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A TORNEIRA

CONTINUA
PINGANDO

JESUS É UM PROBLEMA
De alguma forma eu sei que ele faz sentido, como minha
intuição adverte. Mas ele e as pessoas falando dele e o
mundo todo falando dele como fala dele insistem em
não fazer sentido, e principalmente algo nele — repito —
insiste em não fazer sentido. E não apenas
perifericamente, como se fosse um detalhe estapafúrdio
ou uma declaração indigesta que ele tenha feito aos
fariseus, como muitas coisas na Bíblia ferem a nossa
sensibilidade extremamente higiênica.

Não, a coisa vai além.

Ele todo é uma promessa que me zeram desde que eu


passei a conscientemente participar da civilização
ocidental. É algo com que em algum momento da vida
você tem de lidar e então transformar numa escolha.
Você vai ter de aceitar ou recusar e passar a viver com o
resultado dessa escolha. Ao menos, é isso que
idealmente deveria acontecer, mas que naturalmente
não acontece. Por uma questão de inteligência, digo
que não pude ainda escolher. E ninguém que eu
conheça ainda escolheu.

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Esse é que é o problema. Estamos todos adiando essa


questão como uma tarefa muito chata que é sempre
substituída por coisas muito mais divertidas, já que
vivemos num mundo repleto de opções de diversão. Eu
poderia culpar o entretenimento e fazer minha duvidosa
espiritualidade estar em risco por causa da televisão e
da internet. Seria uma covardia plenamente verossímil,
mas apenas isso: verossímil. É o tipo de coisa que você
ouve e só pode aceitar porque não faltam evidências
para tanto, mas que no fundo você sabe que não é
exatamente assim.

Isso e o fato de Jesus ser um problema me levam a


concluir que a verdade é, nesse mundo, apenas um
pressentimento, o que me incomoda muito. Avançamos
tanto na capacidade de comunicar, de vender uma ideia,
e aquilo que deveria ser a maior das ideias, o mais
persuasivo dos argumentos — a verdade —, é tão pouco
evidente. Deus deveria dar uma boa olhada em seu
departamento de marketing e fazer algumas mudanças.

A verdade não passa de uma dor de dente que nos faz


acordar no meio da noite, levantar da cama e ir até o
banheiro para checar qual é mais ou menos a situação
da nossa boca só para, chegando lá, perceber que
parou de doer. E a coisa se repete mais umas cinco ou

seis vezes durante a vida e só nos volta à memória


quando acontece de novo, então lembramos de todas
as outras vezes, mas, como a dor para, desistimos e nos
convencemos de que não é nada.

É A NOSSA ESTUPIDEZ PRIMORDIAL:


CONSIDERAR ALGUMA COISA NADA
A ciência começa com uma descon ança desse tipo.
Ficamos incomodados com um detalhe e humildemente
dedicamos nosso tempo e nossas vidas a dar forma e
voz a esse detalhe, tentando justi car a perplexidade
infantil que ele nos suscitou. Sem nós, ele poderia muito
bem continuar sendo um nada. Podemos ser realmente
muito inteligentes quando queremos.

Algumas pessoas choram descontroladamente, estão


sentadas num bar ou num café, estão de férias
caminhando na praia, sozinhas ouvindo as ondas se
lançarem até a praia, e começam a chorar sem saber
aonde isso vai dar. Eu não sou dessas pessoas. Acho
que chorei apenas quando era criança, porque a
verdade é que a minha vida é muito boa. E é assustador,
ainda que eu mesmo não me assuste, que o fato da
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minha vida ser muito boa se deva simplesmente à sorte.


Às vezes consigo relacionar a noção de sorte ou uma de
suas variantes com essa outra noção a que damos o
nome de Jesus. O resultado é um rosto no meio da
escuridão, um vulto que, descrito, assustaria uma criança
e que, visto, me assustaria. Jesus é certamente isso: um
fantasma. E, como somos todos cartesianos, reagimos
como um cartesiano reagiria diante de um fantasma: nós
o ignoramos. Ele está na sala? Então sentimos fome e
vamos para a cozinha fazer um lanchinho. Ele está no
quarto? Então resolvemos terminar de ver aquela reprise
na televisão, mesmo que tenhamos que dormir mais
tarde.

Também me incomoda que Deus esteja tentando falar


comigo e com as pessoas através da dor e do choro.
Que Deus seja um incômodo. Percebam que eu
deliberadamente passei a falar de Deus como se fosse
óbvio equacioná-lo com Jesus e tomar um pelo outro a
hora que quisermos. Isso também faz parte do mundo
ocidental como uma herança a ser elaborada
individualmente.

Então Deus é uma dor de dente ou um choro


descontrolado. Um religioso me corrigiria, dizendo que
estes são sintomas da ausência de Deus, ou da falta de

Deus. Deus passa a ser uma falta. Um não.


Curiosamente isso faz sentido na minha cabeça. Jesus
ser um não. Mas também curiosamente eu sou um leitor
da Bíblia e li Paulo escrevendo que Jesus é apenas um
sim, o eterno sim de Deus aos homens. Faço questão de
citar: “O lho de Deus, o Cristo Jesus, que vos
anunciamos, eu, Silvano e Timóteo, não foi sim e não,
mas unicamente sim. Todas as promessas de Deus
encontraram nele o seu sim”. A maioria das pessoas
quer ouvir esse sim de Deus. Mas Deus até pode dizer
sim, e Jesus ser esse sim dito de Deus, mas Deus em si
mesmo é um não. É assim que ele tem sido na minha
vida e na vida daqueles que eu mencionei.

Não quero mergulhar a coisa toda na melancolia. Jesus


ser um não não é absolutamente insuportável porque é
o que tem sido, como eu disse. É a situação atual, que
até nos permite re etir sobre o assunto. A
autoconsciência é um de seus atributos e, para ser
franco, um de seus piores atributos. Se não fôssemos
autoconscientes, talvez estivéssemos minimamente
abertos para um diagnóstico alheio, mas, ao contrário,
afundamos nas nossas próprias conclusões porque, no
m das contas, sei que estamos certos quando
percebemos que alguma coisa está errada e que não há
nada que possamos fazer. Mas aquele rosto na
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escuridão ainda me espreita, uma massa se deslocando


conforme eu também me desloco, me fazendo retomar
todos os cuidados que eu tinha quando, menino, achava
que poderia me proteger dos espíritos cobrindo-me com
o lençol até o pescoço, sem deixar os braços de fora.
Essa era a providência fundamental: minha segurança
dependia de cobrir inclusive os braços e os pés. A
cabeça podia car exposta. A nal, eu precisava respirar.
Ou então, como ouvi de uma amiga, que fazia uma
barreira de ursinhos e outros bichos de pelúcia em torno
de si, na esperança de que eles a defendessem do reino
espiritual do desconhecido.

Sinceramente, ainda dependemos dos lençóis e dos


ursinhos de pelúcia para nos proteger de Jesus.
Descon o que, para aqueles que nunca viram uma, mas
que passaram a vida temendo ver, todas as
assombrações são Jesus. Todos os vultos furtivos são
Deus. E a vontade de qualquer coisa inde nível que de
vez em quando nos assalta e que eu costumava resolver
associando-a imediatamente com sorvete, porque eu
sempre gostei muito de sorvete, é a vontade de se ver
com Jesus e decidir de uma vez por todas o que vamos
fazer com ele. Posso responsabilizar a cultura ocidental
por isso. Ela sempre foi um evangelista muito
competente, porque me convenceu da necessidade de
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pensar seriamente na possibilidade de que Jesus exista
do modo como se diz existir, mas também muito vaga,
porque é extremamente difícil passar da pregação para
a vida segundo as nossas circunstâncias mais banais e
cotidianas.

É como tentar consertar uma torneira que pinga


recorrendo a Crítica da Razão Pura. De alguma forma, a
Crítica da Razão Pura fala também da torneira pingando
e, principalmente, de mim tentando consertá-la, a nal a
torneira pingando é um fenômeno no sentido que Kant
lhe deu e eu mesmo sou uma versão empírica do sujeito
cognoscente que vemos ao longo das páginas de sua
Crítica. Mas é fácil imaginar que, ao nal da leitura de
suas quinhentas páginas, devidamente anotadas, a
torneira continuará pingando.

Então, minha oração a Jesus, supondo que eu lhe desse


essa chance e orasse a ele, e estou certo de que muita
gente estaria pronta a me acompanhar, seria mais ou
menos a seguinte: “Jesus, você que é o caminho, a
verdade e a vida: a torneira continua pingando”.

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À INSCRIÇÃO NUMA PAREDE “JESUS É A
RESPOSTA” ALGUÉM ACRESCENTA
LOGO ABAIXO: “MAS QUAL É A
PERGUNTA?”
Muita gente considera isso uma blasfêmia, mas acho
que é simplesmente teologia. A vida toda tenho ouvido
que Jesus é a resposta, mas ninguém acrescenta para
quê. É a pergunta que me interessa. Por isso, Jesus é
um problema. Eu assumo o lugar de Pilatos lhe
perguntando o que é a verdade. Sei que Pilatos não era
a melhor das pessoas e que, no interrogatório e
julgamento de Jesus, o cinema costuma retratá-lo como
um sujeito muito razoável, que condena o messias a
contragosto, e que nós compramos essa sua imagem.
Meu Deus, ele era um político!

Mas, toda vez que leio o evangelho de João,


instantaneamente me identi co com Pilatos,
sensibilizado com sua pergunta, que também é a minha
e que cada vez mais sinto ser a pergunta mais
importante da Bíblia. Ele a fez logo depois de Jesus lhe
ter dito que veio ao mundo para dar testemunho da

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verdade e que quem é da verdade escuta a sua voz.


Pois bem, estamos escutando sua voz e ele até pode
estar nos dizendo a verdade, mas como saberíamos? A
Bíblia relata que, “tendo dito isso”, isto é, tendo
perguntado o que é a verdade, Pilatos saiu. A história
não continua porque Pilatos saiu. O silêncio de Jesus fez
Pilatos sair? Pilatos não esperou tempo su ciente? Se
Jesus fez silêncio, era o silêncio já a resposta, como
quem quer dizer: “Você está me perguntando o que é a
verdade; pois bem, ei-la diante de você”? Sim, Jesus é a
verdade. Mas eu não entendo Jesus.

Como saber que Jesus é a verdade é mais ou menos o


mesmo problema de como saber que Deus existe. E
acho que a solução é a mesma, frustrante para a maioria
de nós: não dá pra saber. O religioso me diz que eu
tenho que tentar. É o que Pascal chamava de aposta.
Mas, para topar a aposta, é necessário que eu saiba do
que se trata. Estou apostando exatamente no quê? Eu
preciso ter uma ideia para, no mínimo, saber que parte
de mim eu tenho que investir nisso, a nal não se trata de
dinheiro e não é meu bolso que está em jogo; e, se não
é meu bolso, mas ainda estamos falando de uma aposta,
o que está em jogo? O que eu tenho que apostar? Vão
me dizer que é a vida. Mas a vida não me parece uma

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noção su cientemente universal para fazer frente a
Deus.

O que estou tentando dizer é que uma pessoa que ouve


a palavra vida numa sentença não pensa
necessariamente o mesmo que eu e que mesmo o que
eu penso hoje pode mudar amanhã. Tem esse verso do
Brecht que diz: “A verdade para mim é como uma casa e
um carro. E eles me foram roubados”. Eu posso muito
bem dizer que a vida é para mim como uma casa e um
carro, ou como minha esposa e meus amigos, e estarei
sendo até mais exato que o foi Brecht falando da
verdade. O fato é que estamos jogando com as palavras,
e elas não mentem, mas nós mentimos, porque não
sabemos direito por que fazemos o que fazemos com as
palavras. Se Jesus é um problema, nós somos o
problema.

Muitas sutilezas nos separam de Deus, sutilezas nossas


e dele, ou de seus teólogos. Mas reconheço que a
maioria de nós simplesmente não está disposta a se
envolver profundamente em nada. Contrariaria a
tendência geral. A palavra de ordem é “Não se
preocupe com isso”. Exigimos facilidades. O esforço
generalizado da nossa formação social é criar uma
gigantesca democracia de serviços na qual a gente

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possa consumir tranquilamente sem precisar se


envolver. A ideia é justamente a de que se envolver é o
tipo de coisa de que avanços tecnológicos e sociais
devem nos poupar. Temos que tornar o envolvimento, o
engajamento e o compromisso supér uos, e creio que
nunca vivemos no automático como hoje em dia. Deus
precisa seguir nesse sentido se quiser ganhar espaço.
Ele precisa se reinventar para facilitar a nossa vida. Não
acho que queiramos lhe dar um rosto e hospedá-lo em
nossa casa, ou mesmo em nosso coração, porque não
tem onde dormir. Esse Deus se parece demais com um
mendigo. Sua pobreza nos constrange, e o
constrangimento é uma forma de abuso que não
precisamos mais aceitar.

Mas, ainda assim, quando entardece e a gente


contempla os céus, que se espraiam até se perderem
em si mesmos, é como se nós acabássemos
transportados não sei exatamente para onde, mas
convencidos de uma generosidade inesgotável,
testemunhada pela natureza. Fala-se no sentimento
oceânico, que Freud negava ter sentido, sendo de
qualquer forma essa a palavra dele. E mais uma vez
dependemos do que dizemos, mesmo quando o assunto
é o inefável ou o desconhecido, para onde Deus sempre
parece se recolher, não importa o quanto a ciência faça

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diminuir o tamanho e a profundidade do que não
sabemos.

Às vezes, por um momento, rápido demais para ser


xado em palavras, a dor de uma pessoa se mostra a
nós, que geralmente precisamos de algum suporte
material para resumir o que vemos, como a imagem da
cinta com que ela era espancada por seu pai ou a casa
onde ela cresceu sofrendo abusos. E se essa pessoa
morre ou se vai para longe de nós, permanecemos com
essa imagem, na qual encapsulamos aquela vida, que se
torna compacta, mas para a qual, toda vez que voltamos
a olhar, é como se espiássemos o abismo.

Se Deus é simplesmente um homem, e isso é Jesus,


então é difícil saber como ele pode ter um rosto
humano, mas ao mesmo tempo esse rosto ser o de
todos os homens, de todas as épocas, os bons e os
maus, os justos e os injustos, os exploradores e os
explorados, os espancadores e os espancados, a vítima
e seu algoz, como podemos todos estar nele, que às
vezes imagino ser aquele lugar para onde a visão dos
céus sem m nos transporta, o único lugar onde
podemos caber todos nós sem ao mesmo tempo ser o
pior lugar do mundo. E me faz bem – no m, é apenas
isso, essa sensação, tão desprezada pelos espíritos
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esclarecidos –, me faz bem a ideia de que em um só


homem caiba o mundo todo e a história e as garças e os
bêbados e o desespero e a dança e as promessas de
felicidade e justiça e o abismo, e que mesmo assim, com
tanto peso, esse homem não se dobre, mas permaneça
parado, de pé, na escuridão, sem se cansar.

É ESSA SUA PLENITUDE?

TORNEIRAS QUE PINGAM

Escreva para nós: nishiharaedicoes@gmail.com

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