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JÔNATAS DIAS LIMA

JÔNATAS DIAS LIMA

MAIO 2021
Homeschooling no Brasil: fatos, dados e mitos
Jônatas Dias Lima
1ª edição – maio 2021, Copyright © ID Editora.

Autor
Jônatas Dias Lima
Edição e organização
Francisco Augusto Garcia
Revisão
Edilaine Alberton Lima e Pedro Paulo Teófilo Magalhães de Hollanda
Revisão técnica
Fausto M. Tiemann
Capa e diagramação
Jorge Carlos

Reservados todos os direitos desta obra.


Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica,
mecânica, fotocôpia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

ID Editora Ltda
Florianópolis, SC
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FICHA CATALOGRÁFICA

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Lima, Jônatas Dias


Homeschooling no Brasil : fatos, dados e mitos /
Jônatas Dias Lima. -- Florianópolis, SC : ID Editora,
2021.

ISBN 978-65-991064-5-3

1. Educação - Brasil 2. Ensino domiciliar


I. Título.

21-64609 CDD-371.0420981
Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Homeschooling : Ensino domicilar :


Educação 371.0420981

Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

Distribuição:
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Sumário
Prefácio................................................................................................................. 7

Introdução.......................................................................................................... 11

O homeschooling não tem cor ideológica....................................................... 15

É a tecnologia – e não a religião – o que está impulsionando o ensino


domiciliar........................................................................................................... 19

Para praticar homeschooling em paz, eles venderam tudo e deixaram o


Brasil.................................................................................................................... 27

Ensino domiciliar não é política pública........................................................ 31

EUA têm leis de homeschooling para todos os gostos. Funcionariam no


Brasil?.................................................................................................................. 35

Homeschooling: mais um tema no qual o Chile supera o Brasil.................. 39

Como funciona o ensino domiciliar em Portugal......................................... 43

O que Nelson Mandela tem a ver com o homeschooling na África do Sul.47

A expansão do homeschooling na Rússia de Vladimir Putin....................... 51

O homeschooling pode mesmo provocar a falência de escolas e o


desemprego de professores?............................................................................. 55

É possível conciliar uma lei do homeschooling e a proteção das crianças


mais vulneráveis?............................................................................................... 59

Do PT a Bolsonaro: 15 projetos de lei sobre homeschooling que já passaram


pelo Congresso.................................................................................................. 63
Os argumentos contra o homeschooling não justificam rejeição à existência
de lei.................................................................................................................... 67

Os gênios educados em casa são a melhor propaganda para o ensino


domiciliar........................................................................................................... 71

Campeões e artistas: quando o ensino domiciliar favorece o talento......... 75

Por falta de lei, o Estado não sabe nada sobre o ensino domiciliar
brasileiro............................................................................................................. 79

Famílias homeschoolers: a minoria desprezada por defensores de


minorias.............................................................................................................. 83

No caso do homeschooling, regulamentação é liberdade.............................. 87

Esquerda a favor do homeschooling? Ela existe e é mais comum do que


parece.................................................................................................................. 91

Por que a pandemia fez o interesse por homeschooling crescer tanto no


mundo todo........................................................................................................ 95

Lei do homeschooling ajudaria a resolver impasse da volta às aulas........... 99

O bom momento político para aprovação do ensino domiciliar.............. 103

Por que o Distrito Federal aprovou a educação domiciliar....................... 107


Prefácio

T
odo mundo é a favor da educação. Não há ninguém, rico
ou pobre, que não reconheça a necessidade de buscar esse
bem para si, mesmo que às vezes em situação contingente,
e para os seus filhos. A Constituição Federal traz logo nos seus
primeiros artigos a função da educação como um direito social,
e o artigo 227 dá o contorno de como se efetivará esse direito: “É
dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negli-
gência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Fica evidente o princípio da subsidiariedade nas responsabilidades
da educação dos filhos e explícita uma ordem que deve ser respei-
tada: primeiro, a família.
A família é base da sociedade e merece especial proteção do
Estado. É na família que se vive a educação de maneira integral,
em todas as suas dimensões: racional, social, emocional, física
e transcendente, e só a família tem laços perenes e de amor, de
amor abnegado, de uma entrega total em busca do melhor para
os seus. Mesmo as boas escolas não pretendem, nem poderiam,
substituir a família nesses aspectos do desenvolvimento humano
da criança. Cabe à família, sempre, esse papel, a partir de um olhar
único, personalizado, para um ser irrepetível. Cada criança é única
HOMESCHOOLING NO BRASIL

e precisa ser respeitada na sua individualidade, e a escola tradicional


não consegue, embora tente, ter um olhar para cada criança. Não
queremos aqui estabelecer uma dicotomia entre família e escola,
mas justamente o contrário. Para atender ao superior interesse da
criança e respeitar a liberdade dos pais na educação dos seus filhos
é que surge a ideia da educação domiciliar. Educação domiciliar
que é, sim, um direito humano.
Em países em que a educação domiciliar é regulamentada, muitas
vezes filhos de uma mesma família são atendidos na modalidade
escolar e na modalidade domiciliar, em função das necessidades
específicas de cada criança. Ou seja, o foco é a criança. A educação
domiciliar não é uma revolta contra a escola, não é uma postura
contra a educação em busca de um sectarismo, mas a busca do
melhor ambiente educativo para os filhos.
Os artigos que se seguem vão apresentar dados estatísticos,
modelos de regulamentação, experiências de outros países, um
histórico da tramitação de diversos projetos de lei sobre o tema
no Câmara dos Deputados e no Senado Federal, além de refutar
alguns argumentos daqueles que são contrários à regulamentação
da modalidade domiciliar.
O autor, meu amigo, conduz o assunto com leveza e profun-
didade. Profundidade de quem conhece de perto a realidade de
muitas famílias educadoras. Se não sabemos quantas são, sabemos
que ninguém entra nessa aventura sem estar preparado.
Sabemos que hoje há uma generosa oferta de materiais, livros
didáticos, materiais complementares, atividades de leitura, modelos
de currículos e grupos de apoio para ajudar aqueles que desejam
investir na educação domiciliar. Eu, como pedagogo, percebo um
movimento muito grande em busca de mais formação por parte
dos pais. Muitos têm licenciatura, fazem especialização, mestrado,

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JÔNATAS DIAS LIMA

formações complementares. Outros buscam apoio em grupos de pais,


contratam professores para pequenos grupos, buscam tutores para
alguma disciplina, além de toda uma gama de atividades comple-
mentares “extraclasse”, como atividades físicas, artísticas, línguas
estrangeiras, passeios culturais, exposições.
Se, no entanto, ainda ficamos com o pé atrás, se ainda estamos
muito habituados ao modelo atual de escola tradicional, se nos
restam dúvidas dos benefícios da educação domiciliar, ainda assim
o melhor caminho é a regulamentação.
Queria convidá-los para lerem as próximas páginas com o coração
aberto e com a caneta na mão. Todas as dúvidas serão resolvidas.
Ninguém quer aprovar nada atropelado, e muitos já estão nesse
caminho há bastante tempo.

Francisco Augusto Garcia1

1  Pedagogo e engenheiro eletricista graduado pela Universidade de Brasília (UnB),


com mestrado em Engenharia Elétrica pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Tem experiência em políticas públicas para primeira infância, políticas
voltadas para a família e na formação de professores nas áreas de pedagogia e letras.

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Introdução

A
decisão do STF no julgamento sobre a constituciona-
lidade do ensino domiciliar, ocorrido em 2018, afetou
de forma intensa a vida das famílias brasileiras que já
haviam aderido à modalidade. Embora não houvesse lei específica,
a situação do homeschooling no país antes do julgamento não era
clara e havia interpretações plausíveis para concluir que o texto
da Constituição, lido em conjunto com acordos internacionais
sobre direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, permitiria
a prática. Isso, somado ao descontentamento das famílias com a
baixa qualidade da rede pública de ensino, aos preços moralmente
questionáveis das escolas privadas e vários outros fatores, levou
ao crescimento do interesse por essa forma de educação. Assim,
surgiram milhares de adeptos no Brasil.
No entanto, com o julgamento em plenário por parte do Supremo,
e principalmente após a publicação do acórdão referente ao mesmo,
o que ocorreu em março de 2019, a situação do ensino domiciliar
no Brasil ficou clara. Os ministros decidiram que a modalidade é
compatível com a Constituição, sob determinadas condições. A mais
importante delas é a de que haja lei que a regulamente.
Não foi o resultado esperado pelos defensores do homeschooling
na ocasião, mas podia ter sido pior. O STF poderia ter destruído
qualquer esperança para as famílias adeptas da educação em casa
naquele julgamento, afirmando que o ensino domiciliar é incons-
titucional, mas não o fez. Escolheu passar a bola para o Legislativo,
HOMESCHOOLING NO BRASIL

mantendo um pouco de luz no fim do túnel, mas não sem conse-


quências drásticas para famílias que já haviam sido injustamente
denunciadas por “abandono intelectual”, apesar das evidências de
aprendizagem que podiam mostrar.
Após um período em que todos os processos foram suspensos
até que o julgamento ocorresse, as ações voltaram a andar e uma
nova temporada de caça às famílias homeschoolers voltou com toda
a força, motivada sobretudo por agentes públicos obstinados em
fazer o tema morrer no Brasil. Ao que tudo indica, fracassaram
nessa tarefa, mas a lei ainda não veio e a perseguição não acabou.
Esse é o contexto no qual teve início a dura corrida por uma
lei que dê às famílias o reconhecimento do direito de educar em
casa, mesmo que para tal conquista fosse necessário se submeter a
determinadas exigências, contanto que sejam razoáveis. Os artigos
a seguir foram todos escritos, principalmente, com esse objetivo:
conquistar uma lei para o homeschooling no Brasil.
Para atingir tal fim, dediquei-me, primeiro, a estudar as argu-
mentações mais usadas, tanto por defensores como por aqueles que
se opõem à legalização da modalidade. Essa etapa envolveu horas
de leitura e muitas conversas com agentes relevantes no processo.
Participação em eventos como reuniões, simpósios e palestras
também contribuíram, mas o foco de atenção sempre esteve nas
forças de influência atuantes no Congresso Nacional e, em certa
medida, suas correlatas nas casas legislativas de unidades da fede-
ração e municípios.
Convém destacar também que, com tal objetivo, a mera publi-
cação dos textos jamais atingiria seu fim se os mesmos não chegas-
sem às pessoas com maior poder decisório na produção de leis:
os parlamentares. Por isso, a cada artigo publicado, os links de
acesso foram enviados para deputados federais, senadores e outros

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JÔNATAS DIAS LIMA

agentes públicos fundamentais para o sucesso da regulamentação


do ensino domiciliar.
Não poderia encerrar essa introdução sem antes agradecer ao
jornal Gazeta do Povo, uma casa de excelência jornalística na qual
tive a alegria de servir como repórter e editor durante 13 anos, e
com a qual contribuo ainda hoje, agora de forma voluntária. Como
ocorre também em outros temas, a Gazeta do Povo assumiu um
valiosíssimo protagonismo no debate sobre o ensino domiciliar
no Brasil, abrindo espaço não apenas para os textos semanais de
minha autoria, mas também para consistentes reportagens que
influenciaram – e ainda influenciam – as conversas sobre o tema
nos corredores do Congresso Nacional.

Jônatas Dias Lima2

2  Jornalista, 36 anos, graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná


(PUC-PR), com especialização em Ética pela mesma instituição. Durante 13 anos
atuou como repórter e editor do jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, onde cobriu prin-
cipalmente temas relacionados a família e educação. Em 2014, venceu dois prêmios
jornalísticos: o Prêmio Estácio de Jornalismo, na categoria Região Sul, pela melhor
reportagem sobre ensino superior; e o Prêmio Paranaense de Ciência e Tecnologia,
pela melhor reportagem de divulgação científica.
Por dois anos trabalhou na Câmara dos Deputados, em Brasília, onde atuou junto à
Frente Parlamentar em Defesa do Homeschooling. Atualmente é assessor parlamentar
no Senado Federal.

13
O homeschooling não
tem cor ideológica
Jornal Gazeta do Povo, 20 de maio de 2020.

Q
uem se aventura a debater sobre ensino domiciliar (homes-
chooling) no Brasil precisa estar disposto, primeiro, a
gastar muito de suas energias revelando a fragilidade de
mitos repetidos à exaustão, e quase sempre desprovidos de razoabi-
lidade. A meu ver, um dos que mais atrapalham a aprovação de uma
lei que regulamente a modalidade é a falsa crença de que educar os
filhos em casa é coisa da “direita religiosa conservadora”. Se isso foi
verdade um dia, há décadas deixou de ser e é fácil provar.
Antes, contudo, convém ser compreensivo com quem acredi-
tou nessa fábula por nunca ter tomado conhecimento do assunto
antes da chegada do governo Bolsonaro. O volume de conteúdo
disponível para pesquisa sobre o homeschooling no Brasil só cresceu
nos últimos anos. Antes, era de uma escassez e superficialidade
espantosas. Quando o atual governo – o primeiro de direita desde a
redemocratização – incluiu entre suas metas a aprovação do ensino
domiciliar, o ato foi o suficiente para uma multidão de leigos no
assunto decretarem que isso só podia ser coisa dessa gente que
acabou de chegar ao poder.
HOMESCHOOLING NO BRASIL

A história recente do ensino domiciliar no mundo, entretanto,


mostra fatos que podem ser chocantes para ativistas de direita e de
esquerda. Nem sequer precisamos ir muito longe para achar líderes
políticos supostamente inusitados defendendo uma modalidade
que, pela lógica desse mito, nunca seria defendida por eles.
Olhemos primeiro para nosso vizinho latino-americano, o
Equador. Lá, o direito ao ensino domiciliar foi garantido pela Cons-
tituição promulgada em 2008 e regulamentado por um acordo
ministerial emitido em 2013. Nas duas ocasiões, quem governava o
país – e apoiou a modalidade – foi o presidente Rafael Correa, um
bolivariano que esteve à frente do Equador por dez anos, aberta-
mente adepto do chamado “socialismo do século XXI”. Correa foi
um dos chefes de Estado mais próximos do ex-presidente Lula, de
Hugo Chávez e de Fidel Castro.
Já que falamos em socialismo, vamos à terra onde essa ideologia
se tornou forte o bastante para dividir o mundo em dois durante a
Guerra Fria. Sim, a Rússia também legalizou o homeschooling. Acon-
teceu em 2012, como parte de uma ampla reforma educacional, e,
desde então, o número de famílias educadoras não para de crescer.
Hoje, estima-se que 50 mil famílias russas aderiram à modalidade.
Em 2018, o país que já foi o coração da União Soviética chegou a
sediar a Global Home Education Conference, provavelmente o maior
evento mundial sobre ensino domiciliar.
Outro poderoso exemplo de como a opção pelo ensino domiciliar
tem atraído perfis cada vez mais diversos vem dos Estados Unidos,
o país que abriga o maior número de famílias homeschoolers no
mundo: 2,3 milhões.
No final da década de 80, estudos mostravam que educar em
casa era a opção de apenas 10 mil famílias norte-americanas, e
que 93% delas eram formadas por brancos evangélicos, a maioria

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JÔNATAS DIAS LIMA

vivendo na zona rural. Provavelmente, o retrato daquele momento


deu origem ao estereótipo usado pelos críticos do homeschooling
até hoje. Entretanto, um levantamento mais recente, feito em 2016,
mostra uma realidade completamente diferente.
Nenhum outro grupo étnico cresceu tanto na adesão ao homes-
chooling nos Estados Unidos quanto o dos afro-americanos. Cerca
de 220 mil famílias negras educam seus filhos em casa naquele país,
representando 10% do total (para comparação, nas escolas públi-
cas os negros ocupam 16% das vagas). As famílias latinas também
ganharam espaço nessa conta e hoje compõem 15% do todo. Outra
minoria que tem se destacado entre os optantes pelo homeschooling
lá é a dos imigrantes muçulmanos.
Portanto, nos Estados Unidos, tornou-se matematicamente
impossível apontar o homeschooling como uma pauta exclusiva de
cristãos, brancos e direitistas. Reivindicar o direito de educar os
filhos em casa é uma demanda tão natural, e foi tão facilitada pelas
novas tecnologias, que a pauta se universalizou.
Tenho a firme convicção de que no Brasil ocorre o mesmo fenô-
meno, mas se o Poder Público tem sido tão omisso em legitimar
uma modalidade que na prática já existe, não é nada realista esperar
por dados precisos que confirmem o perfil das famílias brasileiras
que adotam ensino domiciliar.
Essa omissão, aliás, parece que só terá fim quando mais parla-
mentares, gestores públicos e pesquisadores no campo da educa-
ção abandonarem seus preconceitos infundados contra o ensino
domiciliar, encarando esse fato social com mais realismo e coragem.

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É a tecnologia – e não a religião
– o que está impulsionando
o ensino domiciliar
Jornal Gazeta do Povo, 13 de junho de 2020.

O
que ocorre no Brasil e no mundo durante a pandemia
da COVID-19 não é exatamente homeschooling, já que
a quarentena foi imposta a todas as famílias, inclusive
àquelas que preferem o ensino escolar. Trata-se de um improviso,
recebido como incômodo para alguns, mas também como uma
grata surpresa para outros. Entre estes, muitos provavelmente viam
o ensino domiciliar como uma excentricidade, coisa de religiosos
fanáticos, como no mito já desmascarado em outro artigo. No
entanto, estão descobrindo – ainda que involuntariamente – que
educar os filhos em casa é possível, funciona e que a educação
personalizada de verdade pode gerar resultados inalcançáveis em
outros ambientes. Estão descobrindo ainda que o grande motivador
por trás do crescimento do ensino domiciliar no mundo não é um
suposto desejo religioso de isolar os filhos da sociedade, mas sim
as facilidades oferecidas pelas novas tecnologias de aprendizagem,
pois elas funcionam e muito bem.
HOMESCHOOLING NO BRASIL

Pais que até hoje nunca tinham se dado ao trabalho de procurar,


estão agora tendo o primeiro contato com o universo das plataformas
de aprendizagem online e surpreendendo-se com a qualidade dos
materiais disponíveis, muitos deles a preços acessíveis ou até de graça.
Virou cena comum, por exemplo, ver posts de alegria nas redes
sociais dos pais que descobrem o Khan Academy, o gigante site norte-
-americano de educação à distância, cuja missão é “proporcionar
uma educação gratuita e de alta qualidade para todos, em qualquer
lugar”. É possível que muitos já tivessem ouvido falar da iniciativa
em notícias de jornal, mas não fizessem ideia de que grande parte
dos conteúdos já está traduzida ao português do Brasil – inclusive
os vídeos e gráficos – com divisão por faixa etária e adaptada ao
currículo nacional.
Os insensatos críticos do homeschooling também vão se surpre-
ender ao saber que a plataforma multinacional disponibilizou, em
português, uma página específica para pais que educam os filhos
em casa3, na qual anuncia “um recurso gratuito e de alto nível para
famílias que optam pelo ensino domiciliar”. Nela, há testemunhos de
gratidão escritos por pais homeschoolers que usam o Khan Academy
como uma das principais ferramentas de aprendizagem.
Com outro foco, mas igualmente úteis aos pais educadores, há
uma infinidade de opções disponíveis em agregadores de cursos,
como Hotmart e Udemy, que servem como formação continuada
aos pais, além de alternativas mais acadêmicas, como a Coursera,
que oferece, por exemplo, conteúdo gratuito sobre alfabetização,
certificado por universidades norte-americanas, para famílias
determinadas a ensinar melhor. No Brasil, o próprio Ministério da
Educação lançou em 2020 seu próprio curso online em práticas de

3  https://pt.khanacademy.org/homeschool. Acesso em 13/06/2020.

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JÔNATAS DIAS LIMA

alfabetização, o Tempo de Aprender, cujo número de acessos chegou


a dois milhões em apenas quatro meses.
Entretanto, não são apenas as grandes organizações e o governo
que têm usado as novas tecnologias para dar sua contribuição às
famílias educadoras. Quem participa de grupos de WhatsApp e
comunidades virtuais sobre homeschooling conhece bem o fenômeno
dos professores que se tornam verdadeiras celebridades nas redes
sociais, graças ao prestígio e confiança conquistados pela qualidade
dos materiais didáticos que produzem e pelo bom atendimento aos
pais que os procuram.
Nomes como o de Sergio Morselli, no campo da matemática,
ou de Géssica Hellmann, no segmento da educação clássica, são
mencionados e recomendados com impressionante frequência
nesse meio. Eles não dispõem de potentes plataformas de educação
à distância, mas sabem usar com competência as redes sociais, são
bons no que fazem e reconhecem o ensino domiciliar como opção
legítima, como um fato e como modalidade em ascensão.
Seguindo a mesma linha, há toda uma geração de educado-
res libertando-se das amarras daquele pensamento sindical típico
do século XIX, vencendo o medo da novidade e enxergando o
homeschooling aliado à tecnologia como um mundo de oportuni-
dades a ser conhecido e com o qual podem contribuir. São todos
muito bem-vindos.

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O que o homeschooling tem a ver
com a entrada do Brasil na OCDE?

Jornal Gazeta do Povo, 6 de junho de 2020.

D
esde janeiro de 2020, quando Donald Trump tornou
explícito o apoio dos Estados Unidos à entrada prio-
ritária do Brasil na Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), os sinais de que a conquista
dessa vaga está próxima são cada vez mais evidentes. Na já famosa
reunião ministerial de 22 de abril daquele ano, cujo registro em vídeo
foi divulgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro da
Casa Civil, general Braga Netto, chegou a dizer que “já nos consi-
deram na OCDE”, em referência às autoridades da organização. No
entanto, naquela mesma ocasião, houve outra fala sobre o mesmo
assunto que trouxe a público uma informação ainda mais surpre-
endente para muitos: 84% dos países que integram a OCDE tem
ensino domiciliar legalizado, lembrou a ministra Damares Alves.
O dado está correto e surpreende porque, no Brasil, o desconhe-
cimento sobre homeschooling ainda é tão grande que são poucos os
que prestam atenção ao valor que a instituição dá à modalidade.
Quando se trata de avaliar os benefícios econômicos da adesão à
OCDE, a aprovação é quase uma unanimidade entre os analistas, e
HOMESCHOOLING NO BRASIL

as contribuições da organização no campo educacional são tomadas


como referência no mundo todo, há anos. O melhor exemplo é a
importância dada por governos ao PISA, exame internacional que
mede o desempenho de alunos nas áreas de leitura, matemática e
ciências. Mesmo assim, no Brasil, gestores públicos, parlamentares
e pesquisadores no campo da educação prosseguem ignorando o
apoio da entidade ao homeschooling e ao princípio da liberdade
educacional. Por coerência, isso precisa mudar.
Comecemos citando números. Na data em que escrevo este
texto, a OCDE tem 36 membros. Destes, 30 reconhecem o ensino
domiciliar como opção legítima de educação compulsória, seja por
meio de legislação específica ou por permissão concedida na própria
constituição nacional. Nesse grupo entram, por exemplo, os Estados
Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, França, Finlândia, Reino
Unido, Portugal e nosso vizinho, o Chile.
Na verdade, o único país-membro que realmente proíbe a prática
é a Alemanha, graças a uma lei datada de 1938, sancionada por
ninguém menos que Adolf Hitler e que ainda hoje não foi revogada.
Trata-se do mesmo texto que criou o Ministério da Educação do
governo nazista.
Mesmo em países como Holanda, Grécia e Espanha, não há
proibição, mas sim disputas interpretativas quanto à legislação local,
ou restrições severas que reduzem em muito o perfil de famílias
aptas à modalidade.
O incentivo da OCDE à liberdade educacional, contudo, não se
limita às leis de seus países-membros, mas já foi expressa em vários
documentos da entidade. Em 2010, por exemplo, o estudo Education
at a Glance – OECD Indicators 2010, envolvendo 27 países, dedicou
várias páginas ao tema do ensino domiciliar no capítulo “How
much school choice do parents have”. No questionário da pesquisa

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JÔNATAS DIAS LIMA

constavam perguntas como “as reformas reduziram as restrições


para o ensino domiciliar?” ou “as oportunidades para as famílias
educarem seus filhos foram ampliadas pela legislação desde 1985?”.
Em 2019, no estudo OECD Future of Education and Skills 2030 –
Project background, o homeschooling foi mais uma vez mencionado
de forma positiva no item relacionado às mudanças na escolarização
compulsória e novidades na educação do século XXI.
Ainda mais recentemente, por conta da pandemia de COVID-19,
a ONG educacional HundrED, em parceria com a OCDE, lançou
uma plataforma para o compartilhamento de experiências de ensino
domiciliar, convidando os integrantes de sua comunidade a “compar-
tilhar recursos de homeschooling e educação online que apoiem o
aprendizado e o bem-estar dos alunos”.
Por fim, aos ainda céticos, recomendo a leitura de uma reportagem
publicada pelo site do Fórum Econômico Mundial, em 3 de abril
de 2020, na qual foi ouvido o diretor da OCDE para Educação e
Habilidades, Andreas Schleicher, e que estampou em seu título uma
realidade que as autoridades e referências da educação brasileira
não podem mais fingir que não veem: “O homeschooling durante
a pandemia de coronavírus pode mudar a educação para sempre”.

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Para praticar homeschooling
em paz, eles venderam
tudo e deixaram o Brasil
Jornal Gazeta do Povo, 20 de junho de 2020.

N
o mundo todo, há séculos, as guerras, a miséria, o desem-
prego e as epidemias mortais figuram entre as principais
causas que levam cidadãos comuns a abandonarem seus
países de origem, junto de suas famílias, em busca de uma vida
melhor. No Brasil, contudo, há outro motivo. Um que iguala nosso
país aos regimes mais desumanos do planeta, que deveria tirar o
sono e encher de vergonha nossas principais autoridades. No Brasil,
pessoas de bem fogem do país para poder educar os filhos em paz.
A família de Fátima entra nessa lamentável estatística, cuja conta
jamais foi feita, dado o grau de descaso que são obrigados a suportar
os pais que escolhem o ensino domiciliar como modalidade. Mãe
de três filhos, ela e o marido cansaram de ser tratados com desprezo
por agentes públicos insensatos, venderam tudo o que tinham no
Brasil e foram embora para Portugal, na esperança de poder usufruir
da liberdade educacional que nosso país ainda rechaça.
HOMESCHOOLING NO BRASIL

Em 2017, depois de o ministro Roberto Barroso, do STF, decidir


que todos os processos movidos contra famílias homeschoolers esta-
riam suspensos até que a corte julgasse o tema, a família de Fátima
decidiu aderir à modalidade, tirou os filhos da escola e passou a
educá-los em casa. O diretor da escola, contudo, sem disfarçar
um tóxico preconceito contra a fé do casal, decidiu denunciá-los
ao Ministério Público, acusando-os de “abandono intelectual”
e “confinamento”.
As abundantes evidências de aprendizagem e as irrefutáveis provas
de que as crianças levavam uma vida normal, socializavam, saíam
de casa, tinham amigos e praticavam diversas atividades, felizmente,
foram suficientes para que o desembargador responsável pelo caso
os favorecesse, ao menos não levando adiante as ridículas acusações.
Entretanto, após o julgamento do STF sobre homeschooling, ocor-
rido em 2018, e, principalmente, após a publicação do acórdão, em
março de 2019, a perseguição voltou com força. Naquela ocasião,
o Supremo decidiu que o ensino domiciliar não é inconstitucional,
mas também disse que não existe direito a tal modalidade no Brasil
enquanto não houver lei que a regulamente.
A decisão caiu como uma bomba sobre todas as famílias injus-
tamente processadas, como a de Fátima. Embora já estivessem
morando em outro estado, aquele antigo processo foi transferido
de comarca. Agora, novos promotores e conselheiros tutelares, que
pouco sabiam da realidade de sua família ou da história de sua luta,
passaram a intimidá-los de modo a que abandonassem sua opção
por educar os filhos em casa.
Os telefonemas, as visitas-surpresa e a desgastante batalha judicial
os abateram, mas não a ponto de fazê-los desistir de fazer o melhor
por seus filhos. Fátima e o marido estavam tão convictos dos bene-

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JÔNATAS DIAS LIMA

fícios de educá-los por meio do homeschooling que traçaram um


plano para se livrar da abusiva mão do Estado brasileiro.
Entraram em contato com famílias portuguesas adeptas da
modalidade, criaram laços, informaram-se sobre possibilidades
de emprego e decidiram partir. Sacrificariam todas as economias
que possuíam e passariam a viver num país que não era o seu, mas
educariam seus filhos da forma como sabiam ser a melhor.
Foi assim que, no início de 2020, Fátima, seu marido e os filhos
chegaram a uma cidade do interior de Portugal, onde o custo de
vida é baixo e recomeçar uma vida é viável. Lá, o ensino domiciliar
é permitido e, embora a legislação seja rigorosa, eles não são vítimas
de acusações absurdas, nem perseguidos como se fossem criminosos.
Apesar de tudo, ainda querem voltar ao Brasil um dia. Provavel-
mente o farão no dia em que nossos parlamentares e governantes
abandonarem o indignante hábito de deixar o assunto do ensino
domiciliar para depois, como fazem há 26 anos, quando o primeiro
projeto de lei sobre o tema chegou ao Congresso Nacional. Nesse
dia, ninguém mais terá que fugir do Brasil por amor aos seus filhos.
Poderão amá-los e educá-los com liberdade, aqui mesmo, na terra
em que nasceram.

29
Ensino domiciliar não
é política pública
Jornal Gazeta do Povo, 4 de julho de 2020.

N
a exaustiva tarefa de desmontar mitos sobre ensino
domiciliar que são reproduzidos em escala industrial
nas redes sociais, um dos que aparecem com espantosa
frequência é aquele que não questiona o mérito da causa, mas sim
seu lugar numa hipotética lista de prioridades com as quais o país
devia se preocupar. “Homeschooling não é prioridade” costuma
ser o mantra invocado por aqueles que escolhem esse discurso, na
esperança de parecerem equilibrados. É preciso admitir que ele soa
até compreensível para os mais desatentos, mas a verdade é que o
argumento não resiste a uma análise séria, pois parte de uma premissa
muito falsa, que é aquela que considera o ensino domiciliar como
mais uma política pública educacional em meio a tantas outras,
como num cardápio de opções.
Quando alguém invoca tal sentença, é quase infalível apostar que
logo em seguida virão exemplos de políticas públicas com os quais o
governo, o Congresso, a sociedade e até as famílias deviam se preo-
cupar “primeiro”. Na lista estarão reivindicações de melhores salários
para os professores, de melhor distribuição dos recursos federais, de
HOMESCHOOLING NO BRASIL

mais segurança nas escolas, de capacitação mais eficaz para o corpo


docente, de metodologias mais inovadoras, etc. A conclusão dessa
linha de raciocínio, portanto, é a de que seria possível substituir o
interesse de educar em casa por outros que tornassem a escola mais
atraente. Trocar uma política pública por outra, mais “urgente”.
O erro desse argumento está no fato de que ensino domiciliar
não é política pública, nem nunca foi apresentado como tal por
seus defensores mais relevantes. O governo federal não considera
o tema dessa forma, nem os parlamentares autores de projetos de
lei sobre o assunto, nem as associações de famílias, nem os juristas
engajados na causa. Os únicos a tratarem o ensino domiciliar como
política pública são seus opositores, justamente porque é apenas por
meio dessa falácia que conseguem simular algum frágil bom senso
quando se opõem ao tema.
A legalização do ensino domiciliar é uma questão de reconhe-
cimento de direitos e quem se opõe está se opondo ao direito das
famílias. Essa é uma realidade constrangedora para os que hostilizam
a modalidade em seus discursos, e por isso mesmo deve ser mais
conhecida. No debate público, é fácil escolher entre uma ou outra
política como a melhor ou a que merece prioridade, mas são poucos
os que estão dispostos a admitir francamente que são militantes
pelo rechaço a um direito.
O próprio Supremo Tribunal Federal tratou o ensino domiciliar
como um direito – existente ou que poderia ser criado – quando
discutiu, em 2018, se a modalidade era ou não contemplada pela
Constituição. Portanto, não faz o menor sentido tentar desqualificar
o homeschooling usando estudos que comprovam – real ou supos-
tamente – que se atinge mais gente e se alcança melhores índices
de desempenho investindo esforços e dinheiro em outras ações.

32
JÔNATAS DIAS LIMA

São reivindicações de categorias completamente distintas e que de


forma alguma competem entre si.
A atitude de quem tenta substituir a causa da legalização do
homeschooling por outras demandas é equivalente à de alguém que
tentasse convencer as mulheres do início do século XX de que o
direito ao voto não era tão importante assim, de que elas poderiam
ser felizes sem votar e de que deveriam lutar por causas mais rele-
vantes. Algo parecido se pode dizer tomando-se como exemplo as
pessoas com necessidades especiais, os idosos ou qualquer outra
minoria que reivindicou um direito por anos, até conquistá-lo.
As famílias que educam em casa formam hoje uma das mino-
rias mais perseguidas, discriminadas e indefesas do país. Portanto,
embora tentem, aqueles que são contrários ao direito que essas
famílias almejam não têm como se esconder muito tempo atrás do
verniz de uma simples discordância democrática. Ao relegarem
o pedido das famílias educadoras a um eterno patamar secundá-
rio, eles se tornam diretamente responsáveis pelo sofrimento que
provocam a milhares de pais, mães e crianças, pois os condenam à
permanente clandestinidade.
O que esses opositores à existência de uma lei para o ensino domi-
ciliar têm feito é, sim, cruel e desumano. Isso precisa ser mais exposto.

33
EUA têm leis de homeschooling
para todos os gostos.
Funcionariam no Brasil?
Jornal Gazeta do Povo, 12 de julho de 2020.

U
m dos erros mais graves que se pode cometer na luta
por uma lei que regulamente o ensino domiciliar no
Brasil é o apego excessivo a um único texto, ao ponto
de comprometer a própria existência de uma lei. Infelizmente, não
é difícil encontrar quem até aceita se engajar na ação política junto
a deputados, vereadores e poder executivo, mas retira o apoio se
determinado projeto de lei não atender integralmente às expectativas
criadas. Se a projeção do que está em sua mente não se concretiza,
acaba caindo na insensatez de proclamar que “se for assim, melhor
sem lei”, sentença esta que carrega em si muito mais rancor do
que razoabilidade.
Para não sucumbir a essa tentação, um bom antídoto é conhecer
um pouco mais sobre a grande diversidade de legislações sobre
homeschooling em vigência no mundo. Embora até se possa falar
num conceito universal e amplo do que seja ensino domiciliar, a
forma como se dá o direito a essa modalidade, e como cada lei
HOMESCHOOLING NO BRASIL

local a define, varia muito. Não faz sentido, portanto, implicar com
leis mais rigorosas, acusando-as de não representar o “verdadeiro”
homeschooling, pois este sim é um conceito tremendamente subjetivo.
Tendo em vista que comparar leis de diferentes países é um traba-
lho árduo, com grande risco de erros interpretativos ou de tradução,
aos interessados nessa empreitada um bom caminho é começar por
uma única nação estrangeira, os Estados Unidos, onde a modalidade
é legalizada em todo o território, embora coexistam dezenas de
variações legislativas, desde as mais liberais até as mais restritivas.
Tomemos como primeiro exemplo o estado do Texas, cuja lei
é frequentemente apontada como ideal pelos pais mais resistentes
à participação do Estado na educação dos filhos. Na prática, o
governo do Texas não mantém nenhum controle sobre as famílias
praticantes de ensino domiciliar. Não há avaliações periódicas, nem
exigência de formação acadêmica dos pais e nem sequer um registro
centralizado de quais famílias adotam a modalidade. O máximo de
orientação estatal é a de que as crianças aprendam a ler, escrever,
expressar-se bem e calcular. É preciso também que haja um currículo
a ser seguido, mas esse é de livre escolha dos pais.
Condições semelhantes são encontradas nos estados de Oklahoma,
Idaho, Missouri, Illinois, Indiana, Michigan, Connecticut, New Jersey
e Alaska. É muito importante destacar, contudo, que esse tipo de
homeschooling se enquadra nas formas que o Supremo Tribunal
Federal considerou incompatíveis com a Constituição brasileira.
No acórdão publicado em março de 2019, referente ao julgamento
sobre a modalidade ocorrido em 2018, é destacada como obrigatória
a “solidariedade entre a família e o Estado” na educação das crian-
ças, adolescentes e jovens, o que envolve a “supervisão, avaliação e
fiscalização pelo Poder Público”.

36
JÔNATAS DIAS LIMA

Portanto, um pouco mais viáveis para servirem de modelo ao


Brasil seriam as legislações de estados como Califórnia, Nebraska,
Mississippi, Arizona e Kansas, todas com clara participação estatal,
embora as exigências sejam relativamente poucas. Na Califórnia,
por exemplo, a modalidade se divide em três opções e as famílias
devem informar ao Estado qual delas irá seguir. A primeira é aquela
na qual a família homeschooler é equiparada a uma escola privada
e, como tal, deve prestar contas ao governo, renovando anualmente
seu registro como optante pelo ensino domiciliar, comprovando a
capacidade de ensinar dos pais, ministrando no mínimo as mesmas
disciplinas oferecidas nas escolas públicas e apresentando às auto-
ridades o currículo escolhido.
Outra opção para os californianos é a de matricular os filhos
numa das chamadas escolas satélites, à qual a família fica vinculada.
Nesse modelo, a família recebe as instruções de uma instituição de
ensino privada que prepara o currículo e as atividades, mas sem a
necessidade de frequência presencial. Há ainda o sistema de tutoria,
no qual a família contrata um professor credenciado pelo Estado
para ministrar aulas em casa. Nesse caso, é esse profissional que se
responsabiliza por apresentar eventuais evidências de aprendizagem
junto ao governo.
Aos que consideram necessário elevar um pouco mais as exigên-
cias, alegando preocupação com o desenvolvimento das crianças,
há leis como a da Flórida, segundo a qual, além de notificar formal-
mente uma superintendência local e seguir um currículo bem
estruturado, é preciso manter um portfólio atualizado de todas as
atividades educacionais feitas pelo estudante, bem como uma lista
de todo o material de leitura utilizado. Tudo que for produzido pode
ser eventualmente solicitado pela fiscalização estatal. É necessário
também submeter a criança a avaliações de desempenho anuais, que

37
podem ser tanto as oferecidas pelo governo, como desenvolvidas
por professores particulares credenciados para tal fim. As opções
de tutoria ou de parceria com escolas privadas que não exigem
frequência também são válidas.
Condições semelhantes às da Flórida são oferecidas por Virgínia,
Tennessee, Colorado, Havaí e outros quinze estados.
Por fim, há lugares onde o nível de exigências é tão alto que o
direito de educar em casa fica bastante restrito. É o caso de Nova
York, onde além de informar ao governo sobre a opção, manter
um portfólio e submeter o estudante a testes anuais, é obrigatória
a apresentação de um plano pedagógico, também anual, além do
envio de relatórios trimestrais sobre o desenvolvimento da criança.
É previsto ainda que o estudante cumpra uma carga horária espe-
cífica e que ao menos um dos pais tenha ensino superior completo.
Consta ainda a possibilidade de inspeção em domicílio por parte
de fiscais do Estado.
Como podem ver, no país com o maior número de homeschoolers
em todo o mundo há opções de lei para todos os gostos, desde as
mais permissivas até as mais rigorosas. Nenhuma delas, contudo,
é pior do que a situação do Brasil, onde não há lei alguma que legi-
time a prática e, por consequência, todas as famílias que adotam
o ensino domiciliar são tratadas como infratoras, sujeitas às mais
injustas perseguições.
O Brasil precisa de uma lei que regulamente o ensino domiciliar
e isso é urgente.
Homeschooling: mais um tema
no qual o Chile supera o Brasil
Jornal Gazeta do Povo, 8 de agosto de 2020.

A
pesar da almejada liderança continental que o Brasil
poderia assumir na América Latina devido ao seu
tamanho e recursos naturais, temos um vizinho que nos
supera em quase tudo o que importa para um governo. Segundo os
dados mais recentes disponíveis, o Chile tem índice de desenvolvi-
mento humano (IDH) de 0,847, posicionando-se pouco acima da
Hungria (0,845) e bem acima do Brasil (0,761). Os chilenos também
vencem com folga na comparação do PIB per capita e obtêm melhores
resultados no PISA, exame que mede o desempenho dos estudantes
em leitura, matemática e ciências. A prova, aliás, é promovida pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), grupo no qual o Brasil tenta ser aceito há anos, e no qual
o Chile já está desde 2010.
Relacionada a essa conquista está a situação do homeschooling
naquele país. Desde 1980, o ensino domiciliar é um direito garan-
tido pela própria Constituição. No artigo 19, inciso 10, é dito que
“os pais têm o direito preferencial e o dever de educar seus filhos.
Corresponderá ao Estado outorgar especial proteção ao exercício
HOMESCHOOLING NO BRASIL

desse direito”. No inciso seguinte, a carta magna chilena prossegue


falando da liberdade de ensino e explicita que “os pais têm o direito
de escolher o estabelecimento de ensino para seus filhos”, o que
inclui o próprio lar.
O direito de educar os próprios filhos em casa já estaria sufi-
cientemente protegido por esses trechos, mas os chilenos dão tanto
valor à liberdade que ainda incluíram em sua Lei Geral de Educa-
ção o “princípio da Flexibilidade”, segundo o qual “o sistema deve
permitir a adequação do processo à diversidade de realidades e
projetos educativos”.
É a somatória desses textos o que permite ao Chile nem sequer
precisar de uma lei específica para o ensino domiciliar. Trata-se de
um direito absolutamente consolidado, reconhecido pela Justiça
e respeitado pelo Poder Executivo, responsável pela aplicação de
exames periódicos aos estudantes dessa modalidade e sua certifi-
cação, que, na verdade, é a mesma dada aos estudantes escolares.
A igualdade de tratamento é total.
A ausência de normas mais restritivas viabiliza também uma
grande variedade de métodos e currículos. Algumas famílias esco-
lhem usar os livros didáticos oferecidos pelo governo, mas há também
as escolas online, as instituições de ensino que fornecem cursos
livres e grupos de famílias que produzem e compartilham o próprio
material de estudo. É aceita, inclusive, a opção de matricular os filhos
numa umbrella school estrangeira. Comuns nos Estados Unidos, elas
são instituições que oferecem currículo, suporte pedagógico e certi-
ficação às famílias adeptas do ensino domiciliar. Tudo à distância.
Ao completarem 18 anos, com muita naturalidade, todos os anos,
alunos homeschoolers chilenos participam do processo seletivo de
acesso ao ensino superior, da mesma forma como qualquer estu-
dante da modalidade escolar.

40
JÔNATAS DIAS LIMA

O exercício de comparar essas condições de liberdade educacio-


nal com as que o Brasil oferece chega a ser desanimador. Também
explica por que o Chile tem atraído o interesse de um número
crescente de famílias educadoras brasileiras, cansadas de esperar
pela insistente e cruel omissão do Poder Legislativo, que tarda em
aprovar uma lei que as reconheça e proteja.
O Chile é signatário do acordo sobre visto de residência do
Mercosul, o que facilita em muito a permissão para brasileiros que
queiram morar no país. Essa, contudo, é uma decisão extrema, que
exige muito planejamento.
É evidente, também, que sair da terra natal não deveria ser uma
decisão motivada pela ausência de um direito básico, como educar
os próprios filhos em paz. Ao menos, não numa democracia que
busque ser respeitada como tal.
Embora a nossa Constituição não permita o mesmo grau de
liberdade que a chilena, o Supremo Tribunal Federal (STF) reco-
nheceu no julgamento de 2018 que a modalidade do ensino domi-
ciliar tem amparo constitucional, se praticado sob o princípio da
solidariedade entre família e Estado. Na mesma decisão, contudo,
o tribunal determinou que é necessário haver legislação específica
para que tal direito seja reconhecido.
É essa lei que precisa chegar logo. É essa lei que colocará fim no
êxodo de famílias educadoras que se veem obrigadas a deixar o país.

41
Como funciona o ensino
domiciliar em Portugal
Jornal Gazeta do Povo, 17 de outubro de 2020.

O
idioma em comum e as facilidades migratórias propor-
cionadas por acordos bilaterais tornam Portugal um dos
destinos mais procurados por brasileiros que querem
deixar o país. No entanto, o fato do ensino domiciliar ser legalizado
por lá é o que deixa o país europeu ainda mais atraente para as
famílias adeptas da modalidade. Educar os filhos em casa jamais foi
uma prática proibida em terras lusitanas, mas, recentemente, como
parte de uma ampla reforma educacional, o homeschooling português
ganhou uma série de normas. Aos que estão cansados da omissão
dos parlamentares brasileiros em aprovar uma lei que legitime essa
forma de educação em nosso país, e têm disposição para encarar as
dificuldades de uma mudança para o exterior, é importante conhecer
as novas regras que entraram em vigor em 2019.
Ler na íntegra o documento que rege o funcionamento da moda-
lidade é o primeiro passo. Trata-se da Portaria 69/2019, um longo
texto que revela logo de início que, na concepção portuguesa, a
educação em casa é dividida em duas opções: o ensino doméstico,
ministrado pelos próprios familiares ou por alguém que more junto
HOMESCHOOLING NO BRASIL

com o aluno, e o ensino individual, ministrado por um professor


escolhido pela família, devidamente autorizado pelo Estado para
exercer a função, que vai até a residência e dirige os estudos.
Em ambos os casos, há a necessidade de uma escola de matrí-
cula, instituição de ensino pública ou privada à qual o estudante se
vincula para todos os procedimentos legais. É para o diretor dessa
escola que a família deve fazer formalmente o pedido de autorização
para a prática do ensino doméstico ou individual. Com base no
preenchimento de um questionário, entrega de documentos e uma
entrevista presencial, o diretor da escola pode deferir ou indeferir
a autorização para educar em casa. Em caso de indeferimento, a
família pode recorrer, apelando à autoridade educacional imedia-
tamente superior, que, no Brasil, seria o equivalente à secretaria de
educação municipal ou estadual.
Ainda que haja o compreensível temor das famílias por conta de
eventuais subjetivismos aos quais estariam sujeitas as decisões de
tais diretores, a portaria não restringe as razões aceitáveis para se
conceder a autorização. Pelo contrário, o texto explicita que “estas
modalidades visam dar resposta às famílias que, por razões de natu-
reza estritamente pessoal ou de mobilidade profissional, pretendem
assumir uma maior responsabilidade na educação dos seus filhos
ou educandos, optando por desenvolver o processo educativo fora
do contexto escolar”.
Além do aval do diretor, a portaria também exige que pelo menos
um dos responsáveis pelo estudante tenha “licenciatura”, termo que
pode causar alguma confusão no Brasil, já que, por aqui, a palavra
é usada para cursos voltados à docência (Pedagogia, Língua Portu-
guesa, Matemática, etc.), mas em Portugal refere-se ao que chamamos
no Brasil de graduação, ou seja, qualquer curso superior completo.

44
JÔNATAS DIAS LIMA

Concedida a autorização, a família e a escola de matrícula assinam


o Protocolo de Colaboração, um acordo estabelecido entre os pais e
o diretor da escola onde o aluno será matriculado. No texto constam
as responsabilidades das partes signatárias, o que inclui metas de
desempenho, a manutenção de um portfólio de atividades realizadas
durante o ano e o compromisso da família em seguir o currículo
nacional básico de cada disciplina. O acordo pode incluir ainda o
livre acesso do estudante aos espaços de aprendizagem da escola,
como biblioteca, laboratórios e outros recursos. As provas anuais
obrigatórias e eventuais outros exames de desempenho também
devem ser realizados na escola de matrícula.
Certamente, as normas de Portugal para a prática do ensino
domiciliar não agradam nem um pouco os defensores do unschooling
(a ausência total de regras impostas pelo Estado para a educação
das crianças), possibilidade já descartada pelo Supremo Tribunal
Federal em 2018, quando julgou a constitucionalidade dessa forma de
educação. No entanto, tendo em vista as condições preestabelecidas
pela mesma corte para uma válida regulamentação do homeschooling
no Brasil, o modelo português não deixa de ser uma possibilidade
viável para o Congresso Nacional apreciar.
Já que o futuro da modalidade em nosso país depende de uma
casa legislativa na qual só avançam matérias de consenso, um texto
semelhante ao da portaria lusitana, feitas as devidas adequações,
poderia equilibrar o desejo das famílias de assumirem o protago-
nismo na educação dos filhos, sem necessidade de frequência à
escola, com a legítima preocupação de agentes públicos dedicados
à proteção de crianças e adolescentes socialmente mais vulneráveis.
A única situação inaceitável é a atual: sem lei, sem direito reco-
nhecido, sem fiscalização e com perseguição às famílias.

45
O que Nelson Mandela tem
a ver com o homeschooling
na África do Sul
Jornal Gazeta do Povo, 22 de agosto de 2020.

A
história da legalização do ensino domiciliar na África
do Sul precisa ser mais conhecida, especialmente pela
esquerda brasileira, pois explicita de forma muito intensa
e simbólica o fato de que a pauta pertence ao campo dos direi-
tos humanos. A lei que deu às famílias daquela nação a possibi-
lidade de educar seus filhos em casa foi apoiada e sancionada em
1996 por Nelson Mandela, um ícone mundial da luta contra o
racismo, que completava na ocasião dois anos como o primeiro
presidente negro do país.
No início da década de 90, a África do Sul estava em plena ebulição
social, com uma crescente revolta popular contra o regime segre-
gacionista do apartheid, que dava à minoria branca significativos
privilégios em relação aos negros, provocando frequentes situações
de violência. A questão da igualdade racial, é claro, era o principal
item nas reivindicações por mais respeito aos direitos humanos,
mas não o único. Vários temas humanitários foram abraçados pelos
HOMESCHOOLING NO BRASIL

movimentos reformistas, e foi nesse contexto que um caso concreto


envolvendo o ensino domiciliar, considerado ilegal pelo regime
segregacionista, ganhou repercussão mundial.
Em dezembro de 1993, o casal Andre e Bokkie Meintjies foi
condenado à prisão por educar os filhos em casa. Andre ficaria dois
anos na cadeia e sua mulher, um ano. Enquanto isso, seus três filhos
foram enviados para um orfanato e privados do contato com os pais.
O extremismo da decisão judicial levou entidades internacionais
dedicadas ao direito das famílias a agirem, provocando uma intensa
campanha pela libertação do casal e pelo reconhecimento jurídico
do direito de se educar os filhos em casa. A ação foi bem-sucedida
e os Meintjies foram libertados, mas chegaram a cumprir seis meses
da pena, encarcerados.
Em abril do ano seguinte, Nelson Mandela venceu a primeira
eleição multirracial na história da África do Sul e seu governo enga-
jou-se na aprovação do direito ao homeschooling. A primeira grande
conquista se deu em novembro de 1996, com o South African School
Act 84, que criou a modalidade de ensino domiciliar em seu artigo
51, no qual é determinado que as famílias optantes devem encami-
nhar a solicitação para a autoridade educacional local, permitindo
que cada província estabeleça as próprias regras. O texto afirma
que os requerentes devem seguir “os requisitos mínimos do currí-
culo adotado nas escolas públicas” e que a qualidade da educação
fornecida em casa deve seguir “um padrão não inferior ao padrão
de educação oferecida em escolas públicas”.
Cerca de um mês depois, em 18 de dezembro, o presidente
Mandela promulga a nova Constituição da África do Sul, agora
livre do apartheid. A fim de fortalecer o direito das famílias, o
homeschooling também foi incluso no novo texto constitucional.

48
JÔNATAS DIAS LIMA

Hoje, o direito de educar os filhos em casa é intocável e respei-


tado por políticos de diferentes espectros ideológicos. O número
de famílias registradas junto ao governo sul-africano que praticam
ensino domiciliar gira em torno de 30 mil.

49
A expansão do homeschooling
na Rússia de Vladimir Putin
Jornal Gazeta do Povo, 28 de novembro de 2020.

C
omo todo país que consegue superar o pesadelo do comu-
nismo, a Rússia experimenta e expande o florescer de
realidades impensáveis em seu território décadas atrás. A
liberdade de poder escolher a melhor forma de educar os próprios
filhos é uma dessas novidades que têm conquistado o coração da
população, em escala crescente. Com cerca de 120 mil estudantes
na modalidade de educação domiciliar, o país já detém o posto de
nação europeia com o maior número de alunos educados em casa.
A legitimação do direito ao homeschooling ocorreu em 2012,
como parte de uma ampla reforma educacional que deixou para
trás muito da herança soviética ainda vigente nas escolas. A lei foi
sancionada em 29 de dezembro daquele ano pelo presidente Vladi-
mir Putin, chama a modalidade de “educação familiar” e estabelece,
em seu artigo 44, que os pais ou responsáveis pelas crianças têm o
direito primário de educar e criar seus filhos, antes de qualquer outra
pessoa, cabendo também à família escolher a forma de educação
até a conclusão do ensino médio.
HOMESCHOOLING NO BRASIL

Como o texto da lei não traz uma normatização detalhada desse


direito, algumas províncias russas têm estabelecido regulamentos
próprios para a prática dentro de suas jurisdições. Em geral, as
regras incluem a exigência de matrícula numa escola à qual a família
fica vinculada por meio de um contrato, mas sem necessidade de
frequência. Esse documento prevê os exames de desempenho aos
quais o aluno precisa ser submetido, um currículo básico a ser
seguido, além de conceder à família a possibilidade de uso dos
espaços comuns, como quadras esportivas e laboratórios. Muito
semelhante, portanto, ao modelo adotado por Portugal em 2019.
Desde a sanção, uma dificuldade relatada por vários grupos de
apoio às famílias russas durante os primeiros anos de vigência da
nova lei era a de fazer os diretores de escola, menos informados e
muito acostumados com o velho sistema, acreditarem que, agora,
os pais tinham o direito de educar as crianças em casa, sem neces-
sariamente mandá-los para a escola. Há registro de casos em que
a resistência por parte das autoridades locais era tamanha que só
terminava com manifestação expressa de algum juiz, o que, graças
à lei, resultava em vitória para os pais. Para resolver esse dilema,
no início de 2020 o governo Putin emitiu um novo documento
que estabelece o procedimento para quem quer tirar os filhos da
educação escolar e migrar para a educação familiar.
O crescimento de interesse no homeschooling, contudo, não é
mensurável apenas pelo número de famílias que optam oficialmente
por essa forma de educar. A simpatia pela liberdade de escolher é
notada inclusive entre aqueles que não querem ou não podem abrir
mão da escola. Um levantamento feito em 2019, do qual participaram
13 mil russos, identificou que 33% dos entrevistados consideravam
a educação domiciliar como “mais efetiva” e “capaz de promover

52
JÔNATAS DIAS LIMA

mais aprendizado” do que a escola tradicional. A maior parte dos


que responderam ao questionário não era adepto da modalidade.
A mídia local também tem destacado um aspecto econômico
que parece ser comum em todo país que regulamenta a modali-
dade: o surgimento de empresas educacionais dedicadas a atender
especificamente famílias que educam em casa, principalmente
com plataformas digitais. A maior parte é formada por pequenos
negócios fundados por professores ou pais que oferecem currículos
complementares àquele exigido pelo Estado.
Há menções específicas a dois segmentos educacionais que
parecem ter conquistado a preferência das famílias russas: o “Classical
Conversations”, de origem evangélica, popular nos Estados Unidos,
e a pedagogia montessoriana, desenvolvida a partir dos estudos
da italiana Maria Montessori, relativamente comum em escolas
privadas, e que tem sido adaptada para a realidade homeschooler.
Conhecer melhor a ascensão da educação domiciliar na Rússia
faz bem à esperança. Se o coração da antiga União Soviética foi
capaz de superar todo o estatismo e o violento controle sobre a
liberdade das famílias, a irresponsável ausência de legislação sobre
essa modalidade no Brasil não há de durar muito. A lei virá, e com
ela, a liberdade.

53
O homeschooling pode
mesmo provocar a
falência de escolas e o
desemprego de professores?
Jornal Gazeta do Povo, 18 de julho de 2020.

O
risco de falência das escolas privadas, com o consequente
desemprego em massa dos professores, costuma ser o
cenário apocalíptico usado para assustar parlamentares
que pouco ou nada sabem sobre ensino domiciliar. Esse filme de
terror, contudo, não resiste a dois minutos de conversa honesta e
estatística. Em nenhum dos mais de 60 países onde o homeschoo-
ling é legalizado houve qualquer consequência catastrófica para os
trabalhadores ou empresários do setor educacional, pois o ensino
domiciliar, com ou sem lei, sempre é a opção de uma minoria que,
embora importantíssima para os que se importam com direitos
humanos, é irrelevante para cálculos financeiros.
A fim de desmontar mais esse mito fabricado para fins difama-
tórios, vamos aos números. Os Estados Unidos são hoje o país com
a maior quantidade de estudantes na modalidade de ensino domi-
ciliar, chegando a 2,3 milhões, segundo dados de 2017. O número
HOMESCHOOLING NO BRASIL

aparenta ser robusto, mas só se compreende sua real dimensão


quando comparado à enorme população daquele país: 329 milhões
de habitantes. Reparem, portanto, que mesmo na nação que tornou
legítima a prática de educar os filhos em casa em 1972 – há quase
cinquenta anos – a porcentagem de famílias que optam por ela nunca
deixou de ser minoritária. Comparados ao total da população, os
homeschoolers não passam de inofensivos 0,7%.
Essa proporção diminuta, aliás, é o padrão em todos os países
onde o homeschooling é permitido. O Canadá, por exemplo, tem
cerca de 60 mil estudantes na modalidade, o que representa apenas
1,5% da população. A mesma porcentagem é identificada no Reino
Unido, onde a comunidade de alunos homeschoolers chega a 100 mil.
Na Austrália, os 15 mil adeptos do ensino domiciliar representam
0,6% do total de australianos. Na Irlanda, onde os estudantes dessa
modalidade são apenas 1,1 mil, sua representatividade na população
local é de ínfimos 0,02%.
Os números falam por si, mas considero compreensível a descon-
fiança daqueles que sempre rechaçam comparações com os Estados
Unidos e outros países desenvolvidos, dado o abismo socioeconô-
mico que nos separa deles. Olhemos então para nosso vizinho, o
Chile, onde não há legislação específica sobre ensino domiciliar, mas
a própria Constituição daquele país já garante aos pais o direito de
educar em casa. Mesmo assim, poucos optam por usufruir desse
direito. Os 15 mil homeschoolers morando lá representam somente
0,7% da população.
Proporção semelhante é encontrada em outros dois países em
desenvolvimento que, assim como o Brasil, integram o bloco conhe-
cido por BRICS. Na Rússia, onde há lei sobre homeschooling desde
2012, o número de praticantes é de 100 mil (0,6% da população) e
na África do Sul, que legalizou a modalidade durante o governo de

56
JÔNATAS DIAS LIMA

Nelson Mandela, a quantidade de estudantes em ensino domiciliar


gira em torno de 30 mil, o que significa 0,5% dos habitantes.
No Brasil, a consequência mais grave da omissão do Poder Legis-
lativo em aprovar uma lei sobre a modalidade é, sem dúvida, a
injusta perseguição sofrida por famílias zelosas que aceitam correr
riscos para fazer o que consideram o melhor para seus filhos. Mas
outro efeito colateral desse erro é a ausência de números precisos.
Segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED),
o Brasil tem em torno de 15 mil estudantes que aprendem em casa,
com os pais ou tutores, mas o fato é que muitas famílias preferem
não responder a nenhum questionário sobre o tema, já que não há
lei que as proteja. O número real, portanto, é incerto. Mesmo assim,
supondo que seja o dobro do registrado, essa minoria não chegaria
nem perto de 1% da população brasileira. Talvez nem 0,5%.
Diante dessas amostras, fica evidente o quão fantasioso é o receio
de que a legalização do ensino domiciliar no Brasil possa provocar
o desemprego da classe docente ou o fechamento de escolas parti-
culares. A opção por educar os filhos em casa envolve sacrifícios
muito significativos e são poucas – talvez pouquíssimas – as famílias
dispostas a isso. São e sempre serão uma minoria. Essa condição,
porém, não justifica que continuem sendo cruelmente equipara-
das a criminosos.

57
É possível conciliar uma lei do
homeschooling e a proteção
das crianças mais vulneráveis?
Jornal Gazeta do Povo, 25 de julho de 2020.

N
os debates sobre ensino domiciliar, há uma parcela dos
que se opõem à legalização que merecem receber mais
atenção por parte dos defensores da modalidade, não
por estarem certos – não estão – mas sim porque o fundamento de
sua posição é, de fato, nobre, embora a falta de informação sobre a
realidade do homeschooling os leve a conclusões equivocadas. Essas
pessoas normalmente são vinculadas a ações sociais em comuni-
dades carentes e, ao ouvirem falar de crianças que não vão à escola
diariamente, só conseguem pensar no pior. Para quem pratica ou
estuda o ensino domiciliar, a fragilidade desse raciocínio é evidente,
mas para quem nada sabe sobre a modalidade, e é acostumado a
lidar com aquilo de pior que a miséria gera, a tragédia tende a ser
uma previsão automática ao reduzirem o assunto à sentença “criança
fora da escola”.
Tais críticos, cujo espírito de caridade é admirável, estão certos
ao apontar que a escola tradicional, apesar de todos os seus defeitos,
HOMESCHOOLING NO BRASIL

continua sendo uma instituição indispensável para muitas crian-


ças que vivem em permanente estado de vulnerabilidade social.
Com essa afirmação, ninguém está colocando em dúvida o valor
da família em relação ao Estado, mas apenas lidando com o triste
fato de que, em muitas comunidades brasileiras, crianças convi-
vem com pais, parentes e vizinhos que lhes fazem mais mal do que
bem. Estamos falando sobre consumo de drogas, falta de condições
mínimas de higiene, violência doméstica, exposição de sexo explícito
e todo tipo de abuso.
Essas mesmas pessoas, contudo, erram de várias maneiras, e
terrivelmente, ao achar que se opondo a uma lei que regulamenta
o ensino domiciliar no Brasil estariam combatendo esse tipo de
problema. O equívoco mais notório é o de generalizar, equipa-
rando famílias de perfis e realidades completamente diferentes.
Com isso, igualam cruelmente – às vezes criminosamente – os pais
zelosos e capazes com os negligentes e violentos. Por consequência,
caem no segundo erro, que é o de achar que a escola – qualquer
escola – sempre é um ambiente mais seguro e melhor para ensinar
do que a família – qualquer família. São incontáveis os exemplos
concretos que expõem o quão longe da verdade está essa tese, se
for tomada como absoluta.
Há, no entanto, um erro de consequências ainda mais nocivas
nessa linha de pensamento. Ao rejeitarem uma lei do homeschooling,
esses opositores parecem partir da ideia de que a lei é que fará existir
no Brasil famílias praticantes de ensino domiciliar. No entanto, elas
já existem e aos milhares. Mesmo que as estimativas disponíveis
apontem para algo em torno de 7 mil famílias, o número real tende
a ser muito maior.
Hoje, sem lei, o ensino domiciliar já é realidade no Brasil e
continuará sendo, pois estamos falando daquilo que há de mais

60
JÔNATAS DIAS LIMA

importante na vida desses pais e mães corajosos e dedicados: seus


filhos. Eles sacrificam um salário maior, empenham horas prepa-
rando atividades e aceitam correr o risco de gastar tempo e dinheiro
explicando à Justiça o que fazem. Estamos falando de pais e mães
muito determinados, que morreriam por seus filhos sem pensar
duas vezes. Não será uma imposição burocrática e desprovida de
razoabilidade que os fará prevaricar.
Portanto, ao decidir se votam contra ou a favor de uma lei para
o ensino domiciliar, os parlamentares, na verdade, estão decidindo
se essas famílias passarão a ter acompanhamento do Estado ou não.
Hoje, a ausência de lei faz com que aquelas que têm condições de
oferecer um ambiente melhor e uma educação mais personalizada
às suas crianças sejam colocadas na mesma conta de evasão escolar
daquelas que, lamentavelmente, não estão minimamente preocu-
padas com o desenvolvimento ou a segurança de seus filhos. Com
lei, essa distinção ficaria clara.
Convém ainda destacar que várias das propostas sobre homescho-
oling em tramitação, no Congresso Nacional e nas casas legislativas
locais, trazem consigo uma série de dispositivos que pretendem
adequadamente restringir a modalidade somente para pais “ficha
limpa”, ou seja, que não respondam por nenhum dos crimes previs-
tos no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei Maria da
Penha, por exemplo.
Portanto, a preocupação com os mais vulneráveis justifica, sim,
uma lei do homeschooling criteriosa, até exigente, que garanta o
bem-estar das crianças e adolescentes que mais necessitam de
cuidado, mas não justifica de forma alguma o rechaço total à exis-
tência de uma lei. Esse, aliás, é o comportamento que perpetuará
a omissão do Estado em identificar e punir de forma mais eficaz
quem realmente comete abandono intelectual.

61
Do PT a Bolsonaro: 15 projetos
de lei sobre homeschooling que
já passaram pelo Congresso
Jornal Gazeta do Povo, 1º de agosto de 2020.

N
a última semana de julho, algo inédito ocorreu na
longa história da luta pela legalização do homeschoo-
ling no Brasil. O Poder Executivo, por meio do líder do
governo na Câmara dos Deputados, deputado Vitor Hugo (PSL-
GO), apresentou um requerimento de urgência para o projeto de
lei 2401/2019. Trata-se da proposta de regulamentação do ensino
domiciliar desenvolvida pelo próprio governo Bolsonaro e enviada
ao Congresso Nacional em 2019. Se o requerimento for aprovado,
o projeto ganha tramitação mais célere, indo direto para o plenário
da Casa, sem a necessidade de passar pelo vagaroso caminho das
comissões que, aliás, sequer foram instaladas em 2020, devido à
pandemia do coronavírus.
É a primeira vez que um governo dá tal importância ao tema,
que tramita na casa há 26 anos. Se o tempo percorrido surpreende
alguns, o número de propostas, bem como o perfil de seus autores,
costuma resultar em surpresa ainda maior. Ao menos 15 projetos de
HOMESCHOOLING NO BRASIL

lei foram apresentados com o intuito de produzir a primeira legislação


sobre ensino domiciliar no Brasil, protocolados por parlamentares
filiados a partidos das mais variadas orientações ideológicas.
O primeiro deles após a promulgação da Constituição de 1988
foi do então deputado federal João Teixeira (PL-MT). O projeto
de lei 4657/1994 chegou a tramitar por cerca de um ano até ser
arquivado ao fim daquela legislatura, procedimento padrão para
todas as propostas cuja tramitação não for concluída até o fim do
mandato parlamentar.
Foram necessários seis anos até que a regulamentação voltasse a
ser proposta e, em 2001, o deputado Ricardo Izar (PTB-SP) proto-
colou o PL 6001/2001. Curiosamente, dois anos depois, o mesmo
parlamentar, na mesma legislatura, apresentou mais um projeto sobre
o tema, com texto idêntico ao anterior. Foi o PL 1125/2003, que foi
devolvido ao autor pela Mesa Diretora da Casa, por motivos óbvios.
No intervalo entre o original e a cópia, surgiu o PL 6484/2002, do
deputado Osório Adriano (PFL-DF), que foi apensado ao primeiro
de Izar. Ao fim daquela legislatura, ambos foram arquivados.
Em 2008, com Lula na presidência da República, foi um depu-
tado petista quem abraçou a causa da legalização do homeschooling.
Henrique Afonso, do PT do Acre, apresentou o PL 3518/2008, mas
não obteve sucesso em fazê-lo avançar. Um ano depois, outro parla-
mentar filiado a um partido de esquerda inovou ao investir não num
projeto de lei, mas sim numa proposta de emenda constitucional
(PEC). Foi o então deputado, e hoje empresário do ramo de educa-
ção, Wilson Picler (PDT-PR). Infelizmente, a PEC 444/2009 teve
o mesmo destino de propostas anteriores e foi arquivada quando
aquela legislatura acabou.
Passaram-se três anos até que o deputado Lincoln Portela (PL-MG)
colocasse uma nova proposta em tramitação, o PL 3179/2012.

64
JÔNATAS DIAS LIMA

Embora antigo, o texto tramita até hoje já que Portela foi reeleito
deputado duas vezes seguidas e pediu o desarquivamento do projeto
a cada início de novo mandato. O PL 3179/2012, aliás, é a proposta
que encabeça a comissão especial criada pelo presidente da Câmara,
Rodrigo Maia, em dezembro de 2019, com o objetivo de analisar
todos os projetos sobre ensino domiciliar na Casa. A instalação da
comissão, porém, nunca chegou a acontecer.
Ao 3179/2012 foram apensados todos os projetos que vieram
em seguida relacionados ao tema do homeschooling. É o caso do
PL 3261/2015, de autoria do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-
SP), o PL 10185/2018, do deputado Alan Rick (DEM-AC), o PL
5852/2019, do deputado Pastor Eurico (PATRI-PE), o PL 3262/2019
da deputada Chris Tonietto (PSL-RJ), o PL 6188/2019, do deputado
Geninho Zuliani (DEM-SP) e até mesmo a proposta do Poder
Executivo, que é o texto para o qual foi solicitada a tramitação em
regime de urgência.
Convém mencionar ainda os dois projetos cuja tramitação teve
início no Senado, e não na Câmara. Ambos são de autoria do atual
líder do governo na Casa, senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-
PE), e, embora os dois tratem de ensino domiciliar, têm textos e
objetivos distintos. O primeiro é o PLS 490/2017, que estabelece a
regulamentação propriamente dita e está na Comissão de Direitos
Humanos, sob relatoria da senadora Soraya Thronicke (PSL-MS). O
outro é o PLS 28/2018, que explicita no Código Penal que o ensino
domiciliar não caracteriza abandono intelectual. Este aguarda desig-
nação de relator na Comissão de Constituição e Justiça da Casa.
Diante do volume de propostas, da frequência crescente com que
foram apresentados, da conscientização dos parlamentares sobre
a injusta perseguição contra famílias educadoras e da relevância
que o tema ganhou neste período de pandemia, pode-se dizer com

65
tranquilidade que nunca houve momento mais propício e maduro
para a aprovação de uma lei do homeschooling como agora.
Estabelecer a urgência para o 2401/2019 é o primeiro passo
para colocar fim na persistente e triste omissão do Poder Legisla-
tivo acerca do tema.
Os argumentos contra o
homeschooling não justificam
rejeição à existência de lei
Jornal Gazeta do Povo, 15 de agosto de 2020.

E
m qualquer debate, audiência pública, entrevista ou semi-
nário, são sempre dois os argumentos mais frequentes dos
críticos à legalização do homeschooling para justificarem sua
posição. A suposta falta de socialização à qual estariam submetidos
os estudantes dessa modalidade e os riscos às crianças e adolescen-
tes mais vulneráveis, já que, para elas, a escola não seria apenas um
ambiente de aprendizagem, mas também de proteção social.
Por mais discutíveis que sejam os pontos levantados, penso que
os defensores do ensino domiciliar deveriam chamar a atenção para
outro aspecto, mais amplo, antes de refutá-los. À luz da razão, os dois
argumentos, por si mesmos, são incapazes de explicar o rechaço total
a uma legislação sobre o tema. Esse é um fato que precisa ser mais
exposto. No máximo, justificam o debate sobre o nível de restrições
que a lei brasileira sobre o tema deveria adotar. Aliás, essa sim é a
conversa sobre homeschooling na qual lados distintos, porém com
motivações honestas, poderiam chegar a um consenso.
HOMESCHOOLING NO BRASIL

Aos preocupados com a falta de socialização, bastaria, por


exemplo, lutar para que a lei exija das famílias adeptas da modali-
dade a apresentação periódica de evidências capazes de comprovar
que as crianças não são mantidas em reclusão, como um portfólio
de fotos e vídeos nas quais apareçam brincando com outras ou,
para atender aos mais exigentes, algum comprovante de matrícula
em cursos livres nos quais haja turmas, como escolas de inglês, de
música ou de esportes.
Nos Estados Unidos, há estados que fazem uso de soluções seme-
lhantes. Em Nova York, por exemplo, as famílias homeschoolers são
obrigadas a apresentar um plano pedagógico no qual é preciso incluir
atividades físicas praticadas coletivamente. Tudo deve ser registrado
e, posteriormente, apresentado ao órgão estatal fiscalizador.
Tenho plena consciência de que tal medida soa ridícula para os
defensores de uma legislação mais liberal, com menos Estado. No
entanto, se é algo desse tipo o que faria a oposição à lei ceder, ao
menos entre os que colocam foco na socialização, creio que seria um
aspecto negociável para as famílias mais conscientes da necessidade
de sair da clandestinidade.
No caso da necessária proteção às crianças e adolescentes social-
mente vulneráveis, a solução foi aprofundada em artigo recente,
e envolve um conjunto de dispositivos que restringiria o acesso à
modalidade somente aos pais e responsáveis que cumpram pré-re-
quisitos claros, todos com o objetivo de preservar a segurança, o
bem-estar e a aprendizagem do estudante.
Convém realçar ainda que uma lei do ensino domiciliar pode
ajudar os conselhos tutelares a priorizarem quem mais precisa, já
que, hoje, na ausência de uma legislação, famílias educadoras são
incluídas nos índices de evasão escolar. Assim, ao invés de dedicar
todo o seu tempo e energias para combater casos reais de negligência,

68
JÔNATAS DIAS LIMA

abuso e violência, os conselheiros continuam recebendo denúncias


anônimas – frequentemente motivadas por mero desafeto pessoal –
que os levam a famílias homeschoolers zelosas, capazes de apresentar
abundantes evidências de aprendizagem, socialização e bem-estar
de seus filhos. Basta conversar com conselheiros honestos para obter
deles relatos do quão constrangidos se sentem ao se deparar com esse
tipo de situação, tendo de investigar alguém obviamente inocente.
Uma lei para a modalidade, portanto, é útil para os dois lados.
No caso das famílias já adeptas, a legalização as beneficia por tirá-
-las da clandestinidade e do risco de injusta perseguição. Já aos
agentes públicos dedicados à proteção de crianças e adolescentes
vulneráveis, mesmo àqueles que não gostam do ensino domiciliar,
a lei garantiria fiscalização onde hoje não há.
O pior dos mundos para todos os envolvidos é a manutenção
do atual estado de discriminação às famílias e de completa omissão
do Poder Público.

69
Os gênios educados em casa
são a melhor propaganda
para o ensino domiciliar
Jornal Gazeta do Povo, 31 de outubro de 2020.

A
o buscar pelo termo “ensino domiciliar” nas redes sociais,
o que não falta são piadinhas maldosas de críticos sobre
a suposta incapacidade dos pais – quaisquer pais – de
ensinarem em casa, bem como memes de crianças, supostamente
educadas por suas famílias, que escrevem mal ou não sabem calcular.
Na grande maioria das vezes, tudo não passa de humor escrachado
para propagar a mentira de que o homeschooling não gera bons
resultados de aprendizagem. É claro que os divulgadores dessas
bobagens normalmente apelam para vídeos de contexto desconhe-
cido, sem dar absolutamente nenhuma garantia de que a família em
questão realmente é adepta da modalidade. Afinal, se fossem buscar
na realidade a matéria-prima para seu sarcasmo, ela os deixaria
completamente frustrados.
O mundo e a história estão repletos de gênios que foram educa-
dos em casa, pelos pais ou por professores contratados pelas famí-
lias. Alguns jamais frequentaram uma escola regular até chegar à
HOMESCHOOLING NO BRASIL

idade universitária, outros experimentaram ao longo de sua vida


estudantil, na infância e na adolescência, tanto a educação escolar
como a domiciliar.
Se para muitos o exemplo realmente vale mais que mil palavras,
tomar conhecimento sobre alguns homeschoolers famosos, que se
tornaram referências em suas áreas, pode ser um argumento mais
poderoso do que os muitos outros já apresentados neste espaço.
Comecemos pelo cientista mais famoso do último século: Albert
Einstein (1879-1955), a quem é creditada uma extensa lista de
descobertas e elaborações teóricas no campo da Física, frequentou
a escola dos 5 até os 10 anos de idade, quando seus pais decidi-
ram tirá-lo do sistema convencional e contrataram um tutor que o
ensinou em casa. O escolhido foi um estudante de medicina judeu,
chamado Max Talmud, que o instruiu nas disciplinas de matemática,
ciências e filosofia.
Thomas Edison (1847-1931), o inventor da lâmpada, foi educado
pela mãe. Ela chegou a levá-lo a uma escola por algumas semanas
quando ele tinha 7 anos, mas, segundo os biógrafos do gênio, as
professoras passaram a reclamar demais de suas frequentes inter-
rupções com perguntas durante as aulas. A história provou que o
problema não estava com o aluno.
Podemos prosseguir citando o filósofo, matemático, historiador
e crítico social Bertrand Russell (1872-1970), que foi criado pela
avó e educado por tutores, na Inglaterra, após a morte dos pais. Em
1950, venceu o Prêmio Nobel de Literatura.
Por falar na badalada premiação, outro intelectual educado
pela família que ganhou um Nobel foi Erwin Schrödinger (1887-
1961), físico austríaco de destaque nas áreas da mecânica estatística,
termodinâmica, teoria das cores, eletrodinâmica, relatividade geral,
cosmologia e física quântica. Ele estudou em casa até os dez anos.

72
JÔNATAS DIAS LIMA

É bem provável, contudo, que os implicantes reclamem do fato


de que todos esses cientistas nasceram no século XIX, quando a
educação escolar no modelo que conhecemos hoje ainda não era de
alcance universal, nem mesmo no Ocidente. A justificativa é frágil,
pois não anula o fato de que os citados foram homens influentes com
intelecto altíssimo e que não frequentaram uma escola diariamente
desde os 4 anos de idade, como se impõe no Brasil. Mesmo assim,
a lista de homeschoolers geniais e bem-sucedidos é tão extensa que
não me custaria nada citar alguns nomes mais recentes.
O canadense Willard Boyle (1924-2011), por exemplo, agra-
ciado com o Nobel de Física em 2009, é o inventor do circuito de
semicondutores de imagem, uma espécie de sensor que permitiu à
Nasa enviar imagens nítidas à Terra do espaço. Seus serviços para
a agência espacial norte-americana também lhe possibilitaram
participar da equipe que determinou onde os astronautas deveriam
pousar na Lua. Boyle era filho de um médico, foi educado pela mãe
e fez homeschooling até os 14 anos, quando entrou precocemente
para o ensino superior.
O caso da enxadrista húngara Judit Polgár, de 44 anos, é emble-
mático em muitos aspectos. Desafiando o regime comunista, que
proibia o ensino domiciliar, seu pai decidiu educá-la em casa e a
treinou no jogo de xadrez desde os cinco anos. Em 1988, ela foi
a primeira mulher do mundo a vencer o campeonato mundial
sub-12. Aos 15, ganhou o título de mais jovem Grande Mestre
Internacional de Xadrez em toda a história. Em 2002, venceu o
número 1 do mundo, Garry Kasparov, e permaneceu nas listas de
melhores enxadristas do planeta até anunciar seu afastamento dos
campeonatos, em 2014, para dedicar-se aos filhos.
No entanto, se alguém quiser um exemplo mais atual ainda, o
melhor nome talvez seja o do canadense Erik Demaine, 39 anos,

73
professor de ciência da computação no MIT (Massachusetts Insti-
tute of Technology), nos Estados Unidos. Ele passou a infância
viajando por toda a América do Norte com seu pai, um escultor e
matemático por quem foi educado na modalidade de homeschoo-
ling até entrar na universidade, aos 12 anos. Concluiu a graduação
dois anos depois, aos 14. Aos 20, recebeu seu primeiro diploma de
doutorado. Atualmente, acumula dezenas de prêmios concedidos
por instituições do Canadá e dos Estados Unidos.
Encerro a lista por aqui para não deixá-la extensa demais, mas
claro que não esgotei os exemplos que poderiam ser dados. Agora,
contudo, o leitor tem uma opção a mais do que fazer quando se
deparar com piadas infundadas sobre homeschooling nas redes
sociais: mostre esse artigo para o autor da insensatez e ajude-o a
sair do poço de ignorância no qual se encontra.
Campeões e artistas:
quando o ensino domiciliar
favorece o talento
Jornal Gazeta do Povo, 7 de setembro de 2020.

N
o artigo anterior, conhecemos alguns exemplos de verda-
deiros gênios, como intelectuais, cientistas e invento-
res, que fizeram a diferença em suas áreas de atuação
e foram alunos de homeschooling na infância ou adolescência. É
claro, contudo, que nem todo estudante é fascinado pelo mundo da
ciência, o que não os torna de forma alguma alunos inferiores. Esse
é outro aspecto do ensino domiciliar que merece destaque. Sem a
típica preocupação das escolas tradicionais em nivelar toda uma
turma mirando nos mesmos resultados, o homeschooling oferece
um terreno mais fértil para que talentos individuais floresçam e se
desenvolvam com muito mais liberdade e apoio. É por isso que há
tantos exemplos de atletas e artistas que foram educados em casa.
O caso de Maria Sharapova, o fenômeno russo do tênis, encaixa-
-se com perfeição na situação descrita. O gosto pelo esporte surgiu
cedo e aos 9 anos a atleta já frequentava uma das mais prestigiadas
academias esportivas dos Estados Unidos. Nesse período ela ainda
HOMESCHOOLING NO BRASIL

estudava numa escola comum, mas, aos 11, o talento da garota


tornou-se ainda mais notável, levando seus pais a decidirem que
ela precisava de mais tempo disponível para dedicar-se ao esporte
que amava e que poderia lhe dar um futuro promissor.
A história mostra que acertaram em cheio. A partir dessa idade,
Maria passou a ser educada em casa, pela mãe. O ensino perso-
nalizado e a carga horária flexível foram fatores fundamentais
para que ela se dedicasse mais aos treinos. Assim, aos 13 anos,
ela ganhou seu primeiro campeonato mundial e sua ascensão no
tênis não parou mais.
Ainda no tênis, os pais das campeãs Venus e Serena Williams
fizeram uma opção diferente. Ambas foram homeschoolers durante
toda a infância, período no qual houve grande dedicação ao esporte.
Elas só passaram a frequentar uma escola quando atingiram a idade
de ir para o high school.
Já para Sage Kotsenburg, a escola nunca esteve em sua trajetória.
Medalha de ouro em snowboard nas Olimpíadas de Inverno de
2014, em Sochi, Rússia, o atleta que hoje tem 27 anos fez ensino
domiciliar a vida toda, por meio da Alpha Omega Academy (AOA),
uma escola online cristã que presta suporte para famílias homes-
choolers dos Estados Unidos e de outros países onde a modalidade
é reconhecida. Após a conquista do ouro olímpico, Kotsenburg fez
questão de mencionar a instituição nas entrevistas que concedeu:
“A AOA me deu a oportunidade de aproveitar experiências de vida
que uma sala de aula tradicional nunca poderia me dar”, disse o
campeão, referindo-se principalmente à flexibilidade que essa forma
de educação garante.
No mundo do cinema, já falamos em outro texto sobre a relação
de Ryan Gosling e Emma Watson com o ensino domiciliar, mas a
lista de celebridades que foram educadas em casa inclui também

76
JÔNATAS DIAS LIMA

Whoopi Goldberg, a atriz que encantou o mundo com suas perfor-


mances em filmes como Mudança de Hábito e Ghost. Quando
pequena, ela foi diagnosticada com dislexia, o que influenciou na
decisão da família de optar pela educação domiciliar. Sua condição,
contudo, não a impediu de se tornar uma das atrizes mais bem
sucedidas de Hollywood.
Histórias como a dela são tão inspiradoras que motivam até
aqueles que não foram educados por homeschooling a adotarem
a modalidade. O astro Will Smith fez essa opção com seus filhos
Willow e Jaden. Desde 2001, ele e a esposa, a também atriz Jada
Pinkett Smith, educam seus filhos em casa com o auxílio de um
grupo de famílias amigas, todas adeptas do ensino domiciliar. Numa
entrevista concedida em 2005 à revista People, Jada afirmou que
tomou a decisão de não colocá-los numa escola porque considerava
as escolas norte-americanas, tanto públicas como privadas, “feitas
para a era industrial” e que gostaria de ver seus filhos aprendendo,
não apenas memorizando.
Um caminho semelhante é seguido por Mayim Bialik, a Amy
da famosa série de TV The Big Bang Theory. Entusiasta do ensino
à distância, ela chegou a gravar um vídeo, patrocinado por uma
plataforma de cursos online, no qual conta por que escolheu o
homeschooling para seus filhos. Em sua fala, ela desmonta vários dos
clichês repetidos à exaustão para atacar a modalidade, em especial
no que diz respeito à socialização.
Os citados até aqui são apenas algumas das celebridades cuja fama
chegou ao Brasil, mas, aos mais aficionados por listas, informo que
há dezenas de sites na internet que reúnem exemplos de famosos
educados em casa ou que adotaram o homeschooling com seus filhos.
Entre eles, o que há em comum é a certeza de que essa é a forma de
educação que mais respeita os talentos individuais de cada criança.

77
Por falta de lei, o Estado não
sabe nada sobre o ensino
domiciliar brasileiro
Jornal Gazeta do Povo, 5 de setembro de 2020.

Q
uantas famílias são adeptas do ensino domiciliar no
Brasil? Essa com certeza é a pergunta mais frequente em
qualquer reunião com autoridades e parlamentares que
se deparam com o tema pela primeira vez. A resposta, contudo, é
de uma inexatidão frustrante para todos os envolvidos na questão,
desde as entidades que gostariam de ajudar o maior número possível
de famílias educadoras até aqueles opositores que querem criticar
a modalidade com mais fundamento. Hoje, tudo o que temos são
estimativas. Não há nenhum número oficial obtido por levantamento
do Poder Público, e isso é culpa da ausência de lei.
Atualmente, o ensino domiciliar no Brasil é um fato social óbvio,
com milhares de adeptos. Há comunidades de famílias que promo-
vem eventos, produzem material didático, formalizam associações
e atuam junto às casas legislativas, pedindo urgência na regulamen-
tação. Há ainda personalidades que atuam no campo cultural, agre-
gando multidões de seguidores nas redes sociais e compartilhando
HOMESCHOOLING NO BRASIL

suas práticas mais bem-sucedidas. A demanda é tão real e crescente


que, só nos últimos dois anos, apenas para citar alguns dos fatos
mais relevantes: o Supremo Tribunal Federal teve de se manifestar
sobre a questão em plenário; foi criada uma frente parlamentar
na Câmara dos Deputados dedicada exclusivamente à defesa do
homeschooling, com 240 congressistas – quase a metade da Casa;
o governo federal encampou o tema, enviando para o Congresso
Nacional seu próprio projeto de lei; e propostas de regulamentação
se multiplicaram num ritmo impossível de ser acompanhado com
precisão nos estados e municípios.
Quantas realidades sociais com essas mesmas características
encontram-se nesta mesma situação, na qual o Poder Público não
dispõe de nenhum dado oficial sequer? Pois esse é o absurdo ponto
ao qual chegamos devido à omissão do Legislativo em regulamentar
a prática. No papel, não havendo lei, pode-se dizer que o ensino
domiciliar nem existe, o que impede, por exemplo, que se inclua
uma pergunta sobre o tema no Censo do IBGE, ou que se permita
ao Ministério da Educação fazer esse levantamento. No mundo
real, contudo, há grupos de pais e mães cada vez mais organizados
e motivados a proteger sua escolha, que é a de educar os próprios
filhos em casa, nem que para isso sejam injustamente perseguidos
pelo Estado ou obrigados a deixar o país.
Os únicos números disponíveis sobre ensino domiciliar no Brasil
hoje são os apresentados pela Associação Nacional de Educação
Domiciliar (ANED) com base numa coleta de informações feita
em 2016, na qual se chegou ao número de 7.500 famílias ou apro-
ximadamente 15 mil estudantes. No entanto, a própria entidade
reconhece que o número tende a ser bem maior, já que é grande a
quantidade de famílias que se recusa a responder qualquer ques-

80
JÔNATAS DIAS LIMA

tionário sobre o assunto, dado o histórico de perseguição contra a


modalidade que foi disseminado no país.
Muitos pais e mães zelosos, responsáveis e capazes optam por
se esconder, já que não confiam na desejada sensatez de um even-
tual conselheiro tutelar, promotor ou juiz que venha a tratar de seu
caso. Enquanto não houver segurança jurídica para se exporem,
continuarão agindo como se vivêssemos num regime autoritário,
no qual o Estado obriga todos os pais a educarem seus filhos num
único modelo permitido. Estão errados em seus temores?
Só existe uma forma de acabar com essa cegueira estatal, essa
completa ignorância do Poder Público a respeito do ensino domici-
liar brasileiro: dando à modalidade uma lei. Só depois disso, e com
as consequentes pesquisas por parte dos órgãos competentes para
a tarefa, é que se poderá falar com mais consistência sobre o perfil
de quem opta por essa forma de educação, suas motivações e suas
necessidades. Da mesma forma, só com esses dados é que se poderia
falar com seriedade a respeito do impacto que o ensino domiciliar
tem no setor de escolas privadas ou na valorização da classe docente.
Sem lei, não há números confiáveis. Sem números confiáveis, a
maior parte do que se diz sobre essas questões é mero palpite.

81
Famílias homeschoolers:
a minoria desprezada por
defensores de minorias
Jornal Gazeta do Povo, 12 de setembro de 2020.

C
onforme mostrado estatisticamente em artigo anterior,
as famílias adeptas do ensino domiciliar são minoria
em qualquer país do mundo, inclusive naqueles onde a
modalidade é permitida há décadas. Há, portanto, evidências mensu-
ráveis para se afirmar que educar os filhos em casa, sem levá-los
diariamente para uma escola, é sempre a opção de poucos. Esse fato,
somado à perseguição que enfrentam, à falta de apoio do Estado e
ao preconceito contra o qual lutam, torna possível enquadrar com
perfeição essa parcela da sociedade no já clássico conceito de minoria
social. Apesar disso, constata-se com facilidade que poucos grupos
são tão desprezados – e às vezes odiados – por supostos defensores
de minorias como o das famílias homeschoolers.
Parte dessa contradição pode ser explicada pela crença em este-
reótipos ideológicos desprovidos de sólido fundamento. Para a
militância progressista mais dependente de aceitação no meio em
que escolheu atuar, homeschooling é pauta conservadora, portanto
HOMESCHOOLING NO BRASIL

deve ser combatida. As justificativas para tal posição vêm depois da


decisão tomada. Se a causa afeta direitos humanos fundamentais, isso
não chega a gerar grande constrangimento, já que, automaticamente,
esse aspecto passa a ser visto como periférico e administrável pelos
produtores de narrativas.
Não há boas condições de diálogo com quem pensa dessa forma,
pois não é a razão o que norteia suas ações. Entre os autênticos defen-
sores de minorias, contudo, há os mais sensatos: os que não aderem
nem confrontam de forma robótica conjuntos de causas previamente
rotuladas. Para esses, que sentem legítima compaixão por quem tem
direitos negados, é preciso expor mais a realidade diária das famílias
educadoras, enquanto minoria indefesa e desprezada.
Diferente da comunidade negra, de grupos LGBT ou de coletivos
feministas, as famílias adeptas do ensino domiciliar não podem
simplesmente organizar grandes e vistosas marchas com pautas
de reivindicações. Algumas até o fazem em certa medida, mas
têm consciência de que, no dia seguinte, podem ser denunciadas a
agentes públicos dispostos a infernizar suas vidas, aproveitando-se
da omissão do Poder Legislativo em regulamentar a modalidade.
As denúncias contra famílias homeschoolers, sob a absurda acusa-
ção de “abandono intelectual”, são uma constante faca no pescoço
de quem tem coragem – ou petulância, para os críticos – de pedir
reconhecimento de direitos. Ameaçadas, muitas optam por uma
vida de reclusão e invisibilidade social ou saem do país.
Por serem uma minoria numericamente pequena, inclusive entre
minorias, as famílias educadoras também são incapazes de garantir
um volume de votos atraente para políticos motivados por cálculos
eleitorais. Além disso, não há nenhuma grande fundação, instituto
ou ONG com fartos recursos financeiros que tenha abraçado sua
causa até agora. A ausência desses fundos costuma ser um fator a

84
JÔNATAS DIAS LIMA

mais para parlamentares e outras autoridades eleitas desdenharem


o tema, pois o atendimento da demanda não vai lhes render grande
prestígio, nem convites para palestrar em eventos glamourosos, nem
amizades convenientes que, quem sabe, resultem num eventual
financiamento de campanha no futuro.
A única alternativa restante para as famílias homeschoolers é o
velho – e nem sempre eficaz – convencimento das consciências.
No caso da dos políticos, uma a uma. Não há truque, nem lobby
poderoso, nem celebridades influentes por trás dessa minoria.
Apenas pais e mães sofrendo, que gostariam de viver suas vidas sem
ter medo do que o vizinho ou algum desafeto pode fazer contra a
paz de seus lares.

85
No caso do homeschooling,
regulamentação é liberdade
Jornal Gazeta do Povo, 19 de setembro de 2020.

F
requentemente, aqui neste espaço ou nas redes sociais,
após a publicação de algum artigo no qual eu defenda a
urgência da regulamentação do homeschooling, surgem
manifestações contrárias, mas não apenas de críticos do ensino
domiciliar. Algumas famílias já adeptas da modalidade e outros
entusiastas que se apresentam como libertários repudiam a inicia-
tiva, pois consideram que isso seria “mais Estado” e que uma lei
colocaria “amarras” na liberdade das famílias. Apesar da clara boa
intenção, os dois grupos estão, na verdade, atrasados no debate.
Tais argumentos seriam consideráveis dois anos atrás, antes do
julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), mas desde que a
Corte falou, tudo mudou.
Antes do julgamento de 2018, fazia sentido falar em limbo jurídico
e cogitar que a prática não dependia de lei específica para ser aceita
como legítima, pois o que havia era uma disputa de interpretações
envolvendo o texto da Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases, o
Estatuto da Criança e do Adolescente e tratados internacionais assi-
nados pelo Brasil. Os casos de famílias educadoras que chegavam à
HOMESCHOOLING NO BRASIL

Justiça eram julgados isoladamente, com resultados muito variados,


dependendo sobretudo da sensibilidade e sensatez do juiz.
No entanto, com o julgamento em plenário por parte do STF,
e principalmente após a publicação do acórdão referente ao julga-
mento, o que ocorreu em março de 2019, a situação do ensino
domiciliar no Brasil ficou bastante clara. Os ministros decidiram
que a modalidade é compatível com a Constituição, sob determi-
nadas condições. A mais importante delas é a de que haja lei que a
regulamente. É essa a decisão que qualquer juiz, em todo o Brasil,
obedece ao ter de julgar uma família denunciada.
Portanto, já não faz o menor sentido dizer que, com a lei do
homeschooling, o Estado entrará em nossas casas e aumentará seu
poder opressor sobre as famílias. No Brasil, ele já entrou e já tem
um poder enorme, ao ponto de dizer que todo pai e mãe é obrigado
a enviar os filhos para a escola todos os dias, mesmo contra sua
vontade, mesmo que a família apresente todas as evidências possíveis
de que poderia fornecer condições de aprendizagem e socialização
melhores se fossem eles próprios a assumir o protagonismo educa-
cional de suas crianças e adolescentes.
A decisão do STF foi fatal para qualquer interpretação mais liberal
de nossa legislação sobre o tema. Se em outras áreas a ausência de
regulamentação é desejável, por ser uma condição que favorece
certa liberdade, no caso do ensino domiciliar, após o julgamento,
a existência de lei se tornou a única saída para garantir o direito
de educar em casa.
É bem verdade, contudo, que podia ter sido pior. O STF poderia
ter destruído qualquer esperança para as famílias adeptas da moda-
lidade naquele julgamento, afirmando que o ensino domiciliar
é inconstitucional, mas não o fez. Escolheu passar a bola para o
Legislativo, mantendo um pouco de luz no fim do túnel, mas não

88
JÔNATAS DIAS LIMA

sem consequências drásticas para aqueles pais e mães que já haviam


aderido à educação em casa.
Após um período em que todos os processos foram suspensos
até que o julgamento ocorresse, as ações voltaram a andar e uma
nova temporada de caça às famílias homeschoolers voltou com toda
a força, motivada, sobretudo, por agentes públicos obstinados em
fazer o tema morrer no Brasil. Ao que tudo indica, fracassaram
nessa tarefa, mas a lei ainda não veio e a perseguição não acabou.
Quando se tem conhecimento de todo esse quadro, é impossível
invocar o mantra de que “sem lei é melhor” em pleno uso da razão.
Só a lei permitirá às crianças e adolescentes educados por homes-
chooling usufruírem dos mesmos direitos que os estudantes escolares
já têm, como certificação, por exemplo. Só a lei fará as famílias educa-
doras pararem de ser tachadas como infratoras, por terem coragem
de fazer o que consideram melhor para seus filhos, mesmo tendo
de enfrentar uma situação bizarra de clandestinidade, produzida
pela omissão de parlamentares. Só a lei dará a todos que educam em
casa condições reais de falar para seus vizinhos, colegas de trabalho
e familiares sobre o quão felizes estão com a opção que fizeram,
sem receio de que essas mesmas pessoas os denunciem por suposto
abandono intelectual no minuto seguinte à conversa.
Já não há outra saída. No Brasil, a liberdade para as famílias
homeschoolers só será obtida com lei.

89
Esquerda a favor do
homeschooling? Ela existe e é
mais comum do que parece
Jornal Gazeta do Povo, 10 de outubro de 2020.

T
odos que se interessam por ensino domiciliar (homescho-
oling), ainda que não o pratiquem, em algum momento
assistiram ou assistirão ao filme Capitão Fantástico (2016),
estrelado por Viggo Mortensen – o Aragorn de O Senhor dos Anéis – e
que retrata a história de um casal que decidiu se afastar da sociedade
e criar sua família no meio da mata. Tiveram seis filhos e nenhum
deles foi para a escola – foram educados pelos próprios pais. Mesmo
assim, receberam uma educação superior à oferecida em muitas
escolas, como o filme faz questão de destacar em várias cenas.
Quem para por aí na sinopse pode acabar supondo que se trata de
uma obra conservadora – afinal, trata-se de uma família numerosa
adepta do ensino domiciliar –, mas estaria completamente errado.
A família se afasta da sociedade por considerar que o modo de vida
capitalista é nocivo. O autor preferido do pai é Noam Chomsky,
filósofo socialista a quem celebram em substituição ao Natal. O
cristianismo, aliás, é alvo frequente de sarcasmo e o filho mais velho,
HOMESCHOOLING NO BRASIL

em certo momento, admite ao pai que deixou de ser trotskista e


agora se declara maoísta.
Não pretendo enaltecer o filme com esse relato, mas penso que
o enredo ilustra muito bem o quão equivocado é rotular o ensino
domiciliar como “pauta da direita”. Na verdade, nem sequer é preciso
apelar ao cinema para fundamentar essa afirmação. A história
recente do homeschooling no mundo está repleta de “progressistas”
que defendem a modalidade. Alguns, aliás, até foram educados
por esse método.
No Brasil, penso que o caso mais simbólico é o de Luís Roberto
Barroso, ministro do STF, frequentemente acusado de praticar
ativismo judicial em favor de pautas como aborto e ideologia de
gênero. Indicado ao cargo pela petista Dilma Rousseff, é impossível
vinculá-lo ao conservadorismo. Mesmo assim, Barroso assumiu o
papel de defensor da constitucionalidade do ensino domiciliar no
julgamento sobre o tema, em 2018, e proferiu o voto mais positivo
de todos em favor das famílias homeschoolers. E não foi só isso. Na
condição de relator da ação, em 2016, ele suspendeu todos os proces-
sos movidos no Brasil contra famílias que educavam em casa, até
que o plenário julgasse o assunto. Com isso, deu a centenas de pais
e mães quase dois anos de paz para que prosseguissem educando
seus filhos da forma como considerassem melhor.
Saindo do Judiciário para o Legislativo, convém lembrar que um
dos 15 projetos de lei sobre ensino domiciliar que já passaram pelo
Congresso Nacional foi de autoria de um deputado federal do PT.
Trata-se de Henrique Afonso (PT-AC), que protocolou a proposta
em 2008, durante o segundo mandato do presidente Lula. Aliás, a
atual Frente Parlamentar em Defesa do Homeschooling não é formada
só por bolsonaristas e conservadores. Entre os 240 parlamentares
signatários, há deputados do PT, do PSB, do PDT e até do PCdoB.

92
JÔNATAS DIAS LIMA

Ainda na política, temos o caso de Rafael Correa, ex-presidente


do Equador, um bolivariano assumido, aliado de Hugo Chávez,
Fidel Castro e Evo Morales. Após convocar uma Assembleia Cons-
tituinte, Correa colocou o direito ao ensino domiciliar no texto da
Constituição, em 2008, e normatizou a prática em 2013.
No mundo das celebridades, podemos citar Emma Watson, a
atriz que ficou famosa como a Hermione, de Harry Potter, e que hoje
desponta como garota-propaganda do feminismo global. Emma foi
aluna homeschooler, educada por tutores contratados por seus pais.
Eles a acompanhavam durante os longos períodos de gravação, já
que sua carreira de atriz teve início aos dez anos de idade, quando
ela saiu do sistema escolar tradicional.
Ainda em Hollywood, falemos também de Ryan Gosling, o prota-
gonista do musical La La Land, indicado ao Oscar de melhor ator em
2017 e um dos principais apoiadores do democrata Bernie Sanders
nas duas últimas tentativas do esquerdista em disputar a presidência
dos Estados Unidos. Também aos dez anos, ele parou de ir à escola
porque sua mãe estava preocupada com o bullying que o garoto
sofria. Desde então, foi educado por meio do ensino domiciliar.
Como esses, há numerosos outros exemplos, mas espero que os
mencionados sejam suficientes para convencer parlamentares de
esquerda de que não estarão traindo seu espectro ideológico se deci-
direm, com base na razão e na própria consciência, por votar a favor
do ensino domiciliar. Trata-se de uma pauta de direitos humanos e,
por mais variadas que sejam as definições do que é esquerda polí-
tica, nenhuma delas se opõe à proteção de minorias perseguidas e
discriminadas. Exatamente o caso das famílias homeschoolers.

93
Por que a pandemia fez o
interesse por homeschooling
crescer tanto no mundo todo
Jornal Gazeta do Povo, 24 de outubro de 2020.

M
uito já foi escrito na imprensa nacional e internacional
sobre as consequências permanentes que a pandemia
deixará no mundo, como a massiva adesão de empre-
sas ao home office e o hábito de fazer videoconferências. No que
diz respeito ao homeschooling, contudo, só agora começam a surgir
dados mensuráveis de como cresceu o interesse das famílias por
educar em casa. Infelizmente, essas informações não são do Brasil,
pois, conforme aprofundei em artigo anterior, graças à ausência de
lei, o Estado brasileiro padece de uma ignorância quase completa
sobre esse fato social em seu próprio território.
Os dados mais precisos, como sempre, vêm dos Estados Unidos,
onde a modalidade é legalizada há 48 anos e onde coexistem dezenas
de legislações diferentes sobre a mesmo tema, variando de estado
para estado. De acordo com o National Home Educators Research
Institute (NHERI), uma das principais entidades de pesquisa relacio-
nadas ao homeschooling no país, o aumento nos pedidos de registro
HOMESCHOOLING NO BRASIL

como família adepta de ensino domiciliar é enorme. Se no último


levantamento o número de estudantes homeschoolers no país era
de 2,5 milhões, a previsão é de que neste ano o resultado seja, pelo
menos, 10% maior.
Só no estado de Nebraska, por exemplo, o número de famílias
educadoras cadastradas junto às autoridades estaduais era de 2.800
antes da pandemia. Em julho, esse número já havia saltado para
3.400. Lembrando que estamos falando de homeschooling mesmo, e
não do ensino remoto improvisado, ao qual os estudantes escolares
tiveram de se submeter em todo o mundo.
Outra entidade, a National Home School Association, relatou a
uma reportagem da Associated Press que chegou a receber 3.400
pedidos de informação sobre a modalidade em um único dia. Antes
do coronavírus, a média era de 20 mensagens diárias.
No Reino Unido, a realidade é a mesma. Uma pesquisa feita
em março revelou que o número de estudantes educados em casa
cresceu 119% em relação ao mesmo período do ano anterior. Notí-
cias muito semelhantes tratam do mesmo fenômeno ocorrendo na
Austrália e na África do Sul.
As causas para o crescimento são fáceis de deduzir, mas também
constam nas pesquisas citadas acima. Ocorre que durante a pande-
mia, ainda que tenham sido obrigados a se isolar com os filhos
em casa, pela primeira vez muitos pais tiveram a oportunidade
de encarar o desafio de ensinar por conta própria, usando como
auxílio apenas recursos digitais. Para alguns foi terrível, mas para
outros, uma grata surpresa, pois perceberam que conseguem e que
os filhos gostaram. Em muitos casos, aliás, as famílias constataram
que os resultados em aprendizagem foram objetivamente melhores
do que aqueles que costumavam ver quando confiavam apenas no
sistema escolar.

96
JÔNATAS DIAS LIMA

Há também uma outra motivação, esta sim diretamente vinculada


ao atual contexto, e que tem aparecido com frequência em questio-
nários sobre esse súbito aumento de interesse pelo homeschooling.
Com o retorno gradual das aulas presenciais, mesmo antes de uma
vacina que imunize a população, muitos pais temem que seus filhos
sejam infectados pela Covid-19. Apesar das inúmeras promessas de
precaução feitas pelas autoridades públicas, nem todas as famílias
estão dispostas a apostar a saúde ou a vida de seus filhos com base
nas falas de políticos. Preferem abrir mão de uma renda, sacrificar
seu tempo e empenhar esforços inéditos, assumindo o protagonismo
na educação de suas crianças.
Trata-se de um direito que, ao menos segundo a legislação vigente,
os pais e mães brasileiros ainda não têm, e os principais culpados
disso são os parlamentares do Congresso Nacional, em especial
aqueles que controlam a pauta de votações. Por motivos obscuros,
esses senhores insistem em prolongar sua irresponsável omissão
em regulamentar a modalidade.

97
Lei do homeschooling
ajudaria a resolver impasse
da volta às aulas
Jornal Gazeta do Povo, 27 de fevereiro de 2021.

C
omo era previsível, a tentativa de retorno às aulas presen-
ciais em todo o Brasil está longe de ocorrer com segurança
e tranquilidade. Alguns estados e municípios chegaram a
retomar as atividades escolares, mas tiveram que cancelar a medida
dias depois por causa de decisões judiciais ou, mais recentemente,
por causa da explosão de novos casos de Covid-19 registrados após
o Carnaval. Com essa constatação não quero tomar partido nesse
debate, mas sim apontar para um fator esquecido por quase todas
as autoridades envolvidas e que, se não daria fim ao problema, com
certeza amenizaria a angústia dos pais que temem pela contami-
nação dos filhos.
Se a educação domiciliar estivesse legalizada em todo o país, esta
seria a escolha óbvia de muitos pais e mães dispostos a fazer tudo
que for preciso para proteger suas crianças da doença, o que inclui
abrir mão de uma renda para dar conta do acompanhamento. Para
HOMESCHOOLING NO BRASIL

alguns, seria uma opção temporária, para outros, definitiva, mas o


importante é que seria uma opção.
Hoje, ela não existe, e se algum pai ou mãe revela o desejo de
tirar o filho da escola para educá-lo em casa, imediatamente é aler-
tado, por vezes em tom de ameaça, de que a instituição acionará o
Conselho Tutelar. Essa cena tem se tornado especialmente frequente
nas escolas privadas, que passam por uma grave crise financeira e,
ao que parece, têm apelado a tudo para não perder mais alunos.
Se o direito à educação domiciliar estivesse em vigor hoje no
Brasil, prefeituras e governos estaduais poderiam contar com redução
na demanda por vagas em escolas públicas que, agora, fazem mala-
barismos para garantir distanciamento de alunos em salas de aula.
Certamente, um drama comum enfrentado por muitos diretores
é como colocar de 25 a 40 estudantes numa sala, garantindo um
metro de distância entre carteiras que, até o início de 2020, eram
praticamente grudadas umas nas outras?
É importante esclarecer que quando me refiro à educação domi-
ciliar, estou tratando da modalidade que garante aos pais o direito
de assumir o protagonismo na educação formal de seus filhos, e não
ao ensino remoto escolar, cheio de limitações, adotado de improviso
pela maioria dos municípios em 2020 e que, inevitavelmente, em
algum momento, seria extinto com o retorno presencial dos alunos,
mesmo que as condições sanitárias objetivas para o retorno sejam,
no mínimo, discutíveis. É nessa etapa que estamos.
Contudo, aqueles pais que não querem nem correr o risco de
ver seus filhos entrando saudáveis, mas saindo infectados de uma
sala de aula, não têm o direito de educá-los da forma como consi-
deram mais seguro. Ainda que algumas redes e instituições tenham
aberto a possibilidade de os pais escolherem se seus filhos voltam ao
sistema presencial ou permanecem no remoto, o direito de educar

100
JÔNATAS DIAS LIMA

em casa ainda lhes é negado. A única escolha que podem fazer é


entre correr o risco de contaminação ou aceitar aulas monótonas
e improdutivas por videoconferência. A opção de os próprios pais
fornecerem aulas melhores, por si mesmos, é rechaçada pelo Estado.
Não é segredo para ninguém no meio educacional o quanto
o ensino remoto imposto pelas redes de ensino, especialmente
nas redes públicas, em muitíssimos casos é de baixa qualidade
e resulta em fraco desempenho. O número de professores aptos
ao desafio das videoaulas, sejam gravadas ou ao vivo, é pequeno.
Muitos estão aderindo a contragosto, por mero receio de represálias,
portanto sem motivação.
Mesmo assim, sem lei do homeschooling, é a esse ensino que as
famílias são obrigadas a sujeitar seus filhos. Moramos num país que
coage os cidadãos a aceitarem educação ruim e processa aqueles
que se atrevem a fazer diferente, alegando “abandono intelectual”.
É um cenário insano.

101
O bom momento político
para aprovação do
ensino domiciliar
Jornal Gazeta do Povo, 26 de setembro de 2020.

N
ão existe uma fórmula infalível capaz de prever quando
e se uma proposta sobre homeschooling será aprovada
pelo Congresso Nacional, mas, na grande maioria das
votações bem-sucedidas, alguns elementos políticos estão sempre
lá. É por isso que qualquer analista atento e honesto que se dê ao
trabalho de investigar as chances de sucesso da regulamentação do
ensino domiciliar no Brasil, hoje, dará uma resposta otimista às
famílias que aguardam pela lei com tanta ansiedade.
Vários desses elementos reveladores puderam ser constatados
no Simpósio Online sobre Ensino Domiciliar ocorrido na última
terça-feira (22) na Câmara dos Deputados. Promovido pela Frente
Parlamentar em Defesa do Homeschooling, o evento deu voz, prin-
cipalmente, aos parlamentares, e com isso expôs o consenso em
torno da urgência do tema na Casa.
Fator essencial para a celeridade na tramitação de matérias que
dependem do plenário é a anuência de líderes partidários. No simpó-
HOMESCHOOLING NO BRASIL

sio, três participaram na condição de palestrantes. Paulo Ganime


(Novo), Enrico Misasi (PV) e Ricardo Barros (PP), líder do governo.
Este último, aliás, foi quem fez as afirmações mais assertivas no
que diz respeito à prioridade que o governo Bolsonaro dá ao tema.
“Eu acredito que as famílias que desejam utilizar essa forma de
educar os filhos, que não é inovadora, que já existe em outros países,
terão a oportunidade de assim fazê-lo”, afirmou Barros, que fez
questão de comparecer pessoalmente ao evento, mesmo havendo a
possibilidade de participar de forma remota. Em seguida, comple-
tou: “É nossa obrigação legislar para estabelecermos regras que a
sociedade brasileira ache adequadas, por meio de sua representação
no Congresso Nacional”.
A fala de Barros merece destaque. O deputado não pertence
à ala dos parlamentares explicitamente vinculados à bandeira do
homeschooling. Ele estava lá na condição de líder do governo, cargo
ao qual foi recentemente alçado, em muito, devido à sua reputação
como alguém que entrega resultados. Condição semelhante à de
Arthur Lira, líder do PP e candidatíssimo à sucessão de Rodrigo
Maia na presidência da Câmara dos Deputados. Não há registro de
que Lira já tenha usado a tribuna ou suas redes sociais para falar em
defesa do ensino domiciliar; mesmo assim, a força de sua assinatura
foi fundamental para tornar válido e agregar apoio ao requerimento
de urgência apresentado em julho pelo então líder do governo, o
deputado Major Vitor Hugo. O fato de dois gigantes da articulação
política adotarem publicamente ações que favorecem o avanço da
matéria é um sinal muito promissor para as famílias educadoras.
Por falar em Vitor Hugo, ex-líder do governo e amigo do presi-
dente Bolsonaro, o deputado também fez uma revelação animadora
durante sua fala. Segundo o relato, três semanas antes de sair da
liderança do governo, o deputado se encontrou com Maia, falou

104
JÔNATAS DIAS LIMA

sobre a pauta do homeschooling, e o presidente da Câmara, por sua


vez, “sinalizou positivamente para essa votação”. Poucos dias antes
do evento, uma reportagem da Folha de S. Paulo confirmava a boa
vontade do parlamentar carioca com o tema, para quem o assunto
“não é restrito à pauta de costumes”.
Ao conjunto de fatores que tornam o momento político para o
homeschooling muito oportuno soma-se o tamanho da frente parla-
mentar criada em 2019 especificamente para apoiar o tema. Presidida
pelo deputado cearense Doutor Jaziel (PL), o total de signatários
da frente chega a 240 deputados – maior, portanto, do que a frente
evangélica, com 195, e quase equivalente à frente ruralista, com 243.
Por fim, a mais recente boa notícia para as famílias perseguidas,
que aguardam por uma lei capaz de tirá-las da clandestinidade, são
os índices de popularidade do governo do presidente Bolsonaro. De
acordo com a CNI-Ibope4, o número de brasileiros que consideram
a atual gestão boa ou ótima subiu para 40% ante os 29% registrados
em dezembro. Tradicionalmente, um governo popular tende a atrair
a adesão dos parlamentares para suas pautas, e homeschooling é
pauta do governo Bolsonaro.

4  Metodologia da pesquisa: A CNI-Ibope ouviu 2 mil pessoas entre 17 a 20 de


setembro de 2020 em 127 municípios. A margem de erro é de dois pontos percentuais
para mais ou para menos e a confiança, de 95%.

105
Por que o Distrito Federal
aprovou a educação domiciliar
Jornal Gazeta do Povo, 05 de dezembro de 2020.

O
dia 1º de dezembro de 2020 já faz parte da história da
educação domiciliar no Brasil. É a data em que, pela
primeira vez, o parlamento de uma unidade da federação
aprovou o direito das famílias de serem protagonistas na educação
formal de seus filhos, educando-os em casa, sem a obrigação de
frequência diária a uma escola, da mesma forma como ocorre na
maior parte dos países desenvolvidos do mundo.
É bem verdade que a lei ainda precisa ser sancionada pelo gover-
nador Ibaneis Rocha1, mas, diante do fato de que um dos três projetos
que deram origem ao texto final partiu justamente do Poder Execu-
tivo, assinado pelo ex-secretário de educação, João Pedro Ferraz, é
altamente improvável que o próprio Poder Executivo vete a proposta.
Na condição de cofundador da Associação de Famílias Educa-
doras do Distrito Federal (FAMEDUC-DF), tive a oportunidade e a
missão de acompanhar a tramitação da pauta na Câmara Legislativa
do Distrito Federal desde o início. Foi uma luta longa, árdua, repleta
de frustrações, obstáculos e inimigos, mas, por fim, graças a uma rede
de famílias e apoiadores muito determinados, venceu o bom senso.
HOMESCHOOLING NO BRASIL

O caminho da proposta foi longo: passou por três comissões e duas


votações em plenário, com inúmeras oportunidades de discussão, o
que anulou completamente o argumento de que seria preciso debater
mais. Ao fim do processo, somente alguns deputados, politicamente
dependentes dos sindicatos, é que se opuseram à proposta. É sabido,
contudo, que mesmo entre esses, houve quem tenha se convencido
da necessidade da lei, mas optou por atender a demanda de seu
eleitorado mais enérgico ao invés da própria consciência.
Sou testemunha, portanto, de que o principal argumento que
gerou o consenso possível entre parlamentares tão diferentes foi
a necessidade imperiosa de tirar da clandestinidade centenas de
famílias que já aderiram a essa forma de educação, mesmo sem lei,
e que, apesar de serem totalmente capazes de apresentar amplas
evidências de aprendizagem e socialização de seus filhos, ainda
assim, são perseguidas. Em alguns casos até mesmo denunciadas
às autoridades, sob a acusação absolutamente injusta de “aban-
dono intelectual”.
Outras consequências dessa situação de ilegalidade também
sensibilizaram os deputados, como o fato de que as crianças educa-
das por meio do homeschooling, sem a existência de lei, não têm os
mesmos direitos daquelas instruídas por meio da educação escolar.
Esses direitos incluem, por exemplo, o da meia-entrada em eventos
culturais, a possibilidade de participar de campeonatos estudantis,
frequentar aulas na rede gratuita de cursos de idiomas e, claro, o
direito à certificação de conclusão dos estudos.
Entre os que se convenceram sobre a necessidade da regulamen-
tação ao longo das discussões estão aqueles mais envolvidos com a
pauta de defesa da infância, em especial das crianças e adolescentes
em estado de vulnerabilidade social. Isso porque, embora a educação
domiciliar seja uma realidade consolidada e em expansão, o Poder

108
JÔNATAS DIAS LIMA

Público brasileiro, incluindo o governo do Distrito Federal, não sabe


nada sobre essas famílias e essas crianças. A conscientização sobre
esse fato, e dos riscos que surgem dele, acendeu um sinal de alerta
entre aqueles que, a princípio, eram contrários, por acreditarem que
com essa posição estariam protegendo as crianças de maus-tratos
ou crimes piores.
Os mais sensatos entres esses, contudo, perceberam que, ao se
oporem à existência de uma lei, estavam, na verdade, perpetuando a
omissão do Estado nessa questão, como se aquelas famílias e aquelas
crianças não existissem. Uma lei criteriosa, entretanto, poderia
conter os dispositivos necessários para garantir a proteção social
dos estudantes, em especial dos socialmente vulneráveis, ao mesmo
tempo em que daria segurança jurídica aos pais e mães zelosos, que
se organizam, lutam pelo direito de educar em casa e estão dispostos
a se submeter a determinadas exigências para exercer tal direito.
Outros mitos também foram derrubados ao longo dos debates,
como o que provocava pânico no mercado educacional, anunciando
que o homeschooling seria o fim das escolas particulares. Trata-se de
uma fantasia desprovida de fundamento, já que tal catástrofe não
aconteceu em nenhum lugar do mundo que tenha regulamentado
essa forma de educação, pois educar em casa é sempre a opção de
uma minoria. O que costuma ocorrer, aliás, é um boom de novos
empreendimentos criados para atender famílias educadoras, ou
mesmo o surgimento de novos serviços que escolas particulares
tradicionais podem passar a oferecer.
Para entender melhor por que essas novas oportunidades certa-
mente vão aparecer, basta saber que, hoje, enquanto estão na clan-
destinidade, os pais e mães homeschoolers, mesmo aqueles com
alto poder aquisitivo, tendem a manter distância das escolas por
temer uma eventual e injusta denúncia. No entanto, assegurados

109
HOMESCHOOLING NO BRASIL

por uma lei, muitas dessas famílias adorariam matricular seus filhos
em atividades extraclasse, como judô, balé e outras comumente
oferecidas apenas aos alunos regulares das instituições privadas e
que, agora, podem ser abertas também aos optantes pelo ensino
domiciliar no DF.
Algo parecido se pode dizer sobre novas oportunidades profis-
sionais para os professores. Entre as famílias educadoras de classe
média, um motivador comum para a opção de educar em casa é a
falta de alternativas entre uma escola pública na qual não confiam,
por variados fatores, e escolas privadas muito caras. Esses pais, em
especial aqueles com três ou mais filhos, não têm condições de pagar
R$ 2 mil de mensalidade para cada um, mas certamente estariam
dispostos a pagar valores bem maiores do que os de mercado pela
hora-aula de um bom professor que dê aulas aos seus filhos em casa.
Portanto, a mentira de que o homeschooling provocaria o desem-
prego dos professores não resiste nem a um minuto de reflexão
sincera. Felizmente, os deputados distritais perceberam a fragi-
lidade dessa tese.
Não poderia terminar este artigo sem registrar, publicamente,
minha gratidão ao deputado distrital João Cardoso, o primeiro a
abraçar a causa e apresentar um projeto de lei, a pedido das famí-
lias brasilienses, e à deputada distrital Júlia Lucy, que não apenas
é autora de outro projeto sobre o tema, como também foi a prin-
cipal articuladora junto ao governo do Distrito Federal para que
o mesmo entrasse no debate, apresentando sua própria proposta
de regulamentação.
Esses dois parlamentares não se importaram com o fato de que
as famílias educadoras, por serem uma minoria, jamais poderiam
lhes trazer um volume relevante de votos, nem dispunham de muitos
recursos, como os grandes conglomerados educacionais, e nem

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JÔNATAS DIAS LIMA

sequer tinham condições de promover intimidadoras passeatas,


como os sindicatos, dado o temor das famílias em se expor. Eles
realmente se compadeceram do sofrimento de centenas de pais e
crianças, tomaram para si a missão de libertá-los e não desistiram,
apesar das poderosas pressões que sofreram.
Essa firmeza fez história e mudou vidas. Aos dois, muito obrigado.

O governador Ibaneis Rocha sancionou a lei 6759/2020, que regulamenta


a educação domiciliar do Distrito Federal, em 16 de dezembro de 2020. O
autor, Jônatas Dias Lima, e sua família estiveram ao lado dele no momento
da sanção. (Crédito: Agência Brasília/Governo do Distrito Federal)

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