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2005
https://doi.org/10.25145/j.pasos.2005.03.010
www.pasosonline.org
Resumo: A intenção deste artigo é discutir o planejamento e ocupação turística na Vila de Trindade,
localizada em Paraty, litoral sul do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Apesar da existência do
planejamento turístico no município, a atividade vem gerando uma série de conflitos na Vila os quais
pretende-se discutir. A existência do planejamento implica a maximização dos impactos positivos do
turismo e melhor distribuição dos mesmos? Minimiza impactos negativos? O planejamento vincula-se ao
crescimento organizado da atividade? Contribui para que o turismo torne-se fator de desenvolvimento
local? Tais questionamentos serão discutidos tomando-se como exemplo um município que tem
percebido significativos investimentos na atividade, se tornando um referencial enquanto destino
turístico no cenário nacional.
Abstract: The aim of this article is discussing the tourism planning and occupation in Trindade Village,
located in Paraty, south coast at the state of Rio de Janeiro, Brazil. Besides the existence of tourism
planning in the village, tourism has been creating a lot of conflicts, which this article intends to discuss.
Does the existence of planning imply the maximization of the positive impacts of tourism and their bet-
ter distribution? Does it minimize the negative impacts? Does the planning link to the activity's organ-
ized growing? Does it contribute for the tourism to become a factor of local development? Those ques-
tions will be discussed by taking as example a town in which there have been significant investments in
the activity, becoming a reference as tourism destination in the National Setting.
†
• Alexandra Campos Oliveira e Bacharel em Turismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (Brasil). E-mail:
alexandratur@hotmail.com
Mapa 1. Paraty
152 Turismo em áreas “menos desenvolvidas”...
A mesma trilha que leva à Piscina histórias de índios e piratas que fazem
Natural do Caixadaço dá acesso à Praia parte da cultura local. Da Cabeça do Índio
da Figueira, popularmente conhecida é possível apreciar uma bela vista
como Praia dos Pelados, a última praia do panorâmica de várias ilhas, do mar
sul do Estado do Rio de Janeiro. aberto e da Trindade.
Constitui-se em área liberada para a A avenida Sobral Pinto atravessa a
prática do naturismo. vila, constituindo-se na sua principal via.
A Pedra da Cabeça do Índio, marco Concentra os estabelecimentos
divisório entre os Estados do Rio de comerciais, restaurantes, pousadas e
Janeiro e São Paulo, é uma grande pedra campings. A infra-estrutura urbana e
na Ponta da Trindade, cujo formato turística aí existente difere da infra-
assemelha-se ao perfil de um índio. Seu estrutura do centro histórico de Paraty.
acesso se dá por trilhas íngremes; não há Na região central do município
praias nem cachoeiras, mas existe a concentra-se a maior parte da infra-
beleza exuberante da Mata Atlântica. No estrutura urbana. 69,9 % dos domicílios
caminho, há duas cavernas, dentre as de Paraty são contemplados pela rede
quais a Toca dos Ossos. Estas envolvem geral de abastecimento de água, enquanto
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27,50% utiliza água proveniente de poços turismo, como será abordado adiante,
e nascentes (realidade comum nas áreas para a pesca e agricultura de
periféricas). As fossas correspondem pela subsistência. A população de Trindade
maior parte do destino de esgotos vivia relativamente isolada e mantinha
domiciliares (78,9%). Parte do centro um sistema de trocas. Segundo relatos de
histórico possui coletores de esgoto moradores, os homens responsáveis pela
ligados a rede geral, enquanto os bairros pesca em alto-mar iam para o município
periféricos, em especial a Ilha das Cobras de Santos depois da lua cheia, e por lá
e Mangueira, não possuem coleta de permaneciam durante um mês; outros
esgoto (PDDT, 2003:47). Tais estatísticas cuidavam do “cerco”, atividade ainda
se justificam pela baixa taxa de existente em Trindade. Estes
urbanização do município, que, por sua permaneciam na Vila. O peixe era a base
vez, tem precedentes históricos que serão da alimentação local. Saulo Alves da
abordados adiante. De acordo com dados Silva, atual presidente da Associação de
do IBGE3 (2000), a população de Paraty é Moradores Nativos e Originários da
de 29.544 habitantes, dos quais 47,6% Trindade, descreve a realidade da Vila
vivem na área urbana e o restante na anteriormente ao desenvolvimento
área rural: turístico: “o seu café era peixe frito,
Paraty não sofreu um processo de farinha, peixe com banana, que é o
êxodo rural significativo, mantendo mais famoso azul marinho. Carne você não
da metade de sua população vivendo comia, comia carne de caça, do mato. Aí
nessa região. Para efeito de comparação, era peixe, com banana, aí vinha uma isca
a taxa de urbanização da Baía da Ilha que você pegava e cozinhava. Por
Grande é de 86,3%. Em razão da baixa exemplo, o seu café da manhã poderia ser
urbanização, a densidade demográfica peixe assado na brasa. Feijão você comia
também é pequena, com 31,6 habitantes do que você plantava, arroz não. Óleo era
por km². (PDDT, 2003:71). muito difícil, porque tinha porco, você
Trindade, enquanto bairro periférico, fazia banha. O frango comia porque tinha
caracteriza-se por uma infra-estrutura galinha caipira. Então era disso que se
urbana regular. No entanto, vem vivia”.
apresentando grande crescimento da taxa A pesca ainda é um dos esteios da
de urbanização, processo que sofre economia de Trindade. A Vila se destaca
contribuição significativa do como uma das principais áreas pesqueiras
desenvolvimento do turismo na vila. de Paraty. Atualmente, no entanto, nota-
A economia de Trindade foi voltada, se que a maior parte da população se
anteriormente ao desenvolvimento do dedica à atividade turística.
Ramo Atividade %
Agropecuária, Silvicultura, Exploração Florestal e Pesca 0,5
Comércio, Turismo, Alimentação, Transporte e Comunicação 51,60
Financeiro, Imobiliário e Outros Serviços 8,0
Administração Pública, Defesa e Seguridade Social 27,3
Educação, Saúde e Serviços Sociais 6,9
Indústria Extrativa da Transformação e da construção 5,6
Produção e Distribuição de Eletricidade, Gás e Água 0,1
Quadro 2. Distribuição de Pessoas Ocupadas por Ramo de Atividade. Fonte: Ministério das Cidades apud
PDDT, 2003:77. Nota-se que a atividade turística e outras atividades a ela ligadas, direta ou
indiretamente, respondem pela maior parte do número de ocupações existentes no município.
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público mais urgente pelos moradores suas terras e pronto. Há um interesse por
entrevistados. Guadalupe Lopes diz que parte de Paraty em Trindade, mas não é
sua filha, devido a essa deficiência no com a comunidade que está presente. Ela
saneamento urbano local, adquiriu uma quer para esse lugar uma outra história,
doença e veio a falecer em 1997. Desta para daqui a alguns anos. Mas um
forma, iniciou-se em Trindade um interesse com a comunidade em si, não
levantamento de fundos para que fossem sinto. Nenhuma prefeitura. Não é uma
realizadas obras nesse sentido. coisa deste governo. E é um lugar que tem
Guadalupe relata o apoio externo uma importância histórica, é um lugar
adquirido pelos moradores: “o pessoal do que deveria ser apoiado, porque tem uma
Partido dos Trabalhadores de Santos resistência aqui dentro para poder
mandou os técnicos, começamos a fazer a permanecer onde nós estamos”.
obra. Quando chegou em uma certa hora O morador B concorda: “a Trindade
da obra a Prefeitura entrou. O Secretário como pólo turístico para cidade de Paraty
do Meio Ambiente apresentou uma verba não é muito negócio para o governo do
mirabolante e com essa verba município, porque eles querem imposto,
desmobilizou a comunidade inteira. Todo arrecadação. E caiçara não tem dinheiro
mundo ficou por conta desse dinheiro. O para pagar imposto. Agora o pessoal de
dinheiro veio só a metade, ninguém Laranjeiras, os magnatas, gente que tem
conseguiu pegar o resto até hoje. E está aí grana pra implantar um condomínio
abandonado, ninguém conseguiu concluir desses é que pagam impostos, altos.
a obra”. Então para eles é negócio que os caiçaras
Outra iniciativa dos moradores se saiam daqui e venha para cá gente que
refere à coleta do lixo, realizada apenas tem grana. Se dependesse deles já não
duas vezes por semana, resultando em tinha mais essa comunidade aqui”.
um acúmulo na alta temporada. Segundo Saulo Alves diz que, em 2003, a
Guadalupe Lopes, houve uma tentativa Prefeitura apresentou um projeto de
de se implementar a coleta seletiva na criação de uma estrada-parque em
Vila: “colocamos coleta seletiva na Trindade. Assim, seriam cobrados R$
comunidade, estávamos de parceria com a 10,00 dos turistas para entrada a Vila. A
SOS Mata Atlântica, estava dando tudo receita seria destinada à Prefeitura
certo. Fizemos um galpão, a comunidade Municipal de Paraty. A Associação de
estava separando, estávamos com um Moradores rejeitou esse projeto. Para
trabalho de educação ambiental. Tinha Saulo Alves, a cobrança desta taxa
até uma cartilha. Mudou de governo, poderia engendrar, por um lado, a
passou-se toda a coleta seletiva para as diminuição do fluxo turístico na Vila, do
mãos da Prefeitura. A única coisa que a qual os moradores são extremamente
Prefeitura precisava fazer era organizar a dependentes. Por outro, Saulo Alves
coisa da coleta, buscar o nosso material. afirma que seria uma forma de atrair um
Ela não conseguiu fazer isso, o galpão turista de maior poder aquisitivo e, sem
começou a ficar uma monstruosidade. capacitação profissional e melhoria da
Acabou a coleta seletiva”. infra-estrutura, muitos moradores se
Guadalupe conclui que a Prefeitura, ao veriam prejudicados: “o morador da
invés de oferecer apoio à população, só a comunidade não teria para quem vender o
prejudica: “[a Prefeitura] quando quer seu prato de comida, alugar seu camping,
ajudar, só atrapalha. E sempre pega na sua pousada”.
coisa pior que é o lixo e o esgoto. Não O projeto não foi aprovado, porém
deixa a gente resolver, não dá uma força Saulo Alves relata que, em dezembro do
pra gente conseguir fazer isso”. Ainda, mesmo ano, houve uma outra tentativa de
Guadalupe conclui: “até onde eles vão implantá-lo: “ele [Prefeito] votou a mesma
querer chegar? Acho que eles vão querer lei. Ele mandou uma pessoa cobrar aqui
dar mais um tempo para destruir as no alto no Carnaval. Na Semana Santa
comunidades, porque quem fica aqui ele não cobrou mais, agora está parado”.
somos nós. A população começa a ficar Saulo reconhece a necessidade de
enfraquecida, doente, começa a vender enfrentamento de problemas advindos do
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conviver com a cultura caiçara: ouvir Turismo, então órgão máximo do turismo
histórias da “aldeia antiga”, como no país).
chamam os moradores a Vila antes do Um dos objetivos deste programa
conflito com a multinacional; histórias do seria, de acordo com a Embratur,
próprio conflito ou de piratas que teriam despertar a sensibilidade dos residentes
sido atraídos pelo ouro que de Paraty era nos município para o fato de que apenas
transportado para Portugal; com sorte possuir atrativos, ou potencial turístico,
pode-se experimentar a comida caiçara ou não seria suficiente para que a atividade
acompanhar o cerco dos pescadores. cresça e se desenvolva. Procura também
Dentre os empreendedores, pode-se estimular o reconhecimento da
encontrar nativos da Vila. Dentre as importância do turismo enquanto gerador
construções existentes, pode-se observar de emprego e renda. Ressalta-se que nas
técnicas utilizadas pela cultura caiçara, diretrizes do PNMT não se faz menção à
como nos ranchos de pesca transformados discussão dos potenciais impactos
em barzinhos à beira-mar. negativos da atividade junto à população
No entanto, tais traços se vêem, a que se dirige o programa.
especialmente na alta temporada, em O PNMT orienta-se por cinco
segundo plano, tendo em vista o princípios gerais: descentralização,
crescimento desorganizado da atividade. sustentabilidade, parcerias, mobilização e
Toma-se como atrativo apenas os capacitação.
elementos naturais da Vila que, diga-se A descentralização consiste no
de passagem, são de rara beleza. Isso fortalecimento do poder público
porque o “turismo cultural” elegeu o municipal. A sustentabilidade contempla
centro histórico e seu rico patrimônio, a compatibilidade dos aspectos
embalagens de status dos novos econômicos, sociais, ambientais, culturais
empreendimentos, como cenário para se e políticos do município no
desenvolver. A cultura das áreas desenvolvimento do turismo. As
periféricas não tem merecido atenção parecerias se referem à identificação de
equivalente, apesar de sua riqueza. meios econômicos, técnicos e financeiros
Talvez essas áreas venham a alcançar capazes de contribuir para o
destaque a partir da atração de novos desenvolvimento da atividade. A
empreendedores, retirando a população mobilização, por sua vez, trata do
“incapaz” desse progresso, por seu estímulo à atuação da população na busca
despreparo e desvantagens econômicas, de alternativas e objetivos que possam
tornando-se apenas cenário desprovido de orientar os projetos de turismo. Por fim, a
um conteúdo autêntico. capacitação se refere tanto a
disseminação de métodos de gestão
ANEXO. Programa Nacional de Munici- participativa quanto ao treinamento em
palização do Turismo serviços, e se dirige a pessoas envolvidas
com a atividade no município.
O Programa Nacional de Adotou-se a metodologia de enfoque
Municipalização do Turismo foi criado, participativo para formação de equipe
em 1994, mediante a necessidade de técnica de operacionalização do PNMT.
articulação entre as diversas esferas de Esta se constituiria de Agentes
poder no planejamento turístico no Brasil, Multiplicadores Nacionais, designados
de maneira descentralizada. Parte do por instituições parceiras nacionais;
reconhecimento de que os processos de Agentes Multiplicadores Estaduais,
planejamento e gerenciamento devem se designados por instituições parceiras
concentrar no plano municipal e de que as estaduais; Monitores Municipais,
soluções e os caminhos a serem selecionados a partir dos quadros das
percorridos pela atividade devem ser Prefeituras Municipais e dos segmentos
encontrados pelos próprios moradores. representativos da população local;
Direcionou-se a localidades brasileiras Facilitadores Estaduais que sejam
consideradas potencialmente turísticas técnicos de universidades ou de outras
pela Embratur (Instituto Brasileiro de instituições; e Monitor Municipal: esta
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