Você está na página 1de 3

História e passado em

JENKINS JOÃO RICARDO


DE CASTRO CALDEIRA
é doutor em História
Social pela USP, professor
da UniABC e autor de
Integralismo e Política
JOÃO RICARDO DE CASTRO CALDEIRA Regional (Annablume).

A História Repensada, de
Keith Jenkins, tradução de

b
Mário Vilela, São Paulo,
Contexto, 2001.

astante oportuna a publicação, pela Editora Con-

texto, da tradução do livro Re-Thinking History, de

autoria do historiador inglês Keith Jenkins, sobre-

tudo se levarmos em consideração a relativa ausên-

cia, no Brasil, “de textos teóricos acessíveis, diretos

e elucidativos” a respeito dos mais recentes debates

no campo da historiografia, como afirma a professora Margareth Rago na

apresentação da obra (p. 9).

Com efeito, nas últimas décadas do século XX, as discussões sobre a

posição da história na área das ciências humanas suscitaram o apareci-

mento de perspectivas diversas.

Tais debates, observe-se, têm se centrado especialmente na crítica à

concepção de história elaborada no século XIX (que se constituiu visão

oficializada do passado), construída principalmente a partir de interpre-

tações da sociedade européia industrializada. Fundamentadas nessa his-

tória eurocêntrica e cientificista, foram desenvolvidas, à luz de explica-

ções sobre o passado, teorias que pretenderam desvendar o sentido da

REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 193-195, junho/agosto 2002 193


evolução de toda a humanidade, como o historiográfica. Incluem-se eles, portanto,
positivismo e o marxismo. Exemplos da entre os autores da chamada historiografia
crítica a tais pretensões totalizantes encon- da pós-modernidade.
tram-se sobretudo no pensamento de Em A História Repensada, Keith Jenkins
Benedetto Croce, R. G. Collingwood, formula proposições que são próprias dessa
Claude Lévi-Strauss e Michel Foucault. Os corrente de historiadores à qual se vincula.
dois primeiros, conhecidos teóricos da his- O livro se apresenta dividido em três capítu-
tória; os últimos, eméritos cientistas sociais. los: no primeiro, o autor procura responder
Com efeito, Croce e Collingwood, no à pergunta: ‘‘o que é a história?’’, ressaltan-
início do século XX, estabeleceram a dis- do a ambigüidade desse conceito; no segun-
tinção entre a história enquanto a totalida- do, aborda temas relativos à cientificidade
de dos eventos passados e a historiografia, da história, concentrando sua atenção em
ou seja, a história produzida por um autor, questões como a possibilidade da objetivi-
no caso, o historiador. Conforme essa pers- dade e a influência da parcialidade (bias, no
pectiva, a historiografia seria o resultado original em inglês) no trabalho historio-
das visões de mundo do historiador. Nou- gráfico; no terceiro e último capítulo, discu-
tros termos, de acordo com Croce e te a produção histórica na pós-modernidade.
Collingwood, evidencia-se aí uma recusa Ao conceituar a história, ele a conside-
da idéia do alcance da plena objetividade ra “um dentre uma série de discursos a res-
na produção historiográfica. peito do mundo’’, enfatizando que esses
Por outro lado, mais recentemente, Lévi- discursos não criam o mundo, mas “se apro-
Strauss e Michel Foucault ressaltaram, em priam do mundo e lhe dão todos os signifi-
trabalhos diversos, que a história, como as cados que tem’’ (p. 23). Como se vê, sob
demais ciências humanas, não ultrapassa a esse aspecto, é forte a influência de Foucault
condição de discurso sobre os homens e o e Lévi-Strauss sobre o autor.
mundo, assemelhando-se assim às demais Quanto à relação entre a história e seu
práticas discursivas que os representam nas objeto (o passado), Jenkins estabelece uma
diferentes sociedades humanas. Portanto, diferenciação entre ambos do seguinte
ciência (incluindo a história) e mito desem- modo: “passado e história são coisas dife-
penhariam papéis similares, enquanto nar- rentes’’ (p. 24). Para o autor, o passado é
rativas que conferem significado ao mun- todo o acontecido em qualquer tempo e
do e às ações dos homens. lugar, não podendo ser revisitado nem re-
Esses questionamentos, que em tem- cuperado: “o mundo ou o passado sempre
pos recentes começaram a influenciar cer- nos chegam como narrativas e […] não
tos círculos acadêmicos, têm em Keith podemos sair dessas narrativas para verifi-
Jenkins um dos seus mais expressivos ex- car se correspondem ao mundo ou ao pas-
poentes. sado reais, pois elas constituem a ‘realida-
Jenkins pertence a um grupo de historia- de’” (p. 28). Por isso, para esse autor, a
dores da Inglaterra e dos Estados Unidos história não corresponde ao passado que
(Hayden White, David Lowenthal, Stephen ela se propõe recuperar. Em sua perspecti-
Bann) cuja produção, surgida a partir da va, “história (historiografia) é um construc-
década de 1970, é razoavelmente influen- to lingüístico intertextual’’ (p. 26), resulta-
ciada pelas idéias de Croce, Collingwood, do da elaboração, pelo historiador, de um
Lévi-Strauss e Foucault. Em síntese, o pen- discurso que, ao se propor recuperar o pas-
samento desses historiadores caracteriza- sado, apenas o representa, empregando
se pela crítica ao cientificismo, ao euro- recursos lingüísticos através dos quais lhe
centrismo e à ambição totalizante da histó- confere significado.
ria na investigação do passado. Seu posicio- Para ilustrar que o aprendizado da his-
namento aponta ainda para a necessidade tória constitui simplesmente a assimilação
de relativizar a distinção entre ficção e his- das idéias dos historiadores, Jenkins escre-
tória, ressaltando o caráter literário da obra ve com algum humor:

194 REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 193-195, junho/agosto 2002


“Digamos que você esteja estudando parte negando-lhe portanto a possibilidade de
do passado inglês (o século XVI, por exem- explicar aquilo que ele mesmo constrói.
plo) no secundário britânico. Vamos ima- Ressalte-se ainda que, para esse autor, a
ginar que você use um renomado compên- empatia, ou seja, o conhecimento do outro
dio: England under the Tudors, de Geoffrey (pertencente a outro tempo e lugar) por par-
Elton. Na aula em que se trata de aspectos te do historiador é impossível, na medida
do século XVI, você faz anotações em clas- em que as ‘‘interpretações do passado [são]
se. Mas, para os trabalhos e o grosso da elaboradas no presente’’ (p. 40). Observa-
revisão da matéria, usa Elton. Na hora do se, nesse ponto, a aproximação de Jenkins
exame, escreve à sombra de Elton. Ao pas- com as perspectivas de Croce e Collingwood.
sar, está aprovado em história inglesa, ou Entretanto, ainda que recuse a possibi-
seja, está qualificado na análise de certos lidade da explicação em história, Jenkins
aspectos do ‘passado’. No entanto, seria reconhece a validade do discurso historio-
mais acertado dizer que você passou não gráfico enquanto narrativa que confere sig-
em história inglesa, mas em Geoffrey El- nificado aos acontecimentos pretéritos, pois
ton – pois, nessa fase, o que é sua ‘leitura’ estes, de acordo com esse autor, são melhor
do passado inglês senão uma leitura de conhecidos quando vistos em retrospecto.
Elton?” (p. 26). Jenkins acentua ainda que, assim como
há múltiplas perspectivas possíveis às quais
Apesar de longa, a citação acima é ca- os historiadores podem recorrer ao elabora-
bível, sobretudo por ser bastante elucidativa rem representações do passado, os aconte-
da posição de Jenkins frente à questão da cimentos por eles narrados também podem
relação entre a história e o passado. Com ser objeto de leituras diversificadas. De al-
efeito, na sua perspectiva, a história “é gum modo, o autor alerta para a necessidade
menos que o passado’’ (p. 34), do qual só da relativização na análise historiográfica.
é possível recuperar fragmentos, que são Quanto à questão da produção historio-
selecionados e agrupados pelos historiado- gráfica, ao final do livro o autor apresenta
res conforme seus objetivos e interesses. sua sugestão de um modo de fazer história
Tais fragmentos passam, então, a consti- no mundo pós-moderno, propondo ‘‘uma
tuir a matéria-prima com a qual, utilizando historização radical da história’’ tomada
suas ferramentas metodológicas e analíti- como ponto de partida para o subseqüente
cas, e empregando recursos lingüísticos e trabalho histórico. Nesse sentido, Jenkins
literários, os historiadores escrevem os tex- afirma que, no mundo pós-moderno, deve-
tos que constituem o que denominamos se escolher ‘‘entre uma história que está
história. Desse modo, esta não ultrapassa a consciente do que faz e uma história que
condição de representação do passado, uma não está’’ (p. 106).
construção pessoal, fruto da perspectiva do O livro de Jenkins se apresenta ao leitor
historiador enquanto narrador, como no como um importante conjunto de proposi-
caso de Geoffrey Elton em relação ao sécu- ções e discussões sobre o conceito de his-
lo XVI na Inglaterra. tória e seu objeto, bem como sobre a rela-
Ao assim se posicionar, Jenkins admite ção entre ambos, constituindo importante
que o historiador é, simultaneamente, o referência para estudantes, professores e
investigador e o construtor do seu objeto, pesquisadores de história.

REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 193-195, junho/agosto 2002 195

Você também pode gostar