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1. Considerações iniciais
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Ironicamente, a implementação da educação inclusiva, a partir dos anos 90, desenvolveu-se em
oposição às reivindicações expressas no documento “Educação que nós surdos queremos”, produzido,
em 1999, pela comunidade surda presente no pré-congresso do V Congresso Latino Americano de
Educação Bilíngüe para Surdos, realizado em Porto Alegre. Disponível no site
www.diariodosurdo.com.br/noticiantiga/noticia103htm e acessado em maio de 2007.
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O conceito de diferença aqui considerado não é sinônimo de diversidade, termo comumente utilizado
pelo discurso liberal para se referir à pluralidade de identidades como uma condição natural da existência
humana. Ao contrário, as diferenças são aqui compreendidas como construções históricas e culturais
produzidas “através de uma política de significação, isto é, por práticas de significação que são reflexivas
e constitutivas das relações políticas e econômicas prevalentes” existentes (Ebert, apud McLaren,
1997:78). Assim sendo, ser negro/a, branco/a, surdo/a, ouvinte, homo ou heterossexual não são
construções naturais ou essencializadas, mas construções históricas produzidas em meio às relações de
poder.
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Essa abordagem pressupõe a presença de duas línguas na educação de surdos/as: a Língua de Sinais,
considerada a primeira língua, pois é aquela que adquire de forma espontânea no convívio com a
comunidade surda e a segunda língua é a língua majoritária da comunidade na qual o/a surdo/as está
inserido/a, vista como uma língua instrumental cujo ensino objetiva desenvolver no/a aprendiz
habilidades de leitura e de escrita ( Freire, 1998).
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Inscritos no campo teórico mais amplo dos Estudos Culturais, os Estudos Surdos em educação aqui
considerados rompem com a concepção de surdez como deficiência e preocupando-se,
fundamentalmente, em questionar as representações dominantes e hegemônicas sobre as identidades
surdas, as línguas de sinais, a surdez, os/as surdos/as, numa tentativa de “inverter a compreensão
daquilo que pode ser chamado de “normal’ e cotidiano’”. (Skliar, 1998:15)
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Instigada pelas perguntas de Lara Ferre (apud Larrosa & Skliar, 2001:204) sobre
“O que produz em mim a presença do outro?” ou “ O que diz a mim a sua presença?”, a
representação do “outro” diferente na realidade observada, de forma geral, inscreveu-se
no discurso da tolerância, da aceitação e da naturalização das diferenças. As
alteridades surdas foram representadas predominantemente como subalternas,
caracterizadas por sua marca biológica, ou seja, pela idéia da falta, de algo que deve
ser normalizado, sendo os/as surdos/as aceitos/as e valorizados/as pelo esforço que
realizam para ser como os/as pessoas consideradas normais.
Por sua vez, o olhar dos/as surdos/as sobre as alteridades ouvintes revelou na
maioria das vezes sentimentos de desconfiança, mesmo quando afirmavam que não se
sentiam discriminados/as e que foram bem acolhidos/as.
Como nos aponta Botelho (1998:98-99), com base em Allport, embora as
atitudes de desconfiança, dissimulação, aquiescência passiva, insegurança e
desenvolvimento de posturas desafiantes e de um certo espírito de clã sejam formas de
defesa de pessoas excluídas, o tipo de educação que tem sido oferecido a esse grupo
e as formas como são representados socialmente como indivíduos incompletos e
forçados a serem como os ouvintes contribuem para o sentimento de antagonismo e de
subordinação em relação aos ouvintes.
Questionando uma vez mais as formas de convivência e as representações5
dos/as ouvintes em relação às alteridades deficientes, foi possível verificar que,
representada como incapacidade ou um exemplo a ser seguido, em ambos os casos,
os/as surdos/as são mais objetos que sujeitos desse processo.
Em sintonia com as idéias do pluralismo liberal, sustentado na crença de que
todos/as devem aprender juntos/as convivendo com as diferenças sem problematizar
as relações de poder existentes, foi possível verificar a tendência da escola inclusiva de
homogeneizar as identidades e as produções culturais e sociais dos/as educandos/as,
reafirmando a inferioridade do outro, frente a um ideal de igualdade e normalidade
dominantes.
Veiga-Neto (2001) no artigo “Incluir para saber. Saber para excluir” chama
atenção para essa tendência homogeneizadora e excludente da inclusão, que, ao
incluir os diferentes para normalizá-los, passa a descrever seus limites e
potencialidades e acaba por considerá-los, muitas vezes, como incapazes, segregando-
os ou excluindo-os novamente.
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O conceito de representação é aqui entendido como “as práticas de significação e os sistemas
simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeitos. È por
meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo
que somos.” ( Woodward, apud Silva, 2003:17).
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intérprete não veio acompanhada por outras mudanças nas dinâmicas e nas práticas
escolares e em relação ao uso das duas línguas.
Entendendo o ensino e a aprendizagem como processos dialógicos e
dependentes da interação entre todas as partes envolvidas, a mediação do intérprete
não substitui a necessária relação entre professor/as e alunos/as, como observado nas
dinâmicas de sala de aula e nos relatos dos/as entrevistados/as.
Nesse contexto, como esperar que os/as alunos/as surdos/as, privados/as de
comunicação e de linguagem, possam compartilhar contextos significativos de
aprendizagem e socialização?
O uso da expressão “Porque a palavra não adianta”, observado de forma
explícita no depoimento de uma intérprete e de um professor/a e implícito na fala de
outros/as entrevistados/as foi utilizado no título desse trabalho por sintetizar o grande
paradoxo da educação inclusiva para surdos/as: a ausência de referenciais e de uma
língua/linguagem comum que os/as permita construir, discutir e compartilhar
significados.
Numa concepção bakhtiniana, aqui assumida, a língua não é apenas um
conjunto de regras e um léxico aprendido mecanicamente. Mas, uma atividade social e
essencialmente dialógica por meio da qual construímos nossas identidades, damos
sentidos e agimos no mundo social. As interações e as experiências necessárias à
construção de conhecimentos, significados e formas de atuar na sociedade não podem,
portanto, ficar limitadas à mediação dos/as intérpretes na sala de aula inclusiva, como
vivenciado no contexto observado.
Nesse sentido, atenção especial também deve ser dada à discussão sobre o
modelo de educação bilíngüe adotado nas escolas inclusivas, pois, embora os
documentos oficiais afirmem a importância da Língua de Sinais e da presença de
intérpretes de LIBRAS nas escolas, o atual modelo não responde à questão central que
atravessa toda e qualquer discussão sobre inclusão escolar de alunos/as surdos/as:
Como os/as surdos/as dispersos em escolas de ouvintes poderão adquirir a Língua de
Sinais como primeira língua e a Língua Portuguesa como segunda língua e, por
conseguinte, terem acesso aos conhecimentos das demais disciplinas?
Em síntese, tendo em vista que nos constituímos como sujeitos nas relações
sociais e nas experiências compartilhadas e que, nas escolas regulares a maioria
dos/as alunos/as são ouvintes e, portanto, faltam interlocutores/as em Língua de Sinais
que possibilitem as interações e as experiências necessárias e enriquecedoras, com
base nos princípios ético-políticos da Declaração de Salamanca, os resultados obtidos
nesse trabalho apontam a necessidade de repensar a inclusão escolar de surdos/as
em virtude das implicações negativas do modelo ora em curso para a constituição das
identidades e o desenvolvimento das potencialidades desse grupo.
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Ao nos provocar com essa interrogação, Carlos (Skliar (1998b:182) nos ajuda a
refletir sobre o alcance e a forma como vêm ocorrendo as mudanças em educação em
nosso país, no caso, a inclusão de surdos/as na escola regular, objeto desse trabalho.
Ao denunciar a forma impositiva e desarticulada em que, tradicionalmente, elas
ocorrem, esse mesmo autor nos anuncia a possibilidade de mudanças mais efetivas
quando nos diz que a instituição de novos textos legais, políticos e pedagógicos deveria
se dar após um amplo debate com todos/as os atores sociais envolvidos/as sobre as
representações das alteridades e identidades culturais dos/as alunos/as professores/as
e da escola (Skliar, 2001)
Sem considerar a forma como significamos o outro e a nós mesmos e como a
escola contribui para a produção das diferenças e das identidades, as mudanças na
educação ficam limitadas aos seus aspectos formais e não provocam mudanças nas
práticas sociais e pedagógicas dos/as professores/as.
No caso da educação de surdos/as, esses debates iniciais deveriam discutir as
representações sobre surdo/a e surdez, as concepções de ensino-aprendizagem, as
diferentes abordagens educacionais para esse grupo, os conceitos de língua/linguagem
e de cultura, assim como o papel que tais conceitos desempenham nos processos
identitários e de construção de conhecimento.
A ausência desse debate reforça as atitudes conservadoras, os dilemas, as
contradições e as frustrações observadas na realidade estudada, que revelou-se muito
distante dos objetivos e intenções das políticas e discursos da educação inclusiva.
Cabe ressaltar, ainda, que além das implicações lingüísticas e identitárias,
apontadas anteriormente, a dispersão dos/as alunos/as surdos/as em escolas regulares
favorece a diáspora da comunidade surda, enfraquecendo o seu poder de resistência e
acentuando a sua invisibilidade.
Portanto, frente à necessidade de refletir sobre as implicações negativas da
inclusão escolar de surdos/as, tal como tem sido, em geral, implementada pelas
políticas públicas atuais, acredito ser necessário pensar a educação de surdos/as numa
perspectiva intercultural, em que a surdez é vista como uma diferença política e os/as
surdos/as como sujeitos que podem narrar a si próprios/as e questionar as formas
como são narrados/as.
Nesse sentido, a criação de classes de surdos/as em escolas regulares com um
número bastante expressivo de alunos/as surdos/as, que possibilite a presença e a
participação significativa da comunidade surda, utilize uma abordagem educacional
bilíngüe-bicultural e favoreça o desenvolvimento das potencialidades e a constituição
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Referências Bibliográficas: