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Quando evangélicos

não invadem
terreiros
Por que a atuação social de evangélicos com dependentes
de substâncias e com presos e seus familiares não aparece
na mídia?



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SALVAR ARTIGOS

É oportuno a gente prestar atenção nas pesquisas sobre a relação entre


crime e cristianismo no Brasil. De um lado, vemos ataques covardes a
terreiros de candomblé e umbanda, e ameaças de morte como a que
recebeu na semana passada a historiadora Juliana Cavalcanti, da
UFRJ, por divulgar pesquisas sobre cristianismo que divergem da
interpretação que cristãos fazem da Bíblia.
Do outro, temos as atuações de evangélicos em cracolândias e prisões,
que geralmente atraem menos interesse da sociedade. O caso
apresentado a seguir faz parte desse segundo grupo e aponta como
esse assunto é mais complexo e interessante do que parece.
Quem me contou sobre a Casa Mãe foi a educadora Roberta
Fernandes, doutora pela UERJ, que chegou lá em 2017 por causa de
um projeto de pesquisa sobre coletivos populares e rapidamente se
tornou colaboradora. "Na segunda ou terceira visita eu estava lavando
o banheiro, lavando a louça, esfregando o pano de chão, para
contribuir com aquelas mulheres, geralmente poucas, as mesmas, com
pouquíssimos recursos. E com muita fé."
Culto evangélico em Ananindeua (PA) - Nay Jinkins -
21.set.21/Redes sociais
A Casa Mãe apoia familiares dos adolescentes em privação de
liberdade internados no CAI-Baixada (Centro de Atendimento
Intensivo de Belford Roxo), na região metropolitana do Rio. Recebeu
esse nome porque, apesar de a lei permitir que outros parentes visitem
esses jovens, na prática, são principalmente as mães que fazem isso.
A Casa Mãe começou a partir de um ato de solidariedade de uma
funcionária da unidade em relação às mães muito pobres que
passavam horas de pé, no sol, fazendo fila, para encontrar seus filhos.
"Vendo essa situação, sendo uma mulher cristã evangélica, com seus
objetivos cristãos, ela começou a atuar levando o café da manhã para
as mães na fila, oferecendo um pãozinho, um café, um bolo," conta
Roberta. Para proteger a privacidade da funcionária, vou chamá-la de
Laura.
"O cenário da maioria das mulheres ali desde sempre é de não ter um
emprego formal, às vezes com muitos filhos. Às vezes tem um filho
adolescente preso e um bebê no colo ou um bebê na barriga," conta
Roberta. E no início o ato de oferecer o café causou estranhamento.
"Elas olhavam desconfiadas para Laura como se perguntassem:
‘Como assim, alguém me oferecendo um café de graça na fila?’" Mas
os vínculos de afeto com as mães da fila foram se formando.
E aos poucos, também, algumas mulheres conhecidas da igreja de
Laura e outras que ouviam falar do trabalho entravam em contato se
oferecendo para ajudar. Dessa forma, a oferta de café e bolo evoluiu
para o aluguel de uma casa na vizinhança onde as voluntárias se
encontram todas as quartas e sábados, nos dois turnos de visitas, para
receber as mães.
Na medida em que a ação cresceu, o tema da religião causou tensões
entre as voluntárias. Uma parte delas achava que o espaço deveria ser
usado para a evangelização: realizar cultos, fazer oração, cantar. "Mas
Laura não queria fazer daquele o espaço de uma igreja, e sim um lugar
de acolhimento," conta Roberta, "e ela foi dando o limite, o contorno,
mostrando para aquelas pessoas que não era bem isso que ela queria."
No final do período em que Roberta esteve na Casa Mãe, em 2018, a
presença da religião tinha sido ajustada. "Tinha uma pastora lá, que é
uma figura importante e respeitada, atuando na hora de fazer uma
oração, puxar uma palavra, fazer uma leitura bíblica." Mas a atuação
dela ficou condicionada ao interesse das mulheres que frequentavam o
espaço. Ao mesmo tempo, para Roberta, a relação com as igrejas
também ajudavam a manter a casa. "Teve uma época que tinha uma
galera da Universal, por exemplo, que ia lá levar mais doações. Para
isso eles são muito bons, para mobilizar para uma campanha para algo
que se precise muito."

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Antes da pandemia mudar as rotinas de todo mundo, a Casa Mãe


servia aproximadamente 150 almoços por dia. As mulheres pegavam
suas senhas para a visita e, em vez de esperar no sol da rua, iam para a
Casa Mãe e tinham refeição, podiam beber água e ir ao banheiro. E
durante um tempo, havia um bazar com roupas para emprestar para as
mulheres que chegavam com roupas que não eram permitidas por
motivos de segurança.
Depois de 2018, Roberta ficou grávida e só retornou o ano passado.
"Hoje eu vejo a Casa Mãe um pouco mais esvaziada do que o que se
tinha antes. Não sei se ainda há um efeito da pandemia. Não sei como
está o sistema de visitação na unidade. Mas o serviço permanece."
A Casa Mãe é um exemplo pequeno do ponto de vista do tamanho,
mas aponta para como a religião pode tornar o sentimento de empatia
em engajamento e ação. É o que faz o Padre Júlio Lancellotti com
moderadores de rua de São Paulo. Mas a Casa Mãe dá a oportunidade
para apontar o protagonismo da mulher evangélica, que geralmente
passa despercebido por causa da ideia estereotipada de que a
evangélica é submissa. E serve para a gente se perguntar: por que
pouco se fala da atuação social de evangélicos, que geralmente
acontece onde ninguém mais quer ir: em presídios e clínicas de
reabilitação, no "lixão das almas" como me disse um evangélico uma
vez?

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