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CONTRA

A ÉTICA

A ÉTICA É UMA ILUSÃO


Ela não torna virtuoso. Ela neurotiza. Porque seu método
é o cálculo. O que estou fazendo? Como estou fazendo?
Por que estou fazendo? 

Mas a razão — principal instrumento da ética — é um


mecanismo que volta e meia funciona em modo
automático. Acabamos presos em seus encadeamentos
intermináveis. 

O que começou como uma re exão minha se torna uma


re exão da minha razão. 

O mais banal dos gestos se converte em objeto de um


debate mental de horas, dias, semanas, meses.
Principalmente se for um gesto alheio. Também não
controlamos isso.

A espada do cálculo ético se volta em todas as direções.


Tudo vira motivo de ponderação. Motivo de suspeita. 

De vez em quando, é verdade, esse investimento ético


nos traz algum resultado. Porque paramos e pensamos,
resistimos ao primeiro impulso: destrutivo, egoísta,
burro.
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Mas o que perdemos em espontaneidade e alegria é


muito maior que ganhos tão pequenos e pontuais.

Ao m, em vez de mais generosos e benignos, camos


mais mesquinhos e irritadiços, cobrando o mundo de
não ser tão ético — ou seja, minucioso, rígido,
policialesco — quanto nós.

Mas deixar de pensar no que fazemos também não


parece uma boa solução. Viver ao sabor das
circunstâncias e dos impulsos é perigoso. De quantas
atitudes não nos arrependemos, porque tomadas no
calor do momento?

O PROBLEMA NÃO ESTÁ NO QUE


FAZEMOS
Ou está. Mas não primeiramente. O que fazemos re ete
quem nós somos. A natureza dos frutos se segue da
natureza da árvore. A macieira dá maçãs; a laranjeira,
laranjas. 

Mas o cálculo ético ca na superfície. Não chega até a


seiva. Só produz macieiras culpadas de darem maçãs.
Culpadas de serem macieiras. 
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Talvez a solução seja a macieira aceitar-se como tal:
como macieira. Mas e se a macieira está doente? Se ela
está produzindo maçãs doentes? 

O fato de que sofremos — e de que fazemos sofrer — é


uma prova bem contundente de que algo não vai bem.
Algo não está certo no mundo.

Podemos dizer que são os outros. Mas basta nos trancar


no quarto para encontrar a causa das mazelas do mundo
na frente do espelho. 

Podemos dizer que é a sociedade e suas inúmeras


injustiças. E não vou negar: ela não ajuda mesmo.
Poucas coisas são tão assustadoras como a combinação
da pobreza com a doença, mental e física. O mundo é
um vale de lágrimas. Mas há tanta gente social e
materialmente remediada tão mais perturbada que
qualquer desfavorecido.

À maneira de Descartes, vou esquecer o mundo e partir


de mim mesmo. Eu sou o problema. Ou melhor:

EU SOU UM PROBLEMA ÉTICO


AMBULANTE
Preciso partir disso. Preciso admitir que olho para o
mundo de cima para baixo. Mas, para isso, subi num
banquinho de pernas muito frágeis.

E os problemas éticos não são apenas éticos. Eles


re etem uma condição anterior, mais profunda. Eu sou
uma macieira doente, produzindo maçãs envenenadas
ou, no melhor dos cenários, amargosas.

Preciso me livrar de mim mesmo. Preciso recomeçar.


Preciso de uma Segunda Chance. A Segunda Chance é
um dos recursos mais atraentes dos lmes policiais. Por
exemplo: você simula sua morte e troca de lugar com
outra pessoa. Começa uma outra vida. Novinha em
folha.

Mas a Segunda Chance existe fora dos lmes? Não


parece, mas essa é uma questão altamente metafísica.

As histórias — dos contos de fada, dos lmes e dos


romances — partem dessa possibilidade: a de eu poder
trocar de lugar com outra pessoa. É o princípio da
identi cação.
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As redes sociais se alimentam desse desejo. Passo


horas olhando para a timeline em busca de imagens da
nova vida que eu quero ter. Da nova pessoa que eu
quero ser.

Infelizmente isso só gera inveja e frustração. E não a


Segunda Chance. Há algum caminho, no mundo de
pessoas de carne e osso, para a Segunda Chance?
Posso morrer e nascer outro? Eu mesmo, mas um eu não
sobrecarregado de pesos insustentáveis? 

Proponho que sim. 

FAÇA DE CONTA
Sim. Faça de conta que a história mais (mal) contada de
todas não é apenas uma historinha. Faça de conta que
existe, de fato, algo chamado bode expiatório.

Ou melhor, alguém — que carrega nas costas tudo o que


você não quer na sua vida. Você pega a parte boa. E ele
pega a parte ruim. O melhor negócio do século.

Faça de conta que você está diante do Bode Expiatório.


E ele está te oferecendo a Segunda Chance. Em troca,
ele quer a sua vida confusa e remendada. Diga sim.
Aperte a mão dele.

Faça de conta. Por um mês. Aí nos reencontramos do


outro lado.

DO OUTRO LADO

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