o Estado como entre pessoas
(meio social). A pessoa que é livre e responsável é possuidora de direitos
inalienáveis que a fazem insubstituível e o ponto "axial" do mundo.
Existe outra etimologia da pessoa na língua latina. Esta, de natureza metafísica:
assim, a pessoa é um per-se-uma, ou seja, a pessoa não pode ser assumida
como um acidente ou como algo geral, nada que é diferente dela a amarra e
condiciona a ponto de ela perder o que é seu.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Substância e acidente
Muito já se falou de substância. Vamos, agora, entender o
significado desse termo. Os seres estão em relação de dependên-
cia, igualdade, desigualdade, influência etc. Sem essas relações, as
substâncias permaneceriam desconhecidas, sem comunicação.
Toda potência está em ato primeiro e, quando exercida, pas-
sa a ato segundo. Pensemos em uma criancinha recém-nascida,
que tem em ato primeiro a faculdade de caminhar, mesmo que
não a exerça em ato segundo. O desenvolvimento posterior pode
ou não acontecer; por isso é que afirmamos que o desenvolvimen-
to é acidental. A partir desse exemplo, podemos concluir que o
desenvolvimento da pessoa é acidental, mesmo que a faculdade
(no caso de caminhar) pertença à substância, à essência.
Substância significa "o que está por baixo", ou seja, é a fundação.
O termo substância refere-se a uma interdependência ôntica dos seres.
Sua utilização para indicar o que não muda ante os fenômenos provém
da Escolástica. Aristóteles definia substância como o que é em si.
A substância no homem é formada pela união de dois ele-
mentos: o material e o espiritual. Por ter consistência, sustenta os
acidentes. Os acidentes mudam enquanto a substância permane-
ce. Ela é responsável:
• pela unidade;
• pela permanência.
O que você não pode perder de vista na corrente do raciocí-
nio é o conceito que diz que a sustância é o fundamento unitário
© U1 - História da Antropologia Filosófica 73

e permanente do ser. Outro ponto importante é que o conceito de


substância está fora da experiência, pertence ao universo da razão
e, portanto, é de natureza metafísica. Dessa forma, mesmo sendo
produto dos nossos pensamentos, como reza a afirmação prece-
dente, tem seu fundamento no ser.

ATENÇÃO!
É importante saber que não temos de pensar em sustância como
uma coisa rígida, imutável; a sustância é dinâmica. Essa aprecia-
ção, introduzida por Leibniz, foi logo complementada pelo filósofo
católico Lotze.

Acidente é tudo o que se une à substância. Vejamos o se-


guinte exemplo:

Exemplo de substância ––––––––––––––––––––––––––––––––


Santo Tomás = substância pessoal, foi alto, um metro e noventa = quantidade
acidente, virtuoso = qualidade acidente, vestia com sobriedade = estado aciden-
te, morou em Rocasseca = espaço acidente, de 1225 a 1274 = tempo acidente,
suportou ataques de detratores = paixão acidente, escreveu obras = ação aci-
dente.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A substância tem categorias, as quais são chamadas aciden-
tes relativos.

ATENÇÃO!
Você pode encontrar mais informações sobre esse assunto na
obra de Hugon Eduardo. Vinte Quatro Teses Tomistas, México:
Porrúa S.A., 1974. p. 44.

As perguntas pelo homem e o lugar que este ocupa no cosmo


levaram M. Scheler a analisar o ponto de conexão entre a humani-
dade do homem e o ser dos outros entes. Na obra que é conside-
rada uma das obras primas da Antropologia, A posição do homem
no cosmo, ele escreve sobre a concepção moderna.
Na Apresentação da obra A posição do homem no cosmo,
Max Scheler busca uma definição do que nos torna humano:

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74 © Antropologia Filosófica

A posição do homem no cosmo tem por intuito fundamental acom-


panhar os resultados alcançados pela biologia a partir do início do
século XX, exatamente para mostrar como o homem não pode ser
pensado simplesmente a partir desses resultados, como a fixação
de seu lugar no todo carece necessariamente de uma extensão para
o interior de uma experiência diversa, metafísica. O livro possui em
verdade duas partes estruturais, na primeira parte estão descritos
os níveis que constituem a vida desde o âmbito mais primário até o
mais complexo [...]. Tal como o texto nos mostra não podemos es-
tabelecer a diferença entre o homem e os animais através de uma
pura menção a uma diversidade qualitativa entre eles, a uma mera
diferença de grau. O homem não é diferente do animal por possuir
uma razão mais desenvolvida ou mesmo por ser o único ente a pos-
suir razão. Entendida como a capacidade de utilização de utensílios
ou tecnologia [...].

A segunda parte do livro dedica-se essencialmente ao espíri-


to como elemento que o sustenta. Segundo Scheler (2003, p. IX-X),
o homem é um ser vivo que, por força do espírito, pode confortar
em princípio asceticamente, em relação à sua vida.

18. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar
as questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nes-
ta unidade, ou seja, entender as diferentes teorias antropológicas
desde uma perspectiva filosófica, junto com a evolução da ideia
de espírito. Conhecer a proposta dos principais pensadores e suas
autorias em relação ao quadro da disciplina e refletir sobre a obra
de Max Scheler.
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
você testar o seu desempenho. Se você encontrar dificuldades em
responder a essas questões, procure revisar os conteúdos estuda-
dos para sanar as suas dúvidas. Esse é o momento ideal para que
você faça uma revisão desta unidade. Lembre-se de que, na Edu-
cação a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma
cooperativa e colaborativa; compartilhe, portanto, as suas desco-
bertas com os seus colegas.
© U1 - História da Antropologia Filosófica 75

Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu


desempenho no estudo desta unidade:
1) A partir da seguinte definição, indique a alternativa que a complementa cor-
retamente:
O conhecimento antropológico-filosófico é o fundamento do conhecimento
científico na medida em que serve para explicar a estrutura universal e espe-
cífica do ser humano. Essa relação entre ciências e conhecimento antropológi-
co-filosófico sempre deve ser vista como complementação, como cooperação,
e nunca como limitação.
a) O conhecimento antropológico filosófico foca em seu estudo a essência
do homem.
b) O conhecimento antropológico filosófico situa o ser homem dentro da
escala zoológica.
c) O estudo antropológico filosófico dá-se a partir da cultura e leva em con-
ta os caracteres somáticos genotípicos, ou seja, hereditários, e os adqui-
ridos.
d) Por ser filosófica, essa antropologia analisa os resultados da razão e sua
produção intelectual.
2) Indique a única afirmação INCORRETA.
a) A Antropologia Filosófica, que se fixa no homem integral, leva adiante
um discurso racional sobre o ser humano para explicar a sua essência a
partir das categorias abstratas.
b) O homem não se compreende totalmente. Esse fato o leva a se pergun-
tar sobre sua essência.
c) Partindo do momento em que o homem se descobre num nível cosmo-
lógico diferente dos outros entes, não diferente no nível ontológico, e
sim como o alguém mais capaz do mundo, surge um novo paradigma
cognoscitivo, a Antropologia filosófica.
d) A Antropologia Filosófica, diferentemente do conhecimento científico,
não formula hipóteses para orientar sua investigação, pois, durante a
existência humana, os problemas antropológico-filosóficos estão presen-
tes e a própria existência do homem já exige uma resposta.
3) Indique a única alternativa CORRETA.
a) Os pensadores gregos, especialmente os denominados pré-socráticos,
estiveram centrados no estudo da natureza. Heráclito não demorou a
perceber que o homem era o ponto culminante dessa natureza por causa
da capacidade própria para perceber o sentido que as coisas possuem.
Já Parmênides viu a capacidade que o homem tem para raciocinar sobre
as aparências e compreender a realidade. Esses filósofos colocaram o
homem, que é parte integrante da physis, num degrau (ou patamar) su-
perior do resto da natureza.
b) Sócrates destaca a consciência reflexiva do homem; desde as conotações
do mandamento "o homem é a medida de todas as coisas".

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76 © Antropologia Filosófica

c) Aristóteles faz do ser humano um ser dual em substâncias. A alma de ori-


gem divina e eterna informa o corpo sujeito à degradação. Esse esquema
se denomina hilemorfismo.
d) Descartes parte da denominada antropologia platônica, baseada no
dualismo "corpo e alma". Para esse pensador, corpo e alma não são
substâncias separadas, mas "coprincípios" constitutivos de uma mes-
ma substância.
4) Disserte sobre o seguinte tema:
A versão cristã de homem é considerada a precursora, ou a antecedente, da
Antropologia Filosófica atual. Em qual ideia está centrado o ponto fundamen-
tal da Antropologia Cristã?

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) a.

2) c.

3) a.

4) RESPOSTA:
O homem é uma criatura conhecida e querida por Deus.
O homem deixa a concepção grega, que o analisava dentro da natureza, para
ser participação da divindade. Assim, deixa de ser "algo" para ser "alguém", e
passa a ter uma identidade, a ser um ego.
O homem foi criado à imagem de Deus, que não quer o homem como mais
um ser da criação, mas como a criatura dona de si e de seus atos.
O homem é pessoa humana. Conceito que vai diferenciar o homem do resto
dos seres. O ser humano é pessoa porque possui independência racional e é
dotado de inteligência e vontade livre. Esses atributos exclusivamente huma-
nos fazem que ele seja responsável por seus atos.

19. CONSIDERAÇÕES
Platão, Aristóteles e os pré-socráticos tentaram entender o
homem partindo do cosmo e destacaram a alma como princípio de
conhecimento. Tudo isso dentro do dualismo ou da união substan-
© U1 - História da Antropologia Filosófica 77

cial. Na Idade Média, os pensadores partem de Deus e defendem


que a inteligência e a vontade são os principais atributos do ser hu-
mano. Pico Della Mirandola, representando o humanismo italiano,
dá uma explicação do homem de acordo com a época histórica,
conhecendo-o sem revelação a partir de si mesmo. Para ele, por-
tanto, a razão é o determinante do homem.
Os pensadores materialistas pós-Hegel, como Feuerbach
(1804-1872) e Marx, criticam o conceito de Deus por ser uma pro-
jeção do próprio homem, ideia que deveria ser superada ou troca-
da pelo conceito de humanidade. Também tiram o valor da filosofia
do espírito. Por faltar o espírito dentre os componentes antropo-
lógicos do homem pensados pelos materialistas, a antropologia,
consequentemente, passa a fazer parte das ciências naturais. Em
contrapartida, temos o pensamento existencialista, que defende
a capacidade do homem de configurar seu destino na existência
com ou sem transcendê-la.
No século 20, tanto a interpretação materialista do homem
como a existencialista são criticadas por serem consideradas redu-
cionistas, dando espaço para uma nova alternativa: a visão unitá-
ria da atual Antropologia Filosófica – que estamos expondo. Nela,
o homem é visto como um ser biológico, psicológico, espiritual e
transcendente.
Nesta unidade, estudamos a linha de evolução do pensa-
mento que o homem formulou a respeito de si mesmo. Nesse
caminho, vimos os rudimentos de uma antropologia que vem se
constituindo rumo a uma visão do homem como pessoa, abran-
gendo todos os seus aspectos vitais. A completude desse conceito
do homem na condição de ser biológico, psicológico, espiritual e
transcendente é o que veremos na próxima unidade. Até lá!

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78 © Antropologia Filosófica

20. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 1 Max Scheler. Disponível em: <http://de.wikipedia.org/wiki/Max_Scheler>.
Acesso em: 10 jan. 2012.

Site pesquisado
DIEGUEZ, K, G. Francesco Petrarca – a obra. Disponível em: <http://www.estacio.br/
rededeletras/numero8/parlaquetefabene/petrarca_obra.asp>. Acesso em: 10 jan. 2012.

21. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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SCHELER. M. El puesto del hombre en el cosmo. Buenos Aires: Losada, 2003.
______. A posição do homem no cosmo. São Paulo: Forense Universitária, 2003.
______. El Formalismo en la ética material de los valores. Buenos Aires: Lozada, 1989.
SECONDI, P. Philosophia Perennes. Atualidade do pensamento medieval. Petrópolis:
Vozes, 1992.

Claretiano - Centro Universitário


80 © Antropologia Filosófica

SCHOEPS, H, J. Qué es el hombre. Buenos Aires: Editora Universitaria, 1979.


TEILHARD DE CHARDIN, P. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 2001.
TOMAS DE AQUINO. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2002.
VAZ, H. C. Antropologia filosófica I e II. São Paulo: Loyola, 1992-1995.
YEPES STOK, R.; ARANGUREN, A.; ECHEVARRÍA, J. Fundamentos da antropologia.
Tradução de Patrícia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciências
Raimundo Lúcio, 1999.
EAD
Estrutura do Ser Humano:
Ser Bio-Psíquico-Espiritual-
-Transcendente
2
1. OBJETIVOS
• Familiarizar-se com as dimensões constitutivas do ser hu-
mano e com a relação corpo-alma.
• Interpretar a reflexão que a antropologia faz sobre o ser
"homem" e sua estrutura ontológica.
• Reconhecer e analisar os argumentos válidos para justifi-
car o não antagonismo e a não identificação do corpo e
da alma.
• Identificar o eu, núcleo da pessoa humana, e refletir so-
bre ele.
• Interpretar a importância do tu na formação da persona-
lidade.
• Analisar, desde a realidade bio-psíquico-espiritual do ser
humano, sua relação com o mundo.
82 © Antropologia Filosófica

2. CONTEÚDOS
• Elementos constitutivos do ser humano.
• Princípios essenciais do ser humano.
• Relação funcional das dimensões constitutivas do ser hu-
mano.
• Descrição da unidade vital do homem, o sujeito.
• Caracteres constitutivos do ser humano.
• O homem, ser social.
• Surgimento da personalidade e a relação com o outro.
• Características existenciais do homem.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Nesta unidade, você terá a possibilidade de considerar
a posição dos antropólogos e filósofos que sugerem que
as regiões constitutivas do homem são três: a vital, a
psicológica e a espiritual. Eles destacam, ainda, que elas
não podem ser pensadas separadamente, pois não seria
humano o homem sem corpo, sem interioridade e sem
dimensão espiritual – afinal, todas essas dimensões são
parte do ser homem.
2) Para aprofundar-se nos temas tratados nesta unidade,
sugerimos a leitura de algumas obras:
a) de Teilhard de Chardin, O fenômeno humano, p. 192-
198 e p. 206.
b) Anatomia da destrutividade humana, de E. Fromm,
p. 300-350.
c) O Homem, quem é ele?, de B. Mondin e o primeiro
e o segundo capítulos de O fenômeno humano, de
Teilhard De Chardin.
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 83

d) Fundamentos antropológicos da psicoterapia, de


Viktor E. Frankl.
3) Vá além! Pesquise os livros citados no Tópico Referências
Bibliográficas e os sites referenciados em E-Referências.
4) Antes de iniciar os estudos desta unidade, é interessante
conhecer um pouco da biografia de Viktor E. Frankl, cujo
pensamento norteia o estudo desta unidade. Para saber
mais, acesse os sites indicados.

Viktor E. Frankl (1905-1997)


Foi psicoterapeuta, criador da Logoterapia, método psicoterápico baseado no
sentido da vida. Médico e pensador brilhante, doutor em filosofia, conhecido con-
ferencista. Publicou 27 livros, dos quais muitos são considerados de fundamen-
tal importância para o desenvolvimento da psicoterapia. Se você está tendo um
primeiro contato com a obra desse pensador, sugerimos que leia as obras Um
psicólogo no campo de concentração, Psicoterapia e sentido da vida e Deus
inconsciente.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na Unidade 1, você teve oportunidade de ver que existem
diversas interpretações filosóficas sobre o homem, as quais o ex-
plicam de diferentes perspectivas:
• As que dão ênfase ao físico: o homem atuaria sustenta-
do pelas características físico-biológicas, sem se admitir
que possa existir entre ele e a natureza uma diferenciação
qualitativa.
• A existencialista, que enfatiza a construção da personali-
dade na existência.
• Os que defendem que há, entre o homem e a natureza,
uma diferenciação ontológica. Por sua capacidade supe-
rior, o homem pode passar por cima do determinismo da
matéria e da existência.
Nesta unidade, você vai perceber que o estudo da Antropo-
logia Filosófica tem por objetivo abranger o homem em sua to-
talidade. Por isso, é de vital importância saber como se unificam

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84 © Antropologia Filosófica

as dimensões constitutivas. Você vai estudar as regiões essenciais


que compõem o Ser Homem: a biológica ou vital, a psicológica e a
espiritual.

5. HOMEM: UM ÚNICO SER E UM ÚNICO SUJEITO


Qualquer forma de dualismo antropológico (como a de Pla-
tão ou a de Descartes) é refutada pelos investigadores atuais da
Antropologia Filosófica. Tampouco é aceito o monismo naturalista
contido na ideia materialista, pois este é entendido como uma das
formas de reducionismo. Se a Antropologia Filosófica pretende
explicar o homem de forma integral e não fragmentada, como já
foi exposto, deve, antes de qualquer coisa, explicar como as dife-
rentes dimensões constitutivas do ser humano acontecem: corpo,
psique e espírito unificam-se.

Dualismo corpo-alma
O dualismo é uma concepção que está sempre presente na
concepção antropológica. Os filósofos "pitagóricos gregos" pensa-
vam que a alma era imortal, vinha do céu e caía na Terra para en-
trar no corpo, ao qual ficava atada. Por isso, eles buscavam, com a
"liberação do corpo", o "retorno".
Corpo e espírito, esses dois termos opostos em natureza,
criaram sucessivas discussões. A filosofia aristotélica e, logo, a cha-
mada filosofia perene, virão para auxiliar na superação do proble-
ma criado pelo dualismo, em que a alma espiritual e o corpo físico
existem como dois seres separados.
A filosofia tradicional, superando essa concepção dualista,
contempla todos os fundamentos da pessoa humana sem recor-
tar aspectos de sua realidade. Para isso, leva em consideração, no
momento de uma análise antropológica, os aspectos psicológico,
biológico e espiritual, considerando não só as particularidades ôn-
ticas, mas também a dimensão existencial.
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 85

A posição de Santo Tomás é clara: o homem não pode ser


explicado como a união de duas partes: a orgânica e a espiritual.
Para os clássicos, o ser humano é uma reunião substancial desses
dois princípios (um opera em relação ao outro). Assim, a ausência
de algum deles destrói a pessoa, que passaria a ser alguma outra
coisa diferente de um ser humano.
Na nossa cultura, é muito comum interpretar a "alma" no
sentido teológico-religioso. Nesse caso, o termo "alma" indica a
relação de criatura com Deus criador entrando no plano da fé. No
outro extremo, encontramos a psicologia empírica, movimento in-
telectual contrário ao exposto. Nesse caso, o termo alma tem uma
finalidade diferente, sendo utilizado como sinônimo de fenômenos
psíquicos. Para Hume (2003), falar em alma é falar em fenômenos
psíquicos impessoais.
Santo Tomás (2002) explica que a alma concede a perfeição
ao homem, relacionando-o com seu ser. Ela caracteriza o homem
porque lhe informa as funções vegetativa e sensitiva. O homem,
então, é composto de alma e corpo numa unidade integrativa,
substancial.
Para continuar nossa linha de raciocínio, é preciso ressaltar
que o termo "alma" deve entender-se sempre como a não redução
da pessoa ao orgânico, ao corpo; supõe que o homem, se bom,
possui corpo e não se identifica somente com ele.
Podemos resumir essas ideias da seguinte maneira: o ho-
mem não é o resultado de elementos sobrepostos (alma e corpo),
mas, sim, a unificação, num "núcleo", dessas dimensões diferen-
tes. A antropologia tradicional, inspirada na teoria hilemorfista de
Aristóteles, pronuncia-se a favor da concepção unitária. Corpo ani-
mado em conjunto com alma corporizada.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Na obra de Tomás de Aquino, fica evidente a importância da unidade essencial
do homem. É conhecida a expressão de Tomás de Aquino sobre a matéria: est
principium individuationis, que indica que o que determina a individualidade no

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86 © Antropologia Filosófica

homem é a matéria (totalidade biológica), sendo este seu constitutivo essencial.


Essa afirmação resulta em estranheza, pois parece que não se encaixa na rea-
lidade do ente humano. Isso acontece porque ainda temos, pela herança platô-
nica, a ideia da matéria imperfeita em oposição ao ser perfeito e a sensação de
que existe um abismo entre o mundo inteligível e o sensível. O individual, para
Platão, por estar ligado à matéria, é a parte imperfeita em oposição à perfeição,
que é o universal (a ideia). Esse pensador recebe de Parmênides a noção de que
a matéria é o não inteligível e está em oposição ao ser. O discípulo de Platão,
Aristóteles, a denomina "pura potência", colocando-a como princípio de "muta-
bilidade". O pensamento cristão, movimento do qual participa Tomás de Aquino,
quando admite que a matéria é criação de Deus, muda totalmente a concepção
grega de autoria do trinômio Parmênides, Platão e Aristóteles. Hoje, vemos que
há uma impossibilidade para atribuir a personalidade (como princípio de individu-
ação) somente à matéria; parece mais racional colocá-la no conjunto substancial
matéria-espírito (QUILES, 1967). Chegando a nossos dias, o contemporâneo
Gabriel Marcel, pensador existencialista católico, descreve a existência humana
como "existência encarnada", explicando que a vida vegetativa está em relação
plena e total com a vida intelectual.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O termo "dimensão espiritual" é controverso na história
da filosofia. A seguir, você encontrará uma parte da obra de
Etchebehere (2008) que apresenta as diferentes vertentes para se
pensar esse termo:

A dimensão espiritual––––––––––––––––––––––––––––––––––
O homem é um horizonte entre corporal e espiritual. Cabe então falar do es-
piritual. Porém, há uma necessidade ontológica de falar do espírito ou é, uma
necessidade metafórica?
Ou, com outras palavras, se ajusta somente à descrição do homem como hori-
zonte ou tem uma real existência além do simbólico?
Por experiência, percebemos uma diferença entre o vivo e o inerte, isto é, naquilo
que manifesta vida e o que nunca teve – uma cadeira, por exemplo – ou não tem
vida porque a perdeu – um animal morto –. Por outra parte também experimen-
tamos algo comum que existe entre o vivo e o morto, e isso comum é o material.
Deve existir algo mais que somente matéria para poder explicar a vida. E esse
"algo mais", esse outro que não está nos seres mortos, o chamamos alma ou
espírito.
Isso que foi colocado tem alguns pressupostos. Por um lado, devemos experi-
mentar a diferença entre o vivo e o morto, isto é, devemos ver uma heterogenei-
dade no real, uma diferença radial entre estar vivo e estar morto.
Isto significa que "esses 21 gramas", que diferenciam um ser vivo de um morto
não pertencem à mesma hierarquia que o material. Seja como for, imaginemos
como imaginemos, o que chamamos alma é o que dá sentido a essa matéria,
sem a qual a matéria dissolve-se nos diferentes elementos que a compõem. Ou
para dizer de outra maneira, quando a alma se vai da carne, esta se torna corpo
e os elementos que a compõem retornam a suas formas primitivas, o úmido do
corpo volta a ser líquido, e se evapora, por exemplo.
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 87

O outro pressuposto é que essa teoria da alma não deve ser uma solução por
ignorância, isto é, não devemos dizer "espírito" onde a ciência biológica diz "ain-
da não sei".
A Antropologia filosófica, neste caso enquanto psicologia ou estudo da alma,
deve se esforçar em dialogar com as ciências biológicas, tanto para a superação
do esquema cartesiano de res cogitans / res extensa, como para a superação do
esquema ciências do espírito/ciências da natureza.
Assim, podemos dizer que existe uma alma ou espírito que anima, isto é, dá
vida a uma matéria, fazendo com que passe de corpo a carne. Temos usado
indistintamente o termo alma como o termo espírito, porém, cabe fazer algumas
distinções. Neste livro de antropologia preferimos usar a palavra "espírito" mais
que "alma", porque este termo nos permite mostrar o mais propriamente huma-
no, em comparação com os outros seres viventes e, por outro lado, nos leva a
pensar algo mais que humano.
Os usos da palavra espírito.
A palavra "espírito" chega a nossos ouvidos com um som de divindade. Um dos
usos desse termo é o religioso. Espírito é uma das pessoas da trindade. Assim,
então, quando usamos essa palavra no que diz respeito ao homem, teremos que
assinalar que algo dele é divino, que alguma participação tem com a natureza
de Deus.
O segundo uso desta palavra já não é no singular, mas, sim, no plural. Falamos
de "os espíritos" para nos referirmos à realidade demoníaca, isto é, realidades
que fazem de nexo entre os deuses e os homens. Assim se entende o demônio
de que falava a Sócrates e que lhe aconselhava o que não fazer, ou a caracteri-
zação que faz Platão do amor no Banquete. O espírito como demônio é um poder
capaz de unificar as diferentes forças da alma humana dando-lhe um sentido,
uma orientação superior.
Na história do pensamento o termo "gênio" se aplica à pessoa que é muito in-
teligente, com o qual vemos que o espiritual é referido diretamente ao racional
não tanto ao afetivo. Porém, "gênio" se aplica também à pessoa que se destaca
sobre o comum, àquele que tem certo carisma que o torna atrativo aos demais,
ou, em outras palavras, é um ídolo para os demais. Tanto demônio como gênio
têm a capacidade de colocar o homem além de seus limites. Então podemos di-
zer que o demônio e o gênio possuem a característica de propor uma forma nova
de atuar, rompem com a rotina e anunciam algo novo, aí está a genialidade – por
sua novidade – seja inicialmente rejeitada, mal compreendida.
O terceiro uso da palavra espírito se aplica à atitude que tomamos perante as
dificuldades. Assim, dizemos que um ancião tem espírito quando apesar da idade
e das enfermidades tem uma visão otimista das coisas, ou também o usamos
quando alguém se sobrepõe a enfermidades muito graves. A força do espírito
aparece então em situações limites, sob as quais a maioria das pessoas decai.
Então, podemos dizer que, se a carne mostra claramente os sinais de finitude, o
espírito os assume, porém não se dá por vencido.

Da Alma
Anteriormente dizemos que preferíamos o uso do termo "espírito" para falar da-
quilo que dá vida, que vivifica. Porém, agora cabe fazer uma aclaração. Na his-
tória da Antropologia, os autores têm oscilado entre dois modelos de constituição
do homem: o bipartido ou o tripartido.

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88 © Antropologia Filosófica

O modelo bipartido é aquele que diz que o homem está composto de corpo e
alma. Então são dois os princípios essenciais do homem. Este modelo tem a
vantagem de ser simples – dentro do que se pode tratar aqui de simples – e ter
uma valorização positiva do corpo. Ainda que a simplicidade do modelo tenha
como desvantagem dificultar a visão espiritual da alma.
É por isso que alguns autores adotaram o modelo tripartido. Segundo esse mo-
delo, o homem está composto de corpo, alma e espírito (PLATÃO, República). O
homem tem assim um princípio vital, que é a alma, e que tem como função ani-
mar o corpo, porém, tem também o espírito, que se distancia do material e é onde
propriamente o humano mora. Vemos então como esse modelo tem a vantagem
de dar uma característica espiritual ao homem e claramente uma dimensão que
entra em comunhão com o transcendente; porém, tem como desvantagem des-
considerar o carnal, dado que o humano tende, como já dizemos, a localizar-se
no espiritual. A outra vantagem que possui esse modelo é que permite um trata-
mento da alma como realidade independente do espírito e, portanto, o que afeta
a um não afeta ao outro. Porém, essa vantagem se transforma em problema:
deixa muito comprometida a unidade do homem.

Que entendemos por alma?


Segundo Aristóteles, poderíamos distinguir três definições de alma. A primeira – de
caráter fenomenológico – nos diz que a alma é "aquilo por que vivemos, sentimos,
raciocinamos primariamente e radicalmente" (ARISTÓTELES, Sobre a alma).
Essa primeira definição nos diz que a alma é princípio de vida e que, por outro lado,
como tal é princípio também das operações, dos atos dos seres vivos. E, seguindo
essa definição, podemos distinguir também três tipos de alma: a vegetativa, cujos
atos são a nutrição, o crescimento e a geração; a alma animal, cujos atos têm a ver
com o sentir e, finalmente, alma humana, cujos atos são racionais.
A segunda definição diz assim: "A alma é o ato primeiro de um corpo natural que
tem vida em potência" (ARISTÓTELES, Sobre a alma).
Em primeiro lugar, esse pensador diz que alma é o ato primeiro. O ato primeiro
é o ato que constitui uma coisa, isto é, a forma substancial, aquilo mais perfeito
da essência de uma coisa material. Se diz ato "primeiro" enquanto funda o ato
"segundo", que são as operações. Em segundo lugar, fala-se de um corpo na-
tural, isto é, um corpo que não é artificial. O artificial pode ter movimentos, pode
raciocinar, porém, não tem alma, porque sua matéria não é orgânica, o artificial,
como seu nome indica, é constituído pela arte humana. Em terceiro lugar, diz-se
"que tem a vida em potência" enquanto se quer destacar a disposição do corpo-
ral para exercer as ações vitais. A alma não pode ser alma se o corpo não está
disposto, como se vê nos moribundos ou doentes terminais, quando não tem
possibilidades de exercer os atos da vida.
Essa definição de alma explicita ou dá razão à primeira definição, quando nos diz
que o princípio das operações, porque é ato primeiro, é a forma substancial do
vivente. Porém, cabe ainda uma terceira definição, e é a seguinte: "A alma é de
algum modo todas as coisas" (ARISTÓTELES, Da alma).
Enquanto que na segunda definição a alma se fecha na carne, se oculta ao
dar vida à matéria e, portanto, se limita a essa carne, a esses ossos, esta nova
definição nos mostra que a alma é infinita, isto é, está aberta a todo o real (SAN-
TO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica). A alma, então, tem uma capacidade
de infinitude enquanto pode receber, pode hospedar inclusive ao mesmo tempo
Deus, por isso se fala do homem como "capax Dei", está aberta ao absoluto.
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 89

Porém, essa infinita abertura da alma, que a constitui em alma espiritual, envolve um
risco, envolve o drama da alma. Porque enquanto é infinita, a alma pode se perder,
pode não encontrar seu sentido e cair em desespero. Seguindo Kierkegaard, podemos
dizer que o desesperado é aquele que não é o que é, e é o que não é. O desespe-
rado aparece como aquele que, graças a essa capacidade de ser tudo, não é nada
(KIERKERGAARD, Tratado da desesperação). Vai de um lado para o outro, sem lugar
próprio, sem destino fixo. Assim, a infinitude da alma pode ser seu fundamento, porém
também seu abismo. (ETCHEBEHERE, 2008, p. 47-52, tradução nossa).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

6. REGIÕES ESSENCIAIS DO HOMEM


Max Scheler, no Capítulo II da obra A posição do homem no cos-
mo, trata da diferença essencial que pode existir entre o homem e o
animal. Para ilustrar o tema, ele formula as seguintes perguntas:
[...] não existiria em última instância mais do que uma diferença
de grau entre o homem e o animal – ainda existiria então alguma
diferença essência? Ou será que há ainda algo totalmente diverso
no homem para além dos estágios essências até aqui tratados, algo
que lhe adviria especificamente e que não é de maneira alguma
tocado e exaurido através de noções tal como a de escolha e inteli-
gência em geral? (2003, p. 34).

Sobre esses questionamentos, há duas teorias dominantes e


muito difundidas:
• A primeira é a que reserva a inteligência como constituti-
vo exclusivo do homem e a nega aos animais.
• A segunda defende que não existe diferença essencial
entre o homem e o animal. Os defensores dessa última
posição são os evolucionistas, como Darwin, Lamarck,
Schwalbe e seus seguidores.
Scheler (2003), entretanto, não concorda com nenhuma das
duas, por considerar que a essência do homem está acima da in-
teligência e da faculdade de eleição. Observe o que ele escreve
sobre o tema na obra A posição do homem no cosmos:

A essência do homem––––––––––––––––––––––––––––––––––
Surge agora, aqui, a questão decisiva para o conjunto do nosso problema: se a
inteligência está já presente no animal, existirá ainda mais do que uma simples
diferença de grau entre o homem e o animal – haverá também uma diferença

Claretiano - Centro Universitário


90 © Antropologia Filosófica

de essência? Existirá ainda no homem algo de todo diverso que ultrapasse os


estágios essenciais até agora abordados, algo de especificamente humano, que
seja irredutível e não se esgote com a escolha e com a inteligência em geral? É
aqui que os caminhos se dividem de forma mais pronunciada.
Uns querem reservar para o homem a inteligência e a escolha, que recusam ao
animal: reconhecem decerto uma diferença hiperquantitativa, mas situam-na a
um nível em que, a meu ver, não existe nenhuma diferença essencial. Outros,
sobretudo todos os evolucionistas da escola darwiniana e lamarckiana, rejeitam
com Darwin, Schwalbe e W. Köhler uma diferença derradeira entre o homem e o
animal, justamente porque este já possui também inteligência; religam-se assim,
de alguma forma, à grande teoria da unidade do homem, que designo como a
teoria do "homo faber" e, por conseguinte, não conhecem nenhum ser metafísi-
co, nenhuma metafísica do homem, a saber, nenhuma relação distintiva, que o
homem enquanto tal possuiria com o fundamento do mundo.
Pelo que a mim me toca, rejeito ambas as teorias. E afirmo: a essência do ho-
mem, o que se pode chamar a sua "posição peculiar", está muito acima do que
se denomina inteligência e aptidão para a escolha; e não se chegaria lá, mesmo
se estas faculdades se representassem ampliadas seja a que grau for e, inclu-
sive, se intensificassem até ao infinito. Mas seria igualmente errôneo imaginar a
novidade, que faz do homem um homem, como um novo estágio essencial que
se acrescenta aos anteriores: impulso afectivo, instinto, memória associativa, in-
teligência e escolha – e como um novo grau das funções e aptidões psíquicas
e vitais: o seu conhecimento respectivo dependeria ainda da competência da
psicologia.
O novo princípio está fora de tudo aquilo que, no sentido mais amplo, podemos
chamar "vida". O que somente do homem faz um "homem" não é um novo está-
dio da vida em geral – nem sequer é um estádio da única forma de manifestação
desta vida, da "psique" –, mas é apenas um princípio oposto a toda e a cada vida
em geral, e também à vida no homem: um genuíno e novo facto essencial que,
como tal, não se pode reduzir à "evolução natural da vida"; se a algo se reduz, é
apenas ao fundamento supremo e único das coisas: ao próprio fundamento, de
que a "vida" é apenas uma grande manifestação".
Os Gregos afirmaram já semelhante princípio e chamaram-lhe "razão". Prefiro
utilizar uma palavra mais ampla; engloba ela o conceito de "razão" e, além do
"pensamento por ideias", abarca também uma espécie determinada de "intuição"
(Anschauung) – a intuição dos protofenômenos ou dos conteúdos eidéticos –,
e ainda uma certa classe de actos volitivos e emocionais como bondade, amor,
arrependimento, veneração, admiração espiritual, beatitude e desespero, a livre
decisão: ou seja, a palavra espírito (Geist). Mas ao centro de actos, em que o
espírito se manifesta no seio das esferas finitas do ser, caracterizamo-lo como
"pessoa", em contraste incisivo com todos os centros vitais funcionais que, do
ponto de vista interno, se chamam também centros "psíquicos".
Mas que é este "espírito", este princípio novo e tão decisivo?
Poucas palavras suscitaram, como esta, tantos abusos – uma palavra em que
raramente se pensa algo de determinado. Se situarmos no topo do conceito de
espírito a sua função particular de saber, o tipo de saber que só ele pode propor-
cionar, então a determinação fundamental de um ser "espiritual", seja qual for a
sua constituição psicofísica, é o seu desprendimento existencial do orgânico, a
sua liberdade, a possibilidade que ele – ou o centro da sua existência – tem de se
separar do fascínio, da pressão, da dependência do orgânico, da "vida" e de tudo
o que pertence à "vida" – por conseguinte, também da sua própria "inteligência"
pulsional.
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 91

Um ser "espiritual" já não se encontra, pois, sujeito ao impulso e ao meio, mas


está "liberto do meio" e, como nos apraz dizer, "aberto ao mundo": semelhante
ser tem "mundo". Pode, ademais, elevar a "objectos" os centros de "resistência"
e de reacção do seu meio, também a ele originariamente dados, que só o animal
possui e nos quais extaticamente mergulha; pode, em princípio, apreender o
próprio ser-assim (Sosein) desses objectos, sem a limitação que este mundo ob-
jectal, o seu carácter de dado, experimenta através do sistema pulsional da vida,
bem como as funções e os órgãos sensoriais a ele submetidos.
O espírito é, pois, objectividade, determinabilidade pelo ser-assim das próprias
coisas. "Tem" apenas um ser vital capaz de plena objectividade. Em termos mais
incisivos: só um tal ser é "portador" do espírito, cujo intercâmbio principial com
a realidade a ele exterior e consigo mesmo sofreu, em relação ao animal, uma
inversão dinâmica, incluindo a sua inteligência.
Que "inversão" é esta?
No animal – seja ele de organização superior ou inferior – cada acção, cada
reacção, por ele efectuada, inclusive a "inteligente", dimana de uma disposição
fisiológica do seu sistema nervoso, à qual estão ligados, no plano psíquico, ins-
tintos, impulsos motores e percepções sensíveis. O que para os instintos e para
os impulsos não é interessante também não é dado, e o que é dado só é dado ao
animal como centro de resistência relativamente ao desejo ou à aversão, isto é,
como centro biológico. O primeiro acto do drama de um comportamento animal
frente ao seu meio tem, pois, sempre o ponto de partida num estado psicofisio-
lógico. A estrutura do meio ambiente é aí, de modo exacto e pleno, "consistente-
mente" conforme à peculiaridade fisiológica e, indirectamente, à natureza morfo-
lógica do animal, e ainda à estrutura impulsiva e sensorial, pois elas constituem
uma rigorosa unidade funcional. Tudo o que o animal pode advertir e apreender
a partir do seu meio reside nos seguros limites e fronteiras da estrutura do seu
meio. O segundo acto deste drama consiste em introduzir no meio uma modifi-
cação efectiva, mediante uma reacção do animal na direcção do fim almejado. O
terceiro acto é assim a transformação do estado psicofisiológico.
A conduta animal desenrola-se, pois, sempre de acordo com esta forma:
A[nimal]!M[eio]
Num ser que tem "espírito" ocorre absolutamente o contrário.
Ele – quando e na medida em que também, por assim dizer, se serve do seu es-
pírito – é capaz de uma conduta que possui uma forma de decurso oposta. O pri-
meiro acto deste novo drama, do drama humano, é o seguinte: o comportamento
é "motivado" pelo puro "ser-assim" de um complexo intuitivo ou representativo
elevado a objecto, e isto é, em princípio, independente da organização fisiológica
e psíquica do organismo humano, independente dos seus impulsos motores e
do aspecto exterior e sensível do meio, que justamente encontra neles a sua
elucidação e recebe sempre uma certa determinação modal (óptica ou acústica,
etc.). O segundo acto é a inibição livre, isto é, derivada do centro da pessoa, de
um impulso motor, ou então, a desobstrução de um impulso motor antes retido
(e de uma reacção correspondente). O terceiro acto é uma transformação, vivida
como dotada de valor próprio e com carácter definitivo, da objectalidade de uma
coisa. A forma de semelhante comportamento é a da "abertura ao mundo", da
libertação do fascínio do meio ambiente:
H[omem] A[bertura ao mundo]!
Este comportamento, onde por constituição existe, é por natureza susceptível
de uma extensão ilimitada – chega até onde se desdobra o "mundo" das coisas
existentes.

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92 © Antropologia Filosófica

O homem é, pois, o X que, em medida ilimitada, se pode comportar como "aberto


ao mundo". A hominização (Menschwerdung) é a elevação à abertura ao mundo
por força do espírito.
O animal não tem "objectos"; vive extaticamente imerso no seu meio que ele,
qual caracol com a sua concha, transporta como estrutura para onde quer que
vá – sem de tal meio conseguir fazer um objecto. Não consegue levar a cabo
nem o afastamento peculiar, a distanciação do "meio ambiente" ao "mundo"
(isto é, a um símbolo do mundo), de que o homem é capaz, nem a transforma-
ção em "objectos" dos centros de "resistência" que os seus afectos e impulsos
delimitam. Ser-objecto é, pois, a categoria mais formal da vertente lógica do
espírito. Eu diria que o animal está por essência demasiado preso e absorvido
na realidade vital, correlativa aos seus estados orgânicos, para alguma vez "ob-
jectivamente" a conseguir apreender. O animal já não vive, decerto, de modo
absolutamente extático no seu ambiente (como no seu meio mergulha o impul-
so afectivo, insensível, privado de representações e inconsciente, da planta,
sem qualquer ressonância interna dos estados peculiares do organismo); é,
por assim dizer, restituído a si mesmo, graças à separação entre o sensório e
o elemento motor e em virtude da permanente retroacção dos seus respectivos
conteúdos sensoriais: possui um "esquema corporal". Frente ao meio, porém,
o animal continua a comportar-se extaticamente – mesmo onde se conduz de
modo "inteligente". E a sua inteligência permanece orgânica-impulsiva-pratica-
mente vinculada.
O acto espiritual, tal como o homem o pode realizar, e contrariamente à simples
retroacção do esquema corporal animal e dos seus conteúdos, está essencial-
mente ligado a uma segunda dimensão e etapa do acto reflexo. Em resumo,
chamaremos "concentração" a este acto, e chamá-lo-emos a ele e ao seu fim,
o fim deste "concentrar-se", "consciência de si, própria do centro de actividade
espiritual", ou "autoconsciência". O animal, diferentemente da planta, tem cons-
ciência, mas não autoconsciência, como já Leibniz vira. Não se possui, não é
senhor de si – e, por isso, também não é consciente de si mesmo.
Concentração, autoconsciência e capacidade objectivante da originária resistên-
cia impulsiva formam, portanto, uma singular estrutura indissolúvel que, como tal,
só ao homem pertence.
Com este tornar-se-consciente-de-si, com este novo recuo e centração da exis-
tência que o espírito possibilita, surge igualmente a segunda característica es-
sencial do homem. Graças ao seu espírito, o ser que denominamos "homem"
pode alargar o ambiente circundante à dimensão do universo e objectivar as "re-
sistências"; pode igualmente – e é o mais notável – transformar em objecto a sua
própria constituição fisiológica e psíquica, cada "vivência" mental particular, cada
uma das suas funções vitais. Só por isso é que semelhante ser pode também
renunciar livremente à sua vida. O animal ouve e vê – mas sem saber que ouve e
que vê. A psique do animal funciona, vive – mas o animal não é nenhum psicólo-
go e fisiólogo! Devemos pensar em estados extáticos muito raros do homem – na
hipnose plena, na absorção de certos venenos inebriantes, em certas técnicas
de inibição consciente do espírito (ou seja, já com uma intervenção mental), por
exemplo, cultos orgiásticos de toda a espécie – para, de algum modo, nos trans-
ferirmos para o estado normal do animal. O animal também não vive os impulsos
derivados das suas tendências como seus, mas como atracções e repulsas dinâ-
micas, que derivam das próprias coisas do meio. [...]

O animal não tem uma "vontade" que sobreviva aos seus impulsos e à sua mu-
dança e que, na alteração dos seus estados psicofísicos, possa garantir uma
continuidade. Um animal chega sempre, por assim dizer, a um lugar diferente da-
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 93

quele que originariamente "pretendia". Nietzsche é profundo e correcto quando


diz que "o homem é o animal que pode prometer".
Há quatro graus essenciais em que aparece todo o existente, relativamente à sua
interioridade (Innesein) e ipseidade (Selbstsein).
As coisas anorgânicas são de todo desprovidas de semelhante interioridade e
ipseidade; também não têm centro algum, que onticamente lhes pertença; por-
tanto, também nenhum medium, nenhum ambiente. O que neste mundo objec-
tivo designamos como unidade, até às moléculas, aos átomos e aos electrões,
depende exclusivamente do nosso poder de dividir os corpos realiter (do latim
corpori realiter) ou, pelo menos, em pensamento. Cada unidade corporal anor-
gânica só é tal relativamente a uma legalidade determinada da sua acção sobre
outros corpos. Mas os centros inespaciais de forças, que suscitam o aparecimen-
to da extensão no tempo, e que temos de colocar metafisicamente na base das
imagens dos corpos, são centros de pontos dinâmicos de acção interdependente
e recíproca, em que confluem as linhas de força de um campo. Um ser vivo, pelo
contrário, é sempre um centro ôntico e modela "a sua" unidade espacio-temporal
e a sua individualidade; estas não derivam, como nas coisas anorgânicas, da
"nossa" actividade de unificação biologicamente condicionada. Ele é um X que a
si próprio se delimita; tem "individualidade" – desmembrá-lo significa aniquilá-lo,
eliminar a sua essência e a sua existência. O impulso afectivo da planta possui
um centro e um meio em que o ser vivo, relativamente aberto no seu crescimen-
to, está mergulhado, sem réplica dos seus diferentes estados ao seu centro; mas
a planta dispõe, em geral, de uma "interioridade" e, por isso mesmo, é "animada".
No animal, a sensação e a consciência existem, e há nele um ponto central de
retransmissão dos estados mutáveis do seu organismo, e também uma modi-
ficabilidade do seu centro mediante tal retransmissão: está, pois, já dado a si
mesmo uma segunda vez. Mas o homem ainda o é uma terceira vez, em virtude
do espírito: na autoconsciência e na objectivação dos seus processos psíquicos
e do seu aparelho sensório-motor. Importa, pois, pensar a "pessoa" no homem
como o centro que supera a oposição do organismo e do meio (SCHELER, 2011,
p. 6-13).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
É importante expor que, no homem, o psíquico, com o orgâni-
co e o espiritual, integra um sistema superior, que é a estrutura hu-
mana. O psíquico, mesmo que alguns autores o denominem alma,
difere do espírito. Ainda sobre a alma, leia o quadro a seguir:

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Voltando ao problema, lembremo-nos mais uma vez de que, na psicologia em-
pírica, o termo "alma" é utilizado para indicar os fenômenos psíquicos. Dessa
forma, esse termo deixa de ter um conteúdo filosófico para ter uma aplicação
prática (denota uma capacidade operativa). Na linguagem teológica, alma indica
essa relação entre o homem e Deus; dizer que o homem tem alma é dizer que o
homem foi criado por Deus, que é alguém diante do Criador. Para os clássicos,
alma indica a forma substancial constitutiva da pessoa humana.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

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94 © Antropologia Filosófica

Sobre esse tema, você, além de outras obras, pode ler o Capítulo
2, intitulado "A vida", da obra O homem que é ele?, de B. Mondin.

Espírito
Gevaert (1995) explica que o termo "espírito" é um termo
"complicado" por ser vago e impreciso. Muitas vezes, expressa
um fenômeno vital concreto: hálito, e, outras vezes, um princípio
exclusivamente humano: atman, pneuma, spíritus etc. No nível
filosófico-antropológico, esse termo é empregado para simbolizar
aquilo que é humano e que não pode ser reduzido a fenômenos
materiais definidos pela causalidade ou pela realidade espaçotem-
poral.
Como explica Royce (apud GEVAERT 1995, p. 140): "Denomi-
na-se espiritual o sujeito que pode atuar sem depender intrinseca-
mente da matéria. O espiritual não inclui uma dependência extrín-
seca da matéria e sim intrínseca". Indica que a pessoa humana não
pode ser compreendida unicamente desde a dimensão material
por ser tanto material quanto espiritual.
Sabemos que o espírito é a dimensão constitutiva que dife-
rencia o humano do resto da criação. O espiritual é a dimensão
própria do homem e, embora seja a dimensão específica, não é a
única dimensão, pois o homem é uma unidade e uma totalidade
biológica, psicossocial e espiritual.
Filósofos e teólogos definem o homem como o resultado da
imersão do espírito na matéria. A maioria defende a ideia de que
não é imersão acidental e sim substancial e, a partir dessa caracte-
rística ontológica, o homem é uma pessoa espiritual.
Veja, a seguir, um pequeno texto sobre a diferenciação entre
psique e espírito.
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 95

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


A Antropologia Filosófica diferencia psique de espírito. O termo "espírito" indica
uma autoconsciência de si mesmo. As manifestações espirituais ou próprias do
ser humano são: compreensão do sentido, prefixação de metas, fins, ideais e
capacidade de atuar por cima dos condicionamentos de qualquer tipo por ser o
espírito uma substância sem limites materiais ou espaciais.
Em sua antropologia, Scheler (2003) destaca o conceito de que o espírito é uma
potência que complementa e direciona as outras potências (as biológicas e as
psicológicas) presentes no ser humano.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Evolução do espírito na pesquisa filosófico-antropológica
Para Platão, o espírito era um princípio autônomo. Aristóte-
les, corrigindo a posição do mestre na teoria da forma e matéria,
define-o pelo sentido do telos, que significa "fim".
Para Aristóteles, a matéria é informada, ou seja, recebe for-
ma, o que lhe confere sentido, finalidade. Cada coisa é como é
porque foi feita inteligentemente. O material precisa de uma força
não material para formar o homem: o espiritual.
Aristóteles salva, dessa forma, a unidade, corpo-espírito,
ante a ideia dualista de Platão. Mesmo assim, continua a concep-
ção de que o espírito se caracteriza por possibilitar o conhecimen-
to do mundo e das essências.
A concepção escolástica defende a ideia de que a alma hu-
mana (interprete-se como espírito) necessita das potências que
operam por meio dos órgãos corporais, e que, unidas naturalmen-
te, conceituam o ser humano (estando o espírito perante a vida).
Pelo poder do espírito, o homem pode dizer não ao meio, aos im-
pulsos. Para esses pensadores, pessoa é a realidade substancial
composta de corpo e alma.
Os pensadores modernos como Hegel interpretam o espírito
como uma obra cultural realizada na história, como evolução da maté-
ria corpórea. Por esse caminho, perde-se a singularidade da pessoa.
A Antropologia Filosófica contemporânea defende como
princípio que o que caracteriza a pessoa espiritual é a capacidade

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96 © Antropologia Filosófica

que possui para se distanciar da dimensão psicofísica, esse "sair


de si". Essa característica o converte em um "ex-sistente". Como
explica Heidegger a expressão "o homem ex-siste" não esta diri-
gida a explicar se o homem é real ou não, responde à questão da
essência do homem. "A essência reside na sua exsistencia, isto é
aquilo que se apresenta com 'ser ai'".(HEIDEGGER, 1967, p. 50).
Enquanto que a existência está relacionada com a concretude.
O sujeito espiritual é único por ser irredutível ao mundo e
aos outros. Por ser espiritual, o ser humano é sujeito diante do
mundo.

Na Antropologia do século 20, predomina a ideia de que as duas


dimensões humanas, corpo e espírito, atuam em conjunto, mas,
deixando suas diferenças ontológicas aparecerem, nunca se con-
fundem; o espírito é o não físico.

Corpo
O corpo, assim como o espírito, não é um sistema comple-
to. Ambos, corpo e espírito, formam partes, como subsistemas de
uma estrutura superior: a pessoa humana. Sobre o corpo, pode-
mos destacar as seguintes concepções:
1) O corpo coloca a pessoa dentro dos organismos vivos;
existimos como corpo.
2) O corpo é expressão, comunicação.
3) Pelo corpo, a pessoa tem identidade.
4) O corpo permite a existência física e, na existência, a
pessoa aperfeiçoa-se.
5) Pelo corpo, o espírito pode ter consciência do mundo.
O corpo da pessoa representa muito mais que o organismo.
Enquanto o organismo sintetiza o orgânico, que é uma forma par-
ticular, o corpo é o elemento constitutivo de uma realidade com-
pleta: a pessoa humana, bio-psíquica-espiritual.
O corpo é uma parte constitutiva do homem concreto por es-
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 97

tar inserido dentro do mundo evolutivo. Pensemos, por exemplo,


que a obstrução de uma artéria do coração ou do cérebro pode
acabar com toda a perfeição que emana do espírito imaterial. As-
sim, sem o espírito, o homem não seria homem, seria como as má-
quinas que parecem perfeitas, mas não são únicas – ao contrário,
são reproduções feitas em série, que não têm alma. O homem é
um ser que pensa e que sabe que pensa, que come, que sente von-
tade, que quer ser feliz, que precisa do outro, das orientações, da
proteção, do amor, que tem sonhos e ideais e que, um dia, morre.

7. HOMINIZAÇÃO
O termo "homem", ou hominis, não indica somente um
grau diferente dentro da escala zoológica; ele sugere alguma coisa
mais. Quando se pensa o homem, um dos questionamentos mais
comuns é: "de onde ele surge?".
Sabemos que, pela reprodução sexuada, herdamos de nos-
sos pais o quadro cromossômico. Dessa união, surge um novo ser,
que, produto da gestação, vai ter uma carga genética dos pais e,
também, vai ser um novo eu. Mas por que "novo eu"? Porque esse
sujeito que espreita o mundo é uma figura nova, com uma reali-
dade própria. Como os seus pais, esse novo eu vai possuir uma
existência particular, unitária, intransferível e indivisível. Esse ser
humano é, portanto, único.
A escolástica chama de haecceitas o princípio de individua-
lização. Nessa explicação muito simples, acabamos de descrever
uma hominização filogenética. Entretanto, há outra, paralela, cha-
mada ontogênica, que é caracterizada pela infusão do espírito.
Aristóteles diz que o espírito vem do exterior (thyrathen).
O que sabemos é que o espírito é constitutivo do ser humano,
afinal, ninguém carece dele, nem tem dois ou mais. O ato repro-
dutivo possibilitou a hominização e esse ser humano novo está
composto de:

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98 © Antropologia Filosófica

• Uma dimensão corporal caracterizada pela herança.


• Uma dimensão psíquica alinhada pela herança e trabalha-
da pela educação (influência do meio cultural).

Natureza do homem
O homem tem uma natureza que é universal a todos os homens.
Entretanto, ele não é uma realidade estática, pois o homem concreto
é um ser dinâmico que forja sua personalidade na existência.
A inteligência instrumental, ou seja, o uso do pensamento
como instrumento, não é particular do homem, afinal, ela é co-
mum a todos os primatas superiores. O que é propriamente huma-
no é a capacidade de individualizar as coisas como meio para satis-
fazer necessidades e perceber as essências dos entes, das coisas.
Uma vez que o homem é o único ser que possui essa capacidade,
ele se sente um ente separado da natureza.
O homem é um animal, mas, diferentemente dos outros
animais, não se sente produto da evolução da vida e não se sen-
te somente natureza. Biólogos, como Portmann e Gehlen (apud
FRANKL, 2003), afirmam que o homem não tem um lugar definido
dentro da natureza e não possui um desenvolvimento orgânico de-
terminado. Ele é livre diante do meio.
A pergunta que se refere ao nascimento da espécie humana
tem, hoje, respostas controversas. A maioria das informações
disponíveis é baseada em descobertas de restos mortais, que estão,
muitas vezes, aos pedaços e sem o entorno cultural. Partindo dos
dados disponíveis sobre o aparecimento dos primeiros mamíferos,
vamos falar em pelo menos 200 milhões de anos, e o Homos
Erectus, que, talvez, seja o nosso antecedente ou ancestral mais
direto, é mais novo.

Somente um ser em particular caracteriza-se por estar aberto a


outros seres. Esse ser é o homem, que possui uma consciência,
que tem a particularidade de apreender a forma dos outros seres.
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 99

Leia agora uma reflexão sobre a evolução do homem e a sua


diferenciação dos outros animais:

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Afirma-se que o homem nasce como uma folha em branco, e que a sociedade o
modela. Esse conceito evolucionista provém de pensadores como Köhler e ou-
tros. Os evolucionistas modernos, como G. G. Simpson, defendem que o homem
tem atributos essenciais próprios que o diferem dos animais. Até Darwin, que
colocou o homem dentro da escala zoológica animal, descreveu características
psíquicas próprias, como a de refletir sobre seu passado e elaborar abstrações
mentais, como símbolos, em que a capacidade mais elaborada é a da linguagem,
seguida pelo sentido de beleza e pelo senso de religião, por ser o homem um
animal cultural e social. A Antropologia Cultural descreve as alterações do habitat
baseando-se em estudos de povos primitivos e, assim, comprovando que existe
uma enorme variedade de costumes, valores etc.
O grande questionamento da Antropologia Filosófica é se existe alguma caracte-
rística que seja comum a todos os homens e que, portanto, não tenha sido her-
dada durante o período da evolução. Uma visão explicativa do interior humano
leva-nos a concluir que existe algo que se destaca do puramente sensitivo e do
anímico: o princípio espiritual, que é de natureza diferente da matéria. Há, em
nós, conhecimentos e atos psíquicos que são comuns a todos os animais, como
sentir dor, sofrer etc., mas somente o homem pode dar sentido ao sofrimento. O
homem tem a capacidade de transcender seus atos e converter-se em objeto de
suas reflexões. O animal é um ser realizado dentro de seus instintos, já o homem
transcende o espaço temporal.
As características humanas denotam a existência de um Centro Espiritual ou
Alma Espiritual. Esse centro dá independência diante do meio e do corpóreo. O
espírito não é um agregado, pois o espiritual determina o somático. Desse modo,
o homem sem espírito não é homem, como também é impossível imaginar um
animal com espírito, pois este não seria o animal que conhecemos, seria ontolo-
gicamente outra coisa, talvez uma criatura parecida com os extraterrestres dos
filmes de ficção.
A discussão sobre o fato de a "hominização", ou infusão do espírito, ter sucedido
de um processo longo de evolução ou de a criação ter sido imediata não muda
nada a essência do homem e o que lhe é inerente por direito.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

8. PARALELISMO "PSICOFÍSICO"
A Antropologia Filosófica apoia-se no princípio de que há, no
homem, uma unidade vital, uma unidade ontológica que envolve
o corpo e a psique. Como seres humanos, possuímos o eu, que nos
confere identidade. O eu é o nome do comando interno que uni-
fica, a partir do centro da pessoa, as ações dos extratos biológico,

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100 © Antropologia Filosófica

psicológico e espiritual. O eu converte a vida psicofísica numa vida


de caráter espiritual e, portanto, única.
Como se produz essa relação denominada paralelismo psico-
físico? Há duas correntes principais de interpretação do denomi-
nado paralelismo psicofísico. Observe:
• A primeira diz que a consciência (portanto, o espírito) não
passa de um epifenômeno, trocando o paralelismo por
uma reação de causa-efeito. Nessa concepção, tudo de-
pende do aparato psíquico e a causa radica na estimu-
lação do sistema nervoso. Tudo é explicado a partir da
matéria. O comportamento espiritual é, desse modo, re-
sultado do cérebro.
• A outra admite um estreito paralelismo entre o sistema
nervoso e o espírito. O corpo físico diferencia-se da ati-
vidade espiritual da mesma forma que o espírito se di-
ferencia do aparelho psíquico. Cada um tem caracteres
próprios. São, por isso, protofenômenos.
As duas interpretações gerais apresentadas vêm desde a filo-
sofia grega primitiva. No princípio, os gregos pensavam a alma como
forma do corpo e, mais tarde, começam as doutrinas espiritualistas.
Santo Agostinho e, anteriormente, Platão, concebem uma
alma incorpórea. Já Demócrito, Epicuro e os estoicos (pais do ma-
terialismo) reconhecem a alma como composta por átomos.
Hoje, há variadas e diferentes interpretações derivadas des-
sas duas formas de concepção antropológica. Sem chegar a uma
análise intensiva, lembremos as principais:
a) Dualismo Espiritualista: esse sistema filosófico afirma
que o corpo (matéria) e a alma (imaterial) são duas subs-
tâncias irredutíveis e com caracteres próprios de cada
uma delas.
b) Idealismo: corrente de pensamento que nega a existên-
cia objetiva do mundo exterior. Isso significa que a única
realidade que existe é a do nosso espírito. Autores como
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 101

Bruno, Berkeley, Fichte, Schelling e Hegel empregam a


palavra "idealismo" em diferentes matizes, ainda que
todos considerem que a realidade do mundo externo
depende de nossas mentes.
c) Panteísmo: Baruch Spinoza (1632-1677), pensador de
orientação marcadamente cartesiana, une os princípios
propostos por Descartes com as concepções de origem
hebreias, como a Cabala, e os conceitos escolásticos
provenientes das obras de Suárez. Em sua filosofia, de
orientação panteísta, ele interpreta a realidade de forma
racionalista e mecanicista. Em sua obra Ethica Ordine Ge-
ometrico Demonstrata, Spinoza afirma que o homem é
um ser em Deus, o que é diferente do conceito de "rela-
ção com Deus". Deus, para esse autor, é a natureza toda.
Para entender melhor esse tema, é importante analisar
a seguinte parte da obra citada:
À essência do homem não lhe pertence o ser da substância, a subs-
tância não pode constituir a essência do homem porque o ser da
substância corresponde unicamente à "existência necessária". [...]
a mente humana é parte do entendimento de Deus, que se explica
pela natureza da mente humana (SPINOZA, 2002, p. 2).
"Spinoza, dessa forma, só aceita uma única substância, que iden-
tifica como a natureza de Deus" (CARVALHO, 1992, p. 231). Aqui
está a explicação do porquê de esse autor ser qualificado como
panteísta.
d) Materialismo: oposto ao espiritualismo, afirma que o es-
pírito é uma função do cérebro. O argumento principal
do materialismo surge da lei da conservação da energia
e da matéria, que trabalha no domínio do físico.
e) Doutrina cristã: é a da infusão do espírito no primeiro
momento da vida orgânica. Com o Cristianismo, surge,
como dogma, a imortalidade da alma, ou seja, a ideia da
salvação desta após a morte do corpo. Na esfera filosófi-
ca, essa ideia cristã de infusão do espírito é, no primeiro
momento, defendida por Leibniz. Para ele, cada corpo
tem uma enteléquia, dominante, e a morte é o começo
de uma nova vida.
f) G. W. Leibniz (1646-1716), intelectual herdeiro dos filó-
sofos antigos, do pensamento escolástico e da ciência da

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102 © Antropologia Filosófica

Renascença, concebe a substância como mônada. Essa


forma supera o conceito de substância como algo inde-
pendente, como pensava Descartes e Spinoza. Leibniz
conclui, então, que a noção de pessoa tira o homem do
plano natural de ser uma coisa a mais do mundo. Para
ele, o homem é alma.
g) Idealismo Transcendental: Kant, que defende a imorta-
lidade da alma ao reconhecer que existe uma base para
a lei moral. Concebe a ideia da existência de Deus como
criador do soberano bem, a base necessária para essa
lei moral.
Quando Frankl (1978, p. 80-81) trata o problema da relação
corpo-alma, escreve o seguinte:
Sabem as senhoras e os senhores que do ponto de vista problemá-
tico-histórico, se nos deparam três teoremas fundamentais no que
concerne ao problema corpo-alma: a par da teoria da ação recípro-
ca, a teoria da identidade, bem como a do paralelismo "psicofísico"
[...]. A título de antecipação: fica de uma vez estabelecido que o so-
mático e o psíquico não podem se reduzir um a outro, nem podem
derivar-se um do outro.

Citando Nicolas Hartman, escreve:


Nicolas Hartman, em Der reale aufbau der welt (Berlim, 1940, p.
428), afirmou: "Quem quer explicar a vida orgânica pelas forças
mecânicas e pelas relações de causa e efeito, quem quer apreender
a consciência pelos processos físicos, ou o ethos do homem pela lei
psíquica do ato, choca-se contra a lei da propriedade das camadas.
Assim, o que pertence a uma camada é transferido para a outra
camada mais evoluída".
Temos assim quatro camadas que formam o ser: as camadas do
físico, do orgânico, do psíquico e do espiritual. Jasper ensinou: "En-
tre os fenômenos não-orgânicos da natureza e a vida, entre vida e
a consciência, entre a consciência e o espírito, abre-se um abismo
instransponível" (FRANKL, 1978, p. 80-81).

Cabe, após essa explanação da realidade material e espiri-


tual, investigar o centro convergente de toda a realidade humana,
seu eu (ego). Vejamos!
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 103

9. SUJEITO
Já explicamos que as principais questões sobre a existência
humana giram em torno da existência pessoal, o núcleo que sus-
tenta a existência (o ego, o eu). Esses termos mostram o atributo
de unicidade que é característica do ser humano.
Na pessoa, há uma unidade, ou núcleo, que é comum a toda
pessoa humana. Porém, a pessoa de cada um não é uma máqui-
na fabricada em série, pois, como já mencionamos, cada pessoa é
única. Desse modo, o "eu" responde a certas características:
• O sujeito é único, não existem dois sujeitos com os mes-
mos atos humanos. Todos os atos psíquicos respondem a
um eu real e único.
• Também há uma coincidência entre o sujeito que pensa-
va anteriormente e o sujeito que pensa neste momento.
Há uma identidade histórica com o tempo. Eu pensava
ontem e eu penso hoje e, mesmo que meu pensamento
tenha pontos de vista diferente, sou eu quem mudou. No
conjunto ontológico, entretanto, a relação se mantém. O
eu é consciente de si mesmo e de sua atividade.

O eu, núcleo da pessoa


Coreth (1998) explica por que cada um de nós se sente um
eu. Esse ponto central do ser humano, que aqui denominamos eu,
é um espaço de liberdade e responsabilidade em que o homem
pode dispor de si mesmo. Sem cair no egocentrismo, podemos
afirmar que o eu é o centro do mundo do homem.

Rabuske (2003, p. 69) coloca a pergunta: "O que significa esse


termo (eu)?" e explica, em seguida, que ele pode significar duas coisas:
• eu centro;
• eu totalidade.

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104 © Antropologia Filosófica

O primeiro, o "eu centro", podemos situar na experiência de


"eu penso", "eu conheço". Nós experimentamos e reconhecemos
esse eu por meio de cada ato que executamos. Já o segundo, o eu
totalidade, é realizado na interação com o mundo. No intercâmbio
com o mundo que não é ele, o ser humano atua como uma totali-
dade; é consciência e é corpo de forma conjunta.

Núcleo espiritual: o homem incondicionado


Viktor E. Frankl (2003) explica o homem como um ser incon-
dicionado e afirma que nenhuma condição o determina de tal for-
ma que, a partir dela, possa ser definido totalmente. Desse modo,
a condicionalidade o condiciona, porém, não o constitui.
Conheceremos, a seguir, o que esse autor diz sobre a consti-
tuição do homem:
A ontologia do homem não está referida ao "homem que é" e sim
ao ser humano mesmo. Por outro lado a ciência (ôntica) contempla
o "homem que é", contempla-o condicionado seja no biológico, no
psicológico, no sociológico. A ontologia conhece além da facticida-
de humana.
À condicionalidade fática se opõe sua incondicionalidade facultati-
va, contida na dimensão espiritual (FRANKL, 2003).

Note que Frankl chega a essas conclusões partindo de uma


análise fenomenológica baseada nos atos humanos e destaca a
existência de um núcleo, ou centro espiritual, que é responsável
pela unidade do somático, do psíquico e do espiritual. Sua teoria,
portanto, baseia-se na premissa de que o espírito é o que individu-
aliza o ser humano.
O ser humano é uma unidade e, também, uma totalidade.
Tudo no homem está sujeito à sua condição ontológica de pessoa
porque há uma "governabilidade" espiritual, o que significa que o
homem não é um ser biológico, psicológico ou espiritual, mas sim
a união substancial desses estratos.
Pela pessoa espiritual-existencial, o ser humano é "in-diví-
duo". Assim, o que individualiza a existência humana é a coexistên-
cia dessa unidade antropológica.
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 105

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


O "núcleo espiritual", ou "eu centro", não é cognoscível, pois a razão humana não
consegue chegar ao centro ontológico que caracteriza o eu.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Como acabamos de ver, para V. Frankl:
a) O homem não é um ser composto pela soma do corpo-
ral, do anímico e do espiritual; ao contrário, ele é uma
totalidade: corpóreo-anímico-espiritual.
b) O homem conhece a realidade partindo de si mesmo, do
eu. Ele não pode conhecer esse eu-centro de forma dire-
ta. Esse centro espiritual não é cognoscível diretamente,
o que converte o homem num mistério.
c) O homem como existência é devir justificado pela di-
mensão de liberdade.
d) O homem é condicionado pelo psíquico-físico no modo
de ser, porém, ele é capaz de se determinar por ser es-
piritual.
e) A pessoa humana, categoria que não é adquirida, visto
que é constitutiva, é produzida pela transcendência e
possui uma escala de valores dentro de um universo de
sentido e significado.

10. DIMENSÃO MUNDANA DO SERBIO-PSÍQUICO-


-ESPIRITUAL
Vimos os extratos que compõem o ser humano: o biológico,
o psicológico e o espiritual, os quais estão claramente diferencia-
dos na natureza humana. É natureza do homem o biológico, bem
como o somático, toda a carga genética herdada e todas as ações
motivadas pelos instintos. Entretanto, nem tudo pode ser conside-
rado natureza no homem. O componente espiritual, por exemplo,
não pode ser enquadrado dentro dessa realidade.
Como Max Scheler (2003) destaca, a dimensão espiritual é
aquela que permite que o homem se eleve por cima do físico e
do psicológico, ou seja, da natureza, permitindo que ele atue com
total independência. Esse autor explica, também, que as notas di-
Claretiano - Centro Universitário
106 © Antropologia Filosófica

ferenciais do ser humano são a inteligência e o dinamismo, que lhe


permitem projetar-se para horizontes que estão além do instinti-
vo, conferindo-lhe independência e liberdade de atuação ante os
condicionamentos físicos.
Essa dimensão humana que acabamos de descrever, deno-
minada espiritual, tem seu lugar no mundo como parte integrante
do ser humano, porém, não é nem mundana, nem espacial como
o corpo, nem temporal como a psique. O espírito é potência e tem
como manifestação a consciência reflexa, a compreensão do sen-
tido, a previsão de futuro e a prefixação de metas (LUCAS, 1996).
Por ser espiritual, o ser humano é um ser de liberdade aberto ao
mundo e atua como uma unidade indissolúvel.
O filósofo Diógenes, autor de Apolíneas, emprega, em suas
obras filosóficas, a expressão Antrophine Physis, ou seja, nature-
za humana, para diferenciar o homem dos outros seres (BURGOS,
2007). Outro conceito de natureza essencialmente humana que
deve ser destacado por seu peso no pensamento universal per-
tence a Aristóteles. Como o resto dos pensadores gregos, o filóso-
fo desconhecia o conceito de pessoa, mas, mesmo assim, define
o homem como o ser mais perfeito da natureza por ser racional
(BURGOS, 2007).
Essas reflexões aristotélicas, bem como as platônicas, che-
gam à Filosofia Medieval e são "adaptadas" para coincidir com o
dogma da criação. Para isso, a união entre corpo e alma deixa de
ser pensada como um acidente e toma um caráter pessoal.
Cada indivíduo possui uma alma individual, que constitui a
intimidade pessoal. A noção de pessoa diferencia o ser humano
dos outros seres individuais e seu conceito está baseado na uni-
cidade, na racionalidade e na vontade livre. Cada pessoa tem sua
própria realidade pessoal e posiciona-se de forma livre e autôno-
ma na hora de tomar suas próprias decisões.
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 107

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Juan de Sahagun Lucas (1930), autor de obras como El Hombre¿Quién es?,
Nuevas Antropologias del siglo 20, Las Dimensiones del Hombre, entre outras,
desenvolve um estudo completo sobre o homem. Nele, descreve três dimensões:
cósmica, sócio-pessoal e transcendente, baseando-se em três princípios: vitais,
psíquicos e espirituais.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

11. OS ATOS HUMANOS


Há, no ser humano, condições a priori que o diferenciam do
resto dos seres e que são responsáveis por seu comportamento. A
Antropologia Filosófica é a área do conhecimento que busca esta-
belecer quais são as condições universais que existem por trás de
toda experiência humana.
Estudar o homem como totalidade não é uma tarefa fácil.
Buber (1976) explica que, se colocarmos o homem como objeto do
conhecimento, "cristalizaremos" somente uma instância do eu, e,
consequentemente, esse momento que está sendo estudado não
representará o verdadeiro eu, que já não é mais o mesmo. Como
diz Lucas (1996), o homem deve ser estudado "em presença". Não
é possível colocá-lo como objeto do conhecimento se a intenção é
a de estudá-lo em sua totalidade.

12. SER SOCIAL


O homem é composto, como já explicamos, pelas regiões
psicológica, biológica e espiritual e atua como uma unidade. É, an-
tes de mais nada, um eu. O ser humano não é nem espírito, nem
matéria, nem psique separadamente, pois suas dimensões consti-
tutivas são irredutíveis. O homem é uma peça só e essa particula-
ridade faz da vida humana uma realidade única.
Olhando para o ser humano, podemos afirmar que todos os
homens têm a mesma natureza potencial e que ela é inseparável

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108 © Antropologia Filosófica

da influência cultural. Mondin explica que todo homem é um ser


cultural e alerta:
O homem não é um edifício pré-fabricado que basta simplesmente
montar, como hoje se faz com as coisas, bancos e escolas. Ele deve
se construir com suas próprias mãos, cultivando a si mesmo. O
objetivo primário da cultura é promover a realização da pessoa
(MONDIN, 1998, p. 116).

Todas as culturas têm traços similares porque são produto


do homem e, como ele, também são caracterizadas pela diversi-
dade. A cultura abraça todo o ser humano, envolvendo sua razão,
sua vontade e sua liberdade enquanto condições subjetivas neces-
sárias para continuar sendo produzida. O ser humano é tão artífice
quanto beneficiário da cultura.

13. PESSOALIDADE E PERSONALIDADE: PARTICIPAÇÃO


DO TU
Para configurar sua personalidade, o ser humano precisa do
suporte, ou seja, da cooperação que as outras pessoas proporcio-
nam. Contudo, a mesma coisa não acontece com a pessoalidade,
já que o ser humano é dotado dela. A pessoalidade é uma con-
dição pessoal própria porque existe uma origem, uma realidade
prática. O homem nasce como pessoa potencial.
A pessoalidade é uma característica básica do ser humano, ao nas-
cer o ser humano nasce com sua pessoalidade, mas a personalidade
ainda não está presente. O ser humano é pessoalidade expressada
em ato e possui uma personalidade em potência, que vai se desen-
volver com os atos realizados pelo eu. "O ser humano é sempre o
mesmo (pessoalidade) sem ser sempre o mesmo (personalidade)"
(ZUBIRI apud LOPEZ QUINTAS, 1995, p. 89).

Vejamos, agora, o surgimento da personalidade.

Surgimento da personalidade
O biólogo e filósofo Gelhen (apud CABADA, 1994) diz que
o homem, ao ser comparado, no plano biológico, com o animal,
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 109

é um "ser defeituoso", pois a cria que precisa de mais tempo de


cuidados para prosperar e para poder ser independente é a do ser
homem. Para esses defeitos, segundo o autor, há um antídoto: o
amor. Receber amor (ser amado) é fundamental para a criança que
aparece no mundo.
Segundo Cirulnik (2004), revelações baseadas em fatos em-
píricos têm demonstrado que a falta de amor na primeira idade
chega a comprometer não só o desenvolvimento da personalida-
de, mas também os aspectos fisiológico e biológico.
Observe que o homem não nasce com condições físicas e
existenciais prontas para estar no mundo. Ele nasce, por assim
dizer, com os alicerces prontos, e, a partir daí, da fundação, vai
erguer a estrutura do que vai ser a pessoa futura. Esse movimen-
to dependerá, em grande parte, do amor que recebe do outro.
Esse importante fato antropológico pode ser constatado nas obras
de pensadores, de biólogos, de psiquiatras etc. O homem é consi-
derado um "ser de carência" pelo biólogo Gehlen (apud CABADA,
1994); por isso, sua vida futura dependerá do modo que será rece-
bido pela família construtora – O termo construtora, empregado
por Gehlen (apud CABADA, 1994), tem seus antecedentes históri-
cos na Antiguidade greco-latina).

Nascimento sociológico
O homem é um ser essencialmente social. Logo depois do
nascimento, do parto que nos colocou fora do útero materno, con-
tinuamos dependendo de algo; não do útero, que teve a função de
auxiliar a mãe a "dar à luz", mas do cuidado de alguém. Essa de-
pendência pode ser traduzida como a necessidade de uma segun-
da "gestação", não de caráter biológico como a primeira, e, sim,
sociológico e cultural.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Referindo-se à indigência humana, Portmann (apud CABADA, 1994), um investi-
gador que auxilia V. Frankl em seu pensamento, demonstra que o homem passa

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110 © Antropologia Filosófica

por uma espécie de "parto prematuro fisiológico". A sua tese assinala a deficiên-
cia humana ante a segurança instintiva e a especialização do animal.
J. Rof Carballo, na obra Rebelión y futuro, escreve: "a mãe dá duas vezes a
vida, a primeira no momento de dar a luz ao filho e a segunda quando a mãe
possibilita o 'nascimento' (leia-se surgimento) do espírito do filho concebido, no
trato, na dedicação, com ternura" (CARBALLO, 1970). Essa etapa é alcançada
dando amor, carinho e cuidando. É importante que, paralelamente, aconteça o
necessário processo de separação, que possibilitará o entrosamento do novo eu
no meio social.
A segunda gestação, considerada extrauterina, é responsável pela plenitude do
ser, visto que a prematura pessoa não tem meios para surgir por si só, conforme
pretendia o idealismo. Essa evidência leva à comprovação de que só é possível
ser pessoa em relação com o outro, uma das regras de ouro da Antropologia Fi-
losófica. O amor é o que possibilita o surgimento da pessoa e vai acompanhá-la,
como energia orientadora, pelo resto de sua vida. O tu, inicialmente a mãe, vai
possibilitar a vida pessoal.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Está provado fenomenologicamente que a personalidade e a
subjetividade surgem do amor procriador. Se, na primeira etapa da
existência, faltasse o amor do outro e a criança fosse deixada a sua
própria sorte, ela poderia perecer ou, talvez, sobreviver à morte
física, mas, nesse caso, ficaria exposta a uma desestruturação de
sua personalidade (TOMÁS DE AQUINO, 1990).
As ações boas fazem-nos crescer em direção ao ser. Os vícios e
a soberba afastam-nos do ser, colocando-nos na direção do não ser.
O homem é constituído pela matéria e pelo espírito e esses
coprincípios formam o ser humano, que traz consigo o princípio
ou a orientação para o bem. Contudo, essa orientação não é de-
terminante. Em outras palavras, devemos escolher entre perfei-
ção e degradação. Essa realidade confirma a característica de ser
"contingente" que acompanha o homem. Por ser contingente, o
homem não goza de toda a perfeição; ele está pendurado entre a
racionalidade e a irracionalidade.
O ser humano não é auto-ssuficiente, não chega ao mundo
pronto, é um ser em permanente construção de sua personalidade.
Por sua qualidade de ser social, precisa das outras pessoas, a relação
com o outro, com o tu, é fundamental para levar adiante a existência
pessoal. O homem não é um ser solitário, é um ser de alteridade,
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 111

sua vida desenvolve-se em comunhão com os outros sujeitos (ou-


tros eus) no mundo. Aqui, explica-se a importância da educação.
A educação é um processo social que possibilita o contato
com todo o patrimônio cultural das gerações anteriores, sendo vi-
tal para o desenvolvimento da personalidade. Durante a vida, a
pessoa permanece aberta a novos desdobramentos e descober-
tas, ganhando qualidades novas. Segundo Hoz (1993), a formação
da personalidade implica um aperfeiçoamento intencional, que
acontece mediante a verdadeira educação, que, por sua vez, im-
pulsiona o processo de personalização, possibilitando o desenvol-
vimento das potencialidades próprias da pessoa.

14. O SUJEITO ABERTO AO MUNDO


A philosofia perennis ou prima philosophia, concordando com
a realidade bio-psíquico-espiritual do indivíduo, explica o processo
de conhecer pela via dedutiva, indo sempre do físico para o meta-
físico. Esse processo está aberto aos novos avanços no caminho da
verdade que, com o tempo, vão se abrindo. Essa filosofia não é ou-
tra coisa senão a via para a apreensão inteligente e real do ser.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Atualmente, há uma retomada desses princípios filosóficos. Neles, apoia-se a es-
cola fenomenológica contemporânea, concretizada por E. Husserl, que arranca
a possibilidade de poder definir o ser, partindo da intuição da essência que está
presente em cada realidade, independentemente das circunstâncias empíricas
que revestem o fato. Para esse pensador, os princípios lógicos supremos não se
referem ao pensar, e, sim, à coisa pensada, ou seja, aos objetos.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Observemos, a seguir, um esquema que mostra como com-


preendemos o mundo. O tomismo está dentro da ciência escolás-
tica que, por sua vez, está apoiada em três graus diferentes de
abstração da realidade:
• Quando a inteligência percebe a realidade material por
meio da experiência sensível, abstrai o ser material (ou

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112 © Antropologia Filosófica

ser móvel, na terminologia escolástica). Pertencem a essa


etapa o conhecimento empírico do ser e os conhecimen-
tos da Filosofia Natural.
• Ultrapassando o ser material da primeira abstração, fica
em evidência a dimensão de quantidade, como, por
exemplo, os conceitos matemáticos.
• Superando toda a materialidade do ser, a inteligência cap-
ta o ser enquanto ser. Essa terceira abstração é a que pos-
sibilita a percepção do bem.

Não podemos pensar no tomismo como um sistema filosófico fe-


chado, terminado. Ele é um sistema dinâmico, pois a inteligência
está continuamente descobrindo novos aspectos do ser.

O sujeito cognoscente e o objeto cognoscível estão ligados


um ao outro, condicionam-se reciprocamente e unem-se pela in-
tencionalidade. Pelos sentidos, conhecemos o objeto por meio de
sua forma acidental (alto, baixo, grande, pequeno, com tal cor, com
tal cheiro). Com os sentidos (vista, ouvido, tato etc.), captamos o
objeto como ele é, sem intermediações ou imagens. Por isso, nes-
sa primeira etapa, fala-se em intuição.
A essência ou forma essencial universal do objeto é apreendi-
da pela inteligência. Esta, por meio dos atos dos sentidos, desvela o
ser (descobre sua verdade; por isso, falamos em percepção do bem).
Esse processo não é intuitivo, mas, sim, abstrativo. Por ser de natu-
reza espiritual, a inteligência pode conhecer o imaterial contido no
objeto e é capaz de captar o ser ou a essência das coisas materiais.
Assim, olhando para o esquema, é fácil perceber que o ho-
mem interage com o mundo por meio de sua constituição bioló-
gica (sentidos, conhecimento intuitivo), psicológica (forma como
chegam as sensações) e espiritual (o processo abstrativo desenvol-
vido pela inteligência).
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 113

Cultura
Sabemos que, onde existe o homem, existe a cultura. Todos
os homens tiveram, têm e terão uma cultura que os diferencia do
meio ambiente.
O homem não é só o sujeito de cultura, é, também, seu ob-
jeto. Ele, por exemplo, não come qualquer coisa, pois, pelo menos
em condições normais, aprende o que deve comer; por isso, entre
uma e outra cultura, os tipos de alimento podem variar. O homem
aprende, ainda, normas morais para poder viver em sociedade,
regras de boa conduta e de comportamento social, ofícios, cultu-
ra etc. A educabilidade é uma exigência ôntica, afinal, nascemos
inacabados, mas potencialmente perfeitos, embora necessitemos
aprender a desenvolver nossas potencialidades.

Homem, ser cultural


O homem é moldado pela cultura. Colocado dessa forma, pare-
ce que todos os atos humanos são produto da cultura, mas não é bem
assim. O homem é um ser que transcende as coisas e, também, a si
mesmo. Ele tem liberdade sobre o fático e é o único ser que não fica
preso no condicionamento biológico, podendo superá-lo. Entretanto,
ele também está situado e faz parte da realidade social e histórica.
O ser humano precisa da contribuição dos outros seres huma-
nos, pois nem sua estrutura biológica nem sua estrutura psicológica
estão preparadas para que ele atue de forma isolada. Lembre-se de
que o homem é, ontologicamente, um ser em comunhão. Em seu
nascimento, chega ao mundo dos homens que o antecederam e, de-
les, recebe como herança o contexto social, no qual vai desenvolver
sua capacidade e tentará alcançar a perfeição.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


O homem espiritual, pela intervenção do entendimento, descobre os fins por que-
rer. O fim principal é o Bem Universal ou Bem Comum. Contudo, mesmo sendo
um ser espiritual, o homem pode não perceber corretamente o Bem Comum,
fixando-se em fins subordinados ou em bens particulares que encontra no curso
de sua vida. Isso acontece porque a vontade é livre e, o juízo, variável.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

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114 © Antropologia Filosófica

15. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar
as questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nesta
unidade, ou seja, a natureza biológica-psicológica-espiritual que
caracteriza o ser humano. Este que é espírito encarnado ou corpo
espiritualizado. Lembrando sempre de que não podemos pensar
no ser humano como matéria, separando, assim, o espírito, por-
que, sem querer reiterar nossas afirmações, somos espírito encar-
nado ou corpos espiritualizados, ou seja: somos uma unidade.
A partir que foi exposto nesta unidade, você pôde perceber
que o conceito de homem não se reduz a um dualismo (corpo e
alma), tampouco a um monismo (corpo=alma).
Poderíamos afirmar resumidamente que: corpo e alma são
unidades irredutíveis – parece que sempre reaparece a ideia de
que espírito é o contrário de matéria. Esse conceito por si só não
serve para nada se a intenção é esclarecer qual é a dimensão espi-
ritual. O homem é uma unidade indissolúvel formada pelo extrato
biológico, psicológico e espiritual. Cada dimensão é um subsiste-
ma do núcleo que compõe a pessoa humana.
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Reflita sobre a seguinte afirmação:
O dualismo é uma concepção que está sempre presente na concepção antro-
pológica.
Assinale a resposta INCORRETA:
a) A posição de Santo Tomás é clara: o homem não pode ser explicado como
a união de duas partes: a orgânica e a espiritual. Para os clássicos, o ser
humano é uma reunião substancial desses dois princípios (um opera em
relação ao outro).
b) Na obra de Tomás de Aquino, fica evidente a importância da unidade es-
sencial do homem. É conhecida a expressão de Tomás de Aquino sobre a
matéria: est principium individuationis, que indica que o que determina a
individualidade no homem é a matéria (totalidade biológica), sendo este
seu constitutivo essencial.
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 115

c) Qualquer forma de dualismo antropológico (como a de Platão ou de Des-


cartes) é refutada pelos investigadores atuais da Antropologia Filosófica.
d) O dualismo é uma concepção que está sempre presente na antropolo-
gia grega. Os filósofos "pitagóricos gregos" (Platão, Aristóteles, Zenão,
no período seguinte Agostinho, os escolásticos etc.) pensavam a alma
separada do corpo. Esta, que era imortal, vinha do céu e caía na Terra
para entrar no corpo, ao qual ficava atada. Por isso, eles buscavam, com
a "liberação do corpo", o "retorno".
2) Gevaert (1995) explica que o termo "espírito" é um termo "complicado" por
ser vago e impreciso. Muitas vezes, expressa um fenômeno vital concreto,
"hálito", e, outras vezes, um princípio exclusivamente humano, "atman",
"pneuma", "spiritus" etc. Sobre esse tema, assinale a resposta INCORRETA.
a) O espírito é a dimensão constitutiva que diferencia o humano do resto
da criação. O espiritual é a dimensão própria do homem. Aristóteles diz
que o espírito que vem de fora é thyrathen.
b) Os pensadores da antropologia filosófica contemporânea, como Scheler,
Mondin e J. Jolif, defendem que o corpo, como o espírito, são sistemas
completos. Ambos, corpo e espírito, são substâncias concretas.
c) São muitos os teólogos que definem o homem como o resultado da imer-
são do espírito na matéria. A maioria defende a ideia que não é imersão
acidental e sim substancial, e, a partir dessa característica ontológica, o
homem é uma pessoa espiritual.
d) A Antropologia Filosófica contemporânea defende como princípio que o
que caracteriza a pessoa espiritual é a capacidade que esta possui para
se distanciar da dimensão psicofísica, esse "sair de si".
3) O homem tem uma natureza que é universal a todos os homens. Entretanto,
ele não é uma realidade estática, pois o homem concreto é um ser dinâmico
que forja sua personalidade na existência. Partindo dessa reflexão, analise as
alternativas seguintes e indique a única que a complementa corretamente.
a) Desde Santo Tomás, os pensadores cristãos defendem que todos os ho-
mens nascem como uma folha em branco, sendo que a sociedade os
modela.
b) Ao ler o conteúdo da unidade, podemos afirmar que existe algo que se
destaca do puramente sensitivo e do anímico: o princípio espiritual, que
é de natureza evolutiva.
c) As características humanas denotam a existência de um Centro Espiritual
ou Alma Espiritual.
4) Viktor E. Frankl (2003) explica o homem como um ser condicionado e afirma
que é o resultado da reunião de vários fatores que respondem a leis – como
a da causalidade, a da semelhança etc.

5) Você considera que o ser humano, para configurar sua personalidade, pre-
cisa das outras pessoas ou que, pelo contrário, por ser espiritual, ele é in-
dependente onticamente e todo o processo é de sua exclusiva responsabi-
lidade?

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116 © Antropologia Filosófica

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) d.

2) b.

3) c.

4) Resposta:
Para configurar sua personalidade, o ser humano precisa do suporte, ou seja,
da cooperação que as outras pessoas proporcionam.

5) Resposta pessoal.

16. CONSIDERAÇÕES
Ao longo desta unidade, levantamos o problema da diversidade
cultural e colocamos, como caminho de explicação, a necessidade de
investigar o homem, que é sujeito no processo da geração da cultura.
A Antropologia Filosófica trabalha com a concepção de que
todos os homens têm a mesma natureza. Então, por que existe
a pluralidade cultural? Os antropólogos culturais, para explicar
esse fato, desenvolveram diferentes teorias. Algumas delas são: o
evolucionismo, o funcionalismo, o estruturalismo etc. Como você
pôde notar, a Antropologia Filosófica focaliza essa realidade a par-
tir do homem como sujeito da cultura.
Assim, nas próximas unidades, vamos continuar a discussão
desses assuntos. Quando você estudar as propriedades essenciais
do ser humano (a liberdade, a historicidade e a dimensão trans-
cendente, com a capacidade intelectual e a vontade livre), anali-
sará por que o homem, como indivíduo, vive num meio humano
sustentado pela cultura, enquanto, como pessoa, distingue-se de
tudo o que não é ele (e de todos).
© U2 - Estrutura do Ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 117

Estudamos ainda que, por trás de toda filosofia, há uma con-


cepção de homem. A visão de homem na história vai desde o ho-
mem como ser de dignidade até o homem como ser de utilidade,
passando por todos os níveis intermediários, como, por exemplo,
homens vivendo em comunhão com o meio e com os outros ho-
mens; homens explorando o meio e vivendo um individualismo
social; e homens sendo explorados sem nenhum controle sobre o
mundo e suas vidas.
A Antropologia Filosófica entende que o homem é uma uni-
dade indissolúvel, um ser que não pode caber em nenhum redu-
cionismo.

17. E-REFERÊNCIAS

Sites pesquisados
SCHELER, M. A situação do homem no cosmos. Diferença essencial entre homem e
animal. Tradução Artur Morão. 2008. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/
scheler_max_dieferenca_entre_homem_e_animal.pdf>. Acesso em: 11 jan. 2012.

18. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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2007.
CABADA, M. La vigencia del amor. Madrid: San Pablo, 1994.
CARVALHO. Introdução à Ética de Espinosa. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1992. v.
2. (Obra completa).
CARBALLO, J. R. Rebelión y futuro. Madrid: Taurus, 1970.
CIRULNIK, B. El amor que nos cura. Barcelona: Gedisa, 2004.
CORETH, E. Metafísica. Buenos Aires: Herder, 1998.
ETCHEBEHERE, P. R. Antropologia filosófica. Una introducción al estudio del hombre y de
lo humano. Buenos Aires: Agape, 2008.
FRANKL V. Psicoterapia e sentido da vida. Fundamentos da Logoterapia e Análise
Existencial. São Paulo: Quadrante, 2003.

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GEVAERT, J. O problema do homem. Salamanca: Sígueme, 1995.


HOZ, V. G. Introducción general a una pedagogía de la persona. Madrid: Rialp, 1993.
HUGON, E. Las veinticuatro tesis tomistas. México: Porrúa, 1974.
HUME, D. Do suicídio e outros textos póstumos. Florianópolis: Nephelibata, 2003.
LUCAS, S. J. Las dimensiones del hombre. Salamanca: Sígueme, 1996.
LOPEZ QUINTAS. El amor humano. Petrópolis: Vozes, 1995.
MONDIN, B. Definição filosófica da pessoa humana. Bauru: Edusc, 1995.
______. Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
QUILES, I. S. J. La persona humana. Buenos Aires: Kraft, 1967.
RABUSKE, E. A. Antropologia filosófica. Petrópolis: Vozes, 2003.
SCHELER. M. El puesto del hombre en el Cosmo. Buenos Aires: Losada, 2003.
______. A posição do homem no cosmos. Tradução e apresentação de Marco Antônio
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SECONDI, P. Philosophia perennes. Atualidade do Pensamento Medieval. Petrópolis:
Vozes, 1992.
SPINOZA, B. Ética demonstrada à maneira dos geometras. 2. ed. Tradução de Tadeu
Thomaz. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
TOMAS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Porto Alegre: Sulina, 1990.
______. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2002.
EAD
Características da
Pessoa Humana,
Constitutivos
Essenciais 3
1. OBJETIVOS
• Identificar os níveis ontológicos do ser humano e desen-
volver uma reflexão sobre as características ou dimensões
centrais da existência.
• Reconhecer a liberdade como um conceito intersubjetivo
e entender a estrutura de relação que é própria do ser
humano.
• Estabelecer debates sobre a importância da relação com
o outro.

2. CONTEÚDOS
• Liberdade da Vontade, característica central da existência
da pessoa humana.
• Dimensão intersubjetiva: alteridade e unicidade.
• Valor e sentido.
120 © Antropologia Filosófica

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Para dar continuidade a seus estudos, é importante que
não fiquem dúvidas para trás. Por isso, sugerimos que, se
necessário, retome os conteúdos vistos até o momento.
2) Para ampliar os conhecimentos sobre um dos temas cen-
trais da unidade, o tema liberdade e sentido existencial,
você pode ler: Psicoterapia e sentido da vida, obra de V.
E. Frankl; A essência do homem, de E. Coreth e O mundo
da pessoa, de Guardini Romano, entre outras obras. As
bases desse princípio você encontra na Summa Theologi-
ca de Tomás de Aquino, Livro I, e na Ética a Nicômaco, de
Aristóteles. Não se esqueça de anotar suas reflexões!
3) Para aprofundar seus conhecimentos sobre a realação
eu–tu, leia a obra de M. Buber, Que é o homem?, que
descreve essa estrutura dialogal e a faz sua principal
tese. Esse livro é uma das obras básicas da Antropologia
Filosófica.
4) A Filosofia de Lévinas também foi sempre um eco em direção ao
outro – a ética Lévinas sempre se reporta ao outro. Para ampliar
seus conhecimentos sobre esse tema, leia de LÉVINAS, Emmanuel,
Ética e infinito. Lisboa: Edições 70, e Entre nós: Ensaios Sobre a
Alteridade. Trad. Pergentino Stefano Pivatto. Petrópolis: Vozes.
5) Ao pesquisar, você não impõe fronteiras em sua aprendi-
zagem e pode construir um conhecimento amplo e pro-
fundo sobre o assunto consultado. Sugerimos, portanto,
que você leia as obras citadas no tópico Referências Bi-
bliográficas.
6) Juan De Sahagun Lucas nasceu em Rollán (Espanha), em
1930. Doutor em Filosofia, filologia e Letras, é professor
da Universidade de Salamanca. Além disso, é autor de
obras fundamentais para o estudo e para o desenvolvi-
mento da Antropologia Filosófica, dentre as quais pode-
mos citar: Alcances Significativos del Lenguage Humano
sobre Dios (1975), Antropologia del Siglo XX (1983), e El
Hombre ¿Quién es? (1988).
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 121

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Sabemos que o homem tem como característica destacar-se do
meio. Como indivíduo, vive num meio humano sustentado pela cul-
tura, porém, como pessoa, distingue-se de tudo o que não é ele (e de
todos). No ser espiritual, podemos destacar duas capacidades princi-
pais: capacidade intelectual e vontade livre. Afirmar que a vontade é
livre no homem equivale a afirmar que ele possui um princípio que lhe
possibilita levar adiante o seu projeto de vida de forma autônoma.

5. CATEGORIAS PARA COMPREENDER O HOMEM


As categorias servem para descrever a estrutura humana,
pertencem ao ser, são ontológicas. Você já estudou as Categorias
Universais do ser? Viu, portanto, que Aristóteles falava em oito
categorias e as definia como predicados, e também explicava que
elas têm um sentido lógico e ontológico.
O filósofo comprometido com o estudo da Antropologia Fi-
losófica, observando o homem na existência e tendo em vista as
categorias universais do ser, destaca as condições universais que
possibilitam as experiências humanas (as categorias). Estas nunca
são estabelecidas a priori nem podem ser produto da experiência;
surgem do contato com as experiências humanas, são princípios
racionais baseados em leis do entendimento.

Alteridade
A categoria alteridade permite descrever uma das dimen-
sões essenciais do ser humano; sua necessária vinculação com os
outros "eus". O homem não é um ser fechado em si mesmo. Se ele
se fecha, desaparece, já que em seu constitutivo o ser humano é
um ser aberto à sociabilidade e a comunidade.
O ser humano necessita de comunicar-se com o outro e tam-
bém de ter contato com o mundo. Sua finitude e sua dificuldade

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122 © Antropologia Filosófica

para compreender a multiplicidade da verdade o obrigam ao diálo-


go ao intercâmbio. Para um homem só, a tarefa de desenvolver as
ciências seria fantástica, como seria fantástico educar a consciên-
cia moral sem uma orientação, sem acompanhamento.
Lévinas alerta para o fato de que a singularidade do outro,
sua liberdade, nunca deve perder-se nem deve ser desrespeitada,
nunca devo pretender dispor do outro:
O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A co-
letividade em que eu digo "tu" ou "nós" não é um plural de "eu".
Eu e tu, não são indivíduos de um conceito comum. Nem a posse,
nem a unidade do número, nem a unidade do conceito me ligam
a outrem [...]. Ausência de pátria comum que faz do Outro – O Es-
trangeiro que o perturba em sua casa. Mas o Estrangeiro quer di-
zer também o livre. Sobre ele não tenho poder, porquanto escapa
ao meu domínio num aspecto essencial, mesmo que eu disponha
dele: é que ele não está inteiramente no meu lugar. Mas eu, que
não tenho conceito comum com o Estrangeiro, sou tal como ele,
sem gênero. Somos o Mesmo e o Outro. A conjunção e não indica
aqui nem adição, nem poder de um termo sobre outro (LÉVINAS,
2008, p. 25-26).

Esse movimento contínuo de intercâmbio, referido no texto


principal, sucede sem que se perca sua individualidade e sem que
se amalgame com o entorno.

Unicidade
Quando você estuda os delineamentos da Antropologia Filo-
sófica, lê, com frequência, definições como esta: a pessoa é "subs-
tância", uma substância concreta que existe em si mesma. O que
significa dizer, pois, que a pessoa é uma substância?
Pode-se dizer que a pessoa é ela mesma quanto mais di-
ferente ela é, quanto mais peculiar em relação aos outros seres
humanos, ou seja, quanto mais indivisa seja e mais forte seja a
presença do seu núcleo espiritual.
Ser pessoa significa ter autonomia racional para atuar de for-
ma independente, ou seja, ser dona de seus atos morais, poder ser
um perante o mundo.
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 123

Portanto, para ser pessoa, o ser precisa:


• Ser um – desde uma perspectiva ontológica.
• Ser único diante dos seres da natureza e das outras pessoas.
Como diziam os escolásticos, a pessoa é: indivisum in se et
divisium a quolibet alio, ou seja, a individualidade ontológica é a
que possibilita a personalidade.
A seguir, leiamos um pouco sobre a intersubjetividade.

Informação Complementar –––––––––––––––––––––––––––––


M. Buber (1976), em Que é o homem?, descreve um dos fenômenos mais impor-
tantes do homem; a relação com o outro, que ele chama intersubjetividade. Esse
fenômeno sempre é destacado pelos pensadores da filosofia personalista e feno-
menológica. A intersubjetividade é uma experiência comum a todos os homens,
e Nunzio Galantino (2003), na obra Dizer o homem hoje, a denomina experiência
originária. A reciprocidade está relacionada com a dimensão transcendente, é
uma orientação ética para o tu. Nasce da dimensão ontológica e é uma categoria
constitutiva da pessoa. Encontra sua explicação na relação (beziehung), no en-
contro com o outro (begesnung). O eu não existe em si mesmo, como pretendiam
na modernidade, o eu sempre está em relação com um tu e, também, com o "ele"
(as coisas do mundo). O que provoca a alteridade é a presença do espírito que
é originária do homem, cada um existe no mundo em relação ao tu, o eu está
aberto ao tu. O eu, ontologicamente irredutível, constitui-se na relação com o tu.
O homem precisa do tu. O homem forma parte da sociedade como pessoa, o ho-
mem, mesmo dentro da sociedade, é livre para perseguir sua plenitude e a socie-
dade, como conjunto dos homens, é um meio para esse aperfeiçoamento. Numa
descrição antropológica do ser homem, então, é possível afirmar que: por possuir
espírito, é um "eu", tem consciência de si próprio, se conhece e se sabe diferente
do tu e do ele, pelo espírito tem consciência de ser um sujeito e que deve estar
no mundo compartindo sua existência com outros sujeitos; é um indivíduo, mas
forma parte de uma sociedade que é a soma das individualidades.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A esse respeito, podemos, ainda, dizer que: para a Antro-
pologia Filosófica, essas duas categorias (unicidade e alteridade)
são fundamentais para entender o homem. Pelo comportamento,
deduz-se que a estrutura dialogal é constitutiva do ser humano,
com base numa disposição espiritual. Alguns autores descrevem
outras categorias. J. Y. Jolif (1969, p. 149-154), por exemplo, des-
creve cinco categorias ou estruturas formais para conhecer o ser
humano no nível filosófico. São estas:

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124 © Antropologia Filosófica

1) Alteridade.
2) Diferenciação.
3) Dialética.
4) Metafísica.
5) Totalidade.
O importante na hora de pensar o ser humano é que ele
ama, fala, troca ideias, projetos, é solidário e "dialogal" na existên-
cia com os outros "eus" e coisas do mundo.
Essa concepção de homem é contrária à ideia de ser indivi-
dualista, que o neoliberalismo e linhas de pensamento positivista
defendem hoje. A estrutura dialogal do homem é uma condição
necessária da existência humana, a própria existência vem acom-
panhada da compreensão do outro como ex-istente, como sujeito.
A concepção individualista está tão arraigada no pensamento que
o próprio Heidegger, ícone existencialista, considera que o eu não
está para o tu e sim com seu próprio ser, o do Dasein (HEIDEGGER,
2001). O outro não aparece em sua antropologia em relação dialo-
gal. Quando diz que o ser-no-mundo é um ser com os outros, não
enxerga o outro como seu próximo e sim como outro.

Sobre esses temas, sugerimos a leitura da seguinte obra: Antropo-


logia Filosófica, de Vaz H C L, livro II, cap. II.

6. LIBERDADE
Por nossa condição espiritual, somos seres dotados de liberdade.
[...] a propriedade de um ser espiritual é sua independência, liber-
dade ou autonomia essencial perante os contratempos e pressão
do orgânico da vida [...]. Tal ser espiritual não está limitado pelos
impulsos e o meio, é aberto ao mundo (SAHAGUN 996, p. 146).

A liberdade é uma característica central da existência: supõe


que a pessoa, ainda que ligada ao mundo pelo corpo, não está con-
dicionada, como o animal, pelos impulsos. Não depende exclusi-
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 125

vamente das pulsões, do patrimônio genético, do meio social, das


características históricas. Em outras palavras, não está determina-
da pelas forças da natureza. Como diz V. Frankl (1995, p. 111): "O
homem é o ser especial que possui contínua liberdade de decisão,
apesar de todos os vínculos". As pulsões existem, mas de forma
"pensada"; a genética está presente, mas de forma assumida.
A pessoa, por ser espiritual, atua sabendo o que está fazen-
do e, especialmente, podendo concordar ou não segundo o juízo
da razão.
A liberdade da vontade é a possibilidade de construir-se de
que o homem dispõe; é uma propriedade específica, pertence ao
próprio ser. Não é uma característica adquirida, social; é consti-
tutiva do ser homem; nunca é uma imposição, é por si mesma; o
homem é livre porque não pode ser de outra forma ou não seria
um ser humano. Como diz Sartre (2009, p. 42): "O homem está
condenado a ser livre, condenado porque não se criou a si próprio
e no entanto é livre pelo fato de que está no mundo".
Pela liberdade, o homem pode planificar e executar a idealiza-
ção de sua vida. Ninguém, nem o próprio Deus, pode posicionar-se
no lugar do homem e decidir por ele.
Na liberdade, está radicada a possibilidade de realização ou
de fracasso do projeto pessoal. A pessoa, pela liberdade, sente-se
capaz do progresso, da realização do humanismo, de ser mais do
que ela sempre foi. Mesmo depois do mais terrível fracasso, da
mais completa alienação, continuamos a ter uma consciência livre
palpitando dentro de nós.
Mesmo ante tal cenário de onipotência e império, variados
são os impedimentos da liberdade: há os impedimentos psíqui-
cos e, também, a possibilidade de que indivíduos que não estejam
enfermos careçam de liberdade – são aqueles que se deixaram
alienar. Por que sucede isso? Porque, em qualquer desses casos,
o espírito não consegue expressar-se, fica impedido de se atuali-
zar. Octavio Dirisi (1985) explica que a liberdade no sentido estrito

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126 © Antropologia Filosófica

consiste no autodomínio da vontade sobre sua própria atividade,


em poder querer ou não alguma coisa, em poder escolher entre
esta ou outra coisa.
O termo liberdade acompanha o termo homem, é uma con-
dição considerada por praticamente todas as correntes de pensa-
dores que estudam o homem:
• Os kantianos veem na liberdade a ideia suprema para al-
cançar a perfeição. Concebem-na iluminada pelos ditados
da razão prática. Nessa concepção, a vontade fica subme-
tida à moral decorrente dessa razão prática, e os princípios
da razão prática devem ser de plena realização, sem espe-
rar nenhuma recompensa. Esse momento é reconhecido
pelo pensamento kantiano como "de total liberdade".
• Os materialistas são rígidos ao extremo na defesa da liber-
dade do homem. Nesse ponto, coincidem com os existen-
cialistas, que são ainda mais radicais na hora de conceber
a liberdade. Sartre, que, olhando Nietzsche, adere à não
existência de valores absolutos, vê na própria liberdade o
fundamento para o sentido e o valor. O ponto máximo da
liberdade é, para o existencialismo, possibilitar a liberdade
dos demais. Para Sartre, os valores são projetos que o ho-
mem propõe baseados no que ele quer ser sem poder pen-
sar que exista um futuro e sem necessidade de um prin-
cípio caracterizador. Diferentemente dos materialistas, ele
rejeita qualquer princípio naturalista. Para ele, o homem
transcende as estruturas naturais e as verdades anteriores,
tudo deve ser produto de sua liberdade (SARTRE, 2003).
As posturas mais radicais sobre a ontologia da liberdade,
como a sartreana, argumentam: não existem determinismos no
homem, sempre é possível agir de outra maneira.
Na perspectiva antropológica, Sartre não crê em determinis-
mo teológico, biológico ou social. Como escreve na obra O exis-
tencialismo é um humanismo, que contém as principais ideias da
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 127

conferência que deu em Paris em 20 de outubro de 1945: nela


expressa as ideias de que nem Deus, nem a natureza, nem a so-
ciedade determina absolutamente nossas possibilidades, predis-
pomos nossa conduta na mediação da liberdade (SARTRE, 2009,
ps. 31,36, 43, 55, 77). Esse autor considera que o homem é um ser
"para-si", ou seja, que não tem uma essência definida antecipada-
mente, nunca é resultado de uma ideia preexistente; o homem é
um fazer-se contínuo, "Somos o que temos querido ser e sempre
poderemos deixar de ser o que somos" (2009, p. 61).
Segundo Sartre, só o homem é o responsável pelo que é.
Essa responsabilidade não está restrita ao âmbito individual, e,
sim, corresponde à totalidade da humanidade. Quando decidimos
pelo casamento, aceitamos seguir a monogamia. Sempre que ade-
rimos a uma ideia política ou a um ideal, estamos tomando partido
de uma forma de humanidade. Sartre explica: "Se Deus não existe,
não há valores ou ordens que modelem nossa conduta. Estamos
sós, o homem é o ser condenado a ser livre" (2009, p. 42-43). No
mundo (na existência), o homem é responsável por tudo o que faz
ou deixa de fazer; ele é o único responsável por suas paixões, pela
moral que adota. "Não há signos no mundo que digam ou indi-
quem o que devemos fazer" (2009, p. 50).
Para esse pensador, os fins que perseguimos não são dados
nem do exterior nem do interior, não existe nenhuma suposta na-
tureza, é na liberdade que cada um se escolhe; cada "Para-si" tem
a liberdade de fazer de si o que quiser.
[...] o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não
se criou a si próprio e no entanto é livre pelo fato de estar no mun-
do. Assim o homem começa a existir para logo, na sua existência,
definir-se (2009, p. 42-43).

O primeiro princípio do existencialismo sartreano é: o ho-


mem é o único ser que pode ser tal como ele se quer. Segundo o
autor como não temos uma natureza ou essência, não estamos de-
terminados; como não escolhemos ser livres, não somos livres de
deixar de ser livres (2009, p. 60-63). A liberdade é tão importante

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128 © Antropologia Filosófica

nesta antropologia porque ela é o fundamento de todos os valo-


res. Também é princípio de responsabilidade: "Querer a liberdade
é respeitar a liberdade do outro" (SARTRE, 2009, p. 77). O homem
de boa fé procura a liberdade pela liberdade.
Mesmo defendendo que o homem deve obrar de forma hu-
mana em relação à humanidade, que está representada por ele
próprio e pelos outros homens, para executar sua liberdade, essa
"liberdade" proposta por Sartre é totalmente autônoma. Nesse
ponto, é criticável, já que a verdadeira liberdade não existe se não
está orientada à perfeição, à humanização e à plenitude do próprio
ser humano – caso contrário, pode ser uma "libertação". Liberda-
de está sempre acompanhada pelo vocábulo "responsabilidade".
A seguir, um excerto de Sartre, veja como o filósofo francês inter-
relaciona a liberdade e a responsabilidade pela liberdade.

Existencialismo é um Humanismo –––––––––––––––––––––––


Dostoievski escreveu: "Se Deus não existisse, tudo seria permitido". Eis o ponto
de partida do conceito de liberdade sustentado pelo existencialismo. De fato, tudo
é permitido se Deus não existe, e, por conseguinte, mas o homem está desampa-
rado porque não encontra nele próprio nem fora dela nada a que se agarrar. Para
começar, não encontra desculpas. Com efeito, se a existência precede a essên-
cia, nada poderá jamais ser explicado por referência a uma natureza humana
dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem
é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontramos, valores ou
ordens prontas que possam legitimar a nossa conduta. Assim, não teremos nem
atrás de nós, nem na nossa frente, o reino luminoso dos valores transcendentes,
não podemos apelar a nenhuma justificativa e nenhuma desculpa. Estamos sós,
sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que o homem está condenado
a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é
livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz. O
existencialismo não acredita no poder da paixão. Ele jamais admitirá que uma
bela paixão é uma corrente devastadora que conduz o homem, fatalmente, a
determinados atos, e que, conseqüentemente, é uma desculpa. Ele considera
que o homem é responsável por sua paixão. O existencialista não pensará nun-
ca, também, que o homem pode conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o
oriente no mundo, pois considera que é o próprio homem quem decifra o sinal
como bem entende. Pensa, portanto, que o homem, sem apoio e sem ajuda, está
condenado a inventar o homem a cada instante. Ponge escreveu, num belíssimo
artigo: "O homem é o futuro do homem" (SARTRE, 2011, p. 6).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Vamos continuar analisando o que é liberdade para enten-
der plenamente essa passagem.
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 129

Liberdade para e liberdade de


Não podemos falar em "liberdade total", já que todo ato
requer um limite, mesmo assim a liberdade é aquela realidade
que permite que o homem não sucumba ante o destino genético,
psicológico, biológico, social ou histórico. Não há liberdade sem
condição ética, não há liberdade sem responsabilidade. Já que a
liberdade, por ser da pessoa, supõe sempre uma dimensão inter-
pessoal, o homem é sempre um eu no mundo com outros "eus",
situação essa que exige reciprocidade de condutas, porque a liber-
dade supõe um sentido.
Pela liberdade, dimensão essencial, o homem é considerado
um sujeito de responsabilidades e direitos. Caso contrário, seria
uma coisa dirigida. Mesmo assim, você é livre: pode ser responsá-
vel ou não.
A liberdade é condição do ser racional e com vontade. O ser
humano é o único com possibilidade de agir ou não agir, de fazer
isto ou aquilo, e, portanto, de praticar atos pensados, deliberados.
De assumir responsabilidades. Justamente na dinâmica entre liber-
dade e responsabilidade é que o ser humano possui a capacidade
de mudar, de transformar sua vida e sua forma de ver o mundo.
Liberdade não pode significar indeterminismo, como diz
Bento XVI na homilia na festa do Corpo de Deus, 22.5.2008:
Deus criou-nos livres, mas não nos deixou sós: Ele mesmo se fez
'caminho' e veio caminhar conosco, para que a nossa liberdade te-
nha também um critério para discernir a estrada certa para percor-
rer (BENTO XVI, 2008)

O termo liberdade na sociedade atual tem correspondência


com a ideia de liberum arbitrium ou livre arbítrio – termo utilizado
pelos pensadores antigos do cristianismo que conforma um dos
pontos fundamentais da teologia cristã.
Somos livres para atuar. Porém, a liberdade deve ser vista
como um caminho para progredir em direção à plena humanida-
de, o que possibilita uma sociedade justa e equitativa. Desse prin-

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130 © Antropologia Filosófica

cípio, surge o conceito de "Liberdade para", que corresponde ao


ideal de poder assumir a própria responsabilidade para conceber
uma sociedade justa, regida por leis justas, sem limitações para as
potencialidades que são próprias da pessoa e concordantes com a
ordem do ser.
Não é sempre que o homem pode exercer, de forma autô-
noma, sua "liberdade para". Historicamente, debate-se entre alie-
nação e subjugação. Muitas vezes, na história, o homem somente
teve a possibilidade de vivenciar uma liberdade pessoal de forma
privada, interior, sem poder estendê-la no campo das realizações
humanas, que é o seio da sociedade.
A "liberdade para" não pode ser interpretada como "liberda-
de de", que é sinônimo de uma libertação, que não possui o mesmo
suporte de sentido. Nem como a "experiência de liberdade psico-
lógica" que experimentamos quando escolhemos entre diferentes
marcas, diversos estabelecimentos, ou profissionais. A "liberdade
de" nos abre para o mundo, mas se a interpretamos como liberdade
completa ela pode nos levar a executar, de forma arbitrária, a mo-
ral individual. Esse foi o caso da maioria dos ditadores do mundo,
que, longe de dotar de sentido a existência de quem a exerce ou a
sofre, altera a ordem moral e provoca consequências existenciais
totalmente negativas pela óptica humana. A "liberdade para" é a
ferramenta de que o homem dispõe para forjar seu destino, nunca é
condição para estabelecer um mundo arbitrário (FRANKL, 1978).
Para o cristianismo, o homem aperfeiçoa-se atuando porque
é livre. Agostinho de Hipona diferencia entre libertas (liberdade
radical) e liberum arbitrium (que significa liberdade da vontade),
tendo iniciado desde essa perspectiva o caminho para o estudo da
liberdade psicológica e a liberdade de consciência que é própria do
homem. Tomás de Aquino baseia a liberdade na racionalidade, ou
seja, em decidir ou não agir de uma determinada forma, depen-
dendo da apreciação. "A raiz de toda liberdade está constituída na
racionalidade" (LUCAS, 1996, p. 204).
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 131

Para uma melhor compreensão do tema aqui abordado, va-


mos analisar o que Juan de Sahagun Lucas, na obra Las Dimensiones
del Hombre, escreve sobre liberdade e indeterminação.
Juan de Sahagun Lucas estuda a liberdade em três aspectos:
• Fenomenológico.
• Metafísico.
• Antropológico.
Na dimensão fenomenológica, diferenciam-se dois concei-
tos parecidos, mas de características diferentes: indeterminação
e liberdade.
"Indeterminação" refere-se a um conceito negativo de não
dependência teleológica, não necessidade. Cria uma sensação psi-
cológica de liberdade, mas não liberta.
O segundo termo (liberdade) é um conceito positivo que sig-
nifica viver as potencialidades de forma consciente e assumida.
Atuar com liberdade é fazer sabendo o que está sendo feito e para
que está sendo feito.
O conceito de liberdade mostra-se no exercício da vontade
durante o percurso da vida pessoal. O homem, complementa Juan
de Sahagun Lucas, exerce sua liberdade como existente quando
realiza, a partir da consciência, ações sem a obrigatoriedade de
agentes externos (LUCAS, 1996). Isso concorda com o conceito de
liberdade presente na obra Ética, de Spinoza. Sobre a liberdade,
ele afirma:
Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de
sua natureza e que por si só é determinada a agir. E diz-se necessá-
ria, ou melhor, coagida, aquela coisa que é determinada por outra
a existir e a operar de maneira definida e determinada (Ética, Pri-
meira parte, Def. 7).

Essa afirmação leva em conta que o homem é um "ser cor-


porizado", que está no mundo e, portanto, nasce com determinis-
mos. Que não pode prescindir de contribuição e participação do
outro; pensemos que todos nós precisamos de um guia e de bons

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132 © Antropologia Filosófica

exemplos no campo espiritual. Essas situações existenciais não re-


presentam uma coerção do nosso ser livre.
Liberdade leva a ter dignidade, ambas são constitutivos essen-
ciais da pessoa humana. O homem, pela dimensão espiritual, é livre e
pode sobrepor-se a todas as situações de determinismo, situar-se por
cima delas e atuar em relação a cada uma, mas o homem não está li-
vre dos condicionamentos do mundo, é livre para tomar uma posição
diante deles e, nesse ponto e escolha, radica sua responsabilidade.

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
Porque estamos no mundo e porque realizamos nosso projeto pessoal nele so-
mos movimentados por impulsos que, segundo Jung (2005), são produto de mi-
lhões de anos de evolução. Baseado nesse postulado, esse psicólogo descreve
o problema do "inconsciente coletivo", o que define como "o sedimento da expe-
riência universal de todos os tempos, é portanto uma imagem de mundo que se
formou há muitos anos (eocenos)". Imagens depositadas no cérebro sobre dife-
rentes acontecimentos psíquicos nos impulsionam a ter prejuízos, medos e, até,
alguma forma de angústia. Por outro lado, somos motivados por sentimentos e
paixões que, muitas vezes, desafiam o pensamento lógico, a razão. Em algumas
pessoas, esses componentes psíquicos impossibilitam o desenvolvimento e não
lhes permite atuar livremente. Nessa mesma ordem estão as necessidades cor-
porais que o homem precisa satisfazer para sobreviver. Mas esse conjunto de ca-
racterísticas é só uma pequena parcela das motivações humanas, a pessoa não
se aquieta como o felino depois de ter comido e bebido, suas necessidades são
essas e outras, o objeto convida constantemente o homem a descobrir coisas
novas, os bens particulares estão sempre despertando algum grau de interesse,
um livro, um poema, a visão da pessoa amada, compaixão, autossuperação,
são o combustível que impulsionam a vontade em direção a um objetivo. Tam-
bém não é uma verdade absoluta que todo objeto externo leve o homem para o
caminho da constante superação. Na sociedade tecnológica contemporânea a
pessoa é estimulada ao consumo, à voracidade, ao sexo, ao individualismo, a ter
e a possuir. Esses estímulos são veiculados pelos meios de difusão, TV, revistas,
cinema etc., são provocados pela propaganda e promovem uma atitude passiva,
levam à massificação, à perda da individualidade etc., desembocam em estados
de ânimo que têm como consequência o tédio, a falta de sentido e, como diz V.
Frankl (1995, p. 89-119), acabam em crises noéticas (existenciais), porque esses
bens não são o bem que promove o sentido verdadeiro, são realizações passa-
geiras e alheias à nossa natureza. O homem "normal", pelo poder de oposição
do espírito, pode tomar uma atitude porque, como diz Hartmann (apud. Frankl,
1995), a liberdade do homem é uma liberdade apesar da dependência.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Sobre esse tema, sugerimos a leitura da obra: Antropologia Filosó-


fica, de E Rebuske, cap. III.
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 133

Liberdade e sentido existencial


O que dá sentido à existência é a capacidade espiritual que
possibilita lutar por uma causa nobre, um ideal, uma ilusão. Esse
movimento de sentido tem relação com a "liberdade para".
Podemos, em outras palavras, assim entender:
• O homem é livre para o bem, para a verdade, para concre-
tizar suas realizações dentro de um projeto de vida, esse é
o caminho que liberta.
• Existe no homem uma direção para o bem, para os valores,
para o sentido, e o homem é livre para segui-la ou não.
Observando o animal, vemos que ele está determinado por
leis naturais, que vão das muito rígidas até as mais adap-
táveis. Já o ser humano não tem limites infranqueáveis, é
capaz até de imolar-se por um ideal de liberdade.
A liberdade é um constitutivo antropológico da pessoa, é ante-
rior à ação. Como a pessoa tem a capacidade de ordem ontológica de
tomar as decisões desde o centro do ser, continuará tendo autonomia
ainda carecendo de meios para exercer fisicamente sua liberdade. So-
mente o homem, ser de liberdade, pode transcender ao âmbito do
físico, das pulsões, do medo, do círculo fechado do egocentrismo.

7. HISTORICIDADE
Você percebeu por que o ser humano é diferente dos ou-
tros seres da natureza? Seu comportamento é outro. Enquanto os
animais se ajustam ao conjunto da natureza, o ser humano sente
necessidade de construir acima do natural. Para satisfazer essa ne-
cessidade, ele parte da cultura que herda de seus antecessores.
O homem é o ser que sempre está a caminho, entende sua
existência em termos de "progresso".
Com base nessa particularidade humana, a Antropologia
Filosófica conclui que o homem atua assumindo o passado para

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134 © Antropologia Filosófica

construir o presente, tendo em vista uma realização futura. A esse


processo de tempo humano, os antropólogos denominam histori-
cidade (LUCAS, 1996, p. 219). A historicidade é uma propriedade
humana que:
Depende da liberdade, da comunidade humana e da cultura.
É dinâmica, por estar motivada pela dimensão de liberdade.
Abarca o passado, o presente e o porvir.
Tem um significado oposto ao historicismo.
Precisa partir – essa historicidade da existência – do humanismo
herdado do passado para se dirigir a um futuro que esteja aberto
à liberdade.

8. COMUNICAÇÃO
O homem é um ser no mundo, possui um corpo biológico
que o sujeita ao mundo físico e, por ser no mundo, precisa das
coisas e das outras pessoas para realizar seu projeto pessoal.
No mundo, o "eu" está sempre em comunicação com os ou-
tros "eus", seu corpo serve para se comunicar. A comunicação é
a característica que possibilita ao homem atravessar com êxito a
existência.
O homem é um ser que recebe e transmite cultura, informa-
ções, sentimentos, direção ética etc.

Palavra
O homem expressa-se por ser um ser social, porque vive
numa comunidade. O homem é constitutivamente um ser de lin-
guagem.
Na palavra utilizada, estão comprometidas tanto a dimen-
são espiritual como a física, porque a palavra é a exteriorização do
conceito ou da ideia. Não chegaria a ser palavra propriamente se
não existisse um pensamento que a legitimasse e uma condição
física que a divulgasse.
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 135

Homem: ser social


O homem não é um ser autossuficiente: da mesma forma
que necessita dos elementos que lhe fornece a natureza para po-
der sobreviver, também precisa das outras pessoas, do próximo.
A personalidade do homem é forjada pela existência que desen-
volve no mundo juntamente com outros "eus" ou sujeitos (em suas rela-
ções, é amado e ama, troca ou compartilha pensamentos e projetos).
Como explica Lévinas (1980) em Totalidade e infinito, o outro
demanda uma conduta ética. A simples existência do outro exige
uma resposta; não uma resposta simplesmente intelectual, uma
resposta que brote da orientação ontológica do ser.
Para compreender melhor esse tema, definamos o que é o
outro para nós:
1) O outro nunca é um ser indiferente, é um ser que cha-
ma, exige um comportamento ético.
2) O reconhecimento do outro é de caráter objetivo, o ou-
tro não é um "amigo invisível".
3) A acolhida do outro não está dentro do universo daquilo
que é construído na cultura como algo aprendido e sim
como algo dado e constitutivo. É uma exigência interior
que se projeta numa dimensão transcendente.
4) Por meio do outro, descobrimos o sentido último por
nos transportar à relação com o divino, numa dimensão
transcendente.
A relação pessoal é fundamental na constituição da pessoa hu-
mana, que possui como constitutivo a "alteridade". Isso implica que
o homem nunca está sozinho, que é um "ser-com-os-outros"; sua
existência pessoal sempre está orientada aos outros, a existência no
mundo sempre é uma "coexistência". M. Buber (1976) explica que até
quando o homem se encontra só, a dimensão dialogal continua por
ser essa de caráter transcendental.
O ser humano existe como um "eu" capaz de autocompre-
ender-se, autodeterminar-se, o que o faz único e irrepetível, ou

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seja, pessoa. Em nenhum caso, a pessoa pode ser instrumentaliza-


da para algum fim que seja alheio à sua natureza de desenvolver
sua personalidade em liberdade. A sociedade neoliberal reduz o
ser humano às funções de produção e consumo, submetendo-o a
projetos de caráter econômico em nome do progresso.
É verdade que o progresso tecnológico trouxe grandes bene-
fícios para a humanidade, mas, como diz Jung Mo Sung:
Não vivemos mais em uma civilização em que se trabalha para
viver, onde as questões econômicas – como consumo, trabalho e
acumulação de bens – estavam subordinadas a viver bem; mas em
uma civilização onde devemos trabalhar para ganhar mais dinheiro
e consumir mais, e o viver bem foi identificado com o sucesso pro-
fissional ou a capacidade de consumo (2007, p. 101).

A liberdade individual está em perigo porque, como diz


Frankl, a liberdade de resposta ante cada situação particular con-
fere ao homem a condição de ser único e irrepetível:
A vida humana não se apresenta como uma obra acabada, mas
como um projeto a ser realizado. Toda pessoa humana representa
algo único algo que não se repete. Cada missão concreta de um ho-
mem depende relativamente desse "caráter de algo único", dessa
irrepetibilidade. É por isso que um homem só pode ter, em cada
momento, uma missão única, e é assim que essa peculiaridade de
que é única comunica a tal missão o caráter de absoluto (FRANKL,
2003, p.75).

A pessoa, um fim em si mesma


"Eu penso que a cultura do consumo e a ideologia neoliberal
estabelecem unilateralmente o parâmetro para o sentido da vida
na nossa sociedade". Com essa frase, Jung Mo Sung (2007, p. 120)
evidencia um dos maiores problemas que está acontecendo com a
organização social marcada pela forma de produção neoliberal: a
redução do ser humano à condição de coisa. A sociedade atual está
caracterizada pelos grandes progressos no campo da tecnologia, da
planificação, da produção e da comunicação. Essa nova realidade
trouxe grandes benefícios para a humanidade, mas também gerou
importantes mudanças nas relações interpessoais. A vasta produção
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 137

de objetos oferecidos ao consumo junto com o consumo exacerba-


do de bens (necessários e supérfluos) de informações e de serviços
levou as pessoas a adotarem novas formas de pensar, sentir e agir.
Assim foram perdendo os grandes ideais que caracteriza-
vam a modernidade (Deus, estado, sociedade, família, igualdade,
fraternidade etc.). O que ficou no lugar foi a ideia de que tudo é
transitório e mediato. Hoje nos toca viver num mundo de valores
tumultuados, onde o consumo, o lucro (a qualquer custo) e o indi-
vidualismo trouxeram uma crise de valores e colocaram em risco
a autoconsciência e a autodeterminação que definem que o ser
humano seja pessoa. Isso nos leva a esquecer de um dos alicerces
do humanismo: a pessoa é sujeito, centro e fim da ação humana.
A seguir, apresentamos alguns excertos de pensadores que
analisam o problema do homem ante a pressão dos mercados:

A pressão dos mercados–––––––––––––––––––––––––––––––


O mercado de trabalho é um dos muitos mercados de produtos em que se escre-
vem as vidas dos indivíduos; o preço de mercado da denominada "mão-de-obra" é
apenas um dos muitos que precisam ser acompanhados, observados e calculados
nas atividades da vida individual. Mas em todos os mercados valem as mesmas
regras.
Primeira: o destino final de toda mercadoria colocada à venda é ser consumido
por compradores.
Segunda: os compradores desejam obter mercadorias para consumo se, apenas
se, vão ser consumidas para algo que sirva para satisfazer seus desejos.
Terceira: o preço que o potencial consumidor em busca de satisfação está dis-
posto a pagar dependerá da credibilidade da promessa de satisfazer seus dese-
jos e da intensidade desses desejos.
Os encontros dos potenciais consumidores com os potenciais objetos de consu-
mo tendem a tornar as principais unidades na rede peculiar de interações huma-
nas conhecidas, como sociedade de consumidores. Ou melhor, o ambiente exis-
tencial que se tornou conhecido como "sociedade de consumidores" se distingue
por sua reconstrução das relações humanas a partir do padrão, e à semelhança,
das relações entre os consumidores e o objeto do consumo. Esse feito notável
foi alcançado mediante a anexação e colonização, pelos mercados de consumo,
do espaço que entende entre os indivíduos – esse espaço em que se estabele-
cem as ligações que conectam os seres humanos e se erguem as cercas que
os separam.
Numa enorme distorção e perversão da verdadeira substância da revolução con-
sumista, a sociedade de consumidores é com muita frequência representada como
se estivesse centralizada em torno das relações entre consumidor, firmemente es-

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tabelecido na condição de sujeito cartesiano, e a mercadoria, designada para o


papel do objeto cartesiano, ainda que nessas representações o centro de gravi-
dade do encontro sujeito-objeto seja transferido, de forma decisiva, da área da
contemplação para a esfera da atividade. Quando se trata de atividade o sujeito
cartesiano (pensante, que percebe, examina, compara, calcula, atribui relevância e
torna inteligível) se depara – tal como ocorreu durante a contemplação – com uma
multiplicidade de objetos espaciais (de percepção, exame, comparação, cálculo,
atribuição de relevância, compreensão), mas agora também com a tarefa de lidar
com eles: movimentá-los, apropriar-se deles, usá-los, descartá-los.
O grau de soberania em geral atribuído ao sujeito para narrar a atividade de con-
sumo é questionado e posto em dúvida de modo incessante [...].
Na sociedade de consumidores ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar
mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, res-
suscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas exigidas de
uma mercadoria vendável. A "subjetividade" do sujeito, e a maior parte de aquilo
que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentrar-se num esforço sem
fim para ela própria se tornar, e permanecer uma mercadoria vendável. A caracterís-
tica mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente
disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em mercadoria; ou
antes, sua dissolução no mar de mercadorias em que, para citar aquela que talvez
seja a mais citada entre muitas sugestões citáveis de Georg Simmel, os diferentes
significados das coisas, "é portanto as próprias coisas, são vivenciados como ima-
teriais", aparecendo "num tom uniformemente monótono e cinzento" – enquanto
tudo "flutua com igual gravidade específica na corrente constante do dinheiro". A
tarefa dos consumidores. E o principal motivo que os estimula a se engajar numa in-
cessante atividade de consumo, é sair dessa invisibilidade é imaterialidade cinzenta
e monótona, destacando-se da massa de objetos indistinguíveis "que flutuam com
igual 'gravidade específica' e assim captar o olhar dos consumidores".
[...] Escrevendo de dentro da incipiente sociedade de produtores, Karl Marx cen-
surou os economistas da época pela falácia do "fetichismo de mercado": O hábito
de, por ação ou omissão, ignorar ou esconder a interação humana por trás do
movimento das mercadorias. Como se estas, por conta própria, travassem rela-
ções entre si a despeito da mediação humana. A descoberta da compra e venda
da capacidade de trabalho como a essência das "relações industriais" ocultas no
fenômeno da "circulação de mercadorias", insistiu Marx, foi tão chocante quanto
revolucionária: um primeiro passo rumo à restauração da substância humana na
realidade cada vez mais desumanizada da exploração capitalista.
Um pouco mais tarde, Karl Polanyi abriria outro buraco na ilusão provocada pelo
fetichismo da mercadoria: sim, diria ele, a capacidade de trabalho era vendida e
comprada como se fosse uma mercadoria como outra qualquer, mas não, insis-
tiria Polanyi, a capacidade de trabalho não era nem poderia ser uma mercadoria
"como" qualquer outra. A impressão de que o trabalho era pura e simplesmente
uma mercadoria só poderia ser uma grande mistificação do verdadeiro estado
das coisas, já que "a capacidade de trabalho" não pode ser comparada nem
vendida em separado dos seus portadores. De maneira distinta de outras merca-
dorias, os compradores não podem levar a sua compra para casa. O que com-
praram não se torna sua propriedade exclusiva e incondicional, e eles não estão
livres para utere et abutere (usar e abusar) dela à vontade, como estão no caso
de outras aquisições. A transação que parece "apenas comercial" (recordemos
a queixa de Thomas Carlyle no início do século XX, de que relações humanas
multifacetadas tinham sido reduzidas a um mero "nexo financeiro") inevitavel-
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mente liga portadores e compradores num vínculo mútuo e numa interdependên-


cia estreita. No mercado de trabalho, um relacionamento humano nasce de cada
transação comercial; cada contrato de trabalho é outra refutação do fetichismo
da mercadoria, e na sequência de cada transação logo aparecem provas de sua
falsidade, assim como da ilusão ou auto-ilusão subseqüente.
Se foi o destino do fetichismo da mercadoria ocultar das vistas a substância dema-
siado humana da sociedade de produtores, é papel do fetichismo da subjetividade
ocultar a realidade demasiado comodificada da sociedade de consumidores.
A "subjetividade" numa sociedade de consumidores, assim como as "mercado-
rias" numa sociedade de produtores, é (para usar o oportuno conceito de Bruno
Latour) um fetiche – um produto profundamente humano elevado à categoria
de autoridade sobre-humano mediante o esquecimento ou a condenação à ir-
relevância de suas origens demasiado humanas, juntamente com o conjunto de
ações humanas que levaram ao aparecimento e que foram condição sine qua
non para que isso ocorresse. No caso da mercadoria na sociedade de produto-
res, foi o ato de comprar e vender sua capacidade de trabalho que, ao dotá-lo de
um valor de mercado, transformou o produto do trabalho numa mercadoria – de
uma forma não visível (e sendo oculta) na aparência de uma interação autôno-
ma de mercadorias. No caso da subjetividade na sociedade de consumidores,
é a sua vez de comprar e vender os símbolos empregados na construção da
identidade – a expressão supostamente pública do "self" que na verdade é o
"simulacro" de Jean Baudrillard, colocando a "representação" no lugar daquilo
que ela deveria representar –, a serem eliminados da aparência do produto final
(BAUMAN, 2008, p. 18-24)
Eu penso que a cultura do consumo e a ideologia neoliberal estabelecem unila-
teralmente o parâmetro para o sentido da vida na nossa sociedade. Não vivemos
mais em uma civilização em que se trabalha para viver, onde as questões econô-
micas – como consumo, trabalho e acumulação de bens – estavam subordinadas
a viver bem; mas em uma civilização onde devemos trabalhar para ganhar mais
dinheiro e consumir mais, e o viver bem foi identificado com o sucesso profis-
sional ou a capacidade de consumo. Antes a vida ou certo aspecto da vida e a
natureza eram encantados porque eles eram a fonte de encanto das pessoas.
Hoje, o encanto se transferiu para o mudo do consumo, para o artificial, para
as mercadorias de marcas famosas, e a vida ficou desencantada. A vida sem
consumo de mercadorias objetos de desejo se tornou quase que insuportável,
sem nenhum encanto. E como não queremos viver uma vida desencantada, fria,
sem graça, corremos atrás de mercadorias que encantem a nossa vida. Ir ao
Shopping Center para fazer compras quando nos sentimos "desanimados" ou
meio chateados (parecendo que nossa humanidade ficou diminuída, achatada) é
uma expressão clara desse fenômeno. O sentido da vida não está mais na vida
mesma, mas em consumir mercadorias que encantem a nossa vida.
O problema é que quando fazemos do "consumir mais" o sentido último da vida
caímos numa armadilha que nos conduz a uma ansiedade sem fim (sempre há
novas coisas para consumir e assim causar inveja nas outras pessoas ou pade-
cer a inveja de não possuir o que outro tem) e nos leva à promessa de um "pa-
raíso" – a plenitude do consumo – que é muito solitário e frio. Falta nele o calor
humano do encontro das pessoas na amizade e gratuidade sem a concorrência
e inveja da lógica do consumo.
Quando o sentido da vida não está nela mesma, a educação também perde o
seu sentido original de possibilitar uma vida boa e formar uma pessoa "de bem"

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e se concentra em capacitar tecnicamente os jovens para o sucesso econômico.


Assim, o valor e o sentido da vida e da mesma educação passam a ser medido
através do cálculo econômico (JUNG MO SUNG, 2007, p. 12).
[...] Há um texto de João Sayad, um importante economista brasileiro, que che-
gou às minhas mãos por acaso, nesses lances de sorte na vida, que sintetiza
bem o drama da nossa sociedade que estamos abordando.
"Há trezentos anos que o capitalismo transforma todas as coisas a nossa volta em
quantidade – dólares, francos ou reais. Não sabemos bem quem somos, mas sabe-
mos quanto valemos: somos o carro, a lancha, a casa ou os quadros que temos.
A economia capitalista focaliza tudo em torno de cifrões. Em compensação, embaça
tudo o mais. Cada vez nos tornamos mais eficientes, mais baratos e mais produtivos.
Mais ricos, ficamos cada vez mais pão-duros. Sobram produtos agrícolas que
são jogados nos rios ou estragam nos armazéns. Sobram produtos industriais
que atendem necessidades que precisam ser criadas. Sobra mão-de-obra por-
que gente custa salário. Não podemos gastar dinheiro com os ineficientes, com
os aposentados ou com os mais pobres.
Sabemos exatamente quanto custa cada coisa e cada decisão. Tudo é muito
nítido e claro em reais ou dólares.
Mas não temos tempo de nos perguntar sobre o sentido de tudo isso.
Por isso o mundo nos parece embaraçado e fora de foco." (SAYAD, 1998).
[...] A redução de tudo ao cálculo econômico deixa tudo "muito nítido e claro em
reais ou dólares", mais, por isso, "O mundo nos parece embaçado e fora de
foco". Uma das razões para isso é que "não temos tempo para nos perguntar
sobre o sentido de tudo isso". A busca obsessiva por mais dinheiro e mais consu-
mo, uma corrida sem fim porque a linha de chegada vai se afastando na medida
em que nos aproximamos, nos deixa cegos ou desfocados para ver o "resto" que
compõe a vida. E o que fica completamente fora de foco é o sentido da vida, pois
nessa corrida por consumo ou ostentação. O objetivo a ser alcançado está sem-
pre se movendo para mais longe e tomando as mais diversas formas que nos
deixa aturdidos. Mas o sistema de mercado também oferece uma solução para
isso. A propaganda "se dirige à desolação espiritual da vida moderna e propõe o
consumo como cura" (LASCH, 1983, p. 103).
Os efeitos desse encantamento hipnotizador não recai somente sobre as pessoas
que procuram a cura em mais consumo. Muito pelo contrario, as conseqüências mais
devastadoras recai também sobre os mais pobres da sociedade, que sofrem com a
exclusão social, e o meio ambiente. De uma forma ou outra, todos nós perdemos.
Diante de uma sociedade que reduz tudo ao cálculo econômico, cálculo que
desfoca o sentido da vida e desencanta tudo o que na vida não é acumulação e
consumo, inclusive a educação, vários autores de diversos campos do saber tem
proposto o reencantamento da natureza, da vida e da educação.
Estas propostas devem ser entendidas não como uma simples volta a uma civi-
lização baseada na religião ou em uma visão mágica do mundo, mas como uma
tentativa de ir além dessa redução da natureza, das pessoas e das atividades so-
ciais ao cálculo econômico. Em outras palavras, encontrar valores nas coisas, nas
atividades e nas pessoas que transcendam o valor econômico e que revelem um
sentido de vida que seja muito mais humano e profundo do que simplesmente acu-
mular riqueza e ostentar bens de consumo (JUNG MO SUNG, 2007, p. 101-103).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
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9. HOMEM: SER HISTÓRICO E VALORES


O homem é um ser aberto ao mundo. É no mundo que vai
desenvolver seu projeto pessoal. Com o mundo, leva adiante uma
constante troca. Isso é possível porque possui um "instinto" de
percepção que lhe permite perceber o que é útil ou não numa de-
terminada situação. Consegue, por meio da consciência, captar os
valores contidos nas coisas. Como pessoas humanas, organizamos
nossa existência a partir de valores.
Que valores são esses? Valores econômicos que percebo por
ser treinado ou possuir um dom para avaliar o que cada coisa vale
no mercado dos bens? Os valores físicos que possibilitam a con-
servação da vida biológica? Não, estamos nos referindo a valores
espirituais!

Valor e sentido
Os valores espirituais são aqueles que, tendo uma base me-
tafísica, estão referidos à realidade; ao brilharem nos objetos reais,
fazem-se presentes, cativam nossa atenção. Uma relação pessoal,
a programação de uma ação, a intervenção racional na natureza,
escolher algo para comer ou beber, cada situação existencial está
revestida de um valor e, como o sentido está presente nas situa-
ções de valor, diz-se que há um sentido por trás da realidade.
A orientação para o sentido é particular a cada indivíduo,
uns descobrem um sentido onde outros enxergam outro diame-
tralmente diferente; os valores são comuns a todos, o sentido da
situação é uma coisa particular; eu descubro um sentido, outra
pessoa descobre o dela, sem ser permitida a troca de informações,
já que ninguém, por sua própria vivência, perceberá o sentido da
mesma forma que o outro o percebe. Se não fosse assim, todos
viveríamos da mesma forma.
As coisas que compõem o mundo onde vivemos têm, todas
elas, características peculiaridades: umas são belas, outras feias,

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umas são boas, outras más. O individuo se relaciona com aquelas


que são importantes para sua existência, descartando as desne-
cessárias e ignorando as que lhe são indiferentes. O que sucede é
que, ante as coisas, adotamos posições críticas, porque todas as
coisas têm "valor". Perante as coisas, formulamos um juízo, que
pode ser:
• Juízo de existência: quando dizemos o que o objeto é.
• Juízo de valor: nada altera a existência do objeto. Esse
juízo não agrega elementos à coisa nem os tira. Concor-
damos ou não com a coisa, mas não a modificamos por
meio desse juízo. O que fazemos com os juízos de valor
é destacar impressões que são próprias do objeto, não
subjetivas.
Leia o texto a seguir, que lhe possibilitará refletir um pouco
mais sobre valor e sentido.

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
Como o sentido e o valor são coisas afins, a possessão do valor pode aliviar o
homem na hora de ter que procurar o sentido de cada situação. Se eu me oriento
pelos valores universalmente aceitos, vou transitar, por concomitância, pela linha
do sentido, sempre que não aconteça um conflito de valores. Os mandamentos
são valores universalmente aceitos. Se, em cada ocorrência, eu os coloco em
prática, estou atuando com sentido; se eu roubar ou matar ou trair para conse-
guir um fim, estou realizando uma ação sem sentido. Agora, se faço isso para
defender minha vida ante uma injustiça, o sentido muda, porque a vida é o valor
principal.
Devemos destacar que os mandamentos "eram" valores universais na época
de Abraão, mas, hoje, possivelmente, é necessário complementá-los. O homem
moderno descobriu que há novas dimensões existenciais, novas realidades, o
trânsito por elas é "novidade" e, portanto, sem antecedentes. Mesmo assim,
devemos aceitar que não estão defasados: posso, perfeitamente, orientar meu
comportamento pelos mandamentos e, sem dúvida, estaria levando adiante a
existência com sentido. Isso é possível porque há uma relação entre realização
existente, sentido e valor. Lembremos que, sempre que as ações de sentido
saem do particular para o universal, convertem-se em valor.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 143

Lotze, filosofo alemão, foi quem explicou que os valores valem e


as coisas são. Isso significa que os valores estão fora das catego-
rias do ser. Assim, os valores não têm ou carecem de substância
por si mesmos. Não se pode dizer belo, deve-se dizer belo em a
relação alguma coisa, já que belo é uma qualidade da coisa e não
a coisa em si. Lotze introduziu o conceito de valor e, Nietzsche, a
palavra "valor". Mas foi com Brentano, em 1889, ao lançar o livro
A origem do conhecimento moral, que se inaugurou o que, hoje,
conhecemos por axiologia (HESSEN, J. 1980).

Impressões subjetivas e valor


Além desses juízos, também formulamos impressões subje-
tivas. Dentro dessa denominação estão contidos os sentimentos,
que são fenômenos psíquicos. Usamos a denominação "impres-
sões subjetivas" porque representam vivências internas, podem
ser o produto de uma vivência alojada no subconsciente de cará-
ter positivo ou objetivo. Os valores, por outro lado, representam
qualidades objetivas das coisas. Podemos dizer que é objetivo se
existe independentemente de um sujeito ou de uma consciência
valorativa. Em contrapartida, será subjetivo se sua existência, sen-
tido ou validez dependerem das reações fisiológicas ou psicológi-
cas do sujeito que valora.
Por exemplo: olhando para uma determinada pessoa na fila
de um cinema, dois amigos conversam e um comenta: "Essa pessoa
tem cara de 'nojenta'". O outro discorda, por considerá-la simpática;
aprofundando na qualificação subjetiva, o primeiro se lembrou de
que parecia com um antigo professor com quem tivera diferenças,
enquanto o outro o viu parecido com um antigo amigo de seu pai.
Ambos fizeram um juízo subjetivo baseado em vivências psíquicas,
que não tinha fidelidade em relação à coisa investigada – nesse caso,
uma pessoa desconhecida.
Lotze resgatou o termo valor do universo da economia e
colocou-o dentro da terminologia filosófica, diferenciando muito
bem o valor econômico do valor espiritual (DURKHEIM, 2003).

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Os clássicos utilizavam o termo bem no lugar do termo moderno va-


lor. Mesmo assim, são eles que explicam que existem as coisas que
são portadoras de valor Bona, e o valor da coisa ratio bonitatis.

O que os filósofos deixam muito claro, baseados na concep-


ção de valor e de valer de Lotze, é que o homem é o centro dos
valores, o receptor dos valores. Mesmo assim, as coisas têm sen-
tido independentemente do homem. Como diz Heidegger (1967,
p. 69), inspirando-se na filosofia clássica, "o homem é o pastor e
não o criador do ser". O homem tem a capacidade de optar pelo
valor, pelo bem, e, o que é mais importante, de transmiti-lo aos
semelhantes.
Nosso sistema de valores éticos e suas consequentes normas
de conduta são formados dentro da tradição psíquico-espiritual do
Ocidente, que, em geral, tem sua base na revelação. Em nossa so-
ciedade, esses valores são especialmente amor, individualidade,
compaixão, empatia, esperança no futuro etc., todos eles de tra-
dição religiosa ou humanística. Contudo, há os valores criados por
grupos de interesses que atuam na sociedade. Esses valores, pro-
dutos de ideologias, não são necessários para orientar o compor-
tamento humano e, às vezes, são negativos: estamos falando de
valores como o de propriedade, consumo, posição social, vícios,
possessão etc.
Quais valores você acha que orientam o comportamento das
pessoas que formam parte da sociedade atual? Analise como os
dois autores citados a seguir classificam os valores.

Classificação dos valores


Hessen (1962), na obra Tratado de Filosofia III, descreve qua-
tro tipos de valores espirituais:
1) Lógicos.
2) Estéticos.
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 145

3) Éticos.
4) Religiosos.
Os valores estéticos e os religiosos são necessários para a
interpretação do sentido da vida, do mundo. São os primeiros na
hierarquia dos valores.
Já M. Scheler (1989), na obra El Formalismo en la Ética y la
Ética Material de los Valores (título original Der Formalismus in der
Ethik und die materielle Wertethik), primeira grande obra de sua
carreira, desenvolve uma vastíssima investigação sobre o fenôme-
no do valor e das essências em geral. Coloca como objeto a antro-
pologia da pessoa, estuda o problema da fundamentação gnosio-
lógica e antropológica da ética, estabelece as relações de grau e
hierarquia dos valores entre si, e a relação de fundamentação do
valor com o bem.
Scheler (1989) classifica os valores em:
a) Úteis: conveniente, inconveniente...
b) Vitais: forte, fraco...
c) Lógicos: verdade, falsidade...
d) Estéticos: belo, feio...
e) Éticos: justo injusto...
f) Religiosos: profano, sacro...
Scheler explica que os valores não são entes, mas, sim, qua-
lidades dos entes – mas não qualquer qualidade: são "qualidades
valentes". Esse mesmo autor descreve, também, uma hierarquia
dos valores. Nessa fase de sua vida, ele não pensava em termos
religiosos. Colocou os valores religiosos como os mais elevados,
juntamente com os éticos, por darem sentido à vida.

A existência (vida) sempre compreende o ôntico (o eu pensante)


e o ontológico (são as coisas que o eu pode pensar).

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146 © Antropologia Filosófica

Resumindo, diríamos que os valores não podem ser capta-


dos pela razão. Os clássicos dizem que não é a ratio, mas, sim, o
intuito que capta o sentido do mundo e, também, que os valores
espirituais (que, para serem valores, nunca podem ser criação
nossa) se percebem de forma instintiva, brilham ante nossa in-
teligência.
Para você refletir––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Percebemos que, executando valores, encontramos sentido no mundo, e, nesse
movimento, assimilamos que nossa existência tem um sentido.
Terapeutas como V. Frankl, em Psicoterapia e Sentido da Vida, concluem, por
meio de uma análise fenomenológica, que a pessoa que realizar valores de ati-
tude consegue dar sentido à existência. Esses gestos, considerados "valores
atitudinais", devem ser dirigidos ao tu e poderiam ser traduzidos como ações
sociais. Você acredita que a maioria das pessoas da nossa sociedade está mes-
mo preocupada em multiplicar esse capital social, e que pensam no próximo?
(FRANK, 2003).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Etchebehere citando Platão explica que o drama humano
está na eleição da própria vida: de muitos que poderíamos ser te-
mos que escolher ser um. Ainda que a alma seja em essência todas
as coisas, deve determinar-se a ser uma só coisa. Há um livro da
vida onde nossos nomes estão escritos, ainda que caiba a cada um
de nós escrever a história de nosso nome. Assim é apresentado, no
início da filosofia, em Platão, o mito de ER – que veremos agora.

O mito de Er––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A verdade que o que te vou narrar não é um conto de Alcínoo, mas de um homem
valente, Er, o Arménio. [...]
"A virgem Láquesis, filha da Necessidade, declara: Almas efêmeras, vais come-
çar outra vida de caráter transitório, entrarás em um novo corpo mortal humano.
Não é um demônio que vos escolherá, mas vós que escolhereis o demônio. O
primeiro a quem a sorte couber será o primeiro a escolher uma vida a que ficará
ligado pela Necessidade. Mas a virtude não tem dono, cada um poderá tê-la em
maior ou menor grau, conforme a honrar ou desonrar. A responsabilidade é de
quem escolhe. A Divindade é isenta de culpa".
Ditas estas palavras, atirou com os lotes para todos e cada um escolheu o que
caiu perto de si, exceto Er, a quem isso não foi permitido. A variedade era infinita,
ao apanhá-lo, tornaram-se evidentes para cada um a ordem que lhe cabia para
escolher. Seguidamente, dispôs no solo, diante deles, os modelos de vida, em
número muito mais elevado do que o dos presentes. Havia de todas as espécies,
vida de todos os animais, e bem assim de todos os seres humanos. Entre elas,
havia tiranias, umas duradouras, outras derrubadas a meio, e que acabavam
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 147

na pobreza, na fuga, na mendicância. Havia também vidas de homens ilustres,


umas pela forma, beleza, força e vigor, outras pela raça e virtudes dos antepas-
sados; depois havia também as vidas obscuras, e do mesmo modo sucedia com
as mulheres. Mas não continham as disposições do caráter, por ser forçoso que
este mude, conforme a vida que escolhem. Tudo o mais estava misturado entre
si e com a riqueza e a indigência, a doença e a saúde, e bem assim o meio termo
entre estes predicados. É aí que está, segundo parece, meu caro Glaucón, o
momento crítico para o homem, e por esse motivo se deve ter o máximo cuida-
do, e que cada um de nós ponha por cima de tudo buscar e adquirir a ciência de
distinguir uma vida honesta da que é má e de escolher sempre em toda a parte
tanto quanto possível a melhor. Calculando que efeito tem, em relação com vir-
tude em uma vida, para prever o mal que produz a beleza, por exemplo, unida à
riqueza ou a pobreza, as consequências que tem o nascimento ilustre ou escuro,
os cargos públicos ou a condição de simples particular, ou a debilidade física, a
facilidade ou dificuldade […].
Ora, então, anunciou o mensageiro do além, o profeta falou deste modo: "Mesmo
para quem vier em último lugar, se escolher com inteligência e viver honestamen-
te, espera-o uma vida apetecível, e não uma desgraçada. Nem o primeiro deixe
de escolher com prudência, nem o último com coragem".
Ditas estas palavras, contava Er, aquele a quem coube a primeira sorte logo se
precipitou para escolher a tirania maior, e, por insensatez e cobiça, arrebatou-a,
sem ter examinado capazmente todas as consequências, antes lhe passou des-
percebido que o destino que lá estava fixado comportava comer os próprios filhos
e outras desgraças. Mas, depois que a observou com vagar, batia no peito e
lamentava a sua escolha, sem se ater às prescrições do profeta. Efetivamente,
não era a si mesmo que se acusava da desgraça, mas à sorte e às divindades,
e a tudo, mais do que a si mesmo. Ora, esse era um dos que vinham, do céu, e
vivera, na encarnação anterior, num Estado bem governado; a sua participação
na virtude devia-se ao hábito, não à filosofia. Pode-se dizer que não eram menos
numerosos os que vindos do céu, se deixavam apanhar em tais situações, devi-
do à sua falta de treino nos sofrimentos. Ao passo que os que vinham da terra,
na sua maioria, como tinham sofrido pessoalmente e visto os outros sofrerem,
não faziam a sua escolha às pressas. Por tal motivo, e também devido à sorte
da escolha, o que mais acontecia às almas era fazerem a permuta entre males
e bens. […]
Era digno de se ver esse espetáculo, contava ele, como cada uma das almas
escolhia a sua vida. Era, realmente, merecedor de piedade, mas também ridículo
e surpreendente. Com efeito, a maior parte fazia a sua opção de acordo com
os hábitos da vida anterior. Dizia ele que vira a alma que outrora pertencera a
Orfeu escolher uma vida de cisne, por ódio à raça das mulheres, porque, devido
a ter sofrido a morte às mãos delas, não queria nascer de uma mulher; vira a de
Tamiras escolher uma vida de rouxinol; vira também um cisne preferir uma vida
humana, e outros animais músicos procederem do mesmo modo [...].
"Assim que todas as almas escolheram as suas vidas, avançaram, pela ordem
da sorte que lhes coubera, para junto de Láquesis. Esta mandava a cada uma
o demônio que preferira para guardar a sua existência e fazer cumprir o destino
que escolhera". (PLATÃO, República, Livro X, p. 614-620)
A eleição do tipo de vida é, como diz Platão, o momento crítico para o homem,
tanto que nesse momento coloca em jogo seu destino. "Não será um demônio
quem escolhe, e sim você quem escolherá o demônio". Isto é, não é uma força

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148 © Antropologia Filosófica

cega quem nos dirige e sim nós próprios, por intermédio de nossas ações, que
vamos configurando nosso caráter, moldando nosso demônio.
(ETCHEBEHERE, 2008, p. 138-142, tradução nossa).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Ante a exigência de escolher nossa vida, Platão orienta a pro-
curar um conhecimento que nos permita discernir entre uma vida
que é boa e aquela que não é.

10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Indique a única alternativa falsa:
a) A categoria alteridade é própria da natureza humana, está relacionada
com a necessária vinculação com os outros "eus". O homem é em seu
constitutivo um ser aberto à sociabilidade e a comunidade.
b) Pode-se dizer que o ser humano é pessoa, quanto mais diferente, mais
peculiar seja em relação aos outros seres humanos. Quanto mais indi-
viso seja, como diziam os escolásticos, para estes pensadores a pessoa
é: indivisum in se et divisium a quolibet alio, ou seja, na individualidade
ontológica está a base da personalidade.
c) J. Y. Jolif (1969, p. 184-185) explica que a alteridade e a unicidade são cate-
gorias ontológicas. Estas categorias implicam em si mesmas numa contra-
dição. Ambas dependem da renuncia do conceito de subjetividade pura, o
homem não pode deixar de reconhecer, aceitar e integrar a dimensão da
alteridade. Eu não posso dar-me sem que se dê também o outro. Essa con-
cepção de homem é contrária à ideia de ser individualista que o neolibera-
lismo e as linhas de pensamento positivista defendem nos dias de hoje.
d) O ser humano necessita comunicar-se com o outro e também ter contato
com o mundo – essa é uma exigência natural. Devemos considerar tam-
bém que sua finitude e sua dificuldade para compreender a multiplicida-
de da verdade o obrigam ao diálogo e ao intercâmbio.
2) Indique a única alternativa que complementa o pensamento de SAHAGUN.
"A propriedade de um ser espiritual é sua independência, liberdade ou auto-
nomia essencial perante os contratempos e pressão do orgânico da vida [...].
Tal ser espiritual não está limitado nem pelos impulsos, nem pelo meio é aber-
to ao mundo". (SAHAGUN 1996, p. 146).
a) Portanto, o homem está limitado por crenças, desejos, vínculos sociais
etc. Estes são determinantes do comportamento.
b) Assim, se somos produtos de situações e realidades que fogem do nosso
controle e não escolhemos livremente nossos genes nem nossa realidade
© U3 - Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 149

ambiental e cultural, não podemos fundamentar efetivamente a hipótese


de que o nosso comportamento seja resultado de uma escolha livre.
c) Nascemos em uma sociedade estruturada, não pedimos nem escolhemos
nosso destino, bem como não escolhemos nossa personalidade social.
d) A pessoa, por ser espiritual, atua sabendo o que está fazendo e, especial-
mente, podendo concordar ou não segundo o juízo da razão.
3) Complete os textos com "Liberdade de" ou "Liberdade para".
a) Não há liberdade sem condição ética, não há liberdade sem responsabi-
lidade. Já que a liberdade, por ser da pessoa, supõe sempre uma dimen-
são interpessoal, o homem é sempre um eu no mundo com outros "eus".
Esta forma de liberdade é denominada: _________________________.
b) O homem nasce sem nenhuma norma ou modelo – portanto, com uma
liberdade sem limites. A minha responsabilidade é limitada ante a liber-
dade. A vontade é livre e ela impõe a ação. Esta forma de liberdade é
denominada ________________________.
4) Como pessoas humanas, organizamos nossa existência a partir de valores.
O homem é um ser aberto ao mundo. É no mundo que vai desenvolver seu
projeto pessoal. Quais valores você acha que orientam o comportamento
das pessoas que formam parte da sociedade atual? Caso tenha dúvidas,
compare sua resposta com a análise dos dois autores que são citados no
tópico Classificação dos valores.

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) c.

2) d.

3) a) "+Liberdade "para"";
b) +) liberdade "de".
4) Resposta pessoal.

11. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você pôde aprender sobre as características
centrais da existência, sobre a radical liberdade do homem e a es-
trutura que o compõe. Além disso, pôde constatar a importância
do "tu" no desenvolvimento da personalidade, ou seja, a impor-
tância do outro.

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150 © Antropologia Filosófica

12. E-REFERÊNCIAS

Sites pesquisados
Bento XVI. Homilia na festa do Corpo de Deus, 22.5.2008. Disponível em: <http://noticias.
cancaonova.com/noticia.php?id=260781>. Acesso em 12 jan. 2012.
FRANK, V. Obras. Disponível em: <http://www.centroviktorfrankl.com.ar/bibliografia.
html>. Acesso em: 12 jan. 2012.
SARTRE, J-P. O existencialismo é um humanismo. Disponível em: <http://www.
diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/conteudo/sugestao_leitura/
filosofia/texto_pdf/existencialismo.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2012.

13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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BAUMAN Z. Vida para o consumo. A transformação das pessoas em mercadoría. Rio de
Janeiro: Zahar, 2008.
BUBER, M. Qué es el hombre. México: FCE, 1976.
CABADA M. La vigéncia del amor. Madrid: San Pablo, 1994.
DIRISI, O. N. Estudio de la metafísica y gnoseología. Buenos Aires: Educa, 1985.
ETCHEBEHERE, P., R. Antropología filosófica. Una introducción al estudio del hombre y de
lo humano. Buenos Aires: Agape, 2008.
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______. Psicoterapia e sentido da vida. Fundamentos da logoterapia e análise existencial.
São Paulo: Quadrante, 2003.
______. Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
GALATINO N. Dizer homem hoje – Novos caminhos da antropologia filosófica. São Paulo:
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HEIDEGGER. Ser e o tempo. Petrópolis: Vozes, 2003.
JOLIF, J. Y. Compreender o homem. São Paulo: Herder, 1970.
JUNG, C. G. Cartas sobre o humanismo. São Paulo: Centauro, 2005.
JUNG M. S. Educar para reencantar a vida. Petrópolis: Vozes, 2007.
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PAREJA, G. Viktor e Frankl, comunicación e resistência. México: Red de Jonas, 1987.
SARTRE, J. P. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 2003.
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SPINOZA, B. Ética. Título original Ethica: ordine geometrico demonstrata et in quinque


partes distincta, in quibus agitur. Edição bilíngue latim-português. Tradução de Tomaz
Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2002.

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Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
EAD
Ser em Relação

4
1. OBJETIVOS
• Apreender a realidade bio-psíquico-espiritual que deter-
mina a atuação do ser humano.
• Refletir sobre a categoria de sentido e significado.
• Estudar as características centrais da existência. O amor
no pensamento filosófico contemporâneo, que é visto
como peça fundamental ao desenvolvimento e ao equilí-
brio da pessoa humana.
• Reconhecer o caráter transcendente do amor como ins-
trumento essencial para superar o anonimato individual.
• Descrever a relação existente entre a dimensão espiritual
e a relação psicofísica como fonte que possibilita o surgi-
mento do amor.
154 © Antropologia Filosófica

2. CONTEÚDOS
• Ser humano, pessoa espiritual.
• Sexualidade, condição corpórea dentro do contexto e uni-
dade bio-psíquico-espiritual.
• Amor, peça-chave do pensamento contemporâneo.
• Consequências antropológicas da dimensão transcendente.
• Capacidade intelectual.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Quando for realizar seus estudos, escolha um ambiente
que possa lhe proporcionar concentração. Esteja certo
de que o ambiente e o meio contribuirão de maneira sig-
nificativa para sua aprendizagem.
2) Compartilhar ideias e opiniões com seus colegas faz
parte da construção de sua aprendizagem! Na Sala de
Aula Virtual, você encontrará o apoio necessário para a
comunicação com seus colegas de curso. Com a pesqui-
sa, essa relação ficará ainda mais envolvente, pois vocês
poderão criar uma relação de troca de experiências que
contribuirá para sua formação e para o enriquecimento
de seus conhecimentos.
3) Recomendamos, para auxiliar sua reflexão, que você
assista ao filme As Confissões de Schmidt, do diretor
Alexander Payne.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
O homem, por natureza, tem necessidade do vínculo pesso-
al. Essa necessidade de relação está presente em todas as etapas
da vida humana e, dela, deduz-se a categoria de alteridade. Para
chegar a ser "pessoa" (poder dispor de si mesmo), o ser humano
© U4 - Ser em Relação 155

precisa do amor recebido do outro (do tu). Em outras palavras, o


surgimento da pessoa como substância individual, para utilizar a
definição de Boécio, não é possível sem o outro. Amor é a relação
do eu com o tu; portanto, é uma dimensão essencial humana que
denota a autotranscendência.
O homem é um ser aberto à realidade social. O "eu" precisa da
relação de amor do "tu", como o outro precisa do encontro acolhe-
dor de "mim". O pensamento filosófico-antropológico que orienta
a Antropologia Filosófica percebe essa realidade e dá uma enorme
importância ao estudo dessa propriedade dos seres humanos.
Por ser um ser no mundo, a pessoa sempre se expressa de
forma física e espiritual. Além disso, o amor, que é um constitutivo
ontológico da pessoa, também responde a essas duas dimensões.
Tudo no homem é pensado, negociado, avaliado. Não exis-
tem instintos cegos ou paixões de forma autônoma. Os instintos
existem, sim, mas estão sempre afirmados ou negados, sempre
ajustados desde a posição espiritual. Os instintos são sempre per-
sonalizados – nesse ponto distingue-se o homem do animal. A di-
mensão espiritual possibilita que sejamos pessoas, mesmo estan-
do condicionados pela realidade psicofísica.

5. INSTINTOS E PAIXÕES, A CONTINGÊNCIA DO HO-


MEM
Os instintos ou pulsões de caráter orgânico são, sem dúvi-
da, fundamentais para o sustento da vida. Porém, vemos que, en-
quanto o animal é totalmente determinado pelo instinto, é um ser
em equilíbrio com sua natureza. No homem, acontece o contrário;
este luta por transformar o meio ou adaptar-se às circunstâncias.
Também as relações são diferentes; lutar ou morrer por causa do
instinto numa sociedade humana seria uma coisa irracional.
É óbvio que o homem deve satisfazer suas necessidades cor-
porais para sobreviver. O que se sucede é que estas não param na

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156 © Antropologia Filosófica

conservação da espécie; o homem vai além; suas ações superam am-


plamente as exigências que demandam suas necessidades imediatas.
No homem, existem outras motivações, como as paixões formadoras
do caráter. Aliás, as paixões vão desde a origem psíquica até a espiritu-
al. Umas são negativas, como a soberba, a ambição e o egocentrismo,
que enfraquecem ou destroem. Enquanto isso, as positivas são a pre-
missa para a expansão da vida e do estado de felicidade.
Freud, de forma radical, coloca as paixões num plano primei-
ríssimo enquanto motores da atividade humana. São motivadas pela
libido, que determina todo o agir humano. Porém, a pessoa humana
não é atingida por tais limitações; somente é afetada por sua ação.

6. SEXUALIDADE COMO CONDIÇÃO DA PESSOA


A corporeidade, no ser humano, se expressa no binômio
Mulher-Homem, porém, a pessoa humana está acima dessa cate-
goria. É-se pessoa tanto sendo homem como sendo mulher.
Simone de Beauvoir (1972) trabalhou o tema da origem cul-
tural das diferenças homem-mulher e concluiu que a estrutura fi-
siológica diversa não tem, em si mesma, um significado. Apoia seu
raciocínio no princípio sartreano de que cada homem é da manei-
ra que o outro o vê.

Homem-mulher: Conforme Beauvoir (1972), não se nasce mulher


(socialmente falando), faz-se. Nenhum destino biológico, psíquico
e econômico define a figura que tem, dentro da sociedade, a fêmea
humana. É o conjunto da sociedade quem elabora esse produto.

A crítica de Beauvoir deixa bem claro que a mulher não pode


ser reduzida a seu sexo, como o fizeram muitas antropologias, já
que, em primeiro lugar, é uma pessoa humana.
O filósofo P. Ricoeur (1991) diz que a sexualidade ocupa um
lugar de destaque na antropologia, visto que a sexualidade tem
uma ressonância que se manifesta em todo o corpo. Não podemos
© U4 - Ser em Relação 157

pensar que a sexualidade humana pode ser reduzida simplesmen-


te à sexualidade animal, pois a sexualidade humana deve estar
sempre inserida dentro do universo do amor.

Ao fazer um estudo antropológico da sexualidade, não podemos


nos esquecer de que a antropologia é a ciência que estuda o ser
humano (mulher e homem). O termo "antropologia" vem do grego
"anthropos", que significa todo o humano, sem distinção de sexo.

O Amor: Eros e Ágape


No mundo grego antigo, havia três palavras que significavam
amor: "eros", "phileo" e "ágape". Elas se referiam às formas dife-
rentes de amor. Quando colocamos a palavra "eros" (expressão do
amor sexual) com "ágape" (amor profundo, sublime, termo para
diferenciar o amor de Deus para o mundo), perguntamo-nos: será
que essas duas expressões de amor podem conviver juntas ou,
ao contrário, o amor ágape não pode conviver com o amor Eros?
Veremos, ao longo deste estudo, que todo o movimento amoroso
pressupõe uma resposta, demanda reciprocidade. Não é possível
querer ser amado sem amar ao outro nem amar sem pretender
ser amado. Amar e ser amado são movimentos que se devem
complementar.
Na relação amorosa que acontece entre pessoas, num co-
meço, existe uma valorização do "tu" pelo "eu", que é o "ágape",
que leva à valorização do "eu", ou seja, desemboca no "eros". Esse
"eros" do "eu" psiquicamente fortalecido volta a um ágape, migra
novamente para o eros e, assim, continua em permanente movi-
mento circular. O amor é criador do desejo sexual num meio de
ternura.

Esse movimento circular dado entre essas duas tensões vai deter-
minar o equilíbrio que pressupõe a união, que é o âmbito no qual a
pessoa amada é considerada como real, digna e valiosa aos olhos
do amante.

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158 © Antropologia Filosófica

A experiência sexual está determinada pela profundidade do


amor e caracterizada pelo interesse que o homem e a mulher sen-
tem um pelo outro.

Sentido ontológico da sexualidade


O encontro homem-mulher reveste-se de um caráter espe-
cial por serem ambos seres espirituais, já que a sexualidade huma-
na não é uma força cega que nos determina pelas suas pulsões.

Informação Complementar –––––––––––––––––––––––––––––


Se é bem certo que a sexualidade colore o mundo de todos os seres vivos, no
ser humano, ela está revestida de uma característica singular e marcada com o
símbolo da liberdade e da transcendência, por serem seres espirituais os que se
unem no ato sexual. No ato sexual, não se poderia falar de dois sexos e, sim,
pode-se dizer que cada sexo implica o outro, na medida em que é a pessoa que
se compromete e não simplesmente dois gêneros diferentes. Partindo desse en-
contro, é possível falar de atração erótica, questão de pele, procriação etc.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Vejamos, a seguir, os elementos que integram a sexualidade.

Elementos que integram a sexualidade


Segundo comprovações científicas, três são os elementos
constitutivos da sexualidade humana:
• Somático.
• Psicológico.
• Sociocultural.
Nenhum deles é exclusivo nem preponderante.
O elemento somático, que já foi considerado como primor-
dial, é explicado por biólogos e pelos filósofos como pulsão bio-
lógica, encontrando-se enraizado nas propriedades hormonais, as
chamadas sexuais, e na configuração físico-biológica (somática).
O elemento psíquico que, segundo os psicólogos, comple-
menta o biológico, é outro dos elementos componentes da sexuali-
dade. Depende não somente do elemento biológico, mas também
© U4 - Ser em Relação 159

do elemento cultural (sentimentos, afetos e inclinações não são


de responsabilidade de um único componente, mas consequência
de um contexto). O velho mito andrógino da alma gêmea, que é
citado por Platão no Banquete, está baseado nessa dimensão. O
erotismo é responsável pela atração entre sexos opostos.
Finalmente, o sociocultural é um elemento que tem gran-
de importância na manifestação da sexualidade. Está comprovado
que, dependendo da cultura e das características de cada povo, o
comportamento de homem e mulher pode variar. Esse fato fica
evidente quando se estuda o papel que a mulher tem nas diferen-
tes culturas. Essa dimensão de socialização vai ter um destaque
enorme nas teorias marxistas. Também os existencialistas, que
veem o homem como um projeto de si mesmo, determinado por
sua liberdade, darão ao elemento sociocultural uma importância
inquestionável na sexualidade humana.
A ciência provou que, na hora de determinar a condição se-
xuada do ser humano, os três elementos estão presentes. Além
disso, ela provou o fato de que homem e mulher vivem sua vida de
forma diferente, segundo sua sexualidade (LUCAS, 1996).

Nunca devemos nos esquecer de que o homem é um ser portador


de dimensão espiritual e que esta informa as demais dimensões
constitutivas.

Observe que não devemos pensar no corpo como elemento


único e determinante da relação amorosa, afinal, este tem uma
função. É um caso parecido com o da linguagem: sem o instrumen-
to corporal, ou seja, sem a boca e as cordas vocais, não conseguirí-
amos emitir sons compreensíveis; uma falha física do aparelho da
fala impossibilitaria tal função, porém, a fonte da palavra, do diá-
logo, da denominação das coisas e da promoção da verdade não
está situada exclusivamente na boca. A relação amorosa também
não é exclusiva do corpo. Nessa relação, não enxergamos somente
o físico.

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160 © Antropologia Filosófica

Dessa forma, podemos afirmar que a pessoa nunca é somen-


te corpo, bem como nunca será tão somente espírito. O homem é
uma unidade e, por sua constituição, ele é maior que a soma das
partes que o compõem.

Freud e instinto sexual


No livro Três ensaios sobre a teoria sexual, Freud (1980)
considera a agressividade como motor do instinto sexual e situa
o instinto de agressividade como instinto próprio do ego. Assim,
a relação que o ódio mantém com os objetos é mais antiga que a
relação do amor. O homem, na concepção freudiana, é possuído
por dois impulsos preponderantes: um direcionado a sobreviver, e
outro orientado à procura de prazer. O homem entra em relação
com o outro sexo para satisfazer sua vontade de prazer.
Assim, o amor não é outra coisa se não um estado hipnótico
em que o ego projeta seus ideais numa pessoa, a qual se vai con-
verter em amado até a finalização da idealização. A consequência
para que o casal continue unido é de caráter social. O amor, nas
mãos de Freud, deixa de ser concebido como "eros platônico" e
como "cáritas cristã". Hoje, o conceito radical de "libido" e o prin-
cípio de prazer psicanalítico estão praticamente superados. Não
podemos nunca esquecer que Freud, esse brilhante psiquiatra,
responsável pela descrição das dimensões da mente humana tem,
por detrás, uma tendência para o doentio como norma.
O que seu trabalho nos deixa como legado é a existência de
causas que podem levar ao fracasso do processo de integração dos
instintos na pessoa, fazendo que esta reprima o amor e só fique
nos instintos seguintes:
1) escalas de valorações;
2) estados de ânimo;
3) influências culturais na formação do caráter;
4) condutas viciosas que convertem o outro parceiro numa
forma de escravo sexual, de "instrumento para massa-
gear o ego".
© U4 - Ser em Relação 161

Ante as situações dessa espécie, o "eu" e o "tu" não conseguem


nem se comunicar nem viver a satisfação do amor. O personagem
Don Juan é um caso típico dessa conduta; é uma pessoa que, mesmo
estando rodeada de mulheres, está eternamente insatisfeita.
Todo movimento egocêntrico denota um fracasso do homem
e, normalmente, desemboca no niilismo, representado pela procu-
ra da satisfação individual. Dessa forma, o outro se torna objeto.

7. AMOR INTERPESSOAL, DIMENSÃO CONSTITUTIVA


DO HOMEM
O personalismo filosófico, partindo da análise da estrutura
do existente humano, explica o amor como o sentimento de des-
centralização do "eu" nos outros.
O "eu", pelo amor, é expelido numa relação centrífuga para
o "tu".
A pessoa não deixa de ser ela mesma na relação amorosa; o
que consegue é enriquecer-se por ser estimulada pela presença do
próximo (tu). Por isso, podemos dizer que a relação amorosa pos-
sibilita desenvolver potencialidades que, de outra forma, ficariam
contidas dentro do círculo do egocentrismo?
Com o outro, cria-se um vínculo de reconhecimento recípro-
co e um intercâmbio de valores, nunca uma substituição dos valo-
res de um amante pelos valores do outro.
O homem, por meio da "unicidade", componente essencial da
pessoa humana (ver a Unidade 1), pode diferenciar-se pelo seu ser e
pelos seus atos, bem como pela "alteridade", que garante que nem
o "eu" seja objeto para o "tu" e nem o "tu" objeto para o "eu".

O amor é um protofenômeno originário que nunca pode ser conce-


bido como epifenômeno.

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162 © Antropologia Filosófica

O amor caracteriza-se por seu caráter "excêntrico". Isso


é possível porque a pessoa humana possui dimensão espiritual,
enquanto o animal está centrado em seu próprio organismo; o
homem, pela sua capacidade de ser "ex-cêntrico", pode sair de
si e dirigir-se ao tu; sente-se impulsionado, ou melhor, motivado
pelo amor. Por essa capacidade de descentralização de si próprio,
liberta-se "do aqui e agora" e pode transcender-se, superando sua
própria limitação. A saída de si garantirá a superação do narcisis-
mo, do egoísmo.
O amor empurra para fora de si quem ama. Tomás de Aquino
e Agostinho de Hipona escreveram que o amor puxa, arrasta quem
ama para fora de si. É esse o lugar onde a alma tem sua existência
verdadeira.
Kierkegaard (2005, p. 34), em As obras do amor, escreve: "O
Amor não é uma qualidade reservada para si mesmo, é a quali-
dade mediante a qual existe para os outros". Esse "existir para os
outros", na concepção cristã do amor, é total.
Na obra O banquete, Platão define o amor como dádiva divi-
na. Essa obra é dedicada ao amor em seus diversos aspectos.
Leia o seguinte excerto da obra O banquete sobre a impor-
tância do amor no pensamento platônico:
Primeiramente, tal como agora estou dizendo, disse ele que Fedro
começou a falar mais ou menos desse ponto, "que era um grande
deus o Amor, e admirado entre homens e deuses, por muitos outros
títulos e, sobretudo, por sua origem. Pois o ser entre os deuses o
mais antigo é honroso, dizia ele, e a prova disso é que genitores do
Amor não os há, e Hesíodo afirma que primeiro nasceu o Caos –
... e só depois
Terra de largos seios, de tudo assento sempre certo, e Amor...
Diz ele então que, depois do Caos foram estes dois que nasceram,
Terra e Amor. E Parmênides diz da sua origem
bem antes de todos os deuses pensou em Amor.
E com Hesíodo também concorda Acusilau. Assim, de muitos lados
se reconhece que Amor é entre os deuses o mais antigo. E sendo o
mais antigo é para nós a causa dos maiores bens. Não sei eu, com
© U4 - Ser em Relação 163

efeito, dizer que haja maior bem para quem entra na mocidade do
que um bom amante, e para um amante, do que o seu bem-amado.
Aquilo que, com efeito, deve dirigir toda a vida dos homens, dos que
estão prontos a vivê-la nobremente, eis o que nem a estirpe pode
incutir tão bem, nem as honras, nem a riqueza, nem nada mais,
como o amor. A que é então que me refiro? À vergonha do que é
feio e ao apreço do que é belo. Não é com efeito possível, sem isso,
nem cidade nem indivíduo produzir grandes e belas obras. Afirmo
eu então que todo homem que ama, se fosse descoberto a fazer
um ato vergonhoso, ou a sofrê-lo de outrem sem se defender por
covardia, visto pelo pai não se envergonharia tanto, nem pelos ami-
gos nem por ninguém mais, como se fosse visto pelo bem-amado. E
isso mesmo é o que também no amado nós notamos, que é, sobre-
tudo, diante dos amantes que ele se envergonha, quando surpre-
endido em algum ato vergonhoso. Se, por conseguinte algum meio
ocorresse de se fazer uma cidade ou uma expedição de amantes e
de amados, não haveria melhor maneira de a constituírem senão
afastando-se eles de tudo que é feio e porfiando entre si no apreço
à honra; e quando lutassem um ao lado do outro, tais soldados ven-
ceriam, por poucos que fossem, por assim dizer todos os homens.
Pois um homem que está amando, se deixou seu posto ou largou
suas armas, aceitaria menos sem dúvida a idéia de ter sido visto
pelo amado do que por todos os outros, e a isso preferiria muitas
vezes morrer. E quanto a abandonar o amado ou não socorrê-lo
em perigo, ninguém há tão ruim que o próprio Amor não o torne
inspirado para a virtude, a ponto de ficar ele semelhante ao mais
generoso de natureza; e sem mais rodeios, o que disse Homero "do
ardor que a alguns heróis inspira o deus", eis o que o Amor dá aos
amantes, como um dom emanado de si mesmo.
[...] Assim, pois, eu afirmo que o Amor é dos deuses o mais antigo,
o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da virtude e
da felicidade entre os homens, tanto em sua vida como após sua
morte (PLATÃO, 2011, p. 5-6).

A cura do amor, resiliência


O termo "resiliência" expressa a capacidade humana de se
recuperar de um trauma em que a pessoa, por haver estado perto
da morte, derrui emocionalmente.
Pela resiliência, a pessoa tem capacidade para "se recons-
truir", depois, por exemplo, de uma infância infeliz, de uma derru-
bada psíquica produzida pela proximidade da morte ou pelo tes-
temunho de horrores infligidos a seres queridos ou, ainda, depois

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164 © Antropologia Filosófica

do trauma de ter passado por um campo de extermínio. Podemos


citar, também, o caso de crianças submetidas a abusos sexuais ou
de sobreviventes de catástrofes como maremotos, tornados, ter-
remotos etc.

A resiliência é uma capacidade inata do ser humano espiritual,


mas o processo necessita do "tu", do próximo, para poder con-
cretizar-se positivamente. É isso o que opina Boris Cyrulnik, psi-
quiatra francês, o qual diz que, para se recuperar de um trauma
que ocasionou a morte psíquica, é fundamental a companhia com
seus pressupostos: o contato, o carinho protetor, a alimentação, os
cuidados e a palavra.

Na Antropologia de Santo Tomás, essa capacidade já foi mos-


trada como fortaleza, faculdade espiritual que nós temos e que
nos permite a oposição ao infortúnio e, portanto, ao determinis-
mo fatalista.
Cyrulnik (2004) comprovou que as crianças abandonadas
têm um desenvolvimento biológico mais retardado que as amadas
e protegidas. Com maior frequência, sofrem de atrofias cerebrais,
chegando a manifestar até a interrupção da secreção hormonal.
Encontrar um amor para essas pessoas mutiladas é dar-lhes uma
segunda chance. Essas investigações reforçam a teoria de que o
amor intersubjetivo é de fundamental necessidade para a saúde
da pessoa humana ou do ser espiritual.

Amor: centro do pensamento contemporâneo


Os pensadores clássicos perceberam logo a importância do
amor como sentimento constitutivo do homem. Tanto Santo Agos-
tinho de Hipona como Santo Tomás de Aquino explicam que, por
detrás do amor, está o bem; amor e bem se identificam na antro-
pologia "agostiniana".
© U4 - Ser em Relação 165

Santo Agostinho via o amor como energia que atua no homem.


Prévio ao ato amoroso, o amor é o desencadeante do ato, nunca o
contrário. Identificava essa energia com a divindade. A razão amo-
rosa está de alguma forma referida à divindade. Por quê? Porque,
para Santo Agostinho, é impossível amar o que não se conhece,
o que não é possível ver, e o conhecimento do Deus Amor só é al-
cançado pelo homem ao amar o irmão. Por isso é que, na cateque-
se, se ensina que o primeiro mandamento é igual ao segundo.

Após uma longa época de domínio da "filosofia egológica",


do domínio do "ego" e de sua antropologia racionalista moderna,
que pressupunha um "eu solitário" vivendo na sociedade industria-
lizada, reaparecem, no horizonte filosófico, projetos para resgatar
o homem da solidão. A corrente que vai reorientar a consciência
do homem para si mesmo ressurge com a antropologia contem-
porânea. Antropologia que prioriza a reflexão sobre o homem,
rejeitando radicalmente a redução do homem a uma consciência
individual e autossuficiente, orientada unicamente para o conhe-
cimento e para o domínio do mundo material por intermédio das
ciências e da técnica.
Resumindo: podemos dizer que o amor é constitutivo da
pessoa. A valorização do amor é que está sujeita à influência das
ideologias. São elas que determinam as formas de ver e de abor-
dar o amor; mesmo assim, em nenhuma ideologia, o amor pode
aparecer como uma coisa que possa ser substituída, ainda que,
muitas vezes, apresente-se como um grande paradoxo em que ho-
mens lutam e matam-se para alcançá-lo.

O amor recebido––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O amor recebido é um fator determinante do desenvolvimento e do equilíbrio da
pessoa humana. Nós nos fazemos pelo amor do outro e, inicialmente, pelo amor
materno. Somos homes amando, falando, promovendo o outro como pessoa etc.
Esse movimento ascendente (amar, promover, acompanhar) é possível pelo fato
de alguém nos tenha amado e promovido como pessoas.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

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166 © Antropologia Filosófica

Autores como Montagu (apud CABADA, 1994) afirmam, ba-


seados em dados estatísticos, que a única forma de aprender a
amar é sendo amado. Portanto, aquele que não foi amado ou que
teve pouca ternura vai ter dificuldades para amar.

Montagu é autor da obra ¿Qué es el hombre?, editada pela Paidós


(Buenos Aires). Outra importante obra desse autor é La dirección
del desarrollo humano, editada pela Tecnos (Madrid).

As fêmeas não humanas não precisam aprender a amar suas


crias, pois esse comportamento já está no instinto materno. Na
mãe humana, o instinto não é determinante. Prova disso são as
mães que deixam seus filhos com auxiliares ou que nem cogitam
amamentar por ter os seios modelados com silicone. A mãe huma-
na é motivada pela energia amorosa, mas pode desconhecer esse
impulso e tratá-lo com desprezo.
O amor interpessoal (objeto desta unidade), na relação "Eu"–
"Tu", além de cuidados, demanda respeito, autoentrega, descentraliza-
ção e preocupação com o desenvolvimento integral da pessoa amada.

A presença do outro–––––––––––––––––––––––––––––––––––
No século 19, com a perda de vigência da filosofia do espírito, que tivera seu
esplendor com Herder, Kant, Fichte e outros pensadores do século 18, a filosofia
fica relegada a ciências particulares, como a biologia, a anatomia etc. Dessa
linha de pensamento, baseada na causalidade mecanicista, surge uma antropo-
logia com conteúdo puramente material. Essa antropologia reducionista privou
o homem de suas dimensões pessoais, bem como de suas dimensões ética,
axiológica e religiosa, superdimensionando a atenção em seus interesses indi-
viduais e em seu intento de estender seu poder sobre os demais. Partindo do
resgate e da reinterpretação da existência humana, coloca-se a relação com os
outros como elemento prioritário do universo humano. O amor que está dirigido
ao outro faz com que o "tu" se apresente a nós como uma realidade da qual não
podemos ficar indiferentes, uma realidade que nos atrai como um polo imantado.
A presença do outro faz surgir em nós a entrega pessoal, que, por sermos seres
de relação, é fundamental para o crescimento do "eu".
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Quando se fala de amor, não se pode deixar de estudar o
entorno cultural em que este tem lugar; afinal, há uma estreita
relação entre cultura e amor.
© U4 - Ser em Relação 167

Ideologias reducionistas, como o Positivismo Lógico, fechado no


mero dado empírico, nunca vão ter uma concepção do amor como
a que tem a Antropologia Filosófica, que está preocupada com a
procura da essência humana, com seu fundamento ontológico, e
que estuda o homem e as manifestações de seu ser. Na sociedade
atual, o homem está convertido em meio, fechado em sua indivi-
dualidade. Impera, em nossa sociedade, um ser desumanizado:
o homem "coisificado", que perdeu a fé. O que era a fé, senão o
esforço do homem para procurar o sentido de sua vida e do meio
em que se encontra relacionado? Isso, entre outras coisas, é pro-
duto da desvalorização do amor. Qual a sua opinião sobre essa
situação?

O amor está sempre presente nas relações culturais, e a cul-


tura matiza-o. Essa realidade leva à existência de diferentes pon-
tos de vista sobre o ato amoroso. Das diferentes interpretações
filosóficas surgidas ao longo da história da humanidade, desenvol-
veram-se diferentes concepções de amor. M. Buber (1976) afirma
acertadamente que é somente na relação "viva" (existente) que
podemos conhecer a essência peculiar do homem. O amor, como
toda manifestação humana, está dentro da cultura do homem e,
portanto, sujeito às mudanças culturais que acontecem.
Concluindo, diríamos que infelizmente o homem, em nome
da liberdade, submeteu-se à necessidade e ao consumo desenfre-
ado. Essa autolimitação deformou seu humanismo, que o elevava
por cima das coisas. E. Fromm (1970), na obra A arte de amar, ex-
plica por que o amor é um fenômeno "marginal" da sociedade atu-
al, a qual é preocupada em ter e esquecida do ser. É tarefa urgente
recuperar o amor, que é o mesmo que dizer: é tarefa urgente amar
o próximo para poder ser amado, porque, como diz Cabada (1994),
quem ignora a natureza do amor ignora todo o bem do homem.
Assim como a racionalidade, o amor é considerado um dos
elementos constitutivos primordiais da pessoa. Ele é o guia orien-
tador da pessoa e, também, uma de suas fontes criadoras.
O homem passa por dois estágios amorosos fundamentais: o
da mãe, representado pelo amor materno, e o da madrasta, termo

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168 © Antropologia Filosófica

que contém o amor social protagonizado pelo próximo e pela na-


tureza. Se o amor da mãe fosse limitado à proteção da criança, se-
ria apenas instinto maternal de proteção; se o casal fosse somente
produto da manifestação da libido ou da sublimação do sexo, não
estaríamos reconhecendo o movimento do "eu" dirigido amorosa-
mente a um "tu". O amor humano é fonte da construção da perso-
nalidade do ser amado, que vai ter possibilidades reais de conviver
numa sociedade em que será reconhecido e, ainda, reconhecerá o
próximo como pessoa na mais pura singularidade.
O amor é "possibilitante" da realização interpessoal, uma vez
que é uma força interior que atua sobre o indivíduo, evitando que
este se feche no individualismo. Quem ama "descentra-se" de si
em direção ao tu, despertando para valores que o sujeito fechado
em si mesmo nunca poderia perceber. Quem ama deve ser ético
na relação. Quem nunca amou não sabe se alguma vez superou a
dimensão da pura satisfação de necessidades materiais. Como diz
V. Frankl (2003, p. 178): "o amor auxilia a pessoa comprometida
para enxergar além da realidade presente porque faz antecipar na
pessoa amada as qualidades que lhe são próprias, porém ainda
não reveladas".
No plano social, o amor possibilita a concretização de uma
ponte de solidariedade com base na equidade. O surgimento da
pessoa como substância individual, segundo o conceito de Boécio,
não é possível sem a relação com os outros, sem o entorno pesso-
al fora da dimensão amorosa. Esse é um ponto muito importante
que é ressaltado com ênfase nas filosofias personalistas, já que,
ainda hoje, se mantém o conceito de que o que tem valor são as
coisas.
Até aqui você pôde observar o caráter de transcendência do
amor na elevação do indivíduo à dimensão de pessoa humana.
Pôde compreender, também, a relação existente entre a dimensão
espiritual e a relação psicofísica como fonte que possibilita o sur-
gimento do amor.
© U4 - Ser em Relação 169

8. EU-MUNDO
Você viu que no homem (sempre submergido na existência)
atuam conjuntamente a dimensão biológica com a psíquica e com
a intelectual ou espiritual. Além disso, no homem, a matéria de-
pende do espírito para conformar um ser de liberdade, e espírito,
por sua vez, conta com o corpo (matéria) para a realização do pro-
jeto pessoal. Essa união, condição essencial para que o homem
seja tal, demanda uma harmonia e é somente dentro dessa har-
monia que o ser humano é pessoa, que pode se sentir eu-mundo
(sujeito ante o mundo).
A partir de um raciocínio similar, podemos dizer que a natu-
reza pressupõe Deus, numa relação parecida à do corpo biológico
com a dimensão espiritual.

9. NATUREZA
Quando falamos em natureza, em cosmo, logo estamos pen-
sando em Deus; para desenvolver o tema, consideramos impor-
tante estabelecer consenso sobre alguns pontos:
1) É importante destacar que, para a maioria dos pensa-
dores que trabalham na concepção filosófico-antropo-
lógica sobre o homem integral, a presença de Deus na
natureza não pode ter o caráter de um recurso artificial
produto de uma fantasia transcendental — ela é real.
Mesmo que o próprio homem crie seu eu, sua persona-
lidade, a dimensão transcendente, que Zubiri denomina
"Dimensão teologal" (Zubiri apud Lucas, 1996. p. 255), é
um constitutivo humano.
2) O homem possui a intuição de que o mundo está orde-
nado, de que existe uma ordem no ser, uma causalidade
que confere beleza, que desperta admiração, êxtase, e
que toda essa afirmação não discorda da capacidade ra-
cional de pensar o mundo.

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170 © Antropologia Filosófica

3) A ciência é a responsável por provar esses princípios. Hoje,


o trabalho de geneticistas, biólogos e físicos tem demons-
trado um alto grau de aprofundamento nesse campo que,
anteriormente, era restrito à filosofia ou à religião.
4) O princípio de causalidade necessária que há por trás da
concepção naturalista do mundo bate de frente com a
liberdade humana, porque o homem, no uso de sua li-
berdade, dificilmente aceitará satisfazer-se apenas com
o conhecimento racional do ser sensível. Aceitar o natu-
ralismo é aceitar o relativismo dos valores.
Se submetermos toda a responsabilidade humana ao social,
ao evolutivo, ao programa genético, e esquecermos os atos livres
de caráter espiritual que são provocadores dos fatos sociais, se
deixarmos de levar em conta a existência da verdade contida no
ser, guia da conduta verdadeiramente humana de orientação para
o bem, ficaremos submetidos ao relativismo dos valores morais —
e essa conduta pode levar diretamente ao niilismo.
Propomos a leitura de um exceto da obra de Juan Manuel
Burgos, Repensar la naturaleza humana, onde faz uma reflexão
sobre a natureza humana identificando os conceitos vigentes mais
relevantes: o naturalista, o clássico e o culturalista.

Concepções da natureza do homem––––––––––––––––––––––


Intentar determinar de maneira absoluta o conceito de natureza humana é uma
tarefa – além de difícil – provavelmente inútil. Perguntar pela natureza humana
equivale a perguntar-se pelo homem, interrogar-se sobre o significado de ser
uma pessoa. Mas a capacidade inesgotável desse ser misterioso tem feito com
que as respostas a esse questionamento ao longo da história da humanidade se-
jam incontáveis e díspares. O homem se pensou a si mesmo próximo dos anjos
e dos deuses como sendo um pedaço de matéria condenada à aniquilação mais
absoluta, junto com todas as possibilidades intermediárias. Seguir e perseguir
todas essas visões não conduziria a nada mais que obter, depois de um trabalho
ímprobo, um inventário imenso correspondente aos inúmeros modos pelos quais
o homem se tem entendido a si mesmo.
Seja como for, esse não é o objetivo perseguido nesta obra. O nosso objetivo
é repensar a noção de natureza humana exclusivamente em relação à tradição
clássica, por dois motivos: O primeiro, porque intelectualmente nos situamos no
interior dessa tradição entendida em sentido amplo, ou seja, na medida em que
compreende as filosofias que podem ser denominadas realistas; o segundo, por-
que o conceito de "natureza humana" desta tradição não se encontra atualmente
© U4 - Ser em Relação 171

em seu melhor momento, e justamente por isso, se faz necessário repensá-lo


para tentar chegar ao fundo dos problemas que coloca – reais ou supostos – e
das críticas que recebe, para considerar se são consistentes ou não e quais ca-
minhos devemos adotar para essa análise.
Isso nos conduz a concepções básicas:
1º – a natureza humana como natureza; 2º – o conceito clássico e 3º – o conceito
moderno. Ascenderemos a elas mediante um procedimento histórico.

A natureza humana como natureza: o naturalismo


O conceito de Natureza, como quase todos os grandes conceitos da filosofia, tem
origem grega. Provém da palavra latina natura, que é uma tradução do grego physis,
um substantivo cuja raiz phyo significa nascer, brotar, surgir, produzir, crescer etc.
No mundo grego, a pergunta pela Natureza foi, inicialmente, uma pergunta pelo
sentido e pelo significado de todo o real, também pelo fundo último de tudo que
existe e, desde essa perspectiva, se identifica inicialmente com a arché dos pré-
socráticos, o princípio último que dava sentido e explicava todo o real. Explica
Zubiri que, "quando o homem grego se enfrenta com o universo perguntando o
que é a Natureza, entende por Natureza o conjunto de tudo quanto existe: conjunto
não somente no sentido de que seja a Natureza uma soma das infinitas coisas que
existem no universo, mas sim, sobretudo, no sentido de que, naturalmente, brotam
da Natureza todas essas infinitas coisas e dentro delas o homem, com seu próprio,
pessoal e individual destino. Por isso este conjunto, natura, physis, Natureza".
A Natureza é simplesmente o conjunto do que existe e que possui em seu interior uma
força originária e dinâmica que gera o maravilhoso fluxo da matéria e da vida que o
homem pode contemplar. O ar, o fogo, o vento, a água, os materiais e as rochas, as
plantas e os animais nascem, crescem, se desenvolvem, vivem e morrem impulsiona-
dos por uma tensão e força interior que os dirige e os orienta. Tudo isso é natureza.
Essa é a origem e o primeiro significado do termo "natureza"; um significado que
permanece vigente literalmente na nossa linguagem e que poderíamos traduzir
– de maneira repetitiva, pois os conceitos primários só se podem descrever –
como o conjunto das coisas naturais, ou seja, o cosmo, as plantas e os animais.
Pertence o homem à natureza? Decerto pertence. A natureza é tudo. O proble-
ma é até que ponto se diferencia. Diógenes de Apolônia e Demócrito usaram a
expressão Antrophine physis (natureza humana), apontando assim à necessi-
dade de distinguir o homem dos demais seres, porém, em geral, os gregos não
insistiram nessa diferença e, sobretudo, não o fizeram por meio do conceito de
natureza que ficou referido e fixado fundamentalmente ao mundo natural. Só por
extensão se aplicaria aos homens. O que nos interessa é o fato de que o mundo
grego gera uma primeira concepção do termo natureza que é, por outro lado, a
mais difundida atualmente, e que se identifica com o mundo configurado pelos
seres materiais e biológicos e pelas leis que os governam. Assim, em boa medi-
da, natureza é o mundo específico do não humano, ao qual o homem pertence
somente identificando-se com ele (perdendo desse modo sua humanidade).

Que conteúdos implica hoje em dia esse conceito?


A natureza assim entendida sugere perfeição, beleza, espontaneidade, har-
monia, pureza, antiguidade não violada, situação originária. Contém a ideia de
princípios ou leis de desenvolvimento estabelecidos por vias independentes do
homem, que este não pode alterar nem controlar internamente.

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172 © Antropologia Filosófica

[...] Nem todos os filósofos e pensadores estão de acordo a respeito de que se


possa ou se deva estabelecer uma distinção estrita entre natureza e natureza hu-
mana. Para a corrente contemporânea que Spaemann denominou "fisicalistas"
e que nós determinaremos "naturalistas" por abarcar espectro mais amplo de
ideologias, é mais uma posição que sempre existiu. Pensemos, por exemplo, nos
atomistas. A natureza humana não é uma natureza especial, não se diferencia
essencialmente da natureza dos animais e das plantas, por isso entra perfeita-
mente dentro do reino da natureza e forma parte dele.
[...] Embora a diferenciação entre o homem e o animal seja evidente, nem sem-
pre é fácil precisar conceitualmente em que consiste exatamente, já que muitos
animais, e especialmente os denominados superiores, realizam funções simila-
res às humanas.

O conceito clássico de natureza humana


O conceito básico de natureza humana que estamos apresentando nos conduz
fundamentalmente a Aristóteles. Esse conceito de natureza, com muito poucas
modificações, é o que tem perdurado ao longo dos séculos e teve – por intermé-
dio da tradição aristotélico-tomista, uma influência imensa no pensamento oci-
dental em geral e no cristianismo em particular. Como exemplo, podemos usar
o impressionante projeto especulativo de definição dogmática dos mistérios tri-
nitários e cristológicos a partir dos conceitos de natureza e pessoa (hypostasis)
presente no cristianismo em seus primeiros séculos de existência. O grande mé-
rito de Aristóteles é a transferência do conceito de natureza do mundo empírico
ao filosófico, ação que se consolidaria pela elucidação precisa e poderosa de um
princípio fundamental da realidade que – no marco de um sólido quadro metafí-
sico – se converteria em um dos conceitos-chave do pensamento filosófico oci-
dental, seja – como sucedeu inicialmente – para assumi-lo, seja, como sucederia
a partir da modernidade, para rejeitá-lo.
[...] Da perspectiva de Aristóteles, o homem tem uma natureza como o resto dos
seres, pois, na medida em que se é algo, tem-se inevitavelmente uma essência
e um princípio de operações, isto é, uma natureza; porém, diferentemente dos
demais entes – e isso é o fundamental –, pode aderir ou não livremente a ela;
pode atuar segundo o que ela lhe dita ou opor-se a essas indicações. Aqui está
a diferença essencial graças à qual é possível salvar a noção de natureza para o
homem e aplicar-lhe uma noção que, inicialmente, não só não tinha sido forjada
para ele, e sim para distinguir algumas realidades (as naturais) desse mesmo
homem. Em definitivo, no que se refere a Aristóteles, temos o seguinte. O con-
ceito metafísico de natureza é aplicável a todos os entes e implica basicamente
duas ideias distintas:
O que as coisas são, o porquê das coisas. A natureza de uma coisa indica seu
modo de ser, e, nesse sentido, é um conceito próximo à essência;
O princípio intrínseco de movimento das coisas, que as faz tender para seus fins;
a natureza, desse ponto de vista, é um princípio dinâmico e ativo [...]

O conceito moderno de natureza: culturalismo


Quando falamos de modernidade, geralmente citamos Descartes, e nos referi-
mos a sua separação radical de substância: res extensa, res cogitans. A physis
aristotélica – como acabamos de ver – nunca havia sido uma realidade estática e
passiva, mas, ao contrário, a fonte intrínseca do movimento de cada ser. Porém,
© U4 - Ser em Relação 173

Descartes reduz a corporeidade à extensão, expulsando automaticamente os


princípios do movimento para as dimensões espirituais da pessoa. O corpo se
converte desse modo em uma máquina passiva movida pelo espírito (o dualismo
do "Fantasma na máquina" criticado por Pinker, entre outros).
[...] Uma observação conclusiva que talvez possa surpreender à primeira vista,
que, porém, é perfeitamente certa. Em realidade, a concepção moderna do con-
ceito de natureza coincide com a perspectiva naturalista (BURGOS, J. M. 2007,
p.18-37. Tradução nossa).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

10. CONHECIMENTO DO SER HUMANO BIO-PSÍQUICO-


-ESPIRITUAL
A racionalidade é uma característica que define o homem.
A vida intelectual do homem, entre outras coisas, faz possíveis as
ciências, a cultura, o comportamento ético.
Na Antiguidade, os gregos perceberam a importância do inte-
lecto (nous) porque, como diz Aristóteles (1973), no Livro X da Ética
a Nicômaco, com ele participamos do divino. Denominavam Nus ou
Nous a inteligência; a seu ato intelectivo, denominam ánoesis, cha-
mando o objeto de noema. O termo intellectus é de origem latina
e significa "entre-ler". Santo Tomás (apud MONDIN, 1983) diz que a
inteligência "entre-lê" as linhas da escritura do mundo fenomênico.
O intelecto vê na natureza das coisas – intus legit – mais profunda-
mente do que os sentidos sobre os quais exerce sua atividade.

Quando se fala em entendimento, há uma regra de ouro: nihil est


in intellectu quod prius non fuerit in sensu. "Nada há no entendi-
mento que não tenha sido dado pelos sentidos".

Formas de conhecer o mundo


Denominamos conhecimento à possessão intencional ou
imaterial de algum aspecto da realidade. No ato do conhecimento,
o sujeito que conhece se enriquece à medida que entra em conta-
to com os diferentes modos do ser. A ação de conhecer permite ao
homem estender seus limites e abrir-se à reflexão.

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174 © Antropologia Filosófica

Na existência, o conhecimento humano forma com o objeto


um ditongo inseparável. O objeto é o outro, aquele que opõe re-
sistência, mas que dá conteúdo ao ato cognitivo. O conhecimento
humano possui dois níveis: o sensível (nível do fenômeno) e o in-
telectual (no nível do fundamento). Enquanto o sensível tem de-
pendência orgânica, depende de algum órgão do corpo, o conhe-
cimento intelectual, ainda que dependente das informações da
sensibilidade, é de responsabilidade da inteligência – que capta o
fundamento, a essência, o real. Sua potência não está estabelecida
em um órgão específico.
Você se perguntará: e o cérebro? Descartes já concebera a
mente como algo não material, que, ainda habitando a cabeça
dos homens, é, em essência, diferente do cérebro. Nenhuma ex-
plicação até hoje desvenda o mistério da profundidade da mente
humana, da capacidade de sentir, analisar e reagir ao mundo que
caracteriza o ser humano.
Voltando à capacidade de conhecer do ser humano, surge a
pergunta: qual é o objeto da inteligência?
Alguns pensadores dizem que o objeto da inteligência é o
ser. Para outros, é a essência das coisas materiais; para outros, a
verdade; ainda há os que afirmam que é a forma dos entes, ou a
quididade da coisa.
Santo Tomás (apud MONDIN, 1983) dizia que o ato de co-
nhecer ocupa praticamente o total do corpo da filosofia. Olhando
a evolução do pensamento filosófico até os dias de hoje, compro-
vamos que existem diferentes interpretações e perspectivas do
ato de conhecer.
Baseando-nos na essência do conhecimento, analisemos o
que as principais correntes filosóficas defendem sobre esse ponto:
• Realismo: o ponto de vista epistemológico, está centrado
no pressuposto de que há coisas reais, independentes da
consciência.
© U4 - Ser em Relação 175

• Idealismo: teoria onde o eu ocupa um primeiríssimo pla-


no. Parte do suposto de que o eu constrói o pensamento
filosófico sem necessidade da realidade exterior (não há
coisas reais independentes da consciência). A palavra ide-
alismo é utilizada em muitos sentidos, como o metafísico
e o epistemológico.
Do ponto de vista dos fundamentos, podemos dividir essas
correntes em:
1) Racionalismo: deriva de ratio, razão, e dá total e exclu-
siva confiança à razão humana. Encontramos uma forma
antiga de racionalsimo em Platão, que está imbuído na
importância do Mundo das Ideias. Essa forma de conhe-
cimento baseada na contemplação das ideias chega com
algumas variantes nas obras de Plotino e de Agostinho.
Mas é na Idade Moderna, com a obra de Descartes, que
o racionalismo experimenta uma importante intensifi-
cação. Como diz Descartes, "Nunca nos devemos deixar
persuadir senão pela evidência de nossa razão" (HESSEN,
2003, p. 48-53).
2) Empirismo: do grego empeiria, experiência sensorial.
Para entendê-lo, Locke escreve: "nada vem à mente sem
ter passado pelos sentidos, nossa mente nasce como um
papel em branco, sem ideias pré-existentes" (HESSEN,
2003, p. 54-59).
3) Apriorismo: Posteriormente, Kant, crente de ter con-
cretizado a "revolução copernicana", converte o sujeito
pensante, além das formas, no epicentro de sua teoria
do conhecimento. Para esse pensador, toda a realidade
gira ao redor do pensamento do sujeito capaz de conhe-
cer. O conhecimento da realidade deve surgir do centro
espiritual do sujeito. Esses métodos refletem uma típica
noção idealista, onde o espírito é o único responsável
por construir a realidade (HESSEN, 2003).
4) Intelectualismo: o homem pensado na Antropologia Fi-
losófica possui um espírito aberto à transcendência. Não
possuímos a capacidade de conhecer a priori a matéria,
forma e a realidade do objeto, mas, pela intuição intelec-

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176 © Antropologia Filosófica

tual, podemos ter "um ver imediato" anterior ao raciocí-


nio e ao discurso intelectual. Como diz Mandrioni (1954)
em Introdução à Filosofia: essa capacidade é distintiva
do intellectus. Assim, o objeto da inteligência é o ente,
como indivíduo, que tem uma essência que é um ser.
Se a inteligência consegue apreender o ser em todas as
suas dimensões, ela estará em possessão da verdade.

Os antigos distinguiam intellectus de ratio, faculdade puramente


discursiva e hábito dos primeiros princípios.

Essa teoria de conhecimento está integrada à concepção de


homem como unidade substancial. A inteligência humana, faculda-
de espiritual, depende da experiência sensível. Com base no dado
sensível dos sentidos, apreende o ser que está presente na reali-
dade material. Esse ato de alcançar a essência do ser da coisa pos-
sibilita a concretização da imagem espiritual pelo entendimento, o
agente para, posteriormente, se chegar ao conceito.
Até aqui, pudemos perceber claramente a importância da
constituição biológico-psíquico-espiritual do ser humano no co-
nhecer e no chegar à verdade. Cada dimensão contribui com uma
chave para o ato do conhecimento; a soma dos sentidos, das emo-
ções e da abstração inteligível possibilita que o sujeito conheça o
objeto cognoscente.
A seguir, estudaremos uma definição para "conceito".

Conceito
O primeiro ato da inteligência é a reprodução do real de uma
forma intelectual para ser transmitida no discurso. Esse primeiro
ato consiste em formar uma ideia da coisa abstraída que está fora
de nós. Nada é afirmado ou negado nesse primeiro ato intelectivo
– essa etapa pertence ao juízo, que é um movimento posterior.
Dessa forma, precisamos levar em conta que abstrair nunca
pode significar distorcer ou dar uma ideia equivocada da realida-
© U4 - Ser em Relação 177

de; esse movimento espiritual, que significa aprofundar-se na re-


alidade até o permanente e imutável, tem relação genuína com o
ser da coisa.
Note que a realidade necessita ser expressa com fidelidade
no discurso, já que não é uma construção independente nossa.
Por isso, os conceitos precisam ter validade universal, têm de ser
precisos, e o discurso que os revela deve ser coerente e lógico.
O conceito deve ajustar-se com máxima fidelidade ao objeto.
Pretender reduzir o conceito ou ideia a uma construção subjetiva é
privá-lo da natureza individual que o caracteriza.
A forma de conhecimento que define o conhecer como o ato
de unir-se ao outro ser é característica dos pensadores contem-
porâneos. A filosofia contemporânea caracteriza-se por rejeitar o
idealismo; o "eu" não é aceito isoladamente, necessita do contato
com a experiência, com o mundo. Essa forma de conhecimento
está baseada no conceito de intencionalidade, porque, fenome-
nologicamente, todo conhecimento precisa da participação da
consciência (intelectual). Intelectualizar é ter consciência de algo.
A relação criada com o objeto é intencional e enriquece o sujeito.

Dinâmica do conhecer
Sempre que analisamos a dinâmica do conhecer, desembo-
camos no problema da verdade. E, como diz Pascal (1999), deve-
mos conhecer o efetivo, mas também existe o afetivo. Aqui entra-
mos na dimensão pascaliana de "coração" (coeur):
Nós conhecemos a verdade não somente pela razão, mas ainda
pelo coração. É desta última maneira que conhecemos os primeiros
princípios e é em vão que o raciocínio, que não toma parte nisto,
tenta combatê-los. [...] (PASCAL, 2001, p. 282).
Pois os conhecimentos dos primeiros princípios: espaço, tempo,
movimento, números, são tão firmes quanto qualquer daqueles
que os nossos raciocínios nos dão e é sobre esses conhecimentos
do coração e do instinto que é necessário que a razão se apóie e
fundamente todo o seu discurso. (PASCAL, 2001, p. 267).

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O coração pascalino tem duas funções, uma volitiva, outra


cognitiva. Serve como órgão de conhecimento, já que é ele que
possui os primeiros princípios.
O real se mostra ao homem como verdade e é interiorizado
como conhecimento, mas também se mostra como bem, por isso
Pascal explica que, junto com o conhecimento, o homem deve es-
tar aberto à potencia da afetividade.

11. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Leia a síntese apresentada e indique a única alternativa errada.
O eu (ontológico) é o centro da pessoa, onde se organiza a realidade bio-psíquico-
-espiritual. Este termo, "pessoa", é indicador da singularidade que caracteriza o
ser humano. Todo ser humano tem uma dimensão psicológica ou eu psicológico, é
sujeito social e desenvolve uma construção epistemológica. Mas a condição espi-
ritual do homem possibilita que sejamos pessoas, mesmo estando condicionados
ao mundo da matéria.
a) Por ser um ser no mundo, a pessoa sempre se expressa de forma física
e espiritual.
b) Tudo no homem é pensado, negociado, avaliado. Não existem instintos
cegos ou paixões de forma autônoma.
c) O homem não vive imerso no meio ambiente, não vive na imediativi-
dade. Vive na mediação da liberdade, dentro de um mundo humano,
estruturado pela cultura.
d) O homem, como ser no mundo, tem necessidade de entrar em comuni-
cação com outras pessoas (outros "eus") e assim deixa de ser ele mes-
mo.
2) Analisemos o pensamento do filósofo P. Ricoeur (1991), que diz que a se-
xualidade ocupa um lugar de destaque na antropologia, visto que tem uma
ressonância que se manifesta em todo o corpo. Não podemos pensar que a
sexualidade humana pode ser simplesmente reduzida à sexualidade animal,
pois a sexualidade humana deve estar sempre inserida dentro do universo
do amor. Podemos afirmar que:
a) O encontro homem-mulher reveste-se de um caráter especial por serem
ambos espirituais.
b) A relação amorosa não é exclusiva do corpo. Nessa relação, não enxerga-
mos somente o físico.
© U4 - Ser em Relação 179

c) Todo movimento egocêntrico denota um fracasso no homem e, normal-


mente, desemboca no niilismo, representado pela procura da satisfação
individual. Dessa forma, o outro se torna objeto.
d) O personalismo filosófico, partindo da análise da estrutura do existente
humano, explica que o amor é o sentimento de possessão do outro.
3) A seguinte teoria de conhecimento está integrada à concepção de homem
como unidade substancial. Indique a única alternativa correta.
a) A inteligência humana, faculdade espiritual, não depende da experiência
sensível, que é falha e cheia de imprecisões.
b) O conceito, primeiro ato da inteligência, é a reprodução do real de forma
vaga e generalizada. A apreensão do nome é a forma intelectualizada.
c) A filosofia contemporânea caracteriza-se por rejeitar o idealismo; o "eu"
não é aceito isolado, necessita do contato com a experiência, com o
mundo.
d) Note que a realidade necessita ser expressa no discurso, que é imperfei-
to por estar baseado em convenções determinadas por necessidade.
4) Reflita sobre a seguinte questão:
Se aceitarmos que somos pessoas pela vontade de Deus, como diz Lévinas, se
reconhecemos que no rosto do outro encontramos Deus, a imortalidade pode
formar parte de nosso projeto pessoal?

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) d.

2) d.

3) c.

4) Conclusão pessoal.

12. CONSIDERAÇÕES
Chegamos ao final de nosso estudo do CRC Antropologia
Filosófica. Em seu transcurso, vimos que esta disciplina surge na
primeira metade do século 20, conjuntamente com a tensão en-
tre humanismo e anti-humanismo, o interesse pela tecnologia e a
preponderância ideológica dos sistemas que propõem o mercado

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180 © Antropologia Filosófica

de consumo. A proposta central da Antropologia Filosófica é en-


tender o lugar do homem no universo, bem como sua natureza e
seu destino. Em outras palavras, é responder à questão: "Quem é
o homem?" Ou melhor: "Quem sou eu?" Como despedida, deixa-
mos uma refeflexão de José Saramago, escritor português:
Acho que na sociedade atual nos falta filosofia. Filosofia como
espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objetivo
determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objeti-
vos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar,
e parece-me que, sem idéias, não vamos a parte nenhuma (apud
MERCADO ÉTICO, 2011).

13. E-REFERÊNCIAS
MERCADO ÉTICO. É urgente voltar à filosofia e à reflexão. Disponível em: <http://
mercadoetico.terra.com.br/arquivo/e-urgente-voltar-a-filosofia-e-a-reflexao/>. Acesso
em: 16 jan. 2012.
PLATÃO. O Banquete (o amor, o belo). Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.
br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2279>. Acesso em: 16 jan.
2012.

14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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2000.
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2001.
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CABADA, M. La vigéncia del amor. Madrid: San Pablo, 1994.
CYRULNIK, B. El amor que nos cura. Barcelona: Gedisa, 2004.
DURKHEIM, E. Sociologia e filosofia. São Paulo: Ícone, 2003.
FRANKL, V. Psicoterapia e sentido da vida. Fundamentos da logoterapia e análise
existencial. São Paulo: Quadrante, 2003.
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Completas).
FROMM, E. A arte de amar. Belo Horizonte: Itatiaia, 1970.
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HEIDEGGER, M. Ser e o tempo. Petrópolis: Vozes, 2003.


HESSEN, J. Tratado de filosofia. Tomo III. Buenos Aires: Sudamericana, 1962.
______. Filosofia dos valores. Tradução de Cabral de Moncada. Coimbra: Armênio Amado
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MANDRIONI, H. Introdução à filosofia. Buenos Aires: Troquel, 1954.
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1989.
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