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Programa de pós-graduação em Sociologia

Mestrado acadêmico em Sociologia


Disciplina: Teoria Sociológica II
Professor: Dr. Emanuel Freitas
Discente: Rômulo Silveira Monte

O presente trabalho é produto da reflexão sobre o cenário político contemporâneo


pensado a partir do aparato conceitual de Goffman em A representação do Eu na Vida
Cotidiana. Para tanto, buscou-se estabelecer a partir de tais categorias uma leitura do
processo de digitalização da comunicação da política e a disposição dos atores frente a
aparente dissolução do “Tato com Relação ao Tato” num mundo mediado pelas
tecnologias digitais de comunicação, em especial a internet e as redes sociais
provenientes dela.

Quando cai a coxia: O roteiro do “homem comum” vem a público.

Um milionário estadunidense e um militar brasileiro. O primeiro, jamais tendo


se candidatado a nenhum cargo político, desce do alto de sua torre empresarial para
anunciar sua candidatura a presidência dos Estados Unidos nas eleições de 2016. O
militar brasileiro, embora já há trinta anos na política, apresenta-se em como alternativa a
“velha política”, reivindicando para si o status de cidadão de bem e utilizando um discurso
de inconformidade com a corrupção entranhada na política.
Donald Trump e Jair M. Bolsonaro. Ambos apresentando-se como outsiders
ingressando na carreira política por insatisfação com uma suposta decadência dos
valores tradicionais, da família, da propriedade privada e da “liberdade de expressão” -
onde podemos ler discurso de ódio. Verifica-se, todavia, entre esses atores a ocorrência
de discursos xenofóbicos, racistas e misóginos cujo roteiro não parece consternar grande
parte das populações de seus respectivos países, pelo contrário, ocorre uma considerável
identificação entre o público e o ator, de forma que, dentro do grupo, não são lançadas
estratégias defensivas para a manutenção da fachada do espetáculo, o ato está posto e o
público é partícipe desse teatro expandido. Variações de um fenômeno que ganha força
na contemporaneidade, mas não é novo.
Há, portanto, uma questão de fundo que precisa ser trazida à leitura das
representações postas: por que o sujeito que vem a tona como outsider nesse sistema
político não traz consigo um choque generalizado da quebra de representação? Os
roteiros despojados dos filtros que usualmente se espera de um político em um Estado
democrático possui seus precedentes históricos e certa semelhança quanto as táticas
empregadas, como a produção de um inimigo interno responsável pela “desordem” e pelo
aprofundamento de problemas sociais que deixam a sociedade fragilizada frente a um
pretenso salvador da pátria.
Há que ressaltar que não se trata de uma “mentira” simplesmente, mas de um
roteiro orientado que dá sentido ao ato encenado, a narrativa heroica é evocada e se
estabelece na teia de significações do teatro da vida cotidiana possuidora de um núcleo
narrativo comum ou tangente.
Assim, o que para alguns aparece como uma ruptura de representação ou de
negação dos preceitos democráticos, salta aos olhos de outros como um apelo da
autenticidade do “homem comum”, sincero, que fala o que pensa. Esse falar é um
elemento relevante, posto que, na contemporaneidade as redes sociais de internet dão
outra dimensão a relação ator e público.
Se na metamorfose da comunicação política proporcionada pelas redes sociais
de internet o “Tato com Relação ao Tato” poderia sofrer uma dissolução devido a
digitalização e atomização da comunicação em massa, isto não parece se confirmar
graças a figuras como Trump e Bolsonaro, que se utilizam fortemente das redes sociais
para se promoverem ao público.
Dessa forma, de meio digital impessoal, as redes se convertem em meio de
comunicação no qual esses atores conseguem construir uma coesão grupal. Evoca-se a
ideia de que os meios de comunicação mentem sendo, portanto, um entrave para a
verdadeira comunicação que agora se dá, supostamente, sem intermédios, sem os filtros
da imprensa.
O ator fala ao público e este lhe responde, lhe faz pedidos, agradece,
fortalecendo a pretensão de coesão, mesmo que, em alguns momentos, fundada na
violência ou na intolerância “reforçada pelo pertencimento a um subgrupo na rede mundial
de computadores, a internet” (Avritzer, 2019, p. 114).
No entanto, esse processo não se constrói em uma única via, pois, na medida
em que o grupo constitui a si, o faz em oposição a outro grupo que também reforça sua
coesão e seus aspectos distintivos, produzindo disputas que as instituições do Estado
democrático se encarregarão - ou não – de mediar no espaço público. Foi o que ocorreu,
por exemplo, na campanha presidencial de 2018 no Brasil. Naquele processo eleitoral
instituições como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), instituição responsável por fiscalizar
o processo eleitoral, bem como entidades de fact-checking1, se viram de mãos atadas
frente ao fenômeno de migração - ou complemento - da campanha Bolsonarista para o
Whatsapp.
O caráter público do Twitter permitia que não apenas os sujeitos que
compartilhavam das opiniões de Bolsonaro tivessem acesso as suas postagens, mas
1 Organizações, geralmente compostas por jornalistas, que se empenham em checar e combater a difusão de noticias
falsas na internet.
também os sujeitos de grupos distintos capazes de oferecer opiniões divergentes, e
rebater aquelas opiniões que feriam minorias políticas. Entidades de verificação de
notícias que se puseram a verificar a veracidade das notícias veiculadas durante aquele
pleito também poderiam ter acesso as postagens sendo capazes de desmontar narrativas
falsas usadas para conquistar o público em seus medos e preconceitos. Com a criação de
grandes grupos bolsonaristas no Whatsapp, acabou-se estabelecendo uma nova camada
de fachada por trás da qual a representação se estabelecia de forma mais.
Em suma, ainda que ausente do ator, os seus significantes circularam
fortalecendo suas narrativas de forma que uma contra narrativa estava impossibilitada e
mesmo quando a representação extrapolava o aceitável, o caráter privado da rede
dispensava mais uma vez a utilização de práticas protetoras uma vez que os atores de
outros núcleos narrativos estão excluídos desse bastidor.
Conclui-se, dessa reflexão, que o aparato conceitual de Goffman é ainda
relevante para analisar o quotidiano das representações, mesmo que este esteja
passando por um processo de metamorfose em que ocorre a digitalização da
representação dos atores, o que poderá exigir um alargamento da ideia de Tato com
relação ao tato.

Referências:

AVRITZER, Leonardo. O pêndulo da Democracia. São Paulo, Todavia, 1ªed., 2019


GOFFMAN, Erving. A representação do Eu na Vida Cotidiana. Petropolis, Vozes, 1985.

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