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“PORQUE A PALAVRA NÃO ADIANTA”: UM ESTUDO DAS RELAÇÕES ENTRE

SURDOS/AS E OUVINTES EM UMA ESCOLA INCLUSIVA NA PERSPECTIVA


INTERCULTURAL, por Silvia Maria Fangueiro Pedreira, Instituto Nacional de Educação
de Surdos - INES, Rio de Janeiro-RJ.

1. Considerações iniciais

Pensando a educação com uma prática de direitos humanos e atuando, há mais


de duas décadas, na educação de surdos/as, em sintonia com as reivindicações dos
movimentos sociais desse grupo1, senti a necessidade de problematizar o discurso da
escola inclusiva que afirma ser esta a forma mais eficaz de promover o direito à
educação e o reconhecimento da diferença2, considerando a especificidade lingüística
dos/as surdos/as e o fato de que nas escolas regulares predominam as manifestações
culturais dos/as ouvintes.
Nesse sentido, o presente trabalho é fruto de um estudo de caso de inspiração
etnográfica (André, 2003) com o objetivo de investigar os limites e as possibilidades das
relações entre surdos/as e ouvintes numa escola da rede pública estadual do município
do Rio de Janeiro, que funciona no horário noturno e contava com a presença de
intérpretes de LIBRAS em cada uma das sete turmas, desde a quinta série do Ensino
Fundamental até a terceira série do Ensino Médio, num total de sessenta e sete
alunos/as surdos/as incluídos/as.
Para tanto, durante seis meses, por meio de observação participante nas salas
de aula e em outros espaços da escola e de entrevistas individuais e semi-estruturadas
realizadas com dez professores/as, dez alunos/as ouvintes, dez alunos/as surdos/as e
sete intérpretes de LIBRAS, busquei captar as visões desses atores sociais sobre o
ideário da educação inclusiva, suas reações frente à experiência que estavam vivendo,
identificar os entraves e as facilitações nas relações ente surdos/as e ouvintes no

1
Ironicamente, a implementação da educação inclusiva, a partir dos anos 90, desenvolveu-se em
oposição às reivindicações expressas no documento “Educação que nós surdos queremos”, produzido,
em 1999, pela comunidade surda presente no pré-congresso do V Congresso Latino Americano de
Educação Bilíngüe para Surdos, realizado em Porto Alegre. Disponível no site
www.diariodosurdo.com.br/noticiantiga/noticia103htm e acessado em maio de 2007.
2
O conceito de diferença aqui considerado não é sinônimo de diversidade, termo comumente utilizado
pelo discurso liberal para se referir à pluralidade de identidades como uma condição natural da existência
humana. Ao contrário, as diferenças são aqui compreendidas como construções históricas e culturais
produzidas “através de uma política de significação, isto é, por práticas de significação que são reflexivas
e constitutivas das relações políticas e econômicas prevalentes” existentes (Ebert, apud McLaren,
1997:78). Assim sendo, ser negro/a, branco/a, surdo/a, ouvinte, homo ou heterossexual não são
construções naturais ou essencializadas, mas construções históricas produzidas em meio às relações de
poder.
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cotidiano escolar, assim como as formas de participação e de interação dos/as


surdos/as nas salas de aula.
As entrevistas com os/as ouvintes, alunos/as, professores/as e intérpretes,
foram gravadas em fitas de áudio e transcritas posteriormente.
As entrevistas com os alunos/as surdos/as, registradas em fitas de áudio e vídeo,
foram realizadas por uma intérprete de LIBRAS. Posteriormente, a tradução desses
depoimentos foi feita por outro intérprete em áudio para, em seguida, serem transcritos.
O referencial teórico utilizado nesse estudo baseou-se nas contribuições da
educação intercultural (Candau, 2002, 2003, 2005), definida como:

“A interculturalidade orienta processos que têm por base o reconhecimento do


direito à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade
social. Tenta promover relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos
que pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando os conflitos inerentes a
esta realidade.” (Candau, 2002:99).

Também foram utilizados os conceitos de identidade como uma construção


histórica, múltipla e mutável ( Hall,2000) e de cultura, com base em Geertz (1989), que
a define como uma teia de significados, na qual os indivíduos estabelecem e
interpretam as relações sociais e com a natureza.
Em relação à educação de surdos/as, com base na concepção de surdez como
uma diferença política e cultural e os/as surdos/as como indivíduos que se constituem
como sujeitos na Língua de Sinais, foi adotada a perspectiva bilíngüe-bicultural3, a partir
de autores como Behares (1991), Skliar (1997, 1998) e Sousa (1998), dentre outros/as
e as com as contribuições dos Estudos Surdos em educação (Skliar, 1998, 2003; Perlin,
1998, 2004)4.
Feitas essas breves considerações sobre os objetivos, a metodologia, o contexto
pesquisado e o suporte teórico utilizado, apresento, a seguir, de forma sucinta, os
resultados obtidos nessa investigação.

3
Essa abordagem pressupõe a presença de duas línguas na educação de surdos/as: a Língua de Sinais,
considerada a primeira língua, pois é aquela que adquire de forma espontânea no convívio com a
comunidade surda e a segunda língua é a língua majoritária da comunidade na qual o/a surdo/as está
inserido/a, vista como uma língua instrumental cujo ensino objetiva desenvolver no/a aprendiz
habilidades de leitura e de escrita ( Freire, 1998).
4
Inscritos no campo teórico mais amplo dos Estudos Culturais, os Estudos Surdos em educação aqui
considerados rompem com a concepção de surdez como deficiência e preocupando-se,
fundamentalmente, em questionar as representações dominantes e hegemônicas sobre as identidades
surdas, as línguas de sinais, a surdez, os/as surdos/as, numa tentativa de “inverter a compreensão
daquilo que pode ser chamado de “normal’ e cotidiano’”. (Skliar, 1998:15)
3

2. Por entre os “nós” da escola inclusiva

No intuito de compreender os “nós” que tecem as relações entre surdos/as e


ouvintes em uma escola inclusiva, os resultados obtidos nesse trabalho foram
resumidos em três aspectos:
1. As visões sobre a Educação Inclusiva.
2. Os diferentes olhares sobre o outro.
3. O papel da escola em relação à socialização e à apropriação de
conhecimentos pelos/as alunos/as surdos/as.

2.1. As visões sobre a educação inclusiva

Em relação aos princípios básicos da educação inclusiva de promover a


universalização do acesso à educação e a atenção à diversidade, foi possível constatar
que a inclusão, considerada como uma política de direitos humanos, foi caracterizada
pelos/as sujeitos dessa pesquisa muito mais como um direito à igualdade do que como
um direito à diferença.
Os/as alunos/as surdos/as, quando perguntados/as sobre como se sentiam
estudando com os/as ouvintes, quase a totalidade deles/as afirmou que tal situação
exige muito sacrifício, paciência e esforço, o que se contrapõe ao objetivo fundamental
da educação inclusiva de acolher todas as diferenças em ambientes que proporcionem
uma educação de qualidade para todo/as.
O caráter impositivo e normalizador, muitas vezes, presente na escola inclusiva,
nos obriga a refletir sobre o sofrimento desses/as alunos/as numa dimensão ético-
política, pois além da dor de ser considerado/a inferior, vivem, cotidianamente, a
impossibilidade de se apropriar da produção cultural e se expressar de forma
espontânea e direta.
Também, no tocante à implementação da Educação Inclusiva, o trabalho de
campo revelou a insatisfação da maioria dos/as entrevistados pela ausência das
condições exigidas na legislação em relação à formação dos/as professores/as e o
apoio de profissionais especializados/as.
De modo geral, semelhantemente à antiga política de integração de alunos/as
com deficiência na rede regular de ensino, foi possível verificar que os/as alunos/as
surdos/as continuam tendo que se adequar às práticas e às exigências de uma escola
para ouvintes. Observa-se, portanto, a inserção de alunos/as diferentes numa escola
que continua igual para todos/as.
4

2.2 Os diferentes olhares sobre o outro

Instigada pelas perguntas de Lara Ferre (apud Larrosa & Skliar, 2001:204) sobre
“O que produz em mim a presença do outro?” ou “ O que diz a mim a sua presença?”, a
representação do “outro” diferente na realidade observada, de forma geral, inscreveu-se
no discurso da tolerância, da aceitação e da naturalização das diferenças. As
alteridades surdas foram representadas predominantemente como subalternas,
caracterizadas por sua marca biológica, ou seja, pela idéia da falta, de algo que deve
ser normalizado, sendo os/as surdos/as aceitos/as e valorizados/as pelo esforço que
realizam para ser como os/as pessoas consideradas normais.
Por sua vez, o olhar dos/as surdos/as sobre as alteridades ouvintes revelou na
maioria das vezes sentimentos de desconfiança, mesmo quando afirmavam que não se
sentiam discriminados/as e que foram bem acolhidos/as.
Como nos aponta Botelho (1998:98-99), com base em Allport, embora as
atitudes de desconfiança, dissimulação, aquiescência passiva, insegurança e
desenvolvimento de posturas desafiantes e de um certo espírito de clã sejam formas de
defesa de pessoas excluídas, o tipo de educação que tem sido oferecido a esse grupo
e as formas como são representados socialmente como indivíduos incompletos e
forçados a serem como os ouvintes contribuem para o sentimento de antagonismo e de
subordinação em relação aos ouvintes.
Questionando uma vez mais as formas de convivência e as representações5
dos/as ouvintes em relação às alteridades deficientes, foi possível verificar que,
representada como incapacidade ou um exemplo a ser seguido, em ambos os casos,
os/as surdos/as são mais objetos que sujeitos desse processo.
Em sintonia com as idéias do pluralismo liberal, sustentado na crença de que
todos/as devem aprender juntos/as convivendo com as diferenças sem problematizar
as relações de poder existentes, foi possível verificar a tendência da escola inclusiva de
homogeneizar as identidades e as produções culturais e sociais dos/as educandos/as,
reafirmando a inferioridade do outro, frente a um ideal de igualdade e normalidade
dominantes.
Veiga-Neto (2001) no artigo “Incluir para saber. Saber para excluir” chama
atenção para essa tendência homogeneizadora e excludente da inclusão, que, ao
incluir os diferentes para normalizá-los, passa a descrever seus limites e
potencialidades e acaba por considerá-los, muitas vezes, como incapazes, segregando-
os ou excluindo-os novamente.

5
O conceito de representação é aqui entendido como “as práticas de significação e os sistemas
simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeitos. È por
meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo
que somos.” ( Woodward, apud Silva, 2003:17).
5

Com base numa visão dialética dos processos de inclusão e de exclusão


devemos identificar as forças e as práticas sociais que expulsam os indivíduos da vida
social ou acabam por enclausurar suas diferenças.
Assim sendo, as políticas de inclusão devem levar em conta que a redução da
discriminação não se resolve apenas por políticas de redistribuição, mas também por
políticas de reconhecimento que “partam do pressuposto que as culturas são todas
diferenciadas internamente e, portanto, é tão necessário reconhecer as culturas umas entre as
outras, como reconhecer a diversidade dentro de cada cultura e permitir que dentro da cultura
haja resistência, haja diferença.” (Santos, 2003:13).
Nesse sentido, tal como expresso nos discursos oficiais e verificado na realidade
observada, podemos concluir que os desafios dessa política como um novo paradigma
educacional não são respondidos por pequenos ajustes na escola ou por simples
adaptações curriculares, mas por meio de políticas integradas e projetos diferenciados,
em que os/as atores/as sociais atuem como protagonistas e não apenas como
coadjuvantes.

2.3 -O papel da escola e a dinâmica da sala de aula.

Tendo em vista a importância da escola no acesso e na produção de


conhecimentos, no processo de socialização e de formação de sujeitos ativos, ao
contrário de formas ricas e estimulantes na aprendizagem e nas relações sociais, foi
possível observar no contexto estudado a pouca interação entre os dois grupos,
limitada a formas híbridas de comunicação, a enunciados repetidos e sujeita a
constantes mal entendidos.
Em relação ao acesso ao conhecimento e às oportunidades de expressar suas
produções culturais, os dados coletados ratificaram as considerações feitas por Perlin &
Quadros (1997) os/a alunos/as surdos/as ficam às margens do processo, participam e
interagem pouco, realizam um grande esforço para tentar aprender, buscando, muitas
vezes, deduzir o que está sendo dito/a pelo/a professor/a e pelo/a intérprete.
Esse ensino fragmentado e insuficiente faz com que os/as intérpretes vivenciem
a complexidade de terem que interpretar e ensinar ao mesmo tempo sem terem a
competência e a responsabilidade para tal.Nas dinâmicas de sala de aula e nos/as
depoimentos constata-se, mesmo com a presença de intérpretes, a posição
desvantajosa dos/as alunos/as surdos/as em relação aos/às alunos/as ouvintes e, por
conseguinte o risco de transformar a diferença em desigualdade.
Apesar da presença de intérpretes de Libras nas salas de aula significar um
avanço no reconhecimento da diferença cultural dos/as surdos/as, devemos considerar
que a atuação deste/a profissional não é suficiente para garantir a aquisição da Língua
de Sinais, o acesso ao conhecimento e muito menos desenvolver o ensino da Língua
Portuguesa como uma segunda língua para os/as aprendizes surdos/as como já
evidenciado em diversos estudos. Convém assinalar, ainda, que a introdução do
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intérprete não veio acompanhada por outras mudanças nas dinâmicas e nas práticas
escolares e em relação ao uso das duas línguas.
Entendendo o ensino e a aprendizagem como processos dialógicos e
dependentes da interação entre todas as partes envolvidas, a mediação do intérprete
não substitui a necessária relação entre professor/as e alunos/as, como observado nas
dinâmicas de sala de aula e nos relatos dos/as entrevistados/as.
Nesse contexto, como esperar que os/as alunos/as surdos/as, privados/as de
comunicação e de linguagem, possam compartilhar contextos significativos de
aprendizagem e socialização?
O uso da expressão “Porque a palavra não adianta”, observado de forma
explícita no depoimento de uma intérprete e de um professor/a e implícito na fala de
outros/as entrevistados/as foi utilizado no título desse trabalho por sintetizar o grande
paradoxo da educação inclusiva para surdos/as: a ausência de referenciais e de uma
língua/linguagem comum que os/as permita construir, discutir e compartilhar
significados.
Numa concepção bakhtiniana, aqui assumida, a língua não é apenas um
conjunto de regras e um léxico aprendido mecanicamente. Mas, uma atividade social e
essencialmente dialógica por meio da qual construímos nossas identidades, damos
sentidos e agimos no mundo social. As interações e as experiências necessárias à
construção de conhecimentos, significados e formas de atuar na sociedade não podem,
portanto, ficar limitadas à mediação dos/as intérpretes na sala de aula inclusiva, como
vivenciado no contexto observado.
Nesse sentido, atenção especial também deve ser dada à discussão sobre o
modelo de educação bilíngüe adotado nas escolas inclusivas, pois, embora os
documentos oficiais afirmem a importância da Língua de Sinais e da presença de
intérpretes de LIBRAS nas escolas, o atual modelo não responde à questão central que
atravessa toda e qualquer discussão sobre inclusão escolar de alunos/as surdos/as:
Como os/as surdos/as dispersos em escolas de ouvintes poderão adquirir a Língua de
Sinais como primeira língua e a Língua Portuguesa como segunda língua e, por
conseguinte, terem acesso aos conhecimentos das demais disciplinas?
Em síntese, tendo em vista que nos constituímos como sujeitos nas relações
sociais e nas experiências compartilhadas e que, nas escolas regulares a maioria
dos/as alunos/as são ouvintes e, portanto, faltam interlocutores/as em Língua de Sinais
que possibilitem as interações e as experiências necessárias e enriquecedoras, com
base nos princípios ético-políticos da Declaração de Salamanca, os resultados obtidos
nesse trabalho apontam a necessidade de repensar a inclusão escolar de surdos/as
em virtude das implicações negativas do modelo ora em curso para a constituição das
identidades e o desenvolvimento das potencialidades desse grupo.
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4. Considerações finais e alguns encaminhamentos.

“O que muda quando se diz que alguma coisa está mudando?”

Ao nos provocar com essa interrogação, Carlos (Skliar (1998b:182) nos ajuda a
refletir sobre o alcance e a forma como vêm ocorrendo as mudanças em educação em
nosso país, no caso, a inclusão de surdos/as na escola regular, objeto desse trabalho.
Ao denunciar a forma impositiva e desarticulada em que, tradicionalmente, elas
ocorrem, esse mesmo autor nos anuncia a possibilidade de mudanças mais efetivas
quando nos diz que a instituição de novos textos legais, políticos e pedagógicos deveria
se dar após um amplo debate com todos/as os atores sociais envolvidos/as sobre as
representações das alteridades e identidades culturais dos/as alunos/as professores/as
e da escola (Skliar, 2001)
Sem considerar a forma como significamos o outro e a nós mesmos e como a
escola contribui para a produção das diferenças e das identidades, as mudanças na
educação ficam limitadas aos seus aspectos formais e não provocam mudanças nas
práticas sociais e pedagógicas dos/as professores/as.
No caso da educação de surdos/as, esses debates iniciais deveriam discutir as
representações sobre surdo/a e surdez, as concepções de ensino-aprendizagem, as
diferentes abordagens educacionais para esse grupo, os conceitos de língua/linguagem
e de cultura, assim como o papel que tais conceitos desempenham nos processos
identitários e de construção de conhecimento.
A ausência desse debate reforça as atitudes conservadoras, os dilemas, as
contradições e as frustrações observadas na realidade estudada, que revelou-se muito
distante dos objetivos e intenções das políticas e discursos da educação inclusiva.
Cabe ressaltar, ainda, que além das implicações lingüísticas e identitárias,
apontadas anteriormente, a dispersão dos/as alunos/as surdos/as em escolas regulares
favorece a diáspora da comunidade surda, enfraquecendo o seu poder de resistência e
acentuando a sua invisibilidade.
Portanto, frente à necessidade de refletir sobre as implicações negativas da
inclusão escolar de surdos/as, tal como tem sido, em geral, implementada pelas
políticas públicas atuais, acredito ser necessário pensar a educação de surdos/as numa
perspectiva intercultural, em que a surdez é vista como uma diferença política e os/as
surdos/as como sujeitos que podem narrar a si próprios/as e questionar as formas
como são narrados/as.
Nesse sentido, a criação de classes de surdos/as em escolas regulares com um
número bastante expressivo de alunos/as surdos/as, que possibilite a presença e a
participação significativa da comunidade surda, utilize uma abordagem educacional
bilíngüe-bicultural e favoreça o desenvolvimento das potencialidades e a constituição
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das identidades dos/as alunos/as surdos/as em condições semelhantes às oferecidas


aos/às alunos/as ouvintes, poderia amenizar os efeitos negativos da inclusão de
surdos/as em classes de ouvintes e possibilitar a redução dos elevados índices de
exclusão e do preconceito social e cultural em relação a esse grupo.
Ao conceber a diferença como uma construção histórica e cultural, penso ser
possível ressignificar o conceito de uma Escola para Todos e pensar na criação de
Escolas para Todos, em oposição, muitas vezes, ao caráter normalizador e
descontextualizado da educação inclusiva.
Com base nessas premissas, apresento alguns encaminhamentos para
aprofundar as discussões sobre a educação de surdos/as numa perspectiva bilíngüe e
intercultural, com vistas à construção de uma sociedade solidária que articule políticas
de igualdade e políticas de identidade:
1) A necessidade de formação de professores/as surdos/as, que, assim como
os/as professores/as índios/as na educação indígena, apresentam condições mais
favoráveis, tendo em vista a maior identificação com as diferenças culturais, às lógicas
e às racionalidades próprias dos/as alunos/as.
2) A necessidade de formação de professores/as bilíngües proficientes em
Língua de Sinais e na Língua Portuguesa e de intérpretes de LIBRAS.
3) A participação efetiva de pessoas surdas na elaboração de pesquisas sobre a
educação de surdos/as e na elaboração, implementação e avaliação de políticas e
projetos educacionais, que contribuam para a afirmação social desse grupo.
4) A realização de pesquisas sobre as seguintes questões:
- A gramática, o ensino, a aquisição e a aprendizagem da Língua de Sinais.
- O papel do intérprete educacional para refletir sobre os limites e contradições
dessa estratégia na inclusão escolar de surdos/as.
- O ensino da Língua Portuguesa como segunda língua e o papel da Língua de
Sinais nesse processo.
- As questões didáticas e pedagógicas implicadas no desenvolvimento de
projetos de educação bilíngüe para surdos/as numa perspectiva intercultural.
5) Incentivar e promover:
- reflexões sobre a inversão epistemológica do problema da inclusão, proposta
por Skliar, 2003 e Skliar & Quadros, 2000 para problematizar os/as ouvintes no mundo
dos/as surdos/as.
- atividades que valorizem e possibilitem a identificação de diferentes níveis
de percepção e de compreensão dos/as ouvintes sobre as experiências visuais dos/as
surdos/as.
- a presença e a participação da comunidade surda na escola, assim como a
contratação de instrutores/as para o ensino da Língua de Sinais e outros/as
profissionais surdos/as.
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Espero que as questões apresentadas nesse trabalho, em sintonia com os


Estudos Surdos e numa perspectiva bilíngüe e intercultural, possibilitem reflexões em
outros contextos com situações semelhantes e contribuam para a construção de uma
abordagem educacional que, ao defender eticamente o direito à igualdade e à diferença
como um valor de identidade cultural e de afirmação social, desarme algumas
armadilhas presentes na educação de surdos/as há mais de cem anos.

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