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A filosofia cristã da alimentação

Peter Bringe
Copyright © 2012 de Peter Bringe
Publicado originalmente em inglês sob o título
The Christian Philosophy of Food,
nos Estados Unidos da América.


Todos os direitos em língua portuguesa reservados por EDITORA MONERGISMO
Brasília, DF, Brasil
Sítio: www.editoramonergismo.com.br 1a edição, 2014

Tradução: Josaías Cardoso Júnior


Revisão: Rogério Portella
Capa: Ray Susuki


PROIBIDA A REPRODUÇÃO POR QUAISQUER MEIOS,
SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da Bíblia da


versão Bíblia Almeida Século 21,
© 2008, publicada por Edições Vida Nova,
salvo indicação em contrário.
ISBN: 978-85-62478-81-9
A meu pai, que me ensinou muito sobre várias coisas, em especial
sobre a glória de Deus observada na Criação. Sem a instrução
dele à mesa sobre a gloriosa provisão divina da boa alimentação,
este livro definitivamente não teria acontecido.
A minha mãe, que com amor cuidou de mim e que também
colocou em prática o amor do meu pai à Criação de Deus ao fazer
pratos belos e nutritivos dia após dia (mesmo quando eu não
queria), e por me ensinar o amor à hospitalidade e comunhão à
mesa.
A meus pais e mães de gerações anteriores, que me legaram uma
herança piedosa e uma boa ética trabalhista; a meu avô, que
trabalhou duro na agricultura como agente de extensão, e às
gerações dos meus antepassados, que trabalharam como
fazendeiros ao longo da história.
Ao meu Pai celestial, o Deus triúno, criador e sustentador de
tudo, que me salvou do juízo eterno para o relacionamento
pactual consigo, e que me deu sua Palavra como guia para a vida.
Tudo o que eu ou minha família já fizemos, bom ou digno de
louvor, deve-se apenas à sua graça, e a ele seja toda a glória.
Sumário 1. Introdução à alimentação
2. Alimentação e saúde
3. Alimentação e cultura
4. Alimentação e economia
5. Alimentação e criação
Conclusão
Bibliografia
1. Introdução à alimentação
Como, então, devemos comer? Em tempos recentes, houve uma invasão de
dietas, estudos, pesquisas, declarações, disputas, ações judiciais, filmes e
livros — todos sobre o assunto da alimentação. Há muita confusão sobre o
tema, em especial depois de a centralização da ciência e da alimentação
entrar em discussão, e que todo o mundo parece ser especialista com um
conjunto de ideias próprio sobre comida. Vivemos em um tempo
semelhante à Reforma Protestante do século XVI, quando a Igreja Católica
Romana centralizadora foi colocada em questão, motivando o homem
comum a estudar a Escritura por si mesmo. Essa foi uma grande
oportunidade para os cristãos voltarem à Escritura e serem edificados a
partir do fundamento sólido. No entanto, isso também permitiu que os
anabatistas e outras seitas autônomas e heterodoxas se formassem e agissem
com excesso. Hoje em dia, a indústria centralizada da alimentação é posta
em questão, e assim, o homem comum agora está pesquisando o assunto
por si mesmo. Isso é ótimo porque nos permite voltar ao que a Escritura diz
sobre o tema e elaborar uma linha de pensamento sobre ela, mas também
permite o mesmo para muitos extremistas independentes que se tornaram os
“anabatistas da indústria de alimentação”.
Cresci em um ambiente único. Em primeiro lugar, estou
acostumado com descentralização porque meus pais educaram a mim e a
meus irmãos em casa, em vez de nos enviar a escolas públicas. Isso me
permitiu ficar “desconectado” do sistema público de educação
centralizado, capacitando-me estudar o mundo de Deus a partir de uma
perspectiva bíblica. Em segundo lugar, meu pai, Neal Bringe, é doutor em
Ciência de Alimentos, e trabalhou na indústria de alimentação desde 1989.
Muitas vezes, nossas discussões no jantar giravam em torno de nutrição e
da beleza da comida, do ponto de vista científico e cultural. Durante anos,
meu pai partilhou muita sabedoria comigo, por meio de seu discipulado
relacional sobre alimentação. Esse conhecimento me forneceu as
credenciais que uso para escrever este livro. Não tenho formação em
alimentos ou nutrição, mas eu as derivo das instruções do meu pai, como
de outros homens piedosos como meu pastor. Esses homens formaram
meu pensamento e me deram uma perspectiva equilibrada e única sobre o
assunto. Pela graça de Deus, espero que este livro ajude outras pessoas a
perceberem as grandes verdades eternas encontradas na Palavra de Deus,
que nos ajudarão a reconstruir o entendimento correto da alimentação em
meio à grande confusão de nossos dias.
O que há de tão importante na alimentação? É realmente um tema
digno de tanta atenção? No nível mais básico, podemos ver que, embora
façamos nossa comida, a comida também nos faz. Você não pode escapar
da alimentação. É uma das necessidades básicas de sobrevivência; existem
poucas coisas mais integradas à nossa vida. O que mais você faz três vezes
ao dia por toda a sua vida? O que escolhemos comer afeta muito nossa
vida, e nossa vida afeta a comida que escolhemos. É de importância vital
pensar sobre a alimentação. Neste livro, percorreremos suas interações
com nossa vida enquanto estudamos essa dádiva do Senhor Deus todo-
poderoso.
A alimentação é um assunto sensível para as pessoas porque está
bastante arraigada em quem somos. A comida não apenas nos sustenta
fisicamente, mas também alimenta uma parte de nossas necessidades
emocionais. Comida é uma maneira de celebrar e uma maneira de
lamentar. É uma forma de lembrar e uma forma de esperar. É um assunto
sobre o qual tomamos decisões constantes; logo, ela revela quem somos. O
que fazemos é resultado de quem somos. Nossas crenças sobre as coisas
determinarão como interagimos com elas. A comida é parte de nossa
cultura e visão de vida. Ela mostra o que valorizamos e no que cremos. Por
exemplo, se alguém acredita que o prazer tem valor último, então comerá a
comida que produz o máximo de sabor e prazer sensual. Se alguém
acredita que a vida mortal tem valor último, então será dominado pelo
cuidado com o corpo, ou perderá a esperança e não se importará com o que
come. Ideias têm consequências, e o que as pessoas comem ilustra esse
princípio.
Comida é um assunto igualmente estudado por nutricionistas e
chefes de cozinha. De modo geral, o nutricionista científico analisa a
composição da comida: nutrientes saudáveis e toxinas ou bactérias nocivas,
de modo geral desconsiderando a arte da alimentação. Então, o chef
examina o sabor e a apresentação do prato com pouca consideração às
consequências para a saúde. Ou você termina com um alimento nutritivo,
mas insípido, ou uma comida bastante saborosa, mas um “ataque cardíaco
no prato”. Assim, a alimentação consiste em um assunto complexo por ser
fonte de nutrição e beleza. Os dois aspectos são importantes para os
cristãos. Por sermos cristãos, todo o nosso ser é valioso, tanto a alma quanto
o corpo; logo, a saúde é importante e não deve ser marginalizada como um
assunto sobre o qual apenas os “maníacos por saúde” pensam. “Portanto,
irmãos, rogo-lhes pelas misericórdias de Deus que se ofereçam em
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus” (Rm 12.1). “Se você encontrar
mel, coma apenas o suficiente, para que não fique enjoado e vomite” (Pv
25.16). Mas a beleza dela — o visual, o aroma, o sabor, a atmosfera e as
emoções ao redor — também é importante. “Coma mel, meu filho. É bom.
O favo é doce ao paladar” (Pv 24.13). Trata-se do equilíbrio entre a revista
científica, repleta de informações, em sua maioria, áridas e impraticáveis, e
o romance, repleto de sentimentos que podem ser enganosos. Assim,
devemos equilibrar a alimentação saudável com pratos que tragam as
emoções corretas para a ocasião. Veremos o que a Bíblia diz sobre esses
valores em relação à comida, e também descobriremos que esses aspectos
não são necessariamente opostos um ao outro, mas estão interconectados e
podem trabalhar juntos.
Como comemos é tão importante quanto o que comemos. Grande
parte da nossa cultura é construída em torno do materialismo, em que o
trabalho é apenas uma forma de conquistar a prosperidade material.
Trabalhar por algo que não produz bens é considerado um esforço extra e
desnecessário. Isso inclui música, dança, pintura, religião, família,
relacionamentos não voltados para os negócios, alimentação de qualidade
etc. Muitas refeições são feitas a caminho da próxima reunião ou evento, a
fim de nos manter em pé. As pessoas querem refeições rápidas, que saiam
logo do caminho para o pronto regresso ao trabalho. A comida não é vista
como algo digno de trabalho na cozinha (a não ser que seu salário venha
disso). Assim, nossa alimentação perde qualidade e se transforma só em
competição para produzir o material comestível mais barato, conveniente e
agradável aos sentidos, que inevitavelmente possui uns poucos miligramas
das últimas substâncias químicas estudadas pela ciência para aliviar a
consciência culpada. Como veremos, essa não é a visão bíblica de trabalho
ou alimentação.
A comida é parte da criação de Deus, e nosso conceito da criação
afetará como a enxergamos. Se alguém é orgulhoso e despreza os
desígnios divinos, confiará nas próprias forças para transformar um
alimento em uma nova criação. Quando, em seu orgulho, o homem tenta
se revoltar contra o Criador e criar o próprio mundo, ele não pode deixar
de se corromper porque a humanidade é depravada e pecadora (Rm 3.12).
É possível errar também quando se adora a criação em lugar do Criador.
Assim, ele estará contente em deixar o mundo como está e tornar-se o
“bom selvagem” amado pelos humanistas. Ele se esquece de que somos
chamados para dominar o mundo e esforçar-nos para torná-lo frutífero: “O
SENHOR Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e
cultivá-lo” (Gn 2.15). “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e
subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu
e sobre todos os animais que se movem pela terra” (Gn 1.28).
Analisaremos a comida como parte da criação divina e examinaremos
como devemos enxergá-la e usá-la.
Assim, entramos no tema da visão cristã da alimentação. É uma
ferramenta para a sobrevivência? É uma expressão de personalidade e
emoções? É parte do belo ambiente doméstico ideal? É uma criação divina
fantástica que devemos utilizar com cuidado? São todas as anteriores?
2. Alimentação e saúde
“O temor do SENHOR é o princípio do conhecimento, mas os insensatos
desprezam a sabedoria e a disciplina.” (Provérbios 1.7) A base do
conhecimento e da sabedoria é o temor do Senhor. Sem o temor do Senhor,
o pensamento se baseará no raciocínio deficiente, de forma que não
poderemos conhecer as coisas com correção. A Palavra de Deus constitui a
única fonte de verdade absoluta por ser a Palavra do Deus perfeitamente
verdadeiro. Tudo o mais está contaminado pelo pecado. Só quando somos
humildes diante de Deus podemos chegar ao conhecimento da verdade e à
sabedoria para usar o conhecimento para discernir o certo do errado e a
bênção da maldição. Apenas nesse momento nossas observações podem ser
interpretadas de forma correta. Então podemos saber o que é bom. Essa
percepção é importante para qualquer discussão sobre saúde. O livro de
Provérbios diz de modo específico: “Não seja sábio aos seus próprios olhos; tema o
SENHOR e evite o mal. Isso lhe dará saúde ao corpo e vigor aos ossos.” (Pv 3.7,8; ênfase
Logo, enquanto descobrimos as comidas mais (ou menos)
acrescentada)
benéficas, vamos nos submeter com humildade ao único padrão de verdade
absoluta — a Bíblia.
“Acaso não sabem que o corpo de vocês é santuário do Espírito Santo que habita em
vocês, que lhes foi dado por Deus, e que vocês não são de si mesmos? Vocês foram
comprados por alto preço. Portanto, glorifiquem a Deus com o seu próprio corpo.”
(1Co 6.19,20) A partir dos versículos acima, vemos que o corpo
físico é importante. A Bíblia não ensina o gnosticismo (em que
o espiritual é bom e valioso, e o físico é mau e dispensável).
Ao contrário, a Bíblia nos ensina a ter domínio sobre a terra e
orar: “Venha o teu reino […] assim na terra como no céu” (Mt
6.10). Ela nos ensina que os cristãos são redimidos em sua
totalidade, incluindo-se o corpo, e serão ressuscitados para a
vida eterna (Rm 8.11). Ela nos ensina que o corpo de cada
cristão é templo do Espírito Santo, e que esse templo pertence
a Deus (1Co 6.19,20). Os aspectos espiritual e o físico afetam
um ao outro; a alma afeta a condição do corpo, e vice-versa.
Conta-se que a missionária Amy Carmichael[1] teria
respondido às acusações de cuidar demais das necessidades
físicas: “A alma está ligada ao corpo com uma certa firmeza”.
Quando amamos o Senhor, realizamos ações físicas na terra
para a glória dele. Logo, motivados pelo desejo de realizar a
obra de Deus, devemos manter o corpo funcionando de
maneira adequada. Devemos glorificar a Deus na forma como
tratamos “nosso” corpo.
Hoje, as pessoas estão acostumadas com pirâmides alimentares, em
que os alimentos de consumo primário se encontram na base, enquanto os
pouco consumidos estão no topo. A Bíblia apresenta uma pirâmide
alimentar bastante simples, revelada em estágios na Escritura.
Animais “impuros”
Animais “puros”
Alimentação vegetal

Alimentação vegetal
No princípio, Deus concedeu plantas para o consumo de Adão e Eva.
Disse Deus: “Eis que lhes dou todas as plantas que nascem em toda a terra e
produzem sementes, e todas as árvores que dão frutos com sementes. Elas servirão
de alimento para vocês” (Gn 1.29).
No princípio, só as plantas serviam de alimentos, tanto para os
animais quanto para o homem. Mesmo depois da Queda, a humanidade
permaneceu ingerindo apenas alimentos de origem vegetal até o Dilúvio.
Assim, os alimentos vegetais consistem na alimentação fundamental para a
humanidade. É como se você tivesse um programa de computador e
conseguisse uma atualização do programa. O programa é o básico,
enquanto as atualizações são bônus que podem ser muito bons para o
programa, mas não funcionam por si mesmos. Algumas pessoas
respondem de forma negativa à menção de alimentação vegetal e querem
evitar qualquer conexão com os “temidos” vegetarianos. Para lhes
tranquilizar a mente, não estou dizendo que a Bíblia ordena a ingestão
apenas de alimentos vegetais. Digo, no entanto, que a Bíblia ensina a
centralidade e a importância dos vegetais. Esse princípio não está em
desacordo com o restante da Escritura. Por exemplo, nos quarenta anos no
deserto, Deus deu aos israelitas o maná (uma substância semelhante ao
pão) e codornizes. O maná era a comida básica, e os israelitas foram
punidos com uma praga pela ânsia egoísta por carne (Nm 11.32-34). Em
Provérbios 23.20, a Bíblia também adverte contra “os que se empanturram
de carne”. Daniel agrupa a carne com o vinho como as iguarias de que ele
se absteve enquanto lamentava (Dn 10.3). Parece que nossa cultura
moderna, com suas refeições “centradas na carne”, está em desacordo com
o conceito bíblico da carne.
Alguns objetarão por causa da necessidade de carne para obter
proteína o suficiente para desenvolver músculos. Entretanto, plantas, em
especial vegetais, legumes e castanhas, têm mais proteína do que as pessoas
pensam, e suas proteínas têm menos calorias e mais nutrientes específicos.
Por exemplo, os brócolis contêm mais proteína por caloria que a carne de
vaca. Quase metade da matéria seca do espinafre é proteína. Observe
macacos e gorilas e me diga se a carne é necessária para desenvolver
músculos. Talvez o que sua mãe lhe tenha dito para comer brócolis esteja
certo.
Uma dieta com predominância vegetal é uma defesa contra o
argumento de que não podemos produzir comida suficiente para a
população crescente e que, como consequência, não deveríamos obedecer à
ordem de Deus: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a
terra!” (Gn 1.28). A comida de origem vegetal é a fonte mais eficiente de
alimentação em muitas regiões. Como as nações ocidentais e as
influenciadas pelo Ocidente (como a China moderna) comem
primariamente carne acompanhada de vegetais, a agricultura não alcança a
produção potencial. Um acre de terra usado para o gado poderia suprir por
77 dias as necessidades de proteína de um adulto; porém, se o mesmo acre
fosse usado para o plantio de soja, poderia suprir as necessidades de um
adulto por 2.224 dias.[2] Em um estudo, calcula-se que “o uso de terra para
produção de frutas e feijão é […] cerca de 5 e 3 vezes, respectivamente,
mais eficiente que o uso de terra para a produção animal”.[3] Ao dirigir em
lugares como Illinois ou Iowa, onde o “mar” de milho e soja parece não ter
fim, surge a questão: “Para onde vai tudo isso?”. Uma grande porcentagem
vai para a alimentação animal. Assim, comemos os animais e recebemos
apenas uma fração dos nutrientes que as plantas poderiam ter fornecido. Se
reduzíssemos o espaço de milho, soja e água para os animais e, em vez
disso, cultivássemos milho doce e outros vegetais para a alimentação,
aumentaríamos muito o suprimento de comida e água. Ao comermos mais
vegetais, obtemos um domínio melhor e mais eficiente da terra.
Carne
Embora os alimentos vegetais sejam os mais básicos para a dieta,
Deus também nos concedeu a ingestão de carne: “Tudo o que vive e se
move servirá de alimento para vocês. Assim como lhes dei os vegetais,
agora lhes dou todas as coisas. Mas não comam carne com sangue, que é
vida. A todo aquele que derramar sangue, tanto homem como animal,
pedirei contas; a cada um pedirei contas da vida do seu próximo. Quem
derramar sangue do homem, pelo homem seu sangue será derramado;
porque à imagem de Deus foi o homem criado” (Gn 9.3-6).
O primeiro detalhe evidente é a importância de não comer sangue.
Algumas pessoas explicam isso como uma lei cerimonial que foi cumprida
em Cristo. Mas, se a não ingestão for cerimonial, então por que Deus, no
mesmo fôlego, proclama a santidade da vida e a punição capital como
fundamentos do governo civil? Elas são cerimoniais também? Creio que
não. Mesmo no Novo Testamento, o concílio de Jerusalém chegou a esta
conclusão: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não impor a vocês nada
além das seguintes exigências necessárias: Que se abstenham de comida
sacrificada aos ídolos, do sangue, da carne de animais estrangulados e da
imoralidade sexual. Vocês farão bem em evitar essas coisas. ‘Que tudo
lhes vá bem’” (At 15.28,29).
Como cristãos, mesmo que matemos animais e os comamos, ainda
assim valorizamos a vida e não bebemos o sangue deles como os pagãos.
É interessante notar que, após o Dilúvio, todo ser vivo que se move
foi dado como alimento (Gn 9.3), mesmo já havendo a distinção entre
animais puros e impuros em sentido ritual (para os sacrifícios).
Depois Noé construiu um altar dedicado ao SENHOR e,
tomando alguns animais e aves puros, ofereceu-os como
holocausto, queimando-os sobre o altar (Gn 8.20).
Isso mudaria com a distinção entre animais impuros e puros feita
na Lei entregue a Moisés.

Animais “puros”
“Disse o SENHOR a Moisés e a Arão: ‘Digam aos israelitas: De todos
os animais que vivem na terra, estes são os que vocês poderão
comer: qualquer animal que tem casco fendido e dividido em duas
unhas, e que rumina. […] De todas as criaturas que vivem nas águas
do mar e dos rios, vocês poderão comer todas as que possuem
barbatanas e escamas. Mas todas as criaturas que vivem nos mares
ou nos rios, que não possuem barbatanas e escamas, quer dentre
todas as pequenas criaturas que povoam as águas, quer dentre todos
os outros animais das águas, serão proibidas para vocês. […] Estas
são as aves que vocês considerarão impuras, das quais não poderão
comer porque são proibidas: a águia, o urubu, a águia-marinha, o
milhafre, o falcão, qualquer espécie de corvo, a coruja-de-chifre, a
coruja-de-orelha-pequena, a coruja-orelhuda, qualquer espécie de
gavião, o mocho, a coruja-pescadora e o corujão, a coruja-branca, a
coruja-do-deserto, o abutre, a cegonha, qualquer tipo de garça, a
poupa e o morcego. Todas as pequenas criaturas que enxameiam,
que têm asas mas que se movem pelo chão, serão proibidas para
vocês. Dentre estas, porém, vocês poderão comer aquelas que têm
pernas articuladas para saltar no chão. […] Todo animal de casco
não dividido em duas unhas ou que não rumina é impuro para
vocês; quem tocar qualquer um deles ficará impuro. Todos os
animais de quatro pés, que andam sobre a planta dos pés, são
impuros para vocês; todo o que tocar os seus cadáveres ficará
impuro até a tarde. […] Dos animais que se movem rente ao chão,
estes vocês considerarão impuros: a doninha, o rato, qualquer
espécie de lagarto grande, a lagartixa, o lagarto-pintado, o lagarto, o
lagarto da areia e o camaleão. De todos os que se movem rente ao
chão, esses vocês considerarão impuros. Quem neles tocar depois
de mortos estará impuro até a tarde. […] Vocês não poderão comer
animal algum que se move rente ao chão, quer se arraste sobre o
ventre quer ande de quatro ou com o auxílio de muitos pés; são
proibidos a vocês. […] Pois eu sou o SENHOR, o Deus de vocês;
consagrem-se e sejam santos, porque eu sou santo. Não se tornem
impuros com qualquer animal que se move rente ao chão. Eu sou o
SENHOR que os tirou da terra do Egito para ser o seu Deus; por isso,
sejam santos, porque eu sou santo’” (Lv 11.1-3,9,10,13-
21,26,27,29-31,42,44,45).
Antes de desconsiderarmos de maneira apressada a aplicabilidade
dessa lei a nós, vamos nos lembrar de que toda a Escritura é proveitosa
(2Tm 3.16). Chegaremos ao momento em que Jesus declara puras todas as
comidas, mas primeiro vamos observar as principais instruções divinas
sobre a alimentação.
Em sua sabedoria de Criador do mundo, Deus separou como
alimento alguns animais do restante. Na maioria, a lista dos animais que
servem como alimento e os que não é bastante óbvia. Entre os animais
impuros, encontramos predadores, carniceiros e filtradores, como ursos,
abutres e mariscos. Eles têm sistemas digestivos menos eficientes e
acumularão no próprio corpo mais toxinas dos animais consumidos
(alguns, como a ostra, são projetados para limpar o meio ambiente
acumulando toxinas e produtos químicos). Com mais frequência, os
animais puros são herbívoros, têm sistemas fisiológicos melhores para
remover toxinas e não raro são comidos por outros animais. Há poucos
estudos comparando alimentos puros e impuros, mas esses estudos
apontam para a sabedoria da instrução divina. A pesquisa mais completa
foi realizada em 1953 pelo dr. David Macht da Universidade Johns
Hopkins, e relatou os efeitos tóxicos da carne animal. Sem exceção, todos
os animais puros estudados foram classificados como não tóxicos, ao
passo que todos os animais impuros foram classificados como tóxicos.[4]
Ainda que não possamos entender sempre a razão de certos animais serem
considerados impuros, devemos ter fé na Palavra de Deus e levar a sério
suas diretrizes sobre o que comer.

Animais “impuros”
“Não há nada fora do homem que, nele entrando, possa torná-lo
‘impuro’. Ao contrário, o que sai do homem é que o torna ‘impuro’. Se
alguém tem ouvidos para ouvir, ouça!” Depois de deixar a multidão e
entrar em casa, os discípulos lhe pediram explicação da parábola. Será
que vocês também não conseguem entender?, perguntou-lhes Jesus.
Não percebem que nada que entre no homem pode torná-lo ‘impuro’?
Porque não entra em seu coração, mas em seu estômago, sendo depois
eliminado.’ Ao dizer isso, Jesus declarou ‘puros’ todos os alimentos”
(Mc 7.15-19).
“[Pedro]
Viu o céu aberto e algo semelhante a um grande lençol que
descia à terra, preso pelas quatro pontas, contendo toda espécie de
quadrúpedes, bem como de répteis da terra e aves do céu. Então uma voz
lhe disse: ‘Levante-se, Pedro; mate e coma’. Mas Pedro respondeu: ‘De
modo nenhum, Senhor! Jamais comi algo impuro ou imundo!’ A voz lhe
falou segunda vez: ‘Não chame impuro ao que Deus purificou’. Isso
aconteceu três vezes, e em seguida o lençol foi recolhido ao céu” (At 10.11-16).
E, por fim, o terceiro grupo alimentar é o dos alimentos impuros
(ou anteriormente impuros). O propósito principal das regulações de puro
e impuro era a santidade e a prevenção da contaminação (Lv 11.44,45).
Elas deveriam separar o povo do Deus santo como povo justo e puro.
Embora já sejamos santos (separados para a retidão) pelo sangue de Cristo,
também estamos sendo santificados (feitos santos) pelo Espírito Santo. Em
Marcos 7.15-19 (acima), Jesus mostra a importância de ser santo e
incontaminado no coração. As obras externas são importantes apenas na
medida em que apresentam o fruto da fé interna. Nesse contexto Jesus
declara todos os alimentos puros. Comer alimentos impuros já não nos
contamina em sentido espiritual, mas os pensamentos malignos, sim (como
sempre). Como os três versículos seguintes dizem: “Pois do interior do coração
dos homens vêm os maus pensamentos, as imoralidades sexuais, os roubos, os homicídios, os
adultérios, as cobiças, as maldades, o engano, a devassidão, a inveja, a calúnia, a arrogância e a
insensatez. Todos esses males vêm de dentro e tornam o homem ‘impuro’” (Mc 7.21-23) Note
que de dentro vêm os homicídios (isto é, desrespeito pela vida), a
devassidão, a arrogância e a insensatez — capazes de nos conduzir à
alimentação insalubre. Isso não quer dizer que podemos comer o que
quisermos, só pelo fato de todas as comidas serem puras. Como cristãos do
Novo Testamento, recebemos um derramamento maior do Espírito Santo
e, assim, temos maturidade ampliada. Em vez de precisarmos de muitas
leis específicas a respeito de todas as situações possíveis, deveríamos ser
capazes de aplicar as leis de Deus à nossa situação com sabedoria.
Também devemos comer com sabedoria, e a antiga distinção entre puro e
impuro ainda é útil.[5] Mas a atitude na maneira como comemos pode nos
contaminar, não comidas específicas.
Devemos nos regozijar por Deus nos ter concedido tamanha
variedade de alimentos para comer. A expansão de escolhas alimentares
para “tudo o que vive e se move” (Gn 9.3) nos beneficia de várias
maneiras. Ela nos ajuda a dominar a terra. Se você vai explorar a
Amazônia, terá satisfação em saber que, caso seja necessário, você pode
comer caramujos e vermes. Como Atos 10 ilustra, isso significa a
expansão do Evangelho para todos os povos e culturas. Portanto, quando
você for à casa dos vizinhos e eles lhe servirem carne de porco, você pode
comê-la em vez de ofender o anfitrião. Isso nos ajuda a recordar que,
embora a comida seja importante, ela não é a substância da nossa fé: “Pois
o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no
Espírito Santo” (Rm 14.17).
Mas lembre-se, como João Calvino declarou: “Liberdade é uma
coisa — seu uso é outra”.[6]
Quando ouvimos o que Deus nos ordenou e seguimos suas
instruções, elas são uma bênção! Na Roma antiga, os pagãos invejavam a
proteção dos cristãos primitivos e judeus contra epidemias. Na Idade
Média, quando a peste negra varreu a Europa, os judeus foram muito
menos afetados por ela por ainda seguirem as instruções divinas sobre
alimentação e pureza.[7] Se tivermos fé para obedecer a Deus, seremos
abençoados por ele. Deus é bom, e sua orientação na vida por meio da lei é
uma bênção. Deus disse em Êxodo 15.26: “Se vocês derem atenção ao SENHOR, o seu
Deus, e fizerem o que ele aprova, se derem ouvidos aos seus mandamentos e obedecerem a todos os
seus decretos, não trarei sobre vocês nenhuma das doenças que eu trouxe sobre os egípcios, pois eu
sou o SENHOR que os cura”.
Embora neste livro haja outras observações sobre saúde (como as
relacionadas ao domínio próprio ou o conceito da criação), as instruções
básicas encontradas na Bíblia sobre o que deveríamos comer são as
seguintes: 1. Como povo santo de Deus, devemos ser saudáveis e puros, e
devemos cuidar do nosso corpo redimido.
2. Nossa alimentação primária deve se basear em vegetais, uma vez que
eles foram dados como alimento no princípio.
3. Embora os animais tenham sido dados como comida, devemos mostrar
respeito pela vida ao não ingerir sangue.
4. A alimentação animal primária deve ser formada pelos animais “puros”,
especificados por Deus.
5. Recebemos “tudo o que vive e se move” (Gn 9.3) como alimento, logo,
devemos nos alegrar na nossa liberdade. Entretanto, devemos lembrar de
que “‘Tudo é permitido’, mas nem tudo convém. ‘Tudo é permitido’, mas
nem tudo edifica” (1Co 10.23).
Dentro desses princípios há espaço para a individualidade, não para
a anarquia.
3. Alimentação e cultura
“Para tudo há uma ocasião certa; há um tempo certo para cada propósito
debaixo do céu: Tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e
tempo de arrancar o que se plantou, tempo de matar e tempo de curar,
tempo de derrubar e tempo de construir, tempo de chorar e tempo de rir,
tempo de prantear e tempo de dançar, tempo de espalhar pedras e tempo de
ajuntá-las, tempo de abraçar e tempo de se conter, tempo de procurar e
tempo de desistir, tempo de guardar e tempo de jogar fora, tempo de rasgar
e tempo de costurar, tempo de calar e tempo de falar, tempo de amar e
tempo de odiar, tempo de lutar e tempo de viver em paz” (Ec 3.1-8).
A comida serve só para a saúde? Certamente não! Existem muitos
livros sobre saúde por aí considerados “livros sobre alimentação”, mas, na
verdade, tratam apenas de nutrição científica. A comida é parte da cultura.
A cultura diz respeito ao que pensamos, sentimos e fazemos. Ela está
bastante entrelaçada à nossa vida. E lida com nossas emoções e
personalidades, nossa história e nossas situações. Nossa alimentação tem
significado. Nossa comida não está isolada do contexto. Neste capítulo,
apresentarei alguns exemplos bíblicos sobre a forma da utilização dos
alimentos na cultura e na vida.

Comida e alegria Na Bíblia (como em todas as épocas), a comida é usada


para celebrar e se alegrar. Em Deuteronômio 16.15, vemos Deus ordenando
Israel a guardar a festa dos Tabernáculos e, no período de colheita, alegrar-
se pela provisão divina de comida: “Durante sete dias celebrem a festa,
dedicada ao SENHOR, o seu Deus, no local que o SENHOR escolher. Pois o
SENHOR, o seu Deus, os abençoará em toda a sua colheita e em todo o
trabalho de suas mãos, e a sua alegria será completa”.
Podemos ver esse princípio aplicado na cultura [dos EUA] durante
os festivais rurais de colheita e no feriado de Ação de Graças. Qual é a
melhor maneira de se alegrar pela provisão divina do pão diário que
comendo um pouco desse pão? Sempre que comermos, deve haver alegria e
ação de graças pelo que Deus nos proveu como alimento.
A comida também é usada em outras celebrações, como na ocasião
do retorno ao lar do filho pródigo: “Mas o pai disse aos seus servos:
‘Depressa! Tragam a melhor roupa e vistam nele. Coloquem um anel em
seu dedo e calçados em seus pés. Tragam o novilho gordo e matem-no.
Vamos fazer uma festa e alegrar-nos. Pois este meu filho estava morto e
voltou à vida; estava perdido e foi achado’. E começaram a festejar o seu
regresso” (Lc 15.22-24) [para outro exemplo, cf. Dt 14.22-29].
Outra vez, banquetear e celebrar estão entrelaçados. Não se trata de
uma refeição pequena; é um banquete com bezerro cevado. Há um tempo
para comer com prudência, prestando bastante atenção à saúde e às coisas
relacionadas, mas também existem momentos de festejar e celebrar. Na
verdade, se você normalmente não come com moderação, as celebrações
perdem o caráter “especial”. Por exemplo, hoje as pessoas comem
“bezerros cevados” quase todos os dias; assim, para celebrar, elas precisam
fazer o tipo de refeição “morte súbita” — que as pessoas de culturas mais
antigas achariam repugnantes. Esse princípio é uma repreensão para os
exageradamente preocupados com a saúde e os exageradamente
indulgentes. Para os que se preocupam de forma exagerada em relação à
saúde: às vezes é apropriado ingerir alguns alimentos (como um bezerro
cevado) que podem não ser tão saudáveis quanto os brócolis, mas
complementarão a alegria. E para os indulgentes em demasia: se vocês
normalmente comem como se fosse uma celebração, o que irão comer na
celebração verdadeira? A conexão entre comida e celebração também é
vista no próximo exemplo sobre comida e lamento.

Comida e lamento Ao longo da história, a comida está relacionada com a


alegria, e a abstenção de alimentos se tornou sinônimo de angústia,
arrependimento e luto. Por exemplo, quando Mardoqueu e os israelitas
ouviram o decreto do rei para sua destruição: “Em cada província onde
chegou o decreto com a ordem do rei, houve grande pranto entre os judeus,
com jejum, choro e lamento. Muitos se deitavam em pano de saco e em
cinza” (Et 4.3).
Quando Esdras e os israelitas viajavam para reconstruir o templo e
corriam risco de ataques, Esdras registra: “Ali, junto ao canal de Aava,
proclamei jejum para que nos humilhássemos diante do nosso Deus e lhe
pedíssemos uma viagem segura para nós e nossos filhos, com todos os
nossos bens” (Ed 8.21).
O jejum se tornou quase uma arte perdida, em especial por causa
dos frequentes abusos. Quando as pessoas o utilizam para conquistar o
favor divino, ele se torna uma superstição antropocêntrica. Mas o jejum
pode ser bom e benéfico. Nas Institutas da religião cristã, João Calvino
resume os propósitos adequados do jejum em três categorias: jejuns para
dominar e controlar a carne, jejuns em preparo para oração e meditação, e
jejuns para evidenciar humildade e culpa diante de Deus. Ele explica: A
primeira finalidade não ocorre tão frequentemente no jejum público, uma vez que a constituição do
corpo não é uma só a todos, a condição de saúde não é uma só; assim sendo, se aplica melhor ao
jejum particular. A segunda é comum a ambos, visto que a igreja toda tem necessidade de preparação
desta ordem para as orações, bem como cada um dos fiéis em particular. De igual modo, também o
terceiro. Pois às vezes acontecerá que Deus aflija a um povo com a guerra, ou a peste, ou alguma
calamidade. Neste flagelo comum é preciso que se faça culpada, e a população toda confesse sua
culpa. Se, pois, a mão do Senhor ferir a alguém em particular, o mesmo vale para um só indivíduo,
ou para sua família. De fato isso se situa principalmente na disposição de espírito. Ora, pois, quando
o espírito está disposto como deve, dificilmente pode acontecer que não irrompa em testificação
externa, especialmente se tende à edificação comum, de modo que, confessando todos a um tempo,
abertamente, seu pecado, rendam louvor ao Deus de justiça; e com seu exemplo, um a um,
mutuamente se exortem.[8]
O primeiro propósito do jejum não tem relação com lamento, mas
com os efeitos benéficos sobre o corpo.
Primeiro, o corpo precisa de descanso para digerir a comida
ingerida e expelir as toxinas das células. Normalmente, isso é realizado
quando jejuamos entre o jantar no fim da tarde até o “des-jejum” na manhã
seguinte. Mas, para algumas pessoas, isso nem sempre é o bastante, e o
jejum parcial ou completo pode ser útil em relação a muitos problemas de
saúde.[9]
Segundo, jejuar (seja de ingestão de comida ou em quantidade
limitada) pode ajudar no exercício do autodomínio sobre os impulsos da
carne. Domínio próprio é parte importante da saúde, e nada menos que um
fruto do Espírito Santo (Gl 5.22,23) nos pertencentes a Cristo e que
“crucificaram a carne, com suas paixões e os seus desejos” (Gl 5.24).
Cristãos que vivem pelo poder do Espírito não deveriam estar cativos de
lanches, mas deveriam exercitar o domínio próprio ao manter o corpo em
sujeição. O estilo de vida antropocêntrico e egoísta leva ao vício e à
destruição. Paulo descreve os inimigos da cruz de Cristo assim: “O destino
deles é a perdição, o seu deus é o estômago” (Fp 3.19). Mesmo que a
comida seja boa em si mesma, caso ela se torne um vício, é provável que
devamos retomar todo o controle e nos abstermos dela por um tempo. Por
exemplo, embora nos seja permitido beber vinho (Sl 104.14,15; Pv 3.9,10;
Jo 2.1-11), e Timóteo foi até encorajado a isso (1Tm 5.23), a Bíblia também
adverte sobre o vício em vinho (Pv 20.1; 23.29-35; Ef 5.18; Tt 2.3). Em
alguns casos, a abstinência é aprovada ou mesmo ordenada (Jz 13.14; Pv
31.4; Jr 35). Mesmo que o vinho seja um exemplo clássico, esse princípio
também se aplica a qualquer alimento. Devemos depender de Deus, não da
comida, para termos paz e alegria. Devemos controlar nosso corpo e
permitir que ele tenha o descanso necessário.
Talvez tenhamos mais conhecimento do terceiro uso empregado por
Calvino. É provável que ele também seja o mais mal utilizado. No entanto,
como Calvino destaca, se nos sentirmos angustiados e tristes, devemos nos
expressar pela maneira que comemos. É fato que, quando estamos tristes,
não queremos comer tanto quanto o normal, e comer pode até nos causar
danos enquanto estamos angustiados. Quando jejuamos, damos a nós
mesmos tempo para focar no que fizemos e clamar a Deus por perdão.
Quando jejuamos, as razões do jejum se tornam proeminentes em nossa
mente porque nossos instintos naturais estarão perguntando de forma
contínua: “Por quê?”. Embora não nos devamos orgulhar do
arrependimento, devemos confessar os pecados uns aos outros (Tg 5.16),
em especial como indivíduos, mas também como famílias (Js 7.19-21),
igrejas (Jl 1.14) e nações (Jn 3.6-10): “Decretem um jejum santo;
convoquem uma assembleia sagrada. Reúnam as autoridades e todos os
habitantes do país no templo do SENHOR, o seu Deus, e clamem ao SENHOR”
(Jl 1.14).

Comida e recordação “Este dia será um memorial que vocês e todos os


seus descendentes celebrarão como festa ao SENHOR. Celebrem-no como
decreto perpétuo” (Êx 12.14).
A história é parte muito importante da Bíblia. Não apenas são
muitos os livros com narrativas, mas por toda a Escritura somos ordenados
a lembrar do que Deus fez no passado. Quando Deus entregou os Dez
Mandamentos, ele deu destaque à história dos israelitas, chamando a si
mesmo de Deus “que te tirei do Egito, da terra da escravidão” (Dt 5.6).
Quando o povo de Israel atravessou o Jordão, Deus os ordenou que
juntassem doze pedras como um “memorial perpétuo” (Js 4.7). Quando a
arca retornou à Jerusalém, Davi alegrou-se cantando: “Lembrem-se das
maravilhas que ele fez, dos seus prodígios e das ordenanças que
pronunciou” (1Cr 16.12). Davi também proclamou: “Recordarei os feitos
do SENHOR; recordarei os teus antigos milagres” (Sl 77.11). Quando o povo
se esqueceu do que Deus havia feito, e das consequências dos pecados
passados, ele incorreu em condenação e juízo. Para esclarecer, todos os atos
do Senhor incluem a história (Dt 2.20-33; Jó 38; Mt 10.29).
Algo tão importante quanto a história não deve ser separado de
modo artificial da vida por meio de uma sala de aula, mas é um tema que
deve ser integrado à vida. Nossa cultura deve ter consciência histórica, e
isso inclui a comida. Um ótimo exemplo disso está nas festas do Antigo
Testamento, como a Páscoa: “… durante sete dias comam pães sem
fermento, o pão da aflição, pois foi às pressas que vocês saíram do Egito,
para que todos os dias da sua vida vocês se lembrem da época em que
saíram do Egito” (Dt 16.3).
As obras de Deus na história estavam integradas à cultura e
alimentação dos israelitas. Quando comiam o pão sem fermento, pensavam
na libertação do Egito realizada por Deus e formavam uma conexão física
com a salvação de seu povo (provida por Deus).
Podemos enxergar isso ao nos lembrarmos da história das refeições
tradicionais praticadas hoje de diversas formas. Por exemplo, quando os
escoceses comem haggis,[10] ou quando os noruegueses comem lutefisk,[11]
eles estão relembrando os tempos difíceis e de sofrimento dos antepassados,
quando eles precisavam recorrer às vísceras de ovelha ou a bacalhau
embebido em soda cáustica. Quando nós, americanos, comemos peru, purê
de batata, oxicocos etc. no Dia de Ação de Graças, lembramos-nos da
provisão divina para com os antepassados do nosso povo. Muitas comidas
típicas e tradicionais têm alguma conexão história com as gerações
passadas.
A cultura é transmitida e disseminada por relacionamentos. As
pessoas com quem você convive influenciarão seu modo de agir. Se você se
relaciona com familiares fortes, como a Bíblia retrata, então sua cultura e,
também, sua comida, serão muito influenciadas pelas tradições étnicas.
Essa cultura de várias gerações servirá como forma de honrar pai e mãe,
ensinará certa humildade e estabilidade no progresso e crescimento, e nos
chamará a lembrar do fato de que somos parte da comunidade que inclui
gerações passadas. Ela nos ajuda a lembrar de onde viemos e aonde vamos.
Mantém-nos humildes nos dias de fartura e alegres nos tempos de escassez.
Outro momento em que usamos a comida como memorial é a ceia
do Senhor. Quando a instituiu, Cristo disse: “Façam isso sempre que o
beberem em memória de mim” (1Co 11.25b). Não é coincidência Jesus ter
escolhido esses alimentos como os elementos pelos quais deveria ser
lembrado. Ainda mais importante que nos lembrarmos dos antepassados
com comida é a lembrança de Cristo. Da mesma forma que se lembrar da
história da família ou da nação promove a comunidade mais unida, o
mesmo ocorre em sentido espiritual e sobrenatural, com a lembrança da
morte e ressurreição de Cristo, trazendo comunhão íntima com ele e com
seu povo. E isso nos leva a meu próximo ponto.

Comida e comunhão “Não é verdade que o cálice da bênção que


abençoamos é uma participação no sangue de Cristo, e que o pão que
partimos é uma participação no corpo de Cristo? Como há somente um pão,
nós, que somos muitos, somos um só corpo, pois todos participamos de um
único pão” (1Co 10.16,17).
Os dois pontos centrais da comunhão são comunidade e união.
Quando comemos e bebemos o pão e o vinho, participamos do corpo e do
sangue de Cristo. A união com os membros do corpo (cristãos) e a cabeça
(Cristo) é partilhada por meio da comida sacramental. A comunhão
continua até o retorno de Cristo, quando será consumada no banquete das
bodas do Cordeiro (Mt 22.1-14; Ap 19.9). A comida é uma sensação física
de sustento e beleza que significa a presença espiritual real de Cristo, que
nos concede vida. A beleza de misturar muitos ingredientes na unidade de
sabor e nutrição é a maneira perfeita de simbolizar a bela união dos muitos
crentes no único corpo de que Cristo é a cabeça. Não surpreende que Deus
use a comida como meio de comunhão. Comida, hospitalidade e
relacionamentos estão firmemente conectados.
“Não se esqueçam da hospitalidade; foi praticando-a que, sem o
saber, alguns acolheram anjos” (Hb 13.2). Essa passagem traz à mente
Abraão, que de pronto forneceu comida e descanso a três viajantes
estrangeiros em Gênesis 18.1-21 e, de fato, “sem o saber, acolheu anjos”. A
hospitalidade, em que a comida desempenha um papel importante, não é
apenas uma boa ideia, ela é também uma ordem. “Compartilhem o que
vocês têm com os santos em suas necessidades. Pratiquem a hospitalidade”
(Rm 12.13). “Sejam mutuamente hospitaleiros, sem reclamação” (1Pe
4.9a). A hospitalidade é essencial para bons relacionamentos e muitas vezes
gira em torno de comida. Relacionamentos formam o fundamento de
qualquer tipo de comunidade e amor dignos do nome. E se alguém não ama
seu irmão, este “não procede de Deus” (1Jo 3.10).
A comida não é só essencial na hospitalidade para com estranhos ou
amigos, mas forma uma parte muito importante do dia a dia familiar. O
mandamento “honra teu pai e tua mãe” (Êx 20.12) é fundamental para todos
os relacionamentos humanos.
“A família é o seminário da Igreja e do Estado; se lá os filhos não
receberem bons princípios, tudo será estéril […] se a juventude não for bem
criada pela família, os jovens provarão ser um mal na igreja e na
comunidade”.[12]
Quando as famílias comem juntas, em amor, estão formando
relacionamentos e unidade que edificam o Reino de Deus. Por causa do
materialismo, a vida usa muito da nossa capacidade de trabalho, mas
ignoramos a reflexão e o amor. Algumas coisas — como relacionamentos,
família e comunidade — não são melhoradas pelo industrialismo e
programas governamentais. Precisamos ter em mente que as coisas simples
e antigas como comer e conversar como família são fundamentais para a
cultura e sociedade cristãs. Devemos investir tempo comendo juntos.
Mesmo que isso diminua a eficiência do trabalho, e não produza
necessariamente lucro material, é uma parte importante e fundamental de
nossa vida.
Sobre esse tema alimentação e relacionamentos, é importante
reparar que as pessoas com quem você come são indicativos de onde está
seu coração. Uma vez que a refeição é um tempo de relaxamento do
trabalho e um momento para comunhão, trata-se de um período sagrado
para as coisas que você valoriza. Se você come enquanto assiste à televisão,
isso demonstra sua valorização do que está no programa de TV. Caso você
faça uma boquinha durante uma reunião de negócios, isso mostra que você
valoriza seu negócio. Se você encontra seus amigos no McDonald’s, isso
mostra que você valoriza o grupo de amigos. Se você come com sua
família, isso mostra que você valoriza a família. O que você valoriza
mudará sua cultura. Quando as pessoas reconhecem que é mais saudável e
barato fazer a própria comida em casa, elas ainda terão dificuldade em
mudar os hábitos. Mas se elas valorizam a família, não ficarão indo e vindo
porque o lar e a hospitalidade serão centrais.
Não somente a comida desempenha uma parte na comunhão, mas a
comunhão também afeta nossa atitude em relação à comida. A Bíblia
reconhece a comida como algo muito controverso. Pelo fato de ela possuir
um papel essencial na vida, as pessoas se tornam emocionalmente ligadas
aos alimentos. Não raro elas fazem decisões sobre o que comer. Assim, se
alguém lhes critica a dieta, elas se ofendem com facilidade porque a comida
representa grande parte de quem são. Nesse contexto Paulo diz aos
coríntios: “Portanto, se aquilo que eu como leva o meu irmão a pecar, nunca
mais comerei carne, para não fazer meu irmão tropeçar” (1Co 8.13).
Devemos ser sábios nas decisões alimentares, em especial na hospitalidade.
Só porque devemos normalmente comer vegetais e alimentos “puros”, isso
não implica no início de uma guerra contra quem come porco, e isso
também não significa que não podemos comer um cachorro quente no
piquenique do amigo (1Co 10.27). Só porque você tem o direito de comer
todos os animais, isso não significa a necessidade de alardear nossa
liberdade na frente de alguém “que tem a consciência fraca” (1Co 8.10).
“Não destrua a obra de Deus por causa da comida. Todo alimento é
puro, mas é errado comer qualquer coisa que faça os outros tropeçarem”
(Rm 14.20).
“É melhor ter verduras na refeição onde há amor do que um boi
gordo acompanhado de ódio” (Pv 15.17).

Comida e adoração Este aspecto da alimentação resume quase todos os


usos da comida. Esteja você alegre, lamentando-se, lembrando-se de algo
ou comungando, isso deve levá-lo à adoração e glória de Deus (1Co 10.31).
Alegramo-nos pela bondade divina; choramos por nossa carência da
santidade de Deus. Nós nos lembramos da providência divina, e amamos os
outros porque Deus nos amou em primeiro lugar. Adoramos Deus por todas
as boas dádivas que procedem dele (Tg 1.17), o que inclui a comida.
“Portanto eu lhes digo: Não se preocupem com sua própria vida,
quanto ao que comer ou beber; nem com seu próprio corpo, quanto ao que
vestir. Não é a vida mais importante que a comida, e o corpo mais
importante que a roupa?” (Mt 6.25).
Muitas vezes consideramos a comida algo certo na rica sociedade
atual. Devemos ser muito cuidadosos quanto à gratidão e não cairmos na
armadilha de Sodoma, de quem se diz: “Ora, este foi o pecado de sua irmã
Sodoma: ela e suas filhas eram arrogantes, tinham fartura de comida e
viviam despreocupadas; não ajudavam os pobres e os necessitados” (Ez
16.49).
Não devemos nos esquecer de que Deus provê o pão diário (Mt
6.11). Ele o poderia retirar em um segundo. Falta de gratidão significa a
recusa de louvar a Deus, a recusa de desfrutá-lo. Fazer isso é uma
provocação frente às bênçãos divinas. Devemos sempre ser gratos a Deus
(1Ts 5.18), pois toda boa dádiva vem dele (Tg 1.17).
Há dois tipos de ingratidão que considero problemáticas. A primeira
é a busca autocentrada e imediatista do prazer — que se tornou lugar
comum em nossa cultura. Na maior parte, a comida deve satisfazer os
anseios imediatos, sem considerar as consequências futuras. Muitas vezes,
usamos a agricultura para o agora, sem pensar no futuro para os outros.
Comemos mais comida, com menos hospitalidade e comunhão ao redor da
mesa. Pelo menos para o materialista, a comida se torna apenas mercadoria
econômica, em vez de uma obra de beleza e amor aos outros. Esse
egocentrismo tende a requerer o maior ganho pessoal com o menor
trabalho. Talvez, essas palavras se encaixem: “Não ande com os que se
encharcam de vinho, nem com os que se empanturram de carne. Pois os
bêbados e os glutões se empobrecerão, e a sonolência os vestirá de trapos”
(Pv 23.20,21).
Mas há também um tipo de egocentrismo que não é superindulgente,
mas pode ser super-restritivo. Algumas pessoas reclamam demais do que as
corporações estão nos dando e se esquecem das bênçãos que realmente
temos. Alguns podem supervalorizar a nutrição e acabarem banindo toda a
comida que possa ter algo prejudicial à saúde. Involuntariamente, eles
podem se tornar ingratos por tudo o que não é completamente saudável. De
maneira oposta, mesmo que nos empenhemos a favor da saúde e nutrição,
devemos ser gratos e estarmos contentes com o que temos. E alguns podem
pensar que a comida é apenas um meio de sobrevivência, e que a apreciação
da comida, dado o prazer físico que traz, é inconveniente para o cristão.
Pelo contrário, devemos louvar a Deus por nos conceder alimentos
saborosos, agradáveis e belos aos sentidos dados por Deus. Só quando
reconhecemos os prazeres temporais como dons amáveis do Deus eterno é
que eles se mostram significativos e valiosos, e não vãos e transitórios. Essa
maneira restritiva de ser ingrato é abordada com dureza na Bíblia: O Espírito
diz claramente que nos últimos tempos alguns abandonarão a fé e seguirão espíritos enganadores e
doutrinas de demônios. Tais ensinamentos vêm de homens hipócritas e mentirosos, que têm a
consciência cauterizada e proíbem o casamento e o consumo de alimentos que Deus criou para serem
recebidos com ação de graças pelos que creem e conhecem a verdade. Pois tudo o que Deus criou é
bom, e nada deve ser rejeitado, se for recebido com ação de graças, pois é santificado pela palavra de
Deus e pela oração (1Tm 4.1-5).
A comida ingerida pelos cristãos é santificada quando separada para
a justiça, pela Palavra de Deus e oração. Por isso, se formos cristãos
coerentes, comeremos para a glória de Deus com ação de graças a ele.
Quando isso é feito, não seremos egoisticamente sensuais, nem
egoisticamente obcecados com a saúde. Seremos teocêntricos, e
agradeceremos a Deus com alegria por tornar a comida saudável e saborosa.
Permaneceremos no temor de sua sabedoria relativa à criação e não
perverteremos suas bênçãos para nossa glória.
4. Alimentação e economia
Mas, espere! Tem mais! A alimentação é uma das necessidades básicas da
vida e necessita de muito esforço para ser produzida; assim, a produção e
preparação dos alimentos constituem a base da economia e do trabalho há
séculos. Cuidar do jardim foi a ocupação primária dada a Adão e Eva.
Abraão, Isaque, Jacó, Moisés, Davi e muitos outros na Bíblia criaram
ovelhas. Grande parte da ocupação dos israelitas se encontrava na
agricultura; muitos apóstolos eram originariamente pescadores, e o
próprio Jesus fez bastante uso de ilustrações agrícolas nas parábolas. Não
apenas a produção alimentar é um componente básico do trabalho, mas a
maneira como trabalhamos a comida afeta a alimentação, a saúde e a
cultura. Na verdade, a economia e o trabalho podem ser vistos como um
subconjunto da cultura. Portanto, não posso ignorar essa importante parte
da filosofia cristã da alimentação.

Por que trabalhar?


Servir a Deus ou servir ao homem?
Por que nós trabalhamos? Hoje, muitas pessoas (pelo menos, nos EUA)
responderiam a essa questão dizendo que precisam trabalhar para poder
viver. Para muitos, o trabalho é visto como um mal necessário que só é
realizado para obter renda para si mesmo ou, talvez, para a família. A razão
disso é: Não somente o trabalho, mas a vida sem Deus não tem significado. O trabalho, então, se
torna uma questão de economia de sobrevivência, de conseguir abrigo e comida suficiente para viver.
Para muitas pessoas, ao longo da história, o trabalho adquiriu essa conotação. O objetivo é a
sobrevivência e, por isso, o trabalho recebe uma aura triste e onerosa. Assim, evitar o trabalho é um
objetivo muito desejado.[13]
Se as pessoas tiverem a chance de não trabalhar, elas se aposentarão
(o que não raro envolve de alguma forma o governo) e aproveitarão a
oportunidade para viver com lazer. Talvez cruzem o país em um trailer,
comprem uma casa na Flórida, ou apenas se sentem e assistam à TV. Mas
por que continuar trabalhando quando não é mais preciso? Sim, podemos
ver exemplos e princípios da Bíblia como o de Deuteronômio 14.22-29, em
que há um tempo para a celebração e o descanso — que é uma grande
bênção (além do dia do Senhor); portanto, férias e descanso do trabalho não
são propriamente pecados. Mas o descanso não deve ser o objetivo final do
trabalho ou o estado ideal de vida porque isso nos privaria das alegrias e
bênçãos do trabalho. A ideia do avô que trabalha com o filho e o neto, como
no seriado “Os Waltons”,[14] ou mesmo o caso de ele ser considerado sábio
e respeitado mentor da próxima geração, é tida como estranha e antiquada.
Não estou dizendo que os indivíduos que se aposentaram são mais culpados
que o restante de nós, visto que nossa cultura valoriza os jovens e o novo, e
o modelo corporativo de trabalho foi construído dessa forma. Porém, é um
indicativo de que, como cultura, nós enxergamos o trabalho da maneira
errada. Perdemos o paradigma do trabalho como ordenança divina e forma
de adoração. Na Bíblia, Deus ordenou o trabalho a Adão antes da Queda;
logo, ele precede o mal e o pecado: “O SENHOR Deus colocou o homem no
jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo” (Gn 2.15).
Portanto, o trabalho não é mau. Trata-se de algo bom e causa de
felicidade. Deve-se notar que o trabalho agora é mais pesado por causa do
pecado (Gn 3.17-19), mas isso não significa que o trabalho seja ruim.
Qualquer dificuldade no trabalho, advinda da maldição, é apenas uma
pequena prévia do que deveríamos receber por causa do nosso pecado.
Mesmo a maldição é uma bênção, por nos lembrar de nossa
pecaminosidade. O trabalho não é o problema; o pecado, sim. Por toda a
Escritura se encontra a ordem para trabalhar: “Trabalharás seis dias e neles
farás todos os teus trabalhos” (Êx 20.9).
Quando ainda estávamos com vocês, nós lhes ordenamos isto: Se alguém não quiser
trabalhar, também não coma. Pois ouvimos que alguns de vocês estão ociosos; não
trabalham, mas andam se intrometendo na vida alheia. A tais pessoas ordenamos e
exortamos no Senhor Jesus Cristo que trabalhem tranquilamente e comam o seu
próprio pão (2Ts 3.10-12).
Se alguém não cuida de seus parentes, e especialmente dos de sua própria família,
negou a fé e é pior que um descrente (1Tm 5.8).
Escravos, obedeçam a seus senhores terrenos com respeito e temor, com sinceridade
de coração, como a Cristo. Obedeçam-lhes, não apenas para agradá-los quando eles
os observam, mas como escravos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus.
Sirvam aos seus senhores de boa vontade, como servindo ao Senhor, e não aos
homens (Ef 6.5-7).
Nossa vida é vida de adoração. Tudo o que fazemos é um ato de
adoração a algo. Empreendemos projetos por causa do que valorizamos.
Podemos trabalhar porque adoramos o conforto e, portanto, trabalhamos
pelo bem-estar material. Podemos adorar o progresso e transformar as
coisas; assim, trabalhamos para fazê-las sempre novas. Podemos até adorar
a humanidade, trabalhando para prover às pessoas de uma maneira
puramente humanista. Caso adoremos Deus, trabalhamos para cumprir os
mandamentos divinos da Escritura de “ench[er] e subjug[ar] a terra” (Gn
1.28) para sua glória, e trabalhamos para fazer provisão para outras pessoas
por amor. Se trabalhamos para Deus, nosso objetivo deverá ser nada menos
que a excelência. Isso fornece entusiasmo ao trabalho e serve para medir o
grau de sucesso. Labutamos, não apenas para obter sustento, mas para
produzir algo excelente para a glória de Deus.
“O mundo não considera o trabalho uma bênção; assim, o evita
e odeia. Mas os piedosos que temem ao Senhor laboram com o
coração pronto e alegre; pelo fato de conhecerem o
mandamento e a vontade de Deus, reconhecem seu
chamado.”[15]
— Martinho Lutero
Richard M. Weaver fez uma boa declaração sobre isso no livro As
ideias têm consequências: Quando o utilitarismo é entronizado e o trabalhador aprende que
o trabalho é utilidade, não adoração, o interesse em qualidade começa a declinar. Quantas vezes não
ouvimos expressões de assombro sobre o cuidado que alguns artigos de artesanato antigo recebiam,
antes que a organização moderna fizesse separação entre o trabalho e seu produto! Há a diferença
entre expressar a individualidade e produzir quantidade para um mercado de olho na especulação.
Peguy queria saber o que tinha acontecido com a honra do trabalho. Ela sucumbiu às mesmas forças
que todas as outras expressões de honra.[16]
Talvez isso diga algo sobre os problemas econômicos da atualidade.
Seguramente podemos ver que a nação temente ao Senhor será abençoada
com uma grande quantidade de bons trabalhadores. Lembremo-nos de que o
governo não nos pode salvar de crises econômicas — só o temor e o amor
de Deus podem fazer isso.

Como nós trabalhamos?


Economia familiar versus corporações
Por toda a Bíblia, as famílias trabalham juntas. Adão e Eva trabalharam
juntos para cuidar do jardim. Em um dos exemplos mais antigos de
economia, vemos famílias formadas por várias gerações como unidades
econômicas. “Ada deu à luz Jabal, que foi o pai daqueles que moram em
tendas e criam rebanhos. O nome do irmão dele era Jubal, que foi o pai de
todos os que tocam harpa e flauta” (Gn 4.20,21).
Raquel cuidava do rebanho do pai. As famílias dos patriarcas
trabalhavam juntas. Davi cuidava do rebanho do pai. Tiago e João estavam
em um barco com seu pai quando Jesus os chamou para serem apóstolos.
Áquila e Priscila faziam tendas juntos.
O conceito de corporação, em que os pais (e/ou mães) deixam a
família para trabalhar em uma organização além da família, é estranho à
Escritura. Há quatro jurisdições encontradas na Bíblia: o indivíduo, a
família, a Igreja e o Estado. Economia (da palavra grega oikonomia: oikos =
casa, nomos = lei) e negócios se encontram na jurisdição da família.
Embora as corporações privadas não sejam pecaminosas por si mesmas,
elas não são o ideal bíblico e, ao dividir a família, consequências ruins
podem se abater sobre o restante da vida. A mulher deve ser companheira
do marido. Ter duas visões diferentes de trabalho em uma família tende a
dividi-la, e a casa dividida não poderá subsistir (Mc 3.25). Isso não é apenas
verdade se a mãe e o pai vão para os respectivos empregos; também é
verdade na “família tradicional”, em que a mãe cria os filhos e o pai cuida
das finanças ao trabalhar em algum lugar alheio ao resto da família (e os
filhos não produzem nada). Para a família ser unidade — e uma unidade
relacional viável —, ela deve ter uma visão unificada de trabalho. A vida é
algo orgânico. As partes diferentes da vida são interconectadas, e o que
você faz em uma parte afetará o restante. O trabalho não é algo que se possa
separar do restante da vida, e as pessoas com quem você trabalha
determinarão suas relações mais sólidas. Gênesis 2.24 não diz: “o homem
deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua ‘corporação, empresa ou
administração pública’, e eles se tornarão uma só carne”. Na verdade, diz:
“Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles
se tornarão uma só carne”.[17]

O que isso tem que ver com alimentação?


Alimentação como parte da economia familiar Então,
devemos trabalhar para a glória de Deus, primariamente como famílias.
Embora pareça que tenhamos nos desviado do tema da alimentação, ela é
parte importante do nosso trabalho (como eu disse no início deste capítulo).
Hoje, a alimentação é um tema que tem se separado da família. Era comum
que as famílias cultivassem seu alimento, cozinhassem-no em casa e o
comessem juntas. Mais tarde, as crianças passaram a ir para a escola, e os
pais iam trabalhar, e as mães faziam marmitas e preparavam lancheiras. Na
sequência, pais e filhos começaram a comer em refeitórios, e as mães
começaram a trabalhar — ou elas esquentam comida congelada e assistem
às novelas. A ideia da família como parte da produção do alimento sofreu
muito.
Pensamos que, se seguirmos as orientações governamentais para a
alimentação, então tudo estará ótimo. Porém, além do fato de os negócios
(incluindo a agricultura) estarem em caráter primário sob a jurisdição da
família, o governo civil (em especial nosso governo maciçamente
centralizado) não conhece as condições específicas de cada pessoa. Se as
agências governamentais cometerem um erro, as consequências serão
bastante multiplicadas. E quando o governo proclama que todos têm
“direito” à alimentação saudável e subsidia de forma artificial certos
alimentos sem demanda, isso apenas aumenta o desperdício. No sentido
mais básico, não é responsabilidade do governo civil regular a dieta.
Da mesma forma, no setor privado, argumenta-se que manter
sistemas de produção alimentar especializados e centralizados é mais
eficiente e exige menos trabalho. No entanto, é uma eficiência que sacrifica
qualidade e singularidade. Outra vez, a alimentação de qualidade, boa para
nós, não é tão valorizada hoje como o prazer e a comodidade. Sendo,
porém, nosso trabalho uma forma de adoração a Deus, e a comida uma
fonte de saúde para o templo do Espírito Santo e expressão do nosso ser e
adoração, então talvez devamos valorizar o tempo gasto na preparação da
comida. E, a despeito das alegações de eficiência, a produção alimentar
centralizada é, na verdade, tão inclinada ao desperdício de comida quanto a
opção governamental, embora de formas diferentes.[18] Não apenas
acontecem erros em escala maior, mas quando o consumidor médio é
removido da produção, o esforço empreendido nisso não é muito
respeitado. Assim, consumidores em países industrializados normalmente
desperdiçam mais comida que consumidores de países em
desenvolvimento.[19] Quando você trabalha pela comida e vê o esforço
colocado nisso, será mais cuidadoso com a maneira que a utiliza. Então,
ainda que os grandes negócios sejam mais eficientes, para sobreviver e
crescer, eles devem buscar como objetivo a satisfação das massas, mesmo
que as massas sejam viciadas em escolhas ruins. Ao produzir comida, é
natural que eles gravitem em torno do mínimo denominador comum, ao
mesmo tempo em que fazem as pessoas desejarem ainda mais esse tipo de
alimento. Os desejos insalubres das pessoas e o poder dos negócios
centralizados caminham juntos para criar uma espiral descendente de
alimentação nociva de difícil interrupção.
Não só os sistemas centralizados e estáticos não constituem o
método bíblico, mas suas consequências são destrutivas para a sociedade
(algo nada surpreendente). Os sistemas não são o ponto de partida do
problema, e sim a cosmovisão antropocêntrica, incluindo-se a centralização
e o materialismo, que destrói a sociedade. Isso é contrário ao que a
cosmovisão bíblica produz na sociedade.
Veja, por exemplo, a mulher de Provérbios 31: “Como os navios
mercantes, ela traz de longe as suas provisões. Antes de clarear o dia ela se
levanta, prepara comida para todos os de casa, e dá tarefas às suas servas”
(v. 14,15).
Ela provê alimentos, não para a corporação ou o governo, mas para
sua casa. Ela trabalha com as pessoas de seu relacionamento, e
genuinamente cuida delas. Não existe melhor estímulo econômico que o
amor. Mesmo que uma família não produza o próprio alimento, quando os
membros da família pelo menos preparam a própria comida, haverá muito
mais cuidado e qualidade nisso que quando feita por um empregado
assalariado. Quando a família trabalha unida para cuidar de seus membros,
ela funciona como uma unidade socioeconômica viável.
Nosso Deus é o Deus relacional por ser triúno — ele passa a
eternidade desfrutando da própria comunhão interpessoal, e por meio do
amor relacional dele amamos uns aos outros (Jo 17). Na cultura bíblica, a
vida deve ser muito mais centrada em relacionamentos de amor (Ml 4.6; Gl
6.10; 1Jo 3.16,17; 4.7-21); portanto, deveria ser mais centrada na família e
na comunidade local, onde os relacionamentos têm tempo de crescer. Como
as famílias são formadas por indivíduos interconectados, as comunidades
são baseadas em famílias interconectadas (Êx 20.12; Ne 7.7-60; Sl 22.27).
O texto de 1 Tessalonicenses 4.9-12 diz que os irmãos de Tessalônica
devem amar uns aos outros, viver em paz e trabalhar de forma que não
dependam de ninguém. O texto não diz que cada indivíduo deve viver por
conta própria. A Bíblia ensina que devemos cuidar uns dos outros e viver
em comunidade (At 2.42-47). Essa passagem ensina que a comunidade
local, em especial a família da fé (Gl 6.10), deve ser bastante
autossuficiente, sem depender das pessoas de fora, diante de quem deve
“andar decentemente” (1Ts 4.12). Assim, as famílias não devem ser
totalmente autossuficientes, e as famílias não devem fazer tudo de modo
individual. Porém, quando as famílias trabalham juntas na comunidade
local, a corporação deixa de ser a unidade fundamental para quem os
indivíduos trabalham; famílias e lares tornam-se unidades fundamentais que
trabalham unidas. No modelo bíblico, o trabalho deveria estar centrado na
verdadeira comunidade relacional integrada à vida e família.
O método descentralizado e relacional de economia aplica-se à
agricultura e à culinária — duas atividades familiares mais importantes no
passado que hoje, e importantes para a cultura hebreia antiga e para o
cristianismo histórico.

Agricultura A agricultura é mais que cuidar de plantações e criar


gado. É uma maneira direta e básica de dominar as criaturas e interagir com
a ordem criada por Deus. Como Noah Webster disse em seu dicionário de
1828: “A agricultura é a ocupação mais universal do homem”.[20] As
palavras agricultura e cultivo vêm do mesmo radical latino, como cultura,
cultural e culto: colere (ou colō, significando cultivar, alimentar, criar,
honrar ou adorar). Quando alguém cultiva a terra, demonstra fé na
providência divina e espera pelo futuro. Ele está criando a civilização a
partir do deserto e trabalhando na criação de Deus para seu progresso.
Quando explorarmos o próximo capítulo, interagindo cuidadosamente com
a criação, aprenderemos sobre “seu eterno poder e sua natureza divina”
(Rm 1.20). Os benefícios da agricultura são muitos, como Enoch C. Wines
diz no livro The Hebrew Republic [A República hebreia]: As influências físicas e
morais da agricultura não devem ser menosprezadas… Trata-se do cultivo da saúde, da indústria,
temperança, alegria e frugalidade; das maneiras simples e da moralidade pura; do patriotismo e das
virtudes domésticas; e, acima de tudo, da independência vigorosa, sem a qual o homem não é
homem, mas mero escravo, ou joguete, de seus companheiros mais astutos. A agricultura tende a
produzir e alimentar o espírito de igualdade e simpatia… A agricultura gera e fortalece o amor à
terra. O coração do lavrador está ligado aos campos, onde ele aplica seu labor. O solo, que responde à
sua indústria vestindo-se de beleza e riquezas, tem um lugar em suas afeições. Essa circunstância em
especial, de que a posse lhe foi transmitida por uma longa linhagem de honrados antepassados,
fortalece em grande medida a ligação que ele sente pelo lar e condado (v. Nm 33.54 e Lv 25.23).

[…]
No cenário e nas ocupações da vida no campo a mente é mais tranquila, sóbria e
desanuviada. Na atmosfera assim se pode discernir de maneira mais clara o
relacionamento das coisas, e olhar além dos acontecimentos do dia… Em síntese,
esse grande empreendimento, o cultivo da terra, repousa, mais do que se pode dizer
de qualquer outro ramo da indústria humana, sobre o fundamento de tudo o que é
importante e valioso na sociedade civil.[21]
É possível falar muito sobre a agricultura a partir da perspectiva
bíblica. Alguns dos tópicos devem esperar pelo próximo capítulo, onde
discutirei nossa visão da criação de Deus em geral, mas umas poucas coisas
devem ser salientadas aqui.
Visto que “do SENHOR é a terra” (Sl 24.1), devemos seguir as
orientações de Deus quando se trata de usá-la. Em Levítico 19.9, 10, somos
informados: “Quando fizerem a colheita da sua terra, não colham até as
extremidades da sua lavoura, nem ajuntem as espigas caídas de sua colheita.
Não passem duas vezes pela sua vinha, nem apanhem as uvas que tiverem
caído. Deixem-nas para o necessitado e para o estrangeiro”.
O plano divino de caridade inclui certa ineficiência no campo. Dessa
forma, os pobres ainda têm de trabalhar para conseguir comida, coletando
as sobras, mas elas ainda são fornecidas pelos fazendeiros da comunidade
local. Com o passar do tempo, os pobres conseguiriam algo melhor para
trabalhar e seriam capazes de se reerguerem sozinhos.
Simples panfletos produzidos pelo Estado impessoal não substituem
esse tipo de caridade. Outra importante lei que se deve destacar é o
descanso da terra no ano sabático (Êx 23.10,11; Lv 25.1-7). Nele, a terra é
deixada em paz sem plantação, poda ou colheita. Lembra quando falamos
sobre a necessidade humana de descanso? A terra também precisa
descansar, se quisermos que ela seja fértil e saudável. O descanso no ano
sabático exige que o fazendeiro pense além do tempo presente para
planejar-se. Além disso, para ser verdadeiro descanso, o fazendeiro deve ter
fé na provisão divina. O mesmo se pode dizer sobre o repouso semanal no
dia do Senhor e o descanso noturno na cama. O terceiro ponto de destaque,
muito importante na agricultura e economia em geral, é a defesa bíblica da
propriedade privada como proteção da liberdade familiar. Na Bíblia, não há
imposto sobre a terra, e ninguém pode roubá-la, incluindo o governo (1Rs
21). Há muitas leis para a proteção da propriedade e da herança da terra,
que contribuem para a força e estabilidade da economia familiar (Êx
20.15,17; Lv 25.13,23,24; Pv 13.22). Há outras diretrizes na Bíblia sobre a
agricultura (Lv 19.23-25; Dt 25.4; 2Tm 2.6 etc.), mas essas são algumas das
principais, das quais nos esquecemos e devemos praticar se quisermos
cultivar a terra para a glória de Deus.
Quando a pessoa é redimida, isso não a afeta de modo isolado; ela
também é santificada no relacionamento com outras pessoas e com o
mundo ao redor. Quando a pessoa ama Deus, vive mais e mais de acordo
com a lei divina, e essa lei atua como bênção nos relacionamentos pessoais,
na sociedade e no meio ambiente. Como o pecado de Adão resultou na
maldição da terra, da mesma forma, a redenção de Cristo resulta na
renovação da terra, culminando no novo céu e na nova terra completamente
restaurados no retorno de Cristo. Jesus se encontra no processo de “fazer
novas todas as coisas” (Ap 21.5), e somos parte disso quando dominamos a
criação com responsabilidade.
Porém, isso não quer dizer que todos devemos ser fazendeiros. Há
outras formas de trabalhar e dominar. Mas significa dizer que, em uma
comunidade bíblica, a agricultura será bem mais difundida e generalizada
na sociedade que no sistema centralizado de elite (como temos agora), em
que apenas 1 por cento da população cultiva a terra. Mesmo que a fonte
principal de renda não seja agrícola, o trabalho de jardinagem para
complementar a alimentação, ou mesmo pelo prazer de aprender como a
criação de Deus funciona, será importante. Quanto mais uma família sabe
sobre a origem da comida, mais responsabilidade e incentivo a favor da
qualidade serão evidentes na agricultura. Quando as pessoas cultivam a
horta com fé em Deus e amam quem comerá os alimentos, enquanto
trabalham para a glória divina, a terra será abençoada com trabalhadores
esforçados que produzirão boa comida, nutrida pela boa providência divina.

Culinária
Da mesma forma que a agricultura não consiste apenas na produção de
vegetais, a culinária não envolve só a preparação de alimentos. Preparar
alimentos é o processo em que alimentos crus são transformados em obras
de arte que serão comidas por pessoas que amamos, pessoas feitas à
imagem de Deus. Isso é especialmente válido quando feito em uma
comunidade relacional como a família. Como cristãos, a preparação ideal
de alimentos não deveria consistir em comida feita às pressas, mas, por sua
beleza, deve refletir a natureza e a glória de Deus.
Deus é belo. Ele ama a beleza e a define de verdade. A beleza é
parte de sua natureza. “Ah! Como serão belos! Como serão formosos” (Zc
9.17a, v. tb. Sl 27.4, 50.2). O que constitui a beleza é assunto de muita
discussão ao longo dos anos, mas mesmo os filósofos humanistas
perceberam certos padrões na criação mais agradáveis que outros. A beleza
pode ser descrita como a composição de elementos dispostos entre si em
proporção correta. O modo comum de descrever a beleza se parece com a
antiga definição da Escola Romana: “diversidade na unidade”.[22] O
filósofo iluminista Francis Hutcheson observou: “As figuras que em nós
despertam o conceito de beleza são aparentemente aquelas em que há
uniformidade em meio à variedade.”[23]
Embora as expressões que descrevem a beleza variem dependendo
do aspecto da vida sob exame, há diferentes termos para os mesmos valores
últimos encontrados na própria definição de beleza — o Deus triúno. Deus
é um Ser que subsiste em três pessoas (Deus Pai, Deus Filho e Deus
Espírito Santo).
“No ser de Deus, não há pessoas individuais que não se relacionam
com perfeição com o único Deus; e não há nada no ser completo de Deus
que não esteja plenamente expresso nas três pessoas distintas”.[24]
No ser de Deus, nem o único Deus, nem as múltiplas Pessoas são
mais importantes ou últimas, mas em seu ser o um e o particular são
igualmente Deus. Deus fez sua criação para refletir como ele é (Rm
1.19,20). Assim, a beleza em Deus e na criação é o equilíbrio entre os
valores últimos de unidade e diversidade. De forma alguma são ideias
opostas. São valores complementares, que não podem ter sentido sem o
outro. Sem reconhecer a diversidade na realidade, o universal torna-se
uniformidade sem sentido, e sem reconhecer unidade na realidade, as
particularidades perdem sentido e relação. A primeira é estática; a outra é
caótica. Ao referir-me à arte, considero os termos ordem e zelo os melhores
para mostrar as partes distintas, mas não separadas, da beleza. A culinária,
como a música, dança, poesia e as outras formas de arte, envolve as duas.
A unidade da ordem A música ensina a ordem unificada por meio
de ritmo, escalas e intervalos organizados e matemáticos. Na dança, há
passos em harmonia com a ordem da música, e os dançarinos devem se
harmonizar com os outros dançarinos. Às vezes existem músicas e passos
complexos, mas eles devem se encaixar com a ordem. Parecemos, por
natureza, caóticos, irregulares e aleatórios. Por exemplo, as pessoas não
caminham em ritmo de forma natural. As refeições não nascem como
refeições. Para a refeição ser bela, a comida precisa ser colhida, lavada,
reunida, processada e, muitas vezes, aquecida. Devemos trabalhar para
produzir a comida organizada, limpa e composta de ingredientes em
unidade e proporção correta. A arte ordenada ensina a organização e
regularidade à nossa natureza. Ela ensina autocontrole e autodisciplina que
submete o corpo, os pensamentos, as ações e a vida à paz e harmonia de
Deus. Como 1 Coríntios 14.33 diz: “Deus não é Deus de desordem, mas de
paz”. E como 1 Coríntios 14.40 ensina: “Mas tudo deve ser feito com
decência e ordem”. Temos domínio e cultivamos a criação de Deus apenas
quando a moldamos de acordo com a ordenação divina. Quando
aprendemos a agir de acordo com a ordem e a paz, agimos de maneira
concorde com a natureza divina.

A particularidade do zelo Claro que a ordem não é a única coisa


exigida pela cozinha, do contrário, a comida seria insípida e chata. A beleza
não é estática ou enfadonha; ela tem vida e personalidade. Deus é um ser
repleto de amor e zelo. Isaías 42.13 diz: “O SENHOR sairá como homem
poderoso, como guerreiro despertará o seu zelo”. Isaías 59.17 descreve o
Senhor se envolvendo “no zelo, como numa capa”. Romanos 12.11 ordena:
“Nunca lhes falte o zelo, sejam fervorosos no espírito”. Não devemos ser
pessoas gélidas e monótonas, mas indivíduos com amor e alegria ardentes.
A comida deve ter vida, variações interessantes de sabor e textura; deve
refrescar e animar. Ela deve contar com uma variedade e expressões
alternadas: crocante e suave, quente e fria, doce e temperada. Mas, é claro
que devemos agregar os realçadores de sabor com ordem. Se formos apenas
zelosos, o zelo se tornará caótico e perderá o sentido. Não permitamos que
nossa comida seja como uma multidão gritando “Eu amo você!” com toda a
força, mas deixemos que ela seja como uma canção graciosamente
trabalhada com melodia e harmonia.

Comida pop
Usando a comparação de culinária e comida, é possível perceber como a
alimentação moderna se parece muito com a música moderna. Ela tem a
mesma substância — uma característica deficiente, comercializada e
sempre “nova e melhorada”. Muito da nossa comida é “comida pop”. Como
a música pop, trata-se de um produto que mistura romantismo (com ênfase
nas emoções à custa de regras e ordem), industrialismo (com destaque nos
interesses comerciais e o apelo massificado) e modernismo (que ressalta o
novo e o diferente).[25] Quanto mais as pessoas são fisgadas pela arte pop,
por sua natureza, mais são arrastadas pela espiral de exigir uma grande
empolgação para estimulá-las mais que a anterior. Na realidade, isso
corrompe o sabor e a percepção do que é bom. Depois de nos
acostumarmos com a música pop, ouvir Bach parece entediante, difícil e
desagradável, como comer vegetais. Para muitas pessoas, parece que
comidas saudáveis sempre têm gosto ruim. Agora que estamos acostumados
com alimentos sobrecarregados de açúcar e sal, voltar para a dieta mais
delicada e equilibrada de plantas, aromatizada com ervas e especiarias,
parece ouvir Händel depois de ter escutado rap por toda a vida. Comidas
saudáveis têm sim sabor agradável! Nosso paladar foi corrompido na busca
irrestrita de estímulo. Demora um pouco, mas quando você começa a comer
com regularidade, e de maneira saudável, a apreciação pela rica diversidade
dos sabores cresce e se torna um prazer. Não só isso, mas comer comida
pop se torna tão repulsivo quanto se você fosse um musicista clássico
ouvindo heavy metal. Outra consideração relacionada é que um rapper
também não irá tocar “O Messias” de Händel na primeira vez. Quando uma
pessoa ou uma cultura não está acostumada a utilizar vegetais, é preciso
alguma prática até aprender a comê-los com correção (isto é, não cozinhá-
los demais até virarem uma papa).
Por fim, não apenas a comida deve ser bela, mas toda a atmosfera da
refeição deve ser de amor e ordem de uma família piedosa. Embora, na
realidade, a vida nem sempre permita a oportunidade de uma refeição
familiar calma e amorosa, este deve ser o objetivo pelo que lutaremos. No
mundo perfeito, a comida seria preparada com amor pela família, para a
família e, talvez, para outras famílias. Como a comida seria feita no local e
para pessoas que se relacionam, deveria haver mais responsabilidade no
processo. Deveria haver características locais e atenção especial na
alimentação, que, de outra forma, seria engolida pela administração
corporativa. A família deveria desfrutar de uma pausa no dia de trabalho e
ter agradável comunhão ao redor da mesa, discutindo as lições e os desafios
do dia. A comida inspiraria a atmosfera de ordem e amor familiar que
cresceria e se desenvolveria no restante da vida. Quanto mais bela a
refeição, mais bela será a experiência de comunhão. Quanto mais bela a
refeição, de modo mais pleno podemos dar glória a Deus e desfrutar dele e
de sua perfeita beleza.
5. Alimentação e criação
Como escrevi na introdução, a comida é parte da criação divina, e nossa
visão da criação afetará nosso exame da alimentação. Visto que Deus criou
o mundo (Gn 1; 2), observamos o mundo nos termos dos propósitos e da
ordem de Deus. Quando Deus criou o homem, ele o fez como alguém que
exerce domínio.
“Este não é um tema periférico ao ser do homem: é essencial à sua
natureza. O homem exercerá o domínio piedoso ou o domínio maligno e
humanista”.[26]
Embora o homem não seja um robô que simplesmente produz e não
faz outra coisa, esse aspecto da natureza humana não pode ser ignorado. O
homem é uma criatura; ele é parte da criação de Deus e não pode escapar de
sua parte nela. Quando distorcemos o conceito da criação e da nossa parcela
de responsabilidade nela, nosso relacionamento com ela e com seus
produtos será distorcido e prejudicial para a vida.
O homem autônomo e rebelde quer escapar do Deus que julga.
Como a criação é de Deus, ele está em um ambiente hostil e, assim,
considera a natureza um tipo de inimigo. Como ele se orgulha de suas
capacidades, pensa que a ciência e a razão humanas o salvarão, e que a
criação pode ser compreendida e refeita à perfeição. Há, no entanto, outros
homens ímpios que reagem com violência contra essa posição de razão e
ciência, tomando, por sua vez, o caminho do primitivismo natural.
No século XIX, os românticos tiveram exatamente esse tipo de
reação aos filósofos iluministas. No iluminismo, os filósofos elevaram o
conhecimento humano por meio do racionalismo (conhecimento por meio
da razão) e do empirismo (conhecimento por meio dos sentidos). Eles
reduziram a vida à ciência e aos processos naturais. Os românticos reagiram
a isso elevando os sentimentos, os instintos, a irracionalidade e a emoção. À
custa do caráter último do conhecimento e da ordem humanos, eles
destacaram a importância da natureza e do caos. Pelo fato de
racionalistas/empiristas e românticos se desviarem do entendimento correto
a respeito do soberano Deus triúno, eles oscilaram de um “extremo” ao
outro, sem que nenhum deles fosse definido de acordo com a Bíblia.
Na atualidade, temos visto uma reação contra os cientistas
humanistas, iniciada pelos hippies e que continua hoje por meio de grupos
afins. Muitos liberais reconhecem a futilidade do industrialismo e
naturalismo científico; como consequência, eles concluem: sendo a
humanidade incapaz de entender e controlar de modo pleno os processos da
vida, ela não pode conhecer nada e deveria retornar à irracionalidade
primitiva. Eles negam a ordem da criação, ou pelo menos, a capacidade do
homem de entendê-la, alegando que qualquer tentativa humana de
aprimorar a natureza está fadada a corrompê-la. Quanto mais orgânico,
natural e intocado pela mão do homem, melhor. Essa reação parece boa à
primeira vista por reconhecer o problema com correção. Eles tomam uma
direção que parece semelhante à que os cristãos deveriam tomar. Todavia,
como os liberais negam Deus, são incapazes de reconhecer a natureza
limitada do mistério e da ciência sob Deus.[27]
Em oposição aos ímpios, os cristãos adoram o Deus triúno. Somos
os únicos que podem equilibrar de forma correta o conceito certo sobre a
criação, pois servimos ao Criador. Entendemos que Deus é o Deus de
ordem, e que fomos criados à sua imagem; logo, somos capazes de entender
alguns padrões da natureza que se originam na natureza organizada de
Deus. Isso dá significado aos particulares da razão e ciência. Além disso,
também entendemos que o homem é um ser finito e criado, sem mencionar
sua corrupção pelo pecado. Embora existam coisas que possamos saber por
meio das revelações geral e especial (a criação executada por Deus e suas
Escrituras), somos limitados. Há coisas misteriosas para nós. Quando nos
aproximamos de Deus e da criação, devemos fazê-lo com temor e
humildade. Em vez de confiar na ciência para refazer a criação de acordo
com a utopia humana, devemos usá-la para descobrir o valor do que existe
na criação, trabalhando como seus mordomos para subjugar e aprimorar a
criação a fim de que ela reflita a natureza e o poder santificador de Deus.
Em vez de enxergamos a criação divina como inimigo ou deus, que a
enxerguemos como o jardim de Deus que devemos cultivar com cuidado e
torná-lo belo e sobrejante.
Um aspecto de considerar a criação como o jardim de Deus é
reconhecer a marca da natureza e do caráter de Deus na criação. Devido à
sua natureza pecaminosa, o homem suprime a revelação natural de Deus
mediante a criação, tornando-se incapaz de interpretá-la. Entretanto, como
cristãos que conhecem e amam o Criador, e que estudam sua Palavra,
podemos observar a verdade divina ilustrada na criação. Um exemplo disso
é a permissão divina para que o sol se levante e a chuva caia sobre maus e
bons, justos e injustos. Deve ficar claro nesse aspecto da criação divina que
devemos também amar os inimigos e orar por quem nos persegue (Mt
5.44,45). Pratos deliciosos e nutritivos são benefícios do sol e da chuva
disponíveis a todos. Isso não significa que todos os apreciem e se alegrem
neles como um plano miraculoso para seu benefício. Quando as pessoas se
afastam de Deus, perdem o respeito pela sabedoria divina na criação e
acabam pervertendo-a. Essa apostasia se torna explícita para nós quando
vemos nações se afastando de Deus, tornando-se obesas e sofrendo de
doenças associadas. Populações saudáveis do passado que não tinham
acesso a vários alimentos calóricos e de baixo valor nutritivo (por exemplo,
os moradores da ilha de Okinawa) servem como exemplo das bênçãos
comuns que Deus provê às pessoas nos alimentos encontrados na criação.
Deus criou de modo a possibilitar aos ímpios a ingestão de alimentos
saudáveis. Entretanto, os ímpios têm motivações erradas e não dão glória a
Deus em suas escolhas. Como filhos de Deus, é uma bênção incrível
reconhecer a criação divina pelo que ela é — uma dádiva preciosa projetada
com infinita sabedoria e poder para nosso benefício. Portanto, glorificamos
e amamos a Deus quando somos bons mordomos dos nutrientes fornecidos
por ele na comida, pelo modo que aprendemos a prepará-la, servi-la e nos
alegrarmos nela com os outros, no amor de Cristo.
Aprendemos, por meio da experiência, que os componentes doces e
amargos da comida foram gloriosamente criados para nosso benefício.
Ainda que as pessoas desejem remover os componentes amargos e
adstringentes para tornar a comida mais atraente, esses componentes são
muito valiosos para o corpo, adicionando até mesmo riqueza ao sabor. Eles
podem nos lembrar do juízo divino, que pode parecer amargo e severo.
Mas, quando reconhecemos a soberania e a bondade de Deus, podemos
perceber que mesmo seu julgamento é bom. Sem ele, perderíamos a
ilustração de seu santo poder e das riquezas de sua glória para nós (Rm
9.22,23). Da mesma forma que a comida sem os componentes
“desagradáveis” produz um prato atraente, porém deficiente, da mesma
forma o Evangelho sem a soberania e a santidade de Deus “atrai o
incrédulo”, mas é lamentavelmente fraco e falho.
Quanto mais estudamos sobre a alimentação, mais aprendemos que
todas as comidas têm valor especial para as pessoas. Alimentos diferentes
são boas fontes de proteínas, minerais, vitaminas, fibras, gorduras,
flavonoides, sabores, cores etc. Os alimentos não são homogêneos; cada um
tem uma especialidade e importância que o diferenciam do resto. Para
comer uma dieta saudável, não se pode confiar em apenas um alimento,
mas se deve valorizar a variedade alimentar para que trabalhe junta, cada
tipo de alimento suprindo os demais. Essa é uma grande figura do corpo de
crentes. Cada membro do corpo tem papel próprio a desempenhar na
unidade: “Ora, assim como o corpo é uma unidade, embora tenha muitos
membros, e todos os membros, mesmo sendo muitos, formam um só corpo,
assim também com respeito a Cristo. […] De fato, Deus dispôs cada um dos
membros no corpo, segundo a sua vontade. Se todos fossem um só membro,
onde estaria o corpo? Assim, há muitos membros, mas um só corpo.” (1Co
12.12,18-20). Embora tenhamos importância igual, temos diferentes
posições e responsabilidades. Esse plano na alimentação é o grande
exemplo da ordem social e do planejamento de Deus para a comunidade. A
partir do exemplo dos alimentos criados por Deus, podemos ter confiança
de que o Senhor também faz cada um de nós para um propósito que lhe
renda glória.
Se você já trabalhou na criação de animais para a alimentação ou na
plantação de um jardim, sabe que não demora muito para aprender a
necessidade de muito esforço para tornar o empreendimento produtivo. Há
uma diferença entre criar ratos e vacas, ou entre cultivar abrolhos e tomates.
Essas observações da criação ilustram o ensino da Palavra de Deus quanto
ao resultado do pecado de Adão no jardim do Éden: E ao homem declarou: “Visto
que você deu ouvidos à sua mulher e comeu do fruto da árvore da qual eu lhe ordenara que não
comesse, maldita é a terra por sua causa; com sofrimento você se alimentará dela todos os dias da sua
vida. Ela lhe dará espinhos e ervas daninhas, e você terá que alimentar-se das plantas do campo. Com
o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque
você é pó, e ao pó voltará” (Gn 3.17-19).
Por nossas interações com a outrora perfeita criação de Deus, somos
constantemente lembrados de todas as amplas consequências do pecado.
Somos lembrados de que tornamos a bênção de Deus dolorosa.
Deus criou alimentos para crescerem melhor em diferentes
localidades; considere o salmão, o robalo, o café, o cacau, as folhas de chá,
o coco, o abacaxi, o mirtilo, o pêssego, a noz pecã, a couve, o feijão, a uvas
e o figo. Esse plano nos ajuda a apreciar que Deus sabia desde o princípio
que o mundo teria diferentes climas. Assim, ele designou que o potencial
genético se adaptasse a eles. As mudanças dramáticas no mundo à época do
Dilúvio não foram uma surpresa. A dispersão de diferentes alimentos reflete
a dispersão da raça humana após a torre de Babel. Ela dá a cada tribo,
língua e nação comidas típicas próprias, que servem para personalizar a
comunidade relacional local. Essa diferença também evita que cada povo se
glorie em sua comida em vez de apreciar também outras culturas. Deus é
soberano e, por seu desígnio, ele guarda os povos de ser tão arrogantes
quanto podem. “Pois dele, por ele e para ele são todas as coisas. A ele seja a
glória para sempre! Amém” (Rm 11.36).
Como disse antes, há ordem e diversidade e, assim, beleza, na
comida que reflete o caráter divino. Ninguém pode escapar desse fato óbvio
quando examina a disposição dos alimentos em uma feira de produtos
agrícolas ou estuda os detalhes de cada alimento. A ordem e a diversidade
nunca terminam quando examinamos a estrutura visível, microscópica,
molecular e atômica da comida. O projeto dos alimentos é inegavelmente
incrível. Cuidado com quem não trabalha humildemente com a comida e a
simplifica demais. É fácil isolar um componente da comida e declarar que
isso é tudo que você precisa e que, assim, deveria consumi-lo como
suplemento e esquecer o resto dos alimentos. Da mesma forma, também é
fácil isolar um componente de um alimento e declará-lo ruim para você, e
que por isso deveria evitar essa fonte alimentar. As diferentes moléculas e
os componentes da comida trabalham juntos de forma difícil de avaliar. As
partes boas em si mesmas são normalmente ainda melhores quando
combinadas com outras partes, e as que normalmente podem ser ruins em si
mesmas, conseguem interagir em baixos níveis com outras partes para
produzir um bom efeito. Com o tempo, muitos componentes ou atributos
dos alimentos originariamente considerados prejudiciais não foram
confirmados; descobriu-se até que alguns são saudáveis (por exemplo,
inibidores da protease). Enxergamos vaga e imperfeitamente as coisas, em
especial quando estudamos a criação divina sem reconhecer que Deus
existe e tem poder e sabedoria infinitos.
Em Romanos 1.20 aprendemos que “os atributos invisíveis de Deus,
seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo
compreendidos por meio das coisas criadas”. Um benefício do estudo dos
alimentos criados por Deus é a alegria de descobrir os atributos divinos. A
soberania e a criatividade infinita de Deus são vistas no notável projeto da
criação, que considera muitas coisas de uma vez. Apenas pense, Deus
planejou que cada planta precisasse crescer e sobreviver sob diversos
climas e condições de pestes, doenças, solos e polinizadores. Ele também
decidiu os nutrientes que cada tipo de comida deveria nos fornecer. Projetou
como os componentes da comida reagiriam no preparo para criar um sabor
agradável ou aprimorar sua utilidade para o corpo. Delineou como os
alimentos complementares podem ter um bom sabor quando combinados ou
consumidos juntos em uma refeição. Arquitetou como esses nutrientes são
transportados e transformados em diferentes estruturas no estômago, no
trato intestinal, na corrente sanguínea, nos órgãos e nas células, projetando
como as estruturas resultantes interagem com receptores, enzimas e outras
moléculas para beneficiar o corpo. Mesmo dentro de um tipo de semente há
um potencial genético planejado por Deus para uma grande diversidade de
variedades que podem ser selecionadas para diferentes tempos e
necessidades — que ele sabia serem valiosas para as pessoas desde o
princípio dos tempos. Quando a necessidade de abundância maior de
comida aumentou, Deus forneceu ao homem a vontade e a capacidade de
selecionar plantas que rendem mais alimentação. É incrível ver como,
década após década, os produtores aumentam o rendimento das plantações
com um potencial aparentemente infinito para rendimentos ainda maiores.
Dê graças a Deus por fornecer esse potencial na criação. Todas essas coisas
ele considerou de acordo com as necessidades de cada época na história.
Oh, quão infinito e eterno é o poder divino! Ele é Deus; não nós. Ele
é digno de louvor, honra e glória para sempre. O homem, em sua sabedoria
autônoma, produz apenas o que leva à morte e destruição. Louve a Deus
pelos exemplos que vemos na futilidade dos caminhos destrutivos do
homem, para que possamos perceber ainda mais a dependência de Deus e o
privilégio de sermos seus filhos por meio da obra de Cristo na cruz. Que
nos arrependamos, nos dispamos do velho homem e sejamos
progressivamente transformados para sermos mais semelhantes a ele em
amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,
mansidão e domínio próprio.
Conclusão
Ao chegar ao final do livro, sinto que há muito mais para escrever sobre os
diversos aspectos da alimentação. Porém, enquanto escrevia, também
percebi quão interconectados eles estão, e como seria difícil lidar em
separado com esses diferentes aspectos. A maneira como trabalhamos a
comida influenciará sua salubridade. A forma que vemos a criação
influenciará como trabalhamos com a comida. A qualidade e a nutrição dos
alimentos influenciarão o contexto e a cultura geral da refeição. A forma de
preparo da comida influencia sua expressão e qualidade. Nossa cultura
alimentar influenciará o quanto valorizamos a alimentação. Assim, quando
você observa a existência de um capítulo sobre diferentes aspectos da
alimentação, perceberá que esse mesmo aspecto surgirá pelo restante do
livro. Essa é a razão para construir a cosmovisão cristã para tudo na vida. A
vida é uma rede conectada de assuntos relacionados e, quando uma parte
está errada, ela influencia o resto da vida.
“Vocês não sabem que um pouco de fermento faz toda a massa
ficar fermentada? Livrem-se do fermento velho, para que
sejam massa nova e sem fermento, como realmente são” (1Co
5.6b,7a).
Este livro é uma tentativa de abordar a comida como elemento da
vida não muito tratado pelos cristãos como, digamos, a política.
Infelizmente, os cristãos conservadores do “cinturão bíblico”[28] são
conhecidos pela alimentação gordurosa e tóxica, para nossa vergonha. É
hora de acordarmos do marasmo do conforto e, pela graça de Deus,
começarmos a comer de uma maneira bíblica, que reflita bem sobre a honra
do cristianismo, permitindo-nos cumprir o restante da nossa vida de
maneira bela e saudável. Não é uma questão fácil. Devemos orar pedindo
que exibamos o fruto do Espírito por meio do domínio próprio em nossa
vida e dieta, que amemos a beleza que reflete a natureza de Deus, que
recebamos um desejo de trabalhar em amor por Deus e pelo homem, e que
utilizemos e desfrutemos com cuidado do mundo de Deus apenas para a
glória dele. Isso não é algo que podemos fazer por nós mesmos, mas virá
apenas da operação de Deus para nossa santificação.
Quando se tem a visão adequada da comida, ela nos ajuda a ter o
conceito correto sobre Deus. Como Jesus disse em Mateus 4.4: “Nem só de
pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus”.
Como a comida nos sustenta o corpo e nos dá vida, da mesma forma, em
última análise, recebemos vida eterna por meio da “palavra da vida” (Fp
2.16). E, em João 6.35: “Então Jesus declarou: ‘Eu sou o pão da vida.
Aquele que vem a mim nunca terá fome; aquele que crê em mim nunca terá
sede’ ”.
Em Jesus estamos satisfeitos, e nele não temos falta de nada. Como
a boa refeição lhe dará satisfação por um tempo e trará prazer e gratidão,
Jesus o satisfaz pela eternidade, e nele encontramos prazer e gratidão
plenos. Deus também é chamado de água purificadora, renovadora e fonte
de vida (Is 44.2-5; Jr 17.13; Jo 4.10 etc.). Quando a comida é bela e
nutritiva, ela nos ajuda a lembrar melhor de que temos um grande e todo-
poderoso Deus.
A conclusão do assunto é esta: Deus é todo-poderoso e bom. Ele nos
proveu com ótimos alimentos para serem explorados e aproveitados, e ele
nos deu a maneira de desfrutá-lo. Oh, povos da terra, “provem, e vejam
como o SENHOR é bom” (Sl 34.8). Atribuamos glória e honra a Deus por
quem ele é e pelas maravilhosas obras com que ele tem nos abençoado, e
sejamos sempre gratos por suas bênçãos. Que o amemos e comamos à sua
maneira, por seu poder, e para sua glória.
“Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa,
façam tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31).
Bibliografia
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[1] Amy Wilson Carmichael (1867-1951) nasceu na Irlanda no Norte e foi missionária protestante
em Tamil Nadu (Índia). Ali ela abriu um orfanato e fundou uma missão para cuidar de meninas
obrigadas a se prostituírem. Amy permaneceu na Índia durante 55 anos até a morte. [N. do R.]
[2] Jethro Kloss, Back to Eden, (Loma Linda, CA: Back to Eden Books Publishing, 1992), p. 601.
[3] Gidon Eshel & Pamela A Martin, “Geophysics and nutritional science: toward a novel, unified
paradigm”, The American Journal of Clinical Nutrition 89 (suppl) (2009): 1714S.
[4] Rex Russell, M.D., What the Bible Says about Healthy Living (Grand Rapids, MI: Fleming H.
Revell, 1999), p. 76.
[5] Há um elemento cerimonial e um elemento físico (em que o cerimonial se baseia) nessa distinção,
como existe nas lavagens do Antigo Testamento (Êx 30.17-21, Lv 11.25); elas não são exigidas
cerimonialmente (Hb 9.10), mas ainda são benéficas ao corpo (lavar os pés ainda é uma boa ideia; Jo
13.1-17, 1Tm 5.10).
[6] Commentary on Corinthians, http://www.ccel.org/ccel/calvin/calcom39.xiii.iii.html (acessado
em 2/12/2011).
[7] Russell, What the Bible Says about Healthy Living, p. 42.
[8] Livro IV, cap. XII, 15. São Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2. ed., 2006.
[9] Russell, What the Bible Says about Healthy Living, p. 43-50.
[10] Prato tradicional (datado do século XVI) e consiste em vísceras de carneiro (pulmões, coração e
fígado) moídas e misturadas com farinha de aveia, temperos. A mistura é cozida no estômago do
animal (ou bucho). [N. do R.]
[11] Prato preparado com peixe branco (normalmente bacalhau) e soda cáustica. O processo de
preparação é longo e dura vários dias. Quando pronto, o peixe fica com consistência gelatinosa. [N.
do R.]
[12] Thomas Manton, “Mr. Thomas Manton’s Epistle to the Reader” in Westminster Confession of
Faith (Glasgow: Free Presbyterian Publications, 1994), p. 9.
[13] Rousas John Rushdoony, Systematic Theology (Vallecito, CA: Ross House Books, 1994), vol. 2,
p. 1020.
[14] Seriado de televisão que retratava a vida de uma família no ambiente rural da Virgínia, dona de
uma serralheria no período da Grande Depressão e mais tarde na Segunda Guerra Mundial. [N. do T.]
[15] George Grant & Karen Grant, Lost Causes. Nashville, TN: Cumberland House Publishing,
1999, p. 36.
[16] Chicago and London: University of Chicago Press, 1984, p. 73-4. Publicado no Brasil como As
ideias têm consequências (São Paulo: É Realizações, 2007).
[17] Para mais instrução sobre economia familiar, Generations with Vision tem alguns ótimos
recursos sobre esse assunto em http://generationswithvision.com/Store.
[18] Jenny Gustavsson, et al. “Global Food Losses and Food Waste” (Food and Agriculture
Organization of the United Nations, 2011), 5,
http://www.fao.org/fileadmin/user_upload/ags/publications/GFL_web.pdf.
[19] Ibid.
[20] “Agriculture,” acessado em 2/11/2011, http://www.1828-
dictionary.com/d/search/word,agriculture
[21] Uxbridge, MA: American Presbyterian Press, 1980, p. 11ss., apud Joseph Morecraft III,
Authentic Christianity (Powder Springs, GA: Minkoff Family Publishing & American Vision 2009),
p. 616-7.
[22] Webster’s Revised Unabridged Dictionary 1913., s.v. “Beauty”, acessado em 2/12/2011,
http://1913.mshaffer.com/d/word/beauty.
[23] “SECTION II: Of Original or Absolute Beauty. Part III” em An Inquiry into the Original of Our
Ideas of Beauty and Virtue in Two Treatises, ed. Wolfgang Leidhold (Indianapolis: Liberty Fund,
2004), acessado em 2/12/2011, http://oll.libertyfund.org/?
option=com_staticxt&staticfile=show.php%3Ftitle=858&chapter=65974&layout=html#a_1607960.
[24] Joseph Morecraft III, Authentic Christianity (Powder Springs, GA: Minkoff Family Publishing
& American Vision, 2009), p. 387.
[25] Kenneth A. Myers, All God’s Children and Blue Suede Shoes (Wheaton, IL: Crossway Books,
1989), p. 139-40.
[26] Rushdoony, Systematic Theology, p. 961.
[27] Foi assim que o misticismo oriental tornou-se parte do movimento de alimentação natural.
[28] Cinturão bíblico, ou bible belt, é uma região no sudeste dos EUA em que denominações
evangélicas e posições tradicionais têm presença mais forte, tornando-se parte da cultura local. [N. do
T.]

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