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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


FLA 0407 - SEMÂNTICA DA CRIAÇÃO: ARS, ARTESANIAS
PROFª. DRª. FERNANDA ARÊAS PEIXOTO

MARIANA RAMOS CORRÊA DA SILVA - NºUSP 11250171

EXPLORAÇÃO DOS ENCONTROS ENTRE APRENDER, CRIAR E SER

SÃO PAULO, 2022


O aprender como problema antropológico e a observação participante

“A antropologia não pode aceitar passivamente essa partilha entre conhecer e ser.”
(INGOLD, 2016, p. 407).

Ingold traduz nesta frase o incômodo motivador deste trabalho: os estudos


antropológicos - e as ciências sociais, de modo geral - evitaram, e ainda evitam, tomar a
aprendizagem, a educação e, mais ainda, a infância como problema de análise.
Sautchuk (2015, p.118) utiliza François Sigaut para apontar os problemas sobre as
abordagens do tema da aprendizagem pela antropologia: 1. a limitação ao ensino formal e ao
modelo de escola ocidental; 2. a criação de uma dicotomia rasa entre processos
moderno/tradicionais escolares e 3. a ausência de um verdadeiro investimento etnográfico no
tema.
Ingold (2016) amplia essa problematização ao considerar não apenas negligenciada a
exploração da educação pela antropologia, mas expande sua crítica para o âmbito
metodológico da antropologia, centrada na etnografia, reivindicando a observação
participante, onde, para o autor, o observador aprende na observação, onde participa e cria de
forma conjunta com o observado, o que ele chama de “Educação da Atenção”.
Mas praticar observação participante também é ser educado. Acredita-se,
inclusive, que haja boas razões para substituir a palavra “etnografia” por “educação”
enquanto desígnio primeiro da antropologia. (INGOLD, 2016, p. 407, grifo meu)

A exploração das convergências entre aprender e criar

Apropria-se, assim, do universo da educação e do conceito de aprender como


problema também antropológico, colocando-se como elemento metodológico e, também,
como tema a ser explorado e estudado, tanto de um viés social, cultural e histórico, mas
igualmente ecológico.
Sautchuk (2015, p. 119) retoma Marie-Noelle Chamoux, Claudia Strauss e Lave e
Wenger para ressaltar o eixo social do processo de aprendizagem, considerando as diferentes
formas de interação social e cultural que acontecem na marcha do aprendizado, ora com
maior mediação e orientação - a “transmissão por um mestre” de Chamoux e a
“aprendizagem intencional” de Strauss - , ora colocando o educando/aprendiz/estudante em
um papel mais ativo, criativo e autônomo, como colocam Lave e Wenger.
Todas as considerações resgatadas por Sautchuk (2015) validam o processo de
aprendizagem como problema antropológico através da natureza inegavelmente social e
cultural da interação que permeia necessariamente a aprendizagem. Acionar o conceito de
interação permite um pequeno parênteses para reforçar a relevância do elemento da
mediação, muito utilizado na teoria de Vigotski (1991) e no seu modelo psicológico e
educacional, chamado “SSO” (sujeito, sujeito e objeto), onde apenas através da mediação o
indivíduo é capaz de se relacionar com o mundo e consigo mesmo, apresentando signos e
representações culturais. Neste modelo,
O conhecer tem gênese nas relações sociais, é produzido na
intersubjetividade e marcado por uma rede complexa de condições culturais.
(SMOLKA, GÓES, 1997, p.14)
Vigotski amplia o conceito de mediação no processo de aprendizagem para além da
interação entre seres humanos e considera também as relações do indivíduo com o mundo e
com os objetos e seres que o rodeiam e interagem com ele. Permite, da mesma forma,
conectar o papel ativo e, principalmente, criativo do aprendiz, que Sautchuk (2015) traz da
teoria de Lave e Wenger, escapando, assim, da dicotomia entre aprender e criar, que ronda
as reflexões a respeito da Antropologia da Arte e da Criação, que ao buscarem um
distanciamento entre aprender e criar, procuram também se afastar da Pedagogia.
Sautchuk (2015, p. 116) descreve o aprendizado da pesca costeira, onde não há,
normalmente, um sujeito humano específico exercendo um papel claro de professor, de forma
propriamente dita, e onde não existem orientações diretas aos aprendizes, de forma que o
jovem que está no processo de aprendizado da pesca costeira, aprende e cria/constrói seu
conhecimento a partir da ação, na criação de relações com os objetos (barco e ferramentas),
seres (peixe), pessoas a seu redor, atividades implícitas e explícitas no trabalho no barco e da
dinâmica e do ritmo a bordo. Nesse caso, aprender e criar não se antagonizam, mas se
encontram e se relacionam.
A construção de conhecimento de pesca costeira na pesquisa de Sautchuk (2015)
acende outros lados da mediação no processo de aprendizagem, tomando como sujeito o
aprendiz, na autonomia e independência do ato de construir seu próprio conhecimento e de
aprender, através da relação com o ambiente, cujos elementos também são tidos como
sujeitos. Assim, evita-se uma dicotomia sujeito-objeto, pois não apenas considera-se o
indivíduo como sujeito, mas também todos os materiais que interagem com ele, podendo
interferir ativamente no processo de aprendizagem, de construção de conhecimento e
constituição do próprio indivíduo.
Tim Ingold (2015), assim como Sautchuk, também abre espaço para a consideração
do ambiente e das coisas em processos de criação e de aprendizagem e valoriza uma visão
ecológica do aprender e do criar. Para o autor, viver historicamente é habitar o mundo, e
habitá-lo significa traçar um caminho através da variedade de coisas que aparecem e
compõem seu percurso, interferindo nesse percurso e sendo, simultaneamente, interferidas
pelos outros sujeitos. Ingold considera as coisas, o ambiente e tudo, de modo geral, como
sujeitos.

Como artefatos, essas coisas podem ser atribuídas às propriedades


formais de um projeto, no entanto elas não foram produzidas, mas
cresceram. Se, além disso, elas forem parte do mundo material, então o
mesmo deve ser verdade do meu próprio corpo. (INGOLD, 2015, p.53, grifo
meu)

Ao pensar na materialidade, Ingold coloca os corpos humanos, os corpos não-


humanos, os objetos e as ferramentas na mesma altura, todos fazem parte do mundo material
e se desenvolvem de forma independente, mas conectada, assim como a arte se conecta com
seu artista e os materiais utilizados em sua criação e como o aprendiz se relaciona com seu
próprio aprendizado.

Ingold (2000) considera uma habilidade, um conhecimento, um aprendizado, como o


resultado do campo total de relações constituído pelo organismo-pessoa, que implica o
ambiente e as pessoas, coisas e animais com os quais essa pessoa interage. Para o autor, há
um encontro entre criatividade e reprodução, não uma dicotomia, vendo o conhecimento
como fruto da experimentação do organismo-pessoa num ambiente organizado.

As relações entre o organismo-pessoa de Ingold e o ambiente e elementos deste


ambiente compõem o que Simondon (2005) nomeia como sistema de individuação.

O princípio de individuação, no sentido estrito do termo, é o sistema


completo no qual se opera a gênese do indivíduo; que, ademais, esse sistema
sobrevive a si mesmo no indivíduo vivo, sob a forma de um meio associado ao
indivíduo, no qual a individuação continua a se operar; que, assim, a vida é uma
individuação perpetuada, uma individuação continuada através do tempo,
prolongando uma singularidade. (SIMONDON, 2005, p. 78)
O autor se propõe a explicar a gênese, a constituição, a criação do indivíduo, a partir
da relação do próprio indivíduo com seu ambiente. Nessas relações, o indivíduo aprende e se
forma constantemente, não é uma assimilação ou resultado de uma gênese, mas a exerce
ativamente. Em outras palavras, em um sistema de individuação, acontece, simultaneamente,
a criação e a ação do indivíduo.

Simondon descreve a constituição do indivíduo como uma ação, um movimento


constante, da mesma forma que Ingold (2013, 2015) compõe o viver, o “habitar o mundo” - o
ato de traçar um percurso pelo ambiente, relacionando-se com ele e com os objetos que o
rodeiam, e também o habitam - como também um movimento permanente. Para Ingold viver
é movimentar-se pelo mundo e o próprio corpo do organismo-indivíduo seria igualmente
constituído de movimento.

O organismo pode parecer composto externamente. Levante a tampa, no entanto, e


você encontra algo mais como uma pilha de compostagem do que a arquitetura
formal que anatomistas e psicólogos gostam de imaginar. De fato, como uma reunião
de materiais em movimento, o organismo (...) não é uma coisa que se move; é
bastante composto (ou melhor, compostado) em movimento. Isso quer dizer que é
fundamentalmente animado. (INGOLD, 2013, p. 93, tradução minha)

Movimento: ponto de encontro do aprender, criar e ser

Aqui, unindo as contribuições de Simondon, Ingold e Sautchuk, percebe-se o encontro


dos conceitos de aprender, criar e ser no movimento da interação com o mundo, seja com
ferramentas, coisas, técnicas, atividades, pessoas ou outros seres vivos. Simondon (2005) traz
a gênese - o gerar, o criar, o constituir - do indivíduo em forma de um movimento sem fim,
caracterizando a criação do indivíduo, do ato de “ser”, por assim dizer, como uma ação
perpétua.
Ingold (2013, 2015) observa esse movimento e o coloca como o próprio viver - o ser,
o existir no mundo - , caracterizando-o como um traçado/percurso no ambiente e nos objetos
e seres que o permeiam. Assim, individuar-se - constituir-se como indivíduo, construir-se a si
mesmo - e ser/existir se misturam e se confundem no movimento das relações do mundo.
Sautchuk (2015) complementa tal encontro com o aprender com o que chama de
“Aprendizagem como gênese”. O autor encontra o aprender no movimento da construção da
pessoa e na manutenção dessa ação - caracterizada como conexão de várias relações com
pessoas, ambientes e coisas - , e o relaciona com o próprio ato de ser, de constituição do
indivíduo, e, consequentemente, de existir, viver e habitar o mundo.
A configuração dos pescadores só pode ser adequadamente percebida no
interior de um sistema de relações (que descrevo como semióticas ou cinéticas) em
que eles atuam e se formam (...) cada um desses campos implica um tipo de
emergência próprio, que inclui os processos de aprendizagem, pensados como gênese,
ou ontogênese conjunta dos pescadores e de suas atividades. (SAUTCHUK, 2015, p.
135, grifo meu)
A criação do indivíduo é necessariamente uma formação, um aprender incessante e,
logicamente, uma ação em si mesma e, portanto, também é um movimento. Constituir-se
como indivíduo é aprender com as relações que são estabelecidas no traçado da vida, é, como
é recomendado aos jovens pescadores amazonenses da pesquisa de Sautchuk, “tornar-se
ativo”. Nesse contexto, a pedagogia para a pesca é a própria dinâmica do espaço ocupado
pelos pescadores, da mesma forma que Ingold (2013) coloca os ritmos como “criadores de
formas”, onde “forma” pode ser substituída por indivíduo ou ser, retomando mais uma vez o
encontro do aprender, do criar e do ser.

Considerações finais

O espaço fértil da educação serve tanto para expandir o arsenal metodológico da


antropologia, como com a Educação da Atenção de Ingold, como para contribuir - como
tentou-se neste trabalho - com as discussões acerca de criação, construção, formação e
constituição de conhecimento e, logo, também do próprio indivíduo.
Ademais, para além de repensar o distanciamento da antropologia com a pedagogia,
faz-se um apelo aos benefícios de uma perspectiva de estudo e pesquisa interdisciplinar,
evitando-se as limitações que decorrem do isolamento das ciências sociais em métodos
tradicionais e, muitas vezes, da recusa de parceria com outras ciências humanas.
Ampliando-se, assim, debates sobre os conceitos de ser, existir e viver, tomando não
apenas o homem como centro da análise, mas realizando uma virada ecológica e material,
enxergando o ambiente, os seres vivos e seres não vivos como sujeitos desse movimento e
negando às sucessivas dicotomias às quais a antropologia se utilizou para abordar temas que
não se antagonizam, mas se encontram.
Referências bibliográficas

INGOLD, T. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill.
London: Routledge, 2000.

__________. Making. Anthropology, archaeology, art and architecture, London/ New York,
Routledge, 2013.

__________. Estar Vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição.


Petrópolis/RJ: Vozes, 2015.

__________. Chega de etnografia! A educação da atenção como propósito da antropologia.


Educação, v. 39, n. 3, p. 404-411, 22 dez. 2016.

SAUTCHUK, Carlos E. “Aprendizagem como gênese: prática, skill, individuação”,


Horizontes antropológicos 21 (44), 2015.

SIMONDON, Gilbert. A individuação à luz das noções de forma e de informação. São Paulo,
editora 34, 2005.

SMOLKA, A. L. B.; LAPLANE, A. L. F.; NOGUEIRA, A. L. H.; BRAGA, E. S. As relações


de ensino na escola. In: Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Educação. Multieducação:
Relações de Ensino, 2007.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos


psicológicos superiores. Orgs. M.Cole et al. Trad. J. Cipolla Neto. 4. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1991.

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