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Andréa Lage

DE RAINHA DO TERREIRO A ENCOSTO DO MAL:


UM ESTUDO SOBRE GÊNERO E RITUAL

RIO DE JANEIRO
2007
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Andréa Lage

DE RAINHA DO TERREIRO A ENCOSTO DO MAL:


UM ESTUDO SOBRE GÊNERO E RITUAL

Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em


Sociologia e Antropologia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como parte dos
requisitos necessários à obtenção do grau de
Doutor em Antropologia.

Orientadora: Profª Yvonne Maggie

RIO DE JANEIRO

2007
LAGE, Andréa M.
De rainha do terreiro a encosto do mal: um estudo sobre o gênero e ritual./
Andréa M. Lage – Rio de Janeiro, 2007.
290 f.

Tese (Doutorado em Antropologia) – Programa de Pós-graduação em


Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Orientadora: Yvonne Maggie

1. Pombagira. 2. Possessão. 3. Umbanda. 4. Candomblé. 5. Rituais. 6.


Gênero. 7. Igreja Universal do Reino de Deus. 8 Neopentecostalismo. I. Título.
II. Maggie, Yvonne.
CDU 39
Aos meus pais, ao Daniel e à Júlia pelo
amor incondicional. Ao João e à Yollah
pelo carinho. Á Liz e ao Rodrigo, pela
força ao longo desta travessia.
Agradecer as colaborações e estímulos, dentre outros atos significativos
para a elaboração de uma tese, não é tarefa fácil. Desde as primeiras tentativas de cursar um
doutorado até o dia em que nos situamos diante de uma banca para discutir nossos erros e
acertos, contamos com muitas palavras de estímulo, gestos de ajuda e de incentivo, sem os
quais, certamente, não haveria como concluir a travessia. Por isso, registrar no papel todos
esses gestos sem esquecer seus autores deixa-nos com receio de que, por uma falha de
memória, esqueçamos alguém.

Inicialmente, agradeço à minha orientadora, Professora Yvonne Maggie, por


todo o seu incentivo e apoio, desde o momento em que aceitou atuar como minha
orientadora até o acompanhamento de todo o processo de construção do meu objeto de
estudo e elaboração do documento final. A sua larga experiência nos terreiros e nos
assuntos do “povo-do-santo” constituiu, para mim, um manancial importantíssimo no que
diz respeito à busca de informações e, mais do que isso, à vivência de uma prática
acadêmica extremamente prazerosa e estimulante.

Agradeço também à equipe dos professores do PPGSA, e especialmente


àqueles que atuaram mais diretamente nessa caminhada. Nesse sentido, agradeço à
Professora Elsje Lagrou, por sua atenção, seja disponibilizando-se a conversar comigo, seja
permitindo assistir a suas aulas instigantes.

Agradeço ao Professor Peter Fry, por sua contribuição com as excelentes


aulas, ministradas em conjunto com a Professora Yvonne Maggie, e, além disso, por sua
atuação na banca do meu exame de qualificação.

Também não poderia deixar de agradecer à Professora Mirian Goldenberg,


pelas ótimas discussões que tivemos ao longo de seus cursos, como também por ter
aceitado participar do exame final dessa tese. Nesse sentido, o agradecimento se estende ao
Professor Emerson Giumbelli, especialista no campo da Antropologia da Religião e ao
Professor Fabiano Gontijo.
Ressalto também meu agradecimento ao Professor Vagner Gonçalves da
Silva, que se disponibilizou a integrar a banca examinadora desta tese. Certamente, as
avaliações, críticas e sugestões desse grande estudioso e especialista nas religiões afro-
brasileiras serão de extrema valia para o prosseguimento de meus estudos sobre as
representações e práticas referentes ao “povo-do-santo”.

Mas, os agradecimentos vão além desses professores, abrangendo também


Claudia, Denise e Cristina, que, com atenção e disponibilidade, ajudaram-me a solucionar
outras questões referentes ao doutorado.

Com efeito, também é necessário agradecer às pessoas que me auxiliaram


mesmo antes do meu ingresso no PPGSA. Assim, não poderia me esquecer do incentivo da
Professora Lea Perez, antropóloga e professora da UFMG, nem do apoio do Professor
Pierre Sanchis. Já com a intenção de seguir meus caminhos, depois de concluída a minha
dissertação, orientada por ele, lembro-me das palavras de estímulo desse mestre, a quem
devo a descoberta e a paixão pela Antropologia. O seu apoio e estímulo foram essenciais
para essa nova aventura antropológica nos terreiros de Minas.

No entanto, a possibilidade de realizar este estudo dependeu também de


outras pessoas, que me abriram portas e me trataram com carinho durante a pesquisa. Sendo
assim, agradeço ao Geraldo, que, nos intervalos de seu trabalho nas coleções de jornais
antigos da Hemeroteca Pública, contribuiu para minha pesquisa ensinando-me sobre os
terreiros e as “coisas do santo”, conhecimento adquirido na intensa vivência nos terreiros.

Este agradecimento é extensivo à sua família e, sobretudo, à Jacqueline, sua


esposa, cuja passagem para outros mundos nos deixou com muita saudade. Agradeço
também ao Pai Reginaldo de Oxóssi e aos integrantes de seu terreiro, em especial ao Xodó,
ao Manoel, à Lembá, à Angela e à Cristina, por terem me acolhido com boa vontade
durante toda a pesquisa.
Ainda no que diz respeito à minha convivência com o “povo-do-santo”,
agradeço ao Bocão, amigo e mestre de capoeira, que me colocou em contato com o terreiro
de sua antiga mãe-de-santo, Maria de Moura. Nesse sentido, agradeço, in memoriam, a essa
ialorixá pela permissão e atenção durante a minha pesquisa em seu terreiro, cujos
integrantes também foram sempre atenciosos. Assim, agradeço também aos seus filhos
Glaison e Ricardo, a sua nora Sheila e ao seu neto Gabriel, que, ainda muito criança,
ensinou-me a cantar vários pontos de terreiro. Resta ainda agradecer à Elaine, à Ângela e ao
Ubirajara (Bira), bem como aos demais integrantes da Casa de Caridade Pai Jacob do
Oriente, que me dispensaram sempre atenção quando solicitados.

Mas é preciso agradecer ainda àqueles que, mesmo longe dos terreiros,
ajudaram-me a entender o meu objeto de estudo em consonância com o que se constitui de
mais essencial em nosso ser. Sendo assim, agradeço à Yollah e ao José James, pessoas
especialíssimas, que vêm me acompanhando ao longo da vida e que a cada dia me ensinam
mais a ver os matizes e a riqueza do que chamamos “feminino”.

Sem pretender esgotar esses agradecimentos, tenho de referir a ajuda


incansável de Liz e de Rodrigo, pessoas com quem pude contar nos bons e difíceis
momentos do dia-a-dia da pesquisa. Sem o apoio e a disponibilidade dessas pessoas talvez
eu não tivesse chegado ao fim desta tese.

Já em relação ao aconchego da casa e da família, tenho de agradecer ao meu


pai e amigo querido, que, mesmo me vendo de outros mundos, certamente deve estar feliz
por essa minha conquista. Agradeço também à minha mãe querida, cuja atenção, carinho e
extrema sensibilidade muito me ensinaram sobre a construção de um “feminino”
fundamentado na ajuda e no amor incondicional.

Finalmente, agradeço ao João, à Júlia e ao Daniel, pelo carinho, estímulo e


cuidado. Depois dessa jornada, com todos os seus percalços, verdadeiros ritos de passagem,
valorizo ainda mais a ajuda dessas pessoas queridas, sem as quais o mundo perderia a cor.
Deixo registrado também o agradecimento à licença que me foi concedida
pela Fundação João Pinheiro e ao auxílio financeiro concedido pela Fapemig durante o
período do doutorado.

Agradeço ainda a Helena Schirm pela ajuda essencial na finalização deste


volume, como também aos alunos da Faculdade Metropolitana de Belo Horizonte. Em
especial agradeço à Professora Anna Edith Bellico, por seu estímulo e compreensão.
If anthropoly has taught us anything, it
is to be wary of taking anything for
granted, especially the axiomatic
values of our own particular cultural
heritage.
Victor Turner

É fatal ser homem ou mulher, pura e


simplemente;
é preciso ser masculinamente feminina
ou femininamente masculino.

Virgínia Woof
RESUMO

O presente estudo tem por objetivo principal analisar as representações e


práticas rituais criadas sobre a pombagira, uma importante entidade do panteão afro-
brasileiro. A partir de pesquisas realizadas em terreiros e em Sessões de Descarrego da
Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), apresentam-se os diferentes aspectos dos ritos
de possessão criados em torno dessa entidade, sejam eles de homenagem ou de exorcismo.
Partindo das idéias de Turner, o objetivo é mostrar que esses ritos de possessão criados
sobre a pombagira permitem aos integrantes dos terreiros, sejam homens ou mulheres,
experimentar momentos de maior liberdade do que aqueles relativos ao cotidiano, como
também vivenciar conflitos e tensões correlacionados à feminilidade exacerbada dessa
entidade.

Palavras chaves: Pombagira. Possessão. Umbanda. Candomblé. Rituais. Gênero. Igreja


Universal do Reino de Deus. Neopentecostalismo
ABSTRACT

The present study has as main objective to analyze the representations and
practices of rituals created about pombagira, an important entity of the Afro-Brasileira
pantheon. From research carried out in terreiros as well as Sessions of Descarregos of
IURD we present the different aspects of the rites of possessions of pombagira be they of
praise or exorcism. Following Victor Turner ideas, the men and women, taking part on the
rites feel moments of more liberty than the ones they have in their everyday life, but those
men and women also experience moments of conflicts and tensions under the influence of
such an exacerbated feminine entity.

Key Words: Pombagira. Possession. Umbanda. Candomblé. Rituals. Gender. Igreja


Universal do Reino de Deus. Neopentecostalism.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 14
1.1 A Pombagira ............................................................................................................. 14
1.2 Terreiros e inversões ................................................................................................ 21

2 MACUMBAS E MALEFÍCIOS ................................................................................. 29


2.1 Um breve parêntese: “Coisas do demônio ?” ......................................................... 36
2.2 Pesquisando em terreiros ......................................................................................... 38
2.3 À procura de pombagiras ........................................................................................ 45

3 OS TERREIROS E SEUS RITOS DE POSSESSÃO .............................................. 48


3.1 As linguagens da possessão ...................................................................................... 52
3.2 Ritos de possessão: relações indivíduo – sociedade ............................................... 54
3.3 Orixás, espíritos e “cavalos”: possessão e reciprocidade ...................................... 56
3.4 Possessões plenas ou parciais? ................................................................................. 57
3.5 “Correndo a gira” ..................................................................................................... 61
3.6 Dialogando com as entidades ................................................................................... 62
3.7 Possessão: poder liminar e gênero .......................................................................... 64
3.8 A possessão e a construção de diferenças entre os gêneros ................................... 67

4 VIRANDO NA POMBAGIRA ................................................................................... 71


4.1 Pombagiras : o jogo entre o “mesmo” e o “outro” ................................................ 81
4.2 Angélica e sua pombagira Cigana ........................................................................... 85
5 POMBAGIRA: O PERIGO E O PODER DAS “MARGENS” .............................. 90
5.1 Sobre Exu e exus ....................................................................................................... 93
5.2 “Exus-machos” e pombagiras ................................................................................. 94
5.3 O feminino e os caminhos de um imaginário ....................................................... 104
5.4 Pombagiras; prostitutas em terreiros? ................................................................. 108
5.5 Antônia e sua pombagira: um feminino não domesticado .................................. 113
5.6 Breves considerações sobre Antônia e sua pombagira ........................................ 116

6 OUTRAS HISTÓRIAS ............................................................................................. 121


6.1 Mãe Rita e sua pombagira Ana Padilha ............................................................... 121
6.1.1 No terreiro de Mãe Rita ......................................................................................... 121
6.1.2 A história da mãe-de-santo .................................................................................... 125
6.2 No Terreiro de Pai Carlos ...................................................................................... 129
6.2.1 Encontrando Maria Quitéria .................................................................................. 132
6.2.2 A consulta com Quitéria ........................................................................................ 134
6.2.3 Conversando com Quitéria .................................................................................... 138
6.2.4 O mito de Quitéria ................................................................................................. 141
6.2.5 Alguns comentários sobre o mito .......................................................................... 144
6.2.6 A festa de Quitéria ................................................................................................. 152
6.2.7 Sobre a festa .......................................................................................................... 159
6.3 Pesquisando no terreiro de Mãe Mariinha ........................................................... 164
6.3.1 Encontrando Maria Bonita ..................................................................................... 171
6.3.2 Refletindo sobre o encontro ................................................................................... 176
6.3.3 Sessão de Exu no terreiro de Mãe Mariinha .......................................................... 178
6.3.4 A festa dos exus ..................................................................................................... 186
6.4 Questões “boas para pensar” ................................................................................ 190
14

6.4.1 Pombagiras “doutrinadas” ..................................................................................... 195


6.4.2 O depoimento do pai-de-santo ............................................................................... 196

7 DENTRO E FORA DOS TERREIROS: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS DE


LIZ ............................................................................................................................... 201
7.1 Nas giras da umbanda ............................................................................................ 205
7.2 Convivendo com os exus ........................................................................................ 205
7.3 Pombagiras no terreiro de D. Sônia ...................................................................... 208
7.4 Afetividade e violência na relação com os espíritos ............................................. 214
7.5 A “Passagem” .......................................................................................................... 226

8 POMBAGIRAS NA IURD ........................................................................................ 232


8.1 A demonização da pombagira ............................................................................... 233
8.2 A pombagira e o mal .............................................................................................. 245
8.3 Orai, vigiai e se purificai ........................................................................................ 249
8.4 Possessão e libertação ............................................................................................. 258

9 CONCLUSÃO ............................................................................................................ 264

REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 275


14

1 INTRODUÇÃO

1.1 A Pombagira

Pombagira é um nome encontrado no universo do "povo-do-santo” para se


referir a uma entidade prestigiosa, que, integrando o universo dos exus na sua versão
feminina, freqüentemente "desce" nos terreiros para “dar consultas” e "fazer trabalhos" no
plano da “espiritualidade”. No campo religioso afro-brasileiro, representado pela umbanda
e pelo candomblé, a pombagira é dotada de atributos peculiares, os quais a deslocam para
um espaço de liminaridade.

O presente estudo se constrói na tentativa de compreender o tipo de


feminilidade expresso pela pombagira nos campos religiosos específicos representados pelo
candomblé, a umbanda e o neopentecostalismo. Assim, buscamos entender as
particularidades e singularidades expressas por esta entidade, seja por meio dos sistemas de
representações de determinados grupos e indivíduos, seja a partir das práticas e
experiências relacionadas tanto ao cotidiano quanto aos rituais desses grupos religiosos.

Não só os nomes, mas as próprias concepções e atributos referentes à


pombagira colocam-nos diante de diferentes visões dessa personagem, as quais apontam
para uma realidade caleidoscópica e multifacetada, portadora de múltiplos sentidos e
significados para grupos e indivíduos, na maioria das vezes, pouco afeitos às definições e
conceituações contidas nos estudos socioantropológicos.

Partindo de um quadro em que a pombagira adquire diferentes sentidos, a


etnografia aqui desenvolvida buscará, inicialmente, conhecer as práticas e representações
criadas em torno dessa personagem "feminina" nos terreiros de Belo Horizonte e suas
imediações, para, em seguida, cotejarmos esse universo simbólico com outros significados
que a pombagira adquire no neopentecostalismo e, sobretudo, em suas Sessões de
“Libertação" e de “Descarrego”.
15

A escolha desses dois campos religiosos pautou-se pelos contrastes


significativos que apresentam em relação às visões e experiências relacionadas à
pombagira. A existência de contrastes, entretanto, não significa que se esteja diante de
representações sobre a pombagira que sempre se excluam mutuamente. Pelo contrário,
estende-se, sobretudo entre a umbanda e o neopentecostalismo, um conjunto de
representações sobre a pombagira que, aqui e ali, convergem, ainda que a forma ritual de
lidar com a personagem seja tão manifestamente diversa. Em síntese, determinadas
caracterizações da pombagira são comuns nos dois campos, assim como determinados
sentimentos que ela desperta enquanto “espírito sedutor”. Afinal, o prestígio e o poder de
que a personagem é revestida nos terreiros de umbanda não podem ofuscar o fato de que lá,
além de proporcionar proteção e benefícios em diferentes planos, ela também inspira temor,
sendo concebida ainda como uma entidade capaz de trazer malefícios significativos aos
indivíduos e grupos em vários níveis.

O que se verifica é que, nos terreiros são cultuadas entidades marcadas por
um caráter ambivalente, como os exus. Assim, o transitar entre as fronteiras do bem e do
mal confere a pombagira até mais prestígio, o que se vê nas festas e ritos que lhe são
dedicados. Observamos que tanto na umbanda quanto na Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD) tal entidade é vista como um espírito fortemente ligado à sedução, possuindo o
poder de aproximar ou separar radicalmente pessoas em termos de relações amorosas e
sexuais.

No que diz respeito a determinadas denominações neopentecostais e,


sobretudo à IURD, vale destacar a centralidade conferida ao diabo no seu sistema de
crenças, relacionando-o às pombagiras e aos exus, entidades consideradas malignas e
demoníacas. Assim, vários estudos, como os de Barros (1995), Birman (1997), Mafra
(2001), Mariz (1997) e Sanchis (1997), foram essenciais para a formulação de nossas
questões.
16

Transcendendo o cotidiano desses grupos religiosos afro-brasileiros e


neopentecostais, esta etnografia também terá como foco alguns de seus rituais, momentos
privilegiados para a observação de símbolos que se apresentam articulados com um maior
grau de evidência e poder em termos de sua eficácia mágico-religiosa.
Norteiam esta etnografia algumas questões, sendo a primeira de caráter
central: Como a personagem pombagira surge no universo religioso mineiro, fortemente
marcado por tradições católicas, pela atual expansão das igrejas evangélicas e também por
uma porosidade no campo religioso afro-brasileiro? Vale lembrar que, mesmo em terreiros
que tendem a defender uma posição ortodoxa em relação ao candomblé, encontram-se
práticas tradicionalmente ligadas ao universo da umbanda.

Desdobrando essa primeira pergunta, surgem outras indagações que também


fundamentam a construção da etnografia. Ao tratarmos de campos religiosos marcados pelo
fenômeno da possessão, julgamos necessário perguntar: Como os integrantes das igrejas e
terreiros estudados relacionam-se no nível das representações, das vivências corporais,
emocionais e afetivas com a pombagira? Como esses relacionamentos construídos por meio
de idéias, valores e experiências corporais específicas contribuem para a construção dessa
personagem feminina?

Partindo dessas representações e experiências ligadas à pombagira,


indagamos, ainda: Como a possessão (e o mundo de idéias, valores e experiências que ela
suscita) pode operar tanto no sentido de reafirmar idéias, valores, modelos e
comportamentos relacionados às noções de gênero presentes na sociedade mais ampla
quanto, ao contrário, promover a sua inversão? Com base em uma pesquisa inicial realizada
em terreiros belo-horizontinos, defendemos a idéia de que ali a pombagira reveste-se de um
imenso poder simbólico, sendo capaz de levar para dentro deles grande parte de sua
clientela. Assim, pôde-se observar como os membros e os freqüentadores dessas casas
(muitos deles assumidamente católicos) enfatizam a sua preferência pelo contato direto (em
festas, ritos e consultas particulares) com a pombagira. Nesse contexto, os jogos de búzios
ou de cartas despertam menor interesse quando comparados às conversas realizadas com
17

pombagiras, as únicas entidades que, na maioria dos terreiros pesquisados, dão consultas
particulares pagas e têm uma freguesia significativa.
Rompendo distâncias ou criando pontes eficazes entre a dicotomia “bem e
mal”, os integrantes e simpatizantes dos terreiros tomam as pombagiras como entidades
prestigiosas, uma vez que, devidamente reverenciadas e presenteadas, são capazes de
atender a quaisquer desejos, sem a menor preocupação com o resultado e o julgamento de
suas ações. Essa capacidade de transitar entre as fronteiras do proibido e do permitido, da
moralidade ligada ao bem e ao mal faz com que essa entidade seja associada à força e ao
perigo potencial, passando, então, a representar o "outro lado da civilização" (BIRMAN,
1983, p. 38), cujo caráter é marginal e ambíguo. Enquanto entidade liminar, a pombagira
surge associada ao "povo da rua" (com todo o seu potencial de desordem) e à sua distância
do "mundo da casa", universo onde devem imperar relações baseadas na lealdade, na
confiança e no afeto.

Todas essas colocações auxiliam-nos na compreensão da ambigüidade que


circunscreve o mundo mítico relacionado às pombagiras. Se para alguns indivíduos e
grupos essas entidades aparecem estritamente associadas ao diabo e ao mal, são por outros
considerados seres amorais e ambíguos que, exatamente por isso, representam "bons
mediadores e excelentes abridores de caminhos" (BIRMAN, 1983, p. 42).

Indo nesta direção, retomamos certas idéias de Mary Douglas (1976) e de


Victor Turner (1974 b) para relacionar o poder simbólico da pombagira ao seu caráter
ambíguo e transgressor. Trata-se, afinal, de uma personagem capaz de afirmar
determinados comportamentos relacionados a um tipo de sexualidade tradicionalmente
associado à imagem de mulheres “poluidoras” e “ameaçadoras”, como as “mulheres da
rua” e as prostitutas.

Desafiando padrões morais que, no domínio da "estrutura" (TURNER,


1974b), [...] tradicionalmente regulam e constrangem comportamentos femininos e
assumindo papéis sociais e sexuais somente permitidos à esfera do masculino, as
pombagiras quebram definições, na medida em que põem em xeque os limiares construídos
18

entre essas duas categorias. Dessa forma, torna-se altamente ambígua, (sobretudo no que
diz respeito às condutas éticas e ao exercício do bem e do mal), atributo que lhe faz
portadora tanto de perigo quanto de poder mágico (DOUGLAS, 1976), qualidades
conferidas aos grupos e indivíduos situados nas "margens", ou seja, em espaços marcados
pela liminaridade.

Na sua análise sobre a referida “poluição”, Douglas (1976) mostra o perigo


inerente às separações simbólicas do que deveria estar unido ou às uniões simbólicas do
que deveria estar separado. Retomando as idéias dessa antropóloga e articulando-as com
outras desenvolvidas por Corrêa (1995), mencionamos a forte caracterização da pombagira
como uma mulata sensual, de corpo bem feito e, na maioria das vezes, seminu. Tais
características podem ser percebidas no imaginário criado sobre essa entidade, veiculado
por inúmeras estatuetas encontradas nos terreiros e nas lojas de artigos religiosos. Se o
comportamento de mulher livre já situa a pombagira numa condição de margem,
certamente a sua cor mulata reforça significativamente o caráter liminar de sua figura.

Mas, afinal, quem é esta personagem que "desce" nos terreiros como uma
entidade portadora de extremo prestígio e de uma respeitabilidade que beira o temor, ao
passo que, em determinados cultos de igrejas evangélicas, surge demonizada e associada a
toda uma sorte de malefícios?

No universo do "povo-do-santo", a pombagira evoca múltiplas imagens


femininas. Baseando-se, muitas vezes, nos pontos cantados que veículam uma tradição oral,
umbandistas e candomblecistas mostram a associação dessa entidade com vários tipos de
mulheres, em geral, extremamente belas e sedutoras, como as ciganas das ruas e caminhos,
trajadas com vestes coloridas, trazendo pandeiro nas mãos e a face marcada pela alegria.
Outra imagem bastante recorrente é a de uma mulher de corpo sensual e seminu,, cuja face
é marcada por uma expressão de irreverência. Notamos que esse comportamento surge
associado à figura ameaçadora da “outra” (GOLDENBERG, 1997), uma figura do
“feminino” liminar capaz de destruir matrimônios, dentre outras relações estáveis entre
casais. Alguns relatos sobre as pombagiras relacionam essas entidades a mulheres que se
19

perderam e, sem opção, entraram para o mundo da prostituição e dos cabarés, adquirindo aí
um saber altamente erótico. A pombagira surge ainda relacionada a mulheres que sofreram
demasiadamente e cometeram crimes, passando, por isso, a viver numa condição de
marginalidade. Às vezes, essa situação marginal diz respeito à pobreza material e faz surgir
personagens como a "Maria Mulambo", uma pombagira não raramente temida por seu
poder de gerar miséria e morte.

Em meio a todas essas variações, transparece, todavia, um fundo comum: a


condição de mulheres que, ao invés de se restringirem à moralidade convencional da casa
ou aos papéis de esposa e/ou mãe, romperam limiares referentes às categorias
masculino/feminino, sobretudo, no que toca ao livre exercício da sexualidade. Se, de um
lado, a vida dessas mulheres mostra um alto grau de liberdade quando comparado àquele
desfrutado pelas mulheres comumente relacionadas ao bem ou à família, de outro, também
evidencia o alto preço que pagaram pela transgressão desses limiares.

Com efeito, pesquisando o mundo de representações criado em torno das


pombagiras, pôde-se observar a sua atitude desafiadora diante de normas e valores sociais
que, acionados a partir de um contexto sociocultural marcado pela dominação masculina,
convergem para controlar as mulheres ou lhes remeter para o domínio dos comportamentos
femininos cotidianos, principalmente nos planos afetivo e sexual. Como veremos ao longo
da etnografia, essa atitude de desafio diante de um determinado ethos configura-se em um
tipo de performance e de eficácia mágica, características da entidade.

Ressaltamos, além disso, que o caráter marginal e liminar da pombagira,


quase sempre associado à figura da prostituta ou à de mulheres de moralidade duvidosa,
também surge diretamente ligado ao lugar hierárquico que ela ocupa no panteão
umbandista. Ali, exus e pombagiras, referidos como "povos de rua", situam-se num plano
de evolução marcado pela inferioridade. Longe de serem vistos somente como entidades
bondosas e desinteressadas, tais como os pretos-velhos e os caboclos, as pombagiras são, na
maioria das vezes, concebidas como espíritos pouco evoluídos, que não obedecem a um
código de ética pautado pelo exercício do bem.
20

Em verdade, o caráter ambíguo e imprevisível dessas entidades as associa à


entropia causada pelas crises que abalam e desestruturam a vida dos indivíduos e
sociedades, como as paixões avassaladoras, a entrega ao vício ou e à própria morte. Não é
por acaso que as pombagiras e os exus surgem relacionados às mortes trágicas, aos espaços
tradicionalmente reservados aos mortos (os cruzeiros das almas e cemitérios) ou aos
símbolos que evocam ambigüidades e perigos eminentes, como as ruas e as encruzilhadas.

Guardando raízes no universo das tradições afro-brasileiras, as pombagiras e os


exus representam, emblematicamente, a "conjunção dos opostos", a possibilidade da
coexistência do bem e do mal, fenômeno ligado à lógica que rege o universo simbólico
brasileiro tradicional (SANCHIS, 1994, p. 161).

No entanto, o alto grau de ambigüidade que caracteriza essas entidades do


panteão afro-brasileiro perde-se na versão brasileira recente do neopentecostalismo, campo
religioso onde exus e pombagiras surgem relacionados a um reconhecido “policentrismo do
mal”. Para Sanchis, nessa vertente do neopentecostalismo, [...] “o diabo são muitos,
precisamente todos aqueles nomeados que os fiéis conhecem bem, exus e pombagiras
[...]".
Na vertente brasileira do neopentecostalismo, surge uma reinterpretação da
pombagira que tem como traço marcante a perda do seu caráter ambíguo, atributo capaz de
permitir-lhe transitar, freqüentemente sem maiores problemas, entre o bem e o mal ou agir
sem reconhecer a existência destes opostos. A perda dessa ambigüidade, certamente, aponta
para uma lógica ou uma cosmologia diferente daquela predominante no campo afro-
brasileiro, na qual bem e mal não aparecem como pólos que se opõem ou se excluem
mutuamente, mas, ao contrário, como pólos que, na maioria das vezes, complementam-se
ou anulam-se, numa certa "indecisão ética". Será, então, a partir dessa lógica que a
personalidade polivalente e ambígua dos exus se enclausurará numa “significação exclusiva
e valorativa polarizada: o Mal” (SANCHIS, 1994, p. 161-162).
Ora, ao mencionar a noção de “mal”, torna-se necessário, mesmo que de
forma breve, tentar compreender e evidenciar as especificidades dessa noção no universo
21

pesquisado. Afinal, não só uma religião, mas as sociedades e seus grupos definem-se por
suas maneiras peculiares de representar e reinterpretar tal categoria. Tomando de
empréstimo as palavras de Novaes, observamos que “o mal não se reduz àquilo que como
mal se apresenta” (NOVAES, 1997, p. 6). Sendo assim, a vida social, em seu dinamismo,
está sempre a exigir novas caracterizações, qualificações e requalificações do mal. Isso
porque, enquanto noção central para diferentes cosmologias e cosmovisões, o mal pode,
dentre outras possibilidades, apresentar-se como algo domesticável ou incontrolável,
reversível ou irreversível, relativo ou absoluto, aterrorizante ou sedutor (NOVAES, 1997, p.
6 ).

Por enquanto desejamos apenas apontar uma temática a ser tratada ao longo
do texto. Esse assunto será retomado quando focalizarmos, sobretudo, os “males” e
“malefícios” (BIRMAN, 1997) relacionados à pombagira nas representações e práticas
discursivas de grupos neopentecostais.

1.2 Terreiros e inversões

Tendo Turner (1985) como referencial teórico, trataremos de idéias e


percepções que conduzem à reelaboração de conceitos e estereótipos associados à
pombagira. Tal exercício nos remete a determinadas análises sobre terreiros de umbanda do
Rio de Janeiro.

Partindo dos estudos de Maggie desenvolvidos na década de setenta em


terreiros do Rio de Janeiro, Turner (1985, p.123-125) destaca a existência de dois domínios
que, associados aos tempos verbais, são por ele nomeados "modo indicativo" e "modo
subjuntivo" da cultura (TURNER, 1985, p. 123, 124). O primeiro destes domínios está
vinculado "ao que é", ao que o senso comum apresenta como "causa e efeito", "realidade";
e o segundo, ao que "poderia ser", ao "como-se", ou seja, a uma esfera onde predominam
fantasias imaginativas e os desejos suplantam a experiência prática do cotidiano. Para o
autor o sistema ritual num ambiente urbano moderno, tal como a umbanda, é concebido
22

como uma instituição reflexiva, na qual predominam as atitudes performáticas em


detrimento de processos predominantemente intelectuais.

Decorre daí o fato de Turner (1985) conceber os terreiros de umbanda do


Rio de Janeiro como loci privilegiados no que diz respeito ao exercício do “modo
subjuntivo” da cultura e, portanto, lugares que se contrapõem à sociedade mais ampla,
esfera em que prevalece “o modo indicativo” da cultura.

No entanto, observa-se que nos terreiros pesquisados todo um conjunto de


idéias, valores e modelos de conduta relativos ao “modo subjuntivo” , colide com outros,
cujos valores, idéias e comportamentos referem-se ao que é denominado “modo indicativo”
da cultura. Decorre deste choque o aparecimento de significativas tensões e conflitos nestes
espaços. É por isso que defendemos aqui a hipótese de que a pombagira, enquanto
personagem feminina portadora de alto grau de liminaridade e ambigüidade, além de
permitir ao povo-do-santo vivenciar, por meio de metáforas e performances, traços e
aspectos desse feminino transgressor, também os levam a experimentar e trabalhar conflitos
decorrentes do encontro dos vários elementos vivenciados: de um lado, imagens e
performances relativas ao “modo subjuntivo”; de outro, idéias e valores socialmente
instituídos pela sociedade abrangente, e, dentro deste quadro, os preconceitos que se acham
presentes tanto nos espaços do terreiro quanto na sociedade que os circunscreve.

Como veremos ao longo deste trabalho, as tensões e conflitos existentes


entre esses dois domínios da cultura levam indivíduos e grupos vinculados aos terreiros a
buscar, num “arco de possibilidades”, determinadas condutas e atitudes consideradas
adequadas e/ou eficazes para lidar com esse mundo de representações e práticas
relacionadas à pombagira. Vale enfatizar que esses comportamentos e mecanismos, capazes
de resolver ou mitigar determinadas tensões que surgem entre os médiuns e essas entidades
femininas, situam-se num âmbito que abrange desde o evitar-se a incorporação da
pombagira até uma série de atos que visam sua “domesticação”. Essa atitude, que aqui se
denomina de “domesticar”, surge no terreiro como um elemento ligado ao seu sistema de
23

crenças e diz respeito ao processo de “doutrinar” o espírito. Decorre daí os termos “exu
batizado” em contraposição a “exu pagão”. Como também, “pombogira doutrinada”.

Com relação a tais questões, vale lembrar a importância dos terreiros na


construção de uma ambiência permeada por idéias, valores, comportamentos e, enfim,
experiências capazes de propiciar aos indivíduos e grupos a vivência de um mundo mítico,
cujo ápice encontra-se nos ritos de possessão. Nos terreiros de umbanda, este espaço mítico
é construído, sobretudo, a partir das “giras”.

Assim, constatamos no decorrer deste texto que nos interstícios desses ritos
ocorrem significativos mecanismos de inversão, nos quais os indivíduos distanciam-se
temporariamente dos papéis socialmente impostos pela sociedade abrangente, para
vivenciar personagens pertencentes ao mundo mítico afro-brasileiro. Mas, antes de tratar
especificamente desses ritos de inversão no contexto belo-horizontino, torna-se necessário
aprofundar um pouco mais nos referenciais teóricos e etnográficos que embasaram o
desenvolvimento dessas idéias.

Revelando-se bastante significativas e atuais no sentido de orientar este


estudo, a citada análise de Maggie sobre o terreiro de umbanda carioca (situado no bairro
do Andaraí) mostra como a dinâmica social dos terreiros pode, a partir de dois códigos,
reforçar ou inverter idéias, valores e papéis socialmente instituídos. De acordo com a
autora, um desses códigos estaria ligado ao universo de idéias e valores socioculturais
pertencentes à sociedade que circunscreve os terreiros: é o "código burocrático". O segundo
diria respeito, especificamente, à cosmologia, às normas e aos valores dos terreiros,
constituindo-se em seu elemento estruturante: trata-se do "código do santo" (MAGGIE,
2001).

No contexto do povo-do-santo, a idéia de um espaço potencial de inversão


pode ser percebida a partir de uma categoria êmica: "terra", freqüentemente utilizada pelos
médiuns em estado de possessão quando se referem ao terreiro. Decorre daí uma dualidade
24

fundamental constituída pela oposição “terra dos orixás” (e das demais entidades do mundo
invisível) e a “terra” enquanto mundo concreto que circunscreve o terreiro e está ligado à
sociedade mais ampla. Como conclui Maggie, a terra dos homens localiza-se fora do
terreiro e a terra dos orixás é o próprio terreiro (MAGGIE, 2001).

Nos espaços dos terreiros, recortados e diferenciados da sociedade


abrangente, a predominância de um daqueles dois códigos ou a maneira específica como
eles se articulam podem resultar em mecanismos de reforço ou de inversão das normas,
valores e comportamentos prescritos pela sociedade que os circunscreve, promovendo
significativos conflitos entre seus médiuns.

Analisando essa obra de Maggie, Turner (1985, p.131) [...] concebe as


sessões dos terreiros de umbanda como espaços liminares nos quais os indivíduos sujeitos
às pressões de uma sociedade urbana e a suas influências alienantes vão à procura de maior
liberdade. É nesse espaço de liminaridade, criado, sobretudo, por meio dos ritos de
possessão, que os indivíduos podem se distanciar de papéis sociais assumidos na sociedade
mais ampla, para se identificarem com entidades ligadas ao mundo mítico da umbanda, os
espíritos e os orixás.

Retomando as questões já enunciadas, observamos que essas identificações


com as entidades do panteão afro-brasileiro estão intimamente ligadas à construção das
noções de pessoa e de gênero (AUGRAS, 1995; BIRMAN, 1995; FRY, 1977;
GOLDMAN, 1987; SEGATO, 1995; TURNER, 1985), e, no âmbito dessa última noção, à
inversão de papéis femininos e masculinos prescritos pelo senso comum.

Tomando como base os terreiros e seus ritos de possessão, nos quais cada
médium se transforma num "outro" aceito pelo grupo e valorizado individualmente, Turner
enfatiza que muitas de suas idéias sobre os rituais se aplicam ali. Para o autor, o médium,
revestido pela máscara ou persona, está afirmando que uma significativa parte de sua vida
25

real transcorre no que ele chama "modo subjuntivo da cultura”, um domínio dotado de
muito mais liberdade do que aquele predominante na sociedade abrangente.

De acordo com as idéias de Turner, no contexto brasileiro a cultura e a


personalidade estão em concordância, porque a cultura tem, freqüentemente, sido
caracterizada como rica em gêneros de performances culturais, envolvendo o reverso ou a
inversão das estruturas políticas e sociais. Aliás, o autor enfatiza que este é um ponto chave
para a compreensão, por exemplo, do Carnaval, que permite aos indivíduos expressar em
público suas fantasias. Ainda segundo o autor, no Carnaval existe uma maneira socialmente
aceitável de se lidar com a inversão dos papéis de gênero e, dentre eles, com as atitudes e
performances dos travestis, que, travestidos momentaneamente, por meio de várias práticas
e performances, buscam obter maior verossimilhança com o corpo feminino. No entanto, o
autor sublinha que essas inversões ficam restritas a tais festividades, pois na vida cotidiana
prevalece o “machismo”, o mundo das hierarquias que estruturam e regem as famílias e os
locais de trabalho. Regras de etiqueta aparecem também para reverter ou intimidar
comportamentos fundamentados no "modo subjuntivo" de vivenciar relações e papéis
sociais e, dentre essas, as noções e papéis de gênero (TURNER, 1985, p. 147).

Ora, se o Carnaval é um momento estabelecido e delimitado no calendário


para a realização de inversões (DAMATTA, 1990), momento, portanto, em que o “modo
subjuntivo” é “indicativamente” designado como o modus operandi ou qualificador da vida
social, os terreiros, por meio de seus códigos e dinâmicas próprias, tornam-se,
potencialmente, locais de “inversão” continuada. Colocando em xeque regras e condutas
prescritas para o cotidiano, os ritos dos terreiros, além de despertarem curiosidade e, muitas
vezes, certo fascínio fora do povo-do-santo, despertam também sentimentos de
desconfiança e de medo na sociedade abrangente, fazendo com que incida sobre as casas de
umbanda e de candomblé um estigma relativo à transgressão dos padrões morais e ao
exercício do mal (BOYER, 1996, p. 7).

Pois bem, vale aqui também cotejar os ritos dos terreiros relacionados à
pombagira com outros realizados no campo evangélico. Podemos apontar a existência de
26

um contraste entre eles, sobretudo pelas diferentes formas como se organizam ritualmente
no "modo subjuntivo da cultura" (TURNER, 1974 b). Afinal, nos terreiros a quebra
temporária de determinados papéis sociais (e, até mesmo, das “inversões” associadas aos
gêneros proporcionadas pela “descida” da pombagira) acontecem, muitas vezes, a partir de
práticas marcadas por um caráter "carnavalesco", ao passo que nos cultos da IURD a
“manifestação” da pombagira implica uma quebra temporária de comportamentos
socialmente padronizados. Nesse segundo domínio focaliza-se e vivencia-se, sobretudo, a
obra demoníaca realizada pelas pombagiras e demais exus.
Na IURD, tais episódios de caráter dramático estão relacionados ao reforço
de idéias e valores que no campo da sexualidade são considerados como “tradicionais”. Nas
Sessões de Libertação e de Descarrego” surgem performances e discursos enfáticos ligados
à condenação da homossexualidade, do adultério e das relações sexuais antes do casamento,
práticas que, neste campo, estão diretamente relacionadas à ação demoníaca da pombagira.
Como se verá posteriormente, dentre os grupos evangélicos pesquisados a pombagira surge
ligada ao exercício da prostituição, da sedução e da homossexualidade, práticas
consideradas pecaminosas, responsáveis pela destruição do indivíduo e, enfim, do código
moral que rege o universo da “família”, categoria fundamental no campo evangélico.

Nesse sentido, mesmo sofrendo transformações significativas, sobretudo nas


três últimas décadas, muitas dessas lógicas e moralidades de cunho tradicional ainda se
constituem como importantes referenciais na construção dos gêneros e dos padrões de
conduta no Brasil. Afinal, se assim não fosse, por que a pombagira (representante de um
feminino transgressor, poluidor e perigoso) mostrar-se-ia tão presente no imaginário
brasileiro, ocupando, inclusive, um lugar central, tanto nos terreiros quanto nas igrejas
neopentescostais? Aqui, mais uma vez, sublinhamos a relação direta dessas imagens
femininas poluidoras e perigosas com um contexto cultural fundamentado por idéias e
valores oriundos da assimetria e da conseqüente desigualdade entre os gêneros na cena
sociocultural brasileira.

Depois de enumerarmos as principais questões que norteiam este estudo,


trataremos, brevemente, da organização de seus capítulos. Inicialmente, é necessário
27

remetermos a esta Introdução, na qual se encontra a caracterização da pombagira em


determinados ritos marcados por mecanismos de inversão. Correlacionada tanto com a
resolução de problemas quanto com a criação de malefícios, a pombagira surgirá saudada
como uma poderosa entidade liminar, capaz de realizar o bem ou de provocar o mal, desde
que acionada a partir de determinados “trabalhos”.

A segunda seção tratará do lugar que a umbanda e o candomblé vêm


ocupando na sociedade brasileira, enquanto religiões de grupos minoritários e que ao longo
do tempo têm sido discriminadas por setores mais ricos da população brasileira e pelos
grupos beneficiados com uma educação formal superior. Como veremos ao longo da
referida seção, esta discriminação foi um fator essencial na maneira como a pesquisa se
desenvolveu em terreiros de Belo Horizonte.

A terceira seção aborda, genericamente, o fenômeno da possessão em


terreiros, mostrando suas diversas dimensões, principalmente no que diz respeito à
incorporação das entidades do candomblé e da umbanda.

A quarta seção trata especificamente da possessão pela pombagira e, indo


além, procura abordar as particularidades desse tipo de transe a partir de exemplos
etnográficos registrados nos terreiros pesquisados.

A quinta seção busca caracterizar os exus do panteão da umbanda a partir de


um processo de reinterpretação que lhes confere pluralidade. Esse exercício se faz tão mais
necessário na medida em que a pombagira, um exu feminino, inclui-se nessa classe de
entidades, ou seja, naquela referente aos “exus de gira”. Com base em autores como Meyer
(1993), Motta, (2006) e Augras (2001) também apresentaremos referenciais históricos
ligados ao imaginário medieval da Península Ibérica que traçam fortes correlações da
pombagira com Maria Padilha, amante de um dos reis de Castela. Aqui, deparamos com
uma figura mítica medieval que, depois de morta, foi transformada numa importante diaba,
evocada principalmente para atuar no campo amoroso sexual. Como indica Souza (apud
28

MEYER, 1993, p.10,11) a pombagira da umbanda traz consigo fortes traços dessa diaba
que teria povoado a religiosidade popular brasileira desde finais do século XVII até se
consolidar numa figura de destaque do panteão da umbanda.

A sexta seção consiste em um trabalho etnográfico realizado em terreiros de


Belo Horizonte. Essa pesquisa focaliza três pombagiras recebidas por duas mães-de-santo e
por um babalorixá. A primeira delas é Ana Padilha, uma pombagira espanhola de alta
estirpe. As outras duas, Maria Bonita e Maria Quitéria, são entidades vinculadas ao cenário
sociocultural brasileiro, representado respectivamente pelo mundo do cangaço e pelo
universo dos cabarés. Tentando compreender com maior densidade determinados aspectos
correlacionados aos mitos e aos trabalhos que circunscrevem essas pombagiras,
focalizaremos as suas consultas e as festas que as homenageiam.

A sétima seção focaliza Liz, uma ex-umbandista que abandonou os ritos dos
terreiros para se inserir no campo evangélico, mais especificamente na IURD. Seus relatos
sobre o ambiente familiar em que viveu abordam aspectos relacionados tanto ao imaginário
da pombagira nos terreiros, quanto ao processo reinterpretativo sofrido por essa entidade
nos ritos do neopentecostalismo. Os aspectos mais fortes dessa atividade reinterpretativa de
caráter sincrético surgirão nas Sessões de Descarrego, quando, ao invés de se verem
reverenciadas como entidades repletas de potência, para agir tanto para o bem quanto para
o mal, as pombagiras, já demonizadas, surgem como entidades cujo poder se reduzirá à
criação de malefícios. Tais males vão desde o surgimento de doenças, até a inserção de
homens e mulheres na prática da homossexualidade e da prostituição.

A oitava sessão faz um estudo do lugar ocupado pela pombagira nos ritos da
IURD. Como mencionamos, é nesse campo religioso que a ambigüidade característica dos
exus desaparece, dando lugar a uma reinterpretação que os reduzirá a figuras demoníacas e,
enfim, a “encostos” vinculados ao mal. Essa demonização das pombagiras e dos exus se
evidenciará, sobretudo, nas Sessões de Descarrego e de Libertação da IURD, locais em que
estas entidades se manifestam, para serem queimadas pelo fogo do Espírito Santo. Como
se pôde observar, esses cultos de possessão guardam profundas relações com o universo
29

mítico dos terreiros, sendo considerados por alguns autores como fruto de processos
sincréticos que articulam elementos das religiões afro-brasileiras com outros relativos ao
neopentecostalismo (BIRMAN, 1997). Finalmente, na nona seção se dará a conclusão deste
trabalho.

2 MACUMBAS E MALEFÍCIOS

Antes de abordarmos o tema específico deste estudo, julgamos necessário


tecer alguns comentários introdutórios sobre as relações entre religião e sociedade, para
tentar situar o "povo-do-santo" no contexto cultural brasileiro, e, sobretudo, no universo
mineiro. Como observam vários estudiosos, os fenômenos religiosos guardam profundas
relações com o meio social no qual se inserem, já que estão diretamente ligados à história
dessas sociedades, assim como aos seus sistemas de idéias e valores. Objetos de
reinterpretações peculiares realizadas num determinado meio social, tais fenômenos
adquirem matizes próprios, que marcam a sua singularidade no campo religioso. Esse
processo não se dá numa via de mão única, uma vez que os fenômenos religiosos são
poderosos elementos da construção de representações e práticas sociais que caracterizam e
distinguem as diversas sociedades ao longo de sua história.

Outro ponto importante a ser tratado diz respeito ao desenvolvimento dos


fenômenos religiosos em um meio urbano, locus caracterizado por uma diversidade no
campo da cultura. Os estudiosos do fenômeno urbano enfatizam que as cidades são
marcadas por um alto grau de heterogeneidade em termos de seus universos socioculturais.
Nelas, convive, de forma pacífica ou conflitante, uma pluralidade de expressões simbólicas
(dentre elas as de caráter religioso) capazes de configurar diferentes universos de
significados.

A compreensão do problema aqui proposto remete a aspectos históricos


relativos à questão do estigma que, ao longo do tempo, vem recaindo sobre as religiões
afro-brasileiras, em suas diversas modalidades. A partir de vários autores, é possível
30

compreender todo um aparato repressivo contra esse campo religioso, desde o período
colonial.

Invasões de terreiros e prisões de líderes religiosos, dentre outras


arbitrariedades, são fatos que vêm ocorrendo ao longo da história dessas religiões,
persistindo até períodos bastante recentes. Essa situação marginal das religiões afro-
brasileiras transparece no próprio tecido urbano de importantes capitais e centros
brasileiros. Conhecidos como “roças”, os terreiros de candomblé situavam-se, quase
sempre, em bairros pobres, afastados dos centros urbanos, só podendo desenvolver suas
atividades (consideradas “bárbaras” pelas elites urbanas) longe dos olhos da lei e dos
espaços “nobres” das cidades.

Um estudo de Fry (1982) aponta para o estereótipo negativo que ao longo do


tempo foi sendo projetado sobre o povo-do-santo, principalmente pelos setores mais ricos
da população brasileira e pelos grupos beneficiados com uma educação formal superior.
Tais idéias e imagens negativas fizeram com que, ainda na década de 1980, um grande
número de pessoas pertencentes às camadas média e alta da população, embora sendo
clientes fervorosos dos terreiros, tentasse negar a sua vinculação com esses espaços,
realizando suas visitas fora dos momentos rituais. Para Fry, a própria localização dos
terreiros estaria ligada à maneira como a sociedade mais ampla classificava esses cultos,
considerados perigosos, associados com a pobreza e com a imoralidade, ou seja, com as
margens da sociedade. Assim, a localização dos terreiros nas áreas geograficamente
marginais das cidades, em lugares ermos e de difícil acesso, não poderia ser explicada
apenas por motivos econômicos.Segundo Fry (1982, p. 59)., este fato só poderia ser
explicado enquanto “[...]representação simbólica da posição socialmente marginal na qual
os cultos estão circunscritos.”
“[...] a repressão policial tem sido constantemente denunciada, e, embora ela
seja hoje bem mais reduzida e tenha havido tentativas da parte dos governos municipais e
estaduais de reconhecer o valor turístico dos cultos, o estereótipo negativo persiste (FRY,
1982, p. 58)”.
31

Aqui, torna-se imprescindível cotejar as afirmações anteriores com algumas


idéias desenvolvidas por Dantas (1988), autora que nega radicalmente o fato de uma
repressão absoluta aos candomblés e, sobretudo, àqueles considerados mais "autênticos" ,
por se inserirem no campo religioso "nagô". Focalizando os terreiros de Laranjeiras, a
autora mostra como estes locais de culto ficavam mais protegidos da repressão policial na
medida em que mantinham alianças com intelectuais e importantes figuras do meio social.

Partindo dessas idéias de Dantas e indo além, Yvonne Maggie relativiza


ainda mais a "hipótese da repressão do Estado às religiões afro-brasileiras e ao espiritismo".
Tendo como foco o Rio de Janeiro, a sua análise baseia-se na descrição e análise de
materiais etnográficos contemporâneos, como também no estudo analítico de processos
criminais instaurados por suspeita da infração dos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal
no período de 1890 a 1945. A interpretação dessa série de processos leva a autora a
concluir que "não se denuncia a crença na feitiçaria, mas pessoas específicas que praticam o
mal" (MAGGIE, 1992, p. 31). Aliás, esclarecendo sobre as relações entre feitiçaria e poder
no Brasil, essa obra enfatiza que
[...] a crença na magia e na capacidade de produzir malefícios por meios ocultos e
sobrenaturais é bastante generalizada no Brasil desde os tempos coloniais. De
acordo com a crença, certas pessoas podem usar consciente ou inconscientemente
esses poderes sobre os outros, para atrasar a vida, fechar caminhos, roubar amantes,
produzir doenças, mortes e uma infinidade de outros males. Essa crença que enche
e encheu desde a Colônia as casas dos curandeiros, centros, terreiros, benzedeiras,
espíritas e médiuns norteou também a atuação de juízes, promotores, advogados e
policiais (MAGGIE, 1992, p. 22).

Um episódio relevante para a compreensão do lugar do feitiço na sociedade


brasileira diz respeito ao exu "Seu Sete da Lira", ocorrido em 1971. Nesse sentido, Maggie
faz a seguinte afirmação:
Cada acusação de feitiço revelava uma rede de grupos contíguos que se colocavam
hierarquicamente uns em relações aos outros. O caso de Seu Sete da Lira em 1971
[...] é o paradigma. Com a acusação surgiram grupos a favor e contra Seu Sete,
grupos mais elevados e menos desenvolvidos, e organizações a nível nacional
tentando reunir os terreiros mais desenvolvidos e extirpar o mal, os abusos, os
charlatães. A acusação colocou em relação tropicalistas e conceituais e fez vir à
tona a fala da contracultura. Assim, se chegou ao feitiço como operador lógico
dessa classificação metonímica que no Brasil hierarquiza e relaciona grupos
(MAGGIE, 1992, p. 30).
32

Ao voltar a sua atenção para os terreiros da Baixada Fluminense da década


de 1980 e focalizando especificamente o termo “macumba”, tal qual é tratado nesse
contexto, Patrícia Birman refere-se ao estigma que ainda hoje recai sobre o povo-do-santo e
que pode ser reconhecido a partir dos próprios termos utilizados para a sua
autodenominação.
Macumba é termo de uso genérico em referência a todas as formas de cultos afro. É
geralmente empregado pelos religiosos de maneira irônica e jocosa, como forma de
indicar o reconhecimento que se possui a respeito do estigma que recai sobre essas
atividades religiosas. Há sempre no uso do termo macumba o reconhecimento de
que este representa o pólo da religião visto como impuro e sujeito a estigma, em
oposição a outras práticas religiosas situadas no pólo legítimo e vistas como puras e
genuínas (BIRMAN, 1995).

Nesse sentido, a autora destaca que usa o termo macumba “[...] tendo
presente que, em sentido restrito, é o que na literatura se opõe a candomblé ortodoxo; e, em
termos amplos, procurando enfatizar o reconhecimento dessa polaridade e principalmente
do estigma que recai sobre a totalidade do povo-do-santo [...]” (BIRMAN, 1995, p. 7).

Focalizando os candomblés de São Paulo, os estudos de Silva (1995),


realizados no início da década de 1990, mostram que desde pelo menos meados da década
de 1980 o candomblé em São Paulo já tinha extrapolado o espaço dos terreiros e, de certa
forma, encontrava-se misturado com outras atividades urbanas, fazendo parte do cenário e
do cotidiano da metrópole. Essa mudança podia ser percebida a partir da própria
localização dos terreiros, que naquela época se multiplicavam por todas as direções da
cidade, nos bairros de classe média e alta, ao redor das estações de metrô, em bairros
étnicos, como Liberdade e Bom Retiro, cuja cultura dos habitantes (respectivamente,
japoneses e judeus), a princípio, nada teria a ver com práticas e valores afro-brasileiros.

No que diz respeito a Minas Gerais, observamos a já citada ausência de


estudos relativos às religiões afro-brasileiras, fator que tanto dificulta as tentativas de
análise mais aprofundadas sobre o surgimento e desenvolvimento do candomblé e da
umbanda em terras mineiras quanto aponta para a situação periférica dessas religiões no
33

quadro cultural e religioso do Estado. Esse lugar periférico ocupado pelo candomblé e pela
umbanda, certamente, está ligado a processos históricos que ocorreram em Minas Gerais e
que acabaram por criar uma identidade religiosa predominantemente católica e bastante
resistente à aproximação com o mundo simbólico afro-brasileiro.

A partir dessa investigação, pode-se chegar a algumas conclusões


preliminares sobre o nosso contexto específico de análise. Se, de um lado, existe um
número significativo de terreiros em Belo Horizonte, esses locais de culto, assim como as
práticas dos candomblecistas e umbandistas, não adquirem maior visibilidade no espaço
urbano. A própria festa de Iemanjá, realizada num espaço público da cidade (a lagoa da
Pampulha), não recebe destaque da mídia, ficando praticamente restrita aos
candomblecistas, umbandistas e pessoas que mantêm algum tipo de vínculo com os
terreiros. Essa relativa invisibilidade também pode ser percebida a partir do comportamento
e da fala dos religiosos ou simpatizantes dessas religiões.

Apesar de freqüentarem terreiros, festas dos santos e dos guias realizadas em


espaços públicos ou, mesmo fazerem consultas nestes locais, muitas dessas pessoas não
assumem publicamente qualquer vínculo com essas religiões por algum tipo de receio,
baseado em sanções de ordem familiar ou profissional, ou, mesmo, constrangimento com
relação ao seu ciclo de amizades. Um fenômeno que aponta para o medo de uma
deterioração identitária diz respeito ao fato de as pessoas evitarem freqüentar os terreiros
próximos às suas residências ou locais de trabalho, a fim de manterem um aparente
distanciamento desse campo religioso. Para afirmar essa distância, tais pessoas procuram
terreiros onde não possam ser vistas por parentes ou demais integrantes de seu próprio meio
social. Isso explica, em parte, a falta de vínculos dos terreiros com a sua vizinhança.

No que diz respeito a essa relação dos cultos afro-brasileiros (comumente


chamados de macumba) com o mal, é preciso relacionar perspectivas que associam as
práticas da umbanda e do candomblé à produção de inúmeros malefícios, e não raramente à
prática da “magia negra”. Com efeito, tal associação tem um fundo social e histórico,
dizendo respeito aos preconceitos existentes na sociedade brasileira contra expressões
34

culturais e religiosas vinculadas aos grupos negros. Outras expressões culturais ligadas a
esses grupos, como o samba e a capoeira, foram perseguidas exatamente por serem
consideradas “coisas de negro” e, portanto, qualificadas como “bárbaras”, “não civilizadas”
e “perigosas”, além de inadequadas para se implantarem num ambiente urbano civilizado.
Certamente, a escravidão e o seu legado fizeram com que as populações negras e suas
práticas culturais e religiosas despertassem forte temor nas elites brancas. Valendo-nos das
palavras de Negrão, pode-se dizer que: “[...] a idéia muito ocidental de magia negra,
desenvolvida na Europa medieval, passou a ser identificada como magia, não só voltada
para a prática de malefícios, mas como macumba, coisa de negro” (NEGRÃO, 1996, p. 76).

Tais reações de medo e de desconfiança despertadas pelas religiões


permitem destacar as peculiaridades das relações criadas entre os cultos afro-brasileiros e a
sociedade mais abrangente. Partindo de Maggie (1992), percebem-se numerosas referências
de jornais, rádios e televisões à associação entre os terreiros com crimes variados:
assassinatos, roubos e estupros. Citando literalmente as palavras da antropóloga:

Nessas notícias, que se repetem desde o final do século pelo menos, aparece
claramente o lugar criminalizado da falsificação, do charlatanismo, da mistificação e da
feitiçaria (MAGGIE, 1992, p. 241).

Referindo-se à histórica repressão perpetrada contra os terreiros, um artigo


de Boyer (1996) referente à década de 1990 conclui que, se, de um lado, essas casas não
sofriam mais as antigas perseguições de que eram objeto no passado, de outro, restava-lhes
um status ambíguo e, não raro, um estigma por parte das camadas político-econômicas
dominantes da sociedade brasileira (BOYER, 1996, p.7).

Pode-se observar que a análise realizada por tais autores mostra-se bastante
atual no que diz respeito ao contexto social belo-horizontino. No entanto, enfatiza-se que
não se trata de absolutizar ou de reduzir a relação fundamentada em estereótipos e em
sentimentos de estranhamento ou medo a uma simples negação do feitiço. Trata-se apenas
35

de apontar como indivíduos e grupos ligados às diferentes camadas da sociedade de Belo


Horizonte relacionam-se de forma ambígua com os terreiros. Se em determinadas situações
esses indivíduos e grupos negam qualquer ligação com as casas de umbanda e candomblé,
em outras batem nas suas portas para encomendar “trabalhos”, comportando-se de modo
reservado e dissimulado.

No que diz respeito ao contexto belo-horizontino atual, destacamos ainda o


depoimento de um antigo babalorixá a respeito do comportamento ambíguo de seus
vizinhos, pessoas inseridas nas camadas médias, que evitavam cumprimentá-lo em lugares
públicos, temerosas de que esse gesto pudesse ser um indicativo de sua relação com o seu
terreiro. No entanto, o pai-de-santo revelava que esses mesmos indivíduos procuravam por
terreiros longe de seu bairro para não correrem o risco de serem reconhecidos por vizinhos
e parentes.

Mãe Rita, outra líder de terreiro que surge ao longo desta etnografia, também
apontou comportamentos de evitação por parte da vizinhança em relação a ela e à sua casa
de candomblé. Como a ialorixá destacou, tratava-se de uma atitude ambivalente, pois as
sessões de seu terreiro contavam com essas próprias pessoas, desejosas de tomar passes e,
sobretudo, de consultar-se com os exus e as pombagiras. Não obstante, e como referimos,
fora do terreiro tais pessoas evitavam cumprimentá-la por receio de serem identificadas
como freqüentadoras daquela casa de candomblé. Havia, além disso, aqueles que preferiam
as consultas particulares pagas, pois, além de tratar de seus problemas com maior calma,
não corriam o risco de serem reconhecidos pelas pessoas presentes nas sessões abertas.

Ainda com relação a essas questões, essa jovem mãe-de-santo fez outro
comentário. Estrategicamente, ela preferiu não colocar nenhuma placa que indicasse o
terreiro situado nos fundos de sua residência, atitude que justificava sustentando-se em dois
motivos principais. Em primeiro lugar, a sua clientela se sentia mais à vontade para
freqüentar o terreiro, nele entrando como se entrasse em uma simples residência. Além
disso, a mãe-de-santo enfatizava também que a ausência da placa favorecia as atividades de
seu pai, um ex-policial que possuía uma firma na parte anterior da residência.
36

Mas, os preconceitos e evitações relacionados com a prática do candomblé e


da umbanda evidenciaram-se, para nós, sobretudo, por intermédio de um episódio ocorrido
ainda no início da pesquisa. Por sua significação, ele será narrado a seguir.

2.1 Um breve parêntese: “coisas do demônio ?”

Em fevereiro de 2003, vivi uma situação bastante peculiar e de interesse no


sentido de iluminar conflitos existentes entre os campos religiosos, evangélico e afro-
brasileiro. Aliás, note-se que, historicamente, tais conflitos permeiam a visão de grupos
evangélicos sobre a pombagira e se atualizam numa série de práticas condenatórias.

Tratava-se da minha primeira aula de Antropologia em uma Faculdade de


Belo Horizonte, que como posteriormente soube, tinha uma parcela significativa de alunos
pertencentes às várias denominações do campo evangélico e, inclusive, pastores e pastoras.

Depois de apresentar-me à turma como antropóloga e estudiosa do campo


religioso afro-brasileiro, tratei de alguns aspectos referentes ao panteão do candomblé e da
umbanda. Em seguida, destaquei os preconceitos que, historicamente, vêm incidindo sobre
essa religião, vinculada, sobretudo, à população brasileira negra e pobre. Terminada a aula,
observei certa movimentação no fundo da sala: uma moça de aproximadamente 25 anos
queria falar comigo. Discreta, a aluna contou-me que as minhas palavras sobre a umbanda e
o candomblé tinham causado indignação em alguns pastores evangélicos que integravam
aquela turma. Ela ainda disse que estes alunos estavam se mobilizando para reclamar de
minhas palavras junto à diretoria da faculdade. Finalmente, a referida aluna se apresentou
como mãe-de-santo de um terreiro de candomblé e colocou a sua casa à disposição para a
minha pesquisa. Depois desse incidente inicial, as aulas transcorreram sem maiores
problemas. Findado o semestre, procurei essa ex-aluna que se mostrou extremamente
receptiva a conversar sobre assuntos que viessem a me interessar.
37

Aqui, é necessário abrir mais um parêntese, no sentido de levantar questões


ligadas ao ethos do povo-do-santo em Belo-Horizonte. Retomando uma questão tratada
anteriormente, sublinhamos que desde o início da pesquisa, observamos o quanto era difícil
descobrir terreiros nos espaços da cidade. Salvo algumas propagandas pregadas em postes e
placas de anúncios em lojas de artigos religiosos, não era possível ouvir alusões à casas de
umbanda ou candomblé e nem tão pouco ver maiores indicações da presença de terreiros no
espaço urbano. Não foram poucas as vezes que ouvi, principalmente de pessoas ligadas às
camadas médias e, até mesmo, de especialistas em religiões afro-brasileiras oriundas de
outros estados do Brasil a seguinte pergunta: “Mas há terreiros em Belo Horizonte?”

Ao longo da pesquisa, fui percebendo que a presença dos terreiros e de seus


integrantes acontecia cercada de uma certa invisibilidade, sobretudo quando se tratava de
pessoas ligadas às camadas média e alta da população.

As referências aos terreiros surgiam quase sempre em conversas de caráter


particular e, sobretudo, em situações em que eu relatava a realização da minha pesquisa.
Pode-se mesmo afirmar que a grande maioria das pessoas ligadas ao candomblé e a
umbanda chegou a confidenciar-me o seu pertencimento a estas religiões de forma bastante
particular e reservada. Algumas chegaram a dizer que evitavam tocar no assunto com
amigos e familiares, pois temiam que a ignorância disseminada sobre a religião fizesse com
que estes as tomassem como praticantes de "magia negra".

Com poucas exceções, os comportamentos discreto e reservado desses


umbandistas e candomblecistas se intensificava na medida em que eles se encontravam
cercados de pessoas ligadas ao campo evangélico. Foi necessário, portanto, garantir que as
conversas com os integrantes do povo-do-santo ocorressem de maneira reservada e
cercadas de certo sigilo, condição que lhes garantia maior segurança com relação aos
preconceitos aqui já revelados.
38

2.2 Pesquisando em terreiros

No que concerne à pesquisa, inicialmente, é necessário mencionar que a


construção desta etnografia embasou-se em pesquisas sistemáticas realizadas em terreiros
de Belo Horizonte durante quatro anos. Soma-se a este período de trabalho, um outro,
menos sistemático, mas, de qualquer maneira, fundamental para nos situar no campo
empírico a ser investigado.

Com relação à totalidade da pesquisa, é necessário aludirmos tanto às casas


visitadas de forma esporádica quanto a outras pesquisadas sistematicamente, assistindo a
festas e sessões, consultando com pombagiras ou conversando informalmente com os
integrantes dos terreiros.

O início da pesquisa remonta ao ano de 1996, quando um grupo de


estudiosos ligados à Universidade Federal de Minas Gerais fez a indicação de um terreiro
de candomblé localizado no bairro Caiçara. Mais do que simplesmente indicar esta casa de
candomblé, os pesquisadores enfatizaram um atributo especial de seu líder: o grande
conhecimento sobre o candomblé em Belo Horizonte. Sem qualquer apresentação prévia
que pudesse facilitar o meu contato com esse babalorixá, dirigi-me ao seu terreiro, onde
prontamente fui recebida.

Já no primeiro encontro, esse antigo candomblecista mineiro narrou de


forma detalhada os motivos que o levaram a procurar o candomblé, como também os
aspectos relacionados à sua iniciação no “santo”. O babalorixá enfatizava o fato de ter sido
iniciado (ou, conforme se diz nesse universo religioso, “ter sido feito") num dos mais
tradicionais terreiros do Brasil, mais precisamente no Axé Opô Afonjá, fato pelo qual
demonstrava orgulho.

Revelando um grande conhecimento sobre a cosmologia jeje-nagô, assim


como um comportamento extremamente amável e receptivo, o pai-de-santo descorreu sobre
39

esta temática durante um período significativo e, em seguida, convidou-me para a “saída de


um barco”, uma festa de caráter público na qual os novos “iaôs” da casa, apresentam, cada
qual, o seu orixá), são apresentados aos integrantes e freqüentadores do terreiro. Além
desse convite, houve outro, relativo à minha inserção naquela casa para ocupar o cargo de
“equedi”. Depois desse primeiro encontro, voltei ao terreiro por ocasião da referida festa e
outras vezes, para consultar os búzios.

Numa dessas visitas, soube que alguns de seus membros incorporavam


pombagiras. Dentre esses candomblecistas, incluía-se o filho consangüíneo do pai-de-santo
que também tinha se tornado babalorixá e estava se preparando para assumir a liderança da
casa.

Ainda iniciante no estudo do campo religioso afro-brasileiro e sem conhecer


estudos que relativizam e complexificam questões referentes à herança africana no Brasil,
causou-me perplexidade a presença de pombagiras numa casa cujos líderes enfatizavam seu
pertencimento ao candomblé. Afinal, tratava-se de um terreiro cujo fundador e líder
destacava a sua ligação com o Axé Opô Afonjá, um terreiro de candomblé bastante
“tradicional”.

Num dos últimos encontros com o antigo pai-de-santo, antes que seu filho
(conhecido como Pai Cláudio de Oxóssi) assumisse a liderança daquela casa, conversamos
sobre a presença de pombagiras em seu terreiro. Foi nessa ocasião que me interei de que,
embora a casa estivesse ligada ao candomblé da nação Keto, eram ali acolhidos
candomblecistas de outros terreiros. Nesse sentido, o pai-de-santo argumentava que muitos
desses filhos e filhas-de-santo oriundos de outras casas traziam consigo entidades
pertencentes ao panteão da umbanda (exus, pombagiras caboclos, pretos-velhos, etc.), de
modo que ele não via motivos para evitar a incorporação dessas entidades em seu terreiro.

O antigo babalorixá ainda destacou outro ponto: grande parte dos recursos
financeiros necessários para a sobrevivência do terreiro era proveniente das consultas
40

particulares e dos “trabalhos” realizados com as pombagiras e os exus. Uma vez que a
manutenção da casa implicava significativos gastos financeiros, ele não podia abrir mão
dessa importante fonte de recursos. Aqui, vale lembrar que o candomblé é uma religião
minoritária em termos de fiéis e bastante dispendiosa. É daí que decorre a necessidade de os
líderes das casas contarem com um número significativo de clientes, cujas consultas e
encomendas de trabalhos permitam a sobrevivência da casa. É necessário lembrar também
que os ritos e festas significam gastos elevados, sobretudo em razão do baixo poder
aquisitivo de grande parte dos integrantes dessas casas.

Se inicialmente esse terreiro representou o local onde ocorria o meu encontro


com o povo-do-santo, essa situação mudou depois que o antigo babalorixá se afastou da
casa e entregou a liderança ao seu filho, um jovem adé. Responsável por tudo o que
dissesse respeito ao terreiro, esse novo babalorixá dificultou o desenvolvimento da
pesquisa, colocando diante dela uma série de empecilhos. Tal atitude acabou por provocar o
meu afastamento desse terreiro, em busca de casas onde o trabalho pudesse fluir mais
livremente.

No entanto, mesmo sem pesquisar e freqüentar sistematicamente os ritos e as


festas do terreiro, observei contrastes significativos entre essa casa e os outros terreiros
estudados. Essa diferença ocorria, sobretudo, pela quantidade de “adés” na casa, a começar
por seu jovem pai-de-santo, que não escondia a sua notória homossexualidade.
Conversando com alguns integrantes dessa casa, além de seu líder, inteirei-me do fato de
que um número significativo de pombagiras comparecia naquele terreiro, o que era motivo
de orgulho para a casa. Aliás, uma das mais poderosas era Maria Padilha, entidade que
tinha como “cavalo” o novo babalorixá.

Depois da desistência de trabalhar nesse terreiro, dadas as dificuldades que


seu novo líder criara, não tardaram a surgir novas oportunidades de pesquisar em outras
casas de santo. Tal fato ocorreu, principalmente, graças a pessoas que se prontificaram a
mediar minhas relações com pais e mães-de-santo. Foi, sobretudo, graças a atuação dessas
pessoas com os líderes dos terreiros que comecei a pesquisar sistematicamente em outras
41

duas casas. Uma delas tinha como líder Mãe Mariinha, uma ialorixá ligada a umbanda. A
outra era liderada por Pai Carlos, um babalorixá vinculado ao candomblé da nação Angola.

Um ponto a ser ressaltado diz respeito ao fato de que tanto Mãe Mariinha
quanto Pai Carlos recebiam suas pombagiras em ritos e festas, assim como em sessões
fechadas voltadas para o atendimento de clientes. Era nessas ocasiões que as duas
entidades, “desciam” para conversar, aconselhar e prescrever toda uma sorte de atividades
correlacionadas a práticas mágicas, ou seja, “trabalhos” para abrir caminhos e solucionar
problemas de seus clientes.

Além de freqüentar as festas e os ritos dos terreiros relacionados,


principalmente com os exus e as pombagiras, também foi possível consultar com essas
entidades em sessões de cunho particular. Assim, a minha presença nos ritos e festas dessas
casas somada a pesquisa realizada nas sessões particulares tornaram-se fatores para que eu
pudesse inteirar-me das especificidades destes trabalhos mágicos religiosos praticados pelas
pombagiras. Foi assim que travei diálogos com essas entidades, exercício que, naquele
contexto, tornava-se essencial para a compreensão da criação ou reinvenção de um
“feminino” liminar em terreiros de umbanda e candomblé.

No entanto, mais do que tentar traçar um mapa da trajetória pelos terreiros


belo-horizontinos, essas observações surgiram no sentido de retomar questões e perfuntas
significativas. Inicialmente, torna-se necessário tocar no tema já tratado por Dantas (1988)
sobre as transformações sofridas pelas religiões, no sentido tanto de se adequar às
mudanças da sociedade na qual se inserem, quanto de encontrar novos caminhos para
disputarem um lugar no mercado mágico-religioso.

Sem a intenção de construir generalizações sobre o candomblé em Belo


Horizonte, observo que nos terreiros visitados registrei a convivência de tradições
supostamente africanas com práticas relacionadas à umbanda. Além de caboclos
“descendo” no corpo de seus médiuns, não era raro encontrar pombagiras e pretos-velhos
42

em suas festas e ritos. Nesse sentido, pode-se dizer que a maioria dos terreiros visitados
durante a pesquisa enquadrar-se-ia no que informalmente se denomina “umbandomblé” ,
termo utilizado por pesquisadores e, mesmo, por integrantes do campo religioso afro-
brasileiro para classificar as casas onde, além dos orixás, descem também entidades
“tradicionalmente” ligadas ao panteão da umbanda.

Vale observar que o termo “umbandomblé”, levado a sério por determinados


terreiros de Minas Gerais, é pouco respeitado, sendo mesmo mal visto pelos terreiros que se
classificam como mais “tradicionais”, já que, supostamente, vinculados às tradições “afro-
brasileiras”. Mesmo que estes terreiros não se vejam como pertencentes ao que se
denomina “umbandomblé”, categoria que, como foi dito, adquire uma conotação negativa
no campo religioso afro-brasileiro, é preciso ter em vista a sua inserção em universos
plurais, no que diz respeito tanto ao candomblé quanto à umbanda. Tal possissão vincula-se
as transformações necessárias à própria adequação e sobrevivência das religiões na
sociedade, como também a criatividade das lideranças dos terreiros, que, por motivos
vários, introduzem modificações nos ritos das suas casas.

Buscando ressaltar o caráter plural das religiões afro-brasileiras e, sobretudo,


do candomblé enquanto uma religião que nos dias de hoje rompeu limites étnicos para se
inserir no amplo “leque de ofertas religiosas e mágicas” (PRANDI, 2005, p. 13), cita-se um
trecho que exemplifica esse tipo de pluralidade:
Não há hoje dois terreiros com ritos exatamente iguais, nem quando se trata de
terreiros irmãos, nascidos de uma origem comum, próxima. Um terreiro filho já é
inaugurado com alguma coisa que o diferencia dos terreiros mãe. Toda inovação é
legitimada pelo discurso da busca permanente da verdade religiosa original, pela
sempre reiterada necessidade de afirmação das raízes. O candomblé muda em
muitos sentidos, mas, para seu seguidor, mudar é recuperar o que foi perdido, é
restituir à religião o antigo vigor. Pois, acredita-se que haja, em algum lugar, muitos
segredos guardados (PRANDI, 2005, p. 15).

Há de se concordar com esse tipo de diversidade apontado por Prandi e,


estendendo-o ao campo da umbanda (BIRMAN, 1983, p. 26-27), enfatizar um primeiro
ponto que será recorrente ao longo da pesquisa. Embora os membros e as lideranças de
cada uma das casas pesquisadas tendessem a identificá-las como terreiros de umbanda ou
43

de candomblé, presenciei rituais oriundos da umbanda nos terreiros de candomblé, tais


como as incorporações e consultas de pombagiras e de pretos-velhos, dentre outras
entidades ligadas ao panteão da umbanda, aliás, já mencionadas. Aqui a recíproca é
também verdadeira, já que se constata a existência de ritos relacionados ao candomblé em
terreiros de umbanda. Refiro-me, principalmente, ao sacrifício de animais, os chamados
“cortes” , um rito fundamental na religião dos orixás que foi abolido pelos grupos
diretamente envolvidos com a formação e a legitimação da umbanda na sociedade brasileira
(ORTIZ, 1991).

Apontamos aqui os significados da recusa desses ritos pelos antigos


umbandistas. No período de formação e expansão da umbanda, a negação dos sacrifícios de
animais estava ligada à criação de um espaço religioso próprio, que excluía práticas
consideradas “bárbaras” ou “primitivas” pelas elites dominantes no País. Com efeito, é
importante lembrar que tais ritos inseriam-se nas religiões praticadas pelos negros no Brasil
e estavam vinculados a uma matriz africana considerada “não civilizada”. Sendo assim, a
ausência dos chamados “cortes”, ou “matanças” de animais, na religião recém inaugurada
significava um elemento diacrítico, cujo sentido era essencial na demarcação das fronteiras
entre a umbanda e o candomblé, assim como a outras práticas religiosas vinculadas aos
negros, chamadas popularmente de “macumba”. É ainda relevante destacar que a
constituição de um novo universo ritual, livre de estigmas, constituía uma estratégia da
umbanda na busca de um maior número de adeptos das camadas médias da população
urbana brasileira, em evidente expansão (ORTIZ, 1991).

Apontando para a pluralidade do campo umbandista, faz-se referência aqui a


um comentário de Birman sobre a tensão existente entre o “um e o múltiplo”, fenômeno
presente em vários planos da umbanda e especificamente no plano da organização social.
[...] a religião umbandista pode ser considerada um agregado de pequenas unidades
que não formam um conjunto unitário. Não há, como na Igreja católica um centro
bem estabelecido que hierarquiza e vincula todos os agentes religiosos. Aqui, ao
contrário, o que domina é a dispersão. Cada pai-de-santo é senhor no seu terreiro,
não havendo nenhuma autoridade superior por ele reconhecida. Há, portanto, uma
multiplicidade de terreiros autônomos, embora estejam unidos na mesma crença,
havendo também um esforço permanente por parte dos líderes umbandistas no
44

sentido de promover uma unidade tanto doutrinária quanto na organização


(BIRMAN, 1983, p. 25, 26).

Tratando da esfera doutrinária da umbanda, Birman (1983, p. 26) enfatiza as


diferenças sensíveis no nível das práticas religiosas, fato que não impede a existência de
crenças comuns e de algumas normas e princípios respeitados pela quase totalidade das
casas. Aqui, estar-se-ia diante de certa “unidade na diversidade”, característica dessa
religião, fenômeno que se expressaria, sobretudo, nas reconhecidas influências de outros
“credos” na umbanda. Assim afirma a autora:
Encontramos adeptos de umbanda que praticam a religião em combinação com o
candomblé, com o catolicismo, que se dizem também espíritas absorvendo os
ensinamentos de Kardec, e entre estes, as variações continuam: centros que aceitam
determinados princípios do candomblé e excluem outros, que se vinculam a uma
tradição por muitos ignorada, etc. Não há limites na capacidade do umbandista de
combinar, modificar, absorver práticas religiosas existentes dentro e fora desse
campo fluido denominado afro-brasileiro (BIRMAN, 1983, p. 26-27).

Com efeito, tal diversidade de cultos ocorre principalmente pelo fato de os


terreiros de umbanda e os de candomblé não estarem submetidos a instituições que
regulamentem os seus cultos ou, até mesmo, o seu panteão de entidades. Surge daí o fato de
as casas se submeterem apenas à liderança dos pais e mães-de-santo (autoridades absolutas
nesses espaços), fato que dá margem a diferentes reinterpretações das entidades e a criações
de performances, dentre outras transformações rituais. Aliás, essa liberdade e elasticidade
concernente às práticas religiosas implicam, diretamente, variadas formas por meio das
quais os integrantes e visitantes dos terreiros vivenciam ali fantasias e metáforas
relacionadas ao “modo subjuntivo”, ou seja, dimensões de um imaginário que lhes é, muitas
vezes, específico.
Candomblé e umbanda, antes de tudo, são religiões de pequenos grupos que se
congregam em torno de uma mãe ou pai-de-santo, denominando-se terreiro cada um
desses. Embora se cultivem relações protocolares de parentesco iniciáticos entre
terreiros, cada um deles é autônomo e auto-suficiente, e não há nenhuma
organização institucional eficaz que os unifique ou que permita uma ordenação
mínima, capaz de estabelecer planos e estratégias comuns na relação da religião
afro-brasileira com as outras religiões e o resto da sociedade. As federações de
umbanda e candomblé, que supostamente uniriam os terreiros, não funcionam, pois
não há autoridade acima do pai ou da mãe-de-santo (PRANDI, 2005, p. 232).
45

As performances “naturalmente” realizadas ou vivenciadas pelo povo-do-


santo constituem, muitas vezes, objeto de preconceitos e temores por parte da sociedade
abrangente. Na sua maioria, os indivíduos e grupos situados fora dos terreiros, ao invés de
tentarem compreender as “lógicas” que regulam tais espaços e suas atividades rituais,
permanecem atrelados a visões e atitudes altamente etnocêntricas, as quais acabam por
aumentar o estigma que ainda hoje incide sobre essas religiões, historicamente, marcadas
pela sua subalternidade.

Com o crescimento do campo evangélico no Brasil, mais que “exóticas”,


“estranhas” ou consideradas indicativas de pessoas atrasadas e ignorantes, as práticas do
terreiro foram demonizadas. Vistas sob essa perspectiva, as entidades dos terreiros
constituem diferentes faces de Satanás, entidade que atua no mundo, perpetrando
malefícios.

2.3 À procura de pombagiras

Dentre os fatos mais significativos associados à construção desta tese,


merece destaque o meu encontro com Pedro, um candomblecista “feito no santo” , há mais
de vinte anos, ligado à nação angola. Vale destacar o interesse desse filho-de-santo e
estudioso das religiões afro-brasileiras em colaborar na pesquisa cedendo-me parte do
material que vinha coletando há duas décadas, como também me conduzindo até o próprio
terreiro ao qual ele era vinculado.

Ao lado da vontade de trocar informações e materiais vinculados à pesquisa,


somavam-se também motivações ligadas à projeção daquele terreiro na cena sociocultural
de Belo Horizonte. Tal fato é compreensível, na medida em que se constatam, além do alto
grau de preconceito na sociedade contra as religiões afro-brasileiras, as próprias
características deste campo religioso no que diz respeito à rivalidade e ao conflito entre
suas casas. Tomando esse quadro como parâmetro, observamos que a presença de um
antropólogo pesquisando nos espaços dos terreiros é freqüentemente vista como algo capaz
46

de conferir-lhes maior legitimidade e status, tanto na sociedade abrangente como no próprio


campo religioso.

Com efeito, o contato com Pedro foi extremamente positivo para a pesquisa,
no sentido tanto da viabilização de um amplo espaço de troca de materiais e informações
sobre as religiões afro-brasileiras quanto da minha inserção no terreiro ao qual ele era
vinculado. Afinal, foi a partir de sua intermediação que o líder da casa recebeu-me na
condição de pesquisadora. Se meu encontro inicial com o grupo ocorreu sem maiores
problemas, certamente isso se deve à intermediação de Pedro.

Ainda em relação à convivência com Pedro, é necessário enfatizar outros


pontos significativos. Além de ter facilitado o meu acesso ao terreiro a que pertencia, o
candomblecista auxiliou-me significativamente em vários níveis da pesquisa,
proporcionando-me, sobretudo, uma visão êmica das pombagiras e dos exus. Nossas longas
conversas levaram-me à constatação de convergências e divergências entre universos de
representações construídos sobre as pombagiras, dentro e fora do povo-do-santo. As várias
visitas que fiz à sua casa, espaço onde ele residia com sua esposa (uma “equedi”) e seus três
filhos (uma criança e dois adolescentes), foram essenciais para que pudesse presenciar a
convivência de toda uma família com pombagiras e exus, por meio tanto de narrativas (nas
quais essas entidades apareciam como personagens centrais) quanto das cenas de possessão
que, freqüentemente, ocorriam no cotidiano da casa.

Em meados de 2003, comecei a pesquisar o terreiro liderado por Mãe


Mariinha, uma ialorixá que há mais de trinta anos estava ligada à umbanda. Nesse mesmo
ano, também surgiram meus primeiros contatos com o terreiro liderado por Mãe Rita,
minha ex-aluna e líder de terreiro.

Apesar de ter realizado pesquisas em outras casas de santo, as investigações


mais sistemáticas ocorreram no terreiro de Mãe Mariinha e no de Pai Carlos. Neste ponto,
vale sublinhar que a possibilidade de uma incursão variada num campo religioso marcado
47

pela pluralidade permitiu-me perceber os vários tipos de relações travados entre líderes
religiosos de diferentes terreiros com a figura da pombagira.

A freqüência sistemática a sessões, festas e espaços de consultas colocou-me


diante de pessoas que, mesmo se definindo como católicas, procuravam soluções para as
suas aflições e infortúnios num âmbito religioso marcado pela pluralidade que ia desde ritos
e festas em terreiros, passando pelos programas televisivos do padre Marcelo Rossi, até as
sessões existentes em igrejas evangélicas. Algumas dessas pessoas diziam ter participado
de “campanhas” na IURD, com o objetivo de solucionar os mesmos problemas que as
tinham levado ao terreiro. Como observei posteriormente, é nos rituais dessa igreja inserida
no campo evangélico que, de forma mais clara, intensa e definitiva, a pombagira é acusada
de promover graves malefícios para quem sofre a ação de seus poderes, considerados
demoníacos.
48

3 OS TERREIROS E SEUS RITOS DE POSSESSÃO

Com apoio em questões enunciadas na Introdução, levantamos algumas


perguntas relativas às maneiras específicas pelas quais o povo-do-santo relaciona-se no
nível das representações e das vivências corporais, emocionais e afetivas com as
pombagiras.

Tais perguntas remetem a uma questão central deste estudo, referente às


diversas maneiras pelas quais esses relacionamentos construídos no plano de idéias, valores
e experiências corporais específicas contribuem para a construção do modo subjuntivo nos
espaços dos terreiros.

Tomando como ponto de partida a bibliografia existente sobre o tema, assim


como a nossa própria experiência em terreiros de Belo Horizonte, num primeiro momento,
focalizaremos itens e dimensões genericamente associados à possessão em casas de
umbanda e de candomblé. Este trabalho, de ordem mais abrangente, será seguido por um
outro, mais específico, no qual a possessão por pombagiras será tratada detalhadamente a
partir da descrição e análise de suas condutas e performances nas consultas, festas e ritos
realizados em sua homenagem. Por meio de observações, de narrativas, de ações e, enfim,
de análises referentes à possessão, buscaremos compreender como a pombagira surge em
seus contextos específicos, contribuindo para a atividade de criação e reinterpretação do
modo subjuntivo da cultura.

Sublinhamos o esforço em focalizar determinados aspectos referentes tanto à


cosmologia dessas religiões quanto aos seus ritos de possessão, buscando encontrar as
especificidades da pombagira e de sua incorporação, sem perder de vista o contexto maior
no qual essa figura mítica se insere.

A presença da pombagira será tratada, tanto nos terreiros de umbanda quanto


em casas de candomblé. Isso porque, apesar de a pombagira surgir como uma entidade
49

primordialmente vinculada ao panteão da umbanda, um número significativo de terreiros de


candomblé trabalha com essa entidade, principalmente mediante consultas particulares.
Sendo assim, durante a pesquisa, observou-se que os “toques” realizados para exus e
pombagiras não se restringiam somente às “giras” das casas de umbanda, sendo também
realizados, periodicamente, em ritos de terreiros que se definiam como pertencentes ao
candomblé.

Vale destacar também, a importância dos terreiros e de seus ritos na


construção de uma ambiência permeada por idéias, valores, comportamentos e, enfim,
experiências capazes de propiciar aos indivíduos e grupos a vivência de um mundo mítico
construído a partir da possessão.

Antes de qualquer coisa, é preciso salientar que tanto na umbanda quanto no


candomblé, a possessão é um fenômeno construído e veiculado por meio de uma complexa
e intrincada rede de símbolos, cujos códigos, normas e performances põem em contato e
fazem interagir entidades do panteão afro-brasileiro com indivíduos e grupos ligados aos
terreiros.

Conscientes das especificidades que as práticas e representações ligadas à


possessão adquirem nos terreiros, observamos que, de forma genérica, tal fenômeno
constitui um acontecimento sobre o qual se acredita que uma entidade no caso, um orixá ou
um espírito “toma” temporariamente o corpo de um indivíduo, mais comumente, alguém já
iniciado no “santo”, tornando-o, total ou parcialmente, sujeito à sua vontade. Sendo assim,
embora existam pessoas que, ainda na condição de não iniciadas recebam entidades, é mais
comum que os orixás e os guias sejam incorporados por pessoas já cientes e praticantes dos
chamados “fundamentos”. Essas pessoas são representadas pelos pais, mães, filhos e filhas-
de-santo.

Em termos fenomênicos, isso quer dizer que durante a possessão aqueles que
incorporam as entidades perdem, total ou parcialmente, o controle sobre seus corpos e
50

mentes, uma vez que se encontram temporariamente “habitados” por uma alteridade. Tal
crença faz com que os médiuns possuídos pelas entidades sejam vistos como a própria
“presentificação” do “santo” (SEGATO, 1995, p.48) ou do espírito que “desceu” no
terreiro, e não como mera representação ou simbolização de entidades (AUGRAS, 1995;
MAGGIE, 2001; MOTTA, 2006; SEGATO, 1995).

Ao se tratar da possessão em terreiros de candomblé e de umbanda, é


necessário traçarmos algumas distinções entre esses campos religiosos. No que diz respeito
aos terreiros de candomblé mais ortodoxos, cujas raízes são consideradas prolongações de
tradições jeje-nagô, observa-se que seus ritos de possessão põem em cena,
primordialmente, os orixás: divindades iorubá cultuadas nas religiões de matriz africana no
Brasil (candomblés, xangôs, umbandas e batuques). No entanto, nos terreiros pesquisados
isso não impede que, periodicamente, surjam festas dedicadas aos espíritos ligados ao
panteão da umbanda, tais como pretos-velhos, exus e caboclos.

Antes de se passar adiante, convém definir as entidades citadas acima: os


orixás. Aqui, deparamos com antigos reis, heróis, figuras míticas divinizadas e
consideradas como representações dos fenômenos ou forças da natureza, como a água do
mar, as águas doces, os ventos, os raios, as matas, as doenças, a saúde, a vida e a morte.
Para cada um desses princípios da natureza ou aspectos da vida existe um orixá
correspondente. Nas religiões afro-brasileiras, os orixás são também chamados de "santos".
Daí o surgimento dos termos: zelador de santo, pai-de-santo, mãe-de-santo, filho-de-santo,
etc.

Ao descerem nas festas e ritos dos terreiros, tais deidades dançam e realizam
performances relacionadas aos universos míticos que lhes dizem respeito, sem, no entanto,
comunicarem-se verbalmente com aqueles que as homenageiam. Quanto a isso, enfatiza-se
as seguintes palavras de Motta (2006, p. 103-104) sobre os “transes de êxtase”:
Os orixás manifestam sua identidade por gestos bem determinados, por certos
passos de dança, por ritmos diferentes uns dos outros. É isso que me permite
considerar o transe do candomblé como um transe do corpo, em oposição ao que
denomino transe da palavra [...] é tipicamente mudo tanto mais que se supõe que os
51

orixás só saibam, ou só se dignem, falar em sua língua nagô, a não ser pelas
exclamações anunciando os orikis, os nomes de glória dos deuses.

Nos ritos da umbanda, denominados “gira”, os orixás, apesar de cultuados,


dão lugar a outras entidades, representadas por espíritos autóctones brasileiros, mais
evidentemente ligados à cultura nacional nas suas vertentes rurais e urbanas. Nesse caso,
acredita-se que as entidades incorporadas possam interagir com as pessoas presentes,
conversando, aconselhando, tocando no corpo dos consulentes e, até mesmo,
compartilhando bebidas e comidas rituais preparadas especialmente para festas e sessões. É
bom esclarecer que esse ato de tocar no corpo do consulente para limpar a sua aura ou,
mesmo, de segurar demoradamente as suas mãos ou o seu pulso enquanto “correm a gira”
torna-se, muitas vezes, um fator de reforço do elo afetivo e da confiança criados entre o
consulente e a entidade.

Embora as possessões possam acontecer na vida cotidiana, é nos rituais


públicos que o fenômeno adquire notoriedade, exigindo dos umbandistas e candomblecistas
um cuidadoso trabalho de preparação das indumentárias, das comidas e de tudo o mais que
cerca e constitui o espaço ritual. Nesse sentido, está-se diante de um fenômeno cujo caráter
é marcadamente social, fato que é enfatizado por Brumana (1991, p. 350).
A possessão não é um fenômeno individual, mas, coletivo, social. Tanto pelo
caráter público e generalizado de sua prática como, o que nos interessa mais,
porque a própria possessão é uma construção social, um estado que só existe pela
credibilidade e eficácia que se lhe outorga socialmente, um estado que serve de
instrumento coletivo de comunicação com o sagrado, um estado socialmente
pautado.

Enfatizamos a importância dos ritos de possessão para o povo-do-santo,


ocasiões especialíssimas no que diz respeito aos seus encontros e interações com as
entidades do panteão afro-brasileiro. Com efeito, mais do que apenas comunicar, ou seja,
dizer algo sobre os mitos e os acontecimentos vinculados às deidades constitutivas de um
panteão, esses rituais permitem aos indivíduos e grupos interagir com as divindades e
vivenciar, conjuntamente, experiências constitutivas de universos míticos com suas
respectivas cosmologias. Aqui, apóia-se na perspectiva durkheimiana, segundo a qual são
os ritos verdadeiros “atos de sociedade” (DURKHEIM, 1996), a partir dos quais um
52

conjunto de categorias, “visões de mundo”, e todo um universo de símbolos é criado,


revelado e compartilhado pelas diversas sociedades.

Nos terreiros, tais momentos extraordinários colocam em foco um sagrado


que, longe de se restringir a um mundo abstrato, manifesta-se concretamente no corpo dos
iniciados, provocando neles determinadas sensações e exigindo deles certos tipos de
performances relacionadas aos cantos, aos toques, aos gestos e às maneiras específicas de
falar.

Sabemos ainda que as festas e ritos dos terreiros de candomblé estão


fundamentalmente interligados a um determinado “poder de realização”, ou axé, elemento
que, por sua vez surge estreitamente correlacionado ao caráter performativo dos atos rituais.
Detendo-se nessa noção de performance, aponta-se para a articulação de elementos visuais,
verbais, musicais, corporais e gestuais que, veiculados, sobretudo, pela possessão, tornam-
se inteligíveis e significativos quando interpretados a partir de suas “linguagens”
(AUGRAS, 1995; CRAPANZANO; GARRISON, 1977; HAYES, 2004).

3.1 As linguagens da possessão

As possessões realizadas nos terreiros pesquisados ocorrem por meio de


práticas altamente codificadas, relacionadas a performances vinculadas aos “fundamentos”
da umbanda e do candomblé. Aqui, tomam-se como referência algumas idéias
desenvolvidas por Crapanzano e Garrison (1977, p. 10-11).

Partindo de contextos culturais em que os cultos de possessão representam um fato


social significativo, esses autores utilizam os termos possession idiom e spirit idiom para
referir-se a uma série de manifestações ligadas a tipos de linguagem capazes de articular e
conferir significados à experiências social e culturalmente compartilhadas. Antes de tudo,
ressaltamos que as linguagens capazes de propiciar a comunicação entre os indivíduos e as
entidades do mundo invisível extrapolam a simples utilização de códigos verbais,
53

abrangendo também aspectos valorativos, além de comportamentos e performances


tradicionais referentes à práxis da possessão.

A possessão surge vinculada a esquemas interpretativos, a partir dos quais


idéias, experiências e comportamentos referentes à presença e ao poder de agência dos
espíritos adquirem sentido para indivíduos e grupos particulares. Além de configurar uma
determinada visão de mundo para indivíduos e grupos, esse idioma da possessão (cujos
principais elementos constituem as entidades) capacita os integrantes dos terreiros a
interagir com o mundo invisível de variadas maneiras.

Torna-se necessário reforçar um ponto: A importância de analisar as


narrativas, os atos rituais e as ações cotidianas ligadas à noção de spirit idiom, tendo em
mente que para os integrantes dos terreiros os espíritos e as demais entidades que os
povoam adquirem o status de seres sociais (BODDY, 1994; LAMBEK, 1980),
constantemente presentes em seu imaginário e em seu cotidiano.

Neste ponto, vale destacar um forte atrativo do candomblé e da umbanda,


que se refere à sua capacidade de pôr à disposição dos fiéis um grande número de
“personalidades místicas, de eus sobressalentes” (MOTTA, 2006, p. 106) constituídos pelos
orixás e espíritos do panteão afro-brasileiro.

Influindo tanto nos momentos rituais quanto nas situações da vida cotidiana,
as entidades do mundo invisível exercem um significativo poder sobre os atos do povo-do-
santo e, enfim, sobre as suas maneiras de “ser” e de “estar” no mundo. Nesse sentido, é
preciso enfatizar que o poder de agência atribuído a essas entidades não se limita somente
aos momentos das incorporações, mas se faz presente também por intermédio de visões,
falas, sonhos e presságios.

Interagindo constantemente com as entidades também no seu cotidiano, os


grupos ligados aos terreiros acabam por criar um tipo de ethos que, mesmo guardando
54

diferenciações internas entre si, caracteriza-os e distingue-os de outros grupos inseridos na


sociedade abrangente.

Com relação aos ritos de possessão, é ainda preciso enfatizar o seu caráter
performativo e simbólico. É por meio de atitudes e gestos performáticos que os ritos se
constroem e se atualizam, tornando-se ocasiões propícias às mediações e atos revestidos de
poder. Por intermédio dessas performances, cuja vivência constitui fator essencial no que
diz respeito à eficácia mágica, acredita-se resolver aflições, apaziguar conflitos e, enfim,
alcançar e realizar desejos.

Tal constatação coloca-nos, então, diante de esforços relacionados à


observação cuidadosa não só do que os indivíduos dizem a respeito dos elementos
simbólicos, mas, também, das maneiras específicas como vivenciam ou experimentam
esses conjuntos de símbolos. Aqui, situamo-nos diante de atos performativos capazes de
garantir a tais símbolos maior grau de eficácia. Nesse sentido citamos as idéias de Tambiah,
autor que afirma a eficácia derivada do caráter performativo do rito em três sentidos: no
de Austin (em que dizer é fazer como ato convencional); no de uma performance que usa
vários meios de comunicação através dos quais os participantes experimentam
intensamente o evento e, finalmente, no sentido de remeter a valores que são vinculados ou
inferidos pelos atores durante a performance (TAMBIAH, 1985).

3.2 Ritos de possessão: relações indivíduo - sociedade

Se anteriormente enfatizamos o caráter social dos ritos de possessão,


apontaremos agora a necessidade de inserir o indivíduo em um fenômeno cujas
performances dizem respeito não só às dimensões coletivas, mas também às individuais.

Um aspecto importante a ser sublinhado diz respeito às relações indivíduo-


sociedade. Com efeito, verifica-se que se, de um lado, a possessão toma como modelo
estereótipos de amplo alcance, de outro, seus parâmetros necessitam também de bastante
55

flexibilidade para comportar aspectos idiossincráticos. Isso acontece na medida em que,


para adquirirem sentido e tornarem-se persuasivas em determinados contextos, as
linguagens da possessão necessitam integrar situações específicas de acordo com
convenções social e culturalmente determinadas (HAYES, 2004, p. 281). As análises de
Maggie (2001) são essenciais para esclarecer essas colocações. Tratando especificamente
da possessão em terreiros cariocas, essa antropóloga enfatiza a necessidade de compreender
tanto os espaços de liberdade quanto os limites do indivíduo no que diz respeito à criação e
à vivência de papéis e performances no mundo ritual. Pontuamos então a seguinte
afirmação:
A possessão é um fenômeno coletivo, pois é um processo socialmente aceito, no
qual as entidades que incorporam no médium fazem parte da mitologia e do sistema
de representações do grupo. Mas ela é, ao mesmo tempo, a individualização desse
coletivo, pois cada médium personifica uma ou várias dessas entidades, dando-lhes
uma interpretação pessoal. (MAGGIE, 2001, p. 84).

Assim, nos ritos dos terreiros, essa individualização é reforçada na medida


em que as entidades, temporariamente presentes no corpo dos médiuns, são vistas como
“suas” entidades, dotadas de características que as personificam e as distinguem de
quaisquer outras. Partindo, pois, de uma perspectiva êmica, ou seja, referente às visões de
mundo e dos discursos nativos, observa-se que, nos terreiros pesquisados o termo
possessão é pouco utilizado, sendo continuamente substituído por outras expressões, como
“receber” a entidade ou “virar no santo”.

Nas situações em que o médium ou, como se diz nos terreiros, o cavalo
incorpora um orixá ou um espírito, diz-se que ele “está virado” naquela entidade. Além
disso, é necessário enfatizar que as frases ouvidas e registradas nesses terreiros, na maioria
das vezes, remetem a um forte laço criado entre o orixá (ou o espírito) e o médium que o
recebe, vínculo demonstrado, sobretudo, pelo uso de pronomes possessivos utilizados antes
do nome da entidade. Dentre outras afirmações que destacam esse forte laço entre a
entidade e o seu cavalo, é comum ouvir frases do tipo: “A minha cigana só gosta de bebidas
finas” ou “A minha Padilha é mesmo fatal. Ela não perdoa ofensas”. Trata-se, afinal, de
frases dotadas de pronomes possessivos que, além de marcar um forte vínculo entre o
cavalo e a entidade singularizam-nas diante de outras daquele contexto.
56

Enfatizando essas idéias, observa-se que, ao se tratar de uma entidade cujas


características individuais vão sendo gradualmente modeladas (BIRMAN, 1983) a partir de
uma longa e estreita interação com um determinado indivíduo, ela resultará num ser social
único e diferente de qualquer outro do mesmo tipo.

3.3 Orixás, espíritos e “cavalos”: possessão e reciprocidade

Pesquisas realizadas em terreiros revelam que, na maioria das vezes, a


convivência das entidades com os médiuns que lhe servem de cavalo se constrói mediante
forte relação pessoal, que vai ganhando novos contornos, principalmente, por meio da
possessão e do imaginário criado em torno desse fenômeno.

Percebidos como seres sociais, orixás e espíritos integram um circuito


marcado por relações de reciprocidade, no qual o povo-do-santo assume a obrigação de
tratá-los com zelo e compromisso, recebendo em troca proteção e poder de realização.

Nesse circuito de prestações e contraprestações (MAUSS, 2003), aqueles


que convivem mais intensamente com as entidades têm de conhecer seus gostos, seus
caprichos pessoais, em suma, toda uma série de itens que, constituindo-se em dádivas,
deixam as entidades satisfeitas e dispostas a executarem os pedidos de seus “cavalos”.
Assim, tornam-se comuns os relatos de médiuns que destacam o alto grau de exigência de
suas entidades no que diz respeito à satisfação de seus desejos. Tentando esclarecer tais
relações entre médiuns e entidades, citamos as seguintes colocações de Hayes (2005, p. 86):

Médiuns e filhos-de-santo entram em relações pessoais e de longo prazo com seus


espíritos e divindades, que eles descrevem como membros de suas famílias. Como
membros de uma família, espíritos requerem atenção e cuidados afetuosos da parte
do médium. Cumprir as obrigações com essas entidades extra-humanas envolve um
significativo investimento de tempo, energia e dinheiro, que pode criar tensões nas
relações com sua família carnal. Para os que trabalham com espíritos, equilibrar as
demandas desses dois mundos, humano e espiritual, é experimentado como algo
difícil e cheio de riscos. Não só os espíritos insatisfeitos são capazes de provocar
todo o tipo de doença, confusão e desordem, como também os membros da família
humana de um médium podem descarregar sobre ele suas próprias formas de
punição.
57

Se, de um lado, acredita-se que a doação das oferendas preferidas pelas


entidades garante a sua atenção para com aqueles que lhes presenteiam, de outro, a falta de
zelo e de compromisso com essas dádivas quase sempre significa a quebra de laços dessas
entidades com os indivíduos que as cultuam, resultando numa condição de vivente sem
proteção, entregue às incertezas e contratempos da vida. Decorrem daí interpretações que
correlacionam determinados infortúnios aos males e castigos perpetrados por deidades
descontentes com seus cavalos.

Outra questão a se verificar é que os laços estabelecidos entre o(s) cavalo(s)


e a(s) entidade(s) são perpassados por diferentes estados subjetivos, que envolvem,
simultaneamente, sentimentos de admiração, respeito, medo, confiabilidade e orgulho.
Todos esses afetos que perpassam as relações dos indivíduos com suas entidades tornam-se
elementos centrais para a construção mítica da noção de pessoa.

Com efeito, a arquitetura dessa construção começa a partir da descoberta do


orixá, ou seja, do santo que rege a vida do indivíduo. Este passo é de fundamental
importância, pois, de acordo com o sistema de crenças encontrado nos terreiros
pesquisados, cada orixá traz consigo um casal de exus para auxiliá-lo em suas ações na
terra. Assim, além de o indivíduo possuir determinados santos (no caso, orixás) com quem
deve estabelecer uma troca constante durante toda a sua vida, ele também está ligado a um
exu e a uma pombagira, que lhe dizem respeito no plano da espiritualidade. Esses exus
surgem, muitas vezes, como escravos ou ordenanças dos orixás e, assim como estes
últimos, também devem ser reverenciados pelo povo-do-santo.

3.4 Possessões plenas ou parciais?

Conversas com filhos e filhas-de-santo dos terreiros pesquisados revelaram


que, na maioria das vezes, estes se referiam ao ato de virar no santo ou nas demais
entidades do terreiro como um fenômeno no qual a entidade chegava e tomava o seu corpo,
sem que eles pudessem resistir ao seu poder. No caso dos orixás, alguns filhos-de-santo
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destacavam um estado de sonolência que antecedia a tomada do corpo pela entidade, e era
nomeado de “barravento”. De maneira geral, antes de se instaurar no corpo dos filhos e das
filhas-de-santo, os orixás e espíritos se anunciavam por meio de determinadas sensações
corporais, tais como arrepios, tremores, suor intenso ou, até mesmo, dor. Esses estados
podiam tanto estar relacionados à incorporação das entidades quanto a sua presença junto a
algum de seus filhos para lhes comunicar algo.

Descrevendo a possessão, os integrantes dos terreiros diziam, comumente,


que tão logo eram tomados pelas entidades cessava a possibilidade de se inteirar do que
estivesse acontecendo consigo ou no ambiente no qual estavam inseridos. Acreditava-se
que, a partir desse momento, a sua pessoa não se encontrava mais presente, pois dera lugar
ao orixá ou ao espírito que tinha lhe tomado o corpo (AUGRAS, 1995, p.111; BRUMANA,
1991, p. 330).

As palavras de uma antiga mãe-de-santo do candomblé resumem esse tipo


de estado, denominado de possessão plena: “ Quem está manifestado é como se estivesse
dormindo, ou até mais. É como se tivesse tomado anestesia geral; não vê nada, não ouve
nada, entendeu? Está andando, mas, não está vendo, não está ouvindo, nem está sentindo
nada”.

Além do depoimento dessa ialorixá, cujas palavras descrevem um tipo de


possessão em que o cavalo encontra-se radicalmente ausente, ou “desligado”, do meio onde
se insere, há relatos de perda parcial de consciência, ou seja, de estados em que os médiuns
podem ouvir ou ver coisas do ambiente, sem que, no entanto, possam agir conforme a
própria vontade. Tal incapacidade explica-se pelo fato de o médium (e necessariamente de
seu corpo) estar sujeito à vontade da entidade que ele está recebendo.

Se nos campos da umbanda e do candomblé são encontrados relatos que


explicitam experiências ligadas tanto às possessões plenas quanto às possessões parciais,
posições mais ortodoxas (assumidas, sobretudo pelos líderes de terreiros) defendem a idéia
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de que a possessão plena constitui um estado a ser alcançado pelos médiuns ao longo de seu
desenvolvimento religioso.

Uma antiga umbandista, há mais de trinta anos ligada aos terreiros relatou
que quando passou a receber seus guias podia notar a “vibração” de cada um deles. Esse
estado era seguido por outro, no qual ela somente podia escutar, bem ao longe, algumas
palavras ou toques de atabaques, sem discernir bem o que via ou o que ouvia. No seu caso
específico, tais fenômenos duraram dois meses até o momento em que teve os sentidos
plenamente tomados pela entidade. Sua mãe-de-santo explicou-lhe que esse estado de
possessão plena só acontecia depois que o anjo da guarda do médium confiasse
inteiramente na entidade que desejava tomar o corpo de seu protegido. Uma vez obtida essa
confiança, o anjo “dava linha” à entidade para que ela se incorporasse no médium de
maneira plena.

Em síntese, tanto nos terreiros de umbanda quanto nos de candomblé, uma


grande maioria de adeptos concebe a possessão como um fenômeno que, no limite, deixa o
médium totalmente inconsciente diante do que se passa consigo mesmo e em seu derredor.

Partindo desse discurso, veiculado principalmente pelas lideranças das casas,


concluimos que a possessão plena constitui um modelo idealtípico a ser atingido pelos
médiuns ao longo de sua trajetória na esfera espiritual. Essas idéias são reforçadas por meio
das seguintes palavras de Brumana (1991, p. 331).:
[...] a ausência de consciência, mais do que um fato que nos leve a perguntar-nos
pela sinceridade ou pelos mecanismos psicofisiológicos que nela intervêm, é uma
exigência do código umbandista, que se diferencia de outros como o kardecista, e
frente à qual cada agente em particular deve acomodar e julgar sua própria
experiência .

Tratando-se de um sistema de crenças fundamentado na idéia de que as


entidades detêm a vontade e o poder de se incorporarem em seus filhos e filhas, as ações
realizadas durante a possessão são atribuídas à própria entidade na qual o médium está
virado. A este cabe o papel passivo de alguém que doa ou que tem o seu corpo tomado por
60

uma alteridade movida pela própria vontade. Não é por acaso que, nos terreiros os médiuns
incorporados recebem o nome de “cavalo-de-santo” ou, menos comumente, de “aparelho”.
Tais termos tendem a ressaltar uma tensão existente entre o médium, tido, no limite, como
objeto da vontade da entidade, e essa última, considerada como o sujeito ativo dessa relação
dual.

É bastante comum encontrar na fala dos candomblecistas e umbandistas


episódios que mostram vários fatos considerados negativos em suas vidas antes que eles
desenvolvessem a sua mediunidade. Essas situações de infortúnio são, na maioria das
vezes, interpretadas como um “chamado”, quase uma intimação feita pelas deidades e
espíritos para que o indivíduo se dedique a elas. A eleição ou apelo realizado pelo santo ou
espírito é comumente enfatizado na fala dos médiuns como um elemento que lhes confere
distinção em relação aos outros filhos ou filhas-de-santo. Ora, uma das formas encontradas
pelas entidades de eleger um de seus filhos ou filhas é a súbita incorporação, ou seja, uma
“tomada” do corpo do indivíduo antes mesmo que ele passe por um processo de iniciação
destinado a lhe ensinar princípios, códigos e regras para lidar com o transe ritual. Tratando
do candomblé, Bastide (1983, p. 296) refere-se a esse fenômeno nos seguintes termos:

Podemos distinguir dois casos de transe místico, antes e depois da iniciação.


Geralmente, o transe é conseqüência da iniciação; mas pode acontecer que um deus
possua alguém que não tenha ainda sofrido as provas da iniciação. Isto quer dizer
que tal pessoa lhe agrada, que ele quer fazer dela o seu “cavalo”, que ele a reclama
para o seu culto. Diz-se então que é um “santo-bruto” ou ainda um “santo não
feito”.

De qualquer modo não se pode confundir o fenômeno do “santo bruto” com


o que se entende por possessão plena. Enquanto o primeiro é um ato voluntarioso da
entidade que toma subitamente seu filho ou filha ainda despreparados para recebê-lo, o
segundo exige uma entrega voluntária por parte dos filhos e filhas-de-santo que aceitam se
submeter aos ritos iniciatórios essenciais para lhes colocarem em contato com os segredos
relativos ao orixá.
61

No que diz respeito aos espíritos, observa-se um fenômeno semelhante. Se


um guia pode tomar de assalto um médium, este último só poderá lidar com as suas
entidades adequadamente se aceitar se submeter às experiências das “giras”. É através
desse rito que os filhos e filhas-de-santo entram em contato com os espíritos e aprendem a
recebê-los em seus corpos. Uma vez completada essa etapa inicial, os médiuns podem
então atender seus clientes antevendo coisas de seu futuro ou mesmo resolvendo
problemas e infornúnios. Tal poder está ligado a um ato que se espera das entidades
correlacionado à ação de “correr a gira”. Explicaremos em seguir essa prática relacionada
aos ritos da umbanda.

3.5 “Correndo a gira”

Uma das idéias fundantes da crença na possessão por espíritos diz respeito
ao poder das entidades de conhecer fatos e acontecimentos não acessíveis aos humanos.
Assim, nos terreiros, tão logo são procuradas pelos consulentes, os médiuns incorporados
por seus guias dizem que vão "correr a gira".

Essa ação refere-se a uma incursão das entidades em dimensões


desconhecidas que, ultrapassando as fronteiras espaciais e temporais do mundo visível, só
são acessíveis aos espíritos.

A entrada nesse mundo invisível destina-se à procura de tudo o que é


significativo na vida do consulente, ou seja, eventos concebidos como positivos e
negativos. Acredita-se então que ao correr a gira, as entidades dizem estar vendo desde
oportunidades de emprego até amores, feitiços ou “demandas” daqueles que os procuram.

Assim, torna-se comum ouvir certas frases que remetem à atenção e aos
cuidados demandados durante esse ato de correr a gira, pois se trata, muitas vezes, de
situações únicas em termos de vislumbrar eventos significativos.
62

Dentre esses seres que podem ver coisas do mundo invisível, destacam-se as
pombagiras e os exus: senhores dos caminhos e das encruzilhadas, donos das ruas e dos
cemitérios e, enfim, espíritos capazes de percorrer todos os territórios inóspitos e
inacessíveis a outras entidades.

3.6 Dialogando com as entidades

Se o diálogo entre a entidade e o consulente ocorre, sobretudo, a partir do ato


de correr a gira, o próprio cavalo também é objeto do poder dos espíritos que recebe no que
diz respeito à capacidade dessas entidades de vislumbrar fatos significativos de sua vida.
No entanto, se partirmos do modelo representado pela possessão plena, como pode o cavalo
saber desses fatos antevistos pelas entidades que ele incorpora?

Uma das formas mais comuns encontradas nos terreiros para esse tipo de
problema é um tipo de comunicação triádica, ou seja, baseada na existência de um terceiro
termo situado entre a entidade e o seu cavalo. Este terceiro elemento (na maioria das vezes,
constituído por um integrante do terreiro) geralmente recebe a mensagem da entidade e a
transmite para quem ela é endereçada. Caso esta mensagem diga respeito a uma conversa
da entidade com o seu cavalo, quem a recebe espera a entidade “subir”· para, em seguida,
passá-la ao médium. Daí ser comum o fato dos umbandistas e candomblecistas dizerem que
receberam um “recado” das entidades pedindo-lhes algo, avisando-lhes sobre oportunidades
ou perigos, ou ainda, ordenando-lhes executar uma ação.

Outra maneira de conhecer os desejos e avisos das entidades ocorre por meio
de sua fala com seus cavalos em situações de semiconsciência ou, mais freqüentemente,
nos estágios em que os médiuns ainda estão em estado de vigília.

As deidades podem também se comunicar com aqueles que as incorporaram


por meio de sonhos ou, mesmo, de intuições e sensações corporais. Nos terreiros, uma das
funções dos pais e mães-de-santo é mediar essa comunicação entre os filhos e as filhas-de-
63

santo e suas entidades, interpretando sinais, sonhos e, até mesmo, fatos do cotidiano. Um
pai-de-santo relatou o fato de que todas as vezes que sentia dor de cabeça podia observar
que a quartinha da sua Oxum estava seca. Com o intuito de cuidar e agradar seu orixá, esse
zelador-do-santo, imediatamente colocava água nesse recipiente, ação que fazia cessar o
seu mal estar.

No entanto, os diálogos não param por aí. A aproximação com o imaginário


do povo-do-santo mostra toda uma sorte de ritos que, inscrevendo-se num processo de
trocas recíprocas, estão destinados a agradar as entidades.

Tal maneira de presentear é constitutiva de um tipo de linguagem que ganha


corpo na oferta de objetos concretos e que tem como intenção agradecer ou pedir algo às
entidades. Vale lembrar que tais oferendas, costumeiramente, surgem durante ritos que
buscam mediar pedidos ou agradecimentos. Inscritas na experiência ritual, elas exigem um
lugar e um tempo próprio para serem realizadas.

Da mesma forma que existem comidas, animais, dias de semana (dentre


outros elementos) que agradam a cada um dos orixás, também há dádivas preferidas por
espíritos como os exus e as pombagiras. Como se pode observar nas encruzilhadas e nos
ritos dos terreiros, estas entidades têm preferência por determinadas bebidas. Os exus
geralmente gostam de cachaça, enquanto as pombagiras preferem bebidas doces,
principalmente champanhe. As oferendas destinadas aos exus, colocadas preferencialmente
nas encruzilhadas, são ainda acompanhadas de cigarros, farofa, velas e galinhas
sacrificadas.

Existe um sistema de crenças no qual as entidades protegem e favorecem


aqueles que cumprem todo um conjunto de normas e atividades rituais, ao mesmo tempo
em que punem ou abandonam à própria sorte aqueles filhos ou filhas considerados
negligentes.
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Fica explícito que as trocas e demais relações estabelecidas entre o povo-do-


santo e sua(s) entidade(s) fundamentam-se em profundos vínculos construídos por meio de
dádivas e contra dádivas (MAUSS, 2003). Se determinada deidade pede ou reivindica algo
ao seu cavalo e não é atendida, acredita-se que os elos construídos entre ambos ficam
ameaçados, fato que pode trazer uma série de conseqüências nefastas para aquele que
cometeu a negligência. Além das famosas “surras” dadas pelas entidades em seus filhos e
filhas, motivadas pelo descumprimento das obrigações rituais, existe a possibilidade de os
espíritos e orixás abandonarem seus cavalos, fato que significa uma perda de poder por
parte destes últimos, que deixam, assim, de se beneficiar da força mágica transmitida por
seus santos e guias.

Assim, esse convívio e diálogo entre homens e deidades fazem surgir um


amplo espaço de troca, fundamentado na noção de dádiva e na sua correlata dimensão
sacrifical (MAUSS, 2003). Para obter os favores e a proteção das entidades, torna-se
necessário cumprir suas ordens e atender a seus desejos. Contrariar ou negligenciar tais
pedidos pode significar, no limite, graves infortúnios para aqueles que desobedecem as
entidades.

3.7 Possessão: poder liminar e gênero

Ao abordar análises que tomam como objeto as especificidades entre a


possessão e as relações de gênero, não se pode deixar de tocar, mesmo que brevemente, no
trabalho pioneiro de Landes, antropóloga americana que em 1940 já apontava para a
presença de relações de gênero transgressoras nos cultos de possessão observados por ela
na Bahia. Nesse sentido, Birman (2005, p. 45) faz a seguinte colocação: “o seu relato
etnográfico entrelaça relações de gênero, digamos, pouco usuais, com práticas de possessão
e de poder que não se guiavam pela ortodoxia religiosa e, reconhecida pelos estudiosos
desses cultos.”
65

Na seqüência desse caminho aberto por Landes, Fry, em finais da década de


1970, é o primeiro a tratar de sexo e homossexualidade nos cultos afro-brasileiros,
relacionando esses aspectos com o fenômeno da liminaridade. Em seus estudos, esse
antropólogo analisa os terreiros de Belém, destacando, principalmente, a presença marcante
de determinadas figuras liminares nas casas de santo, as chamadas "bichas” , e enfatizando
a sua importância como líderes desses locais.

Indo além, o autor conclui que o lugar proeminente ocupado pelas “bichas”
naqueles terreiros estaria ligado a dois motivos principais: o primeiro deles relaciona-se ao
fato de a “homossexualidade” masculina e dos cultos de possessão serem definidos como
comportamentos desviantes em relação aos valores dominantes da sociedade mais ampla
(1977, p. 106). O segundo diz respeito diretamente a certas idéias de Douglas (1976) e de
Turner (1974b), autores que destacam o fato de os seres definidos pela sociedade como
sujos e perigosos levarem, freqüentemente, vantagem positiva, na medida em que sua
poluição vincula-os a determinados poderes mágicos (FRY, 1977, p. 56).

Ao descrever alguns rituais dos terreiros da capital paraense, Fry revela a


significação das performances realizadas por parte das "bichas" e a sua conseqüente tomada
da cena ritual na estetização dos momentos de possessão, principalmente quando possuídas
por espíritos femininos. Interpretando essas análises, pode-se dizer que, naquele contexto, a
gestualidade, o comportamento e a indumentária feminina das "bichas", itens rituais
marcados pelo exagero e por um ethos carnavalesco, apontavam para significativos
mecanismos de inversão.

Como se verá posteriormente, determinados ritos focalizados nesta pesquisa


também apresentam mecanismos semelhantes no que diz respeito à inversão de papéis
sociais considerados masculinos e femininos.

Se Fry enfatizou o alto grau de liberdade com que as “bichas” dos terreiros
de Belém, performaticamente, incorporavam espíritos femininos, tentaremos mostrar o
66

outro lado dessas incorporações. Partindo de pesquisas em terreiros belo-horizontinos e da


observação de indivíduos do sexo masculino incorporando pombagiras, observamos que, ao
lado dessa liberdade expressiva, vivenciada principalmente pelos “adés” surgiam idéias,
sentimentos, tensões e, enfim, um forte constrangimento por parte de indivíduos do sexo
masculino diante dessas performances marcadamente femininas.

A descida de pombagiras em homens, tema que será desenvolvido mais à


frente, tornava-se problemática, sobretudo porque levantava suspeita sobre a masculinidade
que esses médiuns reservavam para si. Aqui, pode-se adiantar que tais “descidas”
tornavam-se objeto de negociações entre cavalos, líderes de terreiros e entidades, as quais,
no limite, traziam consigo atitudes de evitação absoluta por parte de homens que não
queriam sentir a sua masculinidade publicamente ameaçada.

Este estudo também mostrará que, com muita freqüencia, os filhos-de-santo


tentavam a todo custo se esquivar dessas incorporações, motivados pelo medo de não serem
mais vistos como “homens-mesmo” no ambiente dos terreiros. Nesse sentido, está-se diante
de temores relacionados a preconceitos vigentes na sociedade mais ampla, que se
encontram presentes, em maior ou menor grau, no universo dos terreiros.

Pode-se afirmar então que, se, de um lado, o sistema de crenças


compartilhado pelo grupo fundamenta-se na idéia de que a descida de pombagiras nos
médiuns nada tem a ver com a identidade sexual do médium, de outro, existe a crença
(geralmente só explicitada em situações informais e de caráter íntimo) de que os “homens-
mesmo” não recebem pombagiras.

Tais afirmativas, feitas em situações bastante particulares, não se vinculam à


idéia de que este fato decorra de uma tomada de decisão por parte dos médiuns. Ao
contrário, na maioria desses discursos, as descidas das pombagiras no corpo das mulheres e
nos filhos-de-santo considerados adés decorrem do fato destes indivíduos apresentarem
67

gestos e performances femininas, atributos que mais fielmente se aproximariam da


corporeidade e da gestualidade então desejadas pelas pombagiras.
No plano das representações, trata-se de incorporar um espírito
caracterizado, pelo menos a princípio, pela incontinência em termos de gestos e
comportamentos. Tal como apontamos, a separação radical entre o cavalo e o “espírito”
(idéia mestra e definidora da possessão plena), em muitas situações, parece se dissolver,
dando lugar a certa fusão entre os dois termos. Tal mistura ocorre, sobretudo quando se
trata de homens incorporando pombagiras. Nessas situações, confundem-se os contornos
precisos e os limites existentes entre a “masculinidade” do cavalo e a “feminilidade”
performática da entidade.

Assim, a recusa à incorporação (mesmo que não explicitada) parece ser o


mecanismo mais seguro de evitar que o médium seja visto como um gay. Aliás, Maggie
aponta para tal quebra de limiares, quando cita a conversa que teve com um médium
incorporado pela pombagira. Nessa ocasião, essa entidade teria perguntado à antropóloga
sobre a diferença que ela via entre aquela matéria (referindo-se ao seu cavalo incorporado
no terreiro) e o médium, fora dos momentos de possessão. Ao ouvir de Maggie que o
médium incorporado pela pombagira e o estudante fora da possessão eram duas coisas
diferentes, a entidade replicou dizendo que a antropóloga “não estava entendendo”. Para a
pombagira, aquela matéria, ou seja, o seu cavalo, mesmo fora do terreiro guardava
significativas relações de semelhança com ela. Existia um pouco dela no estudante, uma
porção de sua personalidade” (MAGGIE, 2001, p. 92).

3.8 A possessão e a construção de diferenças entre os gêneros

Outro estudo fundamental sobre o tema proposto diz respeito às análises de


Birman sobre os terreiros e suas categorias de gênero. Focalizando o contexto da Baixada
Fluminense, a antropóloga analisa o fenômeno da possessão compreendendo-o como um
“operador das diferenças de gênero” (FRY apud BIRMAN, 1995, p. vii). Nesse sentido, as
análises da autora apontam para o fato de que aqueles que “recebem santos” entram
68

automaticamente num “mundo feminilizado”, ao passo que os participantes não possuídos


ocupam o pólo masculino do terreiro (FRY apud BIRMAN, 1995, p. vii).

Diferindo-se das jovens “iaôs”, cujo comportamento “feminino” é


freqüentemente recatado, os filhos de santo adés desempenham uma “feminilidade”
descontraída e exuberante, que lhes garante a tomada da cena ritual. Pautando-se em suas
observações Birman comenta:

Os adés
[...] são indivíduos facilmente confundidos e mesmo referidos como “bichas”. Há
que se compreender a especificidade dessa categoria. Se é, de certo modo, sem
problemas chamar um adé de bicha, não é muito provável que aqueles que se
reconheçam nessa última designação possam usufruir do estatuto e da competência
específica do adé. Sim, porque esse termo não equivale ao termo bicha, tal como é
usualmente empregado no código hierárquico, como descreve Fry (1982). Abarca
algo mais e, ao mesmo tempo, algo de diferente que só tem sentido pleno no
contexto religioso que o produz. O comportamento do adé remete para essa esfera
da sexualidade vinculada a vida no santo; ser chamado de adé, ou reconhecer-se a si
próprio como adé, pode significar como usualmente significa um filho-de-santo que
se auto-referencia como alguém que se relaciona sexualmente com outro do mesmo
sexo biológico que o seu. E mais: que essa relação possivelmente se dá entre o adé
e outro, considerado “verdadeiramente homem”, cujo exemplo mais recorrente é do
ogã. Mas o adé ultrapassa essa designação que se apóia unicamente na prática
sexual desviante e assumida. O personagem que se institui sob este termo na vida
do santo é aquele, na verdade, que é o especialista maior em explorar, através da
possessão, o seu duplo sentido sexual e, assim, o seu sentido enquanto feminilidade
(BIRMAN, 1995, p. 110, 111).

As festas em homenagem às pombagiras em terreiros belo-horizontinos


mostram que ali também é bastante comum o fato de os filhos-de-santo adés “brilharem”
nesses eventos, em virtude de sua atividade performática ou, mesmo, do uso de suas
indumentárias, caracterizadas pelo capricho, luxo, e exagero. Todavia, é preciso sublinhar
que essa atuação, potencialmente, traz para alguns filhos e pais-de-santo sentimentos
ambíguos manifestados fora dos momentos de incorporação. Assim, observamos que a
descida de pombagiras em indivíduos do sexo masculino (mesmo aqueles a quem é
atribuída a condição de adé), na maioria das vezes, pode implicar certa tensão.
69

Relatos e comportamentos desses médiuns revelam que, depois de


incorporar uma pombagira, portando roupas e acessórios femininos, alguns deles
demonstraram um sentimento ambíguo, um misto entre o prazer de ver as indumentárias e
performances de suas entidades, seguido de notório sentimento de vergonha, por terem se
exposto publicamente daquela maneira ultrafeminina.

Ainda no que diz respeito à possessão e às suas relações com as noções de


gênero, sobreleva a análise de Birman sobre a descida da pombagira Maria Angélica em um
pai-de-santo adé. Focalizando aquela figura do feminino, no que diz respeito tanto à
dimensão ritual quanto às narrativas referentes à sua história de vida, Birman (1995, p.187)
conclui que “o atributo que é colocado em relevo na construção dessa personagem é a sua
capacidade de sedução e o exercício de uma sexualidade de algum modo desviante.”

Com efeito, o relato da história de vida daquela pombagira referida por


Birman enfatiza nitidamente a construção de uma figura feminina em oposição ao poder de
mando, tradicionalmente vinculado ao mundo masculino. Essas idéias, certamente, abrem
perspectivas para se analisar a figura de algumas pombagiras que desciam em terreiros
pesquisados nesta tese e cuja biografia guardava relações de semelhança e contraste com a
pombagira focalizada no estudo de Birman.

No que diz respeito às correlações entre a pombagira e os gêneros, resta


ainda enfatizar a importância dos estudos de Hayes e Capone, antropólogas que, ao se
aproximarem do ponto de vista dos religiosos, levaram a sério com eles e como eles a
agência que possuem os entes sobrenaturais com os quais desenvolvem vínculos de
importância e de natureza variadas (BIRMAN, 2005, p. 404).

Questionando as perspectivas que acabam por reduzir os espíritos às funções


psicológicas, mitológicas, sociológicas ou instrumentais, Hayes (2004) destaca a
necessidade de contemplar a complexa “realidade” dos espíritos na vida cotidiana daqueles
com quem interagem.
70

Tendo como foco o relacionamento triangulado de um casal com uma


pombagira, a antropóloga aponta o forte poder de agência dessa entidade nas várias
questões que permeavam o cotidiano da médium e de seu marido. Como observa a autora, o
fato de uma mulher incorporar uma pombagira pode torná-la poderosa e capaz, inclusive,
de enfrentar o voluntarismo e a arbitrariedade de seu cônjuge. Isso sem falar da ajuda que a
entidade concede ao seu cavalo no enfrentamento de questões delicadas e relacionadas, por
exemplo, com a traição (HAYES, 2004). As pesquisas da autora confirmam as afirmações
de Capone, de que as relações de mulheres com suas pombagiras apelam para a
feminilidade desviante da entidade. Num universo marcado pela violência ou traição
masculina, mulheres apelam para os poderes místicos, e assim obtêm autoridade para
ultrapassar os limites de seu papel subordinado e doméstico (HAYES, 2005, p. 87). Se aqui
apenas se anunciou esse tema, adiante este assunto será retomado com o detalhe e a
minúcia que ele exige.
71

4 VIRANDO NA POMBAGIRA

Mesmo que de forma resumida, nos propomos aqui apresentar alguns


aspectos da possessão por pombagiras vislumbrados a partir do contexto estudado. A
singularidade desses eventos não minimiza a necessidade de compreendê-los segundo uma
perspectiva mais abrangente.

Sobre o exame detalhado das possessões envolvendo pombagiras, ressalta-se


que a compreensão de suas especificidades e de seu poder de persuasão para a audiência
dos terreiros exige o exercício de compreender tais atos com base em uma linguagem mais
ampla, referente à possessão (HAYES, 2004, p. 281).

Nesse sentido, é preciso ter em mente algumas convenções, assim como


idéias, valores e discursos que constituem tal linguagem. Primeiramente, sublinha-se que
alguns dos itens relativos ao “idioma” da possessão (CRAPANZANO; GARRISON, 1977)
são de ordem mais genérica, no sentido de organizarem as várias práticas da possessão
existentes nos campos do candomblé e da umbanda. Outros elementos são específicos à
possessão dos exus, guardando matizes próprios quando dizem respeito às pombagiras. A
constatação dessas especificidades permite a busca de convergências e divergências nos
vários idiomas da possessão encontrados nos terreiros pesquisados.

No que diz respeito ao cotidiano do terreiro e aos seus ritos de possessão,


reconhecem-se, ao lado dos grandes esquemas performáticos compartilhados pelos grupos,
performances de cunho individual, que acabam por conferir características próprias a cada
pombagira, atribuindo-lhes, desse modo, particularidades que acabam por dotar-lhes de
determinada identidade.

Em maior ou menor grau, as performances realizadas por essas entidades são


sempre passíveis de inovações, na medida em que, por meio de sucessivos ritos, vão sendo,
pouco a pouco, modeladas, até adquirirem uma fisionomia própria que as distingue de
72

outras entidades do mesmo gênero (BIRMAN, 1983). Dessa maneira, uma entidade de
mesmo nome, por exemplo, a pombagira "Maria Padilha" recebida num terreiro será
sempre diferente de outra "Maria Padilha" recebida por outro médium, ainda que no mesmo
terreiro ou em outro local de culto. Esse vínculo criado entre o médium e a entidade (um
componente essencial na criação da noção de pessoa nas religiões afro-brasileiras) é
traduzido pelo povo-do-santo por expressões como a "Padilha de Joana”, o "Tranca-ruas de
Mariana” ou, no caso do nome do médium anteceder o nome da entidade, Rosa de Oxalá,
João de Oxum, José de Ogum.

Tal como acontece com as diversas deidades do panteão afro-brasileiro, a


pombagira traz consigo uma complexa rede de símbolos relativa à classe de espíritos na
qual ela se insere, ou seja, aquela referente aos exus. Essa entidade ocupa o pólo feminino
desta categoria, estando, no entanto, intimamente relacionada com o pólo masculino
(representada pelos chamados “exus machos”), não só como parceira sexual, mas também
como companheira de trabalho. Como será mostrado posteriormente, no terreiro de Mãe
Mariinha, essa ialorixá incorporada por sua pombagira referiu-se aos “exus-machos” que
estavam na mesma “vibração” delas auxiliado-as em seus trabalhos.

Retomando a cosmologia da umbanda, constatamos que as pombagiras e os


exus situam-se num plano inferior de evolução quando comparados aos pretos-velhos e
caboclos, entidades consideradas evoluídas e, portanto, detentoras de luz.

No caso das pombagiras, verificamos a sua freqüente associação com os


espíritos de mulheres “mundanas”, mal afamadas, ligadas às ruas, aos prostíbulos e aos
cabarés. Reproduzindo comportamentos vinculados a este tipo de feminilidade “desviante”,
tais entidades se caracterizam por tipos de performances que expressam sentimentos de
desdém e desafio às normas socialmente instituídas.

Assim, são bastante comuns os relatos sobre determinadas pombagiras que,


antes de serem “doutrinadas”, levaram seus cavalos a se comportarem de forma inadequada
73

ou, mesmo, considerada “lasciva”. Tal fato faz com que os pais e as mães-de-santo
busquem “doutrinar” tais entidades, para que, durante os ritos públicos não mencionem
termos considerados de baixo calão, não se desnudem, nem façam gestos comprometedores
diante da assistência do terreiro.

As palavras de uma ialorixá líder de um terreiro de umbanda referem-se a


essas colocações. Indo além, esta mãe-de-santo mostra que tais comportamentos
inadequados realizados pelas entidades “não doutrinadas” tornam-se objeto de tensão e de
resistência não só para os líderes de terreiro como também para os próprios médiuns que as
recebem.
Primeiro, a gente tem certa resistência de aceitação, porque, normalmente, uma
entidade, quando ela chega, ela chega sem muito esclarecimento e sem disciplina.
Então vem falando palavras pornográficas vêm com gestos obscenos, vem
invadindo o espaço dos outros sem ser chamada. Você está entendendo? Então na
medida em que ela ‘desce’ para trabalhar e prestar caridade, ela vai se educando.
Então ela deixa de ser um exu que trabalha para determinada linha para tornar-se
até psicóloga. É o caso, por exemplo, de Maria Bonita.

Ainda com base nas palavras dessa mãe-de-santo, percebemos como tal
sentimento inicial de rejeição por parte do médium se transformou numa convivência
sustentada por fortes laços afetivos. As palavras da citada ialorixá exemplificam situações
em que os médiuns podiam se beneficiar da companhia amistosa de “suas” entidades. “Ela
[a pombagira] me deixa um recado, me dá uma intuição. Ela tem as previsões dela e não
deixa nada me pegar desprevenida ou ela aparece em sonhos, desdobramentos, naquela
letargia quando você não está nem dormindo, nem acordada”

Em troca desses cuidados, aqueles que “convivem” mais intensamente com


as entidades têm de conhecer seus gostos, seus caprichos “pessoais”, e em suma, toda uma
série de detalhes relativos ao seu estilo da roupa e tipo predileto de bebida, cigarro, ou
perfume. É esse tipo de conhecimento, transformado concretamente em dádivas, que deixa
as pombagiras satisfeitas e prontas para executarem os pedidos que lhes são feitos.
74

Tais afirmativas fundamentam-se na observação de uma série de


comportamentos e falas que surgiram, sobretudo, próximo a toques e festas realizadas para
pombagiras. Nessas ocasiões, em que os médiuns tinham o compromisso de apresentar
publicamente as indumentárias de suas entidades, era bastante comum ouvir comentários
relativos a intuições, falas e recados de pombagiras exigindo deles determinados itens
rituais. Tais comentários enfatizavam, essencialmente, a atuação enérgica e veemente das
pombagiras na escolha ou recusa de um determinado “figurino”.

Esses discursos estavam ancorados na crença de que aqueles que recebiam


entidades eram apenas mediadores entre as pombagiras e as coisas de sua “terra”. Segundo
essa lógica, ficava reservado à entidade o poder de escolher minuciosamente roupas,
enfeites, bebidas, flores e perfumes, dentre os demais objetos rituais com os quais
trabalharia nos terreiros.

Enfatiza-se, também, a forte crença de que a oferta de determinados


presentes garantia a benevolência das pombagiras, sem, no entanto, implicar relações de
compromisso absoluto para com aqueles que os doavam. As relações de fidelidade,
marcadas, até mesmo, por certa subserviência, ficavam reservadas ao outro pólo,
representado pelos cavalos. Estes, sim, necessitavam agradar cada vez mais as suas
pombagira, para garantir alianças. Nesse sentido, ressaltamos a crença de que os exus e as
pombagiras são “facas de dois gumes”; ou seja, “trabalham” contra ou a favor de uma
determinada causa, dependendo de quem lhes oferece mais.

Referindo-se às pombagiras como entidades impiedosas e, até mesmo,


“fatais”, os médiuns tentavam estar sempre em dia com as mesmas; ou seja, empenhavam-
se por não lhes dever nada. Tal medida era essencial para garantir favores e evitar castigos
e abandono por parte da entidade. É bastante comum encontrar interpretações
correlacionando variados infortúnios (falências, doenças e mortes, dentre outras perdas) a
ações de pombagiras insatisfeitas com seus cavalos. Tais entidades teriam criado situações
negativas como forma de punição para seus descontentamentos.
75

Algumas falas e depoimentos registrados durante a pesquisa destacam a


necessidade de reverenciar as pombagiras e os exus, sobretudo pelo fato de estes se
constituírem em entidades que estão constantemente na “terra”, próximas às pessoas e ao
cotidiano. Vale destacar o seguinte comentário feito por um candomblecista ligado à nação
Angola:
Dizem que os exus estão ligados ao mal e que fazem coisas para prejudicar as
pessoas, mas não é nada disso. São os exus e as pombagiras que nos protegem aqui
na terra e nos dão o que precisamos. Os santos [os orixás] estão lá em cima. Quem
está aqui em baixo conosco são os exus. Imagine o que seria de nós se não
tivéssemos a proteção deles.

No que diz respeito ao universo subjetivo daqueles que convivem com as


pombagiras, há uma ampla gama de sentimentos e afetos, que vão desde a mais extrema
confiança até um intenso temor. Uma candomblecista que há tempos recebia uma
pombagira cujo nome desconhecia manifestava muito medo da sua entidade. Tal
sentimento ficou claro a partir de sua reação diante de uma fotografia desta pombagira que
retratava com nitidez a sua face. Reagindo de forma ambígua ao ver aquela imagem, ou
seja, demonstrando simultaneamente curiosidade e medo diante da fotografia, a filha-de-
santo referiu-se à pombagira como aquela mulher, de quem tinha medo e cuja presença a
deixava séria demais, até mesmo durante as festas.

Tratava-se, sem dúvida, de uma alteridade com quem ela tinha muita
dificuldade de se comunicar. Aliás, ao receber a foto como um presente, essa ambigüidade
aflorou claramente. Segundo suas palavras, ela acolheria a foto com carinho, muito bem
guardada, mas com o verso virado para cima, de modo que não pudesse enxergar o rosto da
pombagira que lhe provocava tanto medo.

Entretanto, surgiam discursos que enfatizavam relações amistosas


construídas entre médiuns e pombagiras. Nesse sentido, a líder do terreiro de umbanda
pesquisado referia-se à sua forte ligação com Maria Bonita, a pombagira que incorporava
há mais de trinta anos: “É uma amizade mesmo. É amizade e confiança. Mesmo porque
você precisa ter confiança na entidade para você entregar a sua matéria, o seu pensamento,
o seu corpo, o seu organismo. Você entrega tudo na hora da incorporação.
76

Retomando certas idéias à luz dessa fala, nos detemos em um ponto


essencial: Se as relações entre médiuns e deidades se fundamentam na noção de
reciprocidade, pode-se concluir que a dádiva maior ofertada às entidades é a própria
“pessoa” do médium, ou seja, seu corpo, sua vontade, enfim, sua capacidade de agir e de se
situar no mundo. Assim, as emoções e os sentimentos que emergem da convivência entre o
médium e o espírito são da maior importância para configurar a modalidade de entrega que
assegura a possessão e constrói a reciprocidade.

Aliás, a incorporação das entidades torna-se, muitas vezes, um momento de


grande tensão, principalmente quando se trata de filhos e filhas-de-santo que ainda estão
sendo iniciados. Freqüentemente, os médiuns relatam que se tornam objeto de uma terrível
pressão ocorrida em diversos níveis.

Num primeiro plano, são as entidades que os pressionam na sua busca de


canais para virem a terra, fato que, muitas vezes, deixa-os perturbados e leva-os a resistir à
idéia de se entregar à elas. Imersos em sentimentos de insegurança, medo ou vergonha, tais
filhos e filhas-de-santo são ainda objetos da pressão realizada pelos pais e mães-de-santo.
Ao sentirem a presença das entidades no terreiro, tais líderes passam a insistir com os
médiuns para que não lhes resistam ao poder e lhes “dêem passagem”.

Resta ainda outro fator de tensão, representado pelo medo do médium diante
de uma possível vingança a ser desencadeada pela entidade a quem ele negou a posse de
seu corpo: aliás, território essencial para que esse espírito ou orixá possa agir no mundo.
Nunca é demais lembrar que entre o povo-do-santo vigora a crença de que é muitíssimo
perigoso contrariar os desejos das entidades, sejam estas orixás ou espíritos. Assim, os
médiuns não devem se esquivar de receber suas entidades, pois se elas não encontrarem
passagem, poderão “atrasar” a vida de quem as deveria receber de forma correta e generosa.
No caso das pombagiras e exus, esse perigo torna-se ainda maior, na medida em que tais
entidades são consideradas pouco afeitas ao perdão e comumente vingativas.
77

Tais características exigem que os integrantes e simpatizantes dos terreiros


estejam sempre atentos para perceber ou acolher pedidos ou reivindicações das entidades.
Tais necessidades ou desejos podem variar de simples itens rituais, por exemplo,
determinada indumentária, uma nova taça para colocar bebida, até pedidos que envolvam
maiores dispêndios. Acredita-se que só assim as pombagiras e os exus permanecerão
atentos para proteger e munir de bens aqueles com quem convivem mais diretamente.

Retomando a discussão acerca dos gêneros, verifica-se que a possessão de


indivíduos do sexo masculino por pombagiras tende a ser bastante mais complicada e tensa.
Isso ocorre porque a “descida” dessa entidade a terra implica a realização de performances
eminentemente femininas pelos médiuns. Noutras palavras, a posse de um homem por um
espírito que marca a sua presença por meio de um conjunto de performances consideradas
extremamente femininas e, mais que isso, sedutoras, faz com que incida sobre ele uma série
de modificações, acompanhadas de suspeitas. Como se verá adiante, esses cavalos têm seu
registro de voz alterado para faixas mais agudas, apresentando também uma gestualidade
marcada por estereótipos ligados a um feminino provocante e desafiador. Esse conjunto de
gestos baseia-se numa performance em que o médium apresenta-se com o queixo erguido,
como se desafiasse alguém, enquanto permanece de pé com as mãos na cintura. Tal
repertório performático implica quase sempre a evitação sistemática da pombagira por parte
daqueles médiuns que temem ver a sua “masculinidade” abalada.

Dentre os variados exemplos colhidos em terreiros, salienta-se um


relacionado a um pai-de-santo do candomblé. Referindo-se, de um lado, à obrigação de
receber a sua pombagira na ocasião por ela demarcada (ou seja, anualmente) e, de outro, à
vergonha que as incorporações de tal entidade lhe causavam (pois nessa ocasião ela exigia
que ele se trajasse como uma exuberante mulher), esse babalorixá apontava uma saída para
tal problema.

Tentando escapar do “vexame” de ser visto vestindo-se e comportando-se


como mulher, mas também preocupado em não melindrar a sua pombagira, o pai-de-santo,
78

sublinhava a importância de fazer uma festa com todas as bebidas e comidas apreciadas
pela entidade. Nessas ocasiões especiais, ele surgia em cena “virado” na entidade e
portando a indumentária e os enfeites femininos que ela desejava. No entanto o aspecto
pouco usual dessa festa consistia no fato dela não comportar convidados além da
pombagira daquele pai-de-santo.

Neste ponto, salientamos aspectos observados durante a pesquisa. Se a


lógica da possessão está fundamentada na separação radical entre o espírito e o cavalo, tal
hiato dá lugar a uma certa “mistura” entre entidades e médiuns tão logo o transe ocorre na
concretude dos terreiros. Assim, muitos médiuns temem aparecer em público incorporando
pombagiras, entidades que lhes confere alto grau de efeminação durante o transe, e não
raramente levantam certas suspeitas naqueles que presenciam as incorporações.

Além dessa “mescla” entre entidades e cavalos (quase sempre negada pelos
integrantes dos terreiros), nota-se a crença de que as pombagiras deixam certa “ïnfluência”
ou “vibração” feminina naqueles que as incorporam. No caso de indivíduos do sexo
feminino, a proximidade da pombagira aumentaria, ou melhor, exacerbaria o potencial
feminino do médium. Nesse sentido, é comum enfatizar que mulheres ligadas à pombagiras
por meio do transe ou do fato de tê-las como “encosto” tornam-se-iam mais livres, e até
mesmo, “mais mulheres”. Tendo como pistas as conversas e situações observadas, destaca-
se a fala da mãe-de-santo líder de um terreiro de umbanda pesquisado. Depois de salientar o
fato de a pombagira trazer consigo uma energia “totalmente feminina”, a ialorixá fez o
seguinte comentário:

A pombogira é o seguinte: é uma entidade que te dá mais liberdade de ação. E o que


é liberdade de ação? Você fica mais extrovertida, você se sente mais vaidosa, você
sente necessidade de ser bonita, de chamar atenção das pessoas. Por quê? Porque
você está dentro da sua energia feminina multiplicada com a energia da moça, [da
pombogira]. Conclusão: você, dentro dessa energia dupla, é claro que você tem que
também mudar um pouco as regras e os comportamentos, não é? [...] Você, sai um
pouco do seu normal. Você está entendendo? Você incorporada ou não. Mas se
você estiver sob a energia dela, você fica mais coquete, você fica mais extrovertida.
Você fica mais alegre, mais conversada, mais espontânea. Isso tem a ver com a
energia dela. Agora, se você estiver totalmente incorporada, você não tem controle
sobre os seus atos.
79

As transformações ocorridas com os médiuns que recebem pombagiras e,


sobretudo, com os homens, fazem com que a incorporação da pombagira fique, na grande
maioria dos terreiros, restrita às mulheres e aos adés. Inconfesso, o motivo dessa proibição
ancora-se no medo de que mesmo depois de as entidades “subirem”, os “cavalos” que as
incorporam (independentemente de seu sexo) permaneçam sob a sua “influência”,
despertando o desejo sexual de homens com quem entram em contato.

Mas a tensão surgida na “descida” de pombagiras não se anula mesmo


quando se trata de mulheres. Isso porque acredita-se que essa entidade pode influir na vida
dos médiuns, suscitando determinados desejos e comportamentos. Apesar de apontar para o
fato de que muitos médiuns se valem das incorporações de entidades para justificarem seus
próprios atos, a mãe-de-santo aponta certa influência da pombagira nos desejos e ações dos
médiuns que as recebem. Tal ialorixá explica esse aspecto da possessão demarcando dois
estágios: o atual, em que ela e a pombagira já estão muito harmonizadas; e o anterior, em
que a pombagira a fazia sentir certos desejos para que ela aprendesse a ter controle sobre
eles. Assim se expressou Mãe Mariinha:
Hoje em dia a gente está muito harmonizada [a médium e a pombagira], porque já
tem muito tempo que a gente está junto, certo? Mas antigamente, quando eu sentia a
vibração dela, eu sentia vontade do que a matéria pede, mas que você não sabe por
quê: vontade de sair, passear, dançar, namorar, beber, entendeu? Tem horas que
você sente essas necessidades, porque, muitas vezes, um médium tem que ter
controle sobre isso, para que você não crie uma situação ruim para ele.

Mais adiante, especialmente quando se focalizam algumas histórias de vida,


veremos que esse comportamento livre da pombagira leva líderes de terreiros a impedir a
possessão de tais entidades por adolescentes. Esse impedimento justifica-se nas situações
em que a crença na agência das pombagiras leva jovens a praticar ações contra
determinados preceitos morais. Por enquanto, apenas faz-se menção a esse problema, que
será melhor exemplificado quando tratarmos da história de Liz.

A troca freqüente que o filho ou a filha-de-santo estabelece com seus exus,


ato consubstanciado na oferta de comidas e bebidas rituais, animais sacrificados (os
80

chamados “cortes”), cigarros, entre outras coisas, deve-se ao fato de que, além de serem
tomados como a principal instância de mediação entre os homens e os santos, os exus são
concebidos como entidades ligadas à proteção e à provisão de bens materiais daqueles que
os respeitam.

Consciente dos riscos de lidar com uma entidade que pode acenar para um
determinado pólo e agir no sentido contrário -um tipo de ação que evidencia o caráter
imprevisível, enganoso, ou seja, trickster dos exus- (PRANDI 2005, p. 77), o povo-do-
santo, ao invés de tentar controlar ou anular essa entidade e, no limite, até a exorcizá-la,
aprende a conviver com a sua ambivalência e, inclusive, tirar proveito dela. Tal
convivência, no entanto, pressupõe regras e normas baseadas no conhecimento deste
“outro” com quem se troca. Dessa maneira, existe uma série de requisitos para chamar os
exus, “tratar” deles, solicitar seus favores e depois lhes pedir respeitosamente, para “subir”.
Nesse sentido, aponta-se para a existência de uma lógica inclusiva e avessa àquela da
perspectiva dualista cristã, na qual o bem e o mal são pólos que se excluem mutuamente.
Ao contrário, nesse universo religioso representado pela umbanda e pelo candomblé, quase
sempre, pode-se, por meio das ações dos exus e pombagiras, passar de um pólo a outro sem
maiores problemas no que diz respeito a questões éticas e a modelos morais. A fala de uma
mãe-de-santo da umbanda é elucidativa a esse respeito:
O exu, ele é muito terra. Então, a harmonia do exu é muito humana e se harmoniza
muito mais, você está entendendo? Por ele ser versátil, por ele ser uma entidade que
trabalha conforme a vontade, o pedido da pessoa [...] nem todos os exus medem
conseqüência do que vão fazer [...] apesar de hoje em dia já ter aqueles exus mais
evoluídos, que, na medida que eles vão prestando caridade, eles vão evoluindo,
tomando luz, e muitas vezes têm até uma graduação, mudando de plano: de exu
para caboclo, de exu para baiano, pra boiadeiro, qualquer coisa. Nesse sentido. Da
mesma forma é o fator pombogira.

Aqui, vale abrir um parêntese para tratar da extensão do poder atribuído às


entidades. Relatos de vários candomblecistas e umbandistas a respeito da incorporação de
pombagiras em homens, mulheres e adés, revelam que, apesar da existência de opiniões
divergentes, há um ponto chave e, até mesmo, consensual. Defendidas, sobretudo pela
ortodoxia dos terreiros, tais idéias traduzem a crença de que as incorporações acontecem
sempre a partir da vontade das entidades, ignorando a escolha dos médiuns. Destaca-se o
81

breve relato de uma antiga mãe-de-santo cujas palavras enfatizam não só o poder dos exus
e pombagiras de “tomarem” o corpo de seus filhos e filhas, como também o fato de esse
gesto causar fortes incômodos aos médiuns, especialmente no caso de disputas entre
espíritos que querem, simultaneamente, possuir um mesmo cavalo:
A minha filha trabalha com o Seu Tranca Ruas, e uma vez a pombagira dela disse
que era ela quem ia “trabalhar”. Aí a pombagira avisou que ela é quem ia “descer” e
não ia dar passagem pro “exum”. A minha filha então passou um mal horroroso,
porque a pombagira não deu passagem pro exum dela.

Ao referir-se ao conflito existente entre os pólos masculino e feminino dos


exus, a mãe-de-santo enfatiza a autonomia das entidades diante da vontade de sua filha.
Além de não poder tomar qualquer decisão com relação à entidade que incorporaria, essa
moça acabou por sofrer os efeitos negativos da disputa travada entre suas duas entidades.
Outras situações de conflito surgirão mais adiante, por ocasião do relato de Antônia, uma
freqüentadora de terreiros que vem convivendo com um casal de exus desde a sua infância.

4.1 Pombagiras : o jogo entre o “mesmo” e o “outro”

Como sublinhamos, as deidades ligadas aos terreiros são percebidas pelo


“povo-do-santo” como “seres sociais” dotados de qualidades e singularidades que as
distinguem e as caracterizam como pertencentes a uma mesma classe de entidades.
Destacamos aqui o fato de que, mais do que distinguir as pombagiras de outras entidades,
os atributos e qualidades conferidos a esses espíritos inserem-se num interessante jogo de
diferenças e semelhanças existente nos terreiros ligado à construção de identidades míticas
por parte de seus integrantes.
Em um de seus textos, Augras (1995) trata desse tema quando examina os
diversos aspectos de que se reveste a identidade mítica para os iniciados de um terreiro de
candomblé ligado à nação keto.

Analisando as histórias de 21 iniciados, a autora se propõem a avaliar o que


representava o orixá “dono-da-cabeça” para a pessoa que o recebia (AUGRAS, 1995, p.
116). Como resultado de sua pesquisa, essa autora mostra a grande diversidade de respostas
82

para essa questão. Alguns orixás eram vivenciados como alteridade absoluta, impondo-se à
revelia de seus filhos e, até mesmo, ameaçando-lhes de morte caso esses não cumprissem
seus desígnios. Outros, embora suas vontades fossem consideradas igualmente soberanas,
eram vistos como modelos de comportamento, que o filho seguia de maneira consciente
(AUGRAS, 1995, p. 116). Com ênfase, essa autora sublinha que o momento do transe era
referido por todos os seus informantes no modo da inconsciência. Nessa direção, Augras
aponta os aspectos mais freqüentemente descritos: “emoção, desfalecimento, inconsciência,
ausência e volta da viagem”. Complementando, Augras observa que, “a experiência do
transe condensa em si todo um roteiro iniciático, onde não falta a vivência da morte, na
paradoxal associação de presença e ausência” (AUGRAS, 1995, p. 116).

No que tange a esta pesquisa, observou-se que as pombagiras convivem com


seus cavalos de múltiplas maneiras, causando-lhes sentimentos de apreensão ou tensão, por
exemplo, por meio de seus insistentes pedidos e cobranças. Assim, tais reivindicações por
parte das entidades podem produzir determinadas características, comportamentos, atitudes
e modelos estéticos, dentre outros aspectos. Aqui, faz-se referência aos estudos de Maggie
(2001) que focalizam um jovem universitário e sua relação com a sua pombagira.
Conversando com a antropóloga, esse rapaz sublinha o forte incômodo criado pela
entidade, que o obrigava a usar pulseiras, dentre outros acessórios ligados ao mundo
feminino. Receioso no que dizia respeito à sua imagem pública, somente depois de certo
tempo é que o rapaz conseguiu “entrar na gira” tal e qual a entidade desejava. Sobre essas
relações entre cavalos e entidades, Maggie aponta um fato que também é observado nessa
tese. Trata-se dos limites entre os médiuns e as entidades durante o transe, problema
delicadíssimo nesse universo dos terreiros, na medida em que desafia a própria noção de
possessão. Nesse sentido, aponta-se para a já mencionada conversa da pombagira com
Maggie a respeito da semelhança do filho-de-santo com aquela entidade. Ao obter como
resposta o fato de o rapaz e a pombagira não terem nada em comum, a entidade comentou
que a antropóloga não estava entendo, uma vez que havia uma porção dela naquele rapaz.

Da mesma forma, os atributos e a caracterização das pombagiras, mais do


que distingui-las de outras entidades, engendram um jogo de semelhanças e diferenças
83

ligadas à construção de identidades míticas. Nos terreiros pesquisados, comprovou-se tal


fato, sobretudo, nas situações em que seus integrantes interpretavam ou justificavam
comportamentos fundamentando-se nas características ou atributos de suas pombagiras.
Certa umbandista interpretava o jeito conquistador e volúvel de dois conhecidos pais-de-
santo a partir da presença de pombagiras em suas vidas: “Eles são assim... uns garanhões
[...] dizia tal senhora [...] só pegam mulherão, mas não ficam com nenhuma. Isso é porque
as pombagiras deles não deixam.” Explicando seu argumento, a senhora defendia a idéia de
que o comportamento daqueles pais-de-santo, voluntária ou involuntariamente, espelhava o
da própria entidade. Em síntese, ela defendia a idéia de que aqueles babalorixás tinham
grande poder de seduzir e de conquistar, e não se mantinham fiéis às suas parceiras, pois
estavam sempre buscando reatualizar o seu poder de sedução e conquista, traços atribuídos
às pombagiras.

Enfatizando essa semelhança entre médiuns e suas pombagiras, essa mesma


senhora referia-se ao comportamento de sua irmã, que, segundo ela, acreditava ter, desde
criança, uma pombagira “encostada”. Tal fato fazia com que a moça, ainda adolescente, se
mostrasse dotada de uma ultra-sensualidade e se tornasse atrativa para os homens com
quem convivia. Se no candomblé a exacerbação da sensualidade feminina é, muitas vezes,
explicada pelo fato de a filha ou filho-de-santo terem Iansã como o “orixá de cabeça”, essa
umbandista correlacionava tal traço ao fato de a pombagira manter-se “encostada”, no
corpo de sua irmã. Relatando traços marcantes no comportamento e na maneira de ser da
irmã, a fala dessa senhora mostrava-se extremamente ambígua no que dizia respeito aos
contornos ou às fronteiras entre o que era próprio do gosto, da vontade e, enfim, do caráter
da sua irmã, e aquilo que era inerente à presença da pombagira “encostada”.
Uma situação bastante comum nos terreiros é a afirmação enfática de
contrastes entre os médiuns e as entidades. Tal fato liga-se à necessidade de demarcar a
existência de dois “seres” detentores de existência própria perpassadas por idiossincrasias.
Durante esta pesquisa, observou-se que a ênfase nos contrastes entre os hábitos e os
comportamentos dos “cavalos” e os de suas entidades surgiam, mais enfaticamente, nas
situações em que se desejava afastar qualquer suspeita de embuste, ou seja, de falsa
possessão por parte do médium. Como exemplo, cita-se a ênfase dos médiuns em hábitos
84

do próprio cotidiano, tal como fumar e beber. Assim, alguns filhos ou filhas-de-santo
enfatizavam o fato de detestar cigarros e bebidas alcoólicas, enquanto seus exus e
pombagiras exigiam que eles fumassem e bebessem seguidamente durante as sessões.

Mas se mencionava também relações entre médiuns e espíritos


fundamentadas por semelhanças, que acabavam por se constituir em elementos essenciais
na construção de identidades míticas nos espaços dos terreiros. Parte dessas semelhanças
poderia ter como causa as exigências das pombagiras, que cobravam de seus cavalos o uso
daquilo que elas mais prezavam. O depoimento de Ana, uma senhora negra, na faixa dos 50
anos, correlacionava o estilo “afro” de seu cabelo ao gosto de Criola, sua pombagira. Essa
filha-de-santo dizia que só podia usar aquela modalidade de penteado, por exigência da
entidade: “Quando mudo o jeito do meu cabelo, a Criola acha ruim comigo”. Ela explicava
que a sua pombagira agia assim, pois queria garantir a similitude entre a fisionomia de seu
cavalo e a dela própria. Em seguida, Ana comentou o alto grau de semelhança entre ela e a
sua pombagira, dizendo que elas eram praticamente idênticas. Tal certeza derivava de um
sonho, no qual a pombagira teria se apresentado imageticamente para ela.

Em outras situações, os filhos e filhas-de-santo que “viravam” na pombagira


destacavam as diferenças que essas entidades apresentavam com relação à sua pessoa. O
relato de Angélica, uma senhora que freqüentava o terreiro de Mãe Mariinha, revelava
aspectos no que concerne à relação que mantem com suas pombagiras, mostrando as
percepções da mesmidade e da alteridade pelos filhos-de-santo, elementos essenciais na
construção de suas identidades míticas.
85

4.2 Angélica e sua pombagira Cigana

Buscando exemplificar as questões expostas acima, são analizados a seguir


aspectos da convivência entre Angélica, psicóloga e umbandista, e a sua pombagira Cigana.

A chegada de Angélica ao terreiro de Mãe Mariinha, local que freqüenta há


15 anos foi precedido por intensa busca, durante a qual ela perambulou sucessivamente por
vários terreiros de umbanda e de candomblé, casas onde não teria se dado bem. Nesses
terreiros, ela entrava na gira, mas não havia nada que a fizesse permanecer ali. Repetindo
experiências anteriores, ela sempre abandonava os terreiros bastante frustrada. Tal estado
de coisas permaneceu até o dia em que encontrou o terreiro de Mãe Mariinha. A partir de
então, esse estado de coisas mudou, e ela se estabilizou na umbanda.

Antes de incorporar qualquer entidade, Angélica relatou que foi acometida


por experiências mediúnicas, nas quais ela tinha a visão de uma mulher clara, de cabelos
muito pretos e grandes cílios. Essa moça, que aparentava ter aproximadamente vinte anos,
apresentava-se com trajes e enfeites típicos das ciganas: blusa caída no ombro, saia
estampada, uma multiplicidade de colares e pulseiras, além de uma rosa vermelha no
cabelo. Tal como anunciam os pontos cantados das ciganas, a figura feminina sempre trazia
uma faca na cintura. Comentando sobre a aludida visão, Angélica, sublinhou que a imagem
da moça a acompanhou durante muito tempo, sem que ela imaginasse que, futuramente,
viria a incorporar aquela entidade.

Ainda na condição de membro da assistência, Angélica procurou Maria


Bonita, a pombagira de sua mãe-de-santo, para solicitar-lhe alguma explicação sobre
aquelas visões. Ao ouvir o relato de Angélica, a pombagira sorriu e, depois de "correr a
gira”, declarou não ter visto nada de significativo com relação a tal imagem de mulher.

Após, freqüentar as “giras” do terreiro por algum tempo, Angélica começou


a incorporar aquela entidade que lhe fora apresentada por meio de visões. No início, essas
86

incorporações causavam-lhe angústia e, até mesmo, certo pânico, pois significavam


experiências muito fortes. Tal como Angélica dizia, o transe se apresentava para ela como
ausência de controle, como ocasiões em que ela se sentia mal, como se estivesse “perdendo
o chão”.

Decorria daí o seu sentimento de pavor diante do fato de incorporar a


entidade, pois, antes de tudo, aquela experiência significava “a perda do domínio da
situação”, estado contrário ao que prezava: o de dona absoluta de si própria, do que fazia e
daquilo que se passava ao seu redor. Nos momentos que antecediam a possessão, ela sentia-
se muito frágil, pois percebia tudo aquilo como uma “ausência temporária de seu mundo".

No entanto, com o passar do tempo, Angélica foi aprendendo a lidar com as


incorporações. De acordo com seu relato, esse aprendizado relacionava-se a uma atitude de
atenção constante durante as sessões do terreiro. Naquelas ocasiões, ela necessitava de toda
a atenção possível para não ser pega de surpresa, pois em tal estágio de mediunidade
qualquer desatenção poderia representar a súbita incorporação da entidade. Ela enfatizava
esses episódios nos seguintes termos: “Mantendo a atenção, eu podia dominar a vibração
dela. No entanto, se eu desse uma vacilada e se aliviasse a tensão causada pela entidade
encostada, eu viraria nela”.

Passado esse estágio inicial, Angélica, aprendeu a lidar com o transe, e as


incorporações deixaram de causar-lhe angustia. Tal mudança ocorreu à medida que ela foi
percebendo que o transe tinha uma ida e uma volta.

Referindo-se às suas atuais incorporações, Angélica relatou que durante as


sessões ela sentia a Cigana aproximar-se de seu corpo e ir-se "encostando". Isso ficava
evidente não só para ela que sentia a vibração da entidade como também para os outros
médiuns que estavam na gira. Os primeiros sinais da Cigana eram marcados por certas
mudanças no seu comportamento, na sua expressão facial, como também na sua postura
corporal. Como Angélica enfatizou: “O meu corpo e os meus gestos ficam mais soltos.
87

Então, a Cigana coloca as mãos na cintura e começa a dançar, a rodopiar e a bater


pandeiro”.

Marcando os contrastes entre ela própria e a “sua” Cigana, Angélica


enfatizava que era assim que os outros médiuns do terreiro percebiam a presença e a
atuação da pombagira. Todos estes detalhes eram relatados para ela no fim das
incorporações, pois durante o transe ela enfatizava não ter a menor consciência do que se
passava ao seu redor. “Ela [a cigana] tem um gesto que é característico da maioria das
pombogiras. O andar solto com os braços colocados na cintura, um pouco abaixo, na região
dos quadris".

Enfatizando tais diferenças entre a sua corporeidade e a da Cigana, Angélica


ressaltava que jamais se valia deste tipo de postura corporal, pois preferia manter os braços
cruzados, junto ao corpo. Outro comportamento que demarca um nítido contraste entre ela
e a pombagira dizia respeito ao fato de ela não ter o costume de dançar. Nesse ponto a
pombagira diferia incrivelmente dela, pois não podia ficar sem se movimentar através de
passos de dança.

Angélica enfatizou que se mantinha atenta à vibração da entidade e à sua


chegada nas sessões, ocasião marcada pela presença do espírito que ia "se se encostando
nela". A presença da Cigana também era percebida pela mãe-de-santo, que solicitava a
imediata incorporação da entidade por parte da médium. Em caso de demora na
incorporação, a ialorixá dizia, energicamente, que ela estava “amarrando serviço".
Sentindo-se cobrada, Angélica “dava passagem”, e virava na entidade.

Depois desse relato, em que Angélica narrou fortes experiências subjetivas e,


mais que isso, determinadas tensões ligadas a formas específicas de relacionar-se com a
pombagira, perguntei-lhe sobre possíveis problemas relacionados ao fato de filhos e filhas-
de-santo não dar passagem àquela entidade. Ela respondeu que tal evitação traz problemas
aos médiuns, pois as entidades precisam trabalhar. Aliás, elas estão ali no terreiro para agir,
88

no sentido de ajudar as pessoas que as procuram ou procuram por seus trabalhos. Se o


médium nega este direito a elas, não lhes dando passagem, existe uma espécie de cobrança,
que, no limite, pode constituir-se numa forte punição.

No entanto, para evitar conflitos com sua entidade, era preciso fazer mais do
que incorporá-la. Conforme já enfatizado, Angélica devia também estar atenta a seus
desejos, e até mesmo, a seus pequenos caprichos. Em relação a isso, Angélica relatou que
durante uma única sessão quatro pessoas levaram a ela recados da pombagira solicitando-
lhe uma taça nova para que ela se servisse de água no terreiro. Nessa ocasião, a entidade
estava zangada com a médium uma vez que ela lhe devia este objeto.

Tal como se evidencia aqui, a comunicação entre Angélica e a sua


pombagira tornava-se possível a partir de um esquema triádico, que envolvia Angélica, a
sua Cigana e alguém que recebesse o recado da pombagira e pudesse comunicá-lo à
médium tão logo passasse a incorporação.

Comentando sobre as características da Cigana, Angélica destacou o fato de


a entidade mostrar-se habitualmente alegre e disposta a brincar. Aludindo a esse lado
jocoso da entidade, relatou que, às vezes, a pombagira se excedia nessas brincadeiras, fato
que criava tensões e embaraços para os integrantes do terreiro. Exemplificando, ressaltou
uma situação em que a Cigana usou de metáforas tão obscenas para explicar algo a um
visitante do terreiro que o “cambono”. vexado diante de tal situação, jurou nunca mais
ajudar aquela entidade durante seus trabalhos no terreiro. O uso dessa linguagem,
considerada socialmente inadequada, foi percebida como um elemento que marcava nítidas
fronteiras entre Angélica e a sua Cigana. Vale observar que, somando-se às gargalhadas
dadas em tom de deboche e às performances corporais “licenciosas”, os termos de baixo
calão, ou seja, “palavrões” também são fortes elementos na construção do estereótipo da
pombagira
89

Concluindo seu relato sobre a Cigana, Angélica acrescentou que a entidade


só descia à noite e durante as sessões do terreiro. Fora desses momentos rituais,
apresentava-se apenas como uma visão. Este outro tipo de experiência ocorria, sobretudo,
nos momentos em que a médium acreditava estar precisando de um sinal de alerta, fosse
para consolidar benefícios (espirituais ou materiais), fosse em situações consideradas
arriscadas. Nesse aspecto, a Cigana constituía uma presença bastante significativa em sua
vida e se alternava em seu cotidiano com outras entidades que ela incorporava e que
também lhe davam proteção diante do desconhecido.

Angélica ressaltou o tipo de relacionamento que tinha com a pombagira,


vínculo fundamentado em sentimentos de fé, respeito e confiança. Ao contrário do que
muitas vezes é dito sobre a relação de médiuns com seus exus, Angélica não sublinhou
qualquer sentimento de ambigüidade e medo no convívio que mantinha com aquela
entidade.

Percebida como um “outro”, portador de diferenças significativas, a


pombagira constituía um elemento fundamental na construção da pessoa de Angélica. A
ausência ou o distanciamento da pombagira certamente fariam com que a filha-de-santo
passasse a ser vista de outra maneira dentro do terreiro, fato que poderia, inclusive,
diminuir o seu poder ou prestígio diante dos médiuns da casa.
90

5 POMBAGIRA: O PERIGO E O PODER DAS “MARGENS”

A pombagira é mulher de sete maridos


Oh, Não mexe com ela, ela é um perigo.
(ponto de terreiro)

Mas, afinal, quem é ela? É a antítese ou o avesso da "mulher de bem?” A


tentativa de resposta a essa pergunta evoca um dos atributos mais freqüentes e fortemente
conferidos a pombagira, ou seja, o alto grau de liberdade com o qual ela exerce a sua
sexualidade, comportamento decorrente de uma espécie de desdém por normas ou valores
socialmente instituídos. Este tipo de conduta “desviante” vincula-se, essencialmente, à
maneira como a pombagira se comporta sexualmente, escolhendo livremente os parceiros
que deseja. Tal característica a afasta radicalmente dos papéis de esposa e de mãe e, ao
contrário, aproxima-a das figuras da prostituta e da mulher-da-vida.

Invertendo lógicas estruturantes do universo sociocultural brasileiro, a


pombagira é popularmente conhecida como "mulher de sete maridos”, ou seja,
companheira e parceira sexual de sete exus. Aqui deparamos com uma quebra de limiares
ou, mesmo, de uma inversão, capaz de jogar por terra valores morais vigentes numa
sociedade que demarca e hieraquiza fortemente os papéis sociais e sexuais considerados
masculinos e femininos (FRY; MAC RAE, 1985). Certamente, tal demarcação e
hierarquização dizem respeito a idéias e valores que guardam suas raízes num passado
patriarcal (PARKER, 1991, SAFFIOTI, 2004). Esse fato suscita uma indagação sobre os
cânones ou modelos de conduta fundamentais colocados em xeque pela pombagira.

Tentando responder a essa questão, situamos-nos diante de um Brasil


relativamente “tradicional” e, dito, “popular” (FRY, MAC RAE, 1985), no qual a
sexualidade das mulheres é fortemente controlada. Nesse contexto de idéias e valores,
preserva-se o pudor das moças e das senhoras, ao mesmo tempo em que se estimula a vida
sexual dos homens, ancorando-se num determinado modelo. Como veremos adiante, essas
condutas, correlacionadas ao masculino e ao feminino, situam-se na base das definições e
91

qualificações dos gêneros e, conseqüentemente, na construção das noções de homem e de


mulher.

Um rápido olhar pela história revela que, nesse contexto, a sexualidade das
meninas é desde muito cedo controlada, em contraste com a valorização precoce da livre
sexualidade dos meninos e rapazes. Torna-se necessário enfatizar que tal liberdade sexual
concedida aos meninos (espera-se, no futuro, “homens de verdade”) vincula-se ao
desempenho exclusivo do papel sexual ativo. Para serem e permanecerem homens, os
indivíduos biologicamente masculinos necessitam desempenhar, única e exclusivamente, o
papel sexual “ativo”, além de evitar sistematicamente performances efeminadas (FRY;
MAC RAE 1985, p. 43, 44).

O outro lado da moeda relaciona-se ao cuidado com as mulheres no que diz


respeito à transgressão de determinados padrões morais. Nesse universo social, qualquer
deslize de fundo moral praticado pelas mulheres torna-as objeto de preconceitos e
qualificações negativas, tais como, libertinas desclassificadas, messalinas, prostitutas e,
enfim, putas.

É nesse contexto de idéias e valores que emerge a pombagira, figura


feminina identificada, sobretudo com a meretriz e outros tipos de mulheres vinculadas a
uma feminilidade sexualmente “transgressora”.

Quando se refere à pombagira, estamos falando de um espírito de mulher


·
que, na sua passagem pelo mundo, transgrediu limites estipulados ao feminino e desfrutou
de um comportamento sexual marcado pela liberdade. Pode-se inteirar do imaginário criado
em torno dessa personagem feminina principalmente por meio dos “pontos cantados”, que
durante as giras celebram a pombagira nos terreiros.
92

No extenso repertório formado por tais cantigas, a pombagira surge ora


como uma bela mulher que vagueia livremente pelos caminhos, ora como uma mulher do
submundo urbano, ligada às ruas e aos cabarés. O que há de mais marcante em sua figura é
o atributo da beleza e seu enorme poder de sedução. Associa-se a essas características o seu
comportamento livre, alegre, mas também irreverente, agressivo e, comumente, vingativo.

Reproduzindo hierarquias e desigualdades presentes na sociedade mais


ampla (NEGRÃO, 1996), o panteão da umbanda situa tais figuras liminares num patamar
inferior de evolução, relacionando-as aos chamados “povos-de-rua”. Assim, a pombagira
espelha modelos de conduta, formas estéticas e, até mesmo, um certo ethos característico da
variada e significativa “marginália” urbana.

Ora, se a transgressão de limites, culturais e socialmente estabelecidos, traz


consigo poluição, perigo e poder, decorrem daí os principais atributos conferidos à
pombagira, figura mítica celebrada e temida por sua enorme eficácia mágica.

Aqui, vale retomar algumas idéias sobre a caracterização de indivíduos e


grupos liminares. Não é demais afirmar que os seres sociais situados nessa condição
“marginal” podem trazer consigo o poder da invisibilidade e da transmutação, assim como
uma força mágica, capaz de pôr em comunicação dimensões humanamente desconhecidas.
Tal poder mágico, quase ilimitado, torna-os capazes de provocar atos benéficos, bem como
ações ligadas à criação de malefícios (DOUGLAS, 1976; TURNER, 1974; FRY; MAC
RAE, 1985).

No que se refere à pombagira, tais poderes emanam, sobretudo, de sua


beleza e de sua capacidade de seduzir, atributos essenciais na caracterização e definição do
poder feminino em várias sociedades e, dentre elas, a brasileira.
93

Antes de focalizar essa entidade no universo dos terreiros, é necessário abrir


um parêntese para tratarmos dos exus, classe na qual a pombagira se insere na qualidade de
exu feminino.

5.1 Sobre Exu e exus

Ao se tratar do termo exu, é necessário tomar o devido cuidado com as suas


especificidades e distinguí-lo a partir de suas caracterizações: singular, plural e feminina.

Partindo do nome “Exu” (escrito no singular e iniciado com letra


maiúscula), está-se referindo a um dos orixás que, compondo a mitologia dos povos iorubas
tradicionais e os adeptos de sua religião nas Américas (PRANDI, 2001, p.20), surge dotado
de características bastante especiais. Nesse campo mítico-religioso, Exu apresenta-se como
o orixá “mensageiro”, aquela deidade que assume a importante missão de por em
comunicação o “Orum” e o “Aiê”, respectivamente, o plano das divindades (inacessível aos
humanos) e o plano onde habitam os seres viventes.

Apresentando-se como elo essencial entre os homens e os deuses, Exu torna-


se presente nos vários ritos feitos nos terreiros, eventos fundamentados essencialmente no
transe e no sacrifício. Assim, todas as cerimônias que acontecem nas casas de santo passam
necessariamente por tal entidade. Afinal, é Exu, o orixá comunicador por excelência, quem
aciona os mecanismos do axé: a energia ou o poder de realização que garante o dinamismo
da vida. Como sabem aqueles que são “do santo”, nada se faz nos terreiros sem antes
reverenciar Exu e pedir-lhe para atuar positivamente.
Ambíguo por excelência, Exu não se deixa prender pelas polaridades bem e mal,
podendo mesmo ignorar a existência desses dois domínios. Assim, é comum vê-lo
agir de forma aparentemente contraditória e paradoxal, guiando-se por objetivos
que só ele mesmo conhece (LODY, 1995; SEGATO, 1995).

No mundo dos terreiros, Exu mostra-se ambíguo também no que diz respeito
às categorias feminino e masculino. Nos candomblés das nações Angola-Congo, essa
entidade se manifesta tanto masculinamente quanto femininamente, dizendo respeito à
94

Bombonjira ao feminino altamente erotizado, que leva ao extremo a força da comunicação


e da sensualidade, aspectos essenciais da figura mítica de Exu (LODY, 1995, p. 84).

Carneiro (1978, p. 27) trata da caracterização dessa entidade, a partir de uma


reinterpretação ocorrida no candomblé dos povos iorubas. Tal reinvenção o identifica com
a dualidade bem e mal tomada do ponto de vista cristão:
Exu tem sido equiparado ao diabo cristão por observadores apressados, serve de
correio entre os homens e as divindades, como elemento indispensável de ligação
entre uns e outras. Todos os momentos iniciais de qualquer cerimônia, individual ou
coletiva, pública ou privada, lhe são dedicados para que ele possa transmitir às
divindades os desejos, bons ou maus, daqueles que o celebram.

5.2 “Exus-machos” e pombagiras

A aproximação da umbanda exige que sejam enfatizadas as significativas


reinterpretações que incidiram sobre Exu, o princípio comunicador dos candomblés. No
panteão umbandista, Exu deixa a sua singularidade de orixá para assumir a condição de
espírito, ou melhor, de espíritos cujos atributos e personificações os reúnem dentro de uma
mesma classe de entidades.

Esclarecendo melhor esse processo reinterpretativo, afirma-se que no


panteão da umbanda os exus são concebidos como espíritos de homens e mulheres cuja
passagem pela terra implicou a transgressão de leis, a realização de crimes e a violação de
regras sociais, atos que os situaram nos patamares inferiores de evolução.

Dentre as principais representações suscitadas por essas entidades, observa-


se que um número significativo delas surge ligado à morte. Como exemplo pode ser citado
as seguintes entidades: Exu-Caveira, entidade relacionada aos portões de cemitérios e aos
hospitais; pombagira Rosa Caveira; Maria Padilha, a Rainha dos Cemitérios; Padilha da
Calunga e João Caveira. Assim, é comum que os integrantes de terreiros nunca entrem ou
saiam de hospitais e cemitérios sem prévio pedido de licença a essas entidades que habitam
e zelam por tais espaços.
95

Referindo-se ainda aos exus, sublinham-se aqui as palavras de Negrão


quando cita os “infinitos espíritos individuais” que existem nas várias categorias espirituais
do panteão da umbanda e dentre elas nas dos exus. Essa categoria de espíritos, identificada
com a “linha da esquerda” e classificada como “povo-de-rua”, vincula-se a tipos sociais
brasileiros representativos das camadas inferiores da sociedade.
No panteão da umbanda, as entidades surgem organizadas a partir do que se
denomina “linha da direita” e “linha da esquerda”. Tal esquema dual reflete
significativas apreciações de ordem moral. Enquanto as entidades (orixás-santos,
caboclos, pretos-velhos e crianças, ou erês) da “linha da direita” só fazem o bem e
atendem aos pedidos que não transgridam valores morais e nem prejudiquem
outrem, as entidades da “linha da esquerda” (dentre elas, os exus e as pombagiras)
aceitam quaisquer pedidos, desde que devidamente pagos para isso (NEGRÃO,
1996, p. 83).

Identificados com figuras paradigmáticas do submundo urbano, o malandro,


a “mulher da rua” ou a meretriz, atribui-se aos exus e às pombagiras a função de
“mensageiros da rua”, fato que os torna alvo de toda uma série de pedidos e trabalhos com
vistas à obtenção de segurança e proteção (NEGRÃO, 1996, p. 83).

Quando nos referimos aos exus, torna-se necessário deter no sistema de


crenças da umbanda para destacar alguns de seus elementos fundamentais. Nesse sentido,
reportamos à dualidade constituída pela “linha da direita” e pela “linha da esquerda”,
observando a associação dessa última com a prática do malefício. Mais do que apontar para
simples diferenças, essas duas linhas demarcam forte hierarquia estruturante do panteão
umbandista. Enquanto as deidades da “direita” só agem de forma condizente com a sua
condição de entidades de luz, os exus, entidades vinculadas à linha da esquerda, não
encontram limites para suas ações, podendo agir de forma totalmente avessa àquela dos
pretos-velhos e dos caboclos. Assim, as figuras de exu e da pombagira são encontradas,
com freqüência, relacionadas à realização do mal, estando vinculadas à quimbanda, uma
modalidade de culto que na maioria das vezes é referida como categoria de acusação dentro
da própria umbanda (BIRMAN, 1983; AUGRAS, 2000).

Mesmo nas casas de umbanda que se definem como locais onde se pratica
única e exclusivamente o bem, a presença dos exus é essencial à realização da contramagia,
96

nos “desmanches” de “demandas” e no “descarrego” que extirpa o mal. Submetidos à


autoridade dos “guias da direita”, são os exus que reenviam os feitiços e “carregos” pesados
que incidem sobre o terreiro para os lugares de onde partiram. Desse modo, essas entidades
tornam-se preferenciais para resolver tais trabalhos, uma vez que têm ampla liberdade de
passar por todos os lugares. Referindo-se a esse poder dos exus, uma mãe-de-santo da
umbanda fez o seguinte comentário:
Nós da umbanda usamos o exu como um recurso para trabalhar, porque ele é
uma entidade que entra em qualquer lugar, ele vence qualquer demanda, ele
passa na encruzilhada, ele passa em qualquer lugar. [...] No candomblé é
diferente. O exu do candomblé é cultuado como um orixá qualquer. Tanto
que dentro do candomblé não temos tipos de exu.

Na condição de entidades que podem transitar livremente pelos caminhos


ligados ao bem e ao mal, os exus tornam-se algo prestigioso nos terreiros, estando sempre
presentes em seus espaços e atividades. Nesses locais, tais entidades encontram-se
“firmadas” estrategicamente na entrada do terreiro (a “trunqueira”), para que possam vigiar
noite e dia a entrada da casa (NEGRÃO, 1996, p. 84).

Aqui, podemos observar melhor a ambigüidade dessa entidade, que, mesmo


definida como pertencente à “linha da esquerda”, pode estar à “direita”, agindo
beneficamente, guiada por uma entidade de luz. Decorre daí o caráter amoral atribuído aos
exus, que não são bons nem maus em si mesmos, mas podem realizar benefícios ou
malefícios, desde que solicitados.

Ao tocar na realização do malefício e na sua relação com a “linha da


esquerda”, torna-se necessário determo-nos mais uma vez no universo hierárquico da
umbanda. Inicialmente, é preciso destacar a presença dos “eguns” e dos “quiumbas”,
entidades pouquíssimo evoluídas, quando comparadas a muitos tipos de exus. Referidas
comumente nos terreiro como “trevosos”, podem atuar causando vários tipos de malefícios,
relacionados tanto a pequenas perdas quanto a doenças, acidentes e mortes.
97

Associados às pessoas que em vida praticaram grandes maldades, os eguns e


os quiumbas muitas vezes chegam aos terreiros rastejando, bebendo pinga e comendo no
chão, podendo até mesmo matar animais com os próprios dentes (NEGRÃO 1996). No
entanto, o sistema de crenças da umbanda permite que tais entidades deixem essa condição
de inferioridade e evoluam rumo a patamares mais elevados. Para isso, elas precisam ser
doutrinadas, passando de “exus-pagãos” para “exus-batizados” (ORTIZ, 1991; NEGRÃO,
1996).

O ato de doutrinar espíritos implica uma mudança significativa nas condutas


dos exus, relacionada tanto ao fim da prática de malefícios quanto a suas performances.
Aqui, é necessário destacar que aos exus mais evoluídos, não é permitido gestos
considerados “pouco civilizados” ou “grotescos”, tais como rastejar, tomar cachaça pinga
ou comer em locais indevidos. Em vários terreiros, também fica vedada a essas entidades
falar palavrões ou praticar outros atos considerados inadequados tanto à doutrina quanto à
moralidade do terreiro.

Ao se tratar de exus, essa normatização de condutas é vista como algo


perpassado por perigos potenciais. Afinal, trata-se de entidades que não alcançaram ainda
comportamentos solidificados (NEGRÃO, 1996, p. 84), podendo, a qualquer momento,
resvalar para suas antigas condutas, consideradas “pouco civilizadas”.

Nessa direção, a reputação dos terreiros e de seus líderes está intimamente


ligada ao comportamento dos exus e pombagiras, que “descem” em seus espaços. Assim,
torna-se essencial que as sessões públicas sejam realizadas sempre em obediência a
determinadas normas, pois entidades agindo fora de limites que lhe são impostos
certamente apontam para a pouca autoridade e a correlata incompetência das lideranças dos
terreiros.

Um ponto polêmico com relação aos atos realizados pelos exus diz respeito
à responsabilidade que lhes é atribuída pela prática do bem e do mal. Nos terreiros
98

pesquisados, notou-se uma forte crença de que os exus não poderiam ser responsabilizados
pelo que faziam, pois desconheciam condutas morais e éticas, e, no limite, a própria noção
de “bem” e de “mal”. Decorre daí a visão de que a responsabilidade sobre o malefício
praticado pelos exus recairia sobre quem acionava a entidade para realizá-lo. Enfatizava-se
que os exus agiriam balizando-se em seus próprios interesses, aderindo às causas que lhes
oferecessem maior lucro em termos de bens materiais.

Partindo da pombagira, um pai-de-santo mostra esse tipo de caracterização:


Pombogira, ou Bombojira como é chamada pelos africanos, simboliza a mulher
vivente na terra que, como todos nós, teve aqui, durante esta passagem física, erros
e falhas. Inclusive por ser uma entidade de muita energia, ela teve mais de um
relacionamento, ou mais de um marido. Pode-se dizer que a pombagira é mulher de
sete maridos [...] os exus, como são chamados os meia luz, que são os viventes que
buscam agora alguma luz, redimindo-se de erros anteriores, de erros passados, eles
vêm geralmente chamados por alguém para prestar serviços, recebendo alguma
coisa em troca. Eles podem ajudar pessoas a ou b, dependendo de quem lhes der
mais.

Todavia, por mais que essa opinião surgisse nas conversas, existiam visões
que situavam os exus como entidades detentoras de discernimento diante das ações que
praticavam. Tal opinião dizia respeito, principalmente, àquelas entidades mais evoluídas e
que já estavam prestes a alcançar o patamar dos caboclos ou das caboclas.

Acreditava-se ainda a crença de que os exus e as pombagiras “trabalhavam”


de acordo com o mérito de uma causa ou de uma pessoa. Tal visão ligava-se à crença de
que as ações dessas entidades se relacionavam ao cumprimento de leis baseadas na justiça
da “espiritualidade”. No sentido de explicitar tais idéias citamos a fala de Mãe Mariinha,
ialorixá de um dos terreiros pesquisados.
Mas a pombogira é uma entidade de muita responsabilidade. Tanto é que, muito
campo de defesa tá na mão dela, como a linha de amor, como a linha de trabalho,
como a linha de saúde. Daquilo que você necessitar. Depende de como você pedir e
se for justo. Porque dentro da espiritualidade nós temos um fator que se chama
justiça e merecimento. Não há porque você não receber as bençãos de qualquer
entidade que seja. Tanto faz ser a pombogira, como a do exu-macho ou de qualquer
entidade espiritual.
99

Outra opinião relacionava as ações dos exus a alianças construídas ou


quebradas com seus amigos e clientes. Tal visão atribuía à entidade maneiras bastante
contrastivas de agir com aqueles que a reverenciassem ou a negligenciassem. Discursos de
pais, mães, filhos e filhas-de-santo permitiram perceber que pombagiras e exus
privilegiariam aqueles que os respeitassem e os reverenciassem, tratando-os de forma
benevolente. O contrário ocorreria com aqueles que não lhes dessem atenção ou que
faltassem com eles, aos quais seria reservado tratamento absolutamente impiedoso.

Aliás, na opinião de um antigo filho-de-santo, os exus e as pombagiras,


quando contrariados, tratavam aqueles que os desagradassem de uma maneira “fatal”. Esse
comportamento poderia traduzir-se no ato de deixar os “faltosos” na pobreza absoluta ou,
mesmo, na ação de castigá-los com atos que os fariam perder a saúde e, no limite, a própria
vida. Tal ambigüidade era traduzida pela seguinte afirmação: “Os exus são facas de dois
gumes”, frase recorrente entre o povo-do-santo.

Se havia uma posição quase unânime, defendida publicamente, sobretudo


pelos líderes de terreiros, era a de que nas suas casas os exus só praticavam o bem. Ao lado
dessa defesa do terreiro por parte de suas lideranças e de seus integrantes, surgia a
afirmação de que em determinados terreiros os exus praticavam o mal sem maiores
problemas. No entanto, esses malefícios geralmente surgiam vinculados aos terreiros que,
supostamente, praticavam a quimbanda. Como sublinhamos, na maioria das vezes, os
integrantes dos terreiros utilizam o termo quimbanda como uma categoria de acusação.
Com efeito, classificar um indivíduo como quimbandeiro significava vinculá-lo a uma
modalidade de culto considerada muito potente no sentido de provocar graves malefícios.

Numa das festas realizadas em homenagem ao exu Tranca Rua das Almas,
no terreiro de candomblé pesquisado, um filho-de-santo declarou que só tinha se
aproximado da quimbanda uma única vez, para se proteger de uma “demanda” que vinha
contra ele, cujo poder já tinha matado uma mãe-de-santo, sua conhecida. Por meio desse
comentário ele quis deixar claro que a sua aproximação com um campo capaz de trabalhar
com o mal se deu em função de sua defesa contra algo que poderia ter posto fim à sua vida.
100

Os comentários e as opiniões registradas nas diversas ocasiões com o povo-


do-santo refletem um imaginário rico em termos de figuras do feminino, capaz de colocar
lado a lado prostitutas, ciganas, mendigas e, até mesmo, mulheres rebeldes oriundas da
nobreza. Tal fato favorece a focalização mais de perto de algumas representações tecidas
em torno da pombagira, sobretudo a partir de uma perspectiva êmica.

As palavras de um antigo filho-de-santo da nação Angola destacam a figura


da pombagira, caracterizando-a como uma entidade que povoa as noites, fazendo
“fundangas” na companhia de seus “maridos”, os exus. Sem relacioná-las com as
prostitutas, este filho-de-santo elogia o caráter ousado dessas mulheres, cujo
comportamento as transformou depois de mortas, em pombagiras. Certamente teria sido
essa rebeldia contra determinadas normas sociais que as diferenciou das mulheres comuns,
dotando-as de liberdade no campo afetivo e sexual. Conversas informais com este
candomblecista registram as alusões que fez à "pombogira cigana”, uma entidade
"especialista nas coisas do amor". Em sua opinião, essa sua capacidade de lidar no campo
da afetividade humana decorre da sua postura livre, que a difere da grande maioria de
mulheres que não têm a coragem de deixar tudo para trás e seguir livremente em busca de
uma vida afetiva e sexual plena.

Opinião semelhante foi expressa por um jovem babalorixá da nação Keto.


Enfatizando o caráter libertário da pombagira, ele relata que a "sua Padilha” foi, em vida,
uma mulher de atitudes "avançadas" para a época. Dona de um comportamento rebelde e
ousado sofreu fortes preconceitos durante sua passagem pela terra, transformando-se, por
isso, numa pombagira.

Algumas opiniões deram ênfase a imagens comumente encontradas tanto


dentro quanto fora dos terreiros. Nesse sentido, merecem destaque as palavras de um pai-
de-santo da umbanda, que enfatiza a beleza e o poder de sedução da pombagira nos
seguintes termos: “A pombogira caracteriza-se pela sua beleza, apresentando-se como
mulher que viveu em cabaré, ou em prostíbulo, ou como uma cigana que andou pelo mundo
em espaços que teriam maior fluxo de homens”.
101

Destacando os atributos dessa entidade, o babalorixá afirmou que o poder de


sedução e os encantos da pombagira podem “levar as pessoas a cometerem atos
impensados”, como aqueles relacionados às separações de casais e ao abandono de lares.
Tudo isso se torna possível pelo fato de a pombagira consistir num “espírito sedutor”.

Somando-se a essas caracterizações, as opiniões de uma mãe-de-santo da


umbanda enriquecem ainda mais os matizes desse imaginário. Tal ialorixá nega a
correlação direta e exclusiva da pombagira com a figura da prostituta, dizendo que muitas
pombagiras não viveram em rendez-vous, mas foram mulheres sofridas, cuja vida
transcorreu-se numa situação de exclusão social. Tais mulheres, comumente, encontravam-
se associadas ao “desvio” e à miséria, tal como acontece com Maria Mulambo, uma
pombagira caracterizada por suas vestes esfarrapadas e pelo hábito de se alcoolizar e cair
pelas ruas.

Estabelecendo uma forte correlação e afinidade entre os exus e os seres


humanos (ambos ligados às coisas terrenas), a mãe-de-santo enfatizou o caráter libertário
da pombagira, concebida por ela como “a liberdade de ação associada ao feminino”.

Dentre os grupos pesquisados, a pombagira surge vinculada aos espíritos de


“pouca” ou de “meia luz”, ligados a mulheres que, em vida, cometeram faltas graves e que
por isso têm que voltar a terra para redimir seus erros. Tais vindas sucessivas dos espíritos a
terra e, enfim, aos locais que os propiciem a trabalhar para o bem, faz com que eles,
gradualmente, possam evoluir para patamares mais elevados. Assim, apesar de a doutrina
umbandista situar essa entidade em um patamar inferior de evolução, é bastante comum
encontrar médiuns que situam suas pombagiras como “espíritos de luz”, quase iguais às
“caboclas”. Ao longo deste estudo, serão apontados exemplos deste tipo de visão.
Aqui, reforça-se a idéia de que essas vindas periódicas das entidades a terra
para “trabalhar” implicam a necessidade de extinguir seus comportamentos considerados
transgressores. Tal prática, referida anteriormente como “doutrinar” entidades, consiste
102

numa espécie de “educação dos sentidos”, que permite às pombagiras “trabalharem” dentro
das normas estipuladas pelos terreiros.

Na umbanda, o grau de evolução conferido às entidades relaciona-se


diretamente a seus comportamentos nos terreiros. Partindo dessa lógica, pode-se afirmar
que quanto mais transgressoras tais entidades se apresentam em termos de condutas e
comportamentos, mais baixo elas se situam nos patamares de evolução umbandista.

Enquanto espíritos pouco evoluídos, as pombagiras são consideradas


entidades ainda muito presas ao plano terreno e às necessidades de ordem material. Além
disso, enquanto “ex-pessoas” que viveram em ambientes pobres e numa situação de
exclusão social, tais entidades tendem a apresentar comportamentos tidos como “pouco
adequados” ou mesmo transgressores. Como exemplo, apontamos relatos sobre situações
em que as pombagiras tentaram se desnudar publicamente, fazendo gestos considerados
obscenos, alcoolizando-se e usando termos considerados de “baixo calão”. Como exemplo
destacamos o relato de um pai-de-santo vinculado a Federação Espírita e Umbandista de
Minas Gerais, que no seu trabalho de fiscalização aos terreiros encontrou pombagiras semi-
desnudas na gira ou no atendimento a seus clientes. Indo de encontro as regras estipuladas
para funcionamente dos centros e terreiros, estes espaços religiosos acabaram sendo
fechados, fato que gerou muitos dissabores àqueles que os altuaram.

Os pais e mães-de-santo entrevistados ao longo da pesquisa enfatizavam a


necessidade de manter um “rigor” no processo de “doutrinar” entidades, fator essencial
para a construção de um certo ethos, capaz de singularizar a ambiência dos terreiros.

Entidades extremamente prestigiosas e algo temidas pelo povo-do-santo, os


exus parecem condensar fortes atributos conferidos às noções de masculino e feminino nas
camadas populares brasileiras. Ao se tratar de um “exu-macho”, a entidade se caracteriza
por sua potência e agressividade, seu hábito de ingerir bebidas fortes (preferencialmente a
cachaça) e por seu comportamento voluntarioso, enganoso e, enfim, trickster.
103

No pólo oposto, as pombagiras condensam qualidades eminentemente


femininas, acrescidas de um grau de liberdade atribuído à esfera do “masculino”. Pode-se
dizer que tal combinação resulta numa feminilidade avessa àquela marcada pela
passividade, docilidade e delicadeza, associada às figuras virginais ou maternais. Trata-se,
ao contrário, de um feminino “não-domesticado”, eminentemente ativo, sensual e
agressivo, que não se prende às amarras e aos limites impostos à corporeidade e às condutas
prescritas culturalmente às mulheres consideradas de bem.

Deparamo-nos aqui, com o avesso de um silêncio histórico e socialmente


construído sobre o corpo da mulher para adentrar no sentido inverso, rumo a territórios em
que o corpo e suas performances acenam para o afloramento de desejos ligados ao erotismo
e à paixão ilimitada.

Nos terreiros, a vivência dessa dimensão erótica evocada pela pombagira


concretiza-se por meio de um jogo de dádivas, no qual sobressaem elementos
representativos de um feminino marcado pela sedução. Perfumes, rosas vermelhas, tecidos
finos e brilhantes, além de bebidas adocicadas combinam-se para sensibilizar os sentidos e
evocar a presença sensual da entidade. Não é demais reforçar que, ao celebrar alianças, tais
dádivas garantem a proteção e a provisão de bens para aqueles que respeitam e “tratam”
com freqüência e carinho de suas pombagiras.

Sintetizando os traços e atributos conferidos às pombagiras (e,


extensivamente, à classe dos exus), podemos afirmar que tais entidades cumprem a
importante função de mediadoras num contexto social marcado pela desigualdade e pela
força das relações pessoais. Tal mediação torna-se fundamental, sobretudo, para indivíduos
e grupos cuja inferioridade estrutural não lhes permite atingir a condição de “pessoa”, num
universo altamente pessoalizado como o brasileiro. Desse modo, pombagiras (e exus)
inserem-se num mundo social fundamentado pelo compadrio, no qual os indivíduos têm de
se submeter à sua vontade e aos seus caprichos de patronos para obterem seus favores e sua
proteção. Valendo-se das seguintes palavras de Maggie (2001, p. 115), pode se comprovar
104

essa leitura e interpretação dos exus como entidades relacionadas a um sistema fortemente
fundamentado em relações pessoais:
O compadre deve ser uma alavanca para a vida social dos filhos, um mediador, uma
pessoa que interfere nos momentos críticos da vida do indivíduo, da mesma forma,
os compadres exus seriam figuras mediadoras, pois interferem nos momentos
críticos da vida do indivíduo que faz despachos para ser atendido. Sendo Exu um
mediador, uma figura ambígua e perigosa, chamá-lo de compadre pode servir para
amenizar simbolicamente o perigo que essa entidade traiçoeira oferece e concretizar
uma aliança entre os que são distantes

Nesse jogo de dádivas e contradádivas criado entre os humanos e os exus,


destacam-se atos tais como “fechamento de corpo”, proteção contra demandas, feitiços,
além de obtenção de empregos e de amores.

5.3 O feminino e os caminhos de um imaginário

Ela é Exu e também uma de suas mulheres, espelho e


amante: Maria Padilha, a mais puta das diabas com quem
Exu gosta de se revirar nas fogueiras. Não é difícil
reconhecê-la quando entra em algum corpo. Maria Padilha
geme, uiva, insulta e ri com muitos maus modos, e no fim do
transe exige bebidas caras e cigarros importados. É preciso
dar a ela tratamento de grande senhora e rogar-lhe muito para
que se digne a exercer sua reconhecida influência junto aos
deuses e diabos que mandam mais. Maria Padilha não entra
em qualquer corpo. Ela escolhe, para manifestar-se neste
mundo, as mulheres que nos subúrbios do Rio ganham a vida
entregando-se a troco de tostões. Assim, as desprezadas se
tornam dignas de devoção: a carne de aluguel sobe ao centro
do altar. Brilha mais que todos os sóis o lixo da noite.
(Eduardo Galeano)

Partindo de Galeano (2005), deparamo-nos com uma das mais temidas e


respeitadas pombagiras da umbanda. Além de ser considerada por esse escritor como a
“mais puta das diabas”, Maria Padilha surge intimamente associada às “mulheres
desprezadas”, às prostitutas consideradas o “lixo da noite”, capazes de se entregar aos
homens por alguns tostões.
105

Mas, afinal, quem é Maria Padilha? A tentativa de compreensão dessa


personagem feminina conduz, inicialmente, a alguns estudos de cunho histórico para, em
seguida, chegar aos terreiros.

Nesse sentido, destacam-se as análises realizadas sobre uma figura mítica,


cujo culto, ligado, sobretudo à feitiçaria de cunho amoroso, remete ao século XIV, mais
precisamente às tradições populares da Península Ibérica. É nesse contexto medieval que
surge Maria Padilha, uma poderosa “diaba” invocada especialmente, nas situações ligadas
ao amor (AUGRAS, 2001; MEYER, 1993; SOUZA apud MEYER,1993).

A investigação de fontes inquisitoriais sobre o universo mágico do Brasil


colonial, além do exame de romances relativos à História da Espanha, conduz ao encontro
dessa figura mítica, a amante real, cujas condutas, além de quebrarem importantes cânones
morais de seu contexto, resultaram num verdadeiro culto a sua pessoa em toda a Península
Ibérica. Os conjuros, fórmulas populares transmitidas oralmente e que traziam consigo
"elementos de filiação múltipla, feitiçaria européia, catolicismo popular e magia medieval"
(SOUZA, apud, MEYER, 1993, p. 12), atravessaram o Atlântico, chegando ao Brasil
provavelmente no século XVII, com as mulheres "desafortunadas", "desclassificadas" e
acusadas de feitiçaria.

Citamos Souza para enfatizar a importância e extensão da figura de Maria


Padilha no contexto da Península Ibérica e sua provável chegada ao Brasil como uma
entidade ligada ao “feitiço” (SOUZA apud MEYER, p. 12).
De qualquer forma, como sugere Marlyse, Maria Padilha não teria deixado Castela
e cruzado as fronteiras do reino vizinho antes do século XVII, pois não há registro
dela nos documentos quinhentistas. Arrisco que foi durante a União Ibérica, quando
os Filipes governavam toda a península, que a amante de D. Pedro passou a povoar
o imaginário dos lusitanos. Na segunda metade do século XVII, mais precisamente
nas décadas de 60 e 70, algumas mulheres foram acusadas de bruxaria pela
Inquisição, entre as suas culpas constando o conjuro de Maria Padilha. Portuguesas,
viram-se degredadas para o Brasil, onde possivelmente continuaram as atividades
mágicas.
106

Ao confirmarem-se essas afirmações, a aproximação dessas duas figuras


míticas de mesmo nome conduz à busca de uma maior compreensão da transfiguração ou
"metamorfose [...] que a hermosa Maria Padilha" passou de [...] "senhora de um rei a
senhora dos cemitérios" (SOUZA apud MEYER, 1993, p. 10). Neste ponto, depara-se
diante dos fios de um mito cuja urdidura (tecida num processo de longa duração) articulou
formas de religiosidade oriundas da Idade Média católica com as tradições religiosas afro-
brasileiras encontradas na umbanda.

Destacando a importância do estudo realizado por Meyer, Laura de Mello e


Souza mostra "a inequívoca associação entre a figura da feiticeira e a da pombagira", e
assim comprova "hipóteses acerca da especificidade da feitiçaria ibérica, voltada para o
meio urbano, assentada no sortilégio amoroso" (SOUZA apud MEYER, 1993, p. 9). Esta
modalidade de magia tem, então, como imagem paradigmática a Celestina de Fernando
Rojas: "ex-prostituta, alcoviteira, perfumista, maestra de hacer virgos, ou seja, conhecedora
das técnicas de reconstituição do hímem e, nesta qualidade, maestra na arte de enganar"
(SOUZA apud MEYER, 1993, p. 9). Da mesma maneira, estes são os atributos da
pombagira, entidade que carrega consigo alto grau de ambigüidade, uma intensa carga de
sexualidade, sendo, portanto, invocada para auxiliar toda sorte de amores.

De acordo com Souza (apud MEYER, 1993, p. 9) A linda Maria Padilha,


que foi capaz de enfeitiçar o rei a ponto de levá-lo a esquecer as obrigações conjugais; que
soube enganá-lo com sortilégios, fazendo com que um cinto de pedrarias dado pela rainha
D. Branca parecesse a seus olhos horrível serpente, tem um pouco de Celestina e outro de
pombagira.

Além de se apresentar como figura central nesse ciclo de romances relativos


à história da Espanha, Maria Padilha aparece nos romances franceses do século XIX, mais
especificamente na obra de Prosper Mérrimé. Na sua célebre e popularizada novela
intitulada “Carmem”, a protagonista é focalizada numa cena em que, entretida com a sua
magia, evoca por meio de canções mágicas, os poderes de Maria Padilha, a amante de D.
Pedro.
107

Esses exemplos permitem observar que essas figuras mitológicas de diabas,


bruxas e espíritos femininos, marcados por uma sexualidade assumida e exacerbada,
revelam uma histórica ligação entre imagens femininas poluentes e o exercício de poderes
mágicos: no caso, o feitiço, ambiguamente ligado ao bem e ao mal. Perpassando os séculos,
essa ligação entre o “feminino transgressor”, o sexo ilícito e o “feitiço” é reatualizada ainda
hoje no imaginário social brasileiro. Nesse campo, encontra-se a figura da pombagira, com
seu poder relacionado ao amor e aos vários tipos de sexualidade. Um texto de Augras
(2001, p. 293) comenta esta relação entre o “feminino ameaçador” e a feitiçaria. Referindo-
se a Maria Padilha, esta autora caracteriza tal figura mítica a partir dos seguintes termos:
“una diablesa seductora y terrible que como las fontes históricas indican séria [...] la
reinterpretación, llevada a Brasil en el equipaje de las hechieras portuguesas deportadas em
otros tiempos, de um personaje histórico, Maria de Padilla, amante de Don Pedro de
Castilla.”

Indo além, Augras (2005, p. 293) faz a seguinte afirmação relativa aos
perigos e poderes mágicos conferidos a essa pombagira, atributos que a seu ver têm que ser
compreendidos a partir de um imaginário social no qual são reatualizadas figuras femininas
irreverentes e temerosas, sobretudo porque afirmam plenamente a sua sexualidade:
[...] no es el origen factual lo que permite entender los poderes ambíguos de la
entidade brasileña, sino la permanencia en el imaginário social de una visión
amenazadora de la mujer que afirma su sexualidad, representación que también se
manifesta en las tradiciones populares ibéricas referentes a la própia Maria Padilla
[...].

Complementando suas idéias sobre esse feminino transgressor, Augras


encontra também um elo entre a figura da pombagira e a de Lilith, uma antiga divindade
dos sumérios, associada a um incubo, ou seja, um demônio feminino que perturbava o sono
dos homens, montando em seus corpos e copulando com eles durante a noite. Trata-se, sem
dúvida, de duas figuras femininas que se rebelaram contra poderes masculinos e que por
isso foram castigadas pela situação marginal.
A compreensão dos atributos conferidos a esse “feminino transgressor” leva
ao rompimento de fronteiras relacionadas com o cristianismo e à busca de outras tradições,
108

nas quais o erotismo aparece vinculado ao que se denomina “sagrado”. Nesse sentido,
torna-se necessário distanciar-se de um universo social configurado essencialmente por
dogmas cristãos, para encontrar outras culturas, em que o erotismo feminino seja evocado e
saudado por meio de ritos e cânticos. Tal encontro se dá na umbanda, sobretudo, por meio
das performances e pontos de terreiro.

5.4 Pombagiras; prostitutas em terreiros?

“Essa puta é minha e ninguém toma.


Quem quiser puta gostosa
vai buscar na zona ”·”.

Referenciando-nos ao rico imaginário relacionado à pombagira, enfatizamos


a estreita correlação dessa entidade com as mulheres de comportamento sexual livre,
nomeadas de “mulheres públicas” ou “alegres” (PERROT, 1998; RAGO, 2004). Nota-se aí
um forte vínculo entre a pombagira e os estereótipos criados em torno da puta, uma
categoria que no universo social brasileiro desqualifica as mulheres, remetendo-as aos
patamares mais baixos de moralidade e aceitação social (PARKER, 1991).

No universo social brasileiro, contexto fortemente marcado por uma herança


de cunho patriarcal, a meretriz traz consigo um estigma, na medida em que surge associada
a um tipo de sedução exacerbada, carregada de significados ligados à poluição e aos
perigos atribuídos ao feminino transgressor.

Com relação a uma rede simbólica ligada à noção de mulher, observa-se a


ambivalência que cerca a figura da “puta”. Se, de um lado, essas especialistas na ars erótica
confirmam simbolicamente a virilidade do homem, decorrendo daí a importância dos ritos
de iniciação masculinos ligados ao intercurso sexual, de outro, essas mesmas mulheres
jogam por terra todo o poder de mando atribuído às figuras masculinas familiares, tais
como o pai, o irmão ou o marido. Parker (1991, p. 86) destaca essa ambigüidade a partir da
seguinte afirmação.
109

A puta carrega um sentido especialmente ambíguo, que se estende para além do


explicitamente sexual. Ela tanto confirma as identidades masculinas de seus
parceiros quanto, ao mesmo tempo, questiona a estrutura de poder sobre a qual
essas identidades se fundamentam. Com mais vigor que a virgem, ela assume um
papel central na constituição não apenas da feminilidade, em e de si mesma, mas da
sua latente e fundamentalmente ameaçadora relação com a masculinidade.

Tomando como referência um quadro social marcado pela desigualdade


entre os gêneros, torna-se comum conceber as prostitutas como "mulheres de vida fácil",
"vagabundas" e "vadias". Tais qualificativos não as remetem simplesmente ao ócio, mas,
indo além, costumam vinculá-las a uma evidente falta de caráter ou, até mesmo, ao vício.

Em várias sociedades, a prostituta quebra rígidos cânones morais, inserindo-


se numa rede simbólica cujos elementos apontam para a noção de desordem. Ao contrário
da mãe, cuja imagem aparece associada à criação, no plano biológico, na esfera da
educação e dos valores éticos e morais, a puta surge, na maioria das vezes, vinculada à
destruição e à desintegração dos lares. Desse modo, sua imagem aponta para a mulher que
seduz e desvia os homens do seu caminho legítimo, representando uma alteridade negativa,
extremamente perigosa.

No entanto, não se pode absolutizar tais perspectivas e imagens, sob pena de


perder de vista outros aspectos e elementos desse rico imaginário criado sobre essas
mulheres que, ao longo da história, vêm exercendo com maestria uma ars erótica.

Retomando certas idéias desenvolvidas por DaMatta (1984), apontamos para


as definições e hierarquizações de gênero no Brasil, correlacionando-as às categorias “casa”
e “rua”. Nas análises desse autor, o mundo da casa fundamenta-se numa certa moralidade e
em determinados princípios hierárquicos, cujas noções de honra, vergonha e respeito
devem perpassá-los nos seus vários níveis.

Em um universo social fortemente marcado por idéias e valores patriarcais,


o modelo idealtípico altamente hierarquizado tem como representantes máximos da ordem
e do poder de mando as figuras masculinas: primeiramente, o pai e, na falta deste, os filhos
110

mais velhos. Os outros membros da família devem prestar-lhes obediência e, até mesmo,
certa subserviência. Às mulheres cabe o decoro e a evitação de determinados
comportamentos, gestos e atitudes que possam comprometer a moral individual e familiar.

É importante observar que nesse contexto brasileiro marcado por idéias e


valores de cunho patriarcal surgem dois tipos contrastivos de mulheres: aquelas que se
enquadram nesses códigos morais, evitando “transgredi-los” (já que tais ações significariam
fortes sanções morais e, não raramente, punições); e as outras, capazes de desafiar esse
universo de normas, mesmo pagando um alto preço pela quebra desses limiares (PARKER,
1991).

Enfatizando aspectos do imaginário popular brasileiro, DaMatta (1984)


mostra como esses dois tipos de mulher situam-se de maneira diferente, num simbolismo
que as associa à comensalidade. Se o primeiro tipo de mulher, representado pelas figuras da
virgem, da esposa ou da mãe de família, exige toda uma série de ritos que,
metaforicamente, permitem-lhes ser transformadas em “comida”; o segundo tipo, associado
às “mulheres-da-vida”, dispensa tais ritualizações, podendo se tornar objeto do “apetite
voraz masculino” sem maiores cerimônias. Refere-se a essas colocaçãoes o ponto cantado
que serviu-nos de epígrafe.

Percebido dessa maneira, o ato sexual, ao invés de representar um encontro


erótico marcado pela simetria em termos de poder, é, ao contrário, visto como um
acontecimento fundamentado na assimetria e hierarquia entre os gêneros, já que se constitui
numa relação consentida de “englobamento” de um termo pelo outro. Nessa relação
assimétrica, nas quais as figuras femininas ocupam, geralmente, o pólo da passividade
(termo aqui entendido num sentido amplo), mulheres que exercem livremente a sua
sexualidade (utilizando-se amplamente de seu poder de sedução) tornam-se ameaçadoras
para tal hierarquia. Em outras palavras, tais mulheres rompem com a sua posição de objetos
“passivamente englobados”, para tornarem-se sujeitos ativos de uma relação que tende a
solapar a histórica supremacia masculina. A passividade ligada às figuras virginais e
111

maternais cede, então, lugar à rebeldia atribuída às mulheres desafiadoras e altamente


exigentes em termos da concretização de seus desejos afetivos e sexuais.

Ora, em tais contextos, marcados por forte herança patriarcal, tal inversão
transgride limiares e inverte hierarquias, fato gerador de ambigüidades e perigos. Não é por
acaso que a moral tradicional brasileira acena para os danos potenciais de tais mulheres
sexualmente livres, quase sempre identificadas com as prostitutas. Mostrando-se
extremamente ambígua, essa moral tanto aconselha os homens a manterem distância
considerável dessas figuras femininas (capazes de seduzi-los ou englobá-los por meio de
seus poderes) quanto sublinha a importância dessas mulheres transgressoras. É que sem
elas, reza a moral, “o mundo seria insosso como uma comida sem sal. ”(DAMATTA, 1984,
p.57)

Se tais mulheres livres são, ao mesmo tempo, temidas e desejadas no


cotidiano brasileiro, nos terreiros a ambigüidade de sua posição reforça simbolicamente o
seu poder mágico, tornando-as objeto de homenagens. Ali, tais figuras do feminino são
celebradas por meio de cânticos que enfatizam seu potencial erótico, também
metaforicamente associado à comensalidade.

Partindo do ponto cantado utilizado como epígrafe, reportamo-nos às


análises de Carvalho (1997, p.113), que concebe esse canto de terreiro como uma "[..]rara
celebração de prazer, num universo social isento de repressão no nível da sexualidade [..]”.
Em sua análise, o autor afirma que no contexto em que o canto de pombagira aparece, ou
seja, num terreiro de Brasília, a "puta gostosa” é concebida como "algo positivo, desejável,
isento de qualquer noção de pecado ou vergonha”. Concluindo, o autor afirma que “dada à
milenar repressão das imagens sexuais nas tradições monoteístas” (quer seja no
cristianismo, no judaísmo ou no islamismo), foi nas tradições orientais que,
previsivelmente, ele pode encontrar e registrar “poemas místicos de algum modo
equivalentes à linguagem sexual explícita desse canto de pombagira" (CARVALHO, 1997,
p. 113).
112

Tendo em mente o contexto de análise aqui considerado, já de início


deparamos com uma série de perguntas. Nos terreiros belo-horizontinos existiriam
representações e práticas correlacionando a pombagira à figura da “puta gostosa”, tal como
ocorria em terreiros de Brasília? Tal dimensão erótica da pombagira se apresentaria por
meio de pontos cantados e de performances? Tal atributo conferido à pombagira surgiria
explicitamente nas sessões de caráter público ou, ao contrário, ocorreria nas sessões
particulares dos terreiros?

Dada a moralidade apresentada pelos terreiros freqüentados, era de se


duvidar que tal representação, carregada de erotismo, surgiria de maneira explícita. É que
as sessões abertas daqueles terreiros se apresentavam por demais vinculadas ao universo da
casa, espaço moral não condizente com a explicitação dessa carga erótica apresentada pela
pombagira. Todavia, convinha relativizar e questionar se tais terreiros seriam assim tão
“assépticos” em termos morais, a ponto de não poder conferir quaisquer representações,
narrativas ou performances erotizadas à suas pombagiras. Afinal, nos terreiros existiria uma
docilização tão ampla em termos de corporeidades, atitudes e palavras que fosse capaz de
neutralizar essa carga erótica veiculada pela pombagira? Era de se desconfiar que talvez
não fosse bem assim. Se assim fosse, em alguma situação, a “puta gostosa” dos terreiros
surgiria fortemente.

De fato, a pombagira reservava uma surpresa. Numa situação bastante


particular, uma dessas entidades inseriu-nos nesse mundo erótico vivenciado nos terreiros.
No capítulo seguinte, descreveremos como se deu esse encontro. Por enquanto, citamos
exemplos de um feminino não docilizado em contextos nos quais a relação dos espíritos
com seus cavalos podia ser vivenciada sem maiores normatizações. Assim, nos valemos da
história de vida de uma mulher que conviveu desde menina com um casal de exus e
experimentou aspectos da possessão fora do universo regrado do terreiro.
113

.5 Antônia e sua pombagira: um feminino não domesticado

No dia 27 de setembro de 2004, fui ao terreiro de Mãe Mariinha para


participar de uma festa que comemorava o dia de São Cosme e São Damião. Nesta data
também era saudada a Mariquinha, o erê incorporado pela líder da casa. Lá tive a grata
surpresa de conhecer Antônia, uma mulher que há muitos anos convivia com as coisas do
santo, em especial, com exus e pombagiras.

Nesta visita ao terreiro, deparei-me com o salão já lotado para a festa dos
erês, e tive que permanecer em pé junto à porta de entrada. Permaneci ali até o momento
em que Mãe Mariinha passou, colocando ordem na casa, e apontando um lugar vazio
situado num banco lateral. Sentei-me então ao lado de uma senhora, cuja extrema magreza
despertou-me a atenção. Na ocasião aquela mulher estava acompanhada de uma criança e
de um senhor, com quem conversava.

Passados alguns minutos, a senhora dirigiu-se a mim comentando sobre a


animação daquelas festas realizadas anualmente em homenagem à “Mariquinha”, o “erê”
de Mãe Mariinha. Segundo me disse, era uma assídua freqüentadora das festas do terreiro e,
sobretudo, daquelas que homenageavam os erês.

Ao longo da conversa, essa senhora apresentou-se como Antônia e enfatizou


a sua recusa em pertencer às casas de umbanda e de candomblé durante os seus quarenta e
oito anos de vida. A partir daí passou a entrar em detalhes com relação aos guias que a
protegiam.

Falou mais detalhadamente sobre uma fase muito difícil de sua vida, em que
esteve muito doente e sofrendo sérias privações de ordem material. Data desta época a
perda de seu pequeno patrimônio, e a sua miserável condição de “mulher da rua” munida
apenas de alguns caixotes de papelão que lhe serviam de abrigo. No entanto, na data de
nossa conversa essa situação já havia se revertido. Tinha uma boa casa, onde morava com
114

seu companheiro, e não passava mais privações. Além de bens materiais, também podia
contar com a ajuda de um senhor aposentado, com quem mantinha uma relação amorosa,
aliás, aquele com quem ela conversava poucos minutos antes.

Antônia comentou que tinha dois exus muito poderosos, mais precisamente:
o Exu Gavião e a pombagira Zureta. Remontando o seu passado, referiu-se à relação
especial que vinha mantendo com aquelas entidades ao longo da vida. Disse que os exus
começaram a manifestar quando ela tinha cinco anos e já era encarregada de tratar das
casinhas dessas entidades, situadas no fundo do terreiro onde morava. Desde então, o seu
exu e a sua pombagira, tratados por ela com um carinho especial, vinham acompanhando-a
pela vida, livrando-a de infortúnios e provendo-lhe de bens materiais. Aquela mulher
enfatizava que mesmo tendo uma vida difícil, de “mulher pobre”, nunca havia sucumbido
aos infortúnios. Nem uma série de doenças, nem a extrema miséria conseguiram lhe tirar a
coragem. Com os dois exus ao seu lado protegendo-a, ela ia vagando pelas ruas e estradas,
arrastando suas tralhas.

Assim, vivendo de forma miserável, ou seja, com a roupa do corpo e os


caixotes que lhe serviam de abrigo, Antônia se instalou nas proximidades do local onde
atualmente reside. Tão logo chegou sozinha e sem bens, um homem se interessou por ela e
passou a ajudá-la. Depois disso, sua sorte foi mudando pouco a pouco, fato que lhe permitiu
chegar à situação em que se encontrava por ocasião de nossa conversa: proprietária de uma
boa casa e bem tratada por dois homens.

Depois de mencionar esses acontecimentos, Antônia enfatizou que a cura de


suas doenças e a obtenção da casa foram presentes de seus exus, entidades com quem, ao
longo do tempo, sempre manteve excelentes relações. Ela referiu-se ao exu Pássaro Preto,
que descia no terreiro de Mãe Mariinha, com o qual consultava nas giras dos exus. Nas
situações em que interagia com a entidade, era grande o seu desconforto, pois o “Pássaro
Preto” chamava o exu “Gavião”, que, por sua vez, queria “descer” para trabalhar. A tensão
crescia entre ela e o seu exu, pois ela não queria incorporá-lo. Antônia concluiu esse
115

assunto enfatizando que tratava dos seus exus com carinho, mas, definitivamente, não
queria desenvolver.

Detalhando ainda o tipo de vínculo que mantinha com aquelas duas


entidades, dizia que tão logo o Exu e a pombagira manifestavam ela sentia-os encostando-
se em seu corpo. O fato implicava alterações significativas em seu comportamento, uma
vez que o exu e a pombagira manifestavam apresentando comportamentos que ela
classificava como de homem e de mulher. Decorria daí a seguinte interpretação de
episódios provocados pela presença dos espíritos “encostados” no seu corpo:
Quando o exu Gavião encosta, eu dou pra beber cachaça e não suporto homem no
canto da cama. Também não suporto casa e fico direto na rua [...] quando é a Zureta
que encosta, fica tudo diferente. Ela gosta de ser tratada com sidra e cigarro
(Hollywood e Carlton). Outra coisa que a Zureta gosta é de andar pelada. Andar
pelada e ter homem por perto. Quando eu fico carente, pode saber que é pombagira
encostando.

Sem apontar maiores problemas com tais manifestações, Antônia


mencionava apenas uma situação em que a convivência com aqueles dois exus tornava-se
quase insuportável. Tratava-se de uma disputa ocasional, travada entre as duas entidades,
por sua pessoa. Tal conflito, ou “guerra” ,como ela denominava, ocorria quando o exu
Gavião e a pombagira Zureta queriam mandar nela ao mesmo tempo. Nestes momentos, ela
sentia que a sua cabeça ia explodir e, rapidamente, tratava dos dois para ver se eles “davam
um tempo”.

Tratar das entidades significava “ir ao mato, levar farofa e cachaça para o
exu Gavião” e, ao mesmo tempo, dar à Zureta aquilo que a deixava satisfeita: “uma garrafa
de sidra e alguns cigarros acesos, colocados em pé para queimar”.

Antônia referia-se também a sua sorte com os homens, associando esse fato
à sua relação com a pombagira. Nesse ponto da conversa, Antônia destacou um dos
atributos daquela entidade, que, incidindo sobre a sua pessoa tornava-a atraente para os
homens com quem convivia. Tratava-se do poder que a Zureta exercia sobre ela, capaz de
transformar seu “verdadeiro rosto” em outro, belo e feminino. Assim, diante dos homens
116

com quem ela convivia, a sua verdadeira face, “parecida com a de um homem”, dava lugar
à fisionomia de uma bela mulher. Era essa uma das maneiras pelas quais a pombagira
atuava em sua vida, deixando-a bela e desejável para os homens.

Referindo-se a sua vida sentimental, Antônia ressaltava o fato de viver um


triângulo amoroso composto pelo companheiro e pelo senhor aposentado que a
acompanhara na festa dos erês. Ela sublinhava que aquele senhor visitava a sua casa quase
todos os fins de semana, ocasiões em que, sob o olhar indignado da vizinhança, ela, o
amante e o companheiro (ciente daquela relação triangulada) tomavam, tranqüilamente,
cerveja juntos.

Questionada por mim sobre a sua capacidade de manter tal situação,


respondeu com uma frase curta e definitiva: “Isso é que é ser macumbeira”.

5.6 Breves considerações sobre Antônia e sua pombagira

Buscando compreender o imaginário criado em torno da pombagira, parte-se


dos terreiros e da experiência de Antônia com os seus dois exus, vivência tanto mais rica,
na medida em que diz respeito a um tipo de convívio realizado, simultaneamente, com os
dois pólos dessa classe de entidades. Antes de tratar com maiores detalhes dessa relação,
torna-se necessário fazer uma ressalva.

Como relata Antônia, a sua convivência com os exus não ocorria por meio
do transe ritual, experiência realizada em terreiros e mediada por pais e mães-de-santo.
Conforme dizia, a sua freqüência às casas de umbanda e de candomblé resumia-se à
participação em festas e consultas, pois ela não queria desenvolver.

No entanto, mesmo se negando a incorporar tais entidades, Antônia convivia


com seus exus, espíritos que se manifestavam para ela em vários momentos do cotidiano.
Nessas ocasiões, eles encostavam-se em seu corpo e passavam a afetar a sua vida de forma
117

significativa. Apesar de Antônia destacar as perturbações causadas pelos exus, sobretudo


nos momentos de guerra, o saldo de suas ações sobre ela era considerado positivo.

Nesse ponto, ela referia-se à importância de sua aliança com aquelas


entidades. Afinal, ressaltava, os exus tinham se manifestado para ela e vinham
acompanhando-a pela vida, uma vez que ela sempre manteve o seu vínculo com eles,
tratando-os com carinho e dedicação.

Mais do que oferecer presentes aos exus, ela enfatizava que recebia de bom
grado tudo o que era emanado de suas presenças. Era assim que os dois espíritos podiam
atuar na terra, mediados por ela, que, pacientemente, aceitava-os encostados em seu corpo.
Até mesmo nas horas de extremo desconforto, ou seja, nos momentos de “guerra”, ela
jamais havia se negado a atender à vontade daquelas entidades. Nessas ocasiões críticas, ela
redobrava seus esforços, pois, mesmo sentindo que a sua cabeça estava explodindo, ia ao
mato tratar deles, tentando, assim, mitigar o forte desejo dos espíritos por sua pessoa. Era
dessa maneira que renovava seu vínculo com as entidades, ou seja, doando-lhes a sua
pessoa misturada com as dádivas oferecidas (MAUSS, 2003).

Esse relato enfatiza que uma das principais dimensões da convivência entre
pessoas e espíritos, aqui entendidos como “seres sociais” portadores de desejos e
necessidades (CRAPANZANO; GARRISON 1977; BODDY, 1994; LAMBEK, 1980),
fundamenta-se numa infindável, porque obrigatória, troca de dádivas. Comunicando-se por
meio de presentes, que, ao serem trocados, levam consigo algo de seu doador, pessoas e
espíritos estabelecem um forte vínculo fundamentado na noção de reciprocidade (MAUSS,
2003). Esse vínculo traz consigo fortes tensões, na medida em que qualquer descuido com
aquilo que é prometido ou devido aos espíritos pode provocar abalos em suas relações com
os humanos e, conseqüentemente, uma quebra no circuito de prestações e contraprestações
(MAUSS, 2003).
118

Aqui, é necessário enfatizar que no caso dos exus essa quebra de alianças
adquire maior gravidade e perigo, na medida em que se atribui a essas entidades um caráter
autoritário, imperativo, enganoso e quase sempre vingativo. As narrativas proferidas nas
casas de candomblé e umbanda destacam o fato dos exus deixarem de proteger seus
“amigos” e “aliados” ou, mesmo, se vingarem deles ao se sentirem negligenciados. Como
contraponto a essas narrativas, Antônia enfatizava o seu vínculo com as duas entidades.
Para ela, tal aliança revestia-se de enorme importância nas múltiplas dimensões de sua vida.

Antes de tudo, é preciso recordar que Antônia concebia os seus dois exus
como mediadores entre ela e um mundo que, inegavelmente virava-lhe as costas. Vagando
pelas ruas, sem bens, sem família e sem amigos que pudessem lhe oferecer um lugar na
sociedade, restava a proteção daqueles dois espíritos. Afinal, eram eles que, atuando como
espécies de “padrinhos” protegiam-na concedendo-lhe os bens necessários para viver num
mundo altamente pessoalizado.

Outro ponto importante na narrativa de Antônia dizia respeito a sua crença


no poder daqueles exus de encostarem-se nela, fazendo-a agir ora como homem, ora como
mulher. Se a entidade “encostada” era o exu Gavião, ela bebia cachaça na rua, não
suportava o espaço privado da casa e tampouco homens em sua cama. Tão logo o exu
Gavião subia, dando lugar à pombagira Zureta, ela permanecia no espaço doméstico, mas,
ao ter a sua sexualidade aflorada pela ação da pombagira, desnudava-se, completamente,
passando a demandar companhias masculinas.

Essa narrativa mostra como a sua vivência com os seus exus colocava em
cena as noções de “casa” e “rua”, homologamente associadas à relação construída entre as
categorias “feminino” e “masculino”, polaridades essenciais para a compreensão do
universo social brasileiro (DAMATTA,1990; FRY,1977; BIRMAN,1983).

No caso do exu Gavião, essa relação da entidade com a rua, a cachaça e,


enfim, a sua forte recusa em permanecer nos limites físicos e morais da casa demostrava
119

um ethos tipicamente masculino, referente, sobretudo, às camadas baixas da sociedade


brasileira (DAMATTA, 1995).

Nesse sentido, pode-se afirmar que o próprio mito construído sobre a figura
do “exu-macho” da umbanda, respeitosamente referido como “o homem”, punha em cena
comportamentos vinculados aos hábitos dos “machões”, personagens vinculados a um
Brasil popular, cujo espaço de liberdade é construído e usufruído nas ruas e bares. É ali que
esses homens passam o seu tempo livre, divertindo-se com amigos e mulheres.

Se na narrativa de Antônia o exu Gavião surgia identificado com os


comportamentos “masculinos” das camadas baixas da população urbana brasileira, a
pombagira Zureta, por sua vez, evocava aspectos de um feminino que nada tinha a ver com
os valores morais da “casa”.

Deixando-se levar por um erotismo liberto de qualquer pudor, a pombagira


jogava por terra uma moralidade tradicionalmente prescrita às “mulheres de bem”,
colocando em seu lugar um tipo de “feminilidade” associada ao “desvio”. Em outras
palavras, pode-se dizer que tal modelo de sexualidade diz respeito à mulher “sem moral”,
que pouco importando com as regras de pudor prescritas às “mulheres honestas”, cercam-se
de companhias masculinas, revezando-as, afetiva e sexualmente, para o seu bel prazer.

Mas a pombagira exercia outro tipo de ação sobre Antônia. Aqui, faz-se
referência ao poder conferido à entidade de transformar seu rosto masculino em um,
feminino e belo. Tal transformação fazia com que ela “encantasse” os homens, mantendo-
os sob seu poder. Foi assim que ela encontrou a ajuda masculina necessária para tirá-la da
miséria.

No entanto, sua narrativa não destaca esse poder, relacionando-o apenas com
a solução de um problema prático e material. A sua fala conota certo orgulho de ser tão
poderosa ao ponto de conseguir manter junto de si, simultaneamente, os dois homens com
120

quem se relacionava. Se a vizinhança escandalizava-se com o fato de vê-los tranqüilamente


bebendo e se divertindo juntos, eles pouco se importavam com a opinião alheia. Como dizia
Antônia, esse relacionamento harmoniosamente triangulado devia-se ao fato de ela ser
“macumbeira” e, assim, “encantar” os homens com quem se relacionava. Aliás, ressaltamos
aqui que nesse tipo de relacionamento os dois homens nada lhe exigiam em termos de
exclusividade afetiva ou sexual.

Pela narrativa de Antônia, percebemos o quanto ela surge fortemente


associada à própria caracterização da pombagira. Não se pode comparar a figura de
Antônia, uma pessoa que já vivera na miséria, arrastando suas tralhas pelas ruas e estradas,
com a figura mítica de Maria Molambo? Não tinha Antônia o dom de encantar os homens,
mantendo-os sob o seu poder? Não era Antônia uma mulher que, invertendo fortes lógicas
sociais, apresentava-se publicamente com mais de um companheiro, tal como ocorria com
as pombagiras? Não seria esse desdém diante de certos limiares uma atitude semelhante
àquela atribuída aos espíritos “femininos” conhecidos como “mulheres de sete maridos”?

Todas essas perguntas conduzem a outra: Mais do que simplesmente


enumerar e correlacionar fatos, aquela narrativa de Antônia não a permitiria retomar,
subjetivamente, o próprio “mito” da pombagira, transformando-o numa experiência “forte”,
“viva” e “vivida” (LEENHARDT, 1987) vinculada à sua pessoa, e ao poder das margens?
121

6 OUTRAS HISTÓRIAS

6.1 Mãe Rita e sua pombagira Ana Padilha

Mãe Rita, estudante de psicologia, é uma jovem ialorixá que desde muito
cedo esteve ligada aos terreiros e que aos 25 anos já era responsável pela sua própria casa.
Tal como ela enfatizou com orgulho, havia um tempo significativo que ela recebia uma
“pombagira rainha”, cujo nome era Ana Padilha. O relato dessa mãe-de-santo reflete um
procedimento essencial aos terreiros, referente ao ato de doutrinar entidades. Se esse
procedimento geralmente é apenas mencionado na bibliografia referente à umbanda, aqui
ele será explicado de forma detalhada, a partir do relacionamento entre Mãe Rita e Ana
Padilha.

6.1.1 No terreiro de Mãe Rita

Em agosto de 2003, comecei minhas pesquisas no terreiro de Mãe Rita,


situado na zona leste de Belo Horizonte, num bairro de classe média, em cujas
proximidades encontrava-se um contingente numeroso de extratos mais pobres da
população.
Em função das atividades que realizava em seu terreiro, a ialorixá
reivindicava para a casa a ligação com as nações “Keto-Alaketu”, definindo, no entanto, a
sua identidade religiosa vinculada igualmente ao candomblé e à umbanda. Com relação ao
seu pertencimento religioso à umbanda e ao candomblé, a mãe de santo assim justificava:
Eu fico com os dois porque a gente se acostuma muito com o guia. A a gente fica
muito tempo com o guia. No candomblé, a gente não tem um contato maior com
caboclo, não pode fazer trabalhos com médicos espirituais. Aqui, eu trabalho com
oito médicos espirituais, que fazem cirurgias cortantes e não cortantes. No sábado, a
gente faz os atendimentos e até pré-natal.

O terreiro situava-se nos fundos de sua própria residência, onde ela morava
com seus pais e irmãos. Nos trabalhos realizados no terreiro, havia duas sessões semanais,
destinadas, respectivamente, aos pretos-velhos e aos caboclos da casa. Assim como nas
122

outras casas de umbanda e candomblé pesquisadas, as sessões de exu e de pombagira eram


realizadas apenas uma vez por mês. Mãe Rita justificava dizendo que não era conveniente
chamar estas entidades com freqüência, pois elas poderiam “viciar os médiuns”, uma vez
que consumiam em alta escala bebidas e cigarros. Receber a pombagira todos os dias só era
aconselhável para quem “tivesse muita estrutura”, o que justificou, amparada na própria
experiência:

Eu trabalho com uma pombagira a semana inteira. Eu não fumo e nem


bebo. A minha pombagira, quando desce, toma quatro, cinco garrafas e
fuma dois maços de cigarro. Normalmente, cigarro ela fuma de dois em
dois.

Uma das ocasiões mais movimentadas no terreiro era a festa anual que Mãe
Rita celebrava para a sua pombagira, data em que eram afixados avisos no portão da casa
para informar a vizinhança. Com efeito, o fluxo maior de pessoas formava- se durante a
ceia que era oferecida no evento. Nessas ocasiões, a ialorixá preparava uma grande mesa,
contendo frutas variadas, que se constituíam na refeição ritual da pombagira e que eram,
depois, distribuídas para os moradores mais pobres da região. De acordo com Mãe Rita, a
sua pombagira preferia e desejava frutas, porque “não tinha sido tratada com sangue” (no
caso, o sangue obtido, ritualmente, no sacrifício dos animais).

Grande parte dos freqüentadores da celebração anual eram crianças, que iam
ao terreiro atraídas tanto pela beleza das pombagiras quanto pela ceia. O caráter controlável
e familiar dessa festa era enfatizado pela mãe-de-santo nos seguintes termos: “São sessões
tão leves, que têm criança. Tem criança que vem aqui no terreiro porque acha pombagira
bonita, então vai na pombagira e ela tem que carregar. E criança acha isto importante”.

De modo geral, predominavam nas sessões abertas pessoas ligadas às


camadas média e baixa da população da cidade. Com relação às consultas particulares, que
ocorriam com agendamento prévio, o público era mais variado: mulheres solteiras e
casadas, jovens estudantes, homens de diferentes idades e profissões, além de prostitutas,
que procuravam os serviços da pombagira, sobretudo, para fins amorosos. Muitas dessas
123

pessoas optavam por este tipo de sessão particular porque não queriam ser vistas valendo-se
das consultas e dos trabalhos do terreiro.

O universo moral daquela casa era bastante tradicional, no sentido de não


serem encontrados em seus espaços papéis sociais e sexuais considerados “desviantes”.
Dentre os médiuns que integravam seus espaços, encontravam-se os dois irmãos
consangüíneos de Mãe-Rita, além de seu noivo, que pertencera ao kardecismo e tinha se
ingressado recentemente no candomblé.

Buscando assegurar a moralidade e afastar qualquer suspeita de


homossexualidade masculina por parte dos integrantes da casa, Mãe Rita sublinhava
determinadas condutas da vida amorosa e sexual de seu irmão e de seu noivo. Com relação
ao primeiro, ela dizia que ele era filho de Ogum e muito “mulherengo”. Tão “chegado” às
mulheres que não lhe bastava uma (no caso, a sua noiva). No que dizia respeito ao seu
noivo, ela enfatizava que não tinha nenhuma dúvida com relação à sua masculinidade, pois
ela já o havia testado várias vezes e ele nunca mostrara qualquer tendência para a
homossexualidade. Fato era que, por ocasião da pesquisa, nenhum dos dois recebia
pombagiras naquele terreiro: o irmão, porque a entidade nunca tinha se manifestado nele; o
noivo, em virtude da rejeição que ele desenvolvera contra ela.

Com relação ao fato de poucos homens “receberem” pombagiras nos demais


terreiros da cidade, a ialorixá emitia a sua opinião baseando-se na sua experiência como
médium. A respeito, dizia:
Porque se o homem tem a pombagira “de frente”, ele incorpora, e nem por isso ele
vai deixar de ser homem. Eu tenho um exemplo muito claro aqui no centro. O meu
namorado era “Nanã de frente”, e ele tinha uma guerra. Ele tinha Nanã cruzada com
Oxossi e Iansã. E eu tirei a Nanã dele. E ele teve manifestação de pombagira.
Porque o negócio é o seguinte, o meu orixá é homem, eu não tenho tendência
nenhuma para ser homossexual, mas o meu modo de tratar as pessoas é um modo
masculinizado, entende? Ele não. É como se o nosso relacionamento fosse ao
contrário: eu sou o homem e ele é a mulher. Eu mando nele, eu comando ele todo,
entende? E depois que eu tirei a Nanã, ele não teve mais a vibração, mas ele
continua tendo a pombagira. É a mesma coisa de preta-velha. Homem incorpora
preta-velha sem afetar a masculinidade. Esse negócio de homossexualidade não
conta. Lógico que quando é homossexual o espírito é feminino, aquilo é um karma
124

que a pessoa passa, ela tem uma tendência maior para receber uma pombagira. Mas
isto não quer dizer que um homem normal não possa receber essa entidade.

E Mãe Rita continuou a sua narrativa nos seguintes termos:


O meu namorado é deste jeito, mas o lado sexual não tem nada a ver com isso, ele é
até mais homem do que o normal. Eu já testei ele de todo o jeito. Eu tive que testar
porque ele tinha santa mulher. Eu testei ele sexualmente para ver até onde ia o lado
feminino dele. E o incrível é que ele não tem tendência nenhuma pra homossexual.

Referindo-se ainda ao seu noivo, a mãe-de-santo enfatizava o incômodo do


rapaz quando recebia a sua pombagira. Por deixá-lo feminino demais, ele temia que tão
logo passasse a incorporação o pessoal do terreiro não o visse mais como homem.
Concluindo, a ialorixá explicitava os sentimentos do noivo, como também a resistência dos
“homens-mesmo” diante da incorporação de pombagiras:
Homem não aceita isso, né? E o meu noivo ainda é médium consciente! Então, ele
entortava, quebrava a cintura, e aí ele falava prá mim: eu não sou gay, eu não quero
receber esta pombagira. E foi um custo, porque homem mesmo é muito difícil de
encontrar aquele que incorpore pombagira. Eles tosam mesmo. Eles tosam, mas a
gente segura a guia. Dá até vontade de entrar para o terreiro com um chicotinho
para bater, porque eles seguram a entidade. É uma luta constante pra você fazer um
médium incorporar.

Visando mitigar esse problema, Mãe Rita detalhou o enorme trabalho para
acabar com aquelas incorporações da pombagira. Tal mudança implicou a necessidade de
“assentar” novos orixás na cabeça de seu namorado, fato que teria lhe custado muito
esforço, pois aquela pombagira era muito exigente.

Observamos, nesse ponto, a ênfase dada pela ialorixá aos desejos da


entidade. Sem dúvida, nos situamos diante de uma troca simbólica que atribui às entidades
o status de “seres sociais”, dotados de vontade própria. Aliás, as pombagiras são, muitas
vezes, concebidas como entidades altamente voluntariosas no que diz respeito à escolha de
suas roupas, adereços, perfumes, cigarros e bebidas. Certamente, esse poder de escolha é
um item fundamental para situá-la em determinados patamares hierárquicos, capazes de
lhes conferir status. Como lembrava Mãe Rita, as pombagiras “ralé”, também chamadas de
“beira-de-estrada”, aceitam cigarros, bebidas e perfumes de má qualidade. Já as pombagiras
“finas” só se sentem de fato presenteadas quando recebem objetos requintados, chegando
125

até mesmo a recusar determinados agrados considerados por elas de qualidade inferior.
Esse grau de exigência é, muitas vezes, explicado a partir de uma espécie de educação dos
sentidos pela qual passam essas entidades no seu processo de evolução. Não raramente esse
aprimoramento no gosto das pombagiras ocorre simultaneamente com o controle de
determinados atos, sobretudo, aqueles referentes à sua sexualidade.

6.1.2 A história da mãe-de-santo

Conversando com a ialorixá inteirei-me de fatos significativos relativos à sua


história de vida. Como ela disse, sua iniciação no mundo espiritual começou quando ela
tinha 5 anos, embora desde os 3 já percebesse coisas do mundo invisível.

Sobre os caminhos que a teriam levado ao candomblé e à umbanda, ela


atribuía a seu passado familiar. Seus pais eram católicos, mas sempre gostaram de centros
espíritas e de terreiros de umbanda. Na juventude, seu pai tinha “fechado o corpo” por
diversas vezes, inclusive, por meio de rituais realizados em cemitérios. De tempos em
tempos ele ia a um centro situado perto de sua casa para “fazer trabalhos” e “abrir
caminhos”. Já nessas ocasiões, apesar da pouca idade, ela freqüentava os centros em sua
companhia. Assim, mesmo antes de freqüentar os terreiros e com apenas 5 anos de idade,
dizia ter começado a dar sinais relativos ao seu pertecimento ao espiritismo. Isso se
evidenciou, basicamente, por dois fatos: “desesperar-se quando não ia ao centro com seu
pai e apresentar uma enorme rejeição à religião católica:

Eu não suporto ficar dentro de igreja desde pequena, e quando eu batizei,


eu desmaiei. Minha mãe falou que eu apaguei e fiquei três horas
desacordada. Desde pequena, quando a minha mãe entrava comigo na
igreja, eu ficava muito nervosa. Quando me tirava da igreja, eu
melhorava.

Outro ponto importante salientado pela ialorixá dizia respeito à sua condição
de “médium de berço”; ou seja, de uma pessoa que já nasceu com dons adivinhatórios, com
a capacidade de vidência e de comunicação com espíritos e demais deidades. Nesse sentido,
ela dizia que, por serem portadoras desse tipo de dom, tais pessoas não necessitam passar
126

por ritos de iniciação ligados à “feitura” do santo. No seu caso específico, sublinhava que já
sabia as coisas de seus guias e santos antes de ter qualquer aprendizado nos terreiros. Além
desse poder mediúnico, ela dizia ter nascido com uma marca de pertencimento a Xangô
inscrita na cabeça.
Porque eu já nasci feita. Na realidade eu fiquei de reclusão só para ter o
aprendizado. Eu não tive a necessidade de raspar a cabeça porque eu já tenho o
símbolo do santo na minha cabeça. Quando a mãe-de-santo começou a raspar ela
viu que eu já tinha os dois machados cruzados na minha cabeça, no caso as marcas
do machado de Xangô.

Mãe Rita referiu-se também às suas experiências ligadas ao transe:


Até uns seis anos atrás eu tinha consciência. Depois perdi a consciência e não dou
fé de mais nada. Quando eu incorporo eu não vejo mais nada. Antes era como se eu
saísse do corpo e assistisse toda a sessão. Mas, se uma pessoa conversava com a
minha entidade, ela não me deixava escutar. Eu tinha consciência do que acontecia
com os outros e não comigo, entendeu? Agora eu não vejo mais nada. Hoje eu
incorporo e, quando o guia ainda está dançando no terreiro, eu ainda estou
consciente. Quando ele empaca eu não vejo mais nada. A inconsciência vem assim,
você não fica... é ... a entidade ainda mal baixou e você fica inconsciente, não,
demora um pouco. Você não apaga não. Demora um pouco para desligar, porque é
uma sintonização. Não existe uma incorporação, na realidade, porque o espírito da
gente não sai. A gente só dá um espaço para a sintonização, né? Então demora um
pouquinho para desligar os fios da tomada. É onde o guia dança, ele vai pra lá, vai
pra cá.

Referindo-se aos seus contatos com as pombagiras, Mãe Rita relata que,
inicialmente, recebia uma entidade “metade exu, metade pombagira”. Dizia que se tratava
da pombagira do Beijo, uma entidade cujo comportamento era marcado pelo fato de ela
beijar qualquer pessoa que estivesse por perto: “Ela beijava todo mundo e ficava aquelas
marcas de chupão, uma coisa horrorosa. Isso era a ralé”, comentava a ialorixá. E, referindo-
se ao panteão da umbanda e às suas leis hierárquicas, a mãe-de santo explicava: “Porque a
gente começa com entidades assim, depois que você chega a níveis mais altos. Depois
dessa pombagira eu incorporei a pombagira Cheira Homem e a Maria Mulambo, e também
o exu Sete Porteiras e o exu da Morte.
Ao classificar as pombagiras de acordo com seus comportamentos, Mãe Rita
comentava que a pombagira Maria Mulando era uma pombagira comum: “é mais ralé... é...
entre ralé e classe média, porque ela tem um comportamento muito vulgar".
127

Tratando de Ana Padilha, a pombagira que recebe já há alguns anos, ela não
só destacava aspectos que a diferenciavam de outras pombagiras, como reforçava o sistema
hierárquico da umbanda (NEGRÃO, 1996). Nesse sentido, as desigualdades entre essas
entidades eram marcadas, sobretudo, por aqueles elementos que caracterizam a sua
moralidade e seus comportamentos sexuais.
Quando eu comecei a incorporar a Ana Padilha ela era muito vulgar. Ela não
aceitava roupa da cintura para cima, nem sutiã. Então foi onde eu tive que doutrinar
ela. Porque eu não incorporava ela no centro justamente por causa disso. Porque
uma bela noite eu estava dormindo e minha irmã falou que eu levantei toda estranha
e acendi a luz do quarto e comecei a falar um tanto de coisas. E ria e falava, ria e
falava.

Depois de se reportar a essa primeira incorporação da pombagira, a ialorixá


destacou outro episódio que marcou a sua passagem para a condição de médium
inconsciente: uma categoria de pessoas que, segundo a maioria dos líderes de terreiros,
surge situada em níveis mais elevados em termos de incorporação. Mãe Rita comenta esse
episódio nos seguintes termos: "Um dia em que eu estava tomando banho, eu não vi mais
nada. Aí começou a incorporação completa. Nisto já vão oito anos, quase nove".

Diferindo-se dos outros líderes de terreiro, Mãe Rita destacava assim a


tensão que teria permeado a sua relação com aquela entidade, inicialmente dotada de
caráter violento. Aliás, tal violência só teria sido apaziguada depois de um processo de
doutrinação que teria domado a entidade em relação tanto ao seu trato com terceiros quanto
à abolição de sua nudez.

Questionada sobre as transformações sofridas pela entidade nesse período de


tempo, Mãe Rita destacou uma série de comportamentos morais assumidos pela pombagira.
Essa dimensão moral referia-se, principalmente, ao aprendizado de comportamentos
vinculados ao pudor e a uma sexualidade mais contida: “É... Ela começou a aceitar roupa,
ela bebia cachaça e hoje em dia ela não bebe mais, depois ela bebia só anis estrelado. O
anis estrelado é a bebida da pombagira. É um licor. É uma bebida muito forte. Aí, agora ela
aceita sidra e champanhe. Mas foi difícil.”
128

Mãe Rita então revelou que teria sido bastante rígida com a entidade:
Ah! Você vai fazer isto? Então hoje eu não te recebo. Você vai fazer tal coisa?
Então você me bate. Eu criei ela assim. Ela era muito violenta. Muito violenta
mesmo. Um dia ela chegou e falou assim para o pai-de-santo do lugar em que eu
trabalhava: você não é homem, ponha-se no seu lugar. E ela acabou com ele lá, com
a assistência toda vendo e ouvindo.

Um outro tema abordado por Mãe Rita dizia respeito à história de vida de
Ana Padilha. Nesse sentido a ialorixá dizia saber pouco, pois a pombagira não costumava
falar sobre esse assunto. Contou que Ana Padilha era o espírito de uma moça que vivera na
Espanha, filha de pais ricos e bem situados socialmente. Sentindo-se cerceada pelo
autoritarismo masculino, manifesto pelo pai e pelos irmãos, a jovem teria se rebelado e
abandonado a família. Sem maiores opções de sobrevivência num mundo em que as
mulheres ficavam confinadas à esfera doméstica, Ana Padilha teria aberto um bordel, onde
comandava moças que se prostituíam.

Remetendo-se brevemente à história dessa entidade, a fala da Mãe-de-santo


enfatizava o fato de a pombagira nunca ter se prostituído em vida. Aos olhos da ialorixá, a
condição de prostituta não era compatível com a nobreza da jovem espanhola, que, hoje,
como pombagira, mostrava-se extremamente distinta em seus comportamentos e no uso de
seus belos pertences: uma coroa e um leque, que vieram da Espanha especialmente para ela,
além de um par de castanholas, que tocava com maestria.

Se fora dos terreiros as pombagiras vinculam-se quase invariavelmente à


figura da prostituta, nos terreiros pesquisados aparecem personagens femininas que não se
definem nem pela rígida inscrição no ambiente doméstico, nem pelos comportamentos
considerados “vulgares” e “depravados” da mulher-da-rua. Sem dúvida, tais figuras
femininas trazem consigo histórias e caracterizações que ampliam o domínio do que se
costuma denominar “liminaridade”.
129

.2 No Terreiro de Pai Carlos

A partir da mediação de Pedro, dei início, nos primeiros meses de 2002, às


pesquisas num terreiro ligado à nação Angola, liderado há mais de vinte anos por Pai
Carlos, um ex-umbandista que tinha se tornado pai-de-santo do candomblé.

O terreiro localizava-se num bairro residencial, entre os municípios de Belo


Horizonte e Contagem. Mais precisamente, essa casa (ou roça, como era chamada) situava-
se num local onde predominavam famílias da camada baixa da população urbana, ainda que
se pudesse notar, aqui e ali, residências pertencentes à camada média.

Como enfatizava Pai Carlos, e nisso demonstrava sua preocupação com certa
tradição relativa aos terreiros de candomblé, a casa por ele liderada possuía "raízes" no
famoso terreiro de Joãozinho da Goméia e se ramificava em outros terreiros. O conjunto
formado por tais casas constituía uma espécie de “linhagem”, traduzindo o que é
denominado no candomblé de "família de santo”.

A minha presença no terreiro de Pai Carlos ocorreu, sobretudo, por ocasião


de suas festas e ritos, quando, além de participar da assistência, fotografava livremente, até
mesmo no espaço ritual. O pai-de-santo mostrou extrema cordialidade, chegando até a
oferecer-me um lugar junto aos seus convidados especiais, geralmente provenientes de
outros terreiros, gentileza que era retribuída com o envio de fotos produzidas nas festas,
gesto que parecia adquirir grande significação tanto para a liderança quanto para os demais
candomblecistas da casa.

Desde os primeiros momentos da pesquisa, percebi que o ethos do grupo era


fortemente marcado por princípios hierárquicos, o que se evidenciava de forma marcante
por ocasião das entrevistas com os membros da casa. No sentido de não quebrar uma
importante regra de etiqueta, as entrevistas tinham de iniciar-se com o pai-de-santo que
130

ocupava o ápice da hierarquia, fato que ocasionou certo atraso na pesquisa, em razão de sua
permanente ocupação com as atividades do terreiro ou com questões de ordem pessoal.

Depois de dois meses, finalmente, surgiu o dia em que o babalorixá se


prontificou a conceder uma entrevista. Uma conversa prévia, bastante detalhada com o líder
da casa, permitiu o conhecimento de fatos significativos a respeito de sua história de vida,
e, inclusive, de Maria Quitéria, a pombagira por ele incorporada. Após a entrevista com
aquele pai-de-santo, percebi que já dispunha de alguma liberdade para agendar entrevistas
com outros candomblecistas também detentores de cargos importantes no terreiro.

Informações de igual riqueza foram obtidas a partir de conversas informais


com os filhos e filhas-de-santo da casa no espaço do salão, que, além de destinar-se às
festas e toques da casa, também servia como sala de espera para as consultas.

Desde o início, percebi uma relativa heterogeneidade no que dizia respeito


aos membros e clientes daquele terreiro. Ali, interagiam pessoas da camada média com
integrantes de grupos mais pobres da população urbana, estes procedentes tanto das
redondezas do terreiro quanto de bairros dali distantes. A casa mantinha um calendário de
atividades abrangendo ritos e festas realizadas em homenagem aos orixás, além de toques e
sessões ligados a outras entidades. Dentre estas, destacavam-se deidades tradicionalmente
relacionadas ao panteão da umbanda, tais como os “boiadeiros”, mas, sobretudo, exus e
pombagiras.

As festas mais concorridas eram exatamente aquelas celebradas para os exus


e as pombagiras, ocasiões em que o salão do terreiro ficava lotado, destacando-se os filhos
e filhas-de-santo da casa e os convidados de outros terreiros. Comparecia, ainda, um
número significativo de clientes do terreiro, que procuravam os exus fosse para solicitar-
lhes “trabalhos”, fosse para agradecer-lhes as dádivas recebidas. Em algumas das festas,
presenciei pessoas levando muitos presentes, especialmente engradados e caixas de bebidas
para oferecer às entidades homenageadas.
131

No terreiro, as sessões de exu aconteciam geralmente na última sexta-feira


do mês e eram abertas ao público. As pombagiras e os exus ligados àquela casa desciam e
atendiam gratuitamente os presentes. Cada entidade incorporada tinha o seu lugar marcado
no salão para atender aqueles que as procuravam. Dizia-se que a casa também contava com
dois exus permanentemente situados junto ao portão, protegendo-a de possíveis
“demandas”.
Quinzenalmente, eram realizadas sessões particulares e pagas, nas quais
Maria Quitéria, a pombagira de Pai Carlos, atendia seus clientes. Com público expressivo,
tais sessões iniciavam-se à tarde e adentravam pela noite.

Com efeito, alguns relatos revelam que o encontro com os exus e as


pombagiras nas sessões representava fortes experiências subjetivas para os integrantes ou
clientes do terreiro. Uma das filhas-de-santo da casa, que morava relativamente longe do
terreiro, revelou que toda última sexta-feira do mês, ao voltar das sessões de exu, percebia
claramente a presença das pombagiras durante todo o percurso, acompanhando-a. Nessas
ocasiões, as entidades falavam intensamente com ela, continuando essas conversas ao longo
de toda a madrugada. A companhia das entidades era muitíssimo importante para esta filha-
de-santo, pois significava, acima de tudo, proteção contra os riscos a que estão submetidos
aqueles que se deslocam a noite pela cidade, e, sobretudo, em sua periferia.

Uma freqüentadora do terreiro também relatou uma experiência marcante


que ocorrera poucos dias após uma consulta com Maria Quitéria. Enquanto dormia,
acordou subitamente com uma forte sensação corporal: algo como uma espécie de corrente
elétrica percorrendo-lhe o corpo. Em seguida, ela imediatamente ouviu a voz da entidade
cobrando-lhe uma promessa ainda não concretizada.

Certamente, tal fato guarda relações com o imaginário criado em torno da


pombagira, percebida como uma entidade poderosa, capaz tanto de proteger contra os
132

perigos terrenos quanto de comportar-se de forma voluntariosa e vingativa, cobrando aquilo


que lhe é devido.

6.2.1 Encontrando Maria Quitéria

Tão logo soube da “descida” de Maria Quitéria naquela casa, busquei


conhecer os mitos e os ritos relacionados à sua figura. Apesar de meu empenho nessa tarefa
não foi fácil encontrar muitas pistas sobre o universo de representações que cercava aquela
pombagira. Fosse por respeito à hierarquia do terreiro, fosse por desconhecerem a sua
história, os candomblecistas pouco diziam sobre ela. Na maioria das vezes, as respostas
eram evasivas e refletiam a preocupação em remeter aquele assunto à figura do pai-de-
santo. Ficava claro que era ele quem deveria esclarecer assuntos sobre a sua entidade.

Informações importantes sobre aquela pombagira surgiram a partir de


conversas informais realizadas fora do terreiro; portanto não submetidas ao controle do pai-
de-santo. Tais comentários mostravam diferenças significativas quando comparadas às falas
colhidas pelos filhos-de-santo dentro do terreiro. Apontando para a existência de diferentes
versões do mito construído sobre a pombagira, as narrativas mostravam forte relação entre
as suas variações e a situação em que ele era narrado. Dentre os aspectos relacionados com
essas reinterpretações criadas sobre a história de Quitéria, evidenciava-se, além do lugar na
estrutura hierárquica do terreiro, o grau de envolvimento do narrador com aquela “família-
de-santo”.

Aqueles que se encontravam mais próximos do pai-de-santo, fosse pela sua


posição na hierarquia do terreiro, fosse pelo envolvimento pessoal com o babalorixá,
tendiam a validar aspectos da versão do pai-de-santo sobre a história da pombagira. Os
poucos comentários ouvidos naquela casa, sobretudo por ocasião de festas realizadas em
homenagem à pombagira elogiavam a sua polidez e finesse. Nessas ocasiões festivas, a
pombagira chegava mesmo a despertar certo frisson, especialmente no que dizia respeito à
sua indumentária, que variava a cada ano. Em tais eventos, surgia como uma mulher
133

bastante refinada, dotada de gestos comedidos e avessos a qualquer tipo de excesso. Suas
performances demonstravam, no máximo, um ar de sedução e um comportamento
autoritário. Afinal, ali, ela representava a “dona do pedaço”, capaz de, energicamente,
comandar a troupe de mulheres de seu cabaré. Se existia um lado mais sombrio e escuso da
entidade, certamente ele não se tornava visível para o público presente nas sessões e festas
do terreiro.

Atributos mais comprometedores, pautados em certas acusações sobre a


pombagira, surgiam fora daquela casa de candomblé. Enfatizando que “todo exu tem seu
lado bom e o seu lado ruim”, alguns candomblecistas qualificavam Quitéria como uma
“pombagira danada e terrível”, que em vida teria matado seus amantes, homens poderosos
cujos atos foram cruciais para enriquecê-la. Tais afirmações contribuíam para reforçar a sua
imagem de “pombagira da pesada”, sem qualquer compromisso com questões morais e
éticas. Além desse passado nebuloso, certas ações daquele espírito eram essenciais para
alimentar a sua ambivalência. Aliás, é necessário sublinhar que numa das versões do mito,
ela era tida como uma pombagira cuja eficácia mágica poderia apelar tanto para o bem
quanto para a criação de malefícios em seus trabalhos sobre questões amorosas, sexuais e
financeiras, dentre outras.

Apesar de ser notória a importância das pombagiras no terreiro de Pai


Carlos, poucas alusões dos filhos e filhas-de-santo da casa eram feitas a outras pombagiras
que ali desciam. Nesses ritos, as entidades surgiam em cena incorporadas em mulheres e
em filhos-de-santo adés.

Tal silêncio certamente contribuía para evitar a ênfase no poder mágico das
outras pombagiras do terreiro. Num tipo de grupo cujo ethos era marcado pela hierarquia,
não era de bom-tom elogiar pombagiras que, num mercado religioso altamente competitivo
como o das casas de candomblé, poderiam tornar-se concorrentes de Quitéria.
134

O conhecimento sobre aquela pombagira foi adquirindo, então, a forma de


um mosaico, configurado, gradualmente, por meio de comentários que aludiam tanto a sua
pessoa em vida quanto aos seus trabalhos realizados enquanto espírito. Essas narrativas
surgiam, sobretudo, durante as festas realizadas em homenagem à entidade, ocasião em que
a pombagira ocupava a “zona focal” do rito. Não menos precioso para a construção dessa
personagem foi o convívio experimentado com a entidade durante as suas consultas
particulares.

No sentido de mostrar mais detalhadamente esse encontro com Quitéria,


relato experiências e descrições realizadas naquele terreiro e, mais especificamente, em
ocasiões nas quais a pombagira surge retratada em cenas de possessão.

6.2.2 A consulta com Quitéria

Meses depois de freqüentar o terreiro de Pai Carlos, soube que Quitéria


estava ali, trabalhando em consultas particulares. Buscando me inteirar sobre essas
atividades da pombagira dirigi-me ao terreiro logo no início da tarde. Tão logo cheguei
naquela casa, deparei-me com o salão aberto e com uma das iaôs do terreiro agendando
consultas e recebendo clientes. Cumprimentei-a e, depois de pagar trinta reais, recebi uma
das fichas numeradas, que estavam sendo distribuídas aos consulentes por ordem de
chegada. Poucos minutos depois, observei que o público começou a aumentar
sensivelmente. Em busca dessas consultas, chegavam mulheres de meia-idade, jovens e
alguns senhores. Assim que chegavam, essas pessoas dirigiam-se à iaô, pagavam a consulta
e, depois de receber suas fichas, sentavam-se e aguardavam a sua vez, como eu mesma
havia feito.

No intuito de me inteirar sobre a clientela da pombagira, tentei me aproximar


daquelas pessoas. Uma jovem senhora, muito bem trajada, respondeu laconicamente a
alguns de meus comentários, demonstrando um nítido desejo de evitar maiores contatos
comigo. Tal comportamento se contrastava com o de outras pessoas ali presentes, que
135

prontamente se mostraram dispostas a conversar. Uma jovem, acompanhada por sua mãe,
demostrava muita ansiedade para saber sobre a eficácia mágica da pombagira, e nesse
sentido me fazia perguntas. Uma outra senhora me confessou estar ali às escondidas do
marido. Ele era católico e não via com bons olhos a visita da esposa aos terreiros. Depois
de colocar-me a par dessa sua situação, a senhora comentou ainda que, antes de procurar a
pombagira, havia feito correntes na IURD. Tendo freqüentado essa Igreja por algum tempo
e sem conseguir a graça desejada, resolveu valer-se dos serviços mágicos religiosos daquela
pombagira.

Juntamente com os outros clientes ali presentes, esperei pacientemente pela


chegada do babalorixá. Depois de duas horas de espera, ele finalmente chegou, passando
rapidamente por sua clientela e encaminhando-se para o interior do terreiro.

Por volta das 16 horas, duas filhas-de-santo também chegaram ao terreiro,


aparentando voltar do trabalho. Depois de comentarem algo com a iaô, repetiram o gesto do
pai-de-santo. Seria no interior daquela casa, longe dos olhos dos clientes, que aqueles três
candomblecistas virariam em suas pombagiras.

Aqui, é importante registrar um fato ocorrido antes que as duas filhas-de-


santo deixassem o salão. Tão logo chegou ali, uma das mulheres enfatizou as qualidades da
pombagira Maria Padilha, que seria incorporada por uma delas. Relembrando fatos
recentes, ressaltou o poder daquela deidade de reverter uma forte crise ocorrida em sua
vida. Evocando lembranças marcadas por tristezas e angústias, a fala dessa consulente
sublinhava, sobretudo, o valor terapêutico das conversas que teve com a Padilha. Foram
esses diálogos que mitigaram as fortes tensões e angústias vividas naquele difícil período
de sua existência.

Indo além, essa senhora também destacou que já no primeiro olhar lançado
sobre tal entidade ficara completamente impressionada com a sua beleza perpassada por
uma expressão de bondade. Nesse sentido salientou uma radical separação entre a face da
136

médium e a da pombagira. Apesar de bonito, o semblante da filha-de-santo não tinha a


mesma expressividade do rosto da entidade.

Vale uma pausa para comentar o fato de essa senhora conferir à pombagira
uma beleza especial, diferente daquela referente à moça que a incorporava. Enfatizar tal
fenômeno significa acreditar na possibilidade de um mesmo indivíduo ser habitado,
temporariamente, por um “outro”, portador de atributos próprios, essenciais à sua
caracterização como um ser social singular. Sendo assim, o rosto que se transfigurava fazia-
o na medida em que um ser deixava, temporariamente, de habitar um corpo para que uma
alteridade, portadora de uma outra face, se presentificasse. Pode-se concluir, então, que a
percepção de uma ou mais faces se alternando num mesmo indivíduo tornava-se fator
indicativo de um sistema de crenças no qual um indivíduo podia ser habitado por diferentes
“seres”, cada qual portador de características que lhe eram próprias.

Finalmente, a senhora mostrou-me uma coroa de fitas vermelhas e pretas,


que tecia com carinho para presentear a pombagira. Mais do que agradecer à entidade por
seus trabalhos, essa oferenda constituía uma dádiva, ou seja, um elemento essencial para
reforçar laços socias fundamentados na noção de reciprocidade.

Passada cerca de meia hora dirigi-me à iaô indagando-lhe sobre a presença


de Quitéria. Como a pombagira demorasse muito, demonstrei a minha vontade de conversar
inicialmente com uma das outras pombagiras que seriam incorporadas pelas filhas-de-santo
ali presentes. A resposta da iaô pareceu-me extremamente significativa. Sem precisar um
impedimento, a filha-de-santo aconselhou-me, devido a minha condição de pesquisadora a
consultar com Maria Quitéria. Afinal, era ela quem sabia tudo a respeito das entidades da
casa. Interpretei o gesto como uma forma de realçar a supremacia daquela pombagira diante
das outras, reforçando assim os princípios hierárquicos do terreiro

Repentinamente, o silêncio do salão foi quebrado pelos sons de gargalhadas,


o que se constitui em forte elemento performático ligado à figura da pombagira e que
137

caracteriza o seu comportamento na sua “terra”. Essas gargalhadas anunciavam a chegada


das pombagiras ao terreiro. Sendo assim, depois de poucos instantes, as duas filhas-de-
santo, viradas em suas entidades, entraram no salão dirigindo-se cada qual ao local onde
receberiam os consulentes.

Passados alguns minutos, foi a vez de o pai-de-santo chegar virado na


Quitéria. Trajando-se de forma feminina, com um vestido e um chapéu em tons de rosa,
calçando meias finas e sapatos de salto, o babalorixá percorreu parte do salão rumo à sala,
onde, costumeiramente recebia seus clientes.

Assim, foram demarcados dois espaços de consulta: um deles aberto, onde as


duas filhas-de-santo “viradas” nas entidades atendiam seus clientes; e o outro, de caráter
privado, no qual a pombagira do pai-de-santo realizava seus atendimentos a portas
fechadas. Relativamente distantes do espaço destinado às consultas, os outros consulentes
aguardavam a vez de serem chamados.

Orientando-se pela numeração de suas fichas, a iaô chamava os consulentes,


que então se dirigiam às entidades ali presentes. Vale observar o clima dos encontros entre
consulentes e deidades, ocasiões perpassadas por abraços e conversas descontraídas.
Somente depois desses ritos de acolhida é que se iniciavam as consultas.

Ao contrário do que é dito freqüentemente sobre o comportamento das


pombagiras, as entidades presentes se mostravam absolutamente discretas no que dizia
respeito aos seus gestos e indumentárias. Nada ali remetia aos comportamentos lascivos e à
ultra-sexualidade que freqüentemente compõem o estereótipo da pombagira. O único
elemento performático que se contrastava com a distinção daquelas entidades eram as
sonoras gargalhadas.

Observando aquelas cenas de possessão, para mim pouco familiares,


permaneci no salão aguardando a minha consulta. Depois de um tempo significativo de
138

observação, fui chamada pela iaô. Finalmente, era chegada a hora de conversar com a
pombagira.

6.2.3 Conversando com Quitéria

Logo que entrei na sala onde Quitéria atendia, senti uma forte sensação de
estranhamento, que parecia ser causada por uma série de elementos. A noite tinha chegado
e a sala estava na penumbra. Apenas um foco de luz incidia sobre a face de Quitéria,
acentuando a sua maquiagem bastante carregada. O seu batom era de um vermelho intenso,
as faces estavam visivelmente pintadas e também os olhos, com sombra em tons de azul. O
seu chapéu, ligeiramente desabado, cobria parte de seu rosto. A entidade tinha um cigarro
colocado no canto dos lábios e uma taça de bebida nas mãos. Quitéria convidou-me para
sentar e me entregou uma taça para que compartilhássemos de sua bebida predileta. Foi
assim que começamos a conversar num clima soft, entrecortado por risos e goles de anis.
Distinguindo-se das outras entidades ali presentes, ela se abstinha de dar as performáticas
gargalhadas que caracterizam o comportamento das pombagiras. Como soube depois, essa
sua finesse estava intimamente ligada à sua história de vida.

Apresentando-se como dona de um famoso cabaré, a pombagira destacou as


suas ligações amorosas e sexuais com homens poderosos e distintos, fato que a levou ao
aprendizado de certas etiquetas, códigos essenciais para acompanhá-los em viagens e rodas
vinculadas à burguesia paulista. Assim, reinterpretando modos e modas femininas ligadas à
belle époque, Quitéria articulava o kitsch ao carnavalesco, constituindo-se uma figura
singular.

Na condição de observadora e integrante daquela cena de possessão, percebi


que a transfiguração do pai-de-santo na figura da pombagira colocava-me diante de um
personagem absolutamente desconhecido, que pouco a pouco ia se revelando aos meus
olhos. Sem entrar em questões relativas à veracidade da possessão, aspecto que foge ao
escopo deste trabalho, enfatizo a forte transformação sofrida pelo pai-de-santo ao
139

incorporar aquela pombagira. Somando-se aos gestos femininos, percebia um timbre de


voz, uma maneira de articular as palavras e um vocabulário absolutamente próprio àquela
entidade. Deste modo, aquela cena de possessão remetia-me a uma dimensão teatral, na
qual um personagem era fortemente dramatizado e vivenciado, em suas múltiplas
dimensões, corporais, gestuais e verbais, a partir da interpretação de uma biografia
construída num determinado contexto histórico e social. Por intermédio das palavras de
Quitéria, ditas à meia-luz, entrecortadas por baforadas de cigarro e goles de anis, adentrava
num mundo mítico criado em torno de uma personagem feminina marcada pelo “desvio” e
valorizada como mulher dotada de um saber altamente erótico.

Quitéria iniciou a sua conversa comentando sobre a clientela que a esperava


no salão. Com efeito, ela referia-se a uma madame, a algumas domésticas, a alguns
empregados e, finalmente, a um empresário bem-sucedido. Dentre desse público
heterogêneo, contudo, sobressaíam mulheres que procuravam seus serviços mágico-
religiosos às escondidas dos maridos e familiares. Aquelas pertencentes às camadas mais
altas da população traziam quase sempre uma amiga. Os homens também apareciam, na
maioria das vezes, escondidos, pois muitos deles eram casados e queriam contar com a
pombagira para exercer bem o papel de amantes, obviamente, sem o conhecimento de suas
esposas.

Referindo-se às motivações daqueles que a procuravam no terreiro, a


pombagira se pronunciou nos seguintes termos:
Me procuram mais para amansar o homem, para fazer ele ficar mais quieto dentro
de casa, de ficar mais amoroso, mas também para abrir o caminho, para dinheiro,
para emprego, para resolver uma questão na justiça que está parada, dívidas. Antes
era mais amor, hoje as pessoas me procuram para coisas materiais também.

Após esses comentários iniciais, a conversa do médium incorporado


focalizou a volta da pombagira a terra, tarefa que deveria ser concluída até que ela se
tornasse um espírito de luz:
Todos nós estamos aqui para fazer caridade, neste sentido de ganharmos luz, porque
nós ficamos perdidos, no vale das trevas. A gente ficou no breu. A gente não
consegue caminhar, até chegar numa outra fase, em que a gente não volta mais,
140

moça. Eu tenho pedido muito ao meu cavalo, porque eu tenho coisas para cumprir
aqui, para resolver e achar meu caminho.

Segundo ela mencionou, cumprir sua missão na terra na condição de um


espírito que voltava para trabalhar não estava sendo fácil. Desde o início, ela deparou-se
com vários obstáculos, e dentre esses o fato de seu cavalo, durante muitos anos, ter evitado
recebê-la. Nesse sentido, ela comentou sobre o comportamento específico dos homens
diante da incorporação de pombagiras:
Os homens não gostam de incorporar a gente. Carlos, o meu cavalo, levou mais de
vinte anos para me aceitar. Ele ficava só cuidando de mim. Eu vinha só de vez em
quando, muito raramente, para uma festa. Até que chegou um ponto que eu tinha
que fazer as minhas coisas para eu poder achar o meu caminho. Aí que ele aceitou
um pouco mais. E pombagira não muda a sexualidade de ninguém, não muda a
fisionomia de ninguém. Neste sentido, depois que a gente vai embora, a gente não
deixa nada no médium não. Nós não temos influência no sentido de mudar a
sexualidade ou o comportamento de ninguém. E nem é permitido isso, pois senão a
gente ia ficar mais atrasada ainda.

Assumindo-se como espírito de uma mulher bem-sucedida, Quitéria


manifestou seu poder e seu valor quando contava com detalhes os saberes eróticos que
transmitia tanto às esposas quanto às prostitutas desejosas de amarrar parceiros ou homens
amados.

Referindo-se às primeiras, disse que sempre ensinou muitos segredos


conjugais às esposas para prender o homem em casa, evitando que ele procurasse
companhias femininas na rua.
Eu falo muito com as minhas colegas que o que segura o homem não é dengo, não é
classe, é a cama. A mulher tem que ser uma puta na cama e vamos ver se ele vai
para a rua, ele não consegue. Eu mesmo ensinei a várias esposas como tirar o
homem do puteiro, pois eles ficavam lá dia e noite. O homem não aceita ser traído,
moça. O homem come todas as mulheres, mas na hora de casar eles querem é a
virgem.

Quanto as segundas, ela relatou as motivações que as faziam procurá-la,


enfatizando o poder de seus ensinamentos.
Elas [as prostitutas] vêm aqui para aprender como preparar os banhos, preparar os
encantamentos, para que o homem vá e volte nas mãos dela. Para que o homem
sinta a necessidade de estar com ela. São os banhos, os pós, os perfumes que são
141

preparados para que o homem sinta aquela atração, aquele desejo, aquela
sensualidade.

Assim, a conversa com a entidade foi fluindo até o momento em que ela
começou a relatar a sua história de vida. Mesmo que de forma breve, pontuamos um trecho
da narrativa de Quitéria sobre a sua passagem pela terra.

6.2.4 O mito de Quitéria

Moça, eu sou do Nordeste. Eu nasci numa cidade pequena chamada Juazeiro.


Só que lá era muita pobreza, e os meus pais queriam vir embora para onde
mexia com café, onde estava florescendo a riqueza do país. Só que neste
intervalo a minha mãe morreu. Eu tinha sete irmãs, e era a mais velha. E
ainda tinha mais um irmão. Esse meu irmão foi dado pros outros, foi para a
casa do fazendeiro onde meu pai trabalhava. Aí o meu pai começou a dar as
minhas irmãs pros outros, inclusive eu também. Ele queria vir para a capital
onde tinha mais recurso. Aí eu era muito novinha e fui parar na casa de uma
família para ser empregada. Essa família veio pra São Paulo em 1920 e
pouquinho. Aí nós viemos embora pra cá. Só que nisso eu fui crescendo e o
meu patrão começou a se interessar por mim. Então eu estava com uns dez,
onze anos e ele me estuprou. Eu não sabia o que estava acontecendo direito.
Aí eu fiquei esperando neném com 13 anos. Aí a mulher do meu patrão
descobriu e me bateu muito, me surrou muito, eu perdi o neném. E daí ela me
pôs na rua. Nesta rua foi que eu fiquei perdida.

Vivendo na rua, como prostituta, Quitéria relatou que sofreu toda sorte de
violências. Esses maus-tratos iam desde surras até roubos de seu pequeno patrimônio
adquirido arduamente com seus clientes. Para se defender desses abusos, com outras
prostitutas, teve de matar alguns rufiões, atos que depois de sua morte, levaram-na a viver
entre os espíritos de pouca luz: “Foi assim que eu me tornei pombagira. Foi porque matei
esses homens maus que me roubavam”. Explorada e maltratada, passou a buscar
intensamente um lugar para viver, até que, depois de muita procura, encontrou o cabaré de
uma francesa, com quem, pouco a pouco, foi aprendendo segredos ligados às artes do amor.
Tal prostituta surgiu então como um modelo para Quitéria no que se
relacionava não somente à construção de uma ars erótica como também a uma série de
comportamentos e gestos referentes à finesse das francesas, que compunham os bas-fonds
das cidades brasileiras. Referindo-se à prostituta, Quitéria enfatizou que a imitava em tudo:
142

Eu achava ela o extremo do chic, da elegância. O modo de sentar, o


modo de agir, o modo de conversar, até o modo de sorrir. Eu falo
muito com as minhas pombagiras desta casa: as pombagiras não
têm que fazer escândalo. As pombagiras que fazem isto são
pombagiras de muito pouca luz. Estão nas trevas e são pessoas que
viveram cá em péssimas condições, em péssimos prostíbulos.

Tomando como referência os modos e modas da francesa que conheceu,


Quitéria passou a conhecer e a ter como valor atitudes femininas ligadas a uma certa
distinção, longínqua das mulheres da rua. Assim, chegava mesmo a defender uma estética
e, mais do que isso, um ethos, que distinguia as prostitutas de classe das outras,
consideradas vulgares. Em sua opinião, os comportamentos ligados às pombagiras
constituíam um indicador que marcava não só diferenças idiossincráticas, mas, sobretudo,
desigualdades e hierarquias no panteão da umbanda.

Remetendo às idéias de Perrot, observa-se a importância dos silêncios


imputados aos corpos femininos na construção de discursos e modelos, até mesmo de
personagens como Quitéria, uma figura caracterizada por um comportamento sexual
“desviante”. No discurso e comportamento dessa pombagira, tal “distinção” relacionava-se,
sobretudo, à sua adequação a uma conduta que lhe garantia status e aceitação na cena
pública. No entanto, tal como ela ensinava às madames, no mundo privado e íntimo tal
silêncio deveria ser rompido para que a mulher pudesse se utilizar de linguagens e saberes
relativos à sensualidade.

Sobre a prostituição em sua época, Quitéria traçou um quadro de fortes


desigualdades entre tipos de meretrizes:

Existiam aquelas prostitutas que não tinham dinheiro nem para comprar o seu
almoço. Então, o pão com ovo era o alimento delas. Então, elas tinham que se
prostituir por qualquer dinheiro para comprar alguma coisa para comer. E eram
mulheres brigadeiras, eram mulheres que roubavam, que foram presas. Porque há
uma diferença entre as pombagiras: Há aquelas bem encaminhadas, que
comandavam os cabarés, que controlavam situações e bando de mulheres, e há
143

aquelas bem vulgares mesmo, que matavam e roubavam por qualquer coisa. Essas
estragavam muitas famílias.

Feitos esses comentários, a história de Quitéria encaminhou-se, então, no


sentido de destacar alguns fatos que mudaram o curso de sua vida. Vivendo naquele cabaré,
a pombagira, mencionou que conheceu homens importantes, cujo interesse por ela levaram-
os a ajudá-la:

Aí, eu conheci um delegado que ficou gostando muito de mim. Depois, um coronel
que ficou gostando muito de mim. Eu conheci um homem que era muito forte na
época, que era industrial. Ele gostava muito de uma mulher que trabalhava comigo
num cabaré, uma mulher mais velha. E ele levava o filho dele pro cabaré. O filho
dele começou a freqüentar e logo começou a me ajudar. Aí, foi que eu comecei a
montar um cabaré pra mim, na Avenida Paulista. Eu já estava com mais de trinta
anos. Aí foi que a minha vida começou a melhorar. Eu fui conhecendo as meninas
todas da região e fui pegando as melhores. O coronel me ajudava muito, o industrial
me ajudava muito, e aí eu fui montando uma casa. E aí eu comecei a ter maldade. A
dar valor ao que precisava, dar valor a mim e às minhas coisas.

Como relata Quitéria, a perspectiva que surgiu para ela enquanto prostituta
foi aquela referente às relações com figuras masculinas poderosas. Diante desse fato, a
pombagira colocou à sua disposição aquilo que tais homens, ambiguamente, mais temiam e
mais desejavam nas ditas “mulheres alegres”: a sua sofisticada ars erótica. Aliás, era,
sobretudo, desse saber erótico que ela enquanto pombagira se vangloriava, atribuindo-lhe o
poder tanto de tirá-la da miséria quanto de mantê-la prestigiosa até sua morte. Aqui, a
narrativa de Quitéria menciona a ajuda de tais homens sem vinculá-la a nenhum tipo de
cobrança que lhe tolhesse a liberdade. No nível discursivo, a liberdade vivenciada pela
pombagira era encontrada tanto nos seus relacionamentos com figuras masculinas como no
fato de recusar o papel de mãe. Nesse sentido, a entidade destacava que mais do que não
gostar de crianças, lançava mão do aborto para evitá-las.

Renegando a pobreza de onde emergiu, assim como a condição de “mulher


do lar”, Quitéria sublinhou que viveu cercada por importantes figuras masculinas até o fim
de sua longa vida. Por ocasião de sua morte, era uma mulhere rica, prestigiosa e que ainda
exercia com competência o saber erótico de que tanto se orgulhava. Aliás, para ela, teria
sido esse erotismo refinado, exercido com figuras da elite, que a tornou rica e que lhe
144

garantiu, até mesmo na velhice, o status de parceira predileta dos homens poderosos com
quem conviveu.

6.2.5 Alguns comentários sobre o mito

Narrado de forma esquemática, o mito de Quitéria condensa aspectos de um


Brasil marcado por forte herança patriarcal, cujo contexto histórico e social, fundamentado
na desigualdade entre as camadas da sociedade e os papéis de gênero, vem marcando a
trajetória de significativa parcela de brasileiros e brasileiras miseráveis. Nessa grande
massa de excluídos destacam-se, sobretudo mulheres que, desde a infância, tornam-se
vítimas de toda sorte de abusos, inclusive aqueles relacionados à sexualidade.

Aqui, vale abrir um parêntese para situar a figura mítica de Quitéria no


contexto que o seu mito evoca: a belle époque paulista. Para tanto, é necessário mencionar
aspectos correlacionados à cultura dos centros urbanos brasileiros de inícios do século XX,
especialmente a notória influência de elementos da cultura francesa nesse universo.

Reproduzindo modelos culturais presentes nos centros europeus, as cidades


brasileiras da belle époque eram palco de uma nítida divisão de trabalho e de espaços
sociais relativo às categorias masculino e feminino. Se aos homens cabia assumir
importantes papéis e funções públicas, às mulheres ficava reservada a nobre missão de
fazer e administrar os trabalhos do lar. Aquelas que ousassem transgredir esses limites,
socialmente instituídos, facilmente cairiam na categoria das “mulheres públicas” ,
tornando-se, assim, objeto de estigma. Por desrespeitarem os limiares reservados aos
domínios afetivo e sexual feminino, essas mulheres representavam a antítese da honra e da
virtude, inserindo-se no pólo das “mulheres-putas”, categoria que se opunha à das
“mulheres-mães” (BIRMAN, 1995).

Ora, é nesse contexto que se insere a figura de Quitéria, ou seja, num


universo social em que a esfera pública ficava reservada ao poder masculino, restando à
145

mulher as funções desempenhadas no lar. Decorre daí essa tensão relativa aos desejos
femininos e ao poder de mando masculino que circunscreve a figura da pombagira,
colocando em foco, mais uma vez, as oposições entre a mulher sedutora e livre do controle
masculino e a mulher respeitável e subordinada às relações de família e casamento.

Excluída desse espaço destinados às mulheres honradas, Quitéria consegue


se estabelecer e escapar da invisibilidade e da injustiça social, graças às alianças que
construiu com o poder masculino, representado por algumas de suas figuras emblemáticas.

Aqui, o termo “mulher pública”, reservado pejorativamente às prostitutas,


qualifica uma mulher que adquiriu riqueza e se manteve dona de uma certa parcela de
poder, exatamente pelo fato de saber lidar bem com a lógica da patronagem. Ora, é
sobretudo, tal exercício que, no contexto brasileiro, torna-se essencial para garantir aos
indivíduos desprovidos de poder uma certa mobilidade social, além de proteção contra um
sistema de leis que os penalizavam, muitas vezes, injustamente.

Conscientes das reinterpretações particulares sofridas pelos estereótipos da


prostituta, fato que os leva a adquirir, aqui e ali, tonalidades que lhe são próprias,
destacamos alguns olhares sobre a figura da meretriz a partir de Perrot (1998, p. 7).
Focalizando o contexto francês da belle époque francesa, essa autora mostra que tal modelo
de mulher considerada “[...] depravada, debochada, lúbrica e venal[...]” tornava-se objeto
de vergonha na cena pública. Usada como mero território de passagem, a prostituta, mesmo
que desejada, era considerada um objeto sem valor, algo vulgar com o qual se deveria lidar
de maneira escondida e escusa.

Guardando as especificidades locais, observa-se que tal modelo se repetia no


Brasil, sendo inclusive veiculado por setores ligados aos meios intelectual e científico a
partir de meados do século XIX. Valorizando a missão sagrada da mulher, essas idéias
contribuíram para vedar às mesmas os espaços públicos, já que lhes cabia a nobre função de
guardiã do lar.
146

Os seguintes comentários de Rago (1985, p. 83-84).são essenciais para que


possamos compreender os modelos de homem e de mulher construídos nas primeiras
décadas do século XX.
Vale atentar para a maneira pela qual o discurso burguês, ao estabelecer uma linha
de demarcação entre os sexos, dessexualiza a mulher. Assim, na representação
santificada da mãe-esposa-dona-de-casa, ordeira e higiênica, o aspecto sexual só
aparece se associado à idéia de procriação. O direito ao prazer é reservado ao
homem, enquanto que a mulher deve manter sua castidade, mesmo depois de
casada. A ascensão da figura da mãe, pregada pelo discurso burguês, inibe a
sexualidade conjugal: a mulher destinada à carreira da maternidade não pode
procurar o prazer no coito, e a idéia do orgasmo materno se torna algo escandaloso
ou mesmo impensável. Na verdade, a ciência médica e a psiquiatria,
posteriormente, procurarão mostrar que o homem tem um desejo sexual mais forte
do que a mulher por sua própria constituição biológica, o que, por sua vez, justifica
a busca da prostituta pelo marido que respeita a esposa, mas que precisa reafirmar
cotidianamente sua virilidade. A influências do padre, multiplicando as interdições
sobre o sexo conjugal, reforça este modelo de casal que permanece inquestionável
até a década de 60

Um ponto a ser observado nesse conjunto de idéias diz respeito às


concepções sobre a prostituta, considerada a antítese da “mulher de bem”, física e
moralmente saudável. Como aponta Rago, no Brasil de finais do século XIX é retomado o
perfil da prostituta elaborado pelo médico francês Parent-Duchâtelet e difundido um
modelo imaginário de mulher marcado pela negatividade. Ao contrário da mulher casta,
pura e submissa aos ideais de mãe e esposa, a puta é aquela que, tendo aversão ao trabalho
honesto, vive em busca do luxo e da devassidão. É este modelo imaginário que busca dar
conta do perfil e dos comportamentos da prostituta: mulher marcada pela corporeidade e
olhar libidinoso, pelo andar e gestualidade ultra-sensualizados, mulher que ostenta o
comportamento marcado pelo signo da excessividade: o excesso do fumo, do álcool e do
sexo.

Ao invés de se comportar como as moças ou esposas castas e honestas, a


prostituta é vista como um tipo de mulher cuja conduta se pauta na “satisfação de seus
desejos libidinosos e devassos” (RAGO, 1985, p.89). Sua corporeidade, seus
comportamentos e seu caráter distinguem-nas e colocam-nas junto àqueles indivíduos e
grupos desprovidos de valor:
147

Ela tem um andar, um sorriso, um olhar, uma atitude que lhe são próprios;
é preguiçosa, mentirosa, depravada, extremamente simpática ao álcool,
despreocupada do futuro, e muitas vezes destituída de senso moral
(RAGO, 1985, p. 89).

Ora, esse imaginário construído a partir de dois pólos, representados, de um


lado, pela prostituta ou a “mulher da vida” e, de outro, pela “dona-de-casa” ou a “mãe- de-
família”, trazia consigo um conjunto de signos que conformavam padrões estéticos distintos
e contrastivos.

Conforme essa lógica, as figuras femininas deveriam evitar os exageros do


riso e sorrir com discrição, assim como se pronunciar em tom de voz elevado. Os olhares e
gestos deveriam ser discretos. Todo esse controle gestual e expressivo garantia a
permanência das mulheres de família num patamar moral marcado não somente pela
diferença, mas também pela superioridade referente àquele no qual se inseriam as
“mulheres alegres”.

No pólo oposto encontravam-se as chamadas “mulheres públicas”,


“licenciosas”, caracterizadas pela maneira de vestir, pelo comportamento pouco
convencional, cuja estética primava pelo exagero na maquiagem e nos adereços. Essas
prostitutas são retratadas a partir da descrição de um importante memorialista brasileiro.
Referindo-se a uma viagem de trem que fez em 1917 do Rio de Janeiro a Belo Horizonte,
Nava (1976, p. 98) descreve a seguinte cena, presenciada num vagão:
Fiquei bestificado com a quantidade de mulheres de pernas cruzadas, mostrando até
acima dos laçarotes das ligas, que ali gargalhavam em todas as línguas, com
senhores em trânsito e caixeiros viajantes. Eram quase todas oxigenadas e
fantasticamente pintadas, sobretudo a boca, e os olhos. Riam alto, davam gritinhos,
fumavam por piteiras enormes e todas obedeciam cegamente às injunções de certa
abelha-mestra de cabelos espichados para trás. Sem pintura, pele de marfim e porte
soberano.

Tais referências, que dão conta dos padrões históricos de conduta, das modas
e modos femininos, defrontam com comportamentos então atribuídos às prostitutas. Tais
148

elementos, reinterpretados, constituirão um conjunto de gestos, expressões, performances,


enfim, estereótipos veiculados pelas pombagiras.

Alguns desses elementos, tal como a piteira, é destacado num texto de


Gibbal sobre uma de suas visitas realizadas a um terreiro de Porto Alegre, ocasião em que
se surpreendeu ao assistir a uma cena de possessão na qual uma pombagira, de
comportamento extremamente refinado e sensual, remetia-o ao ambiente dos nights clubs
de inícios do século XX. Portando uma piteira, à moda das “divas” dos anos vinte, essa
pombagira havia, inclusive, trocado o tradicional trio de atabaques dos terreiros por
gravações musicais do contexto em que vivera. Desafiando uma moralidade que
conformava modos femininos de sua época, era ao som dessas músicas que a pombagira
colocava em cena a sua gestualidade e presença, marcadas por um tipo de finesse
sutilmente transgressora.

Tais descrições e análises ajudam a entender, especialmente, aspectos das


festas dedicadas à Maria Quitéria. Tratava-se, com efeito, de cenas de possessão nas quais a
pombagira surgia efusiva, comandando as mulheres de seu cabaré. Ali, grande parte das
pombagiras se apresentava com expressões, gestos e performances desafiadoras das normas
que constrangiam as mulheres na época do cabaré de Quitéria, ou seja, as primeiras décadas
do século XX. Dentre essas, destacava-se o comportamento de fumar em público e, mais
que isso, de transformar esse ato numa performance extremamente irreverente e sedutora.

Essas performances vieram se reatualizando ao longo do tempo, ligadas à


construção de figuras femininas marcadas pelo erotismo e sedução. Aqui, depara-se com a
figura da mulher fatal: uma imagem do feminino ao mesmo tempo temida e desejada. Sem
reduzir a riqueza do imaginário criado em torno da pombagira, pode-se afirmar que esta
entidade se apresenta nos terreiros associada às mulheres cujo maior atributo é exatamente
o seu poder de sedução.
149

Opondo-se a toda uma literatura que enfatiza a mera efemeridade do sucesso


e dos momentos de glória das prostitutas, cuja vida necessariamente desemboca numa
velhice decadente e solitária, o mito de Quitéria aponta para outra dimensão. Afinal, o que
ele sublinhará é exatamente o contrário: a possibilidade de figuras feminina situadas fora da
esfera do lar e dos rígidos cânones morais que o estruturam serem bem sucedidas e
tornarem-se poderosas a partir de seu alto poder de sedução e erotismo aliados à sua
esperteza.

Vale observar que, mais do que focalizar aspectos dramáticos da vida de


milhares de mulheres, o mito revela aspectos de um Brasil tradicional, socialmente injusto e
altamente pessoalizado, no qual os indivíduos somente adquirem respeito e visibilidade
social por meio de fortes relações estabelecidas com pessoas e grupos detentores de
influência e poder. Retratando um drama pessoal, o mito de Quitéria revela um drama
brasileiro, construído e marcado por uma série de violências e explorações. Tal quadro
social é exatamente aquele que ao longo da história vem penalizando um número
significativo de mulheres situadas numa condição de marginalidade quase sempre
irreversível.

Se Quitéria escapou dessa condição, tal fato se liga às suas alianças com
homens prestigiosos que a ajudaram em troca de seu saber erótico. Sem o prejuízo de sua
liberdade e, aliás, se utilizando dela e de sua esperteza, ela se estabelece num mundo social
que lhe era adverso valendo-se principalmente da lógica da patronagem.

Enquanto boa conhecedora de regras e códigos que regulavam condutas


femininas nos universos da casa e da rua, Quitéria acionava essas normas de acordo com o
contexto em que transitava. Se, de um lado, ela se valia de etiquetas e de uma aparente
moralidade “da casa” para acompanhar os homens da sociedade nos ambientes finos que
freqüentavam, de outro, a sua vivência no mundo das ruas e dos cabarés permitia-lhe valer-
se muito bem das normas referentes a esse domínio. Tal competência levou-a, inclusive,
enquanto dona de cabaré, a reproduzir os mesmos mecanismos de exploração de que fora
vítima enquanto mera prostituta. Utilizando-se desses códigos e modelos que conhecia bem
150

e acionando-os no momento devido, Quitéria tornou-se uma mulher poderosa, no que se


relacionava tanto ao exercício de uma feminilidade altamente erótica quanto ao seu poder
econômico e à sua visibilidade no universo dos bas-fonds. Comparando esse mito com o de
outras pombagiras, que só após a morte libertaram-se do poder de mando masculino,
observa-se que foi agindo nos interstícios desse mundo público reservado aos homens que
Quitéria conseguiu realizar-se ainda em vida como pessoa.

Inspiradando-me em Birman, quando esta antropóloga analisa a figura da


pombagira Maria Angélica, retomo o argumento de Ovídio de Abreu Filho sobre o mito de
Dona Beja, personagem cuja construção simbólica articula determinados atributos
femininos e masculinos, de modo a criar uma figura feminina que guarda dos dois gêneros
suas propriedades consideradas mais positivas. No caso de Dona Beja, a beleza feminina
articulada ao poder masculino. Podemos desse modo, observar que a figura de Quitéria
também articula fortes atributos de feminilidade e virilidade que, histórica e socialmente,
vêm orientando a construção das noções de gênero no contexto social brasileiro.

Se a beleza e a sensualidade feminina se articulam ao poder masculino para


marcar fortemente a pombagira Maria Angélica (BIRMAN, 1995), no caso de Quitéria o
seu poder de sedução “feminino” surgirá conjugado a outros atributos, não menos
importantes, na caracterização do “masculino”. Assim, no âmbito das representações
tecidas sobre a pombagira, essa sedutora mulher surgirá com um temperamento autoritário,
independente, valente, agressivo, audaz, conquistador, polígamo, infiel e ativo, atributos
que no contexto brasileiro tornam-se representativos da noção de “virilidade” (MISSE,
2005, p. 26).

Em um contexto sociocultural como o brasileiro, no qual as noções de


masculino e feminino adquirem importância crucial na classificação de indivíduos e grupos,
o que poderia representar um personagem capaz de condensar tão fortemente atributos de
cada um desses pólos construídos em meio a relações de contrastes e complementaridades?
151

Tal atributo acaba por inseri-la numa situação ambígua com relação ao eixo
classificatório construído em torno das noções de homem e de mulher, fato que torna a sua
figura repleta de ambivalências e, por conseguinte, dotada de poder. Dessa maneira, caem
por terra estereótipos que reificam a imagem da prostituta explorada, cujos ganhos são
extorquidos pelos rufiões, cuja velhice transcorre solitária, no abandono e na pobreza.
Maria Quitéria se afasta desse tipo de caracterização veiculada por visões moralistas, para
se apresentar como personagem famosa em vida. Aqui, o preço a pagar surge após a sua
morte, quando, condenada por uma doutrina, tem de voltar a terra para responder pelos
crimes que cometeu.

Se parte significativa de sua vida transcorreu no brilho dos salões de um


cabaré, a morte a coloca no “vale das trevas”, lugar que ela deixará, gradualmente,
voltando a terra para “trabalhar” e “fazer caridade”. Relembrando aspectos do mito,
observa-se que na sua narrativa, assim como nas performances que o evidenciam, a
prostituição surge como um caminho legítimo e dotado de extrema eficácia para a
construção de vínculos sociais e para a inclusão do feminino liminar, numa sociedade
extremamente pessoalizada como a brasileira. Ao invés de uma condenação moral da figura
da puta, o que assistimos é a afirmação de sua fama e glória, construídas por meio de
atitudes marcadas pela esperteza e, até, por certo grau de “malandragem” (DAMATTA,
1984). Nesse ponto, os limites de uma certa ética caem por terra para evidenciar códigos
morais pouco rígidos, que podem ou não ser acionados de acordo com determinadas
situações.

Contemplados com uma surpresa, deparamo-nos com algo procurado desde


o conhecimento da cantiga que saudava a pombagira e a denominava de “puta gostosa”. Se
nas sessões e festas das casas pesquisadas apareciam somente performances que,
moderadamente, evocavam esse feminino transgressor, foi nas sessões privadas do terreiro
de Pai Carlos que essa figura, tão presente no imaginário brasileiro mostrou-se
explicitamente por meio da fala e das performances de Quitéria.
152

Observamos que essa narrativa somente se tornou possível num espaço


privado, ou seja, numa situação que resguardava a casa de quaisquer prejuízos ou danos
relativos à sua moralidade. Tal fato permite destacar os limites que circunscrevem as
performances e narrativas criadas e reinterpretadas nesses espaços, elementos essenciais
para constituírem o domínio pressentido, mais precisamente aquele referente ao “modo
subjuntivo” da cultura, aos seus dramas e suas metáforas.

6.2.6 A festa de Quitéria

Ela gira no ar, ela gira na praça, ela gira na rua.


Ela canta, ela dança, ela vive sorrindo em noite de lua.
Salve, salve a pombagira.
Que sai da encruzilhada para alegrar nossa vida .
(ponto de terreiro)

Numa noite de maio, cheguei ao terreiro de Pai Carlos por volta das oito
horas da noite, para mais uma das festas realizadas em homenagem à Maria Quitéria, a
pombagira incorporada pelo pai-de-santo e líder da casa. Encontrei o salão iluminado,
ornamentado com flores de papel colorido e já com algumas pessoas na assistência.
Seguindo o conselho de alguns candomblecistas do terreiro, procurei chegar um pouco
antes do horário marcado para o início da festa, pois se tratava de um evento muito
concorrido, que a cada mês de maio lotava os espaços do terreiro.

De fato, observei que poucos minutos após a minha chegada não havia mais
lugares nos bancos destinados à assistência. Os que chegavam passavam a se aglomerar na
parte lateral do salão e, até mesmo, na escada de acesso ao terreiro.

Logo na entrada do salão, situavam-se alguns homens que ocupavam cargos


elevados na hierarquia do terreiro. Observando atentamente as pessoas que chegavam e
recebendo com reverência os convidados especiais, esses integrantes da casa cumpriam, ao
mesmo tempo, o papel de anfitriões e mantenedores da ordem do terreiro.
153

Tratava-se de uma festa muito atrativa, que fazia convergir para o terreiro
uma diversidade de pessoas ligadas ao povo-do-santo: ialorixás e babalorixás amigos ou
vinculados àquela casa, assim como filhos-de-santo de menor status na hieraquia do
candomblé, além de clientes de Maria Quitéria e simples curiosos. Diante desse público
numeroso e heterogêneo, zelo não poderia faltar.

Aliás, mais do que atenção com o rito, esses filhos-de-santo tomavam um


extremo cuidado com os vários itens da festa. Aos meus olhos, pareciam proteger ou velar
algo muitíssimo significativo. Suas palavras e gestos refletiam um esforço para manter tudo
nos seus devidos lugares. Na verdade, era essencial que nenhum acidente ou contratempo
tirasse o brilho daquele evento.

No espaço destinado à assistência, destacavam-se, sobretudo, pessoas de


origem humilde, muito bem trajadas, com roupas coloridas e festivas. Dentre o público, de
idade variada, encontravam-se homens e mulheres, alguns casais de namorados e pequenos
grupos familiares, às vezes, compostos por mulheres e crianças acompanhadas por
familiares mais velhos.

Um número significativo de pessoas trazia presentes para Maria Quitéria:


garrafas de vinho e champanhe, rosas, além de grandes e belos arranjos florais (com
predominância de rosas vermelhas, a flor predileta daquela pombagira).

Conversando com Julieta, uma dessas convidadas que trazia flores, inteirei-
me de que ela era integrante de outro terreiro ligado àquela casa de culto e de que havia
recebido um recado da própria pombagira recomendando-lhe participar da sua festa. Aliás,
ela trazia um buquê de flores, que havia sido cuidadosamente encomendado numa das
floras do Mercado Central de Belo Horizonte, para ser ofertado à Quitéria.

No espaço lateral do salão, já lotado e próximo à porta de entrada, percebi a


presença de duas mulheres muito elegantes, cujos finos trajes e acessórios, no rigor da
154

moda, distinguiam-nas do público humilde ali presente. No momento em que as vi,


lembrei-me de alguns comentários a respeito de uma certa cliente de Maria Quitéria, uma
mulher muito rica que freqüentava o terreiro e encomendava trabalhos à pombagira.
Comentava-se até que o vestido a ser usado pela pombagira naquela festa, objeto de
expectativa por parte dos membros da casa, tinha sido um presente daquela “madame”.

Aqui, é necessário abrir novo parêntese para enfatizar um aspecto


fundamental relacionado à convivência do povo-do-santo com seus exus e pombagiras. No
universo do candomblé e da umbanda, atribui-se a essas entidades um amplo poder de
mediação no mundo concreto. A partir de crenças que conferem às entidades o poder de
resolver múltiplos problemas e de atender a desejos pessoais, é criado um amplo espaço de
trocas simbólicas, no qual pessoas oferecem presentes a essas entidades visando obter seus
serviços mágicos. Decorria desse fato o grande número de dádivas trazidas ao terreiro,
tanto por pessoas que pretendiam obter os favores da pombagira quanto por clientes que
vinham agradecer-lhe por seus trabalhos, na maioria das vezes, considerados muito
eficazes.

Trajando roupa festiva, que o distinguia de seus filhos-de-santo, vestidos


ritualmente de branco, o líder da casa abriu a festa falando algumas palavras sobre a
homenagem que seria realizada para Maria Quitéria naquela noite. Em seguida, apresentou
os convidados pertencentes a outras casas de candomblé vinculadas ao terreiro, aos quais
foram concedidos lugares especiais, situados contiguamente ao espaço que, durante o rito,
seria ocupado por Maria Quitéria, dentre outras pombagiras.

Seguindo as etapas prescritas para as festas de candomblé, esse evento


iniciou-se com o padê: rito introdutório que saúda os exus e os despacha para as ruas e
encruzilhadas, onde eles se incumbem de levar os pedidos aos orixás, realizar trabalhos,
vigiar e proteger o terreiro.
155

Em seguida, começaram os toques e canções para a descida das pombagiras,


práticas que culminaram com a incorporação de Maria Quitéria e das outras pombagiras de
seu cabaré. Uma vez incorporada pelo pai-de-santo, Quitéria começou a abraçar ou,
simplesmente, a tocar nos médiuns do terreiro, os quais, a partir desse contato corporal com
a entidade, foram incorporando a sua pombagira.

Uma vez virados, esses médiuns foram retirados do salão por outros
integrantes da casa incumbidos de vesti-los e maquiá-los longe dos olhos da assistência.
Seguiu-se então um momento de grande expectativa ligado à aparição de Maria Quitéria e
das pombagiras por ela comandadas. Esta etapa ritual foi marcada por uma drástica redução
de luz no espaço destinado aos médiuns incorporados, elemento essencial para que ali fosse
reproduzido o ambiente do cabaré, onde Maria Quitéria teria trabalhado e vivido antes de se
tornar um espírito.

O rito ali apresentado colocava em cena o imaginário criado em torno da


pombagira, destacando a sua capacidade de sedução, a sua liderança sobre as mulheres de
seu cabaré e, enfim, as suas vestes elegantes de mulher rica e poderosa.

Além da baixa luminosidade do salão, podia-se perceber um predomínio da


luz vermelha, um elemento representativo dos antigos cabarés e prostíbulos nas cidades
brasileiras. Outro elemento marcante na ambientação da festa era o tridente luminoso
colocado em evidência no alto de uma das paredes do salão.

Depois de criada a ambiência que agradaria aos exus, deu-se início à


segunda parte da festa, cuja cena principal construía-se mediante a recriação do famoso
cabaré. Mais uma vez, o mito da pombagira retornava, para ser recriado e revivido
(LEENHARDT, 1987) por meio de performances e elementos simbólicos compartilhados
por uma parcela significativa de pessoas ali presentes.
156

Se, de um lado, esses ritos de homenagem à Quitéria tendiam a se repetir a


cada ano, recorrência que remetia às tradicionais festas de família, de outro, exigiam certo
grau de inovação, sob pena de se tornarem enfadonhos e desprovidos de surpresa. Nesse
sentido, a cada ano a pombagira se apresentava de forma diferente, com uma indumentária
nova, fato que suscitava comentários. Afinal, eram os novos detalhes que conferiam um
sabor à festa, despertando certo frisson nos integrantes do terreiro.

A cena ritual ligada àquela prestigiosa prostituta tinha como destaque a


figura de Maria Quitéria, incorporada pelo pai-de-santo da casa. Liderada por Quitéria, a
fila composta pelos médiuns “virados” em suas pombagiras deixou o interior do terreiro e
percorreu o espaço ritual até que seus integrantes se diluíssem no local destinado às suas
performances.

O requinte da ocasião evitava a simplicidade e, ao contrário, tendia ao


exagero. Oscilando entre o carnavalesco e o Kitsch, as indumentárias traziam uma profusão
de elementos brilhantes: pequenos enfeites dourados sobre os lenços de cabeça, brincos,
colares, pulseiras, franjas coroas e, até, estolas.

O clima tornou-se, então, descontraído e alegre. Isso se evidenciava na


soltura dos corpos, na informalidade dos gestos, no rodopiar das danças, nos toques e
cantos vibrantes e, enfim, no intenso colorido da indumentária dos médiuns que giravam no
salão. Com exceção da dona do cabaré, cujo comportamento demonstrava absoluta
distinção, finura e comedimento nos gestos, as pombagiras dançavam e rodopiavam
trazendo consigo um riso marcado pelo exagero, pela afetação e por certa teatralidade.
Todas essas performances constituíam elementos essenciais para a personificação das
entidades.

Quitéria estava impecavelmente vestida com trajes vermelhos que


alternavam estampados e brilhos. Sua saia era comprida e rodada. A blusa, decotada e caída
nos ombros, tinha como complemento uma estola de cor vinho. A pombagira usava sapatos
157

de salto, chapéu de abas largas sobre um lenço enfeitado com elementos dourados, além de
longas luvas pretas. Em suas mãos destacava-se uma piteira à moda dos antigos cabarés e
nigth clubs da década de 1920. Ela apresentava-se também notoriamente maquiada,
realçando o seu batom vermelho e a sombra azul que usava nos olhos. No decorrer da festa,
esta maquiagem era constantemente retocada, ora por equedis, ora pela própria pombagira.
Dona de um estilo ímpar, Quitéria articulava do luxo ao burlesco para marcar a sua figura
de sensual e gloriosa prostituta.

Enquanto dançava e cantava, Quitéria segurava performaticamente um leque


trabalhado em vermelho e preto. Aliás, este último elemento era amplamente utilizado pelas
pombagiras ali presentes, muitas delas ciganas vestidas com cores vivas e enfeitadas com
adereços brilhantes.

Na zona focal do rito, comandado por Quitéria, as outras pombagiras


cantavam e dançavam descontraidamente. Muitas daquelas pombagiras revelavam
determinadas performances que apontavam para uma feminilidade sugestivamente
erotizada. Com uma das mãos nos quadris e a outra segurando o cigarro ou a taça, essas
pombagiras locomoviam-se com a face altiva, alternando risos irreverentes e gargalhadas
performáticas. Tais risos exagerados e teatrais eram associados a outro gesto característico
dessas entidades: o jogar o tronco para trás, performance que mesclava a irreverência com
uma certa sensualidade. Eventualmente, proferiam termos chulos, sussurrados de maneira
jocosa, seguidas por expressões de deboche. Esses atos, altamente teatrais, eram realizados
por mulheres e, sobretudo, pelos adés virados em suas pombagiras.

Circundando o local onde as integrantes do cabaré dançavam, outras


pombagiras repetiam gestos que caracterizavam a incorporação de tais entidades naquele
terreiro: uma súbita queda de joelhos ao solo, seguida pelo arquear do tronco para trás, até
que a cabeça tocasse o solo. Esses gestos, seguidos de expressivas gargalhadas, evocavam a
presença de um “sagrado selvagem” (BASTIDE, 2006), que se contrastava com as
performances mais refinadas realizadas na cena principal.
158

A entidade homenageada cumprimentava os presentes com afagos


comedidos, dizendo-lhes palavras à meia-voz. Alguns convidados especiais recebiam
abraços calorosos e convites para compartilhar de sua taça. Variavam gestos e reações
diante da pombagira homenageada. Alguns convidados demonstravam grande emoção e
regozijo ao serem abraçados por Quitéria. Outros iam além. Ao serem tocados pelo pai-de-
santo incorporado, tinham seus corpos convulsionados pelo transe ritual Naquele contexto,
marcado pela possessão, esses gestos eram vistos e compreendidos como a manifestação de
entidades que, tendo encontrado passagem, regeriam daí em diante as atitudes e gestos de
seus cavalos.

Enfatizando o seu status de dona do cabaré, Quitéria deslocava-se


performaticamente pelo salão, comandando as outras pombagiras. Vez por outra,
interrompia seu giro e sentava para ser fotografada junto aos presentes que ganhara naquela
noite.

Algumas pombagiras, que não compunham o cabaré, situavam-se próximo à


assistência, oferecendo champanhe aos convidados. Dentre elas encontrava-se Julieta, que,
logo depois de ser abraçada por Quitéria, tinha virado na sua pombagira.

Aqui, é interessante enfatizar o alto grau de polidez e urbanidade dessas


interações entre pombagiras e convidados, encontros construídos por meio do oferecimento
de bebidas ou, mesmo, de conversas reservadas, que em nada feriam a moralidade do
ambiente.

A festa transcorreu alegremente, numa atmosfera soft. Os cantos e danças


duraram até a chegada da ceia, cuidadosamente preparada. Neste momento, as pombagiras
deixaram o lugar das danças para compartilhar com seus convidados a comida ritual. Já era
madrugada. A festa encerrou-se depois desta ceia. Eu então me despedi e deixei o terreiro.
159

6.2.7 Sobre a festa

Inicialmente, é necessário dizer que, mesmo depois de ter assistido a várias


festas do terreiro, fiquei surpresa e perplexa quando vivenciei pela primeira vez esta
homenagem à pombagira. Tal perplexidade decorria de um conjunto de motivos.
Inicialmente, é necessário ressaltar o alto grau de teatralidade daquela cena de possessão,
que a distinguia de outras assistidas por mim até então.

Ali, no meio da profusão de cores e brilhos, um ente sagrado interagia com


os seus convidados por meio de palavras, do contato corporal, da troca de presentes e,
enfim, do compartilhamento de bebidas e comidas rituais. Isso tudo envolto num clima
descontraído, teatral e, até mesmo carnavalesco.

Como bem observa Birman, as festas de terreiro dizem respeito a um tipo de


religiosidade que não parece seguir as grandes rupturas religiosas do Ocidente, “as quais
separam o mundo visível, sobre o qual se aplicam os critérios da ciência e da razão, do
mundo invisível, sujeito somente a ordem da crença” (Birman, 1995, p. 4). Rompendo essa
dicotomia, observa-se que nos terreiros a presença do sagrado implica, sobretudo,
concretude, dimensão que promove uma verdadeira festa para os sentidos. Tal
materialidade traz consigo o sabor das comidas rituais, as cores e os cheiros das ervas, os
brilhos e os coloridos das indumentárias, dentre outros elementos que aguçam e constroem
tipos específicos de percepção.

Um ponto a ser destacado é que o aspecto mundano da cena ritual parecia


diluir a própria noção de sagrado: algo que, por definição, opõe-se radicalmente ao mundo
profano, já que se encontra fundamentalmente recortado da ordem comum das coisas.

Tal perspectiva religiosa apontava para uma distância cultural significativa


entre a minha visão de mundo e aquela(s) referente(s) ao povo-do-santo. Explico melhor.
Se a maioria das cenas de possessão não era estranha para mim, havia nelas um conjunto de
160

idéias, valores e códigos que não faziam parte da minha própria visão de mundo e do meu
ethos.

Essas diferenças entre universos de significados e estilos de vida implicavam


diferentes percepções do sagrado, assim como maneiras diversas de lidar com a sua
presença efetiva ou com o compromisso moral e emocional evocados por seus símbolos
(GEERTZ, 1989).

Assim, o aspecto “carnavalesco” do rito visava mesmo quebrar uma certa


reverência com o sagrado, fato que certamente não acontecia com grande parte das pessoas
presentes na festa. Para a maioria daquele povo-do-santo, Quitéria era a própria presença do
sagrado incorporado, capaz de suscitar uma multiplicidade de idéias e emoções. A
possessão garantia essa presentificação da entidade, implicando a realização de
performances rituais que, certamente, tornavam-se objeto não só de admiração por parte
dos presentes como também de atenta avaliação por parte daqueles que detinham maior
saber sobre as coisas do santo.

A constatação de que uma grande maioria de pessoas acreditava interagir


com um sagrado incorporado não se fundamentava somente no registro e na interpretação
dos discursos formulados ali. Não menos importante para a constatação dessa crença, era a
observação atenta das maneiras pelas quais muitos dos convidados ali presentes interagiam
com a Quitéria e com os símbolos que lhe diziam respeito.

Em primeiro lugar, referimo-nos às fisionomias enlevadas dos filhos-de-


santo e aos seus gestos reverentes direcionados àquela entidade. Por meio de um abraço, de
um aperto de mão ou de um breve toque no corpo da pombagira, essas pessoas buscavam
receber um pouco do “axé” da entidade, o que, em outras palavras, significava compartilhar
do poder de realização e da eficácia mágica atribuída à pombagira.
161

Comentários, gestos e expressões de pessoas situadas respeitosamente diante


de Quitéria apontavam para os atributos que a dimensão do sagrado traz consigo: o seu
caráter devocional, decorrente do fato de conter em si próprio “um sentido de obrigação
intrínseca” , assim como o seu amplo poder de orientar a conduta humana (GEERTZ, 1989,
p. 143).

Nesse sentido, a presença de muitas pessoas na festa não era facultativa,


como também não era desprovida de noções e sentimentos de dever parte significativa dos
presentes oferecidos à pombagira. Esses gestos e etiquetas compunham um sistema de
prestações e contraprestações fundamentados na obrigatoriedade da dádiva (MAUSS,
2003).

A despeito de a pombagira se constituir numa figura ligada ao mundo da rua,


um domínio marcado pela imprevisibilidade e pela quebra de determinadas regras sociais, -
essa homenagem à Maria Quitéria transcorreu num clima carnavalesco, sem os excessos
que o Carnaval costumeiramente traz consigo.

Podemos mesmo afirmar que durante toda a festa os comportamentos das


pombagiras se distanciavam radicalmente daquelas descrições de pombagiras que se
desnudam ou tentam seduzir os presentes por meio de gestos ultra-sensualizados. Ao
contrário, tratava-se de performances bastante regradas, sem irrupções de gestos que
ameaçassem condutas e regras morais prescritas pela sociedade abrangente. Nesse sentido,
até o próprio consumo de bebidas alcoólicas pelas pombagiras, um item essencial na
caracterização dos exus, enquadrava-se num universo de regras sociais. Se, de um lado, as
pombagiras consumiam bebidas, esse consumo era absolutamente regrado e adequado às
suas performances na cena ritual. Ali, elas bebiam socialmente, sem provocar escândalos
ou algo parecido. E, mais do que isso, tratava-se de bebidas leves e até sofisticadas,
convencionalmente apropriadas para uma feminilidade mais refinada.
162

A observância de um conjunto de condutas e regras perpassava os vários


espaços da festa, dizendo respeito ao controle das possessões, assim como aos
comportamentos daqueles que compunham a assistência.

A manutenção da ordem nestes dois espaços marcava e atualizava a


hierarquia tanto do terreiro quanto a de seu mundo espiritual. No lugar destinado às
performances das pombagiras, Quitéria reinava soberana, controlando a cena ritual com a
ajuda das “equedis”. O controle reservado à assistência ficava sob a responsabilidade de
alguns filhos-de-santo, situados em altas posições hierárquicas da casa. Era assim que a
festa transcorria, projetando, nitidamente, os princípios hierárquicos da casa.

Nesse espaço ordenado e, até certo ponto previsível, sobressaíam


comportamentos relacionados à inversão dos papéis de gênero. Afinal, a própria entidade
homenageada surgia na cena ritual incorporada por um homem que, uma vez virado na sua
pombagira, comportava-se de maneira notoriamente feminina. Esse comportamento de
Quitéria atualizava-se por meio de vários elementos: a indumentária de caráter festivo
marcada pelo luxo, o uso da piteira irreverentemente colocada no canto dos lábios, o seu
olhar sedutor e, enfim, a sua voz feminina e algo estereotipada.

O mesmo ocorria com outros filhos-de-santo adés, que surgiam na cena


ritual vestidos, enfeitados e maquiados como mulheres. Partindo de certas lógicas ligadas
aos ritos do povo-do-santo, destacamos que, apesar das desconfianças e reprimendas dos
terreiros sobre as falsas possessões, naquelas situações festivas esses comportamentos,
provavelmente, não seriam objeto de crítica e repreensões, na medida em que eram
necessárias para a composição da cena ritual ali realizada.

Tal como acontece entre o povo-do-santo, naquela casa de candomblé


compartilhava-se a crença em espíritos cujas idiossincrasias os tornavam seres singulares
com relação à forma de vestir e de se adornar. Na práxis da possessão, tais atos
relacionavam-se à obrigatoriedade dos médiuns de se vestirem e de se enfeitarem de acordo
163

com o gosto e o capricho de suas pombagiras. Pessoas que recebem essas entidades relatam
o quanto preocupam-se em atender-lhes o gosto. Isto reflete o cuidado especial
demonstrado na confecção de vestidos com tecidos e modelos que respondam a preferência
e aos pedidos das entidades. Estes são conhecidos, sobretudo, por meio de sonhos,
presságios e sinais, supostamente, atribuídos às entidades.

Apesar de o imaginário sobre a figura da pombagira enfatizar o seu caráter


livre e, mais do que isso, transgressor, aquela cena de possessão colocava em foco
performances de certo modo carnavalescas, mas sem qualquer tipo de elemento que
comprometesse a moralidade do terreiro.

Com efeito, enfatiza-se que se a possessão traz consigo um idioma capaz de


abarcar idiossincrasias relativas à manifestações das várias pombagiras ali presentes.
Naquele evento essa linguagem era compartilhada pelos membros do terreiro, obedecendo a
cânones e regras no que concernia aos gestos e comportamentos morais da casa.

Além de inversões relativas aos papéis de gênero, experimentadas por


homens cuja aparência e conduta destacavam elementos notoriamente femininos, havia
também outro tipo de mudança significativa, relacionada ao comportamento das mulheres
incorporadas por pombagiras. No espaço animado pela música, pela dança, pelo riso e,
enfim, pelos requebrados e rodopios característicos dessa entidade, ocorria a quebra de um
silêncio histórico e socialmente construído em torno do corpo da mulher. Desafiando certos
cânones morais que, até poucas décadas atrás, associavam o ato de fumar e de ingerir
bebidas alcoólicas publicamente às mulheres de moralidade duvidosa, as pombagiras
fumavam e bebiam enquanto dançavam aos sons dos atabaques. Reverenciando essas
entidades, alguns filhos e filhas de santo cuidavam de lhes encher as taças e de provê-las de
cigarros e cigarrilhas.

Nesse ponto, algumas mudanças de comportamento eram mais facilmente


perceptíveis em algumas senhoras, cujo cotidiano era perpassado por uma rígida
164

moralidade no nível de suas indumentárias e condutas. Contrariando essa rigidez,


observamos mudanças em suas posturas e expressões faciais que apontavam para uma
maior liberdade. Resumidamente, podemos afirmar que, viradas em suas pombagiras, essas
mulheres apresentavam fisionomias e gestualidades mais soltas e extrovertidas do que
aquelas referentes à vida cotidiana. Destacamos nesse contexto, a importância daquela cena
de possessão para a construção de um mundo mítico permeado por personagens e, afinal,
alteridades dotadas de um maior grau de liberdade do que comumente é permitido aos
homens e às mulheres no seu cotidiano.

Donos de comportamentos mais livres, os integrantes e freqüentadores do


terreiro se viam diante de performances, corporeidades, gestos, falas e, enfim, experiências
subjetivas mais ricas e densas do que aquelas referentes ao seu cotidiano. Guardando certos
cânones morais referentes ao terreiro e à sociedade que o circunscrivia, esses indivíduos
podiam vivenciar certas perfomances e experiências mais livremente, sem serem vistos
como “outsiders”.

Nesse ponto, sublinha-se uma perspectiva que não absolutiza a liberdade


desses indivíduos diante dos aspectos citados acima, uma vez que, mesmo no terreiro,
verificam-se tensões que, em maior ou menor grau, constrangem seus integrantes e, dessa
maneira, criam modalidades específicas de vivenciar o que Turner denomina “modo
subjuntivo” da cultura. Tais aspectos serão tratados adiante, quando focalizarmos tensões
encontradas entre as pombagiras e determinadas categorias de gênero representadas por
mulheres, homens, bichas e adés.

6.3 Pesquisando no terreiro de Mãe Mariinha

O terreiro de Mãe Mariinha era assumidamente identificado como uma casa


de caridade ligada à umbanda e tinha como líder uma mãe-de-santo cuja vida religiosa se
iniciara no candomblé.
165

Nessa casa, pude estabelecer importantes contatos com algumas mulheres


que recebiam pombagiras e, sobretudo estreitar relações com Mãe Mariinha, a líder do
terreiro, cuja pombagira era Maria Bonita, uma personagem ligada ao cangaço. Era esta
entidade que a ialorixá recebia três dias a cada semana e com quem trabalhava conversando
e aconselhando aqueles que procuravam o seu terreiro.

O primeiro contato com Mãe Mariinha ocorreu em agosto de 2003, graças à


indicação de uma pessoa que tinha sido seu filho-de-santo por um período de tempo
significativo. Sem marcar previamente uma entrevista, cheguei ao terreiro, que funcionava
no andar térreo de uma casa localizada na confluência de uma rua asfaltada com um beco
que dava acesso à Vila Nossa Senhora dos Passos. O local, popularmente conhecido como
"Buraco Quente", situava-se nas proximidades do centro da cidade, tendo como vizinhança
o bairro da Lagoinha e a Pedreira Prado Lopes, antiga favela de Belo Horizonte, marcada
por extrema pobreza e pela violência decorrente do tráfico de drogas.

Depois de assistir a uma sessão, apresentei-me à mãe-de-santo como amiga


de seu antigo filho-de-santo e mestre de capoeira, expondo-lhe minha intenção de realizar
uma pesquisa no terreiro. Prontamente recebi dela permissão para começar o trabalho.

Tão logo iniciei minhas pesquisas no terreiro, observei que suas lideranças
acentuavam seu valor quanto a aspectos relacionados às suas raízes negras. Tais atitudes e
sentimentos transpareciam fortemente quando os familiares de Mãe Mariinha enfatizavam o
valor das manifestações lúdicas, artísticas e religiosas ligadas aos grupos negros. Dentre
essas, a que mais se destacava, depois da umbanda, era a capoeira. Valendo-se dos
estereótipos que desqualificam essas manifestações culturais no contexto brasileiro, alguns
membros do terreiro se apresentavam jocosamente para mim, dizendo: “Aqui todo mundo é
macumbeiro e capoeirista”.
166

Nas semanas que se sucederam a esse primeiro encontro, voltei ao terreiro


para consultar os búzios jogados por Mãe Mariinha, oportunidade que me facilitou os
contatos com a mãe-de-santo e com alguns integrantes da casa.

Na entrevista que realizei com a ialorixá, inteirei-me de que aquele terreiro


de umbanda existia há quase quarenta anos, mas somente há aproximadamente uma década
tinha sido registrado na Federação Espírita Umbandista de Minas Gerais. Até cerca de vinte
anos atrás, o terreiro fora liderado pelo marido de Mãe Mariinha, função exercida até sua
morte, quando, então, a esposa o substituiu. Tal processo se repetiu em finais de 2005,
quando Mãe Mariinha veio a falecer. Já no início de 2006 as atividades do terreiro
conduziram-se sob a liderança de Roberto, um dos filhos de Mãe Mariinha.

A mãe-de-santo residia muito próxima do terreiro, logo na entrada de uma


outra ruela que também dava acesso à vila. Auxiliada pelos familiares, Mãe Mariinha
dividia o tempo entre os afazeres domésticos e as atividades do terreiro. Com efeito, além
de liderar as duas sessões semanais noturnas do terreiro, a ialorixá jogava búzios e também
incorporava Maria Bonita, a pombagira com quem “trabalhava” por meio de consultas
particulares. Em tais ocasiões, Mãe Mariinha era auxiliada por Eliane, uma moça criada no
terreiro, que se incumbia tanto de receber os clientes quanto de fornecer os itens rituais
pedidos pela médium incorporada.

Minha presença nas sessões e festas daquela casa, além das conversas e
entrevistas que realizei com seus membros e freqüentadores permitiram-me notar a
heterogeneidade do terreiro e, inclusive, conscientizar-me da diversidade de mundos
socioculturais aos quais pertenciam tanto os integrantes da casa quanto a sua clientela.

Ao observar o espaço ritual do terreiro, percebi a presença de homens e


mulheres pertencentes a diferentes faixas etárias, com um certo predomínio de senhoras de
meia-idade. Já no final da pesquisa, uma médium bastante experiente nas giras e cuja idade
parecia se adentrar para a casa dos sessenta anos passou a integrar a casa. Provenientes,
167

sobretudo, das camadas mais pobres da população, esses umbandistas formavam um grupo
que incluía alguns profissionais liberais: uma psicóloga, um médico, um dentista e um
engenheiro.

Também pude observar e conversar com pessoas da assistência que


acompanhavam os médiuns da casa durante a sessão. Não era incomum esses
acompanhantes irem, pouco a pouco, se inteirando e harmonizando com os “trabalhos”
realizados na casa e, devido a isso, passando a ocupar o espaço ritual, local onde iam,
gradualmente, desenvolvendo sua mediunidade.

Os freqüentadores do terreiro não se restringiam apenas aos habitantes dos


bairros vizinhos, englobando também outras pessoas vindas das demais áreas da cidade. Os
moradores da vila só apareciam em massa por ocasião de determinadas festas, nas quais
eram distribuídos doces e balas para as crianças.

O terreiro realizava duas sessões por semana, às segundas e às quartas-feiras.


Aquelas destinadas aos exus ocorriam na primeira segunda-feira de cada mês e contavam
com um público numeroso. Seguindo as normas da casa, Mãe Mariinha proibia os jovens
menores de 13 anos de conversarem com os exus. No que dizia respeito aos pretos-velhos e
caboclos, sucedia o contrário. Eram as crianças e os mais idosos que tinham prioridade para
tomar passes com as entidades.

Nas sessões realizadas para os caboclos e os pretos-velhos, era comum a


presença de um dos netos de Mãe Mariinha, que acompanhava seus pais nas sessões. Havia
também outras crianças, que iam até aquela casa acompanhando geralmente as suas mães.

Ao longo do período em que freqüentei o terreiro, observei a disposição


dessas crianças durante as sessões, fosse tomando passes, fosse, descontraidamente,
cantando e batendo palmas. Nesses momentos, elas mantinham-se bastante descontraídas.
Podíamos mesmo dizer que marcavam grande diferença no que se refere à habitual
168

contensão sofrida pelas crianças em ritos religiosos. De certo, a própria dinâmica do corpo,
das performances descontraídas e da musicalidade tornavam as sessões da umbanda
atrativas para as crianças.

Aqui vale abrir um parêntese para enfatizar o caráter familiar das relações
que ocorriam naquele terreiro. A liderança da casa vinha se transmitindo dentro da família
de Mãe Mariinha, passando de seu marido, para ela e, depois de sua morte, para um de seus
dois filhos, que era pai-de-santo. Desde o início da pesquisa, era notório o grande
envolvimento de seus famíliares com as atividades do terreiro. Como exemplo, observamos
a presença constante de seus dois filhos nas sessões, fosse ajudando no desenvolvimento do
rito, fosse liderando a orquestra dos atabaques. A esposa de um dos filhos de Mãe Mariinha
também desenvolvia sua mediunidade nas giras e era auxiliada pela Mãe-de-Santo. O filho
desse casal, desde o início da pesquisa e ainda com a idade de sete anos, assistia aos ritos da
casa cantando e por vezes, tocando atabaque. Por volta dos nove anos, ele já podia ser visto
na sessão dos pretos-velhos acendendo os cachimbos das entidades.

Além da família de Mãe Mariinha, antigas médiuns freqüentavam o terreiro


e traziam suas filhas para desenvolver na gira. Uma dessas moças era afilhada da mãe-de-
santo. Outros médiuns também traziam familiares consigo, fosse para desenvolver, fosse
para assistir às sessões. Embora a casa recebesse outros médiuns oriundos de variados
terreiros, havia um grupo fixo. É importante enfatizar este ponto, uma vez que esse caráter
familiar implicava um certo ethos, cuja moralidade ancorava-se nas noções de casa e
família, com todas as implicações que essas categorias trazem consigo.

As duas sessões semanais contavam com cerca de vinte e poucos médiuns,


com uma ligeira predominância de mulheres. A assistência também era composta por mais
ou menos vinte pessoas, número freqüentemente excedido nas sessões de exu, ocasiões em
que os bancos da assistência ficavam totalmente ocupados. Alias, essa grande concentração
de pessoas fez com que, durante um certo tempo, Mãe Mariinha deixasse de anunciar
previamente a data destas sessões.
169

Como nos revelou Mãe Mariinha o terreiro era bastante heterogêneo em


termos de seus clientes, sobretudo no que dizia às sessões fechadas. Aliás essa freqüência
de indivíduos pertencentes aos vários grupos da sociedade era assim retratada pela ialorixá:
“Aqui vem do mendigo ao doutor”.

Questionada a respeito da freqüência da vizinhança nas sessões dos terreiros,


Eliane observou que o pessoal da vila tinha pouco a ver com o terreiro, enfatizando que os
jovens não estavam voltados para uma “casa de oração”. Grande parte deles tinha seus
interesses ligados à venda de drogas. Indo além, essa moça sublinhou que achava positiva
essa falta de vínculo do terreiro com a população da vila, na medida em que tal fato
resguardava a casa dos conflitos existentes entre grupos de traficantes.

Desde o início das pesquisas percebi a preocupação de Eliane em enfatizar a


masculinidade dos rapazes e senhores que integravam o terreiro. Ali, os que “trabalhavam”
eram “homens-mesmo”, dizia ela, atualizando pela negação afirmações costumeiras de que
terreiros são lugares de “bichas”. Essa afirmativa parecia ter a função de resguardar a
moralidade da casa, uma vez que afastava qualquer dúvida ou equívoco sobre a identidade
sexual de seus membros.

No período subseqüente ao início da pesquisa, notei a presença de um


travesti na assistência do terreiro. Tratava-se de Flávia, um jovem de aparência exuberante,
cabelos longos e louros caídos nas costas, as roupas notadamente femininas e
sugestivamente sensuais. Algumas vezes, observei Flávia conversando particularmente com
a mãe-de-santo na entrada do terreiro. Depois dessas conversas, assentava-se nos bancos
destinados à assistência e esperava pela sua vez de tomar passes e consultar as entidades.

Ao comentar sobre a presença daquele travesti nas sessões do terreiro, Eliane


argumentou que ele era um "cliente assíduo" e que era "atendido como todos os outros
clientes". Respondendo ao meu comentário, ela concluiu nos seguintes termos:
Olha, Andréa, da porta para fora, a pessoa pode fazer o que quiser, não
interessa. O que não pode é ficar fazendo certas coisas aqi dentro. Se a
170

pessoa se comporta bem aqui, por que é que ela não vai ser atendida como
as outras pessoas? E também a gente não julga, pois ninguém sabe o dia
de amanhã”.

Se, de um lado, Eliane mostrava-se flexível com relação à aparência de


Flávia, que destoava dos outros freqüentadores e membros do terreiro, e não apenas em
função das vestes, mas, igualmente, quanto ao que dizia respeito à performance corporal e
aos gestos, na própria tolerância já se anunciava a conduta moral a ser obedecida no
terreiro. Em síntese Elaine afirmava que aqueles que pertencessem ao terreiro deveriam
obedecer a determinados comportamentos e normas prescritas por sua liderança, que
visavam restringir a ocorrência ilimitada e entusiástica de um conjunto de performances
efeminadas, comumente realizadas por grupos homossexuais masculinos em determinados
terreiros de candomblé.

Aqui, como se verá por intermédio das palavras de um filho-de-santo da


casa, o que estava em jogo ali não era a mera "performance" em si, mas a sua realização
desbragada, festiva, quer dizer, muito distante de um padrão "mediano" de moralidade. Era
isso que poderia vir a representar um problema para a casa. Sendo assim, podia-se perceber
uma constante preocupação em manter um clima absolutamente ordeiro nas sessões do
terreiro, correlato ao que se atribui à noção de “casa” enquanto lugar moral. Dessa forma, a
própria formação e dinâmica do terreiro mostrava essa sua característica: um lugar
ordenado e ligado à freqüência de famílias.

Aliás, uma das peculiaridades daquele terreiro era que contava com alguns
núcleos familiares em suas sessões. Como dissemos, desde o início da pesquisa percebemos
que a família de Mãe Mariinha adquiria um papel central nos ritos do terreiro. Gilson, um
de seus filhos, era ogã e liderava o coro de atabaques. Seu outro filho, Roberto, era pai-de-
santo e respondia por tudo que acontecesse no terreiro na ausência de sua mãe. Sílvia,
esposa deste último, também integrava o terreiro e desenvolvia a sua mediunidade, sendo
guiada, inicialmente, por sua sogra e, depois, por seu marido. Em algumas sessões, vi essa
moça “virada” nas suas pombagiras, em cenas de possessão marcadas por um extremo grau
de refinamento gestual e performático. Com apenas sete anos, Rafael, filho de Sílvia e
171

Roberto, já estava presente nas sessões do terreiro, cantando junto ao coro de atabaques,
sentado na assistência ou tomando passes juntamente com as outras crianças. Finalmente,
no terreiro sobressaía ainda outra presença ligada à família de Mãe Mariinha. Tratava-se de
Eliane, a referida auxiliar da mãe-de-santo, filha de uma antiga integrante do terreiro.

Tais comentários surgem não só no sentido de caracterizar o terreiro, mas,


sobretudo, na busca de compreensão de um determinado ethos vinculado às categorias
“casa” e “família”. A consciência dessas práticas, idéias e valores, capazes de instituir um
tipo específico de moralidade, será essencial para explicar a maneira pela qual as
pombagiras se apresentavam nos seus ritos de possessão.

Aqui, destacamos o rigor dos médiuns no que dizia respeito aos seus
comportamentos durante as sessões. Durante a pesquisa no terreiro, jamais constatei
qualquer evento que pudesse comprometer a moralidade da casa. Nesse sentido, a presença
de Mãe Mariinha era de fundamental importância, pois, enquanto autoridade máxima
daquele espaço, ela não permitia qualquer deslize, fosse por parte de membros da
assistência, fosse por parte dos médiuns da casa. Depois de sua morte, seu filho Roberto
continuou agindo de acordo com as diretrizes de sua mãe, ou seja, zelando pela doutrina da
casa.

Após essa caracterização geral do terreiro, já podemos tratar com maiores


detalhes os aspectos relacionados à incorporação das pombagiras e, sobretudo, a relação
entre essa entidade e os integrantes da casa. Para tanto descreveremos a seguir alguns
eventos relacionados à “descida” e aos “trabalhos” das pombagiras naquela casa de
umbanda.

6.3.1 Encontrando Maria Bonita

Numa das primeiras vezes em que estive no terreiro de Mãe Mariinha, fiquei
sabendo da existência de Maria Bonita, uma pombagira que era incorporada por aquela
172

mãe-de-santo há mais de trinta anos e que, atualmente, descia no terreiro três dias da
semana para "trabalhar". Pouco me foi dito sobre a biografia da mulher, cuja morte a
transformou em pombagira. No terreiro, apenas se ouvia dizer que a entidade era uma
cangaceira. Tardiamente, interei-me de que se tratava do próprio espírito de Maria Bonita,
mulher de Lampião.

Tão logo cheguei ao terreiro, observei que a entidade dava consultas


particulares na parte posterior do salão, ocupada pelos médiuns durante as sessões, lugar
que ficava separado da sala de espera apenas por uma cortina. Na parte que antecedia este
espaço, a ajudante de Mãe Mariinha recebia os clientes de Maria Bonita e atendia aos
pedidos da entidade referentes aos itens rituais necessários para as consultas.

Numa das manhãs em que visitei o terreiro, manifestei a minha vontade de


consultar com a entidade, o que ocorreu sem maiores problemas. Naquele momento, Maria
Bonita estava acabando de atender uma de suas últimas clientes e ainda permaneceria no
terreiro por mais algum tempo.

Depois de esperar por alguns minutos, até a saída de uma senhora que, ao
término de sua conversa com a entidade, mencionava estar bastante aliviada com relação
aos problemas que a levaram ao terreiro, entrei no local onde Maria Bonita atendia seus
clientes. Encontrei-a sentada no chão, vestida com sua saia colorida em tons de vermelho e
preto. À sua esquerda encontravam-se uma vela branca acesa e dois copos com bebidas
colocados sobre um “ponto riscado". Do outro lado, um pouco mais afastada dela, podia ser
vista uma vasilha rasa contendo pedaços de frango imersos em azeite de dendê. Na sua
frente, havia um maço de cigarros, que foram fumados sucessivamente por ela durante a
consulta.
Assim que adentrei o local de consulta, Maria Bonita cumprimentou-me
dizendo “boa noite”, frase habitualmente dita pelos exus quando saúdam aqueles que os
procuram. Depois de lhe retribuir o cumprimento, sentei-me num banquinho situado à sua
frente enquanto ela pronunciava as seguintes palavras: “Eu já tava indo, mas te vi na
encruzilhada e resolvi ficar. Como é que tá? Tá formosa? ”
173

Após essa saudação, que indicava o poder da entidade de “correr a gira” e


ver coisas inacessíveis aos humanos, começamos a conversar sobre os motivos que me
levaram até aquele terreiro. Sem saber que estava cometendo uma indelicadeza, referi-me à
entidade tratando-a de “Dona" Maria Bonita, o que a fez reagir imediatamente, num tom
que mesclava jocosidade e indignação: "Dona? Ah! Você me chamou de dona?" E
apontando para a imagem de uma Nossa Senhora situada no congá, ela completou sua fala
afirmando: "Dona é aquela ali de branco que vocês vivem batendo cabeça pra ela. Eu sou é
puta rebombeira que nem vocês mesmo”. Aquela reação de Maria Bonita provocou em
mim um forte "estranhamento", além do receio de que ela tivesse se ofendido com aquela
gafe e se recusasse a continuar conversando comigo. No entanto, dentro de poucos
instantes, a pombagira não demonstrava qualquer sinal de irritação, dispondo-se a continuar
a conversa.

Antes que eu dissesse qualquer coisa, Maria Bonita retomou um assunto que
há poucos dias fora objeto de minha conversa com o seu cavalo. Em tom afirmativo, a
entidade repetiu de forma enfática o que Mãe Mariinha já havia me dito sobre a relação
entre os espíritos e suas incorporações em homens, em mulheres e em adés. “A primeira
coisa que você tem que saber é que espírito não tem sexo. A vibração do feminino e a do
masculino vem do primeiro santo que a pessoa tem. É o santo de frente que designa se a
vibração é de exu ou de pombogira”.

Nossa conversa prosseguiu, então, com minhas perguntas sobre a atuação


dos exus e das pombagiras, como também sobre as relações destes atos com determinados
territórios, um tema recorrente nos “pontos cantados”. No momento em que mencionei as
possíveis relações dos exus com a saúde, a vida e a morte, Maria Bonita respondeu-me
prontamente afirmando: "todo exu é curador, porque é escravo do santo". De acordo com as
palavras da entidade, eles cumpririam ordens dos orixás e, inclusive, aquelas relativas ao
restabelecimento e à cura de seus “filhos” e “filhas”.

Quando relacionei a ligação dessas entidades com a morte, a entidade citou


vários exus e pombagiras vinculados aos cemitérios: "exu Sete Cruzes, exu Sete Buracos,
174

exu Sete Catacumbas, exu Caveira, exu Sete Cadeados, pombogira Rainha do Cemitério,
pombogira Padilha do Cemitério, Padilha da Calunga, Maria Molambo, Dama da Noite",
dentre outros nomes.

Maria Bonita passou a explicar então que cada "trabalho" demandava certos
materiais, como também certos tipos de exus e de pombagiras situados numa determinada
“faixa de vibração”. As características benignas ou malignas do trabalho independeriam do
território ao qual o exu estaria predominantemente vinculado. Em seguida, tocou num tema
polêmico, relacionado às ações dos exus: "Exu trabalha conforme o pedido do cliente.
Todos têm a mesma faixa vibratória; depende do que é pago. Quem paga mais recebe o que
pediu mais rápido”. Complementando sua afirmativa, Maria Bonita valeu-se da seguinte
metáfora: "Exu é faca de dois cortes". Essa frase trazia implícita a possibilidade da entidade
de atuar em domínios contrários sem se responsabilizar com o desfecho de suas ações.

Questionada se os exus poderiam escolher ou recusar determinados tipos de


trabalho que não achassem procedentes, Maria Bonita respondeu afirmativamente, tomando
como exemplo a própria trajetória espiritual: “Eu vim da vela preta, passei pela roxa, depois
pela vermelha e preta e pela vermelha. Agora estou na vela branca. Você acha que eu vou
querer perder a luz que consegui? Eu estou deixando de ser pombogira para ser uma
cabocla, uma psicóloga ”.

Contrapondo-se às pombagiras e exus situados num plano inferior da


espiritualidade, que “trabalham tanto para o bem quanto para o mal”, Maria Bonita
fundamentava sua liberdade de escolha nos trabalhos que executava, além de salientar a
adequação de suas ações ao comportamento de uma entidade dotada de luz, fator que a
aproximaria tanto do patamar hierárquico das caboclas, quanto da prática da psicologia.

Continuando a sua fala, a pombagira correlacionou os patamares indicativos


de seu grau de evolução tanto às cores das velas usadas em trabalhos quanto ao teor de
álcool das bebidas que consumira durante as suas vindas a terra.
175

A entidade, então, relatou que, quando começou a trabalhar (e era da vela


preta), tomava cachaça. À medida que foi evoluindo e as cores de sua vela foram clareando,
passou, sucessivamente, a tomar cerveja, anis e champanhe, até chegar ao estágio atual, no
qual usava velas brancas e não consumia mais bebidas alcoólicas. Nesse momento, a
pombagira fez um gesto apontando para o chão com a finalidade de mostrar-me o seu copo
com água, colocado junto a outros dois que estavam sobre o seu "ponto riscado". Maria
Bonita, então, concluiu sua fala dizendo que, apesar de só beber água enquanto trabalhava,
tinha que ter sempre bebidas alcoólicas por perto, para oferecer aos dois exus que
trabalhavam na sua "vibração" ajudando-a naquilo que fosse encomendado.

No decorrer da conversa, surgiu ainda um assunto relevante, relacionado ao


caráter plural das pombagiras. Maria Bonita esclareceu que, apesar de as várias pombagiras
receberem um nome comum, capaz de conferir-lhes determinadas características , esse
mesmo nome abrangia um número significativo de pombagiras, que guardam entre si certas
idiossincrasias. Para explicar esse caráter, ao mesmo tempo único e diverso das pombagiras
dotadas de um mesmo nome, Maria Bonita fez a seguinte pergunta: "Quantas Marias você
conhece? Depois de me ouvir dizer que conhecia uma infinidade de mulheres com este
nome, a entidade concluiu dizendo que com as pombagiras também era assim, os nomes
poderiam se repetir, mesmo que elas fossem diferentes umas das outras.

Remetendo-se ao próprio nome, a pombagira afirmou que ela, “a Maria


Bonita que desce no terreiro de Mãe Mariinha", tem atrás de si outras sete entidades de
nome Maria Bonita, que descem em vários terreiros situados em diversas localidades e que
diferem umas das outras apesar de guardarem entre si certa relação de semelhança indicada
pelo nome comum.

Em seguida, Maria Bonita despediu-se, dizendo que precisava atender a dois


casos mais demorados. Eu me retirei para o espaço do salão que servia como ante-sala para
as consultas, onde se encontrava uma médium do terreiro, acompanhada de sua filha. Logo
que saí da consulta, elas se dirigiram até a pombagira para também se consultarem. De
176

onde eu me encontrava, era possível ouvir estranhos ruídos, que me lembraram roncos
produzidos por animais. Indagando sobre aqueles sons inteirei-me de que se tratava de uma
“puxada”, uma prática ritual relacionada à “limpeza de carregos”. Conforme me foi dito,
não era mais Maria Bonita que estava no terreiro. Aquela pombagira havia “subido” e dado
lugar a Linda, uma outra pombagira que trabalhava no terreiro e cujos trabalhos ligavam-se
a “carregos” mais pesados.

6.3.2 Refletindo sobre o encontro

O encontro acima relatado traduz, ao mesmo tempo, a perplexidade e um


maior grau de familiaridade com determinadas práticas e representações tecidas em torno
das pombagiras. Nesse sentido, falas e performances colocadas em foco pela entidade
tornavam-se indicativas de como a possessão é vivenciada em terreiros a partir das
experiências de um grupo particular.

As pontuações começam a partir da gafe que cometi e da brusca reação da


entidade ao ser chamada de “dona”. Se aquela resposta de Maria Bonita ancorasse em
modelos e lógicas da sociedade mais ampla, certamente apontaria para uma grave ofensa de
cunho moral. Afinal, entre os grupos que compõem a sociedade abrangente não se chama
ninguém de "puta" sem que este tratamento implique um tratamento carregado de
conteúdos desqualificantes e avessos a uma determinada moralidade.

No entanto, o tom das palavras ditas pela pombagira não remetia a nenhuma
atitude agressiva ligada a ofensas; ao contrário, evidenciava um tratamento jocoso, que
apontava para uma clara oposição entre as "putas" e as "santas", valorizando as primeiras
em detrimento das segundas. Aqui, está-se diante da inversão de um código moral presente
na sociedade brasileira que valoriza e "santifica" as mulheres da casa ou “de família”,
atribuindo “poluição” e “perigo” às chamadas "mulheres da rua", identificadas com as
prostitutas.
177

Por meio da possessão e da vivência num universo predominantemente


ligado ao “modo subjuntivo” da cultura, a entidade caracterizava o terreiro (a "sua terra")
como um mundo em que, sem qualquer ônus moral, as mulheres poderiam ser identificadas
com as prostitutas, fato que invertia uma lógica presente na sociedade abrangente, na qual
os códigos morais do “mundo da casa” valorizam as "mulheres de bem", a ponto de quase
"santificá-las", ao mesmo tempo em que condenam outras consideradas “licenciosas”.

Quando se toma o universo de representações ligadas à caracterização das


pombagiras nesse mundo invertido, propiciado pela possessão, é possível interpretar
aquelas palavras como uma espécie de narrativa que reforçava positivamente a figura da
"puta", personagem estigmatizada pela sociedade, ao mesmo tempo em que desprezava as
“santas”, objeto de respeito e veneração no mundo religioso e, freqüentemente, associadas
às esposas e às mães-de-família, tidas como mulheres quase assexuadas, de comportamento
irrepreensível e acima de qualquer suspeita.

Em outras palavras, pode-se pensar que a fala da entidade dissolvia a


oposição freqüentemente encontrada na sociedade brasileira: constituída pelos termos:
“mulher-de-família”-“mulher-da-vida”, para substituí-la por outra dualidade, construída
pelas figuras da "santa" e da "puta", respectivamente identificadas com o "mundo invisível"
e com o universo dos terreiros.

Identificando-se com a segunda categoria, que parecia abarcar todas as


mulheres vinculadas à sua “terra”, a pombagira só marcava uma diferença significativa
entre ela e as outras mulheres nomeadas por ela de "putas rebombeiras": o fato de ela não
reverenciar as santas num duplo sentido: naquele metafórico, relacionado à pureza
feminina; e; no outro, propriamente religioso. Aliás, como ficou comprovado em outros
contatos com os exus do terreiro, a sua negação e afastamento dos santos católicos é
bastante comum, surgindo como um importante elemento na demarcação de suas
identidades, enquanto entidades ligadas à linha da esquerda.
178

6.3.3 Sessão de Exu no terreiro de Mãe Mariinha

Eram aproximadamente 20h quando cheguei ao local onde se encontra o


terreiro de Mãe Mariinha. Na rua de onde saem os becos de acesso à vila, algumas pessoas
conversavam. Na calçada oposta ao terreiro, homens bebiam e jogavam sinuca num bar. Ali
nada remetia ao quadro de violência urbana comum às cidades brasileiras. Parecia ser como
Eliane me dizia: As contendas e tiroteios ligados ao tráfico de drogas se restringiam ao
interior da vila. Sentindo-me segura, caminhei poucos metros até a entrada do terreiro.

Ainda nesse percurso, dirigi o olhar para dentro da vila. Numa das esquinas
vi jovens conversando. A movimentação das pessoas em direção à porta do terreiro parecia
não lhes interessar. Lembrei-me das palavras de Eliane sobre os rapazes daquela localidade:
“Eles não querem saber de uma casa de oração. O negócio deles é a droga”. Mais uma vez
seu discurso parecia se confirmar.

Aqueles que saíam de outros bairros, rumo aos terreiros, não paravam em
suas imediações. Chegavam e logo entravam pela porta entreaberta. Como das outras vezes,
fui-me aproximando de sua entrada. Levemente, empurrei a porta e entrei. Descortinou-se
então o espaço onde aconteciam as sessões. Tão logo me situei na sala, vi no chão, à minha
direita, dois “pontos riscados” com um copo cheio de bebida e uma vela acesa sobre cada
um deles. Do lado contrário, encontrava-se uma grande cruz de madeira, e sobre ela uma
toalha de linho extremamente branca. No fundo, situava-se o congá, com variadas
estatuetas de “santos” e “guias” da umbanda.

As luzes estavam acesas, e nos bancos destinados à assistência muitas


pessoas já se encontravam acomodadas. Esse número expressivo de pessoas era indicativo
de que se tratava de uma sessão de exu, ocasião em que os bancos da assistência ficavam
lotados. No terreiro de Mãe Mariinha, as sessões de exu contavam com um público
significativo, fato que confirmava o prestígio dessas entidades junto aos freqüentadores da
casa.
179

Em frente ao espaço destinado à assistência, ficava um gradil de madeira


delimitando o espaço das giras. Na entrada desse local, situavam-se os três atabaques
sagrados e, ao seu lado, um altar de pedra.

Acomodei-me e esperei o início da sessão. No espaço destinado às giras


encontravam-se os filhos e filhas-de-santo da casa. Descalços e portando roupas brancas,
além de colares com as cores de seus “santos”, esses umbandistas movimentavam-se e
conversavam descontraidamente.

Alguns integrantes do terreiro ainda estavam a caminho. À medida que iam


chegando, estes filhos e filhas-de-santo retardatários cumprimentavam as pessoas da
assistência e se dirigiam para o fundo do salão. Lá estava Mãe Mariinha, vestida e calçada
de maneira simples. Sentada num banquinho de madeira em frente ao congá, a ialorixá do
terreiro esperava por seus filhos e filhas. Ao vê-la, eles se curvavam com reverência e lhe
beijavam a mão. Terminado esse rito, que punha em foco o respeito e a autoridade da mãe-
de-santo, os integrantes do terreiro subiam até o andar de cima para trocar as roupas do dia
a dia por outras referentes ao ritual.

Vestidos adequadamente para a ocasião, aqueles homens e mulheres se


juntaram aos outros filhos e filhas de santo do terreiro. Mãe Mariinha permanecia sentada
em seu banquinho com a sineta nas mãos. Ao ouvir o seu toque, os integrantes do terreiro
iam-se formando no salão. Ao todo, compunham um grupo de aproximadamente vinte e
poucas pessoas. Já tinham soado dois toques de sineta. Restava o terceiro. Poucos minutos
depois das vinte horas, soou o último toque anunciando o início da sessão.

Situados de frente para o congá, os médiuns permaneciam compenetrados.


Seguindo as etapas rituais, a mãe-de-santo evocou primeiramente os exus, entidades que
devem sempre ser reverenciadas na abertura dos ritos de terreiro. Afinal, atribui-se a esses
180

espíritos as funções de mensageiros e protetores da casa. Acredita-se que sem a ação dessas
entidades o terreiro e seus ritos ficam sujeitos a toda sorte de perigo.

“Laroiê Exu!..., Laroiê Exu!..., Laroiê Exu!...,” a mãe-de-santo,


acompanhada por seus filhos e filhas, saudou de maneira compassada e respeitosa os
guardiões da casa, pois se acreditava que, em seus postos, os exus já estariam atentos para
garantir o bom andamento da sessão. Os atabaques soaram anunciando o rito de
homenagem aos donos das encruzilhadas, aqueles que durante as noites e madrugadas
vigiam as ruas, as portas e porteiras, protegendo seus aliados. Entoou-se então o primeiro
“ponto cantado” em homenagem aos exus da casa:

Oh, lá na beira do caminho,


Este conga tem segurança.
Oh, na porteira tem vigia,
à meia noite o galo canta

Acompanhado pelos atabaques e por palmas ritmadas, esse “ponto cantado”


ia-se repetindo, enquanto uma filha-de-santo movimentava-se no interior do terreiro para
cumprir um rito de entrada. Tratava-se da oferta de cachaça aos exus da casa, oferenda
ritual que se faz, invariavelmente, tão logo começam as giras. É que para trabalhar
devidamente na sua “terra” os exus exigem ser tratados com sua bebida predileta.

Tal crença implicava o deslocamento daquela filha-de-santo do interior do


salão até a porta de entrada, sem que ela desse as suas costas para o congá. Depois de
reverenciar o exu que estava “firmado” atrás da porta de entrada, ela derramou a cachaça na
rua, contiguamente à entrada do terreiro, para que o exu se mantivesse “na porteira”,
vigiando o terreiro. Em seguida a esse gesto, ela retornou ao interior do terreiro e,
novamente, se integrou aos outros médiuns.

Após esse rito de entrada, tornava-se necessário realizar outra etapa ritual,
não menos importante. Tratava-se da limpeza ou purificação do terreiro. Seria por meio
desse rito que a casa e seus integrantes ficariam livres dos carregos capazes de atrapalhar os
181

trabalhos dos guias. Marcando o fim de uma etapa introdutória, os atabaques


momentaneamente se calaram, enquanto a mãe-de-santo saudou em voz alta a cerimônia da
defumação. Feita essa saudação, seguida pelos sons dos atabaques, iniciaram-se os pontos
cantados, que, respeitosamente, pediam licença às entidades para que o terreiro fosse
defumado.

Cantando e batendo palmas ritmadas, a assistência via outra filha-de-santo


sair do fundo do terreiro. Portando um incensório, essa senhora aproximava-se inicialmente
dos médiuns da casa, para purificá-los um a um. Em pé, os filhos e filhas-de-santo da casa
estendiam as mãos em direção à fumaça purificadora e, em seguida, giravam seus corpos
para limpá-los por inteiro. Estes gestos eram repetidos na assistência por todos aqueles que
se encontravam no terreiro. Tal rito dava origem a outro, no qual os médiuns, ajoelhados
oravam, juntamente com a assistência.

Uma vez limpa, a casa podia receber as deidades que seriam chamadas para
trabalhar em seus espaços. Os atabaques sagrados, juntamente com os cânticos e as palmas
ritmadas, evocavam tais deidades que, uma vez no terreiro, anunciavam a sua chegada por
meio de seus pontos cantados.

Tratando-se de uma sessão destinada aos exus, a sua chegada a terra se fazia
por meio de pontos que, simultaneamente, os evocavam e os identificavam. Um primeiro
ponto cantado informava sobre as características daqueles exus que seriam chamados para
participar da sessão, enfatizando a sua condição de “batizados”. Depois de uma breve
ausência dos cantos e toques que pontuavam o rito, escutou-se, seguidamente, um ponto
cantado que anunciava a presença de tais entidades:

O exu quando ele é batizado,


ele entra em qualquer lugar
primeiro ele sarava a mesa
depois ele sarava o congá
182

Seguiu-se então, uma série de pontos cantados destinados à evocação dos


exus e pombagiras, entidades que gradualmente iam sendo incorporadas pelos médiuns
presentes na sessão.

Tão logo os médiuns se sintonizavam com a vibração das entidades, seus


corpos sofriam fortes tremores. Alguns deles eram convulsionados com tamanha força que
o tronco e as pernas se arqueavam subitamente, aparentando uma possível queda. Como os
indivíduos gravemente vitimados pela cifose, alguns dos filhos e filhas-de-santo tinham o
tronco envergado para frente, no qual mantinham os braços e as mãos voltadas para trás,
fortemente tencionadas em forma de garras.

As mulheres que iam “virando” em pombagiras colocavam as mãos na


cintura e rodopiavam, movimentando os ombros e os quadris mediante pequenos requebros.
Algumas movimentam rapidamente o tórax, curvando-o para trás enquanto emitiam sons
agudos acompanhados de gargalhadas. Outras apenas giravam, enquanto cantavam e
fumavam. Um gesto se repetia de tempos em tempos. Saudando umas às outras, as
entidades se curvavam para frente até seus dedos tocarem o chão. Após cruzarem as mãos,
tocando o solo com a ponta dos dedos, elas se cumprimentavam por meio das mãos,
mantidas em forma de garra.

Nas situações em que o transe oferecia maior dificuldade, ou mesmo durante


as “puxadas”, os médiuns eram auxiliados pela mãe-de-santo ou por outros integrantes do
terreiro. Redobrava-se assim a atenção dos membros da casa, no intuito de evitar pequenos
acidentes, provocados pelas incorporações. Concluído esse “entreato”, perpassado pela
tensão do transe, surgia outra etapa ritual vinculada ao trabalho das entidades. Posicionadas
em seus devidos lugares, as deidades aguardavam aqueles que desejavam se consultar.

Naquele terreiro um fato era notório: todos os homens da casa recebiam


“exus-machos”. As mulheres, em sua maioria, incorporavam pombagiras, mas também
viravam no pólo masculino dessa entidade. Quando tratava-se de pombagiras as médiuns da
183

casa mantinham-se em pé, eretas, com o queixo ligeiramente projetado para o alto,
evocando certa altivez desafiadora.

Durante as consultas, as entidades recebiam consulentes aconselhando-os e


prescrevendo-lhes certas ações a serem feitas por meio de “trabalhos”. Em determinados
momentos a calma dessas consultas era quebrada. Tratava-se de situações ligadas aos
“descarregos”, nas quais a entidade incorporada “dava passagem” para outra entidade, de
menor grau de luz, por exemplo, um exu “pagão” ou “trevoso”, que, acreditava-se, estava
atuando negativamente na vida do consulente. Nessas “puxadas”, o médium tinha o seu
corpo convulsionado pela incorporação dessa entidade pouco evoluída, podendo até mesmo
cair de joelhos e tocar o peito no solo. Os integrantes do terreiro, então, mobilizavam-se
para ordenar a esses exus pouco evoluídos que retornassem ao plano espiritual de onde
tinham saído. Conforme a doutrina da casa, eles só poderiam trabalhar efetivamente nas
sessões depois que se tornassem exus “batizados”.

Numa de minhas conversas com Roberto pouco tempo após a morte de Mãe
Mariinha, o líder do terreiro comentou que numa gira de exus (incluindo a pombagira, seu
pólo feminino) ocorriam várias situações. Citando as etapas desses ritos, ele as detalhava
nos seguintes termos: “Tem uma parte que os exus vêm, farreiam e cantam perto dos
atabaques. Tem a parte que eles vêm e prestam caridade. Tem a parte das puxadas e do
desenvolvimento. Tem a parte do cuidado e da defesa do consulente.”

Questionado sobre o fato daquelas entidades não darem passes, o pai-de-


santo líder da casa, fez o seguinte comentários:
Eles [os exus] têm uma maneira diferente de descarregar. Não pode falar que é um
passe, é uma maneira diferente de descarrego. Muitos dos exus não têm aquele
ritual de limpar a aura da pessoa, de fazer aquele descarrego, mas num cigarro ali
você pensa ali que está puxando uma fumaça, mas ele está puxando uma energia
negativa. A coisa é muito fina, é muito sutil. Então são inúmeras as maneiras que
podemos interpretar uma gira de exu. Uma gira de exu é muito vasta.

No salão, podia ser notada certa preferência do consulente pela conversa


com determinado exu ou pombagira. Este fato relacionava-se tanto à busca de uma maior
184

eficácia mágica quanto ao laço criado entre o consulente e a entidade. Assim, consultava-se
com a entidade a quem era atribuído maior poder mágico ou com aquelas com as quais já
existiam laços afetivos.

Uma a uma, as pessoas iam sendo chamadas, até que não restasse mais
ninguém para consultar. Resumindo-se a poucos minutos de conversa, tais encontros com
os exus e as pombagiras revestiam-se de privacidade, pois os sons dos cantos e dos
atabaques adquiriam tal volume que, às vezes, não se escutava a voz da própria entidade
durante a consulta.

Ao “correr a gira”, o espírito se valia, sobretudo, do contato das mãos do


consulente com as do médium incorporado. Era por esse contato corporal que a entidade
conseguia captar a energia ou a “vibração” do consulente e, assim, vislumbrar o que existia
de significativo em sua vida. Em seguida, as entidades aconselhavam, receitavam banhos
de descarrego e, mesmo, apontavam trabalhos necessários à ajuda demandada pelo
consulente.

Depois de atender a assistência, as entidades trabalhavam com os integrantes


do terreiro, aconselhando-os, tirando-lhes os carregos ou ajudando-os a se desenvolver na
gira. Desse modo, podiamos ver, aqui e ali, alguns médiuns girando, auxiliados pelos
integrantes do terreiro, que os protegiam de colisões nas paredes ou de possíveis quedas.
Nos momentos em que essas pessoas incorporadas cometiam algum ato considerado
contrário à “doutrina” do terreiro, os integrantes mais antigos, discretamente conduziam-
nos até o fundo do espaço ritual, para que não ficassem expostos aos olhos da assistência.
Era ali que eles ouviam palavras ligadas às normas do terreiro. Esse fato constituía uma
rotina nas sessões do terreiro, pois se relacionava ao ato de “doutrinar” entidades. Sendo
assim, as sessões da casa primavam por um ambiente absolutamente ordenado, sem maiores
excessos de ambas as partes: consulentes e médiuns incorporados.
185

Uma vez terminados os trabalhos, a mãe-de-santo deu início à “subida” das


entidades, etapa que também se realizou por meio de pontos cantados. Restaram poucas
pessoas na assistência. A sineta anunciou o fim da sessão, o que foi seguido pelo silenciar
dos cantos e dos atabaques.

De frente para o congá, os médiuns e a assistência se mantiveram de pé para


a oração final. Em seguida, aproximaram-se da mãe-de-santo para se despedir ou, mesmo,
para ouvir uma última recomendação. Finalmente, o rito terminou para ser revivido daí a
poucas semanas.

Numa das sessões que antecederam a festa anual realizada para os exus da
casa, a ialorixá fez uma série de recomendações. O primeiro aviso da mãe-de-santo referiu-
se à contribuição que cada um deveria dar para a compra dos itens necessários à produção
do evento. Nessa ocasião, a mãe-de-santo anunciou que prepararia uma mesa com frutas e
rosas de cores variadas, além de fazer dois tipos de farofa que comporiam a "comida do
chão", oferecidas aos exus. A assistência seria contemplada com algo "gostoso e barato".
Os vinhos ficariam a cargo dos médiuns.

Depois deste primeiro aviso, Mãe Mariinha lembrou aos integrantes do


terreiro que a festa proporcionaria "às moças” (no caso, as pombagiras) uma oportunidade
para se mostrarem bonitas, enfeitadas com suas flores no cabelo e vestidas com suas saias
coloridas e rodadas.

Os homens deveriam comparecer à festa vestidos com calça preta e blusa


vermelha. As mulheres que tivessem como "santo de frente" um “exu macho" deveriam
trazer também calça preta e blusa vermelha, e não se esquecer de trazer a saia rodada para a
"segunda virada", referente às suas pombagiras. Detalhando ainda mais, Mãe Mariinha
observou que a saia da "pombogira cigana" deveria ser mais estampada, com cores vivas e
com menor predominância do vermelho e preto, pois se tratava de uma linha "mais
186

cabocla" e ligada ao "pessoal da estrada". Após essas recomendações, finalmente, ela


avisou a data e o horário da festa.

Aqueles eventos realizados em homenagem aos exus eram bastante


concorridos. Depois de ouvir tais recomendações, soube que para conseguir um bom lugar,
era preciso chegar com pelo menos uma hora de antecedência. Despedi-me então de Mãe
Mariinha e deixei o terreiro
.
6.3.4 A festa dos exus

Dez dias após as recomendações de Mãe Mariinha foi realizada a festa em


homenagem aos exus. O terreiro se apresentava diferente e mais alegre neste dia. Ao lado
do congá, podia ser vista uma grande mesa com frutas, bebidas e velas coloridas. Os
médiuns da casa tinham trocado as suas roupas brancas por outras, coloridas e festivas.

Seguindo a orientação da mãe-de-santo, os homens vestiam calças pretas e


camisas vermelhas; as filhas-de-santo, longas saias rodadas; as ciganas, saias estampadas
em vários tons; e as outras pombagiras, vermelho e preto, cores características dos exus.
No meio dessas mulheres, uma senhora trajava terno branco e chapéu. Tal
indumentária estava relacionada a um exu que ela recebia: o “malandro”, figura
paradigmática da cultura brasileira, bastante presente nas giras dos terreiros.

Tais modificações também envolviam a figura de Mãe Mariinha. Logo após


entrar no salão, por volta das vinte horas, a ialorixá recebeu das mãos de uma das filhas-de-
santo a roupa de Maria Bonita, a pombagira que iria receber durante a festa. Pouco tempo
depois, sentada no banquinho ajeitado junto ao congá, a mãe-de-santo portava sua saia
estampada, tendo ainda como complemento um xale e um leque. Ali, ela esperava os
médiuns para dar início à festa.
187

Os ritos iniciais que abriam as sessões já tinham se realizado fora dos olhos
da assistência. Afinal, tratava-se de uma festa que não poderia se prolongar pela
madrugada. Assim, era necessário economizar tempo, sem suprimir qualquer etapa ritual. A
festa começou, então, como as outras sessões, ou seja, marcada pelo som dos sinos da
ialorixá. Seguiram-se alguns pontos cantados para Ogum e em seguida aqueles referentes
aos exus e pombagiras.

De acordo com a hierarquia da casa, a ialorixá seria a primeira a virar na sua


entidade. Abanando-se com o seu leque colorido, Mãe Mariinha virada em Maria Bonita
saiu dançando pelo salão, abraçando ou simplesmente tocando o corpo de vários médiuns
do terreiro, que, por sua vez, incorporavam as suas entidades.

Sendo uma noite de festa, excepcionalmente, os exus e as pombagiras


podiam “bebericar” e comer durante a sessão. Assim, viam-se senhoras quase sexagenárias
portando taças e cigarros nas mãos, conversando e dançando de maneira alegre e efusiva.

Formou-se, então, um grande espaço de interação entre os exus do terreiro,


que, alegremente, fumavam, bebiam e conversavam animadamente. Tais atos eram
intercalados por danças e pontos cantados, entoados diante dos três atabaques sagrados.
Eram essas práticas rituais que davam maior visibilidade às entidades, marcando fortemente
sua presença e atuação na casa.

Os homens que estavam virados, todos em exus-machos, apresentavam as


performances características daquelas entidades: corpo meio encurvado para frente, mãos
voltadas para trás com os dedos formando garras.

Com relação às mulheres viradas em pombagiras, podiam-se observar


performances capazes de evocar certa rebeldia e insolência feminina. Movimentando-se ou
mesmo estanques, as entidades se apresentavam com as mãos nos quadris e o queixo
erguido numa atitude desafiadora. Não menos importante na caracterização desse
188

“feminino transgressor” eram os demais gestos realizados com as mãos. Segurando


sensualmente o cigarro, a piteira ou a taça, as pombagiras pareciam se valer
expressivamente destes gestos para tornarem-se algo sedutoras. Detentoras de um código
corporal específico, algumas pombagiras usavam um único dedo para, elegantemente,
suspender uma de suas saias e mantê-la elevada quase até a altura do ombro. Tais gestos
denotavam diferentes modalidades de códigos corporais e gestos expressivos que
caracterizam aquela entidade.

Observando o espaço ritual podia-se ver que determinadas entidades traziam


consigo gestos mais enfáticos e sofisticados, capazes de distingui-las de outras pombagiras
ali presentes. Essa distinção, muitas vezes, decorria da beleza e da elegância de suas
performances. Nesse sentido, a corporeidade de uma médium virada em sua Padilha,
destacava-se naquele evento.

Trajando vestido vermelho, essa pombagira dançava com os olhos fechados,


mantendo a face esculpida por uma expressão de desdém. A expressividade de seu rosto
combinava-se com um tipo de corporeidade movimentada, na qual a entidade se
notabilizava por um rápido e expressivo estremecimento da parte superior do corpo.
Harmoniosamente, esse movimento convulso combinava-se com o arquear do tronco para
trás, até que a sua cabeça atingisse o nível da cintura.

Tratava-se de uma performance marcada pela beleza e por uma sensualidade


extremamente refinada. Desde já, é necessário apontar para a elegância e a distinção dessa
entidade. Nenhuma expressão ou gesto apontava para os comportamentos considerados
vulgares, comumente atribuídos às pombagiras.

Outros elementos favoreciam também o entusiasmo da festa. Tratava-se de


bebidas leves, servidas durante o jantar, que consistia na “comida do chão”, ritualmente
preparada para homenagear os exus da casa. No decorrer da festa, inaugurou-se então outra
etapa ritual caracterizada por um espaço de troca criado entre as entidades e a assistência,
189

que até então permanecera como mera espectadora. Naquela noite, os membros da
assistência poderiam conversar com os exus e pombagiras que elegessem. Como acontecia
nas demais sessões de exu, as entidades permaneceram de pé, realizando determinadas
performances que as dotavam de singularidades. Alguns exus e pombagiras mantinham os
olhos fechados enquanto atendiam os consulentes. Outras entidades, mesmo incorporadas,
permaneciam de olhos abertos, entrecortando suas falas por risadas descontraídas.

Ao contrário do que ocorria em outras festas, neste evento as pombagiras se


utilizavam de gargalhadas, elementos performáticos essenciais na construção de seus
estereótipos. Algumas entidades demoravam um tempo significativo com determinados
consulentes, respondendo-lhes perguntas, rindo e oferecendo-lhes bebidas em suas taças e,
às vezes, abraçando-os. Algumas pessoas da assistência chegaram a receber flores das
entidades, gestos que eram interpretados como um sinal de aliança e proteção.

Tal como ocorrera nas outras sessões da casa, esta festa transcorreu sem
qualquer tipo de excesso. Algumas das senhoras entrevistadas referiam-se de modo especial
ao comportamento de suas pombagiras. Uma delas, cujo cotidiano oscilava entre suas
atividades domésticas (de mãe e avó) e os trabalhos no terreiro, destacou a importância que
ela conferia à sua entidade. Numa frase curta, dita de maneira enfática e incisiva, afirmou
que não podia passar sem a sua pombagira, pois, afinal, era ela quem lhe trazia alegria.
Poucos minutos antes de sua entidade “subir”, ela ainda dançando e cantando com uma taça
e um cigarro nas mãos, remetia-se exatamente aos sentimentos de júbilo e alegria
comumente atribuídos à pombagira.

No fim da sessão, pouco depois que a sua “leba” subiu essa integrante
referiu-se ao seu prazer em trabalhar no terreiro “fazendo caridade”. Tal como ela disse,
aqueles momentos em que estava trabalhando incorporada, proporcionavam-lhe uma
intensa leveza. Era como se seu corpo “estivesse livre, flutuando no ar”. Aparentando mais
de sessenta anos, dos quais parte significativa fora destinada a trabalhar com os espíritos
dos terreiros, ela dizia que era essa vivência ligada à espiritualidade o que lhe dava força e
alegria para prosseguir na vida.
190

Por volta das 22h, as entidades começaram a “subir”, deixando


temporariamente o terreiro. A festa, então, terminou, ordenadamente, tal como tinha se
iniciado. Chegara a hora de se despedir dos exus, que reunidos, de forma lúdica e
prazeirosa, tinham se encontrado para festejar.

6.4 Questões “boas para pensar”

Um fato significativo, relacionado àquela festa era a ausência de “homens-


mesmo” virando em pombagiras. Enquanto os “exus-machos” eram “recebidos” por
homens e mulheres da casa, as pombagiras só se incluíam no conjunto de entidades
recebidas pelas mulheres.

Essa correlação direta entre o sexo do médium e a “masculinidade” ou a


“feminilidade” do exu incorporado era intrigante. Afinal, segundo a ialorixá, existia uma
lógica ou um modelo para a incorporação de exus e pombagiras. Relembrando suas
palavras, era o “santo de frente” que designaria se a vibração seria de um exu-macho ou de
uma pombagira. Se no sistema de crenças daquele terreiro havia tal fundamento, por que
ele não era seguido quando se tratava de homens?

Em outras palavras, essa questão poderia ser enunciada nos seguintes


termos: Por que os homens do terreiro não recebiam pombagiras durante as sessões?
Teriam, todos eles, orixás “masculinos” como “santo de frente?” Antecipando tal resposta,
a pesquisa realizada naquele terreiro mostrava que tal fato não ocorria, pois havia filhos de
orixás femininos que somente recebiam exus.

Sendo assim, estar-se-ia diante de uma exceção, ou, ao contrário, existiriam


regras que vetavam a incorporação de pombagiras em homens do terreiro? Se de fato
houvesse tal evitação, esse comportamento não estaria ligado às regras estipuladas pela
191

própria liderança do terreiro, motivadas por lógicas que estigmatizam homens efeminados?
Conversas com pessoas do terreiro não respondiam essas perguntas.

Um fato significativo no sentido de reforçar o fato dos homens do terreiro


não incorporarem pombagiras referia-se às recomendações de Mãe Mariinha feitas por
ocasião da festa dos exus. Naquela ocasião, a mãe-de-santo não demandara aos homens
pertencentes ao terreiro levarem roupas femininas para a virada em pombagiras. Assim, a
ialorixá afastava a possibilidade de essas entidades descerem para trabalhar, pois, afinal,
nos terreiros acredita-se que a pombagira é uma entidade por demais voluntariosa e
caprichosa para aceitar “vir a terra” festejar sem a sua saia rodada, o elemento que mais
fortemente a caracteriza enquanto exu feminino.

Diante desse quadro, relembramos a afirmação de Eliane, logo no início da


pesquisa, a respeito de os homens da casa serem todos “homens-mesmo”. Dita num tom
enfático, aquela frase parecia querer afastar qualquer suspeita relativa à homossexualidade
dos médiuns da casa e através disso, demarcar uma certa distintividade para o terreiro
fundamentada em sua rígida moralidade. A partir de sua fala o terreiro não deveria ser visto
como outros que abrigavam filhos-de-santo cujos atos punham ao vivo e à cores sua notória
efeminação. Se tais valores morais adquiriam grande relevo naquele contexto, seria
realmente desastroso para a casa ter seus filhos-de-santo virados em pombagiras, entidades
que exigiriam deles performances ultra femininas diante da assistência.

Buscando cotejar o que ocorria naquele terreiro com outras casas, referimo-
nos a um outro pai-de-santo da umbanda, que apresentava uma forte recusa em lidar com os
“adés” e os “homossexuais”, categorias de gênero que, segundo suas palavras, ficavam
restritas aos terreiros de candomblé. Criticando essa religião, o pai-de-santo defendia a
idéia de que na umbanda não existiam “homossexuais”. E se caso eles existissem,
certamente, seus comportamentos seriam discretos durante as sessões, evitando qualquer
efeminação. Aliás, explicitando que a pombagira se constituía em um espírito feminino e,
mais que isso, em “espírito sedutor”, esse babalorixá era totalmente contrário à
incorporação de pombagiras por homens, já que, com o passar do tempo, esses poderiam se
192

tornar “vítimas” dos gestos efeminados da entidade e, dentre outros perigos, passar a
“desmunhecar”.

Menos radical que esse pai-de-santo, uma ialorixá da umbanda aceitava a


presença de filhos-de-santo “gays” em sua roça, mas dizia “não admitir...ou melhor, “não
aconselhar” que as pombagiras descessem em homens”, isto é, nos ‘homem-mesmo’, nos
“heteros” da casa. Ela alegava que tais entidades deixariam sua “influência” nos médiuns,
sobretudo nos dias de sessão, ocasiões em que as pombagiras, mesmo tendo “subido”,
tornariam seus cavalos sexualmente mais atrativos para outros homens.

Dessa maneira, tanto dentro quanto fora desses terreiros observavam-se


problemas e tensões correlacionadas à “descida” de pombagiras em homens. Se os
discursos mais “ortodoxos” negavam qualquer correlação entre a pombagira e o sexo ou à
identidade sexual do médium, surgiam outras tantas falas que marcavam uma forte
vinculação entre a “descida” das pombagiras e as performances efeminadas de homens,
mulheres, “bichas” e adés.

Variando em tipos e graus, essa correlação tendia a convergir para uma


mesma afirmação. Com a exceção das situações em que havia “ekê”, o fato de a filha ou do
filho-de-santo “virar” na pombagira resultava do desejo da entidade, e não da escolha do
médium. Aliás, essa era a premissa que sustentava as verdadeiras possessões. Se existiam
mais mulheres e gays que viravam na entidade, era em virtude do fato de as entidades
preferirem corpos femininos ou, de modo geral, pessoas que tivessem maior capacidade de
realizar performances por elas desejadas. Segundo essa lógica, as “bichas”, os “gays” e os
“adés” cumpririam este requisito com maior facilidade do que os “homens-mesmo”.

Dentre um conjunto de perguntas e hipóteses sobre essa ausência de homens


incorporando pombagiras, apontava-se também para a possibilidade de os próprios médiuns
evitarem tais incorporações. Afinal, não se pode esquecer de que as performances das
pombagiras, constituídas pelas mãos nas cadeiras, por seu andar gingado, por sua
193

gargalhada pouco discreta e pelo seu jeito sensual de fumar, eram elementos que, de
maneira geral, deixavam os homens vexados e temerosos diante da possibilidade de serem
tomados por gays. Numa sociedade perpassada por idéias e valores homofóbicos, tais
temores não eram infundados, pois, no mínimo, poderiam torná-los alvo de chacotas.

Enumerando esses casos de evitação, retomamos as falas de líderes e filhos-


de-santo dos terreiros pesquisados. Inicialmente sublinhamos o relato de Pai Carlos,
babalorixá que por quase vinte anos teria evitado receber Quitéria, fato que somente foi
revertido depois dos apelos de alguns membros mais antigos da casa.

Na casa de candomblé de Mãe Rita, também nos deparamos com uma


relação bastante tensa entre um médium e a sua pombagira, o que ocorreu tão logo esse
rapaz deixou um centro kardecista e ingressou no terreiro liderado por sua noiva. Sem
controle sobre as performances efeminadas que essa entidade o levava a realizar durante as
sessões, esse rapaz se angustiava, pois temia que as pessoas do terreiro, depois de passada a
incorporação, passassem a vê-lo como gay. Para reverter essa situação, a sua noiva relatou
que se viu obrigada a fazer uma série de trabalhos para manter aquela pombagira distante
de seu noivo. Referindo-se ainda à relação entre os filhos-de-santo e as pombagiras, essa
mãe-de-santo realçava que muitos homens do terreiro “tosavam” tais entidades por
temerem serem vistos como gays.

Como mais um exemplo, mostramos outro pai-de-santo que lidava com a sua
pombagira de forma tensa. Trabalhando na maior parte do tempo com um caboclo, esse
babalorixá recebia a sua pombagira uma vez por ano, numa situação bastante peculiar.
Temendo tornar-se objeto de risos e maledicências, fazia uma festa anual para essa
entidade, ocasião em que montava uma farta mesa com as comidas e bebidas prediletas da
pombagira. Vestido e adornado tal como a entidade lhe exigia, o babalorixá a recebia
durante um rito de caráter privado.
194

Voltando a atenção para o terreiro de Mãe Mariinha, notamos, no entanto, a


opinião de um médium da casa, explicitamente, contraria à idéia de que haveria uma
evitação por partes dos indivíduos do sexo masculino com relação à incorporação de
pombagiras. Indo contra essa afirmação, argumentava que se as pombagiras só desciam em
mulheres, o fato não decorria de preconceitos vigentes no terreiro, mas sim da vontade das
próprias entidades.

Nesse sentido, tal jovem comentava que já havia passado alguns


homossexuais por aquele terreiro. No entanto, reforçava o fato daqueles filhos-de-santo não
vincularem-se à performances efeminadas. Na sua visão, tais gestos não condiziam com as
casas sérias e constituíam “mais uma mistificação, um preconceito do que um fato”.
Completando seu argumento, ele fez as seguintes afirmações:
Os centros de umbanda e candomblé que se prezam não aceitam este tipo de
comportamento, não por imposição ou por impedir tais manifestações dos adés, mas
por simples respeito que a própria religião impõe. Com certeza os homossexuais
dançam e cantam com mais desenvoltura e desembaraço do que os homens que
podemos chamar de "machos", mas nunca sem perder o respeito e a rígida postura
moral e ética que todos os centros afro-descendentes pedem. Talvez seja justamente
por existir tantas mistificações e preconceitos que não exista este tipo de
comportamento. Claro, com algumas exceções que eu só pude presenciar na rua,
longe das casas de santo.

A opinião de outro umbandista, que esporadicamente freqüentava as giras da


casa de Mãe Mariinha, ofereceu uma pista interessante. Admitindo nunca ter visto
pombagiras descendo em homens durante as sessões daquele terreiro, tal filho-de-santo
verificou que ali não existiam impedimentos de homens receberem entidades femininas,
pois um dos médiuns da casa recebia uma preta-velha. Porém, ele destacou que quase não
era possível distinguir tal entidade feminina no conjunto dos pretos-velhos. Continuando
seus comentários, esse rapaz acabou por concluir que com os exus realmente era diferente.
No caso de homens receberem pombagiras, tais incorporações levariam os médiuns a
realizar gestos e expressões efeminadas, atos que certamente incomodariam tanto os
integrantes da casa quanto a assistência do terreiro. Finalmente, ele concluiu seu argumento
dizendo que, por causa desse “mal-estar” causado por homens “desmunhecando” e agindo
195

como mulher, a mãe-de-santo poderia interferir no sentido de evitar as incorporações das


pombagiras nos homens do terreiro.

Apesar de essas idéias terem sido totalmente descartadas por outro filho-de-
santo da casa, acreditei que elas seriam bastante plausíveis, sobretudo porque, de uma
forma ou de outra, evidenciava-se um sentimento de mal-estar, ou um certo
constrangimento a respeito de performances femininas realizadas pelos homens da casa,
fato que contrastava com a liberdade das mulheres de virarem em “exus-machos” e
poderem, inclusive, realizar performances relativas a essas entidades.

Concluímos assim, que o verdadeiro tabu consistia no fato de homens


incorporarem entidades que os levassem a fazer performances femininas, passíveis de
confundi-los com os gestos efeminados dos “gays”, das “bichas” e dos “adés”.

Depois de exaustivas observações e conversas com integrantes do terreiro,


em diferentes situações, um novo acontecimento surgiu para esclarecer tal questão. Esse
fato diz respeito a uma conversa com o pai-de-santo da casa, ou seja, com o filho de Mãe
Mariinha, que logo depois da morte de sua mãe assumiu a liderança do terreiro.

6.4.1 Pombagiras “doutrinadas”

Um ponto a ser destacado com relação às giras diz respeito ao fato de esses
eventos trazerem consigo dimensões bastante obscuras para aqueles que as assistem, sem
dominar seus códigos verbais e gestuais, os quais são perpassados por variados tipos e
graus de tensão, decorrentes das incorporações. Trata-se, realmente, de acontecimentos que
se situam entre dois domínios, ligados, muitas vezes, a situações opostas e antagônicas. No
terreiro de Mãe Mariinha viam-se alguns indivíduos cuja vivência da possessão era ainda
imatura no que dizia respeito ao domínio dos códigos e das normas pertinentes à doutrina
da casa convivendo com uma assistência que procurava o terreiro com um determinado
grau de expectativa, relativa não só à eficácia mágica de seus serviços, mas também à
196

execução de performances e gestos relacionados com um saber legitimado pelo terreiro.


Assim, os equívocos cometidos pelos médiuns durante o momento das incorporações não
deveriam vir a público, sob pena de colocarem em risco a imagem e o decoro do terreiro.

Conforme esclareceu um dos membros da casa, isso fazia com que as


sessões públicas implicassem uma atitude de constante vigilância por parte da liderança e
dos demais integrantes da casa, no sentido de observar comportamentos, falas e gestos
realizados pelas filhas e filhos-de-santo incorporados. Desse modo, a liderança e os
médiuns mais antigos da casa se mantinham numa atitude de extrema vigilância,
procurando evitar quaisquer gestos e comportamentos contrários à doutrina da casa. Se em
tais ocasiões os médiuns, por ventura, cometessem deslizes, seriam prontamente levados
para longe dos olhos da assistência. Situados nos fundos ou nas laterais do salão, esses
filhos ou filhas-de-santo incorporados poderiam, discretamente, receber ensinamentos
legitimados pela casa. Dentre esses, incluíam-se normas e condutas diretamente ligadas à
ausência de pombagiras incorporadas em homens do terreiro.

6.4.2 O depoimento do pai-de-santo

Numa das vezes em que estive presente no terreiro, aguardei até o final da
sessão para conversar com o Roberto, o filho de Mãe Mariinha, que passara a liderar a casa.
Um dos assuntos que aflorou nessa conversa dizia respeito à relação entre os homens da
casa com as suas pombagiras, tema que percebi estar fora dos assuntos ali discutidos.

Repetindo relatos já ouvidos em outras casas de umbanda e candomblé, o


pai-de-santo afirmou que todas as pessoas traziam consigo um casal de exus, ou seja, um
“exu-macho” e uma pombagira. Tais entidades se referiam às suas “coisas no santo”. Sendo
assim, concluía, as pombagiras vibravam tanto nas cabeças dos homens quanto nas das
mulheres, até mesmo porque tais entidades constituíam “energias incontroláveis”. Partindo
desse argumento, o pai-de-santo concluiu dizendo que, afinal “[...] se era Deus que havia
dado tal energia ao médium, só ele tinha o poder de tirá-la”. Referindo-se à ausência de
197

incorporações desses espíritos pelos homens daquele terreiro, o babalorixá explicou que o
fato relacionava-se a medidas tomadas por sua mãe, as quais estavam sendo seguidas por
ele. Eram atitudes ligadas à doutrina da casa, baseadas em certos fundamentos da religião.
Esclarecendo melhor este ponto, afirmou que, mesmo sem ser possível retirar uma
pombagira de alguém, existiam maneiras de afastar tais entidades da cabeça dos médiuns
durante as obrigações, o que evitaria que elas os perturbassem com incorporações não
desejadas ou indevidas.

Utilizando-se de categorias e termos ligados aos terreiros, ele explicava este


tipo de ação dizendo que “tratava-se de colocar na frente os ‘escoras’ da energia
masculina”. Assim, tão logo a pombagira começasse a vibrar, não teria como cortar a sua
vibração, mas, tão logo elas descessem, durante as obrigações, seria possível doutriná-las
para que elas recebessem aquilo que lhes fosse designado. Dessa forma, tais entidades
poderiam vir, tranqüilamente, numa sessão de exu para exercer funções diversas daquelas
pombagiras que incorporavam nos médiuns. Dentre essas obrigações, as pombagiras
poderiam trazer um recado, um aviso, uma mensagem ou uma orientação a mais dos orixás
com quem estariam em contato. Se nesses momentos um médium tendesse a incorporá-la,
seria hora de o zelador agir rapidamente, retirando-o dos olhares da assistência e, em
seguida, doutrinando-o.
Referindo-se a esse papel mediador da pombagira, capaz de estabelecer
pontes entre os médiuns do terreiro e os orixás, ele argumentava:
[...] porque ela [a pombagira] está assim numa correspondência maior com os
orixás, entre os guias do que o ‘exu de cabeça’ que está ali ‘fazendo caridade’,
correndo a gira, resolvendo problema de um, resolvendo problema de outros. Não é
que a minha pombagira, se você botar uma oferenda para ela, ela não vai resolver.
Ela vai resolver. Não vai ter é aquele negócio de vir, cantar ponto, ficar e saravar.
Tudo, porque é uma doutrina da casa e já foi preparada para o médium e a entidade
agirem dessa forma.

Voltando a questões relacionadas aos preconceitos existentes contra os


terreiros, Roberto justificou esse tipo de doutrina como uma forma de garantir uma melhor
visibilidade para a casa, livrando-a dos preconceitos existentes na sociedade:
É uma maneira de preservar a identidade da casa. Nós já temos uma religião
marginalizada, e o pessoal faz muita chacota, né? Então foi pensando muito nesse
198

problema do pessoal reclamando de outras casas e vindo para cá, ou seja, fugindo
das casas onde homens ficavam sujeitos a incorporar pombagiras. Não é ter
preconceito nem nada, é quase que uma defesa mesmo, desde antigamente. Mesmo
porque isso era visto de outras formas.

Defendendo esse tipo de comportamento, que vetava aos homens receber


pombagiras, Roberto remeteu tais ações a uma época em que os terreiros passavam por um
forte controle e, inclusive, por atos arbitrários da polícia: “[...] porque na época, a gente
tinha que registrar sessão na delegacia, e a gente era muito podado. Isto vai de antigamente,
era algo arraigado. Pelo menos aqui na casa eu posso falar isso.”

Sobre a presença de preconceitos sociais incidindo sobre as práticas dos


terreiros, sobretudo no caso da pombagira, ele prosseguiu sua argumentação:
Aí, depois o outro vai ficar falando: Olha só, eu vi você de saia. O médium que vem
preparado não vai dar atenção a essa fala, mas o outro vai ficar com diferença com
o guia, ficar com diferença com a entidade. Aí começam as guerras. Então é um
jeito de preservar as coisas. Preservar a própria pessoa e preservar o terreiro. Porque
a gente já é marginalizado de várias formas. Então, ainda tem mais isso também
que é olhado. Então essas coisas são de dentro da casa. Não é que é escondido, mas
é reservado.

Continuando a focalizar o preconceito existente na sociedade com relação


aos gays e suas performances, o pai-de-santo afirmou que tais idéias e julgamentos morais
vinham incidindo muito fortemente sobre a doutrina da casa. Em certo ponto de sua fala,
sublinhou a relação dos terreiros com os contextos nos quais se inserem.

O preconceito já vem de fora para dentro. Tudo de fora influi nas coisas da
casa. Seja as energias negativas, ou as energias positivas. Tudo influi no
andamento, no jeito que uma casa vai funcionar. Se ela está numa favela ou
se ela está numa zona sul. Se os malandros do morro falam: oh! hoje não
pode ter sessão aí não, porque nós vamos ter tiro até acabar com o mundo.
Ou o pessoal da zona sul fala: oh! esse atabaque só pode tocar até as dez
horas aí. Tudo influi, tudo tem um preconceito. Então é um jeito que a gente
tem de preservar a casa, o médium, o nome de um médium, a cabeça de um
médium, pra ela não ficar dançada.

Reportando-se ainda aos problemas que os médiuns têm com a homofobia,


que em maior ou menor grau perpassa os diferentes grupos da sociedade brasileira, ele
199

defendeu seu argumento citando a fala de um médium: “Pô, eu vou lá e o pessoal fica me
chacoteando. Eu tô fazendo uma coisa boa, e o pessoal fica lá, me chacoteando”. E
continuou a sua fala nos seguintes termos:
O médium que é bem preparado, não vai dar atenção pra isso, não vai ter problema
com isso. Com o tempo, o pessoal começa respeitar aquilo ali. Mas, como as coisas
então sendo de alto impacto, tem muita coisa mistificada. E tem várias coisas
erradas por aí. O pessoal rotula tudo, então a gente tem que ter um jeito de se
preservar e barrar certas coisas. Porque, senão, qualquer um que vem de fora fala:
Ah! Ali eu posso fazer uma marmotagem, né? Ah, aqui eu posso me esbaldar. Às
vezes, as pessoas nem são do santo, mas estão ali fazendo cenas e gestos, se
sentindo a vontade. Então é um jeito da gente falar: Opa! Aqui não. É um jeito de
pôr divisa nas coisas. Tudo vai de acordo com a doutrina. Tem muita casa que
aceita, que é normal da casa, os guias, os zeladores, entendem que é normal da
linha, tá tudo certo também. Então, aqui na casa é assim que a coisa funciona. Então
se chega um de fora, eu não ponho um texto para ele: é proibido pegar pombagira,
etc. Nas primeiras incorporações, algumas coisas são permitidas, o que é muito
excesso a gente traz pro canto, não deixa transparecer, né? No próprio espaço ritual
tem maneiras, palavras e jeitos. Então, à medida que a pessoa vai encaixando na
corrente, já vai se autodoutrinando. A energia da pessoa já vai se acomodando.

Complementando o seu argumento, o pai-de-santo finaliza nos seguintes


termos:
Não é uma cartilha que diz: é assim que pega espírito. É uma doutrina. Sabe? E as
energias que vêm, são infinitamente mais sábias que a gente. Sabe como é que
chega e como é que sai. Os médiuns têm que ser muito bem preparados. Estes sim
têm que ser bem preparados fisicamente, mentalmente, espiritualmente.

O que esse babalorixá dizia, auxiliando na leitura e interpretação das giras, é


que tais eventos eram perpassados por determinados tipos e graus de tensão. Tratava-se,
realmente, de acontecimentos que se situavam entre dois domínios, ligados muitas vezes, a
situações opostas e antagônicas. De um lado, havia alguns indivíduos cuja vivência da
possessão era ainda imatura no que dizia respeito ao domínio dos códigos e das normas
pertinentes à doutrina do terreiro; de outro uma assistência que procurava o terreiro com um
determinado grau de expectativa, relativa não só à eficácia mágica de seus serviços, mas
também à execução de performances e gestos relacionados com um saber legitimado pelo
terreiro.
Assim, os equívocos cometidos pelos médiuns durante o momento das
incorporações não deveriam vir a público, sob pena de colocar em risco a imagem da casa.
200

Como descreve um de seus membros, esse zelo fazia com que as sessões públicas
implicassem uma atitude de constante vigilância por parte da liderança e dos demais
integrantes da casa no sentido de observar e conter, quando necessário, comportamentos,
falas e gestos realizados pelas filhas e filhos-de-santo incorporados, tudo no intuito maior
de preservar a imagem do terreiro.
201

7 DENTRO E FORA DOS TERREIROS: MEMÓRIAS E HISTÓRIAS DE LIZ

Tentando entender as modalidades de convivência de indivíduos e grupos


com as representações e práticas relacionadas à pombagira, me aproximei de Liz, uma
senhora, que desde a infância freqüentou os terreiros de umbanda e desde 2005 tornou-se
evangélica. Como Liz enfatizava no decorrer de nossas conversas, depois de sua conversão,
ocorrida na IURD, ela não se voltou mais para os trabalhos com as entidades dos terreiros.

A compreensão desse processo remete à infância de Liz, período em que


começaram a ocorrer certos episódios relevantes em seu meio familiar. Tais fatos foram
contados, pouco a pouco, em inúmeras conversas durante a pesquisa. Por essa ocasião, Liz
já se identificava como “evangélica” e era freqüentadora das sessões da IURD.

No entanto, antes de focalizar com maiores detalhes a história familiar de


Liz, torna-se necessário fixar, mesmo que rapidamente, alguns dados sobre sua pessoa. Em
2005, esta senhora completara 55 anos. Era mãe de seis filhos e avó de nove netos. Havia
16 anos que estava separada de seu marido, bombeiro da Polícia Militar de Minas Gerais,
pessoa com quem conviveu 21 anos, mantendo um relacionamento bastante conturbado.
Depois de separada, teve um segundo companheiro, com quem viveu outra relação conjugal
também tensa e cheia de problemas. Foi durante este segundo relacionamento que Liz
esteve bastante próxima da pombagira e de seus “trabalhos”. Na época das entrevistas e
conversas, Liz trabalhava há vinte e quatro anos numa residência, onde logo que entrou
passou a auxiliar na criação dos filhos do casal, tornando-se praticamente um membro da
família. Seus patrões elogiavam principalmente o seu temperamento comedido, a retidão de
seu caráter e a sua fina educação.

Nas nossas primeiras conversas, Liz mencionou o fato de ser filha de pais
católicos, mas pouco envolvidos com essa religião. Seu pai, o Sr. Gonçalves, era
ferroviário, enquanto a sua mãe, D. Sônia, exercia funções domésticas no lar, onde criou
seus sete filhos.
202

O contato de Liz com os centros de umbanda e com as pombagiras ocorreu


desde a sua infância e está correlacionado com problemas que ocorreram, durante um
período significativo, em seu meio familiar. Seu pai, homem bondoso e carinhoso com os
filhos, tinha um comportamento estranho durante as noites, ocasiões em que regressava ao
lar embriagado e agredia a esposa, ameaçando-a de morte. Tais fatos deixavam Liz muito
abalada, pois, além de sentir muito medo, achava-se no dever de defender a vida da mãe.
Nesses momentos de pavor, ela imobilizava o pai, que portava geralmente uma faca,
enquanto sua mãe e seus irmãos fugiam pela janela para uma mata próxima à sua casa. Ali,
mãe e filhos se reuniam, e por lá permaneciam durante toda a noite. Tais episódios
repetiram-se durante toda a infância de Liz, até o dia em que o seu pai deixou a casa. A
partir de então, as coisas tomaram outro rumo. Tais mudanças foram interpretadas por ela
como frutos dos trabalhos de sua mãe no campo espiritual.

No entanto, não foram somente essas situações carregadas de agressividade,


que marcaram a conturbada infância de Liz. Em seus relatos, ela enfatiza que, ao regressar
ao lar sobre os efeitos do álcool, seu pai costumava desenvolver outro tipo de
comportamento, também considerado por ela como muito estranho. Em sua narrativa, tais
atitudes foram denominadas “o ritual da comida”. Ao longo das madrugadas, o pai servia
um prato para jantar e o colocava no chão. Em seguida, passava a comer naquele recipiente,
abocanhando a comida “como se fosse um animal”.

Em outros momentos, ele atirava o prato contra as paredes da casa e, em


seguida, amassava a comida com as mãos, cena que deixava a família atônita e sem saber
como reagir. Nessas ocasiões, Liz pedia ao pai para que parasse com aquele
comportamento, embora tal pedido não surtisse qualquer efeito. Depois de realizar todos
esses atos, o pai dirigia-se a um vaso, onde se encontravam flores de papel e,
invariavelmente, escolhia uma rosa vermelha colocando-a atrás da orelha. Em seguida, ele
pegava essa flor e a deixava junto a um quadro de São Jorge, recomendando aos membros
da família que não a tirassem de lá. Nessas ocasiões, comportava-se “como se fosse uma
mulher”, ressaltava Liz. Assim, logo que algum de seus filhos lhe dirigia a palavra, ele,
203

imediatamente, colocava as mãos nos quadris, exibia um sorriso irônico e, com a voz
notadamente feminina se identificava como “Rosinha”.

Essas atitudes e gestos se prolongavam pela madrugada e só findavam


quando o Sr. Gonçalves apresentava fortes estremecimentos e tremores no corpo: fenômeno
interpretado por Liz como a “subida do espírito”. Em seguida, o pai dormia profundamente
até a manhã seguinte, quando acordava sem ter qualquer lembrança do que tinha acontecido
na noite anterior. Liz enfatiza que o seu esquecimento era tamanho que ele chegava mesmo
a perguntar o porquê daquela flor vermelha estar junto ao quadro de São Jorge.

Assistindo a essas cenas durante toda a sua infância, Liz relata que na época
não conseguia compreender aquele comportamento do pai, homem zeloso com a profissão
e com os filhos. Afinal, o Sr. Gonçalves dizia detestar coisas relacionadas com os espíritos,
fato que Liz relembrava com o seguinte comentário: “Nosso Deus! Ele odiava o
espiritismo. Ele endoidava. Ele falava que aquilo era coisa de mulher sem o que fazer
dentro de casa que ia caçar centro de macumba”.

Somente depois de freqüentar os centros com sua mãe é que Liz disse ter se
conscientizado de que aqueles comportamentos do Sr. Gonçalves eram “obra de
pombagira”, entidade que “baixava” em seu pai, apesar de ele não manter qualquer vínculo
com os centros de umbanda. As pessoas alertavam D. Sônia, dizendo que se tratava de uma
entidade pouquíssimo evoluída e, portanto, perigosa para descer em sua casa. Preocupada
com esse fato, ela procurou um terreiro para afastar a entidade, cuja presença representava
um transtorno para a ordem familiar.

Mas os episódios continuaram a se repetir durante anos, até que, na tentativa


de melhorar as coisas para a família, sua mãe resolveu procurar um terreiro de umbanda.
Essa decisão foi tomada depois que pessoas conhecidas da família disseram-lhe que o
comportamento agressivo do marido era resultado de uma “simpatia forte”. Elas
204

enfatizavam que aquilo era “cachaça posta” em sua vida por mulheres que queriam destruir
a vida do casal.

D. Sônia passou então a correlacionar a agressividade do marido com


possíveis atos praticados por uma mulher com a qual o Sr. Gonçalves mantivera um
relacionamento extraconjugal durante sete anos. Ela pensava que, como vingança, a ex-
amante do marido teria feito um trabalho com a pombagira para destruir seu casamento.

A vida do casal transcorria dessa maneira quando mais um episódio trágico


marcou aquela família. Numa das madrugadas em que retornava à sua casa, aparentemente
calmo e sem alegar qualquer motivo, o Sr. Gonçalves desferiu uma série de facadas na
esposa. Correndo risco de vida, D. Sônia foi levada às pressas para um hospital, onde
permaneceu internada durante dois meses. Em decorrência desse fato, o Sr. Gonçalves foi
detido, permanecendo numa prisão de Belo-Horizonte até a saída da esposa do hospital,
ocasião em que ela retirou a queixa contra o marido.

Depois de sofrer tantos infortúnios, e sempre em busca de solução para o


mal que recaía sobre sua família, D Sônia procurou uma mãe-de-santo que morava na
vizinhança de sua casa. Foi então que se inteirou de que sua vida só melhoraria se ela
entrasse na gira e desenvolvesse. Buscando um lugar onde se sentisse à vontade para isso,
D. Sônia percorreu inúmeros centros, até que encontrou um terreiro localizado na região do
Alto Vera Cruz, um bairro pobre da região leste de Belo Horizonte. Como enfatizava Liz,
sua mãe, sempre acompanhada pelos filhos, passou a freqüentar sistematicamente as
sessões do centro liderado por D. Gabriela e, tempos depois, entrou na gira. Ajudada pela
dona do centro, que se tornara madrinha de Liz, D. Sônia passou a incorporar o exu Sete
Pedreiras, entidade que não tardou a evoluir para caboclo e dar lugar a Pai José. Foi assim
que a mãe de Liz passou a receber esse preto-velho, com quem trabalhou durante mais de
vinte e cinco anos, até a sua morte.
205

7.1 Nas giras da umbanda

Depois de freqüentar por um período significativo o terreiro de D. Gabriela,


mas sem obter respostas satisfatórias para seus problemas com o marido, D. Sônia foi
aconselhada pela mãe-de-santo a desistir de curá-lo. Tal como lhe disseram naquele centro,
tratava-se de “macumba antiga” e impossível de ser desfeita. Assim, auxiliada pela
comadre, D. Sônia passou a fazer trabalhos para que o marido deixasse o lar. Isto durou
alguns meses, até o dia em que, finalmente, o Sr. Gonçalves foi transferido pela Rede
Ferroviária para a cidade mineira de Montes Claros.

Aliviada com a nova situação e agradecida às entidades, D. Sônia decidiu


intensificar seus trabalhos com Pai José em sua própria casa. Era lá que passava o dia
incorporada pelo seu preto-velho, sentada no quintal e atendendo gratuitamente as pessoas
que a procuravam. Como nos disse Liz, foi assim que a sua mãe permaneceu até a morte,
“sentada no toco, fumando cachimbo e fazendo caridade para a vizinhança”.

7.2 Convivendo com os exus

Relembrando suas primeiras experiências com os exus, Liz fala da


importância que o terreiro de sua madrinha adquiriu em sua vida. Além de proporcionar-lhe
um ambiente festivo, essa casa de umbanda possibilitou a sua convivência com alguns exus
e pombagiras que ela disse nunca ter esquecido.

Uma dessas entidades ou, mais precisamente, a pombagira que descia em sua
madrinha era muito procurada pelas jovens do terreiro, principalmente na véspera dos
bailes semanais realizados naquela casa aos sábados. Como sublinhava Liz, o terreiro
constituía-se em um espaço de sociabilidade, que abrigava tanto ritos religiosos quanto
bailes, eventos nos quais as relações amorosas entre os jovens eram mediadas pelos
espíritos.
206

Aliás, alguns de seus ritos, como as “puxadas”, realizadas às sextas-feiras,


propiciavam essa interação entre jovens e espíritos, que eram percebidos ao mesmo tempo
como “entidades” e “pessoas”. Como Liz explicou, os relacionamentos mais duradouros e
contínuos com os espíritos ou transformavam-nos em membros da família ou inseriam-nos
numa rede de amigos. No entanto, ela realçava que, apesar da informalidade dessas relações
entre humanos e espíritos, seu grupo sabia respeitar as entidades e estabelecer limites nesse
convívio.

Durante as sessões de exu, os jovens, virados ou não em suas entidades,


tornavam-se cúmplices de namoros, desejos e fofocas, que permeavam o dia a dia do
terreiro. A seguinte fala de Liz esclarece sobre essa fusão entre o mundo espiritual e o
universo da festa.
Quando a gente ia pra casa de D. Gabriela era uma turma de amigos. A mesma
turminha que ia dançar no baile de sábado era a que freqüentava a sessão da sexta.
A sexta-feira era o melhor dia para nós, porque era dia de “puxada”, dia em que os
exus chegavam todos no terreiro. E assim a gente podia resolver os problemas do
sábado. Aí, a pombagira era tudo de bom pra gente. Pra arrumar namorado, pra tirar
o namorado de outra. E se a gente tava gamada num menino, ia na pombagira e
pedia pra ela ficar de olho nele pra nós. Pra não deixar outra menina passar na nossa
frente no baile. E em algumas sextas-feiras tinha champanhe e a gente gostava de
tomar escondido das mães. A gente fazia um bolinho com a pombagira. Ela
conversava com a gente numa boa. Só que com ela tinha um respeito maior, porque
o cavalo era a D. Gabriela. Com os adultos ela era mais séria, com a gente ela
brincava e ria. Ela tinha a mania de dizer: me dá a mão aqui. E para nós não tinha
nada melhor, porque a gente sabia que ela ia correr a gira, para poder pedir as
coisas e firmar. Era ela, o exu Mirim que era nosso colega e descia na filha de D.
Gabriela, o exu Marabô, que descia na minha irmã, e o exu Lalu que a gente
gostava de ficar perto dele por causa do cavalo, que era um menino maravilhoso. Só
eu é que não recebia espíritos. Comecei a receber um, mas me tiraram.

Essa ausência de um espírito diretamente vinculado à Liz, por meio da


possessão, relacionava-se a aspectos morais. Freqüentando as giras e ajudada pela dona do
centro, ela começou o seu desenvolvimento espiritual, processo que veio a lhe causar certos
problemas. É que tão logo começou a incorporar entidades, a sua madrinha e a sua mãe
notaram nítidas diferenças no seu comportamento de adolescente. O fato foi atribuído à
descida da pombagira Zureta, uma entidade diretamente ligada à desordem em vários
níveis. A partir dessa suposta incorporação, considerada muito perigosa pelas duas
207

comadres, as duas mulheres começaram a agir no sentido de impedir aquelas descidas da


Zureta. Liz relatou essa sua experiência nos seguintes termos:
Quando eu comecei a desenvolver, a pombagira Zureta começou a se manifestar. Aí
nem mamãe nem minha madrinha aceitaram. Elas falavam que ela não era
pombagira de descer em moça. Porque ela desorienta a pessoa. Isto no tempo em
que existia moça, né? Ainda existe, mas, são a minoria, né? Naquela época existia
moça mesmo. Aí, elas não aceitaram de jeito nenhum que uma moça pudesse
receber essa tal pombagira. Elas achavam que a Zureta era tudo o que tinha de pior
pra uma moça: beber, fumar, se prostituir. Eu recebi a pombagira só uns seis meses
e elas fizeram ela subir. Na hora que manifestava, mandava subir e descer outra
entidade.

Referindo-se à outra entidade como sendo um caboclo, Liz enfatizou que o


seu desenvolvimento terminou pouco tempo depois da “subida” definitiva da pombagira, o
que ocorreu devido ao fato de o caboclo não ter se identificado para a dona do terreiro (ou
seja, não ter “dado a chave”). Sendo assim, Liz saiu da gira e desistiu de incorporar outras
entidades.

Se a experiência direta de Liz com a possessão restringiu-se a esse fato


ocorrido em sua juventude, as suas relações com os exus se prolongaram por outros
períodos de sua vida, marcando-os significativamente. Refere-se a essa mesma época a sua
amizade com o exu “Seu Sete Montanhas”, entidade incorporada também pela sua
madrinha. Liz ressaltou a sua profunda ligação com esse exu que, segundo suas palavras,
era uma “entidade de luz”, quase situada no patamar dos caboclos.

Muitos anos depois desse convívio e já inserida no campo evangélico, Liz


remeteu-se aos poderes dessa entidade a partir de uma conversa com o “Seu Sete
Montanhas” sobre uma desilusão amorosa que tivera na ocasião. Depois de “correr a gira”,
essa entidade, que olhava para uma direção da cidade, virou-se repentinamente para ela e,
com as seguintes palavras, revelou-lhe o que via em seus “caminhos”: “É égua... o seu
homem tá chegando, mas ainda vai demorar muitas luas. E ele é bonito... Pode ficar
sossegada que eu vou adiantar umas luas pra você”.
208

Depois de se reportar a esta cena, Liz concluiu afirmando que, tal como
aquele exu lhe dissera, pouco tempo depois ela conheceu o homem que futuramente viria a
ser o seu marido. Nessa fala, bastante carregada de afetividade, demonstrou um carinho
especial quando se referiu ao Seu Sete Montanhas, seu “amigo”, e “conselheiro”, seu
“psicólogo” , “pessoa” especialíssima, com quem podia contar nas horas difíceis em que
não tinha a quem recorrer.

7.3 Pombagiras no terreiro de D. Sônia

Mesmo casada e morando longe da casa materna, foi por intermédio do


terreiro de sua mãe que, direta ou indiretamente, Liz manteve contato com as pombagiras.
Tais laços aconteciam em trabalhos de Pai José e também nas incorporações de Arnaldo,
um pai-de-santo amigo de sua mãe.

No entanto esses encontros mais freqüentes com a pombagira surgiram


novamente para Liz, por ocasião do fim da relação de seu pai com a família após a sua
transferência para o norte de Minas.

Mudando-se definitivamente para a cidade mineira de Montes Claros, o Sr.


Gonçalves comprou uma jovem das mãos do pai dela, passando desde então a viver uma
nova relação conjugal. No início desse relacionamento, nada mudou para família de Liz.
Tal como acontecia já há alguns anos, o pai, periodicamente, retornava ao seu antigo lar
para prover e visitar a família, até um dia em que não deu mais notícias.

Visivelmente preocupada com aquele fato e chegando a ponto de passar


sérias dificuldades financeiras, D. Sônia resolveu procurar solução para o problema com as
entidades. Como resposta, elas lhe disseram que o comportamento do marido decorria de
um trabalho feito com pombagiras na Bahia. Assim o desmache desse forte feitiço
implicava necessáriamente a ida de D. Sônia ao lugar onde ele tinha sido feito. Sem posses
e com sete filhos para criar, D. Sônia não teve condições de concretizar tal recomendação,
209

fato que, segundo Liz, foi decisivo para que seu pai se desligasse totalmente de seu antigo
lar.

Pontuando a sua fala, Liz relaciona o ódio de sua mãe pela pombagira
interpretando esse sentimento como algo motivado pelo feitiço que teria afastado
definitivamente o Sr. Gonçalves da família. Essa raiva de D. Sônia pela pombagira era tão
intensa que durante os quase trinta anos de trabalho com os espíritos ela se negava a assistir
às incorporações da pombagira Rosa por seu amigo Arnaldo. Eventualmente, quando tal
entidade descia com suas performances femininas, diga-se de passagem, muito admiradas
por Liz, D. Sônia saía do local ou, contrariada, virava o rosto para o lado, repetindo sempre
a mesma frase: “Não adianta, em mim ela [a pombagira] não monta”. Segundo Liz, a
pombagira sabia desse desafeto por parte de D. Sônia, mas não se importava com aquilo.
Ela explicava que essa raiva da mãe pela pombagira, parecia “não ser de coração”, e
justificava:
Eu acho que ela tratava a pombagira como se fosse uma outra pessoa, porque ela
não xingava, ela não dava confiança. Simplesmente saía de perto da pombagira e ia
pra dentro de casa fazer alguma coisa na cozinha ou lavar roupa. E a pombagira
sabia dos seus sentimentos, mas não ligava, porque exu quando toma birra de uma
pessoa, ela tá ferrada.

Assim, durante muito tempo, as referências de Liz sobre a atuação da


pombagira decorriam dos “trabalhos” que Pai José desfazia. É que, freqüentemente, esse
preto-velho trabalhava com os exus para desfazer demandas vindas de outros terreiros. Era
assim que Pai José desmanchava trabalhos feitos pelas pombagiras capazes de tornar um
marido infiel e violento.

Refletindo sobre esse fato, Liz enfatizou que um dos trabalhos mais
procurados pelas mulheres que iam até os pés de Pai José referia-se a mudanças de
comportamentos por parte de seus maridos. Além de “amansá-los”, Pai José também tirava-
lhes as amantes colocadas em suas vidas pelas pombagiras. Esse preto-velho valia-se dessas
entidades para livrar as mulheres que o procuravam dos mesmos malefícios que, no
210

entender de seu cavalo, teriam acabado com o seu casamento. Tais situações foram
relatadas por Liz nos seguintes termos.
Tinha casos de donas que chegavam lá chorando, que iam escondidas do marido.
Marido que não deixava a mulher chegar nem no portão, mas que tinha outra
mulher na rua. Marido que chegava tarde, ou dormia fora, sabe? Então Pai José
falava que aquilo era obra de pombagira. Assim ele fazia um trabalho pra
desmanchar aquele serviço feito contra a sua cliente. Ele fazia um trabalho com a
pombagira que tava atrapalhando aquele casamento, pra pombagira deixar aquele
casal em paz. Porque a pombagira atende quem dá o melhor: o perfume melhor, a
roupa mais bonita. Pra receber o melhor ela larga um trabalho e pega um outro.

Anos mais tarde, já com o seu casamento desfeito, Liz relacionou-se mais
diretamente com a pombagira que “descia” em Arnaldo. Referindo-se à relação desse pai-
de-santo com a sua pombagira, contou que essa entidade só descia quando havia algum
trabalho especial. Sublinhando uma dessas situações extraordinárias em que Arnaldo virava
na sua pombagira, Liz dizia:
Tinha umas ricaças que chegavam assim... aquelas louronas que chegavam de carro.
Tinha o dia especial dele receber a sua pombagira. Não era todo dia não. Não era
pra qualquer pessoa não. Eu mesmo vi a pombagira dele descer quando ele estava
com o terreiro de mamãe emprestado. Eu vi algumas vezes, mas era assim, caso
especial. E ele [o Arnaldo ] tinha cavanhaque né? E ela [a pombagira Rosa] tinha
ódio do cavanhaque dele, mas ela não podia mandar raspar, porque tinha uma outra
lei maior do que a dela que não deixava ele raspar. Tinha aquele negócio parecido
com o véu da dança do ventre, um véu assim vermelho que ele usava na boca
combinando com a saia vermelha. E era bonito. Era bonito demais. Ficava assim
uma mulher perfeita, até a voz dele mudava pra voz de mulher.

Ao relatar essa cena, Liz revivia o próprio deslumbramento diante de Rosa, a


pombagira incorporada pelo pai-de-santo transformado numa “verdadeira mulher”, quase
uma odalisca, com o véu cobrindo parte do rosto. Enfatizava que, a despeito de esse pai-de-
santo se transformar numa mulher durante aquela incorporação, ele continuava sendo muito
“macho” e, até mesmo, “mulherengo” . Ela sublinhava também que eram poucas as pessoas
que sabiam da relação do pai-de-santo com a pombagira. E completou sua fala fazendo o
seguinte comentário:
Nosso Deus! Ele era o maior garanhão! Até tentou agarrar uma moça parenta
de mamãe. Porque esses homens assim não falam, eles não contam que viram
na pombagira. Eu não sei te contar com quantas mulheres ele já noivou, já
namorou, já morou. Só que não casa. É a pombagira que não deixa casar.
Eles têm que ser igual a elas, cada dia com um parceiro diferente.
211

Liz enfatizou com essa fala, a agência da pombagira na vida de seus


“cavalos”, fazendo com que eles repetissem o seu comportamento transgressor e volúvel.
Afinal, argumentava ela, se as pombagiras eram andarilhas e estavam sempre de um lado
para o outro com um novo parceiro, aqueles que recebiam essa influência passavam a agir
da mesma maneira.

Ainda tratando da pombagira Rosa, Liz continuou a referir-se à sua clientela


nos seguintes termos:“Prá quem a pombagira Rosa mais trabalhava era pra essas prostitutas
que levavam aqueles perfumes importados, whisky de não sei quantos anos. Sabe, essas
donas de bordel? Pois é, tanto era assim que o Arnaldo tinha uma casinha do lado de fora,
um cômodo bem grande, só dela [da pombagira] e um dia ele me deixou entrar lá.”

Esse acontecimento foi referido por Liz como um gesto de extrema amizade
por parte daquele pai-de-santo, que na ocasião lhe disse a seguinte frase: “Ó negona, não é
qualquer um que entra aí não, viu? É porque você tá no meu coração”. No entanto, Liz
penetrou naquele mesmo território da pombagira ainda numa outra ocasião, quando, tempos
depois, ela envolveu-se diretamente com aquela entidade por meio de um trabalho.
Segundo suas palavras, esse fato teria ocorrido na época em que ela se interessou pelo seu
segundo companheiro. Assim, antes de iniciar essa nova relação, Liz se valeu dos poderes
de Rosa, com o intuito de torná-lo fiel.

Mencionando os motivos que a levaram até aquela entidade, Liz fez o


seguinte relato:
Eu me lembro de quando eu conheci o Hélio. Eu falei com o Arnaldo que ele era
muito mulherengo. Ele então me falou mesmo assim: aquele ali é linha de mulher,
ele não precisa de procurar mulher. As mulheres é que vão até ele. As mulheres é
que mudam a cabeça dele. Ele está com uma intenção, ele está com uma amizade
com a mulher e a mulher vem com outras intenções e faz a cabeça dele mudar. Ele
é da linha de São Jorge. Os homens da linha de São Jorge são seduzidos pelas
mulheres.

Liz relata que teria dito para aquele pai-de-santo que só queria ficar com o
Hélio se ele se tornasse um companheiro fiel. A resposta do pai-de-santo foi de que aquele
problema teria solução, argumentando da seguinte forma: “É só tirar a mulherada. Porque
212

tem pombagira que tira as mulheres do caminho dos homens, assim como põe as mulheres
na vida deles também”.

Ao se recordar desse trato que fez com o pai-de-santo, Liz relata detalhes do
trabalho feito com a pombagira Rosa, assim como aspectos referentes ao seu desfecho:
Eu lembro que na época foram vinte e um reais, não sei vinte e um cruzeiros novos,
há treze anos... E o Arnaldo disse: nós vamos entrar lá na casinha e você vai pedir a
ela [a pombagira] o que você quer. E daí eu pedi que queria ficar com o Hélio, mas
sem a mulherada. Era só eu. E ela [a pombagira] fez. A pombagira tirou a
mulherada dele, só que quando completou sete anos, certinho, o Hélio começou a
aprontar. Uma mulher se aproximou dele e tanto fez, tanto fez, que começou um
relacionamento com ele, mesmo sem ele querer. Aí, quando eu fui falar isto com o
Arnaldo, ele me respondeu assim: mas você fez um trabalho e sumiu! Aí eu vi que
eu tinha que ir renovando. Aí eu pensei: então não vale a pena. Eu vi que apesar de
ter vivido na umbanda muito tempo, eu era muito boba. Eu achei que fosse valer
pra sempre. Daí ele falou que era preciso renovar o trabalho. Aí eu respondi que
assim eu não queria mais. Aí a nossa relação foi só desandando. Era preciso uma
espécie de manutenção. E desse jeito eu não queria. O relacionamento foi piorando,
até que acabou.

Negando-se a encomendar trabalhos à pombagira, Liz sublinhava as


dificuldades desse período crítico de seu relacionamento com Hélio. Já convertida e
participante das Sessões de Descarrego da IURD, relatou que, freqüentemente, chegava
com seu companheiro no ponto de ônibus e se deparava com uma mulher fumando, com as
mãos na cintura. Tão logo avistava essa mulher, cujo nome era Eunice, sentia um profundo
mal-estar, que ela interpretava como uma reação diante da presença da pombagira
“encostada” no corpo da rival. Continuando seu relato, sublinhou que sua suspeita não
tardou a se evidenciar. A confirmação ocorreu no dia em que o tio de Eunice foi até sua
casa para lhe dizer que a sobrinha, de quem ele não gostava, estava freqüentando um
terreiro e fazendo um trabalho contra ela. Indo além, este senhor chegou a avisá-la de que
tratava-se de uma ação para matá-la. Ele, inclusive, testemunhara a compra de perfume, de
cachaça, de velas e rosas vermelhas pela sobrinha. Esse material teria sido entregue no
terreiro que Eunice estava freqüentando para ser utilizado no referido trabalho.
213

Preocupada, Liz procurou se informar melhor sobre o fato e, por intermédio


de terceiros, inteirou-se de que o referido trabalho visava mesmo a sua morte, isso porque,
no terreiro, disseram à Eunice que não havia outro caminho para obter o homem que
desejava se não encomendasse a morte de Liz.

Convidada por amigos para ir a um terreiro tentar desmanchar o referido


trabalho, Liz negou-se a fazê-lo. Afinal, apesar do medo que sentia dos malefícios ligados
às pombagiras, ela já estava convertida e acreditava na supremacia do poder de Deus sobre
todos os terreiros e suas entidades. Ela comentou que naquela ocasião estava começando a
campanha do “Vale do Sal” na igreja que freqüentava. Uma vez informada, resolveu
participar desse rito por três sextas-feiras consecutivas para se livrar daquele mal que
poderia incidir sobre ela:
Aí eu comecei a levar a minha foto e a dele [do Hélio] para ungir e passar
três sextas feiras no “Vale do Sal”. Sabe, essas pessoas que fazem mal pra
gente, tipo a Eunice estava fazendo? Na Igreja, elas são denominadas
“leões”. E aí o pastor dava um papel para a gente colocar o nome e destruir
aqueles “leões” da nossa vida. Aí eu escrevi no papel o nome dela, coloquei
no Vale do Sal e passei naquele caminho de sal grosso durante três sextas
feiras seguidas. Eu passava com a minha foto e a do Hélio na mão, junto com
o papel que eles deram na Igreja com o nome escrito, para a derrota do
“leão”.

Segundo Liz, nessa campanha Deus lhe deu “livramento” do trabalho feito
com a pombagira, mas que ainda assim a rival continuou a perturbá-la das mais variadas
maneiras.

Referindo-se a seu relacionamento com Hélio, Liz afirmou que enquanto


Eunice fazia trabalhos em terreiros com a pombagira ela fazia campanhas na Universal.
Com relação a esse período, ela destacou um fato que ocorreu numa das vezes em que saía
da Igreja, pronta para qualquer “batalha” contra o “inimigo” (no caso, o demônio). Nessa
ocasião, ela se deparou com a amante do companheiro, que começou a agredi-la
verbalmente, chamando-a de “macumbeira”, dentre outras palavras que visavam ofendê-la.
Diante dos gestos de Liz, que procurava algo na bolsa, tal mulher aumentou o grau de sua
agressão, dizendo-lhe que, caso ela estivesse tirando uma faca da bolsa chamaria a polícia.
214

Mesmo sentindo-se imensamente ofendida, Liz, calmamente, continuou a mexer na bolsa e,


num determinado momento, sem qualquer atitude pré-concebida, tirou a Bíblia e mostrou-a
para a rival, dizendo-lhe que aquela era a sua arma, já que ela tinha diante de si a própria
pombagira. Mais de uma década depois desse episódio, Liz concluiu que não tinha sido ela
a autora daquele gesto. Certamente, o ato de tirar a Bíblia da bolsa teria sido feito por Deus,
na sua batalha contra os demônios.

Longe dos terreiros, Liz não se valeu mais de trabalhos realizados com as
pombagiras, mesmo nos momentos de dor e angústia. Conforme revelou, nas situações de
aflição, “batia o joelho no chão e orava contra o poder do inimigo”, e assim alcançava a
graça pretendida. Todavia, sem deixar de acreditar nos poderes maléficos daquelas
entidades que povoavam os terreiros e buscando combatê-las, passara a participar das
Sessões de Descarrego da IURD. No entanto, essas deidades ligadas aos terreiros
continuaram a ter um grande poder na sua visão de mundo e na vivência de seu cotidiano.
A mudança após a sua conversão é que passara a referir-se a essas deidades como
predominantemente vinculadas ao mal.

Em consonância com as afirmações destacadas pela IURD, Liz enfatizou que


nas Sessões de Descarrego os exus e as pombagiras se apresentam como demônios que
trazem toda sorte de malefícios às pessoas. O processo de reinterpretação sofrido pelos exus
e as pombagiras no neopentecostalismo será tratado com maiores detalhes no próximo
capítulo. Antes, buscaremos compreender alguns aspectos referentes à caracterização da
pombagira a partir das narrativas de Liz.

7.4 Afetividade e violência na relação com os espíritos

A partir de relatos colhidos de modo informal, a maioria deles registrados


poucos momentos depois de serem, espontaneamente, referidos na fala de Liz, me deparei
com uma trajetória de vida surpreendente, dada à constante presença da pombagira em seus
215

episódios mais significativos. Afinal, era a agência dessa entidade que, além de promover o
amor, explicava os atos violentos e as situações de crise vivenciadas por toda uma família.

Voltando às cenas de possessão relacionadas à “descida” de Rosinha no pai


de Liz, encontramos a pombagira como protagonista de situações marcadas por tensões, em
grande parte, vinculadas à quebra de normas sociais e a inversões referentes aos papéis de
gênero. Afinal, tratava-se de um espírito feminino que, ao incorporar-se num homem,
levava-o a quebrar regras e comportamentos social e culturalmente instituídos. Ora, tal
inversão se tornava algo mais significativo, na medida em que colocava em cena o pai de
Liz, um respeitado “chefe de família”, de quem era esperado exatamente o contrário, ou
seja, o cumprimento e a cobrança de códigos e normas fundamentados no universo moral
da casa.

Esse espírito feminino surgia no cotidiano de uma família, jogando por terra
um dos pilares centrais de seu sistema de idéias e valores, ou seja, a “masculinidade” do
pai, aquela figura que, além de, objetivamente, cercear comportamentos e definir destinos
num Brasil “tradicional”, encarna a própria noção de ordem. Pois bem, numa sociedade tão
afeita às distinções e hierarquizações entre papéis de gênero e, enfim, à polaridade homem-
mulher, esse espírito feminino, marcado por um alto grau de entropia, levava o pai de Liz a
se apresentar diante de sua família enfeitado femininamente (com uma flor atrás da orelha)
e a ativar gestos vinculados às performances da pombagira Rosinha.

Mas esse quadro de desordem não parava por aí. Aqui, é necessário lembrar
que nos momentos de possessão a pombagira Rosinha colocava em cena outro
comportamento, que também remetia a sua figura a uma zona sombria e ambígua criada
pela transgressão de limiares. Desrespeitando convenções relacionadas à comensalidade e à
quebra de normas de higiene doméstica, a pombagira levava seu cavalo a comer como um
animal, abocanhando a comida colocada no prato no chão, como também a se utilizar dela
para sujar as paredes da casa.
216

Aqui, remete-se às idéias de Douglas (1976) sobre o fato das diversas


sociedades operarem com a oposição pureza e impureza ritual não só para distinguir grupos
e indivíduos, mas também para hierarquizá-los. Sendo assim, os diversos sujeitos sociais
que quebram convenções, por exemplo, relacionadas à maneira de comer ou de se esquivar
dos objetos e das ações consideradas sujas, tornam-se impuros e poluentes. Identificados a
esse universo ligado à poluição e aos perigos que lhe são inerentes, esses indivíduos e
grupos são lançados para os patamares mais baixos da sociedade, relacionados com seus
espaços de margem ou liminaridade.

Ora, pode-se encontrar um tipo de lógica semelhante quando se adentra no


panteão da umbanda. Enquanto as entidades da direita e alguns exus mais evoluídos
apresentam gestos e comportamentos ligados ao que é considerado “limpo” e ritualmente
“puro”, as entidades pouco evoluídas, como os exus pagãos, comportam-se de maneira
contrária aos padrões considerados “civilizados”, ferindo normas construídas e reforçadas
pelas sociedades e suas culturas.

Assim, o que Liz chamou de “ritual da comida”, pode ser tomado também
como uma quebra de definições e limiares, ou seja, como uma transgressão de regras e
padrões higiênicos socialmente instituídos, capazes de pôr em questão os próprios limites
da humanidade. Nesse sentido, lembra-se as observações feitas por essa ex-umbandista a
respeito de seu pai virado na Rosinha, que o aproximavam de um “bicho” comendo no
chão. Adianta-se aqui, que essa categoria usada por Liz para tratar os exus surgirá
posteriormente ao referir-se às entidades que se manifestam na IURD.

Mas os atos transgressores supostamente atribuídos à pombagira se


desdobravam naquela família. Numa das ocasiões em que regressou a sua casa alcoolizado,
o Sr. Gonçalves foi acometido por um estranho comportamento, que o fez desferir, sem
motivo aparente, golpes de faca contra a sua esposa. Tal atitude levou-o a se envolver com
a justiça e a permanecer preso durante dois meses.
Apesar do relativo silêncio de D. Sônia sobre esse ato do marido, Liz dizia
que sua mãe traçava uma forte correlação entre aquele gesto altamente agressivo e os
217

trabalhos supostamente encomendados por outra mulher que queria se vingar do casal.
Afinal, o comportamento do marido sustentava-se na violência e na desordem criada pelo
uso excessivo do álcool, atitude fortemente identificada com a classe dos exus.

Indo além, é necessário dizer também que tais trabalhos, fundamentados em


malefícios ligados ao amor e à paixão, surgem diretamente vinculados à pombagira,
entidade associada à agência da “outra”, ou seja, da mulher que representa um tipo de
feminilidade ilícita, capaz de pôr fim aos laços conjugais e à tranqüilidade dos lares.

Tais conjecturas entre o que acontecia com o marido e as “simpatias fortes”,


supostamente feitas por essa outra mulher, referiam-se, inclusive, a determinados objetos
cercados por tabus, colocados na bebida do marido. Como revelou Liz, as poucas mulheres
com quem sua mãe conversava sobre os atos agressivos do marido interpretavam-nos como
diretamente decorrentes de “unhas de defunto” misturadas na cachaça do Sr. Gonçalves por
sua amante. De acordo com aquela lógica, certamente era esse objeto, repleto de poder
maléfico, que o tornara louco, a ponto de praticar atos como aquele que quase matou a
esposa.

Reportando novamente as idéias de Douglas, podemos entender como esses


materiais, vinculados à morte, surgem dotados de eficácia mágica. Afinal, trata-se daquilo
que, em muitas sociedades, conforma ou integra uma dimensão sombria, relegada à
condição de margem. Em inúmeras culturas, a morte, enquanto algo liminar e detentor de
uma lógica própria e incompreensível para os humanos, lança poluição e perigo em tudo o
que dela deriva. Aqui, vale abrir um parêntese para sublinhar a ambigüidade suscitada pelos
símbolos derivados da morte. Entranhados de mana, esses símbolos tornam-se capazes de
pôr em ação, de fazer interagir ou, mesmo, de separar indivíduos, grupos e sociedades
(RODRIGUES, 1983).

Referindo-se ao uso do “idioma cristão da violência pelo terror, pelo


diabólico que perpassa a umbanda”, Carvalho (2003, p.99) comenta as palavras de um pai-
218

de-santo de Recife, que, ao mostrar-lhe o seu assentamento de Tata Caveira, afirmou que
gostava mesmo era de fazer trabalhos para o mal, usando “exus bem pesados, apanhar terra
de cemitério, unha de cadáver, colocar nome de pessoas na boca de cavalo morto e outras
coisas do tipo” que tocam e transgridem tabus referentes à morte.

Nos relatos de Liz sobre o terreiro de sua mãe, a clivagem entre o bem e o
mal surge associada às atividades de D. Sônia e às de Arnaldo. Enquanto a sua mãe
“virada” em Pai José se utilizava dos exus e das pombagiras apenas para desmanchar o mal,
Arnaldo usava essas entidades, da “esquerda”, para fazer feitiços pesados que lhes eram
encomendados ou para revidar demandas endereçadas a ele. Com efeito, esses trabalhos
concretizavam a violência potencial, assim como a desordem atribuída aos exus e às
pombagiras, aspectos negados pela maioria das religiões relacionadas ao cristianismo e que
encontraram lugar em ritos vinculados à umbanda (CARVALHO, 2003, p. 88).
\Em muitos casos, essa violência interna à religiosidade brasileira presente no
campo umbandista se relacionará com os símbolos que evocam terror, como o
cemitério, cujo significado prévio, que é cristão, torna-lo-á associado ao perigo e
aos medos constituídos por um imaginário ligado à negatividade e à morte
(CARVALHO, 2003, p. 99).

Eximindo a mãe dos trabalhos pesados ligados à “linha virada” aliás,


bastante utilizada por Arnaldo em seus trabalhos, Liz enumerava os elementos rituais que
acreditava estarem relacionados com os malefícios. Aqui, o sangue derramado pelos
“cortes”, nome dado nos terreiros ao sacrifício de animais, surgirá como o principal
elemento dessas atividades de cunho maligno e demoníaco.
Pacto com o diabo ela [sua mãe] nunca fez. Ela nunca fez cabeça, ela nunca
mexeu com sangue, com bode, com gato, nem com frango. Nada de sangue.
Ela não fazia nada disso. Os negócios dela eram, vela, defumador, banhos.
As pessoas que mexem com sangue estão mais aprofundadas. Porque até essa
linha que ela mexia está ligada com o inimigo. Porque os diabos têm várias
faces. Ele mostra de um jeitinho, ele vem na forma de uma dor terrível, ele
vem na forma de um caboclo, de um preto-velho, e cura sua dor, e daí depois
de alguns dias você está desempregado, pra você voltar lá e dar mais. Ele [o
diabo] dá com uma mão e tira com a outra. Ele puxa o tapete da gente e Deus
não é assim. Essas coisas que são feitas não são por amor ao ser humano. É
só uma troca. O meio que o inimigo tem pra ganhar mais é fazer uma coisa
boa. Aí a pessoa se ilude e diz: é bom, é bom mesmo. E depois vem uma
coisa pior, as coisas vão cada vez se agarrando mais.
219

Ora, são comuns os relatos sobre ações encomendadas à pombagira com o


intuito de matar parceiros infiéis ou de punir cônjuges que traem, dentre toda sorte de
crimes passionais. Em centros como o Rio de Janeiro, onde os cultos afro-brasileiros
adquirem forte expressão, esses crimes surgem periodicamente relacionados à crônica
policial. Um exemplo de grande repercussão ocorreu na capital carioca, no final da década
de 1970, ficando conhecido como o “caso da pombagira”.

Objeto de análise por parte de antropólogos, como Márcia Contins e Márcio


Goldman (1984), esse crime, que pôs fim à vida de um homem de cinqüenta anos, envolveu
sua esposa, além de outras três pessoas: o amante dessa senhora e outras duas mulheres,
uma delas mãe-de-santo de um terreiro localizado no município de Caxias. Como comenta
Maggie (1992), tratava-se de um crime comum, sem maior relevo, até que um repórter de O
Globo descobriu que uma das mulheres envolvidas no crime - no caso a mãe-de-santo -
recebia a pombagira Maria Padilha no referido terreiro, onde teria sido tramado o crime.
Tal ato envolveria essa pombagira que, uma vez consultada, teria indicado “[...] pós
mágicos e prescrito trabalhos para que a vítima morresse através de ataques místicos [...]”
(MAGGIE, 1992, p. 243).

Intimada a comparecer na delegacia, a mãe-de-santo recebeu a pombagira


nesse local, sendo inclusive filmada pela TV durante aquela cena de possessão (MAGGIE,
1992, p. 243). Ali, ocorreu um episódio que, poucos anos depois, proliferou-se no interior
das igrejas pentecostais. No sentido de atestar a mediunidade da mãe-de-santo, um pastor
pentecostal foi chamado pelo delegado, juntamente com um psiquiatra e um pai-de-santo.
Diante do público presente, o pastor tentou, sem sucesso, exorcizar o demônio que
supostamente se encontrava incorporado na mãe-de-santo, ungindo-a, inclusive, com óleos
sagrados. No entanto, nada disso valeu. Sem conseguir seu intento, o pastor deixou a
delegacia debaixo de gritos e palavras ofensivas ditas pela mãe-de-santo incorporada
(MAGGIE, 1992, p. 243).
220

Tal como comenta Carvalho (2003, p. 102) “[...], o fascínio desse conhecido
caso policial reside na concretização dessa violência atribuída aos espíritos da ‘macumba’,
ou seja, ao de a pombagira ser considerada a indutora de uma morte real.”

Voltando ao relato de Liz, observamos que nem mesmo depois da


transferência do marido para o norte de Minas e do desfrute de uma vida doméstica mais
calma, D. Sônia deixou de vivenciar sentimentos de hostilidade com relação à pombagira.
Esse ódio contra a entidade relacionava-se, agora, ao que ouvira nos terreiros a respeito de
sua nova condição familiar. Vale lembrar que, se, por um lado, D. Sônia via a mudança do
marido para outra cidade como algo extremamente positivo, na medida em que punha fim a
um quadro de violência doméstica, de outro, ela não contava que o esposo deixasse de
visitar e abastecer o lar a cada trimestre. Dessa maneira, o desamparo do marido fez com
que ela e seus filhos começassem a passar por duras privações de ordem material. A saída
encontrada por D. Sônia foi, então, desenvolver na gira e contar com um espírito que lhe
ajudasse a colocar ordem na casa.

Foi assim que a família de Liz começou a conviver com aquela entidade bem
humorada, cuidadosa e paciente, que se constituía na alteridade radical de D. Sônia,
sobretudo no que dizia respeito a humor, paciência e bons tratos dedicados às crianças.

Partindo da lógica umbandista, afigurava-se mesmo plausível que o drama


daquela família se encaminhasse para tal solução. Na medida em que os infortúnios daquele
grupo correlacionavam-se à presença de pombagiras pouco evoluídas, ou seja, de entidades
“pagãs”, “não doutrinadas”, a solução mais eficaz, certamente, relacionar-se-ia à presença
de entidades dotadas de maior grau de luz, como, os pretos-velhos. É segundo essa lógica
que surge Pai José, um espírito evoluído, que só se valia dos exus para desfazer o mal.

Nesse sentido, observa-se que a superação do drama familiar de D. Sônia


espelhou o quadro de hierarquias e desigualdades (NEGRÃO, 1996) constitutivo do
panteão da umbanda. Naquele contexto familiar, a desordem criada por uma entidade
221

situada nos baixos patamares hierárquicos da “esquerda” no caso, a pombagira Rosinha, foi
superada por meio de trabalhos que afastaram de uma vez por todas aquele espírito da
família de D. Sônia. O passo seguinte se constituiu na presença de uma entidade da
“direita”, que impôs ordem naquele contexto familiar. No entanto, é necessário sublinhar
que, para afastar a pombagira que atormentava a família, foi necessário afastar do lar o
médium que a incorporava: o próprio marido de D. Sônia.

Aqui, toca-se em um ponto essencial no que tange ao relacionamento entre o


povo-do-santo e suas entidades. Se em suas autonarrativas os indivíduos que “trabalham”
com os espíritos sublinham os benefícios proporcionados por suas entidades, ligados à
abertura de caminhos, proteção e poder, o outro lado da moeda é representado pela ênfase
nas dificuldades e contratempos suscitados por esses mesmos espíritos. Sendo assim, os
médiuns têm que administrar atentamente não só a sua relação com os espíritos, como
também o poder de agência que recebem a partir dos vínculos estabelecidos com essas
entidades.

Como bem aponta Hayes (2005), seguindo pistas sugeridas por Birman
(2005), as características e os comportamentos das entidades são regulados por uma lógica
própria e impõem suas próprias demandas. Ora, tal lógica, geradora de comportamentos e
desejos, pode, muitas vezes, estar em desacordo com os desejos, habilidades e escolhas dos
sujeitos que incorporam as entidades (HAYES, 2005). Esses descompassos implicam
tensões e, até mesmo, indisposições entre essas duas partes, sobretudo no caso de
pombagiras e exus, entidades desordeiras e transgressoras, capazes de representar, muitas
vezes, o avesso da conduta social e culturalmente adequada às várias situações. As
seguintes colocações de Birman auxiliam na compreensão desse descompasso entre as
perspectivas dos médiuns e a de seus espíritos. “As entidades abrem caminhos que nem
sempre a pessoa pode seguir, fecham outros em momentos inconvenientes, prometem
sucesso sem dar ao médium as condições para garanti-lo, punem seus inimigos sem levar
em conta, por vezes, que as médiuns, apesar de tudo, precisam deles ao redor de si.”
(BIRMAN, 2005).
222

No caso de D. Sônia, as entidades envolvidas no seu drama familiar não lhe


deram outra saída para transformar seu cotidiano violento senão afastar seu marido do lar.
Certamente, a aceitação desse tipo de solução significou para ela um alto preço a pagar, já
que desembocou num outro tipo de crise. Além de perder totalmente o convívio com o
marido, fato que D. Sônia não desejava, perdeu também o amparo que ele concedia à sua
numerosa família.

No que diz respeito aos filhos, esse afastamento radical do pai também
significou uma importante perda. Afinal, mais que um mero provedor, o Sr. Gonçalves era
um pai amoroso, que dava aos filhos a afetividade negada pela mãe. Assim, os trabalhos
realizados nos terreiros para livrar aquela família da pombagira Rosinha resolveram um
problema, mas criaram outros relacionados à ausência total do esposo e do pai no ambiente
familiar. Depois de cortados os vínculos com a família, o pai nunca mais regressou ao
antigo lar, tendo morrido em Montes Claros sem que os filhos pudessem ao menos se
despedir dele.

Percebendo que o feitiço para afastar o marido de casa surtiu resultados não
esperados, D. Sônia tentou revertê-lo, sem sucesso. A solução encontrada por essa senhora
foi, então, intensificar os “trabalhos” com uma entidade que a ajudou significativamente na
criação dos filhos e, enfim, no ordenamento doméstico. No entanto, é preciso atentar que
essa ajuda, desde o início, significou um preço a pagar.

Como enfatizou Liz, tão logo a mãe começou a trabalhar com o preto-velho
ocorreu uma forte reação por parte da vizinhança. Muitas das senhoras, antigas colegas de
D. Sônia, também esposas de ferroviários, passaram a não cumprimentá-la. Não foram
poucas as vezes que Liz ouviu insultos chamando-a de “tisil, filha de macumbeira largada
pelo marido”. Somente depois de um tempo significativo é que essas mesmas pessoas
passaram, freqüentemente, a procurar Pai José para cuidar, sobretudo, da saúde de seus
filhos e netos.
223

Aqui, surge uma pergunta referente à aceitação da pombagira nesse meio tão
avesso ao feitiço e perpassado por preconceitos referentes à cor da pele e aos aspectos
morais: Qual seria a reação dessa vizinhança se, ao invés de um preto-velho, D. Sônia
recebesse uma pombagira? Arrisca-se dizer que esse tipo de rejeição e descriminação
tenderia a ser maior, pois, além de ser negra, de estar ligada ao feitiço e de ter um marido
absolutamente ausente, D. Sônia passaria também a ser identificada com um tipo de
sexualidade exacerbada. Tal atributo seria muito perigoso e comprometedor para uma
mulher inserida naquele meio, no qual prevalecia um tipo de moralidade conservadora.

Ao receber o seu preto-velho, D. Sônia se viu tomada por um espírito a


representar um novo referencial de autoridade masculina em seu lar. No que diz respeito
aos assuntos práticos do dia-a-dia, Pai José assumia parcialmente a figura do provedor,
pois, apesar de não cobrar por suas consultas (baseadas numa ética da caridade), sempre
que achava necessário, pedia aos consulentes doações e provimentos para suprir as
necessidades materiais de seu cavalo. Não bastasse, também com relação à convivência
entre mãe e filhos, o preto-velho significou ordenamento e equilíbrio, na medida em que
sua ação foi capaz de mitigar várias tensões que perpassavam o cotidiano da família. Além
de garantir um ambiente seguro, avesso às cenas de terror vivenciadas pela mulher e seus
filhos durante as investidas da pombagira Rosinha, Pai José ainda criou espaços de
liberdade e sossego para as crianças nos momentos em que D. Sônia o incorporava.

Explica-se melhor. As “descidas” regulares do preto-velho em seu cavalo


propiciavam aos filhos de D. Sônia um tipo de tranqüilidade negada no curso de um
cotidiano atravessado pela violência materna. É necessário aqui mencionar o
comportamento agressivo de D. Sônia, pessoa que, por motivos ínfimos, ou mesmo sem
motivo algum, castigava os filhos com surras e outros maus-tratos. Em tal contexto, a
presença de Pai José, incorporado em D. Sônia, às vezes, durante quase todo o dia, garantia
para a família a convivência com um ser dócil e cuidadoso. Pode-se dizer que aquela
entidade tinha cuidados paternais com as crianças em geral e, sobretudo, com os filhos e
filhas de D. Sônia, chamando-lhes a atenção quando necessário ou orientando-os nos
224

problemas do cotidiano. A fala de Liz revela-nos essa relação paternal da entidade com ela
e seus irmãos.
Ele era como se fosse uma pessoa da família. Sabe aqueles pretos-velhos alegres,
sorridentes? Quando a gente queria falar com ele, contar uma coisa que tivesse
acontecido, a gente ia até o toco pra conversar. A gente também ia até ele quando
tinha algum serviço a vista e pedia: Oh, Pai José, a gente, tá arrumando um
emprego, o senhor corre a gira lá pra nós. Aí ele pedia pra gente escrever o
endereço. Aí a gente escrevia e ele ficava trabalhando com aquele papel na mão.
Ele também ajudava quando tinha prova. Ele pedia para chamar a pessoa e falava:
Você vai fazer prova amanhã, então, antes de sair, você faz isto. E com Gláucia,
minha irmã, ele falava: segura sua língua, você está respondendo muito o cavalo.
Não pode fazer isto não. Você tem que segurar a sua boca.
Tem uma coisa que eu aprendi com ele: mesmo que o cavalo esteja errado, se você
calar você ganha.

Em seu dia-a-dia, D. Sônia referia-se ao seu guia sem maiores formalidades


e reverências. Ao narrar essas lembranças, Liz comenta que aquela maneira de sua mãe
tratar Pai José lembrava as relações entre pessoas da mesma família. Com efeito, décadas
após a infância, Liz, já vinculada a IURD, relembrou saudosamente Pai José e suas
constantes manifestações de paciência e carinho.

A relação da minha mãe com Pai José era tipo mulher com marido, ou irmão
mais novo com irmã mais nova. Ela não obedecia ele assim, muito não, sabe?
Quando a gente ficava sabendo de alguma coisa da família através dele, a
gente contava pra mamãe e ela dizia. Eh! Pai José é fofoqueiro![e Liz sorri
lembrando esse fato] Sabe essas coisas, é como se fosse uma pessoa. Mamãe
falava dele como se fosse uma pessoa e não uma entidade. Quando a gente
fazia alguma coisa errada, que não agradasse a ele nem a mamãe, ele
chamava a atenção, até depois que eu estava casada. Na família ele
representava um tipo de autoridade. Era como se fosse um pai pra nós.

Observamos aqui que a afirmação de uma identidade evangélica não excluiu


o afeto e, até, um certo saudosismo por essa entidade tão presente e significativa em sua
juventude. Pode-se dizer que a figura daquele preto-velho representou algo semelhante à
figura do Exu Sete Montanhas na época em que Liz freqüentava o terreiro de D. Gabriela.
Era o preto-velho e o exu que lhe serviam de conselheiros e protetores nas várias situações
de sua vida sofrida. Diante dos maus-tratos da mãe, era com esses espíritos que ela contava
para desabafar e contar as coisas do seu dia-a-dia.
225

Todavia, Liz sublinhava o profundo respeito que nutria por essas entidades,
assim como a sua consciência dos limites que deveria guardar diante delas. Isso foi dito por
ela nos seguintes termos: “Eles [os espíritos] eram percebidos e tratados como mais um da
família, como ‘entidades-pessoas’ ao mesmo tempo. Mas, a gente sabia até onde podia ir
com as brincadeiras. Existia uma barreira invisível que a gente sabia que não podia
transpor. Nós sabíamos dos limites da gente.”

Aqui, torna-se necessário ressaltar a fala de Liz sobre certos aspectos


tratados anteriormente, relativos ao fato de os espíritos surgirem para o povo-do-santo
como seres sociais dotados de idiossincrasias que os situam como pessoas para aqueles com
quem interagem. Seguindo essa trilha, aproximamo-nos das análises de Lambek sobre a
possessão entre os Malagasy, contexto no qual os espíritos representam uma forte instância
de mediação entre pessoas constitutivas dos núcleos familiares. Se, nesse contexto, a ação
dos espíritos se dá, principalmente, na comunicação entre os cônjuges, no caso da família
de Liz o espírito de Pai José mediava as relações entre a mãe e os filhos, sobretudo aquelas
perpassadas por um maior grau de tensão.

Mas, não devemos nos esquecer de que a pombagira também se relacionava


diretamente com Liz. Durante um período de sua adolescência, essa ex-umbandista
participou das giras realizadas no centro de sua madrinha, local onde começou a incorporar
a pombagira Zureta. Como fica claro em sua fala, tal fato logo despertou a preocupação de
sua mãe e de sua madrinha, que viam na entidade uma ameaça potencial ao decoro e à
honra de uma moça. Assim, Zureta teve de dar lugar a outra entidade que não ameaçasse os
limites do comportamento feminino. Deve-se lembrar que a pombagira descia num
ambiente familiar, cujo universo de valores tinha como parâmetro a subordinação da
mulher ao lar, à família e ao casamento. Nesse contexto, a figura de uma pombagira
incorporada numa moça representava um perigo potencial, na medida em que acenava para
a ruptura de padrões referentes ao feminino em uma pessoa ainda despreparada para a vida
adulta.
226

Relembrando outros aspectos da narrativa de Liz, sublinha-se que depois


dessa experiência com a pombagira a ex-umbandista só veio a se aproximar efetivamente
dessa categoria de entidades décadas mais tarde, quando se sentiu atraída por Hélio. Diante
do problema de amar um homem cuja conduta com as mulheres a desagradava, Liz se valeu
da pombagira para transformá-lo num companheiro presente e fiel. No entanto, ao ver ruir
essa união, ela correlacionou seu fim a certos atributos da entidade que não lhe agradavam:
a ambivalência e o caráter “interesseiro” da pombagira, relacionado com a sua escolha por
causas consideradas mais vantajosas em termos materiais. O outro ponto considerado pela
ex-umbandista como negativo referia-se à necessidade de renovar periodicamente os
serviços da entidade, por meio de pagamentos e bens materiais. No entanto, não foram
esses problemas que constituíram o motivo maior alegado por Liz para seu afastamento dos
terreiros. Essa senhora relatou um episódio ocorrido com sua mãe, cujo trágico desfecho
implicou uma reorientação religiosa para Liz e seus familiares.

7.5 A “Passagem”

Tudo começou num dia inteiro de incorporação por parte de D. Sônia, que
recebeu um recado de pai José avisando-lhe que viria uma forte demanda oriunda de outro
terreiro. Tratava-se de um feitiço que aquele preto-velho estava desfazendo, cujos autores,
insatisfeitos com a entidade, pretendiam se vingar, lançando sobre seu cavalo um forte
malefício. Zelando por aquela que o incorporava, Pai José prescreveu-lhe um banho feito
com folhas. No entanto, ele avisou que tal providência deveria ser realizada até a meia noite
daquele dia, pois seria esse rito de limpeza que deixaria D. Sônia imune aos carregos
pesados enviados pelo terreiro inimigo.
Apesar de avisada, D. Sônia desobedeceu a sua entidade, dizendo que estava
muito cansada para buscar aquelas ervas. Como resposta ao preto-velho, D. Sônia teria
mesmo resmungado que Pai José achava que ela era tão desocupada quanto ele, e que por
isso poderia ir buscar folhas naquela hora, já tarde da noite.

Liz confirmou que a mãe não tomou o referido banho recomendado por seu
guia e que no dia seguinte já começou a dar sinais de estar acometida por alguma
227

enfermidade. Os dias foram se passando, e a saúde de D. Sônia começou a piorar, a ponto


de não lhe permitir mais sentar no toco para incorporar a sua entidade. Acompanhada pelos
filhos, D. Sônia passou por vários médicos, sem que nenhum deles apresentasse qualquer
diagnóstico ou solução satisfatória para o mal que lhe acometera. Tomada por esse mal, a
mãe de Liz foi emagrecendo visivelmente e ficando prostrada até o ponto de não poder
mais sair do leito. Simultânea a essa peregrinação pelos médicos, D. Sônia também passou
a receber cuidados espirituais por parte de Arnaldo e de outros pais-de-santo, alguns vindos
da Bahia especialmente para tratar de sua saúde. Na opinião desses babalorixás, o mal que
acometera D Sônia relacionava-se a um forte feitiço que não fora prevenido a tempo.

Todas essas atividades rituais dos pais-de-santo fizeram com que o ambiente
daquela casa sofresse uma forte transformação. Acamada e vestida toda de branco, D. Sônia
se via rodeada pelos babalorixás, que periodicamente, realizavam limpezas rituais com
pipocas, item diretamente relacionado com Obaluaê, o orixá que rege a saúde e a doença, a
vida e a morte.

Depois de terem um alto dispêndio financeiro com aqueles trabalhos que,


esperava-se, devolveriam a saúde à D. Sônia, seus familiares foram surpreendidos por um
fato que pôs fim a todas as esperanças. Tratava-se do dia 13 de maio, data em que os
terreiros homenageiam os pretos-velhos. Seguindo essa tradição, há anos D. Sônia vinha
comemorando esse dia com uma festa, que se iniciava com uma alvorada de fogos e
terminava com a incorporação de Pai José em sua casa, recebendo aqueles que o
homenageavam. Mesmo acamada e bastante fraca, D. Sônia disse que não abriria mão de
saudar a sua entidade naquela data. Logo pela manhã, deixou o leito e se dirigiu para a
cozinha, anunciando a necessidade de iniciar os preparativos para a festa. Haveria uma
pequena homenagem com o que pudesse ser feito. Depois desse pedido, D. Sônia ordenou
que a sua cama fosse colocada na sala, pois ela queria acompanhar a festa de perto.

Liz relata que sua mãe permaneceu acamada durante todo o dia, enquanto
seus familiares preparavam a festa. Por volta do anoitecer, os convidados começaram a
chegar e a se acomodar na sala, próximos ao leito de D. Sônia. Instalada nesse espaço e
228

participando da festa como podia, num determinado momento D. Sônia pediu aos seus
filhos a saia branca que costumava usar para receber o seu guia. Ela argumentava que
queria pelo menos saudar a “caixa”, ou seja, o atabaque sagrado que invoca as entidades
dos terreiros.

Nesse momento, instaurou-se uma nítida divisão entre a opinião de Arnaldo


e a dos filhos de D. Sônia, que eram contra a concretização de tal gesto. No meio desse
conflito, a opinião de Arnaldo prevaleceu. Relutantes, os filhos entregaram a saia à D.
Sônia, que, depois de vesti-la, foi caminhando lentamente em direção ao atabaque para
reverenciá-lo. Tão logo parou diante dele, abaixou a cabeça, dando sinais de que estava
incorporando a sua entidade. Ela, então, saudou o atabaque sagrado e, num gesto súbito,
caiu para trás sob o olhar assustado dos presentes.

Apesar de socorrida imediatamente, a mãe de Liz não chegou ao seu leito


com vida. Ainda sob o impacto da morte da mãe, os filhos de D. Sônia começaram a lançar
ofensas contra Arnaldo, responsabilizando-o pelo ocorrido. Afinal, ele sabia que D. Sônia
estava fraca demais para receber Pai José e, certamente, teria sido aquela súbita
incorporação que causara a sua morte. A festa dos pretos-velhos acabou num clima de dor e
revolta, sentimentos que, segundo Liz, logo deram lugar a uma forte descrença da família
com relação ao espiritismo, representado ali, naquele derradeiro momento, pelas figuras de
Arnaldo e dos pais-de-santo que o auxiliavam.

Depois desse evento, os filhos de D. Sônia romperam os laços com Arnaldo


e, desacreditados de todo o esforço e dispêndio financeiro realizado com os pais-de-santo,
procuraram cada qual um novo campo religioso. Uma das irmãs de Liz se tornou kardecista
e outra passou a transitar sem maiores problemas pelo catolicismo, pela IURD e pelos
terreiros. No caso de Liz, ocorreu a sua vinculação ao neopentecostalismo, mediante sua
freqüência aos ritos da IURD. Ela relatou esse drama familiar com as seguintes palavras:
Ela [a sua mãe] estava muito ruim, ela estava à morte, e ela sarou no dia
treze. Ela ficou quatro meses assim, de não levantar, de comer com colher na
boca, de não trocar de roupa sozinha. No dia treze ela praticamente sarou.
Parece que ela sabia que ia morrer e ela queria morrer no espiritismo. E
229

morreu mesmo, porque ela foi saudar os pretos-velhos e ela chegou a receber.
Na hora em que subiu, o espírito levou ela. Foi por isso que todo mundo
ficou com raiva do Arnaldo, porque ninguém queria entregar a saia e ele
disse: entrega. E ele falou que sabia que isso ia acontecer. Ele disse: se D.
Sônia queria era isso, porque não fazer a última vontade dela? Todo mundo
ficou com raiva, todo mundo desiludiu, desencantou. A gente achou que a
doutrina não valia nada, que era uma bobagem. O dinheiro que a gente
gastou com aquilo tinha sido mal empregado. Agora, eu acho que o único
que tem poder de salvar é Deus.

Observamos que a narrativa de Liz, revela um aspecto bastante relevante:


sem se prender à acusação dirigida ao pai-de-santo, que, segundo seus irmãos, teria sido o
principal responsável pela morte daquela senhora debilitada, ela atentava para o alto preço
que sua mãe teve que pagar enquanto cavalo de uma entidade. Tal como sublinhou, D.
Sônia tinha entregado a sua vida a um espírito e, como conseqüência desse ato, teve de
passar a vida sentada no toco, fumando cachimbo e fazendo caridade para a vizinhança.
Esse gesto a impediu de ter horários regulares para se alimentar, de cuidar da própria vida,
e até mesmo, de se divertir. Apesar das boas ações realizadas por Pai José e da saudade que
a sua figura deixara para os que desfrutaram de sua presença, Liz sublinhou que a entrega
da mãe ao espiritismo fora longe demais.

Aqui nos remetemos às observações de alguns estudiosos sobre esses fortes


vínculos criados entre médiuns e entidades. Pesquisando a bibliografia sobre o tema,
observa-se que um dos maiores problemas vivenciados por mulheres médiuns ocorre na
relação conflituosa que se dá entre as demandas de suas entidades e as exigências de seus
cônjuges. Tais conflitos podem chegar a configurar uma relação triangulada, na qual um
dos vértices é ocupado pelo espírito, o qual, freqüentemente, passa a ser o protetor de quem
o incorpora e a rivalizar com o companheiro ou marido desta. Com efeito, o espírito rouba
para si as atenções e os cuidados que a esposa (seu cavalo) dispensava a seu cônjuge.
Assim, as uniões entre mulheres médiuns e seus esposos ou companheiros demandam
certas negociações, sob pena de fracassarem e até implicarem castigos para o casal ou um
de seus membros (BASTIDE, 1983; BIRMAN, 2005; BOYER, 1993; CAPONE, 2004;
HAYES, 2005; MAGGIE, 2001).
230

No caso das relações entre D. Sônia e Pai José, esse tipo de tensão não
existiu, mesmo porque, antes de intensificar os trabalhos com aquela entidade, seu marido
com os maridos das médiuns que lhe servem de cavalo. Pai José surge como
um ente familiar agregado à casa de Liz, que ao invés de demandar atenções para si, doava
carinho e cuidado para os que lhe procuravam.

Na narrativa de Liz, esse perigo relacionado com o ato de trabalhar com os


espíritos não surgiu relacionado a qualquer punição perpetrada pela figura de Pai José.
Aliás, a benevolência daquele preto-velho era tamanha que nem mesmo as palavras
ofensivas de D. Sônia endereçadas a ele não foram interpretadas com qualquer reação
vingativa por parte daquela entidade.

De acordo com a lógica da umbanda, referir-se a um preto-velho chamando-


o de “desocupado” certamente representa uma forte transgressão. Tal qualificativo o acusa
de ferir a doutrina umbandista, baseada no ato de trabalhar fazendo caridade, gesto que
exige muito empenho por parte dos espíritos, cuja missão é evoluir rumo a patamares cada
vez mais elevados.

Assim, reitera-se que a mudança radical representada pela entrega total de D.


Sônia a sua entidade, surge menos relacionada a uma exigência do preto-velho do que a
uma solução encontrada por ela para se beneficiar da proteção dessa entidade no seu dia-a-
dia. Sem maiores conflitos, Pai José se insere naquela família e lá permanece como uma
entidade benfazeja, até o dia da morte de D. Sônia, fato que faz surgir uma crise de cunho
religioso. Referindo-se a sua mãe, Liz resume bem a desilusão da família com o
espiritismo, doutrina que, para sua mãe, significou uma entrega absoluta ao seu guia.
Com o deboche, com o jeito dela de ser, ela entregou a vida ao espiritismo até o
último instante. Ela dizia que aquilo que tinha ganhado dos espíritos passaria para
os outros. Tanto é que ela não cobrava ficha quando ela atendia. Ela começou a
morrer saravando o atabaque. Ela saravou o atabaque e já levantou para morrer. Ela
ajoelhou e abaixou a cabeça em saudação e, antes dela vestir a saia, todo mundo
falou: Ela não pode receber espírito, porque ela está muito fraca. Mas a gente viu
que ela recebeu sim. E na hora em que ele foi embora ela foi também. Ela morreu.
O último minuto de vida dela foi no espiritismo. Porque ela era apaixonada.
Apaixonada mesmo. Ela se entregou de corpo e alma. E ela tinha o maior prazer de
231

sentar no toco para os outros. Ela podia estar no tanque lavando roupa, e se
chegasse uma pessoa ela atendia, principalmente se fosse criança. E depois, todo
mundo voltava lá pra agradecer. Foi um lado muito positivo da vida dela. Ela ficou
menos amarga e recebia melhor a gente. Ela mudou muito, principalmente com as
crianças, com os meus filhos, que começaram a ir passar o dia na casa da avó. A
caridade fez com que ela mudasse para melhor. Fez bem pra ela.

Concluindo, Liz reforça a sua distância dos terreiros ao mesmo tempo em


que valoriza o seu pertencimento ao campo evangélico, vínculo que, julga ela, poderia ter
sido a solução para a vida de sua mãe:

Agora, depois que eu passei a não acreditar mais nisso, eu fico pensando: ah! se ela
tivesse dedicado essa vida pra outra coisa, ela não teria morrido. Se ela tivesse se
entregado só pra Deus eu acho que ela estaria viva. Se ela tivesse se tornando
evangélica não precisava ser da IURD não, porque o evangélico só crê em Deus.
Ele é a máxima potência E ela bateu cabeça, se ajoelhou durante muitos anos
diante do que, eu acredito agora ser uma ilusão. Mas olhe, isto tudo o que eu
te disse é com relação ao meu passado. E como se diz, passado é uma coisa
que a gente deixa o vento levar...
232

8 POMBAGIRAS NA IURD

As pesquisas e análises aqui apresentadas sobre os terreiros revelam que a


pombagira surge como uma entidade cuja presença possibilita aos indivíduos experimentar
e vivenciar uma diversidade de imagens, fantasias, metáforas, performances, dramas e
conflitos.

Num ambiente urbano, fragmentado, plural e, enfim, heterogêneo como o


dos centros urbanos, experiências com a pombagira não se restringem apenas aos terreiros,
mas também estão fortemente ligadas a outros contextos religiosos, e dentre eles está a
IURD.

Aqui, torna-se necessário considerar as idéias de Birman (1997, p.93), no


sentido de enfatizar os fortes elos que esta Igreja mantem com os cultos de possessão, seja
por meio de uma intensa interlocução com seus integrantes e grupos ou de relações
marcadas por fortes antagonismos:
A Igreja Universal do Reino de Deus é, pois, dentre as igrejas pentecostais aquela
que fez do confronto com os cultos de possessão um meio privilegiado de
construção da sua singularidade nesse campo tão concorrido, do pentecostalismo.
Surgiu em meados da década de 70 e se impôs através de um conjunto de práticas
rituais e discursivas extremamente peculiares. Desenvolve o seu trabalho de
proselitismo tomando como adversários (e interlocutores) os cultos de possessão,
encarados como a expressão maior do mal e, portanto das forças diabólicas as quais
combate. Alimenta, em conseqüência, o seu imaginário a partir dessa fonte, (os
cultos de possessão), explorando os seus ritos, as suas divindades, o campo
conflitivo estabelecido por intermédio das atividades da feitiçaria, em suma,
reelaborando a matéria prima fornecida por esse sistema religioso a que se opõe.

Para avaliar essas vivências e experiências com a pombagira pelos


“iurdianos”, optamos por procurar alguns de seus templos e, especialmente, aqueles onde
Liz freqüentava as Sessões de Descarrego, realizadas todas as terças-feiras.

Essas sessões se constroem a partir de exorcismos, nos quais as entidades


constitutivas do panteão afro-brasileiro surgem demonizadas pelos neopentecostais. Dentre
233

estas deidades, sobressaía a pombagira, espírito associado à sexualidade exacerbada e


desviante.

Ainda no que diz respeito a esses rituais, verificou-se que nas várias Sessões
de Descarrego analisadas, percebemos uma homogeneidade no que dizia respeito à
estrutura dos cultos, cuja “oração forte” constituía o eixo principal a partir do qual se
organizavam, outros ritos com suas diversas performances.

Quanto à maneira de tratar os demônios manifestados, também havia


variações. Alguns pastores eram mais rígidos e agressivos com as entidades, ao passo que
outros mantinham a mesma rigidez, mas se valiam de gestos menos abruptos para contê-las.

De qualquer maneira, as sessões aqui analisadas ocorreram numa das igrejas


situadas na área leste da cidade, eventos realizados por um mesmo pastor, cujas práticas
mantinham a sua homogeneidade no que dizia respeito à rigidez e ao tratamento agressivo
com relação aos demônios “manifestados”. Relataremos então alguns desses ritos.

8.1 A demonização da pombagira

Em agosto de 2005, dirigi-me a uma das várias igrejas da IURD existentes


em Belo Horizonte, com o objetivo de assistir a uma Sessão de Descarrego. Há tempos
vinha participando dessas sessões num templo situado na área central de Belo Horizonte,
diga-se de passagem, o primeiro templo que Liz freqüentou desde a sua conversão.

No entanto, procurando me inteirar das variações e singularidades desses


ritos, procurei visitar outras regiões da cidade. A área escolhida foi um bairro da zona Leste
de Belo Horizonte, cujo templo era freqüentado, principalmente, por pessoas da camada
baixa da população, com algumas exceções, representadas por um público bastante restrito,
oriundo da camada média.
234

Nessa igreja, ocorriam sessões pela manhã e à noite, sendo que essas últimas
eram lideradas por um pastor que, segundo me informaram, tinha sido pai-de-santo na
Bahia. Liz freqüentava esse templo há sete anos. Íamos juntas a algumas sessões e
conversávamos sobre elas durante nossos encontros.

Numa das terças-feiras, dia destinado aos ritos de descarrego, dirigi-me a


essa Igreja e observei que, ao invés de a assistência estar disposta nos bancos, como de
costume, encontrava-se de pé, na parte anterior da Igreja, junto ao pastor, que orava.
Aqueles que chegavam eram encaminhados para o referido local. Encarregados de
organizar o rito, os obreiros e obreiras, impecavelmente vestidos, pediam a todos que se
mantivessem ali de olhos fechados.

Vestido inteiramente de branco, o pastor orava num tom imperativo,


ordenando a todos os "espíritos imundos" ali escondidos que se “manifestassem". Naquele
momento da “oração forte”, esse líder religioso ia nomeando os diversos tipos de demônios
e acusando-os de trazer o mal para as pessoas ali presentes. Exortando a presença daqueles
diabos no espaço ritual, o pastor repetia, seguidamente, frases que não só os identificavam
como também os correlacionavam a diversos malefícios. Complementando essas
acusações, o pastor vinculava essas práticas maléficas a trabalhos que teriam sido feitos em
determinados locais, lugares vinculados à atuação de entidades do panteão afro-brasileiro.
Dentre essas deidades consideradas demoníacas, os exus e as pombagiras eram as mais
exortadas a comparecer, surgindo ali a partir de suas múltiplas personificações. Assim
falava o pastor num dos momentos da “oração forte”:
Você, demônio, que está causando mal a esta mulher, manifeste! Você, espírito da
prostituição, você pombagira, que está na casa dela, esfriando o casamento dela,
manifeste! Eu ordeno! Você, Padilha, que está escondida no quarto,
desencaminhando o marido dela, fazendo mal a vida dela, manifeste! Você, Seu
Sete Cadeados, que ganhou aquele trabalho feito na encruzilhada para destruir a
vida dela, manifeste! Você pombagira, que ganhou aquele trabalho no cemitério e
está querendo arruinar a vida dela, manifeste!

Essa etapa do rito, constituída pela exortação do demônio, tornava-se


essencial para que o templo se transformasse num cenário onde as pombagiras Padilha, Sete
Saias, Cigana, dentre outras, comparecessem reinterpretadas a partir de lógicas referentes
235

ao neopentecostalismo na sua versão brasileira. Seria neste quadro marcado por


reinterpretações de elementos e performances oriundos dos cultos de possessão afro-
brasileiros (sobretudo da umbanda) que aqueles eventos adquiriam uma feição peculiar,
cujo clima e caráter se contrastavam com os das descidas de pombagiras nos terreiros.

Partindo dessa perspectiva comparativa, enfatizamos que ali, ao invés de


serem evocadas respeitosamente, como acontecia nas casas-de-santo, as pombagiras eram
exortadas a comparecer para revelar seus malefícios e, em seguida, serem “queimadas” pelo
fogo do Espírito Santo. Isso significava que, contrariamente às giras da umbanda, aquelas
Sessões de Descarrego representavam ocasiões em que as pombagiras surgiam na cena
ritual contra a sua vontade. Como se verá adiante, as performances realizadas por essa
entidade constituíam um forte indício de seu descontentamento com aquele rito de
humilhação.

A fala e os gestos do pastor enfatizavam o caráter imperativo do rito, que


buscava desafiar o demônio para mostrar a sua impotência diante de Jesus, seu inimigo
maior. Assim, era colocado em cena um forte embate entre as deidades que desejavam
permanecer escusas e as forças do “bem”, que atuavam não só identificando todo o mal
escondido como também libertando os indivíduos sujeitos ao seu poder.

Nesse sentido, observamos a intenção de criar um clima de tensão para


aquele evento. Essa intencionalidade se concretizava mediante a combinação de elementos.
Dentre eles, destacavam-se os acordes de um órgão tocado simultaneamente com a
gravação de trechos da obra Carmina Burana, além das frases imperativas ditas
eloqüentemente pelo pastor.

Demonstrando uma espécie de “mergulho” no drama que se iniciara, os


presentes pareciam não se incomodar com a incrível mistura de sons produzidos naquele
evento. Amplificada por um possante microfone, a fala do pastor, certamente, já
preencheria o ambiente de sons. Entretanto, naqueles momentos dramáticos, o rito exigia
236

outras sonoridades. Era nesse contexto que todos esses sons se somavam e se chocavam,
trazendo para o ambiente uma cacofonia peculiar.

Envoltos nessa massa sonora, que buscava conferir a desejada dramaticidade


ao evento, muitos fiéis ouviam ainda as vozes dos obreiros e das obreiras faladas junto aos
seus ouvidos. É que, situados na frente da assistência ou andando pela igreja, esses
auxiliares do pastor, sempre vigilantes, observavam as atitudes, os gestos e as expressões
do público ali presente. Assim, tão logo percebiam qualquer sinal de “manifestação”,
dirigiam-se rapidamente à pessoa, seguravam firmemente na sua nuca e na sua testa e, em
seguida, mediante leves movimentos circulares, iam orando para que o poder das entidades
demoníacas fosse neutralizado. Utilizando-se do “poder das palavras”, ditas “em nome de
Jesus”, esses auxiliares do rito “repreendiam” os demônios ali presentes de forma
imperativa, ordenando que se manifestassem na condição de entidades “amarradas”, para
serem “queimadas” pelo fogo do Espírito Santo.

Depois de repetirem os gestos e as palavras ditas anteriormente, os obreiros e


as obreiras, performaticamente, retiravam e repunham por três vezes as mãos na cabeça de
pessoas da assistência e ordenavam aos espíritos demoníacos que saíssem dos corpos nos
quais estavam atuando malignamente.

Naquela noite, experimentei mais uma vez tal prática ritual. Em determinado
momento, um dos obreiros que circulava no meio da assistência chegou junto a mim,
segurou a minha testa com uma das mãos e a nuca com a outra e começou a repetir num de
meus ouvidos as seguintes frases: “Você, pombagira, que está escondida na casa dela, no
quarto dela, trazendo a infelicidade dela, manifeste!”. Depois de pronunciar uma série de
acusações à pombagira que supostamente estaria causando a minha infelicidade, o obreiro
pressionou a minha cabeça por três vezes consecutivas, bradando, seguidamente, num tom
dramático e definitivo a frase: "sai! sai! sai!". Tal ordem era acompanhada por um gesto
brusco que alternava a pressão de suas mãos sobre a minha cabeça com a expansão do seu
gesto no ar, tão logo elas se soltavam. Essas performances traziam consigo uma
expressividade própria, uma dramaticidade ligada ao embate entre as forças envolvidas
237

naquela “batalha espiritual”. Com efeito, durante as pesquisas realizadas nessas Sessões de
Descarrego observei a importância desse momento relativo ao ato de “manifestar” e os
significados que ele adquiria para muitas daquelas pessoas ali reunidas.

Antes mesmo de iniciar a oração forte, o pastor explicava para os integrantes


da assistência que não havia por que temer ou evitar passar por aquela experiência,
comumente referida pelos fiéis como “cair” ou “passar mal”. Afinal, tais gestos estavam
correlacionados com a irrupção desavisada de espíritos que se apresentariam ali a
contragosto.

Nesse sentido, a “manifestação” desses espíritos seria imprescindível para


que as pessoas se livrassem dos malefícios criados por eles. O fato decorria da crença de
que todas aquelas forças malignas alojadas em seus corpos, causadoras de doenças e de um
grande número de infortúnios, só seriam neutralizadas depois de se manifestarem
“amarradas” e, em seguida, serem “queimadas” pelo fogo do Espírito Santo.

Naquele contexto, essas palavras do pastor ganhavam mais significação, na


medida em que sabíamos da resistência dos fiéis diante do ato de “manifestar”. Em muitas
situações, essa recusa ligava-se ao temor de que tal gesto fosse interpretado pelos presentes
como uma espécie de fraqueza dos elos da pessoa com Deus (BIRMAN, 1997, p. 74 ).

De qualquer modo, as visões sobre essa experiência variavam. Havia mesmo


freqüentadores dessas sessões que esperavam com ansiedade “manifestar” na igreja.
Acreditavam que somente por meio daquele rito é que ficariam livres dos malefícios
criados pelos demônios. Para essas pessoas, as “manifestações” do demônio adquiriam um
sentido extremamente positivo. Afinal, num mundo repleto de “olho gordo”, de inveja e de
“macumbaria”, esses “tombos” eram essenciais para libertar as pessoas da obra demoníaca.

Se nos terreiros a possessão ocorria por meio de um vasto repertório de


gestos, cantos, expressões corporais e faciais capazes de caracterizar as deidades do panteão
238

afro-brasileiro, nas Sessões de Descarrego esse repertório performático sofria sensível


redução. O fato derivava da crença de que nesses ritos os demônios deveriam manifestar
“amarrados”, e assim impedidos de provocar malefícios das pessoas com quem entrassem
em contato.

Essa condição de entidade “amarrada” implicava certo tipo de corporeidade,


matizada por meio de pequenas variações gestuais. Sendo assim, apenas alguns
movimentos e condutas podiam revelar o tipo de entidade “manifestada”. No caso das
pombagiras, o que demarcava a sua especificidade enquanto espírito demoníaco, ou
“encosto feminino”, eram as suas performáticas gargalhadas, acompanhadas de certos
trejeitos corporais.

Ali os espíritos demoníacos “manifestados” traziam consigo uma


corporeidade, uma gestualidade e uma expressão que, grosso modo, somente possibilitava
aos presentes reconhecê-los como entidades que desafiavam o poder divino. Até mesmo as
pombagiras, quando se abstinham de emitir suas performáticas gargalhadas, só eram
reconhecidas durante a “entrevista”, ou seja, no momento em que, diante da exigência e da
insistência do pastor, identificavam-se e confessavam suas más intenções sobre aqueles nos
quais estivessem agindo.

Insistimos num ponto essencial sobre esses ritos de exorcismo. Apesar


daqueles gestos veementemente autoritários do pastor, acompanhados pelas ações das
obreiras e obreiros, tais pessoas se colocavam apenas como mediadores entre os presentes
e Deus. Dessa maneira, era necessário que todas as ações e pedidos realizados ali fossem
feitos “em nome de Jesus”. Era somente “em nome do Senhor Jesus” que palavras, ações e
desejos se realizariam num contexto em que Deus e os demônios se digladiavam numa
infinita “batalha espiritual”.
239

Acreditava-se que quanto mais abençoado fosse o indivíduo maior poder ele
teria perante Deus e mais forte seria a sua capacidade de “repreender” e “amarrar”, “em
nome de Jesus”, os vários demônios que se aproximassem dele.

Situada entre os fiéis, notei que bem perto de mim, uma mulher apresentava
sinais de estar “manifestando”. Buscando me inteirar daquela cena, voltei o meu rosto para
aquela direção e, rapidamente, olhei o local onde essa senhora se situava. Tão logo
percebeu essa minha atitude, uma obreira imediatamente caminhou em minha direção para
intervir sobre as forças malignas que, supostamente, estariam atuando sobre a minha
pessoa.

Com efeito, naquele contexto, o meu ato de abrir os olhos fora interpretado
como a "manifestação do espírito da desconfiança". Era "ele", o “inimigo”, que,
supostamente, fazia com que eu agisse daquela maneira, contrária à conduta dos outros
integrantes do rito. A obreira colocou as mãos sobre a minha cabeça e começou a
“repreender” aquele demônio que me impedia de comportar tal como o rito exigia.

Aliás, naquelas Sessões de Descarrego era freqüente a “repreensão” dirigida


aos vários espíritos que se encontravam ali perturbando a vida das pessoas. Além do
“espírito da desconfiança", testemunhei naquela noite a “repreensão” dos espíritos “da
prostituição”, “da destruição”, “da depressão” e “da tristeza”, todos eles vistos como
entidades ligadas à ação demoníaca. Na condição de “repreendidas”, essas entidades
perdiam o seu poder de produzir malefícios na vida daqueles em que se alojavam e
passavam a procurar outras vítimas que “dessem brecha” para as suas ações.

No entanto, não eram incomuns as situações em que, mesmo “amarrados” e


“repreendidos”, os demônios se negavam a se curvar diante do poder de Deus. Cientes
dessa atitude dos demônios e da importância de neutralizar-lhes o poder, o pastor insistia
para que eles se “manifestassem”, pois só assim as pessoas que estavam sob o seu poder
poderiam ser libertas do mal que as acometia.
240

Durante aqueles momentos tensos da “oração forte”, quatro mulheres


“manifestaram", por meio de atos precedidos de gestos que evocavam sinais de tontura e
queda. Tal como ordenava o rito, nesses momentos cercados de tensão as obreiras
ampararam as mulheres e as levaram para a frente do altar. Porém, uma delas se debatia
com maior vigor, tentando escapar pelas laterais da igreja. As outras três, cujas roupas
ameaçavam deixá-las desnudas diante da assistência, foram cobertas com uma espécie de
veste apropriada para aquelas ocasiões.

Após esse ato, as obreiras entregaram os demônios ao pastor, para que eles
fossem “entrevistados”. Esse ato tornava-se essencial ao rito, pois era por meio da
confissão do demônio que a assistência poderia identificá-los, bem como conhecer os
malefícios que criavam para pessoas desatentas com relação aos seus poderes.

Antes de concentrar a atenção na fala daquele “demônio”, torna-se


necessário sublinhar que tão logo os espíritos “manifestavam” aqueles que eram objeto de
seus poderes apresentavam visíveis sinais de transformação, sobretudo no nível de sua
corporeidade. Naquela sessão, uma das mulheres que tinha “manifestado” apresentava uma
aparência singular, pois, além de manter as mãos para trás em forma de garras, tinha os
cabelos totalmente desgrenhados.

Acreditava-se, que essa corporeidade e essa aparência eram decorrentes da


ação de um espírito demoníaco, ainda não identificado pela assistência. A contenção do
poder maligno que agia sobre aquela senhora começou por meio do ato de prender-lhe os
cabelos. Outros sinais, supostamente atribuídos à ação demoníaca, também se
evidenciaram. Assim, tão logo os demônios “manifestaram”, o corpo daqueles que os
alojara curvaram-se para frente, fazendo com que a cabeça e os olhos se voltassem para o
chão. Os braços viraram-se para trás e as mãos recurvaram-se, formando garras.
Certamente, tais gestos se assemelhavam ao dos exus que “desciam” nos terreiros, com a
diferença de que na igreja os braços permaneciam invariavelmente colados na parte
posterior do corpo, como se estivessem presos por algemas invisíveis. Tratava-se da
241

obediência a um código ou a uma linguagem corporal indicativa da situação de uma


entidade malévola “repreendida” ou “amarrada”.

Ao contrário da evocação respeitosa dos terreiros, realizadas por meio de


toques e cantos específicos (os pontos de louvor às pombagiras), a entidade era submetida a
ouvir frases acusatórias, ditas em tom imperativo, diretamente ligada aos malefícios que
supostamente estariam causando na vida das pessoas que as tinham como “encosto”.
“Manifeste espírito da destruição, você que entrou na vida dela, na casa dela e que tomou o
marido dela, manifeste! Você que recebeu um trabalho e colocou o nome dela no cemitério,
manifeste! Você que está no corpo dela para acabar com ela, manifeste!”

No entanto, essas acusações não bastavam. Era preciso que a cena ritual
colocasse em foco, e com cores fortes, a situação de “humilhação” da pombagira, que por
obediência ao poder divino, tinha que se identificar. Mais uma vez, observava-se uma
significativa inversão. Se nos terreiros as entidades que desciam se anunciavam
voluntariamente, por meio dos pontos cantados e festejados, nas Sessões de Descarrego as
pombagiras eram fustigadas até dizerem o seu nome.

Naquekle contexto, a voz da entidade,”amarrada”, distanciava-se da voz


humana para se assemelhar a sons guturais, que lembravam ruídos produzidos pelos
animais. Sob o olhar vigilante dos pastores e obreiros, a pombagira “manifestada”
permaneceu em pé durante todo o rito, de frente para a assistência. Ao invés da face
marcada pela altivez e pela irreverência, traços que caracterizam a performance das
pombagiras nos terreiros, a pombagira “amarrada” permanecia com a cabeça contida pelos
gestos do pastor e com o olhar voltado para o chão. Era assim que o demônio permanecia
diante da assistência, dividindo com o pastor a área focal do rito.

Essas performances dramáticas causavam fortes impactos e impressões de


temor em algumas pessoas da assistência. Uma jovem de aproximadamente vinte anos, que
desde criança freqüentava a IURD com seus parentes, referia-se aos seus sentimentos
242

diante daquelas cenas, que a colocavam face a face com o seu medo do demônio. Como ela
relatava, tratava-se do temor de dar “brechas” e assim, permitir que o demônio atuasse em
sua vida, levando-a a cair em pecados relativos ao sexo e à prostituição. Justificando esse
temor, a jovem se expressou nos seguintes termos: “A palavra não diz que o diabo veio ao
mundo para matar, roubar e destruir? Então, a gente não pode querer isso para a gente,
pode?” Para resolver essa angústia, a única solução vista por ela seria a de se manter repleta
do Espírito Santo, pois onde ele estivesse não existiria espaço para a entrada e permanência
do demônio.

Voltando às etapas do rito, estava claro que não era fácil submeter aquelas
entidades demoníacas ao domínio do bem. Para isso, os condutores do rito não mediam
esforços. Inicialmente, o pastor “entrevistava” alguns dos demônios ali presentes para que
eles se identificassem e confessassem o mal que estavam praticando contra aqueles que se
encontravam sobre o seu poder. Em seguida, o pastor desafiava essas entidades, fazendo-as
render-se publicamente diante do poder divino.

Naquelas ocasiões, o pastor e seus auxiliares valiam-se, com freqüência, de


um embate corporal com as entidades “manifestadas”. Com o objetivo de contê-las, aqueles
que comandavam o rito seguravam fortemente naquelas mulheres, enquanto o pastor
escolhia um dos “demônios para entrevistar”. A entrevista iniciava-se com uma pergunta do
pastor à entidade a respeito de seu nome. Naquele contexto, interessava a ele e aos
presentes saber o nome daquele “encosto” que vinha prejudicando a vida daquela senhora.
A entidade que “manifestara”, de início, falava engrolado e não se fazia entender. Para
forçá-la a se pronunciar com maior clareza, o pastor insistia dizendo-lhe: “Eu quero o
nome. Fale, encosto!”.

Tratando-se de uma “batalha espiritual” travada entre as forças do bem e do


mal, eram necessários esforços e sacrifícios por parte da assistência. O pastor, então, passou
a solicitar uma participação mais efetiva da assistência no sentido de contribuir para que o
demônio fosse identificado e se pronunciasse a respeito de suas intenções para com aquela
mulher.
243

Decorria daí o pedido feito pelo pastor aos presentes para que se
dispusessem a doar. Partindo de quantias mais elevadas, o pastor ia abaixando o valor das
ofertas, ao mesmo tempo em que ressaltava que, por se tratar de doações essenciais à
“queima” dos “demônios”, quanto mais necessárias fossem no dia-a-dia de seus donatários,
mais valiosas se tornariam diante dos olhos de Deus.

Depois de se unir à assistência para obter a confissão do demônio, ação que


antecedia o momento em que esse seria “queimado”, o pastor conseguiu, finalmente, que o
mesmo falasse. A entidade, então, identificou-se como a poderosa e conhecida pombagira
Maria Padilha. Recusando-se inicialmente a responder às perguntas do pastor, acabou
cedendo e revelando que, em troca de bebidas, cigarros e rosas vermelhas, estava agindo na
vida daquela mulher com a intenção de matá-la.

Uma vez revelado o malefício, o rito exigia que o demônio reconhecesse a


supremacia dos poderes divinos. Recusando-se a isso, a Padilha que “manifestara” tentava
escapar do pastor, sendo duramente controlada pelas obreiras, que se valiam até mesmo de
um embate corpo a corpo com aquela “entidade”. Numa dessas tentativas de fuga, essa
senhora incorporada pelo espírito caiu diante do altar, sendo mantida no chão pelo pastor
que a segurava pelo cabelo. Bradando para que a pombagira reconhecesse o poder supremo
de Deus e tendo como resposta uma série de ofensas à figura divina, o pastor mantinha a
entidade no chão, esperando que ela se rendesse às suas ordens, dadas “em nome de Jesus”.

Diante daquela cena, cujas performances, algo violentas, deixaram-me


atônita e incomodada, tentei encontrar sinais desse mesmo sentimento nas faces e
expressões das pessoas que compunham a assistência. Percebi que, de forma geral, a
expressividade daqueles rostos remetia a outro tipo de reação. Aquele drama que se
desenrolava diante da assistência era assistido pelos fiéis com alto grau de atenção e
envolvimento. No entanto, suas atitudes e expressões acenavam menos para a preocupação
com os atos agressivos perpetrados contra a mulher, cujo corpo supostamente estava
tomado pelo demônio, do que para a expectativa de que aquela senhora se tornasse liberta
do poder demoníaco.
244

Resumindo, tal etapa do rito colocava em cena o embate travado entre a


entidade, que se negava a cumprir as ordens dadas, e o pastor, cujo exercício da autoridade
implicava, inclusive, o desafio ao demônio e o poder de contê-lo por meio de gestos
bruscos e agressivos. Durante esse confronto entre o bem e o mal, importava à assistência,
sobretudo, o conhecimento das ações demoníacas e a rendição do demônio diante do poder
de Deus, atos mediados pelo pastor.

Em seguida, o pastor solicitou outro tipo de ação, que levaria à “queima” dos
demônios ali presentes. Nesse sentido, foi pedido à assistência para que se mantivesse de
pé, com os braços levantados e as mãos voltadas na direção daquelas mulheres que tinham
“manifestado”. Concentrados e envoltos pela fé, os indivíduos ali reunidos deveriam dizer
três vezes a palavra “queima” e, depois desse gesto, dizer também três vezes a palavra
“sai”, seguida de outro movimento, no qual os braços e as palmas das mãos estariam
voltadas para trás, como se jogassem ou expulsassem o demônio para longe.

Seguindo as ordens do pastor, que, imperativamente, ordenava à pombagira


falar palavras de louvor a Deus, a Jesus e ao Espírito Santo, a entidade, mesmo a
contragosto, cedeu e pronunciou respeitosamente o nome dessas três deidades,
reconhecendo a sua supremacia sobre os seus poderes malignos.

Em seguida, a mulher cuja entidade tinha sido entrevistada, sofreu uma


nítida transformação facial e corporal. As suas garras se desfizeram, os braços voltaram à
posição habitual e, finalmente, os seus olhos se abriram como os de quem acorda de um
profundo sono. Tratava-se de sinais que evidenciavam a saída do demônio de seu corpo.
Situado ao lado daquela mulher recém-liberta, o pastor pediu uma salva de palmas para as
forças divinas, que mais uma vez tinham vencido o mal.

Depois de outras tantas ações anunciadas pelo pastor, cujo objetivo principal
era a realização de “campanhas” voltadas ao descarrego, o rito terminou com a derrota do
demônio. Uma vez "queimado" e neutralizado pela força do Espírito Santo, o diabo saiu de
245

cena tal como havia entrado, ou seja, pelo clamor daqueles que, acreditando no poder de
Deus, encontravam-se ali reunidos em busca de purificação.

8.2 A pombagira e o mal

Descritos de forma esquemática, esses ritos realizados durante as Sessões de


Descarrego da IURD colocavam em foco o embate entre as forças do bem e do mal,
representadas, de um lado, pelo pastor (auxiliado pelos obreiros e obreiras) e, de outro,
pelas entidades demoníacas “manifestadas”, naquele caso, representadas pelas pombagiras.

Valendo-se de elementos oriundos dos cultos de possessão afro-brasileiros,


tais ritos apresentavam essas entidades reinterpretadas a partir de lógicas referentes ao
neopentecostalismo na sua versão brasileira. Aqui, torna-se necessário compreender certas
noções que permeiam esse campo religioso, caracterizado por forte oposição entre os pólos
do bem e do mal.

A questão da reinterpretação remete diretamente às idéias de Sahlins, que,


mesmo sem tratar especificamente do fenômeno religioso, ajudam a compreender as
passagens de um universo cultural a outro. Tomando como foco as noções de contato
cultural e a de “mal entendido produtivo”, Sahlins mostra que o contato entre sistemas
culturais distintos não cria nem o consenso entre eles, nem uma negação pura e simples um
do outro. Sintetizando, pode-se observar que, para esse autor, os atores sociais elaboram
uma apropriação seletiva da cultura do “Outro”, que não se faz sem que ocorra uma
mudança social, mas, ao contrário, é a expressão dessa última.

Tratando especificamente do campo neopentecostal no Brasil, Birman (1997,


p. 92). enfatiza a importância das idéias de Sahlins para pensar o movimento que,
habitualmente, é designado como “sincrético”. Valendo-nos das palavras desta antropóloga,
podemos dizer que “[...] trata-se, em suma, de valorizar o trabalho de elaboração simbólica
246

do Outro, nos movimentos que gera e nas modificações que cria na própria cultura, pelos
traços que deixa e pelo impacto que produz [...]”

Tomando como referência essas idéias, Birman buscamos compreender essas


formas de contato cultivadas entre o pentecostalismo e os cultos de possessão, “valorizando
a idéia de um processo que envolve formas sucessivas de apropriação e reelaboração
simbólica entre os dois sistemas religiosos em contato”.

Resulta daí uma perspectiva que, necessariamente, possui algo de “fluido” e


de “sincrético” (BIRMAN, 1997, p. 92), já que estará sempre sujeita a reinterpretações
constantes feitas por adeptos e não adeptos dessa vertente do pentecostalismo. Como
conclui esta antropóloga,“[...] este espaço pode, portanto, ser concebido como de passagens
num sentido mais amplo: de redefinição de fronteiras, de trocas simbólicas e de elaborações
sincréticas, de inovações e de invenções em certa medida e que submete também à
mudança os cultos envolvidos.“(p. 90)
Buscando compreender melhor as características e perspectivas desse
neopentecostalismo à brasileira, Birman (1997, p.71) refere-se a um forte dualismo entre o
mal e o bem, “no qual Satã é aquele que rompe as relações entre os homens e Deus.
Todavia, é suposto que aos homens cabe escolher livremente entre o Bem e o Mal, e neste
sentido podem escapar do poder de Satã. Nessa concepção da luta entre o bem e o mal, os
ritos de purificação adquirem um relevo especial, na medida em que se tornam
instrumentos capazes de afastar os homens do poder demoníaco por sua livre escolha.

No caso do neopentecostalismo, na sua versão brasileira recente, temos uma


concepção do mal como parte de um dualismo em que as forças diabólicas
combatem, sem cessar, a força de Deus [...] Com efeito, a noção de espírito
maligno, neste contexto, adquire um sentido forte na medida em que é associada,
enquanto policentrismo do mal, à noção de possessão. A importância concedida ao
exorcismo se encontra aqui, em relação direta com os ritos de possessão, articulada
a uma noção de pessoa específica. Pensar exorcismo, no âmbito do universo
religioso neopentecostal brasileiro é pensar também a cultura da possessão que é
reelaborada pelos seus fiéis, quando aderem ao novo culto [...]
247

A partir dessas idéias, podemos concluir que as correntes neopentecostais,


representadas pela IURD, pautam-se em um “princípio genérico que organiza o mundo e
cuja aplicação é capaz de tudo explicar e, dessa forma, estruturar as práticas religiosas
daqueles que se sentem atingidos por infortúnios [...]” (BIRMAN, 1997, p. 78). Tal
princípio organizador refere-se à luta contínua e vinculada aos vários domínios do mundo e
dos entes que o habitam, entre os seres malignos e a força benéfica de Deus. Essa luta
contínua, que se faz presente no corpo de cada um, nas suas relações com os familiares e
com o mundo que o cerca, faz parte da constituição da pessoa, dos mundos humano e
natural. Explicando essa dualidade, Birman (1997, p 66-67) faz a seguinte afirmação:
Com efeito, no universo destes integrantes do movimento neopentecostal, as
referências ao mal se fazem através de malefícios que sofrem e através de supostos
autores destes malefícios: diabos que se apresentam como espíritos e divindades
pertencentes aos cultos de possessão. Os eventos apontados como malignos não
cabem na idéia de eventos extraordinários, e estão longe de ser inexplicáveis. Ao
contrário, são imediatamente remetidos seja à feitiçaria, seja à luta do diabo contra
Deus. O mal, neste sentido, é onipresente, encontra-se como raiz de todos os
eventos que de alguma maneira perturbam a vida cotidiana: doenças, brigas,
desemprego, alcoolismo, separação de casais, problemas financeiros, etc.
Onipresente e banal .

Se, de um lado, o indivíduo combate os demônios por meio de uma postura


religiosa veiculada por uma ética, na qual ele procura se afastar de tudo aquilo que
representa pecado, ofensa ou desagravo a Deus, de outro, ele precisa se purificar a partir da
unção, de exorcismos e, enfim, das várias práticas rituais oferecidas na igreja, inúmeras
vezes criadas a partir da apropriação e de reinterpretações de elementos simbólicos
pertencentes às religiões afro-brasileiras.

De acordo com essa perspectiva, os indivíduos se situam nesse


entrecruzamento, de uma postura ética a ser respeitada e a sua inserção num mundo em
que, constitutivamente, as forças do bem e do mal se defrontam a todo instante, nos vários
domínios da vida humana e do cosmo.

A possessão aqui surge correlacionada com as histórias de vida daqueles que


são possuídos. Sendo assim, os espíritos estão no mundo “como elementos constitutivos
248

das pessoas e dos acontecimentos que as envolvem” (BIRMAN, 1997, p. 71). As pessoas,
por sua vez, vinculam-se aos espíritos por diversos motivos e razões. Seja por herança, seja
porque trabalharam com os espíritos, ou porque “deram brechas” para que eles tomassem
conta de sua vida. Pouco importa o motivo. O que não se pode é perder de vista a
perspectiva de que os espíritos são entes que se definem sempre por meio da relação
privilegiada estabelecida com as pessoas. Não há como fugir dessa relação. Da mesma
forma, as pessoas são sempre concebidas em relação ao vínculo que estabelecem com os
espíritos. Não há como escapar desse elo estabelecido entre indivíduos e espíritos seja esta
aliança tênue ou forte. Birman (1997, p.72) afirma que “[...] o desejo de qualquer espírito,
na leitura destes religiosos, é, pois, de ‘entrar’ e de permanecer ‘perturbando’ as pessoas,
fazendo com que estas experimentem os infortúnios mais diversos [...]”.

A antropóloga refere-se então, a “um simbolismo do mal”, que faz conviver


ou articula uma atitude de interiorização do ato religioso com a necessidade de uma
dimensão cosmológica e sincrética, correlacionada às crenças em seres de natureza diversa,
que exigem constantes rituais de exorcismo e purificação:
Os cultos pentecostais no Brasil desenvolveram um conjunto de práticas que
possuem, como característica, o fato de não permitir separar os atos de limpeza
ritual das práticas consideradas como de interiorização do ato religioso; como as
orações, por exemplo, que são designadas como conversas de cada indivíduo com
Deus [...] O discurso pentecostal, a olhos vistos, articula uma atividade ritual de
exorcismo e limpeza ritual, diante das figuras representativas deste policentrismo
do mal, a uma retórica associada às noções de pecado e de culpa. Diríamos que
existe uma elaboração que promove uma junção peculiar entre magia e milagre, o
que só é possível captar compreendendo como os valores morais, defendidos pelas
pessoas, se encontram solidamente calcados numa visão cosmológica a respeito do
mal e de seus poderes (BIRMAN, 1997, p. 64-65).

Enfatizando a importância da purificação ritual como uma busca constante


por parte dos adeptos dessas correntes neopentecostais, Birman (1997, p.78) destaca que
este gesto baseia-se numa concepção dualista do mal que, seguindo a vertente aberta por
outros autores, pode ser designada como um “dualismo secundário” “[...] vale dizer, o Mal
se encontra em antagonismo com o Bem e estará constantemente sendo derrotado por este.
Em decorrência, as formas rituais que dominam as práticas deste neopentecostalismo
249

possuem, todas, o caráter de uma purificação: a cada momento é preciso ‘limpar’ o corpo, a
pessoa e o ambiente da presença do mal.”

Mesmo sublinhando que essas práticas fazem parte da Igreja Católica, as


especificidades desses ritos são destacadas a partir do seguinte argumento:

Contudo, a particularidade deste culto


[...] é a de que esses ritos ainda que possuidores, em alguns casos, de um sentido
cristão, vão ter seus sentidos fortemente ancorados na possessão e na relação que
esta mantém com certa concepção de pessoa. Assim, manifestar e amarrar são
termos associados ao exorcismo e à possessão, elaborados neste novo e específico
contexto religioso, o que indica uma estreita dependência desta modalidade
pentecostal dos cultos de possessão e, mais do que isso, aponta para o
desenvolvimento de uma cultura religiosa da possessão associada ao exorcismo que
seria exclusivo desta cultura, compondo sua marca diferencial (BIRMAN, 1997, p.
78 - 79).

8.3 Orai, vigiai e se purificai

As conversas sobre os terreiros e seus ritos estimularam Liz a relatar


aspectos referentes às Sessões de Descarrego, eventos sempre procurados por ela, no
sentido não só de livrá-la das mazelas do cotidiano, mas também de buscar reforçar seus
elos com Deus. Um dos primeiros pontos relatados por Liz dizia respeito à preparação que
esses eventos demandavam. Como enfatizava, o simples propósito de ir a uma dessas
sessões já implicava uma “batalha espiritual” travada entre o fiel e os demônios. Nos
momentos que antecediam o rito, tornava-se imprescindível redobrar a sua atenção nos
mínimos atos do cotidiano e clamar a Deus no sentido de “repreender” e “amarrar” as
forças malignas. Essa atitude de vigiar e orar foi explicada por Liz nos seguintes termos:
A gente tem que se preparar espiritualmente, porque senão a gente não vai. Porque
sempre aparece uma coisa. É uma visita que chega, é um menino que adoece. Toda
hora é preciso pedir a Deus para iluminar os nossos passos. Esses imprevistos são
formas que o inimigo tem de nos atrapalhar, pra impedir que a gente vá aonde a
gente possa se libertar dele. Pra não chegar até a igreja.
250

No intuito de concretizar essa ida ao templo, à noite, tornava-se necessário


perceber a agência do demônio ao longo do dia e ir “repreendendo-o”, “amarrando-o”, ou
seja, não lhe concedendo “legalidade” para agir, explicava Liz. Nessa perspectiva, cada
pessoa deveria cumprir durante todo o tempo o que estava escrito na “palavra”. Entremeada
a essas atitudes de “orar” e “vigiar”, era preciso ter consigo objetos que afastassem o poder
dos demônios. Liz explicava que tão logo desconfiava de uma obra demoníaca nela ou em
quem estivesse próximo dela, valia-se tanto de orações quanto da unção de óleos vindos da
Igreja e, até mesmo, do contato corporal com a própria Bíblia para que esse objeto sagrado
afastasse os diabos para longe. Tal comportamento era fundamental para que os demônios,
e dentre eles a pombagira, não a desviasse do caminho traçado por Deus.

Tal como relatou Liz, uma senhora que fora obreira da IURD, contou-lhe
que o ato de “repreender” e “amarrar” os demônios acontecia a partir da percepção de que o
mal causado a uma pessoa resultava de um problema espiritual. Buscando impedir a ação
demoníaca, as pessoas poderiam fazer valer o “poder das palavras” e cortar aquele mal,
“repreendendo” e “amarrando” os demônios que o causou. Uma vez despojado de seu
poder e sem legalidade para agir no corpo e na vida daquela pessoa, o demônio procuraria
“brechas” para atuar em outras vidas, deixando os fiéis.

As Sessões de Descarrego mostraram que nesta luta contínua entre o bem e o


mal, a frase “Em nome de Jesus”, repetida exaustivamente, tanto pelo pastor quanto por
aqueles que o auxiliavam, deveria ser pronunciada com muita fé, pois, ao invés de se
constituir apenas num elemento de retórica, consistia em uma seqüência de palavras
detentoras de eficácia e de poder na concretização dos desígnios divinos. Tratava-se mesmo
de fazer valer o poder de Jesus contra o inimigo. Nesse sentido, os fiéis teriam o poder de
interferir nessa luta contínua entre Deus e seu inimigo maior, agindo sempre “em nome de
Jesus”.

Várias pessoas ligadas a IURD reiteravam que tal frase enfatizava o poder
de Jesus, pois, afinal, se não fosse Ele, quem seríamos nós para “repreender”, “amarrar” e
“queimar” demônios? Só a partir de Jesus isso seria possível. Era a “Ele” que se devia
251

recorrer para intervir nas coisas do mundo. Até mesmo ao pastor era atribuída a condição
de mero intercessor perante a divindade. Deus, Jesus e o Espírito Santo consistiam na fonte
de onde emanava todo o poder de ação sobre as coisas do mundo, fossem elas materiais ou
espirituais.

Tal crença somava-se a outra, representada pela idéia de que aqueles que
clamavam e serviam a Deus com fé e dedicação recebiam mais facilmente as graças divinas
baseadas no merecimento. Essa noção se sustentava na idéia de que os servos do senhor
mantinham constantemente sua atenção nas artimanhas do inimigo, buscando levar uma
vida sem pecados, sustentada na atenção e na vigília com relação à presença demoníaca, na
oração e na prática do jejum sacrificial e purificador.

Eram esses três elementos que, articulados e perpassados por outras práticas
rituais purificadoras fundamentadas na fé, dotavam os indivíduos de poder, tanto durante as
sessões de Descarrego quanto ao longo da vida cotidiana. Ao contrário de um dom
concedido a alguns poucos eleitos, esse poder dependia da postura ética e interiorizada de
uma vida entregue a Jesus, somada a práticas rituais purificadoras que, semanalmente, eram
realizadas na igreja durante as Sessões de Descarrego e as Sessões de Libertação.

O pastor sempre alertava a assistência que ficasse atenta e concentrada no


poder demoníaco, pois entre Deus e os demônios não havia trégua. Indo além, ele reiterava
que não se furtassem dos vários atos de purificação ministrados na Igreja. Dentre eles,
destacavam-se a unção com óleos sagrados ou, mesmo, o uso de águas oriundas da “terra
de Jesus” e as rosas consagradas, que limpavam o ambiente dos lares, protegendo-os contra
os demônios ali presentes.

Segundo essa lógica, na qual o mal e o bem se confrontavam


infindavelmente no mundo, na vida e no corpo dos indivíduos, a pombagira surgia como
uma das faces do demônio, ou como um dos demônios que integravam as legiões
comandadas por diabos mais poderosos. Tematizada nas pregações dos pastores, a
252

pombagira era vista como um demônio dotado de atributos especiais, que a distinguiam de
outros diabos. Tratava-se de “encostos femininos” dotados de poderes especiais, sobretudo
na área da sexualidade, espíritos que, no domínio sexual, tinham o poder de “desviar”
maridos e esposas do casamento, de fazê-los prostituir e de levá-los ao adultério, dentre
outras ações consideradas pecaminosas.

Percebidas nos ritos da Igreja, assim como nos pequenos atos do cotidiano,
as pombagiras deveriam ser mantidas “amarradas”, para não interferirem na obra de Deus
nem impedirem os indivíduos de se entregarem à glória do Espírito Santo. Se nas Sessões
de Descarrego a atuação dessas entidades se evidenciava por meio de performances rituais,
na vida diária esses gestos surgiam entrelaçados nos atos aparentemente banais do
cotidiano. Assim, tão logo fossem percebidos deveriam ser “amarrado em nome de Jesus”.

Mas como reconhecer se uma pessoa estaria ou não movida pela força
demoníaca da pombagira? Diante dessa questão, as opiniões variavam, mas em alguns
pontos se convergiam. Um desses pontos de convergência consistia na maneira de olhar da
pombagira, algo que dotava aquele que a incorporava de uma expressão absolutamente
sedutora. Essa sedução não emanava de trajes ou acessórios, mas vinha à tona a partir de
determinados tipos de olhar, somados a outros gestos, como a maneira sedutora de segurar
o cigarro ou de cruzar as pernas.

Como foi enfatizado por uma obreira da IURD, era bastante comum
surpreender alguém fazendo determinado gesto ou, mesmo, portando um olhar sedutor e,
poucos instantes depois, “manifestar” o espírito ou o “encosto” da pombagira. Essa
capacidade de seduzir por meio de artimanhas foi revelada por uma senhora que antes de
entrar para a IURD freqüentou durante anos um terreiro. Referindo-se a esse poder sedutor
da pombagira, ela relatou que durante o tempo em que recebia essa entidade tornou-se alvo
da paixão de um rapaz bastante mais jovem que ela. Ao explicar essa paixão do rapaz, ela
se referia ao poder da pombagira em mudar-lhe a face, fazendo com que o jovem visse o
rosto de uma mulher belíssima e irresistivelmente sedutora. Mesmo sabendo desse poder
ardiloso da pombagira, ela dizia que o fato de ser alvo da paixão desse rapaz começou a
253

afastá-la de seu marido e a desestabilizar o seu casamento. Somente depois de ter se


tornado evangélica e se libertado daquele demônio é que pôde, gradualmente, restabelecer a
sua vida conjugal.

Outras narrativas enfatizavam a violência e o comportamento entrópico da


pombagira, mostrando como as suas “manifestações” perturbavam os relacionamentos
familiares. Aqui vale registrar a história de uma estudante de psicologia, cuja mãe era
membro da IURD. No relato dessa jovem, ela enfatizou que pouco tempo depois que sua
mãe se converteu e passou a freqüentar os ritos da IURD, começou a apresentar um
comportamento bastante estranho. Quase todos os dias, por volta da meia-noite (uma “hora
forte”, para a ação de satanás), um suposto demônio começou a atuar sobre a sua mãe. Tal
como ela disse, eram nítidos os sinais demoníacos no corpo da mãe. Nesses momentos a
mãe passava a retorcer as mãos formando garras, além de emitir sons que nada tinham a ver
com a sua própria voz. Sendo fustigado pelo pastor, o suposto espírito anunciava que
mataria a dona daquele corpo que se encontrava sob seu poder
Os filhos apavoravam-se com o comportamento da mãe, até o dia em que
resolveram levá-la a uma Sessão de Descarrego. Lá, diante do pastor a entidade se
apresentou como uma pombagira que fora colocada na vida daquela senhora pela amante de
seu marido. Diante das más intenções desse demônio, a entidade foi “repreendida” e
“amarrada” para, finalmente, ser “queimada” naquela mesma sessão. De acordo com o
depoimento colhido, só depois da “manifestação” e “queima” do demônio é que a família
daquela senhora foi liberta. Tal exigência devia-se ao fato de os demônios e, sobretudo, das
pombagiras detestarem casamentos e agirem de diversas maneiras para desfazer laços
conjugais.

Observamos que dentro da IURD não havia possibilidade de estabelecer


qualquer tipo de troca amistosa ou cordial com as pombagiras. Ao contrário do que ocorria
nos terreiros, tratava-se de encontros dramáticos, perpassados por antagonismos e conflitos
que implicavam a humilhação das entidades e, finalmente, a sua expulsão do espaço ritual.
254

Esse ato se concretizava a partir da articulação de forças que visavam anular


os poderes dos demônios e libertar os indivíduos que tinham se tornado vítimas de forças
demoníacas. Na seqüência ritual das Sessões de Descarrego a entidade era inicialmente
exortada a comparecer diante da assistência, a identificar-se enquanto entidade, a confessar
suas reais intenções diante da assistência e, afinal, a render-se ao poder de Jesus.

Se algumas pessoas se impressionavam negativamente e mantinham uma


evitação diante daquelas cenas altamente dramáticas, outras apontavam para a sua
positividade no sentido de se manterem protegidas da ação maligna dos espíritos
demoníacos. Liz era uma dessas pessoas que revelava esses sentimentos repletos de
positividade quando se referia a sua ida às Sessões de Descarrego. Tal como dizia a ex-
umbandista, tratava-se de um lugar e de uma situação muito especial, na qual as pessoas se
reuniam “para clamar a Deus”. Sendo assim, as orações purificavam aquele ambiente e o
protegiam das ações demoníacas. O jejum do pastor, supostamente iniciado vinte e quatro
horas antes do início das Sessões de Descarrego, era outro elemento importante para vencer
as forças malignas. Na opinião de Liz, seria essa combinação de fatores que garantia àquele
líder espiritual o poder necessário para lidar com as pombagiras e os demais exus, fazendo-
os “manifestar amarrados” durante as Sessões de Descarrego.

Fundamentada nas palavras do pastor, Liz lembrava a proteção que aqueles


ritos de descarrego permitiam aos que dele particivam, sobretudo enquanto estavam dentro
do templo. No entanto, tal garantia cessava no exato limite de determinadas fronteiras
territoriais. Essas idéias se evidenciavam no seguinte relato de Liz: “Tem muita gente que
manifesta durante a Sessão de Descarrego, e o demônio sai daquela pessoa e fica esperando
do lado de fora, esperando a hora que a pessoa sai para montar nela novamente. O que
restava ao fiel, nessa batalha infindável entre as forças do bem e do mal era crer e se abrir
diante da obra divina. Se não fosse assim, não haveria libertação”.
.

Depois de fazer essas observações, Liz enfatizou a importância do pastor


enquanto um mediador entre as necessidades e desejos da assistência e os poderes divinos:
255

Na hora em que o pastor chega, já começa com a oração forte e aí ele manda
todo mundo levantar, fechar os olhos e começar a fazer seus pedidos. Aí ele
começa a clamar a Deus, quase uns quinze minutos. Depois, o pastor pede
que todo o mundo levante as mãos, feche os olhos, e então ele começa a orar
por todos que estão lá, para poder descarregar. É no momento que tem a
manifestação. A oração que ele faz é reforçando os nossos pedidos com as
palavras dele. Ele intercede. É uma interseção pelos pedidos que a gente faz
a Deus. Aí, quando ele faz essa oração, ele diz: se tiver algum demônio, Meu
Deus, que estiver aí numa pessoa, manifeste agora. É o momento que ele
manda manifestar o que tiver de mal escondido no corpo da pessoa, na casa
da pessoa, na vida dessa pessoa.

Como ressaltou Liz, essas “manifestações” não bastariam na luta do bem


contra mal. Era preciso que a cena ritual mostrasse com cores vivas, a situação de
“humilhação” da pombagira, que por obediência ao pastor teria de se identificar. Liz relata
também um fato ocorrido na Igreja, no qual o poder de Deus, mediado pela força do pastor
e da assistência, colocou em cena a supremacia divina diante da pombagira. Finalmente,
referiu-se a um episódio em que a pombagira “manifestou” numa Sessão de Descarrego e
fez com que a mulher cujo corpo fora tomado por ela corresse até a porta principal do
templo com o fim de fugir das ações do pastor, acompanhadas pelos que estavam ali em
oração. Segundo Liz, aquele episódio evidenciou a supremacia de Deus sobre os demônios.
Já aconteceu de uma pombagira que manifestou numa moça, lá na igreja, sair
correndo do altar pra fugir pela porta principal. E quando as obreiras tentaram sair
correndo atrás, o pastor mandou parar e falou: Ninguém corre atrás dele não. Pode
ir demônio. Mas, na hora que a pombagira chegou na porta, que o trem ruim chegou
na porta da igreja, ele estacou de uma vez. E aí o pastor falou: todo mundo estenda
a mão para a porta, todo mundo! Aí a gente virou para a porta e estendeu as mãos e
ele falou assim pro demônio: Vai! Vai! Agora! E todo mundo falava, queima!
Queima! Jesus! E ele estacou na porta. E o pastor falou: e agora venha aqui
demônio! E todo mundo com as mãos estendidas em direção a ele e falando:
Queima! Queima Jesus! E a gente com a mão estendida pedindo para Jesus
queimar.

Liz observava que os obreiros permaneciam andando por toda a igreja no


momento em que o pastor “mandava manifestar”. Essa senhora enfatizava que quando eles
viam alguém balançando ou agindo de maneira diferente, aproximavam-se da pessoa e lhe
amparavam o corpo com as mãos, para que elas não caíssem e se machucassem.
Destacando esse atos executados pelos obreiros e obreiras diante das pessoas
“manifestadas”, Liz reinterpretava-os valendo-se de sua experiência e vivência das giras da
256

umbanda. Evidenciava-se que ela percebia os gestos das obreiras e obreiros como uma
repetição dos atos realizados pelos filhos e filhas-de-santo dos terreiros, que se valendo de
um certo repertório corporal e gestual protegiam os médiuns iniciantes na gira.

Aqui, deparamos com as idéias de Sahlins apresentadas anteriormente sobre


essa atividade dinâmica de apropriação e reelaboração da cultura do outro, que pondo em
cena e recriando o repertório gestual dos sistemas simbólicos promove significativas
mudanças sociais referentes a determinados universos religiosos.

Exemplificando o processo de trocas simbólicas e de elaborações sincréticas


entre os cultos de possessão e o pentecostalismo à brasileira, partimos do comentário de Liz
sobre os ritos de exorcismo da IURD, tendo por base a atividade ritual das giras da
umbanda. Para isso, ela se valia de categorias muito utilizadas pelo povo-do-santo.

Ora, sabemos que o exercício de uma linguagem transcende o ato de apenas


nomear arbitrariamente as coisas do mundo ou do “além-mundo”. Ao contrário, trata-se do
exercício de recortar significativamente um universo e conferir-lhe sentidos e ordenamentos
necessários a um procedimento de classificação. Sendo assim, podemos sublinhar a
presença de dois termos bastante fortes e significativos naquela interpretação da Sessão de
Descarrego por uma pessoa oriunda da umbanda. Para tal, serão citadas apenas duas noções
extremamente significativas nesse campo religioso, representadas pelas expressões “subir”
e “dar a chave”, esta última expressão significando apresentar-se no terreiro enquanto
entidade.
A primeira coisa que o pastor pergunta é o nome, muitos demônios não gostam de
dar o nome não. E ameaçam o pastor. Então o pastor desafia aquela coisa ruim e
fala: tenta encostar o dedo em mim. E ele [o demônio] não consegue colocar a mão
no pastor. E eles [os demônios] tentam subir para não dar a chave, e aí eles vão
embora, e o pastor segura eles pelo cabelo e manda voltar: Volta aqui, volta aqui!
Depois de duas vezes que o pastor grita, eles voltam. E aí o pastor fala assim: fica
aí diabo, e aí ele [o pastor] pega outro para entrevistar (grifo nosso).
257

Outro exemplo dessa atividade de reinterpretação refere-se ao fato de


domar a entidade por meio do ato de segurá-la pelo cabelo, gesto bastante comum,
tanto nas Sessões de Descarrego quanto nas giras da umbanda freqüentadas por Liz:
Para mim, o cabelo é a força, é a força maior da pessoa. Porque no centro eu
também via a minha madrinha fazendo isso. Quando estava na gira desenvolvendo,
ela chamava uma entidade, às vezes, um caboclo, e aí vinha um exu. Aí ela
segurava pelo cabelo e gritava: sobe! sobe! sobe! e dizia: eu não estou te chamando
aqui não. É pra descer o caboclo Sete Montanhas. E aí, se em vez de vir o caboclo,
vinha uma coisa ruim, um exu, aí ela segurava o médium pelo cabelo e mandava o
exu ou a pombagira subir. É tanto que a pessoa girava e ela ficava segurando pelo
cabelo. É como o pastor faz (grifo nosso).

Nas conversas, referentes à presença e ao comportamento das pombagiras


“manifestadas” na IURD, Liz destacou uma diferença significativa entre as suas condutas
no terreiro e nas Sessões de Descarrego. Se nos terreiros as pombagiras surgiam com os
gestos soltos, dançando, gargalhando e demonstrando sensualidade, na IURD essas
performances desapareciam. Liz enfatizava que “lá [nos templos da IURD] elas não tinham
muita liberdade para ficar fazendo gracinha”. Isso porque no terreiro elas estavam
“trabalhando” e na Igreja elas estavam “amarradas” para serem “queimadas”.

Em seguida, Liz correlacionou a sua fala sobre as diferenças de


comportamento da pombagira nesses dois espaços, referindo-se às gargalhadas perpassadas
por um tom de escárnio. Em seu ponto de vista, na Igreja, essas entidades riam daquela
maneira porque estavam trabalhando na “linha virada”, ou seja, na linha relacionada com o
mal. Ora, ao destacar esse tipo de linha relacionada aos trabalhos voltados para o mal,
implicitamente, surgia a possibilidade de outra linha, que se opunha àquela denominada de
“virada”, cuja oposição implicava trabalhos associados com o bem. Mostrando uma versão
ambígua, as falas sobre outra linha correlacionavam-se com determinadas ações das
pombagiras nos terreiros.

Citamos outro exemplo oriundo dos terreiros e ressignificados por meio dos
ritos da IURD e, sobretudo, das Sessões de Descarrego.
258

Comentando sobre o mal-estar que as pessoas sentiam diante dos gestos do


pastor, que achincalhava o “encosto manifestado” nas sessões, Liz manifestou-se nos
seguintes termos:
Numa sessão passada, lá na Universal, o pastor segurou o bicho [uma pombagira]
pelo cabelo e ele não queria dar o nome de jeito nenhum. Na hora o pastor mandava
todo mundo se levantar, estender a mão para queimar. Queima! Queima, Queima! E
na hora em que ele [o bicho] fazia menção de rodar, o pastor continuava segurando
o cabelo dele e ele rodava. Porque era o bicho que tinha que obedecer, não era o
pastor que tinha que soltar. Então ele [o pastor] segurava e falava: cuidado com a
matéria, pra não machucar ela! O pastor estava falando direto pro bicho, pra evitar
que a mulher se machucasse.

Depois de relatar tal cena, Liz estabeleceu uma correlação direta entre
aquelas falas e gestos do pastor e as frases ditas por sua madrinha no seu terreiro de
umbanda:
Porque no centro de umbanda, onde tinha esses tipos de exu ruim, só mandava subir
[os exus]. Porque na igreja manda queimar e no centro manda subir. Porque quando
a pessoa que tava com o exu rodava no centro onde tinha uma pilastra bem no meio
da sala, a minha madrinha gritava: cuidado com a matéria, cuidado com a matéria,
não machuca ela não! Não machuca ela não! Era para o exu não deixar machucar a
pessoa. Por isso é que quando esses trens ruins vão embora a pessoa não sente nada.
Se cair não machuca e nem sente dor. É tanto, que dia de exu no centro era na sexta
feira, chamava dia de “puxada”, dia de fazer “puxada”. Aí o pessoal vestia
totalmente de branco, e na Universal é a mesma coisa. Dia de descarrego o pastor se
veste da cabeça aos pés de branco e ainda fica em jejum pra poder queimar os
bichos. Para poder ter força, porque eles [os bichos] não podem sobre ele [o pastor]
de jeito nenhum se ele [o pastor] tiver em jejum e em oração.

Não são apenas esses exemplos que apontam para as convergências e


os contrastes existentes entre as pombagiras que “descem” nos terreiros e aquelas que
“manifestam” na IURD. Na conclusão buscaremos expor outros contrastes e similaridades
entre as pombagiras encontradas nesses dois campos religiosos, com seus conjuntos de
performances e representações.

8.4 Possessão e libertação

No sentido de sublinhar os fortes atributos que a pombagira traz consigo,


capazes de singularizá-la tanto nos terreiros quanto em grupos neopentecostais no caso, a
259

IURD, tomamos como referência a narrativa de Ruth uma senhora de aproximadamente 35


anos, ex-universitária, que na época da pesquisa trabalhava como cabeleireira num salão de
beleza.

Depois de ter pertencido a um terreiro durante onze anos Ruth converteu-se


ao neopentecostalismo e passou a ser uma entusiasta das Sessões de Descarrego e dos
trabalhos de “libertação” da IURD.

Trata-se de um episódio ocorrido quando essa senhora tinha cerca de vinte e


poucos anos e foi tomada por uma pombagira, ainda no tempo em que freqüentava as giras
da umbanda. Para situar esse transe em sua história de vida destacamos alguns trechos de
sua narrativas considerados mais significativos.
A partir dos quatorze anos, eu já estava envolvida com práticas bem marcantes
dentro do espiritismo. Foram cerca de onze anos de envolvimento ali. Eu cheguei a
fazer quatro camarinhas pra santo. Na época, eu tinha envolvimento com a falange
de Iemanjá. E por ocasião desse meu envolvimento eu entrei em transe e tive
experiências muito marcantes.

Referindo-se as suas experiências com a possessão, Ruth destaca


detalhadamente as “descidas” de um preto-velho, vivências que, diga-se de passagem,
contrastam com a violência daquelas referentes à incorporação pela pombagira.
Eu me lembro que todas as vezes que eu era cavalo (graças ao Senhor Jesus, hoje eu
não sou mais), na época em que eu era cavalo de um certo preto-velho, e eu lembro
que nesta ocasião, quando o preto-velho me tomava o corpo, eu sentia que o meu
espírito saía do meu corpo. E eu ficava lá em cima. Eu via tudo lá de cima. Eu
sentava numa ripa, numa madeira que tinha em cima do centro. E lá de cima eu via
o meu corpo. O meu corpo estava emprestado pra aquele...pra aquele... nêgo véio.
Lá de cima eu via tudo. Eu só não ouvia o que estava sendo falado. Eu passei muito
por este tipo de experiência, que é chamado de arrebatamento, ou de como é que
fala? Viagem transcendental? Sei lá como é que o povo hoje dá o nome.

Finalmente, Ruth relata a incorporação pela pombagira, episódio marcado


pela violência potencial e pela impulsividade que caracteriza essa entidade, tanto nos
terreiros quanto nos ritos da IURD.
Nessa época eu bebia muito e eu subi pra praça do meu bairro com o meu irmão.
Nós estávamos tomando uma cerveja num bar em frente à praça, quando, de
repente, eu fui tomada por uma pombagira, e o meu irmão contou que eu fiquei nua
260

na praça, que o meu corpo rolava no meio da praça, num lugar cheio de roseiras. Eu
escandalizei o bairro inteiro. E foi preciso que o pessoal do terreiro, o pai-de-santo
viesse, na época, e me levasse. E eu acordei três dias depois, amarrada no terreiro.
Já tinha três dias e três noites que eu estava nas mãos daquele demônio, daquela
pombagira.

Comentando a narrativa inicial de Ruth, na qual ela se vê tomada,


temporariamente, por um preto-velho, observa-se que, apesar de as expressões e do tom de
sua fala traduzirem um olhar negativo sobre as incorporações dessa entidade, nem de longe
elas podem ser comparadas à descrição da tomada de seu corpo pela pombagira.

Se a descida do preto-velho, desrespeitosamente nomeado por Ruth de “nego


véio”, põe em relevo apenas o desconforto referente ao fato de ela não poder ouvir as
conversas da entidade com os seus clientes, em nenhum momento Ruth refere-se à descida
daquela entidade como um evento que implicava situações de altos riscos e, mesmo, danos
físicos e morais. Afinal, o transe relacionado ao preto-velho não lhe trazia maiores
problemas, fato que diferia radicalmente da incorporação da pombagira. Em sua narrativa,
ela apontou que essa entidade a colocou diante de sua ação entrópica e incontrolável,
quando, a seu bel-prazer, tomou-lhe o corpo, fazendo com que ela, sem qualquer
consciência e controle de seus atos, se desnudasse publicamente e rolasse sobre as roseiras
de uma movimentada praça.

Com efeito, torna-se necessário sublinhar que essa narrativa referente à


violência e à desordem causada pela pombagira foi tão significativa na vida de Ruth que ela
dizia sonhar com o dia em que, ali, naquela mesma praça, pudesse dar o seu “testemunho”
sobre o poder e a força de Deus na vida daqueles que “aceitam Jesus no coração”.

Nesse sentido, Ruth referiu-se a uma verdadeira “reforma moral” sofrida por
ela desde a sua conversão. Conforme dizia, a sua vida tinha mudado radicalmente desde
que "conhecera Jesus”. Ao invés de beber e de se prostituir, como dizia ter feito na época
em que freqüentava os terreiros, tornara-se uma “mulher de Deus”. Sua vida afetiva e
sexual desregrada tinha se transformado em outra radicalmente oposta. Ela tinha se casado,
261

tinha filhos e dividia seu tempo parte com Jesus, parte com seu trabalho e com suas
atividades de mãe e esposa. No entanto, fora longo e difícil o caminho de sua “libertação”.

Muitas especulações sobre esse episódio são possíveis, porém a intenção


aqui é tomar essa narrativa como aproximação das representações expressas por aquela ex-
umbandista quando se refere à pombagira. Sublinha-se aqui que a sua narrativa se
fundamenta em uma série de representações oriundas do mundo dos terreiros,
reinterpretadas pelo neopentecostalismo.

Focalizando o episódio da descida inesperada da pombagira, Ruth sublinhou


que a entidade se valeu de um momento em que ela bebia num bar para colocá-la em cena
alcoolizada e nua. Partindo desse relato, depara-se novamente com uma narrativa que
correlaciona a pombagira com um comportamento feminino transgressor, associado à
ingestão de bebidas alcoólicas e à nudez.

Indo além, observamos que Ruth chegou mesmo a correlacionar as suas


atividades de prostituta com o tempo em que freqüentou o terreiro e recebeu pombagiras.
Nesse ponto de sua narrativa, sua fala parece levar ao extremo a ultra-sensualidade e o
caráter voluntarioso da pombagira, vinculando-a a um sagrado selvagem, marcado pela não
aceitação de regras morais e pela transgressão aos ritos da ordem.

Aliás, verifica-se que esse comportamento remete a um universo dionisíaco,


combatido pela quase totalidade das religiões brasileiras (CARVALHO, 2003, p. 87- 88) e,
especialmente, pelos cultos ligados ao neopentecostalismo. Aqui, vale enfatizar o fato de
que nos terreiros os ritos referentes as pombagiras, de diferentes maneiras e em diversos
graus, veiculam dimensões dionisíacas, colocadas em cena pela manifestação da alegria,
pelas performances algo sensuais manifestas pelo canto e pela dança, dentre outras
dimensões essenciais à criação e expressão de performances relacionadas ao modo
subjuntivo da cultura.
262

Pode-se observar que os aspectos mitológicos da pombagira, veiculados


principalmente pelos pontos cantados, ressaltam um tipo de feminilidade que não se
submete à dominação masculina, mas, ao contrário, afirma seu poder por meio da alegria
festiva, do prazer referente à livre sexualidade e à violência potencial. Não é por acaso que
autores como Augras, relacionam a pombagira à Lilith, uma deidade feminina cujo mito
trata da insubmissão da mulher e da sua relação com a luxúria.

Depois de sofrer a incorporação da pombagira e de ter sido levada para o


terreiro onde freqüentava, a ex-filha-de-santo destacou o fato de ter ficado três dias tomada
pela pombagira, ocasião em que teria permanecido amarrada, para evitar possíveis atos
praticados por aquele “demônio”.

Aqui pontuamos mais uma vez a atividade reinterpretativa do


neopentecostalismo à brasileira que toma como base elementos das religiões afro-
brasileiras. Inicialmente observamos que Ruth parte de crenças presentes na umbanda sobre
o potencial entrópico da pombagira, entidade capaz de tomar o corpo de um indivíduo e
desnudá-lo sem se importar com o lugar ou a situação. Dentro dos terreiros uma ação desta
natureza poderia ser interpretada como a manifestação de uma pombagira ainda não
doutrinada ou até mesmo como um castigo que teria incidido sobre um médium cuja
pombagira estivesse se sentindo descontente com suas atitudes.

No entanto o desenrolar da narrativa de Ruth evidencia a ressignificação


sofrida pela pombagira no neopentecostalismo, uma vez que ela passa a ser concebida
como um demônio e mais que isso, como um diabo exorcisado brutalmente num espaço
religioso.

Ora, ao partimos da lógica dos terreiros sabemos que os exus e as


pombagiras são entidades por demais temidas e respeitadas para terem tratamento
semelhante ao que Ruth descreve em sua narrativa. É somente dentro do
263

neopentecostalismo que essas entidades tornam-se objetos de “repreensões” e “amarrações”


uma vez que se encontram diabolizadas e submetidas ao poder de Jesus.

Com efeito, nos terreiros, longe de ser concebida como uma das faces do
demônio, a pombagira é uma entidade ao mesmo tempo ligada aos pólos do bem e do mal.
Reconhecida como uma deidade exigente, poderosa e, não raramente, vingativa, a
pombagira é muitíssimo bem tratada e até mesmo reverenciada pelo povo-do-santo.

Assim, o que se vê nos terreiros é um elaborado conjunto de práticas e


representações sobre a pombagira, as quais, na forma de um amálgama, faz conviver
dimensões vinculadas à alegria, à sexualidade e `a generosidade, com todo um potencial
entrópico ligado à agressividade, à vingança e ao malefício.

Sintetizando a fala de Ruth, observamos que a sua ênfase se dá na “reforma


moral” (BIRMAN, 1997, p. 68) que veio a sofrer depois de ter abandonado os terreiros e se
afastado definitivamente das pombagiras. Eram elas, sobretudo as grandes causadoras de
práticas “desviantes” ligadas à prostituição e ao vício. Uma vez liberta dos demônios e
preenchida pelas graças do Espírito Santo, Ruth teve a sua vida transformada radicalmente
tornando-se boa esposa, boa mãe, requisitos essenciais para a sua nova condição de “serva
do Senhor”.
264

9 CONCLUSÃO

Ela é Maria Padilha


Da sandalhinha de pau
Ela trabalha pro bem
Mas também trabalha pro mal.
(ponto de terreiro)

Mergulhando no imaginário do povo-do-santo a partir de nossas pesquisas e


vivências em alguns terreiros, acabamos por vislumbrar múltiplos significados e sentidos
suscitados pela pombagira, personagem feminina que transgride os planos social e
culturalmente ordenados, sobretudo no que diz respeito às relações amorosas e sexuais.

Podemos afirmar que essa entidade traz consigo uma dimensão dionisíaca,
manifesta na expressão da alegria, no prazer desmedido, no amor ilícito, na paixão violenta,
que, no limite, pode gerar a morte. Se nos terreiros pesquisados essa dimensão marcada
pelo “excesso” é considerada um traço positivo, desde que passível de certo controle, o
mesmo não ocorre na IURD, campo religioso no qual a pombagira surge como uma
entidade feminina demoníaca, associada exclusivamente ao mal.

Aqui, vale abrir um parêntese e situar essa entidade num imaginário gestado
num período de longa duração, com suas figuras femininas liminares: tais como Maria
Padilha, a cortesã do século XIV, ou, seja, a “Outra”, a amante real capaz de enfeitiçar seu
parceiro, o Rei de Castela, e tornar-se senhora de suas vontades. Dona de infindáveis
feitiços, Padilha atua pelos séculos como poderosa diaba e, depois, como pombagira,
resolve questões amorosas sem se importar com o bem ou com o mal.

Percebendo a pombagira como um espírito sedutor, vinculado ao pólo


feminino dos exus, indivíduos e grupos pertencentes ao povo-do-santo acreditam que essa
entidade tem o poder de atuar nos terreiros, aumentando, simultaneamente, a feminilidade e
a sensualidade daqueles com quem entra em contato, seja habitando seus corpos
265

temporariamente, seja em determinadas ocasiões do cotidiano, quando estão fora do


contexto ritual.

Assim, tomados por tais entidades, ou apenas sob a sua poderosa vibração,
potencializada durante ritos e festas, indivíduos e grupos ligados aos terreiros partilham e
vivenciam um universo imaginário e performático mais livre do que aquele constrangido
pelas normas e valores da sociedade mais ampla.

Contrastando com um universo onde imperam as regras sociais do “modo


indicativo”, essa liberdade remete os terreiros e seus integrantes ao que Turner denomina
“modo subjuntivo”, domínio da cultura no qual os indivíduos podem se valer de uma maior
liberdade de condutas, gestos e performances, sem se tornarem objeto de sanções.

No entanto, nos terreiros tal processo traz consigo certa tensão. Se as


vivências suscitadas pelas pombagiras nos seus ritos permitem aos homens e às mulheres
quebrarem, temporariamente, a rigidez dos papéis de gênero que lhes são impostos no
cotidiano, tal processo não se dá sem determinados conflitos.

Vale lembrar que, apesar de os terreiros constituírem locais onde é possível


vivenciar com maior liberdade performances e comportamentos mal vistos pela sociedade
abrangente, ali também são reproduzidos, em maior ou menor grau, valores, modelos e
padrões dominantes, que trazem consigo atitudes preconceituosas e discriminatórias a
respeito dos papéis sociais e, principalmente, daqueles relativos aos gêneros. Nesse sentido,
a possessão pela pombagira torna-se um elemento revelador desses conflitos e tensões que
envolvem os terreiros e suas relações com a sociedade mais ampla.

Como foi enfatizado ao longo deste estudo, a possessão pela pombagira traz
consigo certos cuidados e preocupações por parte daqueles que se sentem mais próximos
dessa entidade. No caso dos homens, mostramos alguns comportamentos que marcam uma
forte evitação de se tornar cavalo dessa entidade.
266

Nesse ponto, podemos relembrar o exemplo relativo ao pai-de-santo cujo


medo do ridículo levava-o a homenagear a sua pombagira a portas fechadas, numa festa em
que o único convidado era a própria entidade. Argumentando, esse pai-de-santo dizia que
seria um vexame completo, ele, um homem de mais de um metro e oitenta de altura e
corpulento ser visto trajado como mulher e adornado com toda a parafernália que a sua
pombagira lhe exigia. Mas, ao invés de virar as costas e desconsiderar a exigência de sua
entidade, ele se mostrava cauteloso para que a pombagira não se sentisse negligenciada.

No entanto, a maioria dos problemas que envolviam a descida de


pombagiras em homens não se dava por motivos estéticos, mas pelo temor de que depois de
realizadas as performances femininas típicas dessas entidades seus cavalos passassem a ser
vistos como gays. Lembramos aqui a resistência de Pai Carlos, que durante anos se recusou
a dar passagem para Maria Quitéria, ou, ainda, o horror do noivo de Mãe Rita, ao receber a
sua pombagira e depois do transe ritual imaginar ser visto como um gay. Esse temor teria,
inclusive, levado essa mãe-de-santo a tomar providências com relação às entidades que
direta ou indiretamente estavam pertubando a vida de seu noivo, recém chegado aos
espaços de seu terreiro.

Além desses exemplos, também podíamos citar o comportamento ambíguo


do jovem que, durante a festa de Quitéria, incorporou a sua cigana, trajando-se como ela
desejava, ou seja, com brilhos e cetins e, depois do rito, ao olhar a foto da entidade, sentiu-
se extremamente desconfortável por ter se apresentado publicamente como uma mulher.
Mais do que temer ser identificado com certo gosto duvidoso, que aos meus olhos apontava
para o kitsh, o que esse rapaz temia certamente era se tornar objeto de preconceitos
referentes à homossexualidade.

Observamos então que esses três terreiros pesquisados apresentavam tensões


entre homens e pombagiras, mesmo que essas relações fossem permeadas por significativas
diferenças no que dizia respeito às suas modalidades e graus. Marcando uma radicalidade
inconfessa durante todo o tempo da pesquisa, os homens que integravam as giras do terreiro
de Mãe Mariinha evitavam, sistematicamente, receber pombagiras. Nesse sentido, os
267

médiuns da casa deveriam ser os primeiros a dar exemplo aos visitantes e novatos. Tal
postura ficou clara quando, quase no final da pesquisa, o babalorixá da casa me explicou
que tão logo os homens recém ingressos no terreiro entravam em contato com a vibração da
pombagira havia um procedimento doutrinário que evitava a sua “virada” naquela entidade.
Informados desse procedimento, aqueles que estivessem auxiliando nas giras levavam esses
médiuns para o fundo do salão, lugar onde o espírito era “doutrinado” sem que essas
pessoas ficassem expostas aos olhos da assistência.

Indo na direção contrária do que observou Fry (1982), quando se referiu às


vantagens encontradas pelos pais-de-santo “bichas” dos terreiros de Belém, que se valiam
da dupla condição liminar (a de “bicha” e a de “macumbeiro”) para, supostamente, ter
aumentados seus poderes mágicos, Pai Roberto fazia alguns questionamentos: Afinal, se os
terreiros já representam locais ligados às religiões historicamente estigmatizadas, por que
aumentar ainda mais o preconceito que incide sobre esses lugares, permitindo-lhes tornar
locais onde os filhos-de-santo possam fazer “marmotagens” durante as sessões? Não seria
marginalizar ainda mais esses locais, alvos de preconceitos? Na sua perspectiva essas
atitudes consideradas pouco sérias, só piorariam as coisas, uma vez que poderiam diminuir
a seriedade da casa e de seus membros. Era exatamente por isso que essa evitação fazia
parte da doutrina da casa que ele liderava. Se os outros terreiros adotavam posturas
diferentes, tudo bem, mas em sua casa as coisas continuariam tal como eram no tempo de
seus pais.

Essa medida vigorava, inclusive, no sentido de atender aos médiuns, que


insatisfeitos com a permissividade de outras casas, temiam ficar lado a lado com os adés e
suas posturas efeminadas.

Mas, nossa incursão pelos terreiros mostrou que as tensões trazidas pela
incorporação da pombagira não se restringiam somente aos homens, inseridos numa
sociedade homofóbica como a brasileira (FRY, 1985; MOTT, 1996). Mesmo que em menor
grau, tais conflitos também diziam respeito às mulheres.
268

Inteirando-nos do cotidiano de moças e senhoras ligadas aos terreiros,


observamos diversas situações em que elas manifestaram medo de se tornarem objeto do
poder entrópico daquela entidade. Esse temor surgiu, por exemplo, na adolescência de Liz,
período em que sua mãe e sua madrinha tiveram que fazer a sua pombagira subir, para que
essa entidade não levasse a jovem a infringir determinadas condutas morais. Outros
exemplos podiam ser enumerados, estando ligados, principalmente, ao procedimento de
doutrinar pombagiras. Esse ato tornava-se tanto mais necessário na medida em que essas
entidades precisavam descer nas sessões abertas.

Aqui, podemos citar o árduo trabalho de Mãe Mariinha e de Mãe Rita,


ialorixás que despenderam muito tempo e energia doutrinando suas pombagiras, para que
essas entidades se enquadrassem em modelos condizentes com a doutrina das casas onde
“desciam” para trabalhar. Verificamos que essa adequação moral das pombagiras ao mundo
dos terreiros, dizia respeito tanto ao cumprimento da doutrina umbandista quanto das regras
estipuladas pelas lideranças da casa, com relação ao seu funcionamento.

Enfatizamos que esse ato de doutrinar espíritos vincula-se não somente aos
aspectos religiosos da umbanda, visto que implica a evolução das entidades no plano
espiritual, mas também relaciona-se à necessidade do próprio terreiro de se manter inserido,
sem maiores problemas, na sociedade abrangente, com seus códigos de conduta e regras
morais.

Para exemplificar ainda melhor esse tipo de tensão, ligada à relação de


mulheres com suas pombagiras, valemo-nos das palavras de outra mãe-de-santo,
sexagenária, que, com quase trinta anos de pertencimento ao mundo dos terreiros ainda
reclamava do comportamento de uma de suas pombagiras. Referindo-se ao fato de ser uma
mãe-de-santo respeitada em seu terreiro, essa senhora mencionava o seu sentimento de
vergonha quando alguns de seus filhos e filhas lhe revelavam os atos de sua pombagira
Zureta, durante os ritos do terreiro. Exemplificando o problema, ela contrastava os
comportamentos das pombagiras que recebia: a Cigana, qualificada por ela como uma
269

espécie de “puta recatada”, e a Zureta, pombagira que, de maneira explícita, declarava seus
interesses sexuais pelos homens presentes nas sessões.

Como lhes diziam seus filhos e filhas-de-santo, a primeira entidade mantinha


seu recato nas giras, enquanto Zureta procedia de maneira contrária, assediando os homens
presentes no terreiro, ocasiões em que lhes roçava a pele de maneira erótica.

Descrevendo tal gesto, a mãe-de-santo colocou as mãos nos quadris,


mostrando-os doloridos pelas tarefas domésticas e comentou: “Imagina, eu, que não tô
podendo abaixar as costas nem pra lavar roupa, envergar o corpo daquele jeito pra roçar em
homem”. Aqui, a sua fala nos pareceu bastante significativa, na medida em que, mais do
que sublinhar o poder da pombagira de agir através de seu corpo, destacava o fato de a
entidade viabilizar um comportamento erótico contrário à sua vontade e, além disso,
destoante dos papéis sociais que desempenhava enquanto, dona-de-casa, mãe, avó e ialorixá
quase sexagenária. Se a transgressão de limiares morais seria algo nocivo aos seus papéis
de mãe e avó, a situação de ialorixá não era menos exigente com relação à rigidez das
condutas morais que garantiam o seu respeito por parte de seus filhos e filhas-de-santo.

Visto dessa perspectiva, tal sentimento de vergonha tornava-se bastante


compreensível e nos remetia às especificidades da estrutura hierárquica das casas de santo,
locais onde pais, mães, filhas e filhos-de-santo têm suas condutas orientadas para atender a
um rígido código de conduta referente à dimensão pública da vida social.

Como bem aponta Vogel (1993), os terreiros de candomblé constituem


espécies de sociedades de corte, com todo o seu dispêndio ostentatório, suas intrigas
relacionadas à busca por cargos honoríficos e seu rigoroso sistema de etiquetas, que
sustentam e expressam poder. Ciente desse fato é fácil compreender o cuidado dos líderes
de terreiros com relação a sua imagem social, dimensão que está diretamente ligada ao seu
poder e prestígio.
270

Podemos, então, concluir que, se de um lado, a possessão torna-se uma


poderosa chave, capaz de permitir a entrada e a permanência de indivíduos e grupos no
modo subjuntivo da cultura, de outro, tal fenômeno não acontece sem trazer consigo
determinadas tensões. Afinal, mesmo que regidas pela vontade de seus líderes, as casas de
candomblé são alvo de pressões e coerções da sociedade na qual se inserem.

Tomando como parâmetro os preconceitos contra as práticas homoeróticas,


sublinhamos o fato de nossas investigações apontarem para o temor e a evitação dos filhos-
de-santo de incorporarem pombagiras, para não sofrerem abalos com relação a sua
identidade sexual ou determinado papel de gênero. Afinal, se, de um lado, existiam
discursos que negavam esse tipo de preconceito com relação à incorporação de pombagiras
por homens, de outro, essas falas conviviam com práticas que acenavam exatamente para o
contrário.

O que observavamos de fato era que os “homens-mesmo”, aqueles


indivíduos dos quais se espera o comportamento sexual de homens “machos” (FRY, MAC
RAE, 1982), evitavam a todo custo a incorporação da pombagira, pelo perigo que esta
espécie de transe representava em termos de ter a sua masculinidade abalada. Tal evitação
surgiu claramente na fala de duas mulheres ligadas a diferentes terreiros.

A primeira delas, uma mãe-de-santo de um terreiro situado num bairro


periférico de Belo Horizonte, explicitamente, afirmou que não permitia a descida das
pombagiras nos “homens-mesmo” de seu terreiro, ou seja nos “hétero”. Afinal, estas
entidades poderiam deixar uma influência nos médiuns, especialmente nos dias de sessão.
Assim, imantados pela vibração feminina, esses homens acabariam por atrair para junto de
si outros homens, o que poderia lhes trazer sérios danos, sobretudo morais.

Aqui, torna-se necessário citar também as palavras de uma filha-de-santo


ligada a umbanda. Na opinião desta moça, as pombagiras não deveriam descer nos filhos-
271

de-santo de maneira alguma, pois, afinal, era muito perigoso, podia “até desmunhecar o
homem”.

Ao proferir essa opinião por meio de tais frases, essa filha-de-santo nos
remete a um contexto sociocultural no qual o ato de "desmunhecar" é visto como algo
extremamente negativo, ridicularizado e estigmatizado (FRY, MAC RAE, 1985, p. 41).

Nesse ponto, vale lembrar que essas performances surgem diretamente


relacionadas aos homens a quem se atribui uma sexualidade desviante porque vinculada à
“passividade feminina”. Sendo objeto de um forte preconceito social e, até, de atitudes
criminosas, no Brasil (MOTT, 1996) estes indivíduos recebem uma série de denominações
de cunho pejorativo, tais como "bicha", "veado", “mulherzinha” e "florzinha" (FRY; MAC
ERA. 1985; MISSE, 1979; PARKER, 1991; MOTT, 1996).

Aliás, como bem observam Fry e MacRae (1985), nesse Brasil popular, onde
os papéis sexuais são rigidamente separados, aos homens e às mulheres são atribuídos
determinados comportamentos, funções e gostos que se tornam elementos fundamentais na
construção de suas identidades sociais e sexuais.

Nesse quadro sociocultural, para que os indivíduos sejam considerados de


fato “homens”, é necessário que eles assumam o papel “ativo” nas relações sexuais e que se
abstenham de realizar quaisquer performances efeminadas. Qualquer dúvida com relação a
esses dois aspectos torna o indivíduo cercado de suspeitas e objeto de preconceitos, já que
estes não se comportam como aqueles verdadeiramente “machos”.
Apesar de todas as transformações presentes na sociedade brasileira, essa
última categoria ainda é um forte referencial para abranger aqueles indivíduos que surgem
na cena social identificados como fortes e viris, que gostam de futebol, mulher e cerveja,
que são provedores de suas famílias e que, além de não gostarem de “coisas de mulher”,
não trazem consigo quaisquer gestos que possam remeter a uma efeminação. Num Brasil
“popular”, que, como diz o ditado, “homem que é homem não chora”, não é demais
272

acrescentar outro item à lista dessas proibições e dizer que “homem que é homem não vira
em pombagira” ou, pelo menos em público. É esse tipo de lógica social que permite-nos
entender a proibição e o temor diante da possibilidade de os “homens-mesmo” receberem”
pombagiras.

Concebidas pelo povo-do-santo como entidades extremamente exigentes e


voluntariosas, principalmente no que tange às performances femininas de seus cavalos, as
pombagiras os transformariam publicamente em efeminados, o que certamente traria sérias
conseqüências para o seu status de “homem”.

Se enunciada nos terreiros, tal afirmação certamente soaria para muitos


como um terrível equívoco, pois pelo menos em termos discursivos os espíritos, além de
não terem sexo, não têm nada a ver com seus “cavalos”, considerados simples matéria.
Todavia, observamos que nos grupos pesquisados, as coisas se dão ao contrário do que
habitualmente é afirmado pelos pais, mães, filhos e filhas-de-santo. Sem a intenção de
absolutizar essas afirmações, observamos que nas casas pesquisadas as pombagiras desciam
em mulheres e em adés, e se algum indivíduo tido como “homem-mesmo” as recebia, tais
incorporações não aconteciam e nem mesmo eram mencionadas em público.

Os questionamentos feitos por nós a respeito dessa ausência de pombagiras


descendo em “homens-mesmo” e, ao lado disso, à sua preferência em se incorporar em
mulheres e adés eram justificadas como um ato da própria entidade, que desejava se
apresentar na sua “terra” tal como a mulher que foi em vida. Nesse sentido, os “homens-
mesmo” teriam pouco a oferecer à entidade, uma vez que seus repertórios corporais e
gestuais não estariam condizentes com aqueles desejados pela pombagira.

Observamos que os ritos relacionados com os exus e as pombagiras


colocavam em foco tais caracterizações que reforçam estereótipos comuns na rígida divisão
de papéis femininos e masculinos. Assim, nos terreiros pesquisados as performances dos
exus-machos tendiam a reforçar determinadas figuras paradigmáticas do “homem”
273

brasileiro como o malandro, aquele personagem da cena social brasileira que, nas antigas
rodas de baralho, nos botequins e mercados, surgia bebendo cerveja e cachaça, sempre
cercado de mulheres.

Indo além, podemos afirmar que, se, de um lado, as pombagiras colocam-nos


diante de imagens femininas marcadas pela beleza, coqueteria e vaidade (atributos
essenciais a uma caracterização social e culturalmente forjada do feminino) de outro, essa
entidade também se mostra fortemente associada a uma série de qualidades culturalmente
vinculadas ao pólo masculino, tais como força, valentia, determinação, violência,
voluntarismo e liberdade, sobretudo no que tange ao exercício da sexualidade (FRY; MAC
RAE; 1985; MISSE, 2005; PARKER, 1991).

Ora, tal fusão ou amálgama entre os pólos masculino e feminino torna-se um


fato social e cultural relevante, na medida em que coloca em xeque importantes princípios
classificatórios vinculados à dualidade homem-mulher. Transgredindo, desta maneira,
limites sociais, culturalmente traçados para o feminino, a pombagira apresenta-se, então,
como um espírito ou um ser social altamente ambivalente e, portanto, liminar.

Resulta dessas várias ambigüidades o fato de a pombagira vincular-se a


determinadas figuras da cena social brasileira, ligadas, sobretudo, à sua “marginália”. Será
nesse domínio do social que encontraremos as figuras da “puta”, da cafetina, da cigana
andarilha, das mulheres esfarrapadas, enfim de imagens femininas destemidas e rebeldes,
cujos atos romperam com o poder de mando atribuído ao masculino. Vale atentar que tais
atitudes desafiadoras levaram a maioria dessas mulheres a pagar o preço de se verem
solitárias e castigadas, num mundo social altamente pessoalizado, hieraquizado e dominado
pelo poder masculino. Não é por acaso que tais entidades representam a antítese das
mulheres virginais, das esposas e das mães-assexuadas, dotadas de comportamentos rígidos
e absolutamente previsíveis.
274

Se num Brasil popular e tradicional tem sido reservado ao feminino uma


significativa dose de submissão ao poder de mando masculino, observamos que as giras da
umbanda, com a sua marginália, trazem consigo a possibilidade da inversão de lógicas de
fundo patriarcal que, no Brasil, ao longo dos anos, vêm regulando as relações entre os
gêneros. Assim, se indivíduos inseridos no domínio do feminino apresentam uma
corporeidade conformada pelas amarras do cotidiano, ou seja, por práticas que estimulam a
sua operacionalidade, a sua obediência ou a submissão a um conjunto de regras e modelos
constrangedores, o corpo feminino da pombagira se distancia desse corpo silencioso, para,
por meio do canto e da dança desinibida, construir espaços de prazer e liberdade.
275

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