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A CRÍTICA DO DEPUTADO CARLOS MARIGHELLA À CARTA DE 1937

Eduardo dos Santos Bueno


Mestrando em História na PUCRS
Eduardo.bueno@edu.pucrs.br

RESUMO

Este artigo deseja apresentar e analisar a fala do deputado Carlos Marighella acerca da
Carta Constitucional de 1937, proferida na Assembleia Nacional Constituinte de 1946.
Para Marighella e a bancada comunista, esta Constituição ficou caracterizada como
“Carta para-fascista”, tendo em vista sua inspiração e sua restrição de direitos políticos.
Assim, pretendo contrapor a visão apresentada pelo deputado com as de outros
intelectuais, como Francisco Campos – autor da Carta Constitucional – e os juristas
Oliveira Vianna e Pontes de Miranda, que defenderam sua instauração. Não obstante,
diante da urgência em estabelecer um Regimento Interno na Constituinte e uma posição
firme contra a Carta de 37, sugiro através das falas de Carlos Marighella que esta era
uma tarefa emergencial para os comunistas que buscavam manter sua legalidade ao
mesmo tempo que apresentar suas ideias na Constituinte, argumentando contra uma
Constituição que os criminalizava.

Palavras-chave: Constituinte; União Nacional; Partido; Assembleia Nacional.

Quando interrogado pelo DOPS em 1964 logo após sua detenção no Rio de
Janeiro, Carlos Marighella respondeu aos seus inquisidores da seguinte forma acerca de
possíveis nomes que ele poderia entregar à repressão: “Fui deputado federal pelo
Partido Comunista e eleito na Bahia por milhares de eleitores. Sou um homem público
militante político” (BRASIL, 1964, p. 76) O homem público e militante político
parecem ser designações coerentes com a figura e a atuação de Carlos Marighella.
Ainda hoje é difícil enquadrá-lo tão somente em uma definição, tendo em vista sua larga
trajetória como militante comunista, deputado, guerrilheiro, escritor e as vezes até
poeta. Dentre estas definições, o período como deputado federal na Assembleia
Nacional Constituinte de 1946 ainda permanece pouco abordado pela historiografia.
Suas mais de 190 intervenções na Constituinte ainda hão de ser analisadas e estudadas
para melhor entendimento do próprio indivíduo, do Partido Comunista e do processo de
elaboração da Constituição de 1946.
Dentre estas intervenções, trago aqui uma importante reflexão e opinião de
Marighella e do Partido Comunista acerca da Carta de 1937, proferida na 9° Sessão em
18 de fevereiro de 1946. A visão dos comunistas e o relato dos anos de perseguição
eram pela primeira vez ouvidas em uma Assembleia Legislativa brasileira. A crítica dos
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mesmos acerca da repressão, a caracterização daquela carta constitucional como “Carta


Para-fascista” e seu extremo receio com a constituição outorgada por Vargas era lógica.
Uma constituição que criminalizava os comunistas e impedia o exercício democrático
dos partidos políticos. A análise de Carlos Marighella perpassa por estas experiências e
situações vividas, que não eram únicas dos comunistas naquela Assembleia, mas eram
singulares após mais de vinte anos de ilegalidade do partido. A política de “União
Nacional” reafirmada pelo PCB em sua II° Conferência Nacional do Partido 1 como
linha de atuação para o combate ao nazi-fascismo e que ganhou novos ares dada a
conjuntura de abertura democrática, também deve ser considerada na análise como fator
fundamental na elaboração das intervenções na Assembleia.
Consideraremos aqui também visões contrárias às de Marighella acerca da Carta
de 37 e que ajudaram a construir uma visão positiva e moderada da mesma em
determinado momento. A defesa da constituição por parte de juristas e intelectuais
influentes no cenário político nacional, como seu autor Francisco Campos. Outras
figuras importantes para entendermos como a Carta de 37 ganhou apoio e espaço no
meio social e intelectual do período, são Oliveira Vianna e Francisco Cavalcanti Pontes
de Miranda, que já detinham uma significativa atuação e produção literária desde os
anos 20.

UNIÃO NACIONAL

Passado o fracasso de tentativa de levante armado pelos comunistas em 1935, o


Partido Comunista se encontrava em apuros, com boa parte de seu Comitê Central preso
ou sob fuga. O Estado Novo instaurado em 1937 criminalizava textualmente a atuação
dos comunistas que encontravam sérios problemas para se reorganizar. Entretanto, a
determinação oriunda da Internacional Comunista era de uma Frente Popular para
combater o nazi-fascismo. No caso brasileiro em específico, com a tentativa também
fracassada de golpe por parte dos Integralistas em 11 de maio de 1938, o cenário
começava a mudar. O Partido Comunista adota uma posição de apoio à Getúlio Vargas,
tendo em vista sua resposta frente ao integralismo, e compreende que se apresenta uma
nova fase na conjuntura política, em que é necessário se estabelecer uma aliança com
diversos setores sociais e com o governo para combater o avanço e a influência do

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Também conhecida como Conferência da Mantiqueira. Realizou-se em 27 de agosto de 1943 em
Engenheiros Passos, Rio de Janeiro.
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fascismo. Assim, o PCB lança um documento intitulado ‘’União Nacional Pela


Democracia e Pela Paz!’’ na revista oficial do partido, A Classe Operária, conclamando
para que o povo brasileiro pegue em armas e ajude o governo para derrotar o
integralismo (PRESTES, 2001). Mas é através da II Conferência Nacional do Partido
que se define de forma oficial a União Nacional como objetivo central de atuação dos
comunistas brasileiros naquele período (NETTO, 1986). Com a entrada do Brasil na
guerra, o Partido apoia o envio da FEB e mantém sua concepção de conciliação com o
governo, pois:

Evidentemente, essa união há de realizar-se em torno do governo do


Presidente Vargas, que dirige o país em guerra, postas de parte antigas
pendências e dissensões, que, neste momento, não se podem alegar nem fazer
prevalecer diante do quadro supremo da Pátria em luta, na mais difícil e
penosa de todas as guerras (CARONE, 1982, s.p.).

O partido entraria na campanha para criação de uma Constituinte, como nos


assinala Anita Prestes:

Para os comunistas, nas condições concretas daquele momento histórico, a


Constituinte seria o único meio capaz de levar à implantação de um regime
democrático no Brasil, sepultando a Constituição de 1937 e as instituições do
Estado Novo e, ao mesmo tempo, impedindo a consumação de um golpe
militar por parte das forças mais conservadoras, golpe este que viesse a
reverter o processo de democratização inaugurado por Vargas (PRESTES,
2006, p. 177)

A política de União Nacional estabelecida pelo Partido Comunista se estenderia


durante todo período da segunda guerra mundial e chegaria no período de abertura
democrática no Brasil. Podemos compreender a necessidade por parte dos comunistas
de se estabelecerem como força concreta e legal pela via institucional após mais de duas
décadas atuando na clandestinidade e sofrendo com a repressão do governo. Ademais,
com a abertura democrática, a conjuntura internacional se tornaria favorável para a
atuação dos comunistas, mesmo que por um breve momento, tendo em vista o prestígio
da União Soviética pelo importante papel na luta contra as potências do Eixo. Dessa
forma, é fundamental entendermos como esta linha de orientação política permeou as
ações e formulações teóricas do partido para criar uma composição com as forças
democráticas que também buscavam uma institucionalidade mais estável. Com a queda
de Getúlio da presidência em 29 de outubro de 1945, o partido opta por permanecer
nesta linha de atuação política, levando em consideração a sua legalidade que é aceita
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pelo TSE em novembro daquele ano e a Assembleia Nacional Constituinte chamada


pelo sucessor na presidência, o general Eurico Gaspar Dutra.
A inserção do PCB na Assembleia se dá então a partir deste viés de tentativa de
conciliação, com um palco e abrangência maiores do que tinha vivido até aquele
momento. Com o aumento significativo dos números de filiados ao partido e um
número considerável de votos recebidos para eleição de seus deputados constituintes, a
reorganização do Partido Comunista encontrava seu ponto máximo de êxito neste
período (MAGALHÃES, 2012). Refletindo as ideias do PCB na Assembleia,
Marighella fazia questão de externar de forma bem clara até que ponto os comunistas
estavam dispostos a colaborar e ceder no campo da composição política:

Nosso Partido pretende colaborar com todos os Partidos Democráticos,


desejando a sua união. Não ocuparemos esta tribuna para ataques pessoais.
Não temos ressentimentos. Se levantarmos alguma questão do passado, é
apenas para caracterizar a posição de elementos comprometidos na situação
que passou. Mas todos os elementos honestos, inclusive autores da Carta de
10 de novembro, que agora queiram sinceramente colocar-se ao lado do povo
que os elegeu, terão o nosso apoio, nós lhes estenderemos as mãos, sem
ressentimento de espécie alguma, para trabalharmos em benefício da Pátria
(BRASIL, 2020, s.p.).

A partir disso, veremos como o deputado constrói a crítica à Carta


Constitucional de 1937 e o que os autores e defensores desta haviam afirmado.

A CARTA ‘’PARA-FASCISTA’’

Os comunistas traçaram como um dos primeiros objetivos na Assembleia


Constituinte a revogação da Carta de 1937, ainda que a mesma não estivesse sendo
aplicada na prática. Para entendermos isto, devemos compreender o que esta Carta
Constitucional significava para seu partido e as ameaças de continuidade que pairavam
no ar. Como já mencionamos, o partido surgia legalmente após muitos anos de
clandestinidade. O anticomunismo latente no período, mesmo que com uma certa trégua
dada ao contexto da guerra, ainda era arraigado na classe política. No Brasil, a
Constituição outorgada por Vargas em 1937 representava o combate e a perseguição aos
comunistas de forma jurídica e legal, vetando-lhes todos os direitos de atuação no
âmbito institucional. Assim pontua Carlos Marighella:
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Essa Carta é tão absurda que, no seu preâmbulo, levanta o problema da


infiltração comunista, na situação em que nos encontramos no mundo,
quando o fascismo foi derrotado militarmente, quando dentro da nossa pátria
o Partido Comunista se acha legalmente constituído, quando, dentro desta
Assembleia o Partido Comunista tem hoje representação; possui deputados e
um senador (BRASIL, 2020, s.p.).

O deputado se refere ao trecho do preâmbulo que trata acerca do “estado de


apreensão criado no país pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa
e mais profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente” (BRASIL, 1937).
Assim, a bancada comunista através de Marighella apresenta requerimento para a
Assembleia votar a revogação da Carta, ou seja, declará-la oficialmente revogada.
Entretanto, a Carta Constitucional não configurava de maneira institucionalizada
naquele momento nem anteriormente. Este ato por parte dos comunistas não se resumia
tão somente a um gesto simbólico, mas também a uma ação política deliberada de tentar
liquidar o que identificavam como possíveis amarras de um passado recente que ainda
poderiam ameaçar sua legalidade. Buscando ilustrar os possíveis riscos vividos pela
Casa naquele momento, Marighella ao indicar o requerimento cita no começo de sua
argumentação os artigos 75 e 187. O primeiro referente ao poder concedido ao
Presidente da República de dissolver a Assembleia Nacional a qualquer momento e o
segundo (e último artigo da constituição em questão) que trata do plebiscito nacional
que validaria a constituição. Na visão do deputado, este último “constitui motivo para
invalidade da mesma” (BRASIL, 2020, p. 346).
Em consonância com a maioria dos outros deputados, a bancada comunista
defendia a elaboração de um Regimento Interno que regulasse o funcionamento da
Casa. Neste contexto, entendia que, “Há uma Carta inexistente, ou como tal reconhecida
por toda nação. Por isso mesmo, para resolver a situação, o Governo se viu obrigado a
convocar uma Assembleia Constituinte” (BRASIL, 2020, p. 336). Marighella seguiria
na sua crítica levantando a questão da ingerência por parte do executivo, característico
desta Constituição outorgada. Em suas palavras, “há pontos que denotam o ultra
reacionarismo desta Carta e representam a incarnação da ditadura pessoal” (BRASIL,
2020, p. 336).
Já o artigo 39 estabelecia que o Parlamento funcionaria somente pela iniciativa
do Presidente da República, sendo dessa forma “um Parlamento de carneiros, um
Parlamento que teria de obedecer à vontade única exclusiva do Chefe do Executivo”
(BRASIL, 2020, p. 336). A autonomia dos Estados também foi alvo de críticas quando
Marighella assinala a incoerência do artigo 9° que dispõe sobre as razões que os
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interventores seriam nomeados e as restrições ao Legislativo presentes também no


artigo 12, que “concede” poder a esta Casa para autorizar o Executivo a baixar decretos-
leis; o que não ocorre devido a inexistência da mesma. É possível vermos aqui, na visão
do deputado, a “contradição que não se pode compreender” e a “negação da própria
carta” (BRASIL, 2020, p. 322).
A legislação trabalhista também seria alvo de críticas por parte do deputado. É
necessário entendermos que havia um forte debate acerca destas questões por causa das
greves que aconteciam por volta daquele período. Por exemplo, a greve dos bancários
que iniciou no Rio de Janeiro e paralisou o setor pelo país inteiro. O impasse criado pelo
movimento grevista chegou a ser mediado na Assembleia Constituinte pelo presidente
da mesma Fernando de Melo Viana, buscando um parecer que atendesse as demandas
dos trabalhadores junto ao Ministério do Trabalho (SILVA, 2017). Marighella ao falar
da legislação trabalhista centraria suas falas no que entendia como as condições
precárias que viviam os operários brasileiros, ao passo que admitia que haviam ocorrido
alguns avanços na garantia de direitos aos trabalhadores:

Quem conhece a situação dos nossos trabalhadores, das nossas populações


laboriosas, sabe, perfeitamente que, se, por um lado, a legislação trabalhista
garantiu aos trabalhadores muitos direitos que esses mesmos trabalhadores
não conseguiram antes [...] Ainda há pouco, presenciamos uma onda de
greves desencadeada dentro do Brasil, porque a situação dos trabalhadores,
Srs. Constituintes, Senhor Presidente, é uma situação de extrema miséria. O
povo brasileiro está passando fome, está sendo aniquilado fisicamente
(BRASIL, 2020, p. 324).

Sobre a contemplação da Constituição acerca de salário mínimo, oito horas de


trabalho ao dia e associação sindical livre, segundo Marighella ‘’existem apenas no
papel’’. A tese central de sua crítica girava em torno da contradição da própria
Constituição que segundo ele, não se realizou na prática. Contudo, o que ocorreu na
prática foi o aumento da repressão aos comunistas. O deputado Carlos Marighella, que
havia há pouco tempo saído da cadeia após 6 anos de encarceramento, tomou também a
palavra para denunciar os abusos cometidos durante o período do Estado Novo.
Acusações a Filinto Muller que segundo o deputado, chefiava ‘’uma Policial bestial,
com ligações com a Gestapo’’ e testemunhos “para quem teve de sofrer espancamentos
na Polícia Civil e na Polícia Especial” (BRASIL, 2020, p. 323).
O debate do poder absoluto concedido ao Executivo pela Carta de 1937
encontrava-se muito em voga. Os constituintes buscavam trazer à discussão as novas
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formas de regulamentar os três poderes, indo na direção contrária do que foi proposto
pela antiga constituição que como veremos, tinha como propósito a hipertrofia do
Executivo. Para entendermos os motivos e como se deu a elaboração desta Carta, é
necessário estudarmos seus criadores e defensores.

OS IDEÓLOGOS DA CARTA DE 1937

A crise institucional que vivia a república brasileira antes dos anos 30 se


constituiu como material de análise para diversos intelectuais que se debruçavam nestes
estudos naquele período. Havia a emergência de juristas que se propunham a construir
uma visão “corporativa”2 de reorganização da sociedade. Desta forma, é possível
identificar esta geração dos anos 1920-40 como representante desta via, que enxergava
no Estado e no seu fortalecimento dentro de sua realidade nacional como um meio ideal
desta reorganização da sociedade (ABREU, 2016, p. 463-464). Um dos nomes mais
importantes desta concepção era Francisco Luís da Silva Campos, renomado jurista e
advogado. Foi o autor da Constituição de 1937, que orgulhosamente afirmou que
somente sob ela:

A revolução de 30 só se operou, efetivamente em 10 de Novembro de 1937.


É então que todo seu conteúdo se condensa no sistema do Estado e a sua
expressão política se sobrepõe aos entraves creados ainda pela velha ordem
de coisas, empenhada em deter a marcha triunfante do destino do país
(CAMPOS, 1938, p. 04).

Campos entendia que era necessário superar a noção dos três poderes (GOMES,
1987), encontrando dessa forma na figura do Presidente da República um líder
necessário e forte que “tornando-se o centro de convergência dos anseios gerais e o
intérprete das inspirações cívicas que se reuniam para a reconstrução da República”
(CAMPOS, 1937, p. 04). A ideia se centrava em um Presidente que se colocasse acima
das disputas partidárias, sem medo de afirmar que esta seria uma forma autoritária. Os
partidos políticos, que atendiam na visão de Campos apenas demandas locais,
atrapalhavam a unidade nacional e falsificavam a opinião pública (ABREU, 2016).

Esse obsoleto sistema, tão desmoralizado pelo mau uso que lhe foi dado
quanto inadequado ao quadro político e econômico do mundo, tinha que ser
substituído por uma nova organização racional que permita dar rendimento às
2
O conceito de ‘’corporativismo’’ não é o objeto de análise do presente artigo, logo não entraremos em
um debate profundo acerca de sua definição. Para maiores detalhes, ver Luciano Aronne de Abreu
(2016).
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possibilidades nacionais e constitua um desenvolvimento harmonioso dos


princípios que inspiraram a formação do país (CAMPOS, 1937, p. 10).

Semelhante visão tinha Oliveira Vianna, que desacreditava em uma democracia


representativa e compreendia também a necessidade de reorganização através de um
Estado autoritário que exercesse “de modo efetivo o controle de todas as atividades
sociais – a economia, a política, a educação” (VIANNA, 1939, p. 468). Vianna
identificava um “espírito de clã” na sociedade brasileira, em que as lideranças locais se
sobrepujavam sobre o poder nacional. Portanto, entendia que a questão dos latifúndios e
o insolidarismo social seriam as razões dos atrasos nacionais, heranças de um passado
colonial que inviabilizavam o desenvolvimento econômico (ABREU, 2016).
Referente a Carta, Oliveira Vianna entendia que “O sentido da Constituição de
37, é, pois, o da democracia social ou, melhor, da democracia corporativa, sem
embargos das concessões que nella se fazem ao plebiscito e ao suffragio universal,
instituições remanescentes da velha democracia liberal” (BRASIL, 1939, p. 216). No
artigo 61 da Constituição constava: “promover a organização corporativa da economia
nacional” (BRASIL, 1937), o que seria alvo de acusações por parte do deputado Carlos
Marighella na Assembleia Constituinte, que segundo ele:

A Constituição, no art. 61, letra a, fala em ‘promover a organização


corporativa da economia nacional’ o que, realmente, denuncia a intenção de
se implantar no Brasil o sistema das corporações, transladando para nossa
terra os regimes aplicados nos países fascistas dos defuntos Hitler e
Mussolini (BRASIL, 2020, p. 336).

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda foi outra figura importante neste


processo. O também jurista foi uma figura proeminente no cenário jurídico e político
durante o período. Seus escritos voltavam-se a um público de maior instrução, tendo
suas obras uma considerável complexidade, abordando minúcias técnicas acerca do
conhecimento jurídico. Entre elas, — Comentários à Constituição Federal de 10 de
Novembro de 1937 — embora incompleta pois lhe faltaram dois volumes a serem
publicados, trazem uma noção acerca do pensamento e atuação do autor. Pontes de
Miranda tinha uma aproximação com o governo de Vargas, e por diversas vezes serviu
como conselheiro em questões jurídicas. Esta relação deve ser levada em consideração
quando analisamos a presente obra, tendo em vista a forma com que o jurista apresentou
sua argumentação. Embora compreendesse que,
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A Constituição de 1937 não é uma Constituição liberal; menos ainda uma


Constituição democrática propriamente dita. É a Carta de uma ditadura, em
que os elementos sulamericanos de poder pessoal entraram em forte dose. Já
tivemos oportunidade de frisar que desapareceu o próprio princípio geral de
liberdade, que nos vinha da Constituição política do Império (MIRANDA,
1933a, p. 546).

Pontes de Miranda também afirmaria que a democracia não havia sido


abandonada no país apesar da concentração de poderes no Executivo, sendo o motivo
esse o artigo 1° da Constituição (ABREU; ROSENFIELD, 2019) que versava sobre o
poder político que emanava do povo.
O caráter ambíguo de suas citações pode ser associado ao fato do jurista ser
próximo do governo e seus argumentos mostram uma intenção de não se comprometer
tanto com Vargas como também com o meio jurídico no qual estava inserido. Por
conseguinte, constrói-se uma legitimidade ao Estado Novo que tem como um dos seus
maiores símbolos a Constituição de 1937. Os três juristas aqui apresentados auxiliaram
de alguma forma na elaboração, consolidação ou legitimação desta Carta e
consequentemente do Estado Novo. Tais concepções de fortalecimento de um
autoritarismo se encontrava em conformidade com o contexto dos anos 30 de
experiências totalitárias e de forte concentração do poder nas mãos do Estado. Já em
outro contexto no ano de 1945 por exemplo, Francisco Campos viria a público em
entrevista ao jornal Correio da Manhã do Rio de Janeiro se explicar sobre sua
participação na criação da Carta, chegando a afirmar que aquela Constituição tinha
somente valor histórico e não jurídico (RIO DE JANEIRO, 1945).
A crítica do deputado batia de frente com os ideais alimentados por Campos,
Vianna e Pontes de Miranda. Marighella expressava sua contrariedade acerca dessa
figura autoritária centrada no Executivo e acima da própria Constituição, buscando
dentro do contexto de reestabelecimento de uma ordem democrática através da
Constituinte de 1946, defender uma estabilidade dos três poderes. Onde Oliveira Vianna
via “o seu caráter democrático e patente” (VIANNA, 1939, p. 159), o deputado Carlos
Marighella enxergava “dispositivos que concedem poderes ditatoriais ao Presidente da
República” (BRASIL, 2020, p. 336).
Podemos então entender que a crítica estabelecida pelo deputado se constituía na
tentativa de afirmar a posição do Partido Comunista no cenário legal da política através
do combate à Carta Constitucional de 1937, ainda que esta não tenha sido aplicada de
fato, assim como relatar as perseguições que os militantes comunistas passaram durante
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muitos anos e buscar construir uma alternativa pela via Parlamentar numa política de
colaboração com as outras forças democráticas.

REFERÊNCIAS

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