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Homeschooling -

Ministério Público e Conselho Tutelar


de mãos dadas com a educação domiciliar.
Homeschooling -
Ministério Público e Conselho Tutelar
de mãos dadas com a educação domiciliar.
Homeschooling -
Ministério Público e Conselho Tutelar
de mãos dadas com a educação domiciliar.

Livro organizado pelo Dr. Tales Alcântara de Melo


e escrito por diversos autores para explicitação do
conceito do estudo domiciliar e demonstração de
sua pertinência para com o sistema jurídico
brasileiro.
Homeschooling - Ministério Público e Conselho Tutelar de mãos dadas com a educação domiciliar.

Imagem de capa: João Paulo Martins dos Santos

Referencias das ilustrações em cada imagem.

Este livro pode ser copiado e distribuído, em meio digital ou impresso.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Homeschooling : Ministério Público e Conselho


Tutelar de mãos dadas com a educação domiciliar
[livro eletrônico] / organização Tales Alcântara
de Melo. -- 1. ed. -- Itajubá, MG :
Ed. dos Autores, 2023.
PDF

Vários autores.
Bibliografia
ISBN 978-65-00-63474-7

1. Educação - Homeschooling 2. Educação - Leis e


legislação - Brasil 3. Educação doméstica
4. Ordenamento jurídico I. Melo, Tales Alcântara de.

23-146788 CDD-371.0420981
Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Homeschooling : Ensino domiciliar :


Educação 371.0420981

Henrique Ribeiro Soares - Bibliotecário - CRB-8/9314

Editado em Oswald Light e EB Garamond.


“É evidente, então, que existe um tipo de educação na
qual os pais devem treinar seus filhos, não como sendo
útil ou necessária, mas porque é libertadora e nobre"

Aristóteles – Política: livro 8, parte III

i
Autoria do E-Book

Organizador:
Dr. Tales Alcântara de Melo

Escreveram os artigos:
• Dra. Andressa Neves de Oliveira – Advogada, pós-graduada em Direito de Família;
• Dra. Fernanda Xavier Barbalho Bezerra - Advogada, Pós-graduada em Direito do Trabalho
e Processo do Trabalho;
• Dra. Emili Dorissote Rodrigues – Advogada, Pós-Graduada em Direito Previdenciário;
• Dra. Michelle Paola Pereira Coura – Advogada, Pós-graduada em Docência com Ênfase
em Educação Jurídica;
• Dr. Ticius Godoy – Advogado, Pós-graduado em Advocacia Cível e Processual Cível;
• Dra. Vânia Maria Dos Santos Vieira - Advogada e Professora Voluntária;
• Dra. Rossana Mendonca Farias – advogada, pós-graduada em Direito Penal e Processo
Penal;
• Dra. Isabelle Cristina Santos Monteiro - Advogada e Pedagoga, Pós-graduada em Direito
Educacional;
• Dra. Bianca Bruna Clock Stall – Advogada, especializada em Estatuto da Criança e do
Adolescente e Usucapião;
• Dra. Magaly Gouvêa Seri Fernandez - Advogada, pós-graduada em Direito do Trabalho;
• Dra. Vanessa Elisa Jacob Anzolin – Advogada, Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais – UFMG;
• Dra. Stephany Ruth Matzenbacher Lisbôa – Advogada, pós-graduada em Direito
Empresarial;
• Dra. Raíssa Marelli Pelissari – Advogada, Pós-graduada em advocacia Cível e Especialista
em LGPD;
• Dra. Ana Carolina Andrade Griz - Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal e
Servidora Pública do Ministério Público do Estado de Rondônia
• Alan Freitas - Estudante de Direito (6° Período);
• Eulla Santana Ricardo - Pós-graduação em Direito Público e Gestão Pública, Cursando
Licenciatura em Filosofia.
• Dra. Rosana Rabelo Montanini – Advogada;
• Dr. Pedro Tomaz Manfrim - Advogado (SP);
• Dra. Regiane Aline Salles Cichelero - Advogada, Pós-graduada em Direito Processual Civil;
• Dra. Aline Machado Carneiro dos Santos –Advogada;
• Dr. Rafael Durand – Advogado, Pós-graduado em Direito Público. Especialista em
Direito Religioso; Membro do IBDR - Instituto Brasileiro de Direito e Religião;
• Dra. Fabiola Fontana Martins – Advogada, Pós-graduada em direito tributário;
• Dra. Sílvia Bispo K. Manea - Advogada, Ex-Conselheira Tutelar por dois mandatos - 2013
a 2020 e Pós-graduanda em Neuropsicopedagogia;
• Thalita Marotta Imoto Sato – Bacharel em direito.

ii
Agradecimentos

Agradecemos às seguintes pessoas que contribuíram com este projeto:

• Dra. Regiane Aline Salles Cichelero (revisão)


• Dra. Helirin Beatriz Belem Gonçalves (revisão)
• Profª. Andréia Medrado dos Santos de Souza Serrano (revisão ortográfica)
• Edvaldo Sebastião de Souza (revisão geral)
• Dra. Andressa Peron de Bitencourt Lopes (formatação)
• Dr. Rodrigo Maximiano Antunes de Almeida (diagramação)
• João Paulo Martins dos Santos (arte da capa)

iii
Sumário
Autoria do E-Book ....................................................................................................................... ii

Agradecimentos .......................................................................................................................... iii

Sumário ....................................................................................................................................... iv

1. Introdução ................................................................................................................................ 1

2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil ....................................... 5

3. Direito natural dos pais na educação dos filhos .................................................................... 17

4. Tratados internacionais e legislação brasileira ....................................................................... 19

5. O que é homeschooling? ........................................................................................................ 23

6. A socialização da criança e do adolescente homeschooler ...................................................... 27


6.1. O que é a socialização? ............................................................................................. 27
6.2. Como se dá a socialização da criança homeschooler? ............................................... 29
6.3. Os efeitos da socialização ......................................................................................... 31

7. A constitucionalidade do homeschooling ............................................................................... 34


7.1. Geografia Legislativa ................................................................................................ 34
7.2. O que disse o Supremo Tribunal Federal? .............................................................. 37
7.3. Movimentação parlamentar .................................................................................... 40

8. Homeschooling não configura crime de abandono intelectual.............................................. 42

9. Princípio do melhor interesse da criança............................................................................... 46


9.1. Crianças “atípicas” e a aplicação do princípio ........................................................ 47
9.2. Estatuto da criança e do adolescente – Análise do Artigo 55 combinado com o
Artigo 6º ................................................................................................................... 47
9.3. Posicionamento do STF em relação à prática do Homeschooling........................... 48

10. O poder discricionário do Conselho Tutelar...................................................................... 50


10.1. Conselho Tutelar ..................................................................................................... 51

11. Conclusão............................................................................................................................. 58

12. Referências ........................................................................................................................... 61

iv
1. Introdução

1.
Introdução

A Educação Familiar ou homeschooling é uma realidade admirável, seja sob tutela da


coroa de Charles III, na atual monarquia inglesa, seja sob tutela da maior e mais antiga
Democracia do mundo moderno: os Estados Unidos da América!

Se gigantes, históricos defensores dos direitos e liberdades humanas como a França


(aquela, da Liberdade, Igualdade e Fraternidade), somados ao Canadá e Austrália, entre outros,
reconhecem o direito dos pais escolherem o melhor sistema de ensino para seus filhos, porque
o Brasil deve ir na contramão de nações tão caracteristicamente mais desenvolvidas (em termos
de saúde, educação e tecnologia, por exemplo) e politicamente mais maduras? É nítido que, se
nossa pátria almeja figurar no panteão das nações que estão preparando corretamente seus
jovens para os desafios do século XXI, deve colocar em prática o que defende sua Carta Magna,
quando afirma que é direito de todos a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber” (Constituição Federal, art. 206, inciso II), compreendendo

1
1. Introdução

minimamente e sem os preconceitos característicos de mentes insensatas, o que é a Educação


Domiciliar, praticada com êxito em países de primeiro mundo.

O intuito deste E-book é demonstrar, através da Legislação Nacional (Leis


Infraconstitucionais e a Constituição Federal) e Internacional (Tratados Internacionais e
Declarações Universais), como também do arcabouço jurídico brasileiro (posicionamento do
Supremo Tribunal Federal) como está historicamente a educação, com dados sobre seu atual
desenvolvimento, e o direito dos pais poderem escolher a melhor forma de educação a ser
ministrada a seus filhos, no presente caso, a Educação Domiciliar (homeschooling).

O reconhecimento da Educação Domiciliar não significa, nem de longe, o fim da escola,


muito menos a desvalorização do papel importantíssimo do professor. Ao contrário, trata-se
em demonstrar o porquê de garantir a liberdade aos pais de optarem por esta modalidade de
ensino, como podemos observar nos sessenta países que praticam a Educação Domiciliar
permitida, reconhecida e regulamentada, como os Estados Unidos, Canadá, Portugal, França,
Itália, Reino Unido, África do Sul, Austrália, Japão, dentre outros.

A educação deve ser compreendida e orientada para a formação integral do ser humano,
formando indivíduos em sua dimensão intelectual, moral, emocional, social, espiritual e física.
Neste sentido, o papel dos pais, enquanto Tutores/Educadores, é vislumbrar as potências,
interesses e talentos de seus filhos e conduzi-los conforme as suas necessidades, aplicando, desta
forma, uma educação personalizada, oferecendo instrução individual à criança, com
flexibilidade para adaptar seu ensino às suas necessidades acadêmicas e muito rapidamente (por
ser individualizada/personalizada) identificar deficiências e corrigi-las. Nessa perspectiva, a
educação vai muito além de atender às necessidades financeiras e econômicas do indivíduo
enquanto mão-de-obra treinada para um mercado de trabalho em constante transformação.

A educação, antes de ser um direito fundamental e humano, em especial dos jovens e


crianças, é um direito natural, ou seja, é um direito que está intrínseco à natureza humana,
sendo um conjunto de normas de condutas que existe na sociedade naturalmente, sem a
necessidade de estar positivado nas leis do Estado. Significa que não precisa que o Estado diga
que eu tenho esse direito, pois sei que o possuo naturalmente!

A título de exemplo de direito natural temos o direito a autodefesa, a vida, a liberdade,


a propriedade privada, entre outros. A partir do momento em que há uma interferência
excessiva do Estado na ordem natural, cria-se um caos na sociedade. Logo, surge a necessidade
do Estado respeitar a ordem natural da vida em sociedade, visto que, conforme dispõe o artigo

2
1. Introdução

1º, parágrafo único, da Constituição Federal: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Neste contexto, uma das dúvidas mais comuns, sinceras e justas, é como funcionaria a
socialização das crianças educadas em casa? Mas o que é a socialização? É a capacidade das
pessoas de interagirem de forma amigável nos ambientes sociais do mundo real, quais sejam, a
família, a vizinhança, o local de trabalho, a igreja, parquinhos, atividades esportivas (natação,
futebol), aulas de música, aulas de inglês, dança, teatro, encontros familiares, dentre outros.
Estes são exemplos de socialização, de respeito, a pessoas de diferentes idades, sexos, crenças e
condições sociais, que trabalham e convivem pacificamente. As crianças em educação
domiciliar estão plenamente aptas a interagir socialmente com os diferentes indivíduos,
conforme será demonstrado ao longo deste conjunto de artigos, embasados em inúmeras
pesquisas científicas.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 205, estabelece a competência conjunta


entre família e Estado no provimento da educação às crianças e adolescentes, em nenhum
momento mencionando uma superioridade de um sobre o outro, ao contrário, demonstrando
uma competência concorrente (parceira), a fim de assegurar o direito natural das famílias, das
crianças e dos jovens!

A legalidade da Educação Domiciliar está garantida por um conjunto de Tratados


Internacionais dos quais o Brasil é signatário, os quais possuem status “supralegal”, isto é, são
superiores às leis infraconstitucionais e inferiores apenas à Constituição Federal. Esses Tratados
Internacionais são por demais importantes, pois tratam da soberania dos pais em prover
educação formal aos filhos. Um importante exemplo é o Pacto de San José da Costa Rica de
1969 e a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, que estabelece expressamente
em seu artigo XXVI, item 3, que “os pais têm prioridade de direito na escolha de gênero de
instrução que será ministrada a seus filhos”.

O Supremo Tribunal Federal, em 2018, julgou, em regime de repercussão geral, o


Recurso Extraordinário nº 888.815, que tratava da regulamentação do ensino domiciliar
(homeschooling) e o conteúdo desta decisão serviu como paradigma para os demais casos
semelhantes. Nessa ocasião, a decisão de improcedência do recurso deu-se tão somente por
ausência de norma legal que regulamentasse a prática do ensino domiciliar; todavia, o voto
condutor reconheceu a constitucionalidade da prática do homeschooling, carecendo apenas de
legislação federal. Neste sentido, neste ano foi aprovado o Projeto de Lei nº 1.388/22 (PL
3179/2012) que regulamenta a prática do Ensino Domiciliar (homeschooling), pela Câmara dos
Deputados, seguindo a tramitação para o Senado Federal e posterior sanção presidencial.

3
1. Introdução

Outra questão justa seria questionar se o ensino domiciliar não configura crime de
abandono intelectual, previsto no artigo 246 do Código Penal. De forma alguma! Conhecer o
Ensino Domiciliar levará qualquer pessoa a rechaçar qualquer afirmação que insinue isso, haja
vista que o artigo citado estabelece que os pais devem prover a instrução primária dos filhos; no
entanto, não estabelece em qual modalidade tal instrução deverá ser fornecida, dando liberdade
de escolha aos pais. A eles cabe a escolha do método educacional que melhor atenda aos
interesses de seus filhos, considerando 1a individualidade de cada ser humano e o princípio do
melhor interesse da criança, conforme previsto no artigo 6, do Estatuto da Criança e do
Adolescente.

Na Educação Domiciliar, os pais, além de serem os Professores e Tutores, agem como


uma espécie de “Coordenadores”, ministrando diretamente a instrução formal a seus filhos,
mas também de forma indireta, através da contratação de Professores ou Tutores para as
matérias que acharem necessárias (pois é impossível a uma pessoa dominar todo o conteúdo
das Bases Curriculares), coordenando o conteúdo e a forma a ser ensinada, auxiliado, quando
necessário, por profissional de pedagogia. Ter direito a escolher os profissionais de educação
que ensinarão seus filhos é fundamental na Democracia (a monarquia inglesa também pensa
assim!) como acontece, por exemplo, na áreas de saúde (o cidadão pode contratar um médico),
da segurança (você pode escolher contratar um segurança particular), na área jurídica (você
pode usar os serviços da Defensoria Pública do Estado ou escolher um profissional da advocacia
particular): esse é o princípio do Estado Democrático de Direito, em que o Estado oferece os
serviços públicos, mas, nunca, de forma alguma (sob pena de tornar-se um Estado
tirano/autoritário) obriga seus cidadãos a usufrui-los.

Por fim, cabe mencionar que os artigos abordam o poder discricionário do Conselho
Tutelar – importantíssima entidade defensora dos direitos das crianças e adolescentes –, ao
analisar que cabe aos conselheiros, experientes conhecedores das realidades locais,
compreender no caso concreto se os interesses da criança e do adolescente estão sendo
atendidos e que não está configurando violação de direitos. In loco, amparado por visitas e
entrevistas, o Conselho Tutelar poderá decidir pelo arquivamento da denúncia, sem incorrer
em qualquer falha de atuação ou prevaricação, respaldado em sua autonomia legal e com
fundamento nos artigos 136 e 137 do Estatuto da Criança e do Adolescente. É objetivo do
presente E-book demonstrar a constitucionalidade do Ensino Domiciliar ou homeschooling e
desmistificar diversos temas que permeiam este assunto.

Emili Dorissote

4
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil


2.
A escolarização é fenômeno, de certo modo, recente. Por muitos anos, as crianças eram
ensinadas no seio familiar, de maneira que os conhecimentos sobre botânica, fauna, geografia
local, agricultura de subsistência e ofícios eram transmitidos de geração em geração.

Na Grécia antiga1, a educação formal tinha início após os sete anos de idade, quando as
crianças eram enviadas às escolas da época. No período que precedia a escola, a criança
permanecia em casa sendo educada, de maneira informal, pela própria família, observando seus

1
Na Antiguidade Clássica (greco-romana), o modelo de educação, sobretudo dos filhos das famílias mais
abastadas, centrava-se nas denominadas Sete Artes Liberais, divididas em Trivium (lógica, gramática e
retórica) e Quadrivium (aritmética, astronomia, música e geometria, ficando a instrução a cargo,
principalmente, de tutores. A característica precípua da educação liberal (do latim, liber significa livre)
consistia na liberdade de escolha educacional, isto é, não havia obrigatoriedade e controle pelo poder
estatal, o que perdurou até o fim da Idade Média.

5
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

hábitos e crenças. Fato é que a educação começa desde a mais tenra idade, quando a criança
absorve boas maneiras, civilidade, aplicando certa disciplina moral, de modo a reprimir os
caprichos naturais da criança. Também neste período a criança adquire oralidade.

Os gregos e as grandes civilizações que vieram antes deles (egípcios, assírios, babilônios
e outros) sabiam que a primeira infância é uma fase riquíssima na vida de uma criança. Nessa
fase, a criança deveria ser iniciada à tradição cultural por meio de cantigas, leitura em voz alta
de histórias, contos, fábulas e narrativas de toda sorte. Não havia na Grécia antiga creches ou
maternal, visto que referidas instituições remetem aos tempos modernos, mais especificamente
ao período industrial, quando o trabalho organizado das mulheres tornou-se necessário (não
conquistado), viabilizando, assim, a organização de “creches” para que as mulheres tivessem
onde deixar seus filhos enquanto trabalhavam nas fábricas.

Ainda na Grécia, após a primeira infância, a família poderia dar continuidade ao ensino
do ofício familiar (o trabalho do pai, que era passado para os filhos), ou o jovem poderia
aprender um novo ofício com um mestre; sendo que as famílias com melhores condições
costumavam contratar tutores aptos a conduzirem o estudante em sua formação.

Nesse contexto, a escola não desempenhava um papel preponderante na educação. Esse


fato aconteceu apenas a partir da Idade Média. Nesse período, o mestre, que antes era
responsável apenas pela formação intelectual, tornou-se também instrutor, formador de
caráter e estilo de vida, além de guia espiritual.

Na antiga Roma, a família era uma instituição forte e exercia soberana autoridade na
educação dos filhos de forma que a instituição familiar era o meio mais natural de se formar a
criança numa atmosfera de alto teor moral e de severidade. Nessa sociedade, aos sete anos, o
menino era encaminhado aos cuidados do pai, enquanto as meninas seguiam aos cuidados da
mãe. Em Roma, a educação familiar terminava apenas aos 16 anos, quando o jovem era
incluído entre os cidadãos por meio da tutoria de uma pessoa mais velha, normalmente um
amigo da família.

A escola cristã apareceu no século IV, durante o período medieval e era voltada
inteiramente para a formação da vida religiosa. Os monges, responsáveis pela educação das
crianças, acolhiam os alunos e arcavam com a educação delas, mas a obrigatoriedade da
escolarização só veio muitos anos depois.

Houve, no entanto, uma mudança gradativa no cenário educacional entre os séculos


XVI e XIX, com o advento da Idade Moderna. A ascensão da burguesia, a intensificação do

6
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

comércio, a expansão colonialista e as ideias humanistas culminaram com o surgimento da


pedagogia moderna e da escolarização universal. A escolarização obrigatória teve início na
Alemanha a partir do século XVII e se difundiu pela Europa e o resto do mundo, sobretudo
após a Revolução Industrial (século XVIII). No final do século XIX e início do século XX,
além de compulsória, a educação tornou-se massificada, porquanto se deu uma “expansão
quantitativa da escolarização em cada nível do sistema educativo (que era para poucos e passa
a ser para muitos)”2.

No Brasil, a escolarização iniciou-se com os padres jesuítas, que chegaram ao país no ano
de 1.549 e, no ano seguinte, fundaram, em Salvador, o Colégio dos Meninos de Jesus, que
serviu de modelo para as instituições subsequentes, sendo que, à época, a educação escolar era
restrita às crianças do sexo masculino. Construíram, a partir daí, diversos colégios, seminários,
bem como investiram em missões, até que, em 03 de setembro de 1.759, sobreveio à ordem de
Marquês de Pombal determinando a expulsão dos jesuítas de Portugal, Brasil e demais
domínios, o que fez com que tivessem de abandonar essas instituições que, paulatinamente,
foram sendo assumidas por outros grupos clérigos.3

A saída dos jesuítas do país, porém, acarretou uma estagnação no campo da educação
formal. Esse panorama só se alterou a partir de 1.808, com a chegada da Família Real
Portuguesa, que impulsionou, inclusive, o surgimento de instituições de ensino superior e
cursos profissionalizantes para atender à demanda dos nobres recém-chegados e da elite local,
sobretudo nas cidades do Rio de Janeiro e de Salvador. Em 1.841, a Companhia de Jesus
ressurgiu no cenário nacional e, a partir de 1.845, retomou o trabalho de implantação de
escolas.4 A essa altura, a educação escolar ainda era essencialmente elitista.

Sobreveio, na primeira metade do século XX, o Movimento Escola Nova, que teve como
expoente, na América, o filósofo e pedagogo John Dewey, que exerceu grande influência sobre a
elite brasileira. Para Dewey, a educação era uma necessidade social e tinha por escopo uma função
democratizadora, no sentido de propiciar aos educandos direitos de oportunidades iguais perante
a lei. Referido Movimento inspirou o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, firmado por
diversos intelectuais brasileiros em 1.932, em defesa da universalização da escola.

2
BIRGIN, A. Massificação do ensino. Disponível em: https://gestrado.net.br/verbetes/massificacao-do-
ensino/. Acesso em 15/06/2022.
3
Disponível em: http://www.redejesuitadeeducacao.com.br/educacaojesuita/historia-da-educacao-jesuita-no-
brasil/. Acesso em 15/06/2022.
4
Disponível em: http://www.redejesuitadeeducacao.com.br/educacaojesuita/historia-da-educacao-jesuita-no-
brasil/. Acesso em 15/06/2022.

7
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

Apenas com a promulgação da Constituição de 1.946, no entanto, é que a escolarização


tornou-se obrigatória no Brasil, a teor do art. 168, in verbis:

Art. 168. [...] I – o ensino primário é obrigatório e só será dado na língua nacional;
II – o ensino primário oficial é gratuito para todos; o ensino oficial ulterior ao
primário sê-lo-á para quantos provarem falta ou insuficiência de recursos.

Nessa ordem de ideias, a ampliação da educação escolarizada deu-se após a Segunda


Guerra Mundial, com o aumento de investimentos e o incremento do número de matrículas
nas instituições de ensino públicas e privadas.

No período que vai de 1.940 a 1.980, a frequência escolar da população em idade escolar
aumentou de 15,1% para cerca de 47%, sendo que, após a Segunda Guerra Mundial, o ritmo
de crescimento da educação ficou acima do crescimento da Argentina, Chile e Uruguai.5

Atualmente, a educação no Brasil é regulamentada pela Constituição Federal, no


Capítulo III, Seção I, do Título VII da Carta, além da Lei nº. 9.394 de 1.996, chamada de Lei
de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Por um lado, a Carta Magna traz de modo geral quais
são os fundamentos da educação, quando estabelece no caput do artigo 205

Art. 205 - A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será


promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.

A LDB, por sua vez, regulamenta de maneira específica toda a educação brasileira, seja
ela no âmbito público ou privado, iniciando desde a educação fundamental (das creches e pré-
escolas), passando por toda cadeia educacional, incluindo o ensino superior e a pós-graduação.

Em toda legislação podemos indicar um ponto em comum: a garantia do acesso à


educação a todas as crianças. Ora, mas o que é educação? Neste ponto, é importante diferenciar
os conceitos de EDUCAÇÃO e ESCOLARIZAÇÃO. A EDUCAÇÃO deve ser fornecida
pelos pais desde a mais tenra idade e nela podemos incluir o ensino de atividades básicas do
cotidiano como o senso de organização, limpeza, civilidade e respeito ao próximo. Atos como

5
RANIERI, N. Educação obrigatória e gratuita no Brasil: um longo caminho, avanços e perspectivas. In:
Direito à educação e direitos na educação em perspectiva interdisciplinar / organizado por Nina Beatriz
Stocco Ranieri e Angela Limongi Alvarenga Alves. – São Paulo: Cátedra UNESCO de Direto à
Educação/Universidade de São Paulo (USP), 2018. p. 27.

8
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

respeito aos idosos, aos colegas e mesmo aos animais e à natureza são ensinados primeiramente
em casa e, posteriormente, colocados em prática na vida em sociedade.

A ESCOLARIZAÇÃO, por outro lado, é a face formal da educação; portanto, um


conceito restrito, uma forma que os pais escolhem de transmitir à criança matérias específicas
capazes de formar o conhecimento e trazer habilidades que servirão para toda vida (pessoal,
profissional e espiritual).

Maria Montessori defende que a educação não é adquirida apenas ouvindo palavras, mas
por meio das experiências no ambiente. Ela também já detectava, em sua época, que a maior parte
das escolas oficiais do estado se importavam muito mais (ou apenas) com a execução de um
programa do que com a formação do caráter do pequeno ser humano escolarizado.

Montessori diz ainda que tal abordagem dissocia o jovem do mundo cotidiano,
ocupando-o apenas com estudos, muitas vezes de matérias sem aplicação prática, o que resulta
numa inteligência limitada, pelo que o jovem conclui seus estudos sem ser capaz de avaliar e
solucionar problemas da época em que vive. A renomada educadora italiana não errou em suas
previsões em relação aos jovens submetidos aos atuais métodos de escolarização compulsória,
vide os resultados dos jovens brasileiros nas avaliações de ensino.

Para iniciar este breve estudo a respeito dos resultados da escolarização no Brasil, falaremos
sobre as avaliações a que são submetidos os estudantes brasileiros, a começar pelo Sistema de
Avaliação da Educação Básica (SAEB). Trata-se de um conjunto de avaliações que permite
realizar um diagnóstico da educação básica brasileira e de fatores que podem interferir no
desempenho do estudante. Os testes são aplicados a cada dois anos na rede pública e em uma
parte da rede privada. O resultado da avaliação é um indicativo da qualidade do ensino brasileiro.

As médias de desempenho dos estudantes, apuradas no SAEB, juntamente com as taxas


de aprovação, reprovação e abandono, apuradas no Censo Escolar, compõem o Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).6

Depreende-se da análise dos resultados do SAEB 2019, exemplificativamente, que cerca de


55% dos estudantes do 2º ano do ensino fundamental encontram-se nos níveis 5 a 8 (nível máximo)
de proficiência em língua portuguesa, sendo que, deste total, 21,55% concentra-se no nível 5.

6
Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/saeb.
Acesso em: 14/06/2022.

9
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

Todavia, há o significativo percentual de 4,62% dos estudantes abaixo do nível 1, o que


representa defasagem expressiva nas competências avaliadas. Por outro lado, há um número
equivalente de 5,04% dos estudantes no nível 8, o que indica domínio da maioria das
habilidades testadas.

Em matemática, cerca de 50% dos alunos do 2º ano também se encontram entre os níveis
5 e 8 de proficiência. É preocupante, porém, o aspecto de que 2,82% dos avaliados estão abaixo
do nível 1 em habilidades matemáticas, bem como que a maioria (19,83%) se encontra no nível
4. Apenas o percentual ínfimo de 6,99% está no oitavo nível, que é o de grau máximo.

Já em relação aos estudantes do 9º ano avaliados em ciências humanas, tem-se que, “nos
três últimos níveis da escala de proficiência, de 7 a 9, foi observado um percentual somado
inferior a 3% do total dos estudantes avaliados, o que sugere que poucos estudantes dominam,
além das habilidades listadas nos níveis anteriores, aquelas relacionadas a abordagens históricas
referentes ao período medieval e clássico e aquelas que privilegiavam a explicação da
localização, organização e distribuição de características espaciais, domínios naturais e
fenômenos geográficos de escalas nacionais ou mundiais” 7. É alarmante, ademais, o fato de que
16,97% desses estudantes encontram-se abaixo do nível 1 e que a maioria, 18,6%, está no nível
2. Senão, veja-se no próximo gráfico.

Fonte: INEP8

No que tange à área de ciências da natureza, 17,73% dos estudantes ficaram abaixo do
nível 1; e míseros 0,5% dos participantes estão no nível 8. Apesar de a maior parte dos alunos

7
Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-
educacionais/saeb/resultados. Acesso em 17/06/2022.
8
O gráfico ilustrativo abaixo reproduzido foi extraído do Relatório de resultados do Saeb 2019: volume 3, p. 64:
9º ano do ensino fundamental: Ciências Humanas e Ciências da Natureza [recurso eletrônico]. /
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. – Brasília, DF: Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2021. 73 p.: il. ISBN 978-65-5801-051-7.
In: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/saeb/resultados.
Acesso em 17/06/2022.

10
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

(17,98%) encontrar-se no nível 2, os quatro primeiros níveis apresentam, aproximadamente, o


mesmo percentual em cada um, o que é deveras preocupante.

Fonte Saeb9

Outro teste aplicado aos estudantes é o Programa Internacional de Avaliação de


Estudantes (PISA) – tradução de Programme for International Student Assessment.

O PISA é um estudo comparativo internacional que é realizado a cada três anos pela
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). A avaliação é
aplicada em estudantes na faixa de 15 anos de idade e objetiva rastrear o desempenho dos
estudantes que estão finalizando o período da educação básica. O PISA avalia três domínios
básicos: leitura, matemática e ciências.

A pesquisa também avalia domínios com: resolução de problemas, letramento financeiro


e competência global. “Os resultados permitem que cada país avalie os conhecimentos e as
habilidades de seus estudantes em comparação com os de outros países, aprenda com as políticas
e práticas aplicadas em outros lugares e formule suas políticas e programas educacionais visando
à melhora da qualidade e da equidade dos resultados de aprendizagem”.10

A última avaliação do PISA foi realizada em 2018, dela participaram 79 países, entre
membros da OCDE e países parceiros da organização.11

9
O gráfico ilustrativo abaixo reproduzido foi extraído do Relatório de resultados do Saeb 2019: volume 3, p. 34:
9º ano do ensino fundamental: Ciências Humanas e Ciências da Natureza [recurso eletrônico]. /
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. – Brasília, DF: Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2021. 73 p.: il. ISBN 978-65-5801-051-7.
In: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/saeb/resultados.
Acesso em 17/06/2022.
10
Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/pisa.
Acesso em: 14/06/2022.
11
O relatório e todo resumo da aplicação dos testes realizados está disponível em:
https://download.inep.gov.br/publicacoes/institucionais/avaliacoes_e_exames_da_educacao_basica/re
latorio_brasil_no_pisa_2018.pdf. Acesso em: 14/06/2022.

11
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

No Pisa 2018, os estudantes brasileiros obtiveram uma pontuação abaixo da média da


Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em leitura,
matemática e ciências.

Apenas 2% dos estudantes alcançaram os níveis mais altos de proficiência (nível 5 ou 6)


em pelo menos um domínio (média da OCDE: 16%), e 43% dos estudantes obtiveram uma
pontuação abaixo do nível mínimo de proficiência (nível 2) em todos os três domínios (média
da OCDE: 13%).

No Brasil, o desempenho médio em matemática evoluiu entre 2003 e 2018, no entanto,


em sua maioria, essa evolução se concentrou nos ciclos iniciais do Pisa. Depois de 2009, o
desempenho médio nesse domínio, assim como em leitura e ciências, não mudou
significativamente.

Estudantes no Brasil obtiveram uma pontuação abaixo da média da OCDE em leitura,


matemática e ciências, conforme gráfico do INEP:

Fonte INEP 12

12
O gráfico ilustrativo abaixo reproduzido foi extraído do Relatório de resultados do Pisa 2018/ Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. – Brasília, DF. In:

12
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

Isso significa que, no Brasil, cerca de 32% dos estudantes atingiram pelo menos o nível 2
em matemática (média da OCDE: 76%). No que diz respeito a equações mais complexas,
apenas 1% dos estudantes atingiram o nível 5 ou acima em matemática (média da OCDE: 11%).

Fonte INEP 13

O gráfico acima representa a estagnação e o desempenho dos estudantes brasileiros, que


obtiveram resultado muito abaixo da média dos países da OCDE.

Como visto, o Brasil possui uma base regulamentadora forte. Além disso, atualmente,
o Brasil investe 5,6% do seu Produto Interno Bruto (PIB) em educação. Este percentual de
investimento está atrás apenas da Suécia, Bélgica, Islândia, Finlândia e Noruega.

O valor investido em alunos do ensino básico (fundamental e médio) chega a US$ 3.886
por aluno, enquanto o gasto com alunos do ensino superior alcança US$ 14.202. O
investimento médio anual dos países da OCDE é de US$ 9.300 por aluno do ensino básico,

https://download.inep.gov.br/acoes_internacionais/pisa/resultados/2018/pisa_2018_brazil_prt.pdf.
Acesso em 16/06/2022.
13
O gráfico ilustrativo abaixo reproduzido foi extraído do Relatório de resultados do Pisa 2018 / Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. – Brasília, DF. In:
https://download.inep.gov.br/acoes_internacionais/pisa/resultados/2018/pisa_2018_brazil_prt.pdf.
Acesso em 16/06/2022.

13
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

um valor maior do que o dobro do montante investido pelo Brasil nos mesmos estudantes de
ensino básico.

Ora, se há investimentos, o que justifica os resultados apresentados nos parágrafos


anteriores? Fato é que a escola “escolariza”, mas não educa, e a culpa não é meramente dos
professores e tampouco diz respeito à falta de investimento, mas à finalidade para qual a escola
foi criada: produzir seres humanos formulares cujo comportamento pode ser previsto e
controlado.

Tendo como base apenas os resultados das últimas avaliações é preocupante pensar que
crianças são matriculadas nas escolas e lá permanecem por, pelo menos, doze anos e saem sem
saber operações matemáticas, bem como ler, interpretar e resolver problemas cotidianos. O
resultado da escolarização compulsória também pode ser notado no desenvolvimento social e
emocional delas.

O atual sistema escolarizado tem formado jovens indiferentes em relação ao mundo


adulto e ao futuro, incapazes de se concentrar em algo por muito tempo e com dificuldades de
relacionamento interpessoal (aproximadamente 23% dos estudantes no Brasil concordaram ou
concordaram totalmente que se sentem sozinhos na escola – média da OCDE: 16%; além disso,
no Brasil, 29% dos estudantes relataram ter sofrido bullying pelo menos algumas vezes no mês
– média da OCDE: 23%).

Outro fator alarmante é o impacto da pandemia nas crianças e jovens que se encontram
em educação escolar. No 21º Congresso de Cérebro, Comportamento e Emoções – Brain
202214, a Dra. Rochele Paz Fonseca, neuropsicóloga e fonoaudióloga, Professora Titular e
Pesquisadora da área de Psicologia da PUC-RS e Presidente da Sociedade Brasileira de
Neuropsicologia, apresentou o painel sobre “Neurociência e Educação: Impacto da Pandemia
de Covid-19 no desenvolvimento e na aprendizagem escolar”. Em sua apresentação, a Dra.
Rochele apresentou os dados de estudos que demonstram mudanças profundas na saúde
mental das crianças e dos adolescentes, da equipe escolar e dos pais, bem como a diminuição
da interação social e da prática de atividade física, o aumento de desmotivação, de desajuste na
rotina escolar, do uso de telas e, por conseguinte, de dependência tecnológica, além de
discrepância entre o que é ministrado em aulas on-line e o que é cobrado em atividades

14
Disponível em:
https://www.braincongress.com.br/programacao/index_track_cronologico.php?dt_sel=2022-06-01.
Acesso em 16/06/2022.

14
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

impressas e avaliações e, finalmente, o agravamento das dificuldades e das patologias


preexistentes.

Por razões óbvias, é evidente a piora da aprendizagem e do desenvolvimento das crianças


e jovens com as aulas on-line15. Dados brasileiros mostram que houve déficit de saúde mental
e de aprendizagem significativos para, pelo menos, 30% dos estudantes, em leitura, escrita e
matemática. Os resultados serão aferidos concretamente nos próximos testes, como o SAEB,
PISA e PIRLS 16, e, indubitavelmente, mostrarão a face nefasta da política de lockdown nas
escolas. E mesmo aqueles estudantes que sofreram menor impacto ou, de certo modo,
melhoraram o desempenho durante este período (que são os que já detinham melhor
performance acadêmica anteriormente), não ficaram incólumes aos prejuízos socioemocionais.

Muitos foram os que, durante a pandemia, com base no senso comum, denominaram
equivocadamente o ensino escolarizado on-line de homeschooling. Trata-se de nítido desacerto,
já que educação à distância, definitivamente, não é homeschooling. A educação domiciliar,
conforme se demonstrará ao longo deste e-book, é um estilo de vida que envolve toda a família
que, de forma intencional e personalizada, educa integralmente a criança e promove seu
desenvolvimento espiritual, emocional, físico, volitivo e cognitivo-intelectual.

Os impactos sofridos pelos estudantes em educação domiciliar certamente foram bem


menores do que os dos estudantes escolarizados, tanto a nível acadêmico, quanto de saúde
mental, tendo em vista que suas famílias já eram protagonistas da educação integral de seus
filhos. Trata-se de uma realidade constatável que não se pode ignorar.

Na verdade, faltam currículos em que cada criança tenha a oportunidade de desenvolver


suas singularidades e a sua autonomia, falta também, ao atual sistema de ensino, conhecimento
do mundo adulto, estímulos à curiosidade e à concentração. As crianças deveriam conviver em
uma sociedade com pluralidade de pessoas de faixas etárias diversas (crianças menores, crianças
mais velhas, adolescentes, adultos e idosos), para que sejam libertas do fardo de viverem apenas
o presente, mas que possam conhecer o passado e o futuro.

15
Segundo a Dra. Rochele Paz Fonseca, o estudo internacional mais contundente até agora sobre a considerável
piora do fechamento das escolas em apenas 08 semanas é o de Engzel e Cols (2021). Disponível em:
https://revistardp.org.br/revista/article/view/416. Acesso em 16/06/2022.
16
PIRLS – Progress in International Reading Literacy Study. In: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-
atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/pirls. Acesso em: 01.06.2022.

15
2. Breve panorama sobre os problemas da educação escolar no Brasil

Ressalte-se que, nas duas últimas décadas, as medidas governamentais populistas


tomadas na seara educacional acarretaram um aumento exponencial do número de matrículas,
sobretudo no ensino superior, a exemplo do Programa Pátria Educadora lançado no Governo
Dilma Roussef. No entanto, a ampliação do número de vagas e de estudantes matriculados não
elevou proporcionalmente a qualidade do ensino. Investe-se uma parte vultosa do PIB nacional
em educação, mas os resultados dos estudantes brasileiros, em todos os níveis,
independentemente de pertencerem à rede pública ou privada, são pífios, se considerado o
valor investido. Isso se deve, em grande parte, à falta de políticas públicas consistentes de médio
e de longo prazo orientadas, sobretudo, para a educação básica (educação infantil, fundamental
e ensino médio).

Este panorama está começando a mudar com as políticas que vêm sendo implementadas
pelo Ministério da Educação e Cultura – MEC por meio do Programa Tempo de Aprender da
Secretaria de Alfabetização – SEALF, que tem promovido cursos gratuitos para professores e
gestores, sobretudo da rede pública de ensino.

Ocorre que as mudanças, além de serem lentas, por demandarem, precipuamente, uma
predisposição dos gestores educacionais, professores e pais à adoção de uma nova mentalidade
e de uma postura proativa de autoeducação, tiveram seu alcance prejudicado pela pandemia e
medidas restritivas adotadas, como o fechamento das escolas.

Vanessa Jacob Anzolin


Magaly Gouvêa Seri Fernandez

16
3. Direito natural dos pais na educação dos filhos

Direito natural dos pais na educação dos filhos


3.
As famílias que praticam o homeschooling (ou Educação Domiciliar), têm como um de
seus argumentos principais o fato de que o direito de educar os filhos em casa é um direito
natural. Natural, pois, explicar agora o que isto significa e qual a sua importância.

O jusnaturalismo é uma corrente jusfilosófica, fortemente defendida por grandes nomes


da história como, por exemplo, os filósofos gregos Sócrates e Platão, de forma indireta. De
forma direta por Aristóteles, Santo Agostinho de Hipona, Santo Tomás de Aquino, John
Finnis e, contemporaneamente, por Miguel Ayuso, José Pedro Galvão de Souza, Ives Gandra
e seu filho o Ministro Ives Gandra Martins Filho, o Desembargador Ricardo Dip e outros,
sendo estes quatro últimos nomes renomados juristas brasileiros.

O Direito Natural é, por definição, o direito que está intrínseco à natureza, ou seja, é um
sistema de normas de conduta que existe junto à realidade sem a necessidade de estar positivado

17
3. Direito natural dos pais na educação dos filhos

pelas normas fixadas pelo Estado. Seu valor é universal e “erga omnes”, ou seja, possui valor em
si mesmo e para todos, além disso, é anterior e superior ao Direito Positivo, apesar de que este
último o auxilia.

Dessa forma, é evidente reconhecer que faz parte da natureza humana ser
intrinsecamente social e dependente. E, de forma mais clara, esse fato é verificado na infância.
Efetivamente, uma criança não é apenas uma criatura atirada ao mundo, mas uma pessoa
humana com dignidade, esta defendida, inclusive, como um princípio fundamental na
Constituição brasileira. Incluso nesta dignidade não só o direito à educação, como também sua
necessidade. E essa educação parte primeiro dos pais, pois a família é a primeira instituição
apresentada à criança.

A própria etimologia da palavra educação demonstra isso. O termo “educare” vem de


“ex ducere” que significa a ação de levar para fora, isto é, instruir, mas não somente, também
significa o efeito de alimentar ou nutrir a prole. Alimentar e nutrir não é só o alimento material,
e, sim, a cultura, o aprendizado de forma intelectual, moral e cívica que é passado
primeiramente pelos pais.

Filhos e pais são, portanto, respectivamente, o educando e o educador por excelência,


sendo a escola, educadora em sentido análogo, e neste contexto uma instituição destinada a
colaborar com os pais na sua tarefa educativa.

Deste modo, o direito à educação domiciliar está fundamentado na natureza humana e


enraizada na realidade, sendo um direito para todas as pessoas; por isso, os direitos a educar e a
ser educado não dependem necessariamente de uma norma positiva, nem são uma concessão
da sociedade ou do Estado. São direitos primários dos pais e dos filhos, no sentido mais forte
que se possa dar ao termo.

Alan Freitas
Eulla Santana Ricardo
Fernanda Xavier Barbalho Bezerra
Karina Moraes
Rafael Durand Couto
Rosana Rabelo Montanini

18
4. Tratados internacionais e legislação brasileira

Tratados internacionais e legislação brasileira


4.
A educação domiciliar, além de direito natural, deve ser compreendida também como
um direito humano, na medida em que é tratada dessa forma pelos Tratados Internacionais.
Com isso, para a melhor compreensão dos direitos e deveres educacionais no ordenamento
jurídico brasileiro, devemos ler e interpretar os textos da nossa Constituição Federal e da
Legislação juntamente com os Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Os Tratados Internacionais de Direitos Humanos são acordos internacionais firmados


com a finalidade de proteger determinados interesses e, a partir do momento que estes são
promulgados no Brasil, recebem um status de supra legalidade (de acordo com entendimento
do Supremo Tribunal Federal), ou seja, possuem hierarquia inferior à Constituição Federal, no
entanto, superior à legislação pátria.

19
4. Tratados internacionais e legislação brasileira

Ao decorrer de todo o ordenamento jurídico brasileiro verifica-se a importância dada à


educação como direito da criança e do adolescente e dever da família e do Estado; entretanto,
em qualquer momento limita-se o dever dos pais em escolher a maneira que estes entendem
como sendo a melhor para promover a educação de seus filhos. Muito pelo contrário, como
veremos a seguir, de acordo com os acordos internacionais recepcionados pelo Brasil, verifica-
se claramente a primazia na liberdade dos pais em escolher como serão educados seus filhos.

O debate sobre o direito educacional em âmbito mundial passa a compor a agenda


internacional na Declaração sobre Educação para Todos17, no sentido de estabelecer esforços
à satisfação das necessidades básicas da educação global. O texto constitui-se de objetivos
distribuídos entre dez artigos e, ao final, é aprovado e apresentado o Plano de Ação para atingir
as respectivas metas.

Inicialmente, são diagnosticadas as mazelas educacionais que ainda persistem em muitos


países - em que pese o direito à educação estar garantido desde a Declaração Universal de
Direitos Humanos - traçando por meio de diretrizes norteadoras os objetivos capazes de reduzi-
las, adotando para tanto uma dimensão social, cultural e econômica, respeitando as
características de cada país.

O que mais chama atenção, porém, é o reconhecimento, em todo corpo do texto, do


papel fundamental das famílias que, sem uma atuação direta na educação, tornaria ainda mais
difícil o alcance e a concretização das proposições apresentadas. Assim, conforme preceitua o
artigo 7, no que tange ao fortalecimento de alianças, destacamos que “é particularmente
importante reconhecer o papel vital dos educadores e das famílias”.18

Nesta perspectiva, o direito à educação domiciliar encontra seu reconhecimento na


própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando afirma que “Os pais têm
prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos” (Artigo
26.3 – promulgado no Brasil por meio do Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1.999). É
simplesmente o acordo internacional mais importante do mundo, admitindo a prioridade no
direito natural (decorrente da própria natureza do homem) dos pais em escolher como instruir
os filhos.

17
Aprovada pela Conferência Mundial sobre Educação para Todos em Jomtien Tailândia de 5 a 9 de março de
1.990.
18
UNESCO, 1990.

20
4. Tratados internacionais e legislação brasileira

Ainda na linha dos Tratados Internacionais, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos, em seu Artigo 18.4 (Decreto nº 592, de 6 de julho de 1.992) estabelece que: “O
Estado deve se comprometer a preservar a liberdade dos pais e, quando for o caso dos tutores legais,
de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos, que esteja de acordo com suas próprias
convicções”. E esse mesmo texto é praticamente repetido na Convenção Americana de Direitos
Humanos, também conhecida como o Pacto de São José da Costa Rica, em seu Artigo 12.4
(Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1.992), bem como no Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, em seu artigo 13.1 (Decreto nº 591, de 6 de julho de 1.992),
ambos são acordos dos quais o Brasil também é signatário.

Por sua vez, o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos
em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, conhecido como Protocolo de São
Salvador (Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999), destaca no Artigo 13.3 que “De
acordo com a legislação interna dos Estados-Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de
educação que deverá ser ministrada aos seus filhos”. Com isso, verifica-se que os acordos
internacionais sempre vêm destacando em seus textos a liberdade de escolha dos pais ou
responsáveis no que tange à educação das crianças e adolescentes sob sua responsabilidade.

Por último, e não menos importante, a Convenção dos Direitos da Criança, adotada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989, e ratificada pelo Brasil 1.990 (Decreto nº
99.710, de 21 de novembro de 1.990), que serviu de fonte de inspiração ao legislador nacional
na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e que se caracteriza atualmente
como a norma internacional mais importante acerca da proteção dos direitos das crianças, diz
em seu Artigo 18.1 que: “Caberá aos pais, ou quando for o caso, aos representantes legais, a
responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança”.

É importante destacar que há também fundamentos jurídicos no direito positivo


brasileiro para a modalidade da educação domiciliar. Neste sentido, o artigo 266 da
Constituição Federal de 1.988, preceitua que “a família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado”. Ademais, o seu artigo 205 ainda define que: “a educação, direito de todos e
dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”.

E em harmonia com o texto constitucional, o Código Civil de 2002 estatui que:


“compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder
familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação” (art. 1.634,
I). A Lei das Diretrizes Básicas da Educação (LDB) e o próprio ECA (Lei nº 8.069/90) também

21
4. Tratados internacionais e legislação brasileira

se direcionam no entendimento de que a educação das crianças e adolescentes é


responsabilidade da família e do Estado, isto é, um não exclui necessariamente o outro desse
dever.

Por conseguinte, diante de todo esse arcabouço normativo nacional e internacional que
faz parte do ordenamento jurídico brasileiro, verifica-se que há o reconhecimento do papel do
Estado na promoção do acesso universal à educação; entretanto, há também o claro destaque
de que a primazia no direcionamento da educação dos filhos pertence indiscutivelmente aos
pais.

Esclarecendo ainda, que tal pertença faz parte da essência, da natureza da


responsabilidade paterna, como principal educador da mente em desenvolvimento da criança
e do adolescente, devendo obrigatoriamente garantir não somente a educação, mas também o
desenvolvimento integral dos filhos em qualquer ambiente, seja o escolar ou o domiciliar.

Alan Freitas
Eulla Santana Ricardo
Fernanda Xavier Barbalho Bezerra
Karina Moraes
Rafael Durand Couto
Rosana Rabelo Montanini

22
5. O que é homeschooling?

5.
O que é homeschooling?

O ensino domiciliar ou homeschooling é uma modalidade de educação que tem crescido


no Brasil e que pode ser acolhida pelos pais ou responsáveis legais que optarem por fornecer
educação formal e de qualidade aos seus filhos, majoritariamente em casa, ao invés de enviá-los
para a escola tradicional.

Esta escolha diferenciada pode acontecer por motivos diversos para cada família; dentre
os principais podemos citar: possibilidade de oferecer uma educação personalizada para cada
filho, propiciar uma educação adequada ao ritmo individual dos filhos, currículo e
metodologia diferenciadas, maior convivência familiar e estreitamento de vínculos,
aprendizado mais prático/pragmático, maior ênfase em formar amor pela leitura e produção
textual, sistema de avaliação do conhecimento adquirido diverso ao sistema escolar de provas,
foco na formação integral do indivíduo (intelectual, emocional, social, físico, espiritual), filhos

23
5. O que é homeschooling?

com necessidades especiais que apresentam dificuldade na aprendizagem em ambiente escolar,


sempre buscando o melhor interesse do estudante.

A modalidade, ainda que recente na realidade brasileira e que, por esse motivo, possa
causar estranheza, já é prática comum, estabelecida e respeitada em diversos países com índices
educacionais altíssimos, tendo apresentado inclusive índice de aproveitamento superior à
educação escolar nos Estados Unidos da América. Portanto, é prática internacional
consolidada e efetiva.

É importante ter em mente que se trata de modalidade de ensino de caráter opcional, ou


seja, que não visa suprimir a existência da educação escolar, muito menos do papel do professor,
conforme será explanado adiante e que possui características próprias, visando sempre o pleno
desenvolvimento do indivíduo, na qual é facultado aos pais ou aos responsáveis legais o direito
de escolha na forma e/ou metodologia de ensino, bem como a liberdade na aplicação do ensino
domiciliar.

Apesar do nome “domiciliar” remeter ao ensino ser efetivado em ambiente residencial é


importante destacar que o ensino domiciliar não enclausura nenhum estudante!

Na realidade, pessoas em ensino domiciliar são assíduas frequentadoras de bibliotecas,


museus, parques e praças públicas, além de priorizar muito estarem ao ar livre e aprenderem na
prática sobre a natureza. Costumeiramente também participam de aulas de esportes, de música
e canto, além de praticarem voluntariado e, em algumas famílias que professam alguma fé,
participam também da comunidade religiosa local.

Fica claro também que educandos em educação domiciliar estão sempre em ambientes
com pessoas, socializando em diversas situações cotidianas, com pluralidade de pessoas, ideias,
realidades e idades, aprendendo a socializar o tempo todo na realidade da vida. Assim, o
homeschooling proporciona uma socialização mais ampla, visto que existe convivência de
educandos com pessoas de todas as idades.

Um dos principais objetivos do ensino domiciliar consiste na condução dos educandos


à autonomia no processo de aprendizado, o chamado autodidatismo, ou seja, que estes recebam
as ferramentas necessárias para chegarem ao ponto de saber como aprenderem por si mesmos
sobre qualquer assunto, formação do caráter e valores, instrução formal, questões afetivas,
sociabilidade e aprendizado acadêmico, sendo este ensino aplicado em todas as situações
cotidianas e de forma personalizada explorando o potencial dos educandos.

24
5. O que é homeschooling?

Importante ressaltar que o ensino domiciliar pode ser oferecido por um ou ambos os
pais ou ainda por tutores e professores particulares contratados pelos responsáveis do
educando. Assim, não há que se falar em desvalorização do profissional da educação, visto que
um novo mercado se abre para os bons professores na realidade do homeschooling.

A questão documental em relação à certificação de conclusão de ensino também não


deve ser motivo de preocupação, visto que o Ministério da Educação disponibiliza o Exame
Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) para certificação
de qualquer indivíduo, independentemente de ter ou não frequentado o ambiente escolar.

A educação é direito de todos e dever do Estado e da família. O planejamento familiar é


de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos
para o exercício desse direito19. A modalidade de educação dos filhos faz parte do planejamento
familiar; dessa forma, entende-se que ambos têm o citado dever, de forma que o Estado não
possui primazia na educação dos filhos, mas, sim, a família, instituição que é base da sociedade.
A educação domiciliar é compatível com a Constituição Federal a partir dos princípios de
liberdade educacional e pluralidade pedagógica como um meio alternativo em comparação
com a escola formal. Ademais, a educação domiciliar está amparada no Sistema Internacional
de Proteção de Direitos Humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos20, em seu
artigo 26, prevê que “os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será
ministrada aos seus filhos”.

O Brasil ocupa a 58ª posição no Ranking de Liberdade Educacional da Oidel que é uma
organização não governamental com estatuto consultivo junto das Nações Unidas, UNESCO
e Conselho da Europa21. A educação domiciliar é oriunda dos Estados Unidos das Américas na
década de 60 e aplicada em mais de sessenta países de forma regulamentada. Inclusive, 85% dos
países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE
reconhecem o direito das famílias educadoras. A OCDE é uma organização internacional com

19
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 10/06/2022.
20
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.
Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em:
10 /06/2022.
21
ANED, Associação Nacional de Educação Domiciliar. Disponível em:
https://www.aned.org.br/index.php/conheca-educacao-domiciliar/perguntas-e-respostas. Acesso em:
10/06/2022.

25
5. O que é homeschooling?

sede na França composta por trinta e oito países membros que estimula a economia
internacional e as políticas públicas.22

Segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar23 , no Brasil, mais de 15 mil


crianças e adolescentes de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos são ensinadas em casa, são 7.500 (sete
mil e quinhentas) famílias presentes nas 27 unidades de Federação com taxa de crescimento de
aproximadamente 55% ao ano.

O ensino domiciliar é um fenômeno crescente no Brasil, um crescimento de mais de


2000% entre 2011 e 201824 e conforme o Supremo Tribunal Federal não é proibido25.
Importante mencionar que as famílias educadoras brasileiras não são contra a escola, apenas
querem ter seus direitos garantidos.

Após toda explanação, fica evidente o tamanho do esforço dos pais ou responsáveis na
busca por metodologias, técnicas e conteúdos para a educação domiciliar. A situação não causa
nenhuma espécie de prejuízo aos direitos das crianças e adolescentes, não havendo razões para
se adotarem medidas judiciais contra esses pais.

Portanto, faz-se necessário proteger as famílias educadoras contra a discriminação e o


preconceito, visto que a decisão pela educação domiciliar é muito séria, exige dedicação e
trabalho diligente, sendo opção de pais realmente preocupados em oferecer o que há de melhor
em educação para os próprios filhos. São famílias que merecem o respeito do Estado, até
porque estão agindo dentro do seu direito natural e legal de decidir o que é melhor para seus
filhos, já que são os protagonistas da educação destes de pleno direito.

Michelle Paola Pereira Coura


Stephany Lisbôa

22
BRASIL. Ministério da Educação - MEC. Educação Domiciliar, 2021, v.1.Disponível em
https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/ministerio-da-educacao-lanca-cartilha-de-educacao-
domiciliar. Acesso em 10/06/2022.
23
ANED, Associação Nacional de Educação Domiciliar. Disponível em:
https://www.aned.org.br/index.php/conheca-educacao-domiciliar/perguntas-e-respostas. Acesso em:
10/06/2022.
24
ANED, Associação Nacional de Educação Domiciliar. Disponível em:
https://www.aned.org.br/index.php/conheca-educacao-domiciliar/perguntas-e-respostas. Acesso em:
10/06/2022.
25
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº888.815/RS. Disponível em
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4774632. Acesso em: 10/06/2022.

26
6. A socialização da criança e do adolescente homeschooler

A socialização da criança e do adolescente homeschooler


6.
É necessário evidenciar questões atreladas à socialização da criança educada em caráter
domiciliar, ou como é mais difundida, aquela que é submetida à prática do homeschooling. Para
tanto, demonstrar-se-á o que de fato significa a socialização, bem como suas ramificações e os
mitos que são amplamente difundidos por aqueles que desconhecem a realidade do que vem a
ser a convivência da criança ou adolescente homeschooler no meio social.

6.1. O que é a socialização?

Em tempos de necessária conceitualização, urge esclarecer, afinal, o que é a socialização?


Muito se fala sobre o tema, porém, inúmeras são as ideias equivocadas acerca do assunto e, no
âmbito do homeschooling, chega a ser a objeção intransponível.

27
6. A socialização da criança e do adolescente homeschooler

Atualmente, define-se a socialização como “a habilidade de ter um bom relacionamento


com os outros, sendo aceito no meio social”; no entanto, tal conceito não deve ser analisado de
forma tão restrita e superficial.

Para os contrários à prática do homeschooling, a premissa parte do fato de que a criança


em educação domiciliar deve frequentar o ambiente escolar com o objetivo de experimentar a
convivência com outras crianças, ou seja, conviver com seus pares. Para a massiva parte das
pessoas, o núcleo escolar é o ambiente responsável pela socialização na infância.

A pergunta chave que deve ser apresentada é: que tipo de socialização a escola oferece?
Para os pais homeschoolers, sua casa, os ambientes que frequentam e não somente a escola,
oferece o tipo de socialização que eles desejam para seus filhos.

É importante que se saiba que o termo “socialização” oscila conforme diversos


entendimentos. Para alguns, o termo é centralizado em atividades sociais nas quais as crianças
possuem tempo de interação e brincadeiras com outras crianças, bem como, sua participação
em atividades extracurriculares como prática de esportes e música. Para outras pessoas, o
entendimento de “socialização” significa a exposição da criança a culturas e valores de
diferentes grupos de pessoas.

Embora tudo isso faça parte da socialização, o processo normalmente ocorre durante as
atividades diárias de uma criança enquanto ela interage com indivíduos, com a comunidade e
a cultura em geral. Logo, abarca diversas atividades no seio familiar, bem como, em meio às
atividades extracurriculares.

A fim de apresentar um dado estatístico e, levando-se em consideração que os Estados


Unidos já possuem consolidada a prática da educação domiciliar e inúmeras pesquisas e dados
acerca do assunto, utilizar-se-á como base as informações coletadas pelos institutos americanos.

Em pesquisa realizada no ano de 2.003 pela Associação de Defesa Legal do Ensino


Domiciliar - HSLDA nos Estados Unidos das Américas, e conduzida pelo Dr. Brian Ray, do
Instituto Nacional de Pesquisas sobre Educação Domiciliar, concluiu-se que 75% dos
formados em educação domiciliar entrevistados participam de serviços comunitários contínuo
em comparação aos 37% dos adultos americanos em idades semelhantes. Aferiu-se, ainda, que
88% eram membros de alguma organização (grupo comunitário, igreja, sinagoga, sindicato,
grupo de educação domiciliar ou organização profissional), em comparação a 50% da
população de adultos americanos. Chegou-se, ainda, à conclusão de que os alunos

28
6. A socialização da criança e do adolescente homeschooler

homeschoolers entrevistados têm mais envolvimento cívico do que outros da mesma faixa etária
e estão mais satisfeitos no que diz respeito à “alegria de viver”.26

A socialização não se resume na mera convivência com outros, mas sim na convivência
com todos, pois nada mais respeitoso e harmonioso do que uma criança ou adolescente que
possui a habilidade de manter um diálogo com outra menor do que ela, tanto quanto consegue
ter esse convívio com alguém de idade muito superior a sua, e isso não se aprende convivendo
apenas com um círculo de amigos que tem sua mesma idade, preferências ou estilo de vida, mas
com uma diversidade de pessoas, o que é absolutamente viável na educação domiciliar.

6.2. Como se dá a socialização da criança homeschooler ?

É no seio familiar que a criança começa a entender e perceber a cultura de sua casa, os
hábitos, os costumes, etc. Logo, a família é o início de tudo e o fundamento que a criança terá
para o seu crescimento e desenvolvimento. É nesse seio que as relações começam a ser
estabelecidas e onde a criança encontrará amor, compreensão, refúgio, bem como entenderá as
regras de convivência em sociedade.

Logo, à medida que a criança vai crescendo, ela participará de grupos sociais, tais como:
igrejas, clubes de esportes, áreas comuns do condomínio em que mora, etc. E, assim, ela vai
sendo inserida em vários e diferentes grupos e instituições, percebendo experiências distintas
que enriquecerão seu aprendizado.

As crianças começam, então, a ampliar seu conhecimento empírico sobre mundo,


desenvolvendo a habilidade de percebe-lo fora de si nas pessoas, seus parentes, amigos, o que
ela pode e não pode fazer (normas e costumes), etc.

Berger & Luckmann, (1976, p. 175), sob a ótica da “Sociologia do Conhecimento”,


definem a socialização primária como "a primeira socialização que o indivíduo experimenta na
infância, e em virtude da qual se torna membro da sociedade"; e socialização secundária como
"qualquer processo subsequente que introduz o indivíduo já socializado em novos setores do
mundo objetivo de sua sociedade".

26 HomeSchool Legal Defense Association (HSLDA), A Educação Domiciliar Cresceu, 2019, pp. 4-7.
Disponível em: https://www.aned.org.br/index.php/conheca-educacao-domiciliar/ed-no-mundo

29
6. A socialização da criança e do adolescente homeschooler

Dessa forma, podemos dividir a socialização em dois tipos:

• Socialização informal ou primária: ocorre junto à família e à vizinhança, aos


amigos. Neste ponto é onde a criança aprende e interioriza a linguagem, as
regras básicas da sociedade, a moral e os modelos comportamentais do grupo
a que pertence. A socialização primária tem um valor primordial para o
indivíduo e o marca em toda a sua vida, já que é aí que se constrói o seu
primeiro mundo.
• Socialização formal ou secundária: experimentada na escola, igrejas e clubes.
É todo e qualquer processo que introduz um indivíduo já socializado em
novos setores do mundo objetivo da sua sociedade (nos grupos de amigos, no
trabalho, entre outros), existindo uma aprendizagem das expectativas que a
sociedade ou o grupo depositam, relativamente ao desempenho, assim como
dos novos papéis que são assumidos nos vários grupos a que vamos
pertencendo e nas várias situações em que somos colocados.

São inúmeras as pesquisas e estudos que apontam para o fato de que alunos provenientes
do ensino domiciliar têm resultados satisfatórios e, em geral, acima da média em termos de
desenvolvimento social, emocional e psicológico. Ainda, demostram que adultos educados na
juventude mediante ensino domiciliar têm maiores níveis de tolerância política e são
politicamente mais ativos. A saber:

• Research facts on Homeschooling: exposição de resultados de pesquisas sobre


o ensino domiciliar, elaborada pela National Home Education Research
Institute, de janeiro de 2.018.
• ROMANOWSKI, Michael H. Revisiting the common myths about
homeschooling. The Clearing House: A Journal of Educational Strategies,
Issues and Ideas, v. 79, n. 3, p. 125-129, 2006: artigo científico que busca
desmistificar algumas “lendas” acerca do ensino domiciliar, dentre elas a de
que o homeschooling poderia prejudicar a socialização da criança;
• LEBEDA, Samantha. Homeschooling: Depriving Children of Social
Development?. J. Contemp. Legal Issues, v. 16, p. 99, 2007.: artigo científico
sobre a socialização de crianças educadas em ensino domiciliar.

Dessa forma, resta mais do que comprovada à existência de vários ambientes aptos a
promover uma intensa e saudável socialização de crianças e jovens, demonstrando-se por meio
de estudos que os pais que adotam o homeschooling possuem forte engajamento em atividades
extracurriculares as quais são aptas à promoção da socialização de seus filhos.

30
6. A socialização da criança e do adolescente homeschooler

6.3. Os efeitos da socialização

Sabemos que a socialização é parte fundamental na educação e formação do indivíduo.


Socializar é parte substancial da vida; logo, é muito importante que a criança ou adolescente
tenha contato com outros indivíduos de diferentes idades. No entanto, para que seja efetiva e
e positiva, a socialização ela deve ser constantemente intermediada pelos pais.

Os pais são os responsáveis pela educação e formação de seus filhos, de modo que a
principal socialização está intimamente ligada à família. O aprendizado de regras de boa
convivência perante a sociedade é primordialmente exercido dentro do seio familiar e isso, na
prática, ocorrerá de maneira muito simples, como por exemplo, inserindo a criança em
atividades domésticas, onde ela se sinta necessária, e, assim, desenvolva a autoconfiança, o
altruísmo e crie vínculos com seus pais depositando neles sua confiança, recebendo os
suprimentos para uma sociabilidade positiva.

O homeschooling não significa a segregação de crianças, sendo injusta a ideia de que


aquelas educadas em casa são privadas da interação social, pois, ao contrário da ideia dos que
sustentam a inviabilidade da citada modalidade de ensino, tais crianças participam ativamente
de práticas que vão além do ambiente familiar, tais como: frequência em parques,
brinquedotecas, clubes, prática de esportes, aulas de música, dança, idiomas, trabalhos
voluntários, frequência em entidades religiosas, dentre outros.

Inúmeras pesquisas confirmam que as crianças educadas em casa possuem uma


socialização tão sólida quanto às demais e participam de diversas atividades extracurriculares.
Além disso, tendem a ser menos conformistas e dependentes da pressão dos pares e, se
comparadas a crianças escolarizadas da mesma faixa etária, apresentam menos problemas de
comportamento.

Os professores de alunos homeschoolers (engajados em atividades extracurriculares)


reportam que eles apresentam mais habilidades sociais e menos problemas de comportamento.
Em colleges (universidades), tais alunos se destacam pelo bom desempenho social e pela
capacidade de liderança.27

27
ZAMBONI, F. A opção pelo homeschooling: guia fácil para entender por que a educação domiciliar se
tornou uma necessidade urgente em nossa época. Campina, SP: Kírion, 2020. p. 53.

31
6. A socialização da criança e do adolescente homeschooler

Logo, a socialização não é sinônimo de um alto número de crianças se distraindo e


brincando, mas na forma como são conduzidas, em um lar acolhedor e que contenha bons
exemplos.

Por outro lado, não podemos negar que as crianças possam se socializar com seus pares
no ambiente escolar; no entanto, essa modalidade de socialização poderá surtir efeitos
negativos, considerando a pressão de pares para que sejam aceitos em determinados grupos,
que certamente desenvolverá uma sociabilidade negativa. Ademais, estamos falando aqui de
uma realidade em que um grupo de crianças está aprendendo a se relacionar; logo não há como
uma aprender com a outra o que nenhuma sabe.

Segundo o psicólogo infantil Dr. Urie Bronfenbrenner, crianças abaixo do quinto ano
que passam a maior parte do tempo com outras de mesma idade do que com seus pais e outros
adultos, têm visão obscura de seus colegas, pais, de si mesmos e de seu futuro, e são prováveis
candidatos ao fracasso de aprendizagem e à delinquência.28

Deste modo, a socialização positiva está intimamente ligada ao relacionamento saudável


com a família. O convívio com adultos que possuem exemplos positivos em conjunto com o
vínculo criado entre pais e filhos certamente renderá bons frutos, formando adultos confiantes
e independentes da aprovação de seus pares.

Portanto, é clarividente que a escola não é o único ambiente de interação que existe para
a criança e para o adolescente e que eles podem socializar de muitas outras maneiras e com
inúmeras pessoas diferentes, sem qualquer prejuízo à sua sociabilidade.

Resta evidente que a socialização se dá muito além da esfera acadêmica, e que, cientes da
importância do convívio social, os pais adeptos à prática do homeschooling estão sempre
presentes e engajados com seus filhos em atividades extracurriculares, garantindo, assim, a
comunhão dessas crianças em sociedade.

Outro ponto que se buscou deixar evidente foi o de que, em que pese à criança tenha
um convívio com seus pares no ambiente escolar, é uma falácia afirmar que dessa relação se
darão apenas bons frutos, visto que, sem o controle parental, não se pode esperar que tudo o

28
D’ALMEIDA, N. Socialização Escolar: A socialização de faz de conta. Ebook (63 p.). Data da publicação:
14.05.2022. ASIN B0B1C222XN. Disponível em: https://amz.onl/2ewcPVw. Acesso em:
01.06.2022.p. 27

32
6. A socialização da criança e do adolescente homeschooler

que é vivido pelo aluno na escola, seja por ele absorvido de forma positiva, havendo, sim,
impactos negativos decorrentes de tal convívio.

Por fim, não há que se atacar a prática do homeschooling pela suposta ausência de
socialização, visto que, tal argumento cai por terra diante dos inúmeros dados estatísticos já
existentes e (ainda um pouco incipientes no Brasil) comprobatórios do contrário, asseverando
que a criança em educação domiciliar tem sua socialização preservada e amplamente realizada.

Ingryd Almeida
Aline Machado Carneiro dos Santos
Ana Carolina A. Griz

33
7. A constitucionalidade do homeschooling

A constitucionalidade do homeschooling
7.
7.1. Geografia Legislativa

A liberdade de escolha da modalidade de preferência da educação dos menores, apesar


de ser consequência do direito natural da família, possui respaldo também na lei, como será
demonstrado. Vejamos quais especificamente são, e onde estão essas normas.

Seguindo uma ordem hierárquica, a primeira lei a ser mencionada é a mais importante
do ordenamento, a Constituição Federal.

Promulgada em 1.988 e vigente até hoje, é a “rainha” das leis no Brasil. Tanto que
inaugura em torno de si um princípio de controle que dá origem a um tribunal, cuja função é
especificamente de assegurar a conformidade das leis que devem ser submissas a ela. Este é o

34
7. A constitucionalidade do homeschooling

Supremo Tribunal Federal, que também funciona como última instância para discussões
judiciais no país.

Nessa Constituição, a norma de maior influência sobre educação domiciliar é o artigo


205, o qual dispõe quanto à competência conjunta entre família e Estado no provimento da
educação às crianças e adolescentes no país.

“Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será


promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.”

E, conforme inteligência do Ministro Luís Roberto Barroso em julgamento do


Supremo Tribunal Federal sobre o assunto, neste artigo, está afirmada uma competência
“concorrente” justamente para se respeitar o direito natural familiar.

Não bastasse isto, a legalidade do homeschooling está garantida por uma outra alta
categoria de leis: os tratados internacionais.

Por causa do nosso sistema de integração de leis estrangeiras, via de regra, os tratados
internacionais que o Brasil adere são integrados aqui com condição “supralegal”. Isto é, uma
condição superior às demais leis, porém inferior à Constituição. Além disso, aqueles que
versem sobre direitos humanos são aqui integrados com condição de emenda à Constituição,
ou seja, tornam-se parte dela, a partir da sua aprovação segundo as regras da Constituição
Federal. Note-se o poder de um tratado internacional.

Fonte: https://www.infoescola.com/direito/hierarquia-das-normas/

35
7. A constitucionalidade do homeschooling

Neste âmbito, pode-se afirmar que há quatro grandes tratados internacionais sobre
direitos da criança, (somados a nada menos do que a Declaração Universal de Direitos
Humanos de 1.948), que tratam cristalinamente da soberania dos pais no dever de prover
educação formal aos filhos. São eles:

• Declaração Universal dos Direitos Humanos (1.948):


• Declaração dos Direitos das Crianças (1.959);
• Pacto de San José da Costa Rica (1.969);
• Carta dos Direitos das Famílias (Roma, 1.983);
• Convenção sobre os Direitos das Crianças (1.990):

"Art. 18 (...) Caberá aos pais, ou quando for o caso, aos representantes legais, a
responsabilidade primordial pela educação e pelo desenvolvimento da criança”
(BRASIL, 1.990).

3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será


ministrada a seus filhos (artigo XXVI).

Por isso, não parece razoável pensar que por causa da existência de uma lei,
infraconstitucional, inferior aos tratados internacionais e às demais legislações estabelecidas
hierarquicamente, que aborde uma suposta necessidade dos pais matricularem os filhos em
escolas, deva ser observada irrestritamente.

Seja o Estatuto da Criança e do Adolescente, seja a Lei de Diretrizes e Bases da Educação,


nenhuma lei infraconstitucional pode contradizer as leis ou tratados acima mencionadas.

A busca ativa indevida às famílias praticantes do homeschooling começa justamente com


essa confusão legislativa. Porque se considera, isoladamente, artigos dessas leis que rezam uma
obrigação dos pais em matricular os filhos em escolas. Ainda que, nas mesmas leis, haja artigos
que contradigam isso.

Por exemplo, na Lei de Diretrizes e Bases, o artigo 5º (que antecede o que trata dessa
obrigação) qualifica a educação escolar como direito público “subjetivo”, o que comprova que
a opção pelo sistema de ensino é uma faculdade dos pais, e que se quiserem o ensino escolar, o
estado tem a obrigação de garantir isso. Essa norma, aliás, concorda quase que literalmente com
o § 1º do artigo 208 da Constituição Federal.

36
7. A constitucionalidade do homeschooling

Curioso é que, no início dessa mesma lei, no § 1º do artigo 1º, afirma que a educação no
país deverá ser ministrada em “instituições próprias”. E logo em sequência, no caput do artigo
2º, ao falar do dever, qualifica duas instituições: “família e estado”.

Isso confirma, mais uma vez, que a lógica legislativa não contradiz as leis superiores, pelo
princípio do controle constitucional.

Por fim, tudo o que foi exposto demonstra a coerência do nosso ordenamento jurídico
com a permissão da atividade no país. Caso contrário, haveria uma inconstitucionalidade mal
resolvida no país, sobre a qual o Supremo Tribunal Federal já negou, conforme se verá a seguir.

7.2. O que disse o Supremo Tribunal Federal?

O Supremo Tribunal Federal tem a árdua missão de interpretar a Constituição Federal


e, na medida de sua competência e das suas limitações, trazer segurança jurídica ao povo
brasileiro. É humanamente impossível onze ministros atenderem às demandas de um país com
imensa dimensão continental e, diante dessa impossibilidade, foi criado uma ferramenta para
“unir” o julgamento de diversos recursos repetitivos para que em um razoável prazo, os
julgadores pudessem manifestar o seu entendimento sobre determinado tema. Essa ferramenta
chama-se: “Repercussão Geral”.

Na hipótese de existirem diversos recursos sobre um mesmo tema, “para efeito de


repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista
econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo”29.
Será escolhido um dos recursos que será o representativo da controvérsia, e ele será debatido
pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Todos os outros recursos ficarão sobrestados
(suspensos) até o julgamento deste que foi selecionado. Trata-se de um mecanismo importante
pois, com uma decisão bem fundamentada, pode-se definir uma infinidade de casos
semelhantes.

O tema apresentado foi o “Tema 822 - Possibilidade de o ensino domiciliar


(homeschooling), ministrado pela família, ser considerado meio lícito de cumprimento do dever
de educação, previsto no artigo 205 da Constituição Federal” e a tese fixada pelo Supremo foi

29
§ 1º do art. 1.035 do Código de Processo Civil.

37
7. A constitucionalidade do homeschooling

“Não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente
na legislação brasileira”.

O que, inicialmente, parece uma derrota ao direito dos pais de optarem pelo
homeschooling, na verdade se materializou em uma grande interpretação legislativa, que
ignorou os tratados internacionais descritos no título anterior, e, em grande parte, foi obtida a
manifestação dos Ministros sobre a constitucionalidade da prática. Quem sabe se não tivessem
ignorado os tratados internacionais, poderiam ter fixado uma tese mais apropriada.

Adiante serão colacionados trechos da discussão dos Ministros no julgamento do


Recurso Extraordinário 888.815 do R.S., representante da controvérsia, de onde nasceu o
Tema 822:

Ministro Luís Roberto Barroso:

“[...]

Diante disso, parece-me que o ensino domiciliar comporta e harmoniza as


finalidades diversas da educação expressas na Constituição, considerando que: (i)
preenche o interesse das crianças e adolescentes de que lhes sejam transmitidos os
conhecimentos e as ferramentas necessários para o pleno desenvolvimento de suas
capacidades (art. 205, CF/88); (ii) respeita as concepções e interesses dos pais na
criação dos seus filhos (arts. 206, II e III; e 229, CF/88); e (iii) contribui para a
formação de “bons” cidadãos, imbuídos de valores cívicos, que pratiquem a
tolerância e o respeito mútuo e tenham condições de participar ativamente da vida
pública. Em síntese, embora a Constituição de 1.988 não tenha tratado
expressamente do ensino domiciliar, a interpretação das normas que regulam o
direito à educação leva à conclusão de que o texto constitucional permite os pais e
responsáveis a escolherem o método pedagógico pelo qual seus filhos receberão a
educação formal, o que, a meu ver, inclui a possibilidade de educação doméstica como
alternativa à matrícula na rede regular de ensino.”

Ministro Alexandre de Moraes:

“A análise conjunta dos arts. 226, 227 e 229 da Constituição, que tratam da parte
de família, criança, adolescente e do jovem, colocando-os como principais sujeitos de
direito, com os arts. 205, 206 e 208, que disciplinam a questão educacional, leva à
conclusão de que não há vedação absoluta ao “ensino domiciliar” no Brasil.

38
7. A constitucionalidade do homeschooling

[...]

A finalidade não foi criar uma rivalidade Estado/família, mas promover uma
cooperação solidária, uma união de esforços que resultasse em maior efetividade na
educação das novas gerações, até porque somente em Estados totalitários – e isso já
ocorreu na História recente da humanidade - se afasta a família da educação e
formação de suas crianças e adolescentes. Somente em Estados totalitários se impede
a liberdade individual de participação na escolha do que ensinar, aprender; somente
em Estados totalitários a educação e ensino são reservados exclusivamente nas mãos
do Estado, retirando-se qualquer participação da família e da sociedade.

[...]

Dentro dessas regras, permite-se a possibilidade do ensino domiciliar, porque a


execução desse núcleo básico obrigatório, que é componente do direito à educação, não
é exclusividade do Poder Público. Isso a própria Constituição deixa claro, porque
permite e consagra como um dos princípios regentes de ensino, logo no art. 206, III, a
coexistência de instituições públicas e privadas, inclusive, prevendo no art. 213 a
possibilidade de destinação de recursos a escolas comunitárias, confessionais,
filantrópicas; ou seja, não há uma exclusividade do fornecimento do ensino básico
obrigatório pelo Poder Público, o que há é uma obrigatoriedade de aquele que
fornecer o ensino básico obrigatório observar todos os princípios, preceitos e regras
determinados pelo texto constitucional [...]”.

Ministra Cármen Lúcia:

“Sem nada a dizer sobre a possibilidade, menos ainda, sobre a constitucionalidade,


porque não vislumbro, aprioristicamente, incompatibilidade de se chegar a um
modelo que adote no sistema e que enquadre este instituto dessa educação em casa - e
que pode ser extremamente fecunda, pode ser a melhor escola, pode muitas vezes ser
um ensinamento que não exclua ninguém -, mas que ela não sirva, principalmente,
sem qualquer marco normativo, como a possibilidade de se negar educação, que é o
que mais nos preocupa.”

Ministro Dias Toffoli:

“Eu penso que não há como nós dizermos, de imediato, desde logo, que o
homeschooling é absolutamente incompatível com a Constituição, pedindo vênia aos
Colegas que votaram no sentido da inconstitucionalidade do homeschooling. Eu

39
7. A constitucionalidade do homeschooling

penso que a educação é um dever de todos e, sendo um dever de todos, ela não pode ser
vista como um monopólio do Estado, mas uma obrigação do Estado.”

Ministro Edson Fachin:

“Sob essa perspectiva, seria possível aduzir, na linha de diversos memoriais juntados
aos autos, que a educação domiciliar é, em verdade, um método de ensino – ou, quiçá,
um ensino individualizado – e, como tal, pode ser escolhido pelos pais como forma de
legitimamente garantir a educação dos filhos. O homeschooling seria, assim, apenas
uma entre as várias técnicas de ensino, razão pela qual, nos termos do art. 206, III,
da CRFB, caberia ao Estado garantir o pluralismo das concepções pedagógicas.

[...]

Mas negar aos pais e às crianças eventual acesso a uma técnica eficaz poderia violar
o mesmo pluralismo que, agora, se requer em relação às ideias que devem circular na
sociedade. Desde que atendidos os princípios constitucionais relativos à educação,
nenhuma concepção pedagógica pode ser aprioristicamente afastada.

[...]

Assim, acompanho o e. Relator para reconhecer a legitimidade da pretensão de ver a


educação domiciliar incluída na política pública educacional. Nada há no texto
constitucional que o impeça, desde que observados os princípios ali estabelecidos. Logo,
acolho a tese segundo a qual é constitucional o direito de liberdade de educação no
recesso do lar.”

Diante da análise das razões dos Ministros no julgamento do R.E. 888.815, Tema 822
do Supremo Tribunal Federal, é possível ver a sinalização clara da corte no sentido da
constitucionalidade do ensino domiciliar, o qual aguarda a devida regulamentação pelo
parlamento.

7.3. Movimentação parlamentar

Em Brasília, o projeto de Lei nº 1.388/22 que regulamenta a prática do homeschooling,


está aprovado na Câmara dos Deputados, após consenso inédito entre os Deputados Federais.
Resta a tramitação no Senado, que já ocorre no momento, e a posterior sanção presidencial.

40
7. A constitucionalidade do homeschooling

Como seria possível os deputados aprovarem um projeto de lei que trate de matéria
inconstitucional ou ilegal?

A constitucionalidade é questão de ordem primordial em nosso sistema, e deve ser


suscitada a qualquer momento.

Por que não foi suscitada, nem mesmo por adversários políticos da pauta? Este é mais
um sinal da constitucionalidade da matéria.

É interessante sublinhar como os dispositivos do PL 1.388/22, acompanharam as


reflexões dos ministros do Supremo Tribunal Federal quando da fixação do tema 822, acima
comentado, no sentido da cooperação solidária da família com o Estado e das diretrizes da
educação.

Apenas será questão de regulamentar a prática, mas essa movimentação legislativa é


prova cabal do propósito deste capítulo, ou seja, a constitucionalidade da prática do
homeschooling.

Pedro Tomaz Manfrim


Ticius Godoy

41
8. Homeschooling não configura crime de abandono intelectual

Homeschooling não configura crime de abandono intelectual


8.
A Constituição Federal assevera em seu artigo 205 que a educação é um DIREITO de
todos e DEVER tanto do Estado quanto da família, sendo importante destacar que a família
exerce papel fundamental na premissa em educar o indivíduo desde sua tenra infância.

Não se trata apenas de garantir que o filho ou o menor sob sua responsabilidade tenha
uma educação básica de qualidade, mas significa garantir-lhes princípios e valores morais, a fim
de que se possa construir uma sociedade livre, justa e solidária.

Neste sentido, é importante destacar que, por tratar-se de um direito do menor e um


dever tanto da família quanto do Estado, em caso de omissão ou negligência no dever de
educar, a legislação garante um tipo penal que se amolde a isso; de forma que, caso os pais ou
responsáveis legais deixem de garantir a educação básica aos filhos ou aos menores sob sua
responsabilidade, respondam criminalmente por sua conduta.

42
8. Homeschooling não configura crime de abandono intelectual

O artigo 246 do Código Penal estabelece que, o pai, mãe ou responsável legal que deixar
de garantir a instrução primária do filho em idade escolar sem justa causa, responderá pelo
crime de abandono intelectual que possui pena de detenção de 15 dias a um mês, ou multa.

Na parte inicial do artigo de Lei é previsto o termo “sem justa causa”, sendo este um
termo abstrato que necessita ser melhor compreendido, a fim de se evitar abusos ou mesmo
falsas denúncias para este tipo penal.

Em uma análise inicial, verificamos que o artigo 246 do Código Penal estabelece o termo
sem justa causa para a prática do crime, entendendo-se que em casos que figurem a justa causa,
não ocorre o referido delito.

Importante informar que as situações nas quais um menor de idade não está
efetivamente matriculado em instituição regular de ensino deve ser averiguada caso a caso, uma
vez que a justa causa enseja juízo de valor.

Salienta-se que todo o aparato legal, em verdade, visa proteger o menor em situação de
vulnerabilidade, a fim de que seus responsáveis não deixem de prover a educação básica, uma
vez que no Brasil, o ensino primário ocorre dos 4 aos 17 anos de idade.

Importante destacar que a legislação penal se pauta em diversos princípios e, dentre eles,
o da lesividade que abarca, dentre outras funções, proibir a incriminação de condutas desviadas
que não afetem qualquer bem jurídico, no caso do artigo 246 do Código Penal, à formação do
menor.

Conforme Rogerio Greco:

“De acordo com o artigo 246 do Código Penal o abandono intelectual consiste em
deixar, sem motivo justificável, de prover à instrução primária de filho em idade
escolar. O direito ao ensino fundamental do filho que se encontra em idade escolar é
o bem que se procura proteger por meio da incriminação contida no tipo penal”.
(Greco, 2017, p. 902)

Ainda sobre o núcleo do artigo 246, aborda-se a questão de deixar de prover a instrução
primária aos filhos, o que certamente não ocorre com a educação domiciliar.

O artigo estabelece que os pais devem prover a instrução primária dos filhos, no entanto,
o artigo não estabelece em qual modalidade tal instrução deverá ser fornecida. Cabe aos pais a

43
8. Homeschooling não configura crime de abandono intelectual

escolha do método educacional que melhor atenda aos interesses de seus filhos, levando-se em
consideração a individualidade de cada ser humano.

Alguns tratados internacionais, conforme demonstrado acima, destacam que cabe aos
pais a escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos, e, ainda, a educação
religiosa e moral a estes, de acordo com suas próprias convicções.30

O homeschooling é uma modalidade educacional em que os pais educam seus filhos em


casa, sendo assim, estes pais não deixam de prover a instrução primária a seus filhos; pelo
contrário, os pais substituem a instrução formal fornecida na escola pela instrução
empreendida por eles, destacando-se que não somente os pais serão os únicos responsáveis pela
educação formal, podendo estes contratar tutores ou professores, nas matérias em que julgarem
necessárias.

A educação domiciliar abarca uma minoria que, insatisfeita com a educação formal
proposta pelas instituições de ensino, não aceita delegar nenhuma atribuição educacional à
escola; sendo certo que essa minoria deve ser respeitada com base no pluralismo político.

Com efeito, o próprio Supremo Tribunal Federal (RE 8888815) votou pela
constitucionalidade do homeschooling. Com exposição do voto do Ministro Barroso que foi
categórico ao afirmar:

“Fixo, em repercussão geral, as seguintes teses: 1. É constitucional a prática de ensino


domiciliar (homeschooling) a crianças e adolescentes em virtude da sua
compatibilidade com as finalidades e os valores da educação infanto-juvenil,
expressos na Constituição de 1.988. Portanto, à primeira indagação que formulei no
início do meu voto - se é possível, à luz da Constituição, a educação domiciliar - eu
estou respondendo afirmativamente”.

Em continuação a seu voto, o Ministro entendeu que a prática é constitucional e deve


ser regulamentada pelo Congresso Nacional através de legislação federal.

Tendo em vista recente julgado do Pretório Excelso que declarou a constitucionalidade


do modelo de educação domiciliar, pode-se concluir que os pais que adotam tal modalidade de
ensino não devem ser enquadrados no tipo penal do artigo 246 do Código Penal.

30
Declaração universal de direitos humanos, art. 26; Pacto Internacional de direitos civis e políticos, decreto nº
592 de 06/07/1.992.

44
8. Homeschooling não configura crime de abandono intelectual

Em recente avanço, foi aprovado pela Câmara dos Deputados o PL 3179//2012 que
versa sobre a regulamentação da educação domiciliar no Brasil, no qual foi previsto em seu
texto a reforma do artigo 246 do Código Penal a fim de se retirar a tipicidade do crime de
abandono intelectual das famílias que optarem pelo ensino domiciliar, conforme se verifica:

“Art. 3º O disposto no art. 246 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940


(Código Penal), não se aplica aos pais ou responsáveis legais que optarem pela oferta
da educação básica domiciliar, nos termos do art. 1º desta Lei.”

Podemos assim concluir que os pais ou responsáveis legais que optam pela educação
domiciliar não incorrem na prática do crime de abandono intelectual, uma vez que os mesmos
proveem a instrução primária de seus filhos, sendo oportuno destacar que se trata de hipótese
educacional tida por constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, carecendo de legislação
infraconstitucional que, atualmente, encontra-se em trâmite para aprovação no Senado.

Rossana Mendonça Farias


Raíssa Marelli Pelissari

45
9. Princípio do melhor interesse da criança

Princípio do melhor interesse da criança


9.
Esse princípio é de suma importância, uma vez que rege toda e qualquer decisão que
envolve a criança e o adolescente.

Historicamente, com as alterações constitucionais e a recepção dos tratados


internacionais (Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1.959, e na Convenção
Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José, ratificada em 1.992), dos
quais o Brasil é signatário, passa a criança ser reconhecida como sujeito de direito, tendo direito
à vida, a um nome, à nacionalidade, a preservar sua identidade, à liberdade de expressão e
opinião, devendo ser ouvida em todo processo judicial que lhe diga respeito, à liberdade de

46
9. Princípio do melhor interesse da criança

pensamento, de consciência, de crença, de associação, enfim, tem reconhecidos a dignidade


inerente e os direitos iguais e inalienáveis. 31

9.1. Crianças “atípicas” e a aplicação do princípio

Seguindo esse raciocínio vamos pensar nas crianças chamadas atípicas, destacamos
Espectro Autista, TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), superdotação,
dentre outras, cujas potencialidades não são devidamente exploradas em ambiente escolar, em
função do número de alunos em sala de aula, o que torna impossível o atendimento
personalizado pela professora regente, gerando frustração para o professor e inadequação para
a criança.

Em contrapartida, se a elas é oferecido por suas famílias uma educação personalizada em


seus lares, essas dificuldades desaparecem e desta forma viabilizamos o desenvolvimento
intelectual e social dessas crianças, fazendo valer o Princípio do melhor interesse da criança,
pois seus interesses e direitos são amplamente garantidos.

Portanto, permitir o homeschooling significa promover uma sintonia entre os institutos


que têm o dever constitucional de atender o melhor interesse da criança – a Família e o Estado.

9.2. Estatuto da criança e do adolescente – Análise do Artigo 55 combinado com o


Artigo 6º

A obrigatoriedade expressa no artigo 55 do Estatuto, qual seja, a da matrícula escolar da


criança e adolescente, carece de interpretação em conjunto com o artigo 6º cuja premissa é o
melhor interesse da criança.

“Art. 55. Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos
na rede regular de ensino.”

31
TORRES, R. L.; TAKAOCA, E. T.; GALDINO, F. Dicionário de princípios jurídicos. 2011, Elsevier
Editora Ltda. São Paulo/SP. P. 836.

47
9. Princípio do melhor interesse da criança

“Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se
dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a
condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.” 32

Quando lemos “levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige”, temos presente o
Princípio do melhor interesse da criança, que tem como objetivo do legislador (aquele que cria
a lei) e do Juiz (aquele que aplica a lei) criar e aplicar uma lei que atenda o melhor interesse da
criança de maneira geral.

No Direito, uma lei jamais deve ser interpretada de forma isolada; tal interpretação é
conhecida como interpretação sistemática, que segundo FARIAS

“é aquela que analisa a norma levando em consideração o sistema em que ela está
inserida”. A interpretação sistemática parte do pressuposto “de que a lei não existe
isoladamente, devendo ser alcançado o seu sentido em consonância com as demais
normas que inspiram aquele ramo do Direito”.33

9.3. Posicionamento do STF em relação à prática do Homeschooling

O Supremo Tribunal Federal julgou, em regime de repercussão geral, o Recurso


Extraordinário nº 888.815, de modo que o conteúdo da decisão valerá como paradigma para
os demais casos análogos. Nesta decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal reconhece a
constitucionalidade do ensino domiciliar no Brasil, mas pontuou a necessidade de
regulamentação da matéria através de lei específica. Tal decisão, no entanto, abrangeu o ensino
domiciliar genérico, indiscriminadamente.34

O ministro Alexandre de Moraes entendeu que deve existir solidariedade do Estado e a


família no dever de cuidar da educação das crianças, conforme preceitua os artigos 205 e 227,
da Constituição Federal e, em relação à liberdade dos pais, na escolha da Educação, cita o artigo
226 da Constituição Federal.

32
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. 17/06/2022.
33
FARIAS, C. C. de; ROSENVALD, N.. Curso de direito civil: parte geral e LINDB, volume 1. São Paulo:
Atlas, 2020.
34
Disponível em:
http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Camara_Especial/Ac%C3%B3rd%C3%A3o%20RE%208
88.815%20-%20Homeschooling.pdf Acesso em: 17/06/2022.

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9. Princípio do melhor interesse da criança

Todavia, o Acórdão não abarcou o melhor interesse da criança, conforme dispõe o


artigo 6º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, tratando-o de maneira genérica.

Quando atende a finalidade do melhor interesse da criança, ele deve ser aplicado, e o
julgador não deve tomar por base o julgado, mas o princípio que está sendo melhor atendido
quando se aplica o ensino domiciliar. Para não haver conflito com a interpretação do artigo
227 da Constituição Federal, o Estado entra como cooperador, através dos Conselhos
Tutelares, Assistentes Sociais, Ministério Público e o próprio juízo.

Em suma, aplicar o melhor interesse da criança - um dos princípios norteadores do


Estatuto da Criança e do Adolescente, no homeschooling, é dizer que o respeito ao texto
constitucional será assegurado, na medida em que família, escola e Estado estejam totalmente
integrados e comprometidos na educação domiciliar.

Vania Maria dos Santos Vieira


Bianca Bruna Clock Stall

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10. O poder discricionário do Conselho Tutelar

O poder discricionário do Conselho Tutelar


10.
(ARTIGOS 136 E 137 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E ADOLESCENTE)

Neste tópico, passaremos a tecer considerações sobre o poder discricionário do


Conselho Tutelar em suas decisões como um todo, destacando-se no que se refere ao caso da
Educação Domiciliar, vez que não identificada violação de direito e, ainda, verificado que o
melhor interesse da criança e do adolescente está sendo observado, (como ocorre nos casos de
Ensino Domiciliar dada a elevada qualidade do ensino individualizado que é ofertado pelos
pais), o Conselho Tutelar tem o poder de decidir pelo arquivamento do caso sem incorrer em
qualquer falha de atuação ou prevaricação, respaldo em sua autonomia legal.

Para melhor entendimento do assunto, é necessário esclarecer sobre o que é o Conselho


Tutelar, suas funções, atribuições legais e sua importância na sociedade.

50
10. O poder discricionário do Conselho Tutelar

10.1. Conselho Tutelar

Encontram-se previstas nos artigos 131 a 140 do Estatuto da Criança e do Adolescente


- Lei 8069/90 as disposições referentes ao Conselho Tutelar.

A definição contida no artigo 131 do mencionado Estatuto declara expressamente o que


é o Conselho Tutelar, vejamos:

• Órgão permanente: deve existir independentemente da vontade do poder


executivo da cidade ou outros interesses;
• Órgão autônomo: é a chave de seu poder discricionário que discorreremos
aqui.

Essa autonomia engloba tanto o aspecto de como o Conselho Tutelar cumprirá suas
atribuições no sentido de que ações realizar, a forma como se relacionará com as famílias,
comunidade, sociedade e Poder Público na defesa dos direitos das crianças e adolescentes, bem
como quais medidas e em quais momentos serão aplicadas, sempre visando atender o melhor
interesse da criança e do adolescente. São decisões exclusivas do Conselho Tutelar que não
deverão sofrer interferências.

• Órgão não jurisdicional: o Conselho Tutelar tem natureza administrativa, é


ligado (administrativamente) ao Poder Executivo Municipal; sendo assim,
não pertence ao Poder Judiciário nem existe estritamente para cumprir
ordens do judiciário ou Ministério Público; deve pautar suas ações conforme
suas atribuições visando proteger e zelar pelos direitos das crianças e
adolescentes.

O Conselho Tutelar é composto por Conselheiros eleitos pelos munícipes, pois se


entende que o órgão deve ter íntima relação com a comunidade, conhecendo e entendendo a
realidade, de forma que consiga melhor atender às famílias que representa.

Cabe salientar, ainda, que o termo “zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e
adolescentes” significa que o Conselho Tutelar não tem a função de atender, mas sim garantir
que estes direitos sejam atendidos pelos órgãos competentes, tendo como função fiscalizar,
zelando pelo seu cumprimento, garantindo que os serviços sejam devidamente prestados e
podendo para tanto requisitar serviços indispensáveis, provendo a defesa desses direitos.

Explicitada essa breve noção referente ao Conselho Tutelar, seguimos para análise
detalhada do artigo 136 da Lei 8069/90, no qual consta as atribuições do órgão.

51
10. O poder discricionário do Conselho Tutelar

“Art. 136 – São atribuições do Conselho Tutelar:

Inciso I – atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105,
aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII;”

A princípio, deve ser esclarecido que conforme previsão artigo 2º do Estatuto da


Criança e Adolescente se considera criança a pessoa até doze anos de idade incompletos e
adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

A ideia de criação do Conselho Tutelar veio pela busca de saciar a sede de democracia
de crianças e adolescentes indefesos, pois começou a tomar forma juntamente com a
Constituição Federal; assim, quando se tem o verbo “atender”, nada mais é do que manter a
integridade que uma criança ou adolescente necessita.

Para Guilherme Nucci, a atribuição do Conselho Tutelar é “a proteção direta infanto-


juvenil no tocante a ameaças e violações advindas da sociedade, do Estado, dos pais ou
responsável ou, ainda, em função da própria conduta dos que merecem tutela, quando se
colocam em perigo. Além disso, ocupa-se dos atos infracionais cometidos por crianças”.
Atender crianças e adolescentes, portanto, significa dizer que o papel do conselheiro tutelar é
de defesa e proteção de seus direitos. Além do mais, como já mencionado, o Conselho Tutelar
é autônomo para definir suas ações no cumprimento de suas atribuições legais, desde que
amparado em lei.

O inciso I faz menção ao artigo 98, ao trazer as hipóteses de medidas de proteção à


criança e ao adolescente, sendo aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos na Lei forem
ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; ou por falta, omissão
ou abuso dos pais ou responsável; ou mesmo em razão de sua conduta.

Ainda, faz menção ao artigo 105, pois quando se refere ao ato infracional praticado por
criança, corresponderão às medidas previstas no artigo 101, ou seja, medidas como orientação,
apoio e acompanhamento temporários; matrícula e frequência obrigatórias em
estabelecimento oficial de ensino fundamental; inclusão em serviços e programas oficiais ou
comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e do adolescente; requisição
de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;
inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras
e toxicômanos; - acolhimento institucional; inclusão em programa de acolhimento familiar; ou
colocação em família substituta.

52
10. O poder discricionário do Conselho Tutelar

O abrigo em entidades deverá ser medida extrema, devendo figurar somente como
medida provisória e excepcional, haja vista a complexidade em que se trata a situação.

“Inciso II – atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as medidas


previstas no art. 129, I a VII;”

O atendimento ou aconselhamento aos pais ou responsável é em virtude da


problemática existente na maioria das famílias, pois muitas crianças e adolescentes vivenciam
situações decorrente de falta de estrutura ou suporte da família, impossibilitada muitas vezes
sustentar e zelar pela prole.

Cabe à Instituição a orientação e aconselhamento, como também explicar acerca das


consequências que poderão advir, caso não se ajustem à necessidade das crianças e adolescentes,
pois o descumprimento das decisões se torna infração administrativa aos pais ou responsável,
conforme medidas previstas no artigo 129, I a VII do Estatuto da Criança e do Adolescente,
podendo os pais ou responsável ser encaminhados a serviços e programas oficiais ou
comunitários de proteção, apoio e promoção da família; ou inclusos em programa oficial ou
comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; ou encaminhados
a tratamento psicológico ou psiquiátrico; ou encaminhados a cursos ou programas de
orientação; ou obrigados a matricular o filho ou pupilo e acompanharem sua frequência e
aproveitamento escolar; ou obrigados a encaminhar a criança ou adolescente a tratamento
especializado; ou mesmo atribuir advertência.

Insta salientar que este papel é de suma importância na função do Conselho Tutelar,
que por vezes poderá sanar os problemas da violação de direitos com orientação e
acompanhamento, desmistificando também o papel do Conselho como sendo um poder de
polícia, mas sim um órgão que deve ser acolhedor e agir pelo bem da família, a intenção sempre
será ajudar essa família a se ajustar e seguir protegendo seus filhos.

“Inciso III – promover a execução de suas decisões, podendo para tanto:

a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social,


previdência, trabalho e segurança;”

Esta é uma importante ferramenta, pois o poder de requisição confere efetividade às


decisões do Conselho Tutelar e não deixa que se torne um órgão apenas consultivo, aplicam-
se medidas e executam-se suas decisões por meio da requisição de serviços públicos nas áreas de
saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança. Cabendo, ainda, a requisição
de serviços de outras áreas não mencionadas no inciso.

53
10. O poder discricionário do Conselho Tutelar

Assim, cabe requisitar, ou seja, exigir que se cumpra a decisão imposta e, justamente por
esse motivo, a Lei confere a autonomia ao órgão que, por vezes, terá que agir contra a própria
administração pública que viola o direito de crianças e adolescente ao não prestar serviços
públicos adequados, por exemplo.

“b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento


injustificado de suas deliberações;”

Quando se trata de acionar o judiciário, concede-se a faculdade do Conselho Tutelar


utilizar a capacidade postulatória que lhe é permitida conforme previsão do artigo 194 e
seguintes do Estatuto, dando a possibilidade de figurar como autor para discutir os
descumprimentos injustificáveis de suas decisões.

“Inciso IV – encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua


infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente;”

Já no caso de ciência de algum fato que constitua crime ou infração administrativa, o


Conselho Tutelar deverá encaminhar ao Ministério Público, a única autoridade competente
para promover a notícia- crime ao juízo. Poderá, ainda, encaminhar a notícia ao Ministério
Público solicitando providências, como a instauração de inquérito policial e o requerimento
da designação de curador especial.

“Inciso V – encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência;”

Guilherme Nucci esclarece ser um inciso óbvio, pois traz a proteção dos direitos da
criança e do adolescente, para que não se alegue no futuro falta de previsão legal, caso o
Conselheiro deixe de comunicar o fato grave ao juiz, não havendo que se falar em desculpa de
não existir determinado dever.

A possível destituição familiar não pode trazer atitudes irresponsáveis, portanto, a


importância de comunicação da autoridade competente.

“Inciso VI – providenciar a medida estabelecida pela autoridade judiciária, dentre


as previstas no art. 101, de I a VI, para o adolescente autor de ato infracional;”

A autoridade judiciária deve especificar medida para o Conselho Tutelar, ou seja, as


providencias pelo Conselho Tutelar já devem vir estabelecida pelo juiz, dentre as do artigo 101,
I a VI do Estatuto da Criança e do Adolescente.

54
10. O poder discricionário do Conselho Tutelar

“Inciso VII – expedir notificações;”

A notificação traz como definição

“a comunicação de um fato juridicamente relevante, cumulada com pedido de


providências ou cientificando, formalmente, o descumprimento de uma obrigação.
Ela não vale, por si, como instrumento de coerção, dependerá do ajuizamento futuro
da ação cabível” (GUILHERME NUCCI).

É uma ferramenta de trabalho do conselheiro tutelar para o cumprimento de suas


atribuições, trata-se de uma convocação para comparecimento no Conselho Tutelar.

“Inciso VIII – requisitar certidões de nascimento e de óbito de criança ou adolescente,


quando necessário;”

Aqui o inciso reforça o poder de requisição do conselho de forma mais específica aos
casos de certidões; é uma ordem, porém, na verdade, trata-se de um direito que a criança tem
de manter sua integridade como ser humano, devendo ser requisitado quando necessário, ao
Conselho Tutelar, para fins de sua atuação ou para auxiliar quem perdeu e vai em busca de
auxílio junto ao Conselho.

“Inciso IX – assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta


orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do
adolescente;”

O Conselho Tutelar é o órgão mais adequado para “auxiliar a Prefeitura e elaborar


proposta orçamentária, se ser aprovada pelo Legislativo, incluindo todos os gastos para atender
a área da infância e juventude local” (GUILHERME NUCCI).

Dessa atribuição decorre a

“íntima relação que deve existir entre o Conselho Tutelar e o Conselho Municipal
dos Direitos da criança e do adolescente (CMDCA), que delibera a política
municipal e destina recursos do fundo para programas que atendam as prioridades
apontadas” (HEMERSON GOMES COUTO).

55
10. O poder discricionário do Conselho Tutelar

“Inciso X – representar, em nome da pessoa e da família, contra a violação dos


direitos previstos no art. 220, § 3º, inciso II, da Constituição Federal;”

O artigo 220, parágrafo 3º, II, da Constituição Federal prevê o

“estabelecimento de meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade


de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem,
entre outros previstos no artigo 221 da Constituição Federal, a preferência a
finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas, e o respeito aos valores
éticos e sociais da pessoa e da família” (HEMERSON GOMES COUTO).

O Conselho Tutelar é um dos meios legais criados para garantir os direitos das crianças e
adolescentes, minimizando quaisquer injustiças ou abusos, visando proteger essa fase tão importante
na formação do indivíduo e buscando evitar danos psicológicos às crianças ou adolescentes.

“Inciso XI – representar ao Ministério Público para efeito das ações de perda ou


suspensão do poder familiar, após esgotadas as possibilidades de manutenção da
criança ou do adolescente junto à família natural; “

É responsabilidade do Conselho Tutelar, noticiar os casos graves que envolvem a


necessidade de perda ou suspenção do poder familiar, devendo ser representado ao Ministério
Público para que sejam tomadas medidas cabíveis como, por exemplo, ação de perda ou
suspensão do poder familiar.

Ressaltamos novamente que, para que ocorra a perda do poder familiar, deve haver uma
verificação criteriosa, tendo em vista se tratar de situação de extrema medida, aplicável em
último caso.

“Inciso XII - promover e incentivar, na comunidade e nos grupos profissionais, ações


de divulgação e treinamento para o reconhecimento de sintomas de maus-tratos em
crianças e adolescentes.”

A busca pelo amparo às crianças e adolescentes é imprescindível. Deve-se cientificar toda


a população para que de forma alguma permitam que as crianças e os adolescentes sejam
maltratados. Informar os interessados e promover ações de conscientização é também papel do
Conselho Tutelar.

“Parágrafo único. Se, no exercício de suas atribuições, o Conselho Tutelar entender


necessário o afastamento do convívio familiar, comunicará incontinenti o fato ao

56
10. O poder discricionário do Conselho Tutelar

Ministério Público, prestando-lhe informações sobre os motivos de tal entendimento


e as providências tomadas para a orientação, o apoio e a promoção social da família;”

Há situações extremas e de urgência que não podem esperar uma ação judicial, nas quais
o Conselho Tutelar aplica como medida de proteção, o afastamento do lar imediato; nestes
casos, o fato deverá ser comunicado ao Ministério Público.

Finalizada a exposição detalhada do artigo 136 do Estatuto da Criança e do Adolescente,


concluímos com o artigo 137, do referido dispositivo, que reforça as atribuições do Conselho
Tutelar, mencionando a relevância e autoridade de suas ações ao declarar:

“Art. 137. As decisões do Conselho Tutelar somente poderão ser revistas pela
autoridade judiciária a pedido de quem tenha legítimo interesse.”

Diante de todo o exposto, evidencia-se que o Conselho Tutelar é o órgão incumbido do


dever de zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes e que, para tanto, deve
agir de forma autônoma e corajosa.

Observa-se que a educação domiciliar apenas transfere a responsabilidade de ensino da


escola para os pais que, como já vimos, possuem esse direito natural anterior à obrigação do
Estado, deixando claro novamente que não há que se falar em crime de abandono intelectual.

O trabalho desempenhado pelo Conselho Tutelar continuará de forma objetiva quando


se trata de abandono intelectual, ou seja, àqueles casos em que os pais não levam seus filhos para
escola e nem os educam em casa, averiguando o real crime de abandono intelectual.

Dessa forma, após analisar a realidade fática do ambiente familiar contra o qual foi feita
a denúncia, o Conselho Tutelar, observando que não houve abandono intelectual e que o
melhor interesse da criança ou adolescente está sendo atendido (levando-se em consideração
que a qualidade do ensino domiciliar costuma ser superior ao que a escola regular consegue
oferecer, haja vista a personalização possível nessa modalidade de ensino) e de acordo com seu
poder discricionário, no cumprimento de seu dever legal, poderá arquivar a denúncia
improcedente e tal decisão só poderá ser revista pela autoridade judiciária, a pedido de quem
tenha interesse, conforme o já citado artigo 137 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Cumprira, assim, suas atribuições com eficiência, justiça e real zelo pelos interesses das crianças
e adolescentes.

Silvia Bispo Manea

57
11. Conclusão

11. Conclusão

O poder familiar confere aos pais o poder-dever de dirigir a criação e educação dos
filhos , ou seja, governá-las, determinando a maneira como serão conduzidas; corroborando
35

neste sentido, a Constituição Federal ao tratar de educação (artigo 227) atribuindo, em


primeiro lugar à família, o dever de garanti-la à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade36.

Trazendo a norma jurídica para a realidade concreta das famílias, inúmeros tratados
internacionais de Direitos Humanos (status supralegal) previram expressamente o direito e a

35
Artigo 229 da Constituição Federal, Art. 1.634, I do Código Civil e Art. 22 do ECA.
36
Na técnica de hermenêutica jurídica, considerando-se a intenção do legislador, verifica-se que elenca os entes
responsáveis sempre em ordem de preferência e prioridade; ou seja, estando a família prevista à frente do
Estado no texto legal, é clara a obrigatoriedade de primeiramente incumbir à ela o dever de assegurar a
educação.

58
11. Conclusão

liberdade dos pais em transmitirem sua cultura e valores morais, religiosos e políticos, por meio
de práticas de ensino, com a possibilidade de escolha do modo que essas serão ministradas37.

Certo que não há qualquer impedimento legal à realização do ensino domiciliar,


vigendo em nosso ordenamento jurídico o princípio da legalidade, cláusula pétrea que
determina a possibilidade de proibição de atos somente em virtude de lei; tal afirmação fora
asseverada pela jurisprudência, no julgamento do RE 888.815/RS (2018), em que o Supremo
Tribunal Federal expressamente declarou a ausência de vedação ao ensino domiciliar no Brasil,
carecendo, apenas, de lei que regule a modalidade de ensino.

Assim, não havendo qualquer ilegalidade na conduta dos pais educadores, agindo eles
totalmente de acordo com a lei e com os tratados internacionais de Direitos Humanos e,
pautando-a no extremo amor, cuidado e doação dedicados aos seus filhos, é certo que a atuação
de todos os órgãos de proteção à infância e juventude – Conselhos Tutelares, Ministério
Público e Poder Judiciário – bem como, entidades de apoio a estes, devem, no caso concreto,
observar atendimento correspondente à tamanha dedicação:

Inicialmente, é necessário o respeito; em seguida, caso observado o desconhecimento


profundo acerca das nuances jurídicas do ensino domiciliar, a preocupação em buscar
orientação (neste e-book e demais documentos disponíveis) antes da tomada de qualquer
medida desproporcional a real situação de cuidado observada pelas famílias em prol de seus
filhos; posteriormente, a solicitação de provas concretas de que as crianças têm o seu
desenvolvimento intelectual e socioemocional garantido naquele lar por meio do ensino
domiciliar ministrado38, a fim de se comprovar a ausência de evasão escolar e abandono
intelectual e se demonstrar o ensino efetivo, garantindo-se, assim, o direito à educação.

Por fim, enquanto não aprovada a lei federal que regulamente a matéria, quando da
tomada da decisão quanto à manutenção do direito daquela família ensinar diretamente seus
filhos em domicílio, deve-se considerar a realidade do caso concreto, sopesando-se o princípio
do superior interesse da criança, em vista da demonstração do completo desenvolvimento

37
Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 26.3), Pacto de São José da Costa Rica (art. 12.4), Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 18.1 e 18.4), Pacto Internacional dos Direitos Sociais,
Econômicos e Culturais (art. 13.1) e Convenção Internacional dos Direitos das crianças (art. 18.1 e 18.2)
38
A comprovação da ausência de evasão escolar e da realização efetiva do ensino pode ser feita por meio de
documentos que demonstrem as atividades realizadas por aquela criança/adolescente no seio do seu lar,
fotos de atividades de socialização, requerimento de oitiva da criança, para que demonstre sua capacidade
de leitura, dentre outros.

59
11. Conclusão

infanto-juvenil que é proporcionado naquele lar, garantidor de respeito às condições


específicas de cada ser humano, uma vez que o ensino é individualizado e direcionado.

Para uma coesão e desenvolvimento real de nossa sociedade, é imprescindível que todos
os entes, sejam eles públicos ou privados, atuem em consonância, desvinculando suas ações de
vieses ideológicos, refletindo que cada atitude, cada decisão, não pode ser pautada em um
ideário geral; pelo contrário, devem corresponder à realidade, observando as reais possibilidades
e necessidades daquele caso posto à prova, pois apenas concretamente é que a justiça pode ser
realmente efetivada.

Thalita Marotta Imoto Sato


Isabelle Monteiro

60
12. Referências

12. Referências

ANED, Associação Nacional de Educação Domiciliar. Perguntas e Respostas Disponível


em: https://www.aned.org.br/index.php/conheca-educacao-domiciliar/perguntas-e-
respostas. Acesso em: 10/06/2022.

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