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Graça Graúna

CONTRAPONÏOS DA
llÏERA'l'lIRA INDÍGENA
CONTEMPORÁNEA No BRASIL

MÍAZZA
edlçoes
www; ._ _. -_ _.r
“MW.“ :la líteratura indígena contemporânea no Brasil
"Gr ça Graúna

Revisão
Lourdes Nascimento

Capa

Túlio Oliveira sobre ilustração Veruschka Guerra

Projeto gráfico e diagramação


Anderson Luizes - Casadecaba Design e ilustração
.___.__
M. t1' ..._

MAZZA EDIÇÕES LTDA.


Rua Bragança, 101 - Pompeia
l:

33280-410 Belo Horizonte — MG


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G774 Graúna, Graça.


Contrapontos da literatura indígena contemporânea no Brasil/
Graça Graúna. ~ Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.

200 p. ;16x23cm

ISBN: 978-85-7160—591—6

l. Literatura indígena - Brasil. 2. Literatura indígena - História e crítica.


L Título.

CDD: 898.3
CDU: 821.8
A meus pais,`

a Fabiano, Ana eAgnes v meus fiihos;

aos meus netos, pelo direito de sonhar;


a Deo, Daniel Cruz, Mazza, Pabio, Veruschka e Lourdes - pelo ombro amiga

ao guarani Sepé Tiaraju, simbolo da resistência e aos demais parentes


indígenas — na esperança de que os nossos direitos sejam respeitados,

dedico este livro.


SUMÁRIO

Prefácio .................................................................................. 9

Iniciações .............................................................................. 15

1. Nos rodapés da história .....................................................25

2. Identidades e utopias ........................................................ 43

3. Diáspora indígena .............................................................. 95

4. Contação de histórias: cumplicidades .............................. 125

Conclusão
“Multiplicando o cereal plantado” .................................... 169

Posfácio
A palavra indígena sempre existiu .................................... 173

Anexos ................................................................................ 179

Referências ......................................................................... 185


PREFÁCIO
Roland Walter
UFPE/cNPq

Nas Américas, a brutalização das pessoas é ligada à brutalização do es-


paço e estas brutalizaçóes são enraizadas no passado: o genocidio de tribos
indígenas, a escravidão e o sistema de plantação e as várias formas de explo-
ração da natureza, entre outros, caracterizaram as diferentes fases e processos
de colonização e ainda continuam a ter um impacto sobre o pensamento e o
agir das pessoas não somente em termos de como as pessoas se relacionam e
tratam os diversos outros (penso, por exemplo, no racismo e no sexismo em
suas formas tanto ideológicas quanto instintuais), mas de como as imagens
destes eventos traumáticos perseguem estes pensamentos e agenciamentos.
A representação do espaço é simbolizada por uma natureza nutrida pelos
corpos Violados da história colonial, um engajamento literal com o que o
poeta caribenho Wilson Harris (1981, p. 90) chama “o fóssil Vivo de cultu-
ras enterradas”.l Alego que esta dupla brutalizaçâo dos seres humanos e da
geografia (terra, paisagem, natureza, espaço, lugar) e' interligada e constitui
de diversas maneiras o inconsciente sociocultural e ecológico da experiência
pan-americana —— o fantasma deste holocausto recalcado que volta em resposta
à Verleugnung (negação) fazendo sentir sua presença tanto no nível da enun-
ciaçâo quanto no da experiência Vivida.

1 Espaço nacional que, segundo o crítico Antonio Cornejo-Polar (2000, p. 147) é caracterizado por “hete—
rogeneidade conflituosa” como resultado da colonização imperialista. Para ele, as nações latino-americanas
são “traumaticarnenre desmembradas e cindidas”.
CONTRAPONTOS DA LITERATURA ¡NDÍGENA CONTEMPORÁNEA NO BRASiL

Se, segundo Milton Santos (2007, p. 81—82), “a cultura” como “forma


de comunicação do individuo e do grupo com o universo é uma herança,
mas também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o
seu meio, um resultado obtido por intermédio do próprio processo de viver”,
poder-se-ia argumentar que o cerne do problema identitário que diz respeito a
grupos multiétnicos pan-americanos em geral e, entre estes, as nações amerin-
¿ias especificamente e' a relação com a origem num espaço onde diversos frutos
i; :oleniaiidade continuam a ter efeito sobre as relações intersubjetivas. Ter
:na identidade significa ter uma história inscrita numa terra. Ter uma his-
:Ória imposta contra a vontade, sem poder inscrevê-la na terra enquanto seu
dono, como no caso dos afrodescendentes pan-americanos, significa ter uma
vw,

não identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada durante um pro-
cesso colonial, como no caso das primeiras nações indígenas pan-americanas,
significa ter uma não identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada
durante um processo colonial, como no caso dos colonizadores e seus des-
cendentes, significa ter uma não identidade nutrida pelo remorso recalcado.
Refletída nestas não identidades — identidades fragmentadas e/ou alienadas
por condições de violência ~ é a importância da geografia e da memória en-
quanto elementos para se colocar como sujeito. Sem lugar a consciência e a
subjetividade do ser humano são inconcebíveis. Este lugar pode ser de natu-
reza geográfica e/ou linguistica, religiosa, cultural - um lugar epistêmico. Para
povos colonizados e grupos marginalizados, o processo da descolonização e
desmarginalização significa que o lugar un/Jez'mlic/a — o lugar (e a correspon-
dente episteme cultural) da subalternização » tem que ser transformado num
lugar heimlz'c/J; um lugar-lar onde a equação mundo/imagem do self(rompida
e distorcida pelo processo colonizador) é reestruturada com base no próprio
ethos e cosmovisão. O lugar-lar e sua construção na língua, portanto, é um dos
meios pós-coloniais cruciais para lembrar (e assim juntar) os fragmentos de
uma cultura/história/identidade estilhaçada e parcialmente perdida nos traços
nômades entre mares e (não)lugares, bem como entre os muitos ditos e não
ditos de diversos discursos. Um outro meio, talvez o mais importante no caso
das nações amerindias, é a luta jurídica pela posse/reconquista/não invasão da
terra, já que a questão da terra é crucial para a definiçâo da episteme sociocul-
tural e a produção da subjetividade e identidade individual e coletiva, ou seja

lO
PREPAGO

a maneira como o individuo vê a sua posição de sujeito numa dada sociedade


(ethos) e como, a partir desta posição, ele/ela vê o mundo (cosmovisão). Em
cada cultura, a geografia (paisagem/ lugar/ espaço/ natureza/ terra) tem um
papel fundamental na constituição do imaginário cultural de um povo: ela é
tanto natural quanto cultural; uma entidade material e uma ideia/visão mítica
que participa na definição identitária.
Qual é o papel da literatura e da crítica literária neste processo desco-
lonizador? Gostaria de ligar esta pergunta com duas outras: qual é o papel da
literatura no mundo? Qual a contribuição da literatura e dos estudos literários
em ligação com a ecocritica pós-colonial para a compreensão do mundo e da
realidade? A literatura é um dos meios privilegiados de construção mitológica
coletiva. Como encruzilhada onde discursos e visões em conflito e competição
se encontram e entram num equilíbrio muitas vezes precário e contraditório,
a literatura constitui um lugar no qual diferentes valores, mitos, histórias e
traduções estão sendo negociados. É por meio da literatura enquanto espaço
mnemônico que escritores multiétnicos das Américas recriam os mitos neces-
sários para se enraizar como sujeitos autóctones. A reapropriação do espaço
via memória possibilita a colocação do sujeito na sua própria história. A re»
nomeação do seu lugar e da sua história significa reconstruir sua identidade,
tornar posse de sua cultura; significa, em última análise, resistir a uma w'olén—
cia epistémica que, nas suas diversas formas e práticas continua até o presente.
Desta forma, a literatura molda ideias, crenças e ideais históricos e éticos con-
tríbuindo para a constituição da episteme cultural coletiva. Mediante a crítica
literária e sua problematização das representações culturais se ganham insights
dos diversos tipos de identidade cultural que constituem sociedades, tribos,
nações. Gostaria de traçar quatro tipos de insights: a) insights sobre assunções
antropocêntricas (reflexão ética): a relação entre o senso de lugar e a consciên-
cia ética; b) insights sobre mimese e referência com respeito ao lugar habitado
(reflexão hermenêutica); c) insights sobre a episteme cultural/a experiência hu-
mana num dado lugar e processo histórico (reflexão ontológica/identitária);
d) insights sobre a relação entre a escrita, a vida e práticas pedagógicas (reflexão
ideológica). Neste sentido, dado o fato de que um dos problemas principais
a ser resolvido no século XXI é a coexistência de culturas radicalmente dife-
rentes e de que a literatura revela e problematiza os paradoxos e aporias da

ll
1 z: Z K " :É :A LITERATURA INDÍGENA CONTEMPO
RÁNEA NO BRASIL

i W; mediante as suas representações, argumen


to que a essência ética da teoria
_r-__›._-a : ¿e constituir, junto com o seu objeto
de estudo, a literatura, uma
:3:12 ¿para a vida.
i "‘áíosa obra de Graça Graúna se insere nesta essê
ncia ética por, pelo
menos. duas razões fundamentais. Primeiro, o enfo
que analítico é a literatura/
cultura atneríndia brasileira e segundo, implícito
neste processo descoloniza-
dor, a contribuição para a constituição de um
corpus crítico crescente sobre
esta literatura/ cultura num país onde os indígenas cons
tituem a margem inte-
rior da diferença cultural.
Como podemos explicar e analisar o paradoxo de que
no Brasil o mul-
ticulturalismo, a mestiçagem e o racismo, a inclu
são e a exclusão Vivida de
grupos étnicos existem lado ao lado? Que impacto
têm os diversos grupos
étnicos na construção da identidade brasileira? Como
se explica o fato de que,
embora uma grande porcentagem da população brasi
leira apoie as reivindi-
cações territoriais e a preservação cultural das tribos

ii
indígenas,2 a maioria dos
brasileiros nega sua herança indígena? Em geral, os
indígenas são sujeitados
a uma forma cultural de hegemonia baseada em coop
tação e ressignificação.
v—
_,I Barrando o acesso deles ao discurso oficial por causa
'Qi de sua diferença cultural,
os grupos dominantes apropriam elementos culturais
particulares deles, tradu-
zindo-os para versões nacionalistas da cultura nacional:
hoje é muito lucrativo
(turismo) salvar a aparência de uma nação multicultural.
Daí resulta que a sig-
nificância destes elementos não é definida dentro do
conjunto de valores das
tribos indígenas, mas dentro daqueles dos grupos
dominantes. Como pode-
mos definir uma nação que é paradoxalmente carac
terizada por (e imaginada
como) um crisol, uma unidade em diferença —
ou seja, por uma interação
multicultural e uma autodefinição que percebe e aceita
a diferença cultural
como uma parte integral da sua estrutura social, er/Jos
e cosmovisão — e por
uma diferença como separação em que questões de gêne
ro, raça, etnicidade e
classe se entrelaçam e chocam? O outro étnico-racial,
poder-se-ia argumen-
tar, ocupa um lugar intersticial no Brasil. O deslize
entre inclusão e exclusão
define o entrelugar dos afro-brasileiros e indígenas como
nacionais outrizados

2 Ver: VEJA, v. 33, n. 15, p. 120-22, 12 abr. 2000.

12
PREFÁCIO

— um lugar onde aparecem e desaparecem. Neste sentido, a literatura indígena


e sua crítica literária säo fundamentais em: a) afirmar e problematizar a cultu-
ra e os direitos indígenas e assim contribuir para a ampliação do processo da
construção nacional multicultural; e b) retificar as distorções do discurso he-
gemônico cujos estereótipos definem os indígenas por rneio de uma categoria
de exotismo, primitivismo e/ou desumanidade. O trabalho de Graça Graúna
como escritora e crítica literária, portanto, abre uma zona de contato em que a
oralidade e a escrita indígena brasileira constituem um hífen enquanto fissura
e fusão — uma dzfimnce — que suplementa e subverte o discurso monocultural
do cânone crítico-literário. Desta forma, contribui para a construção de urna
encruzilhada crítica e literária brasileira caracterizada por uma verdadeira plu-
ralidade cultural, identitaria e étnico-racial.

REFERÊNCIAS
CORNEJO-POLAR, Antonio. O rondar wa: literatura e cultura latino-americanas.
I Org. Mario J. Valdés. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
HARRIS, Wilson. Explorariom: a selection of talks and articles 1966-1981.
Mundelstrap: Dangeroo Press, 1981.
SANTOS, Miltonn O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2007.
VEJA, v. 35, n. 15, p. 120—22, 12 abr. 2000.
INICIAÇÕES
O povo, a escola, a mídia brasileira
estão de costas para os povos indígenas ate' hoje.
(Frei Beto)

A literatura indígena contemporânea e' um lugar utópico (de sobrevi-


vência), uma variante do épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência
de vozes silenciadas e exiladas (escritas) ao longo dos mais de 500 anos de
colonização. Enraizada nas origens, a literatura indígena contemporânea vem
se preservando na auto-história de seus autores e autoras e na recepção de um
público-leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras
possíveis no universo de poemas e prosas autóctones.
Nesse processo de refiexâo, a voz do texto mostra que os direitos dos
povos indígenas de expressar seu amor à terra, de viver seus costumes, sua
organização social, suas línguas e de manifestar suas crenças nunca foram con-
siderados de fato. Mas, apesar da intromissão dos valores dominantes, o jeito
de ser e de viver dos povos indígenas vence o tempo: a tradição literária (oral,
escrita, individual, coletiva, híbrida, plural) é uma prova dessa resistência.
Nesta obra, essa tradição e' abordada a partir de um conjunto de textos literá-
rios contemporâneos de autoria indígena (individual) de língua portuguesa,
em que se manifesta a literatura-assinatura de milhões de povos excluídos na
história há mais de 500 anos.
A luz do comparativisrno, esta contribuição às investigações no campo
das chamadas literaturas periféricas e dos estudos culturais aborda os conceitos
e as especificidades da literatura indígena e propõe uma leitura das diferenças
com relação às vozes contemporâneas da literatura indígena no Brasil. Nessa

15
`.`L S DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÁNEA
NO BRASIL

___. ---__
Q-;~¬
:La-. aa discute-se o lugar da literatura nas socie
_?.vvn

dades indígenas e a sua


“¿Tac com a literatura brasileira. O corpus
pesquisado remete à transversali-
dade temática que se depreende da poesia
e da narrativa indígena que foram
publicadas no período de 2000 a 2002, especifica
mente, os poemas de Eliane
Potiguara IÍveiculados na internet) e as narrativa
s que os próprios autores Da-
niel Mundurulru, Yaguarê Yamâ, Renê Kith
âulu e Olívio Jekupé classificam
de c“contação de histórias”, embora suas narr
ativas sejam catalogadas como
literatura infanto-juvenil.
Nessa perspectiva, o texto literário convoca a uma
leitura interdisciplinar
e, ao mesmo tempo, permite obse
rvar a relação entre identidade, auto
-histó-
ria, deslocamento e alteridade entre
outras questões que se depreendem da
poesia e da narrativa. Essa relação
suscita uma leitura entre real e imag
inário,
oralidade e escrita, ficçâo e história, tempo e espa
ço, individual e coletivo e de
outros encadeamentos imprescindíveis à apre
ensão da autonomia do discurso
e da cumplicidade multiétnica (dialogo)
que emanam dos textos literários
(poemas, contos, crônicas) e da ecocrítica
nos depoimentos, nas entrevistas,
nos artigos e outros textos de autoria indígena.
Procuramos reunir ao aporte teórico docu
mentos, manifestos, e-mzzz'ls e
ahi

o texto literário que, gerando a sua própria teor


ia, permite discutir os preceitos
“quinhentistas” que desalojaram o indígena de
sua cultura. Corn esse recurso,
buscamos identificar as especificidades e obse
rvar que aspectos da transver-
salidade temática parecem mais intensificadore
s na literatura indígena. Essa
proposta diante do texto literário fundamenta-s
e em modelos de análises re-
lacionadas às literaturas e às teorias que trafegam
na contramão denominadas
também de literaturas híbridas, periféricas ou
observadas como um “terceiro
espaço” (BERND, 1998, p. 259), entre outros
pontos de reflexão à pesquisa
literária e aos estudos culturais.
O livro encontra-se dividido em quatro capí
tulos: o primeiro, “Nos
rodape's da história”, compõe-se de urn breve pano
rama da resistência indí-
gena, pondo em relevo os acontecimentos
que a mídia, em geral, não conta.
Daí uma incursão na história do movime
nto indígena no Brasil e em outros
países, com base também na reflexão da Cam
panha da Fraternidade junto à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CN
BB), na Semana dos Povos
Indígenas em 2002.

16
lNlCIACÓES

O segundo capítulo, “Identidades e utopias”, implica uma leitura das


diferenças com indagações que aprofundam o conceito de literatura e suas
especificidades, a partir do próprio texto literário indígena. Dentro dessa
perspectiva, buscamos as contribuições de pensadores indígenas que alguns
estudiosos chamam de ecocrítica.
Configuram aspectos-chaves à análise um conjunto de temas trans-
versais e as contribuições de estudiosos simpatizantes da cultura indíge
na
que compartilham do quadro teórico-crítico das Américas. Esse capítu
lo
traz uma reflexão acerca das Vozes ancestrais e a sua exclusão na literatu
ra
brasileira. Trata-se de uma leitura comparada de textos literários de autores
não indígenas, com o intuito de mostrar um flagrante do marginalizado
na literatura brasileira.3 A ideia inicial foi apresentar essa reflexão na parte
destinada aos anexos; porém, devido ao tema e outras questões pertinentes
ao literário, optamos por sua inclusão no desenvolvimento deste trabalh
o.
Com essa perspectiva, abordamos o tema “Brasil: outros 500”, sugerido pelo
foma! Ponmtz'm, aos seus leitores, em 1999. Daí nossa incursã
o nas vozes
exiladas no contexto da história e da literatura brasileira. A fundamentaçã
o
teórica remete às contribuições de Alfredo Bosi (1985 e 1992), Anton
io
Candido (1981), Aracy Lopes da Silva (1989) e Ariano Suassuna (1984)
,
entre outros. O objetivo é discutir a temática indígena na história da lite-
ratura brasileira e a formação dessa literatura, focalizando o problema
da
colonização e a imagem preconceituosa e equivocada a respeito de índios
e de mestiços (quer sejam autores ou personagens) no cenário da literatu
ra
brasileira.
O terceiro capítulo, “Diáspora indígena”, propõe urna análise compa-
rada da enunciação na poesia indígena de autoria feminina. Nesse sentido
,o
capítulo apresenta algumas reflexões sobre diáspora e a questão dos mais
de
500 anos de colonização, entre outros aspectos que suscitam a poesia mapu-
che de Rayen Kvyeh analisada por J. A. Moens (1999) e a poesia de Eliane
iii
Potiguara, que pesquisei inicialmente na internet entre 1999 e
2001. Em

3 Conferir o meu ensaio “Um flagrante do marginalizado na literatura


brasileira” (Porantim, Brasília, n.
216, p. 5,1111. 1999).
IQ...

CDNÏRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA COF‘QÏEVÏÉÜNEA NO BRASH.

2002, Potiguara reuniu seu exercício poético em Metade cara, metaa'e


maris-
cara. Nessa instância, tecemos algumas considerações acerca da Í Conferência
Internacional de Escritores Indígenas e Afi'o-deseendentes 2003, organizada
por
uz!

Eliane Potiguara.
O quarto capítulo, “Contação de histórias: cumplicidades”, apresenta
a cumplicidade na leitura do mundo e da palavra dos Filhos da Terra.
Com
base nas contribuições de Georges Sioui (1989), Stuart Hall
(1999) e ou-
tros, a análise enfoca a noção de auto-história, lugar e identidade narrati
va
em Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória, de Daniel
Munduruku (2001). Em Paratz'g: o remo sagrado, de Yaguarê Yamã (2001)
)

a abordagem trata da relação entre um narrador ancestral e outras vozes


N

da
narrativa observando, a partir do próprio texto literário, a noção de palavra
e a questão da alteridade na visão de Bartomeu Meliá (2000). Com
O saci
verdadeiro, de Olívio Jecupé (2000), a análise enfoca a questão da diferença
segundo Betty Mindlin (2000), o problema da educação indígena, a relação
identidade/alteridade fundamentados em Zilá Bernd (1998) e Leopoldo
Zea
(1992), entre outros estudiosos da cultura indígena. Em [ra/eita: o menino
criador, de Renê Kithãulu (2002), o estudo discute a relação entre cronista
e
narrador filndamentando-se em Cornejo-Polar (2000) e a noção de círculo
sa-
grado, conforme observamos em Sioui (1989) e outros estudiosos indígenas.
Os anexos reúnem textos eletrônicos de caráter informativo que pres-
supõem também exemplos práticos da relação “autor-texto-leitor”, quanto à
divulgação da literatura indígena no espaço da internet. Os anexos trazem
também um ementário que diz respeito ao trabalho com a literatura no meio
acadêmico indígena. Em síntese, o presente estudo (em aberto) tem por obje-
tivos: a) abordar o conceito de literatura indígena e as especificidades, a partir
de um conjunto de livros de autoria indígena contemporânea que configurou
o corpus da pesquisa; b) verificar a problematização dos temas transversais
que emanam do conjunto de textos literários de autoria indígena; c) abordar
o problema da diáspora na poesia de Eliane Potiguara; d) observar a relação
entre ancestralidade e vozes narrativas em Daniel Munduruku, Yaguarê Yamã,
Renê Kithãulu e Olívio Jecupé; e) contribuir para um remapeamento críti-
co-construtivo dos povos indígenas, com base em sua própria manifestação
artística.

18
INICIACÓES

LITERATURA INDÍGENA: CONCEITOS E OUTRAS QUESTÕES EM


ABERTO
A literatura indígena continua se perguntando: em quanto tempo pas-
sam mais de 500 anos?
Identidades, utopia, cumplicidade, esperança, resistência, desloca-
mento, transculturação, mito, história, diáspora e outras palavras andantes4
configuram alguns termos (possíveis) para designar, a priori, a existência da
literatura indígena contemporânea no Brasil, até onde pudermos apurar os
(des)entendimentos do(s) termo(s), como diria Acízelo de Souza ao questio-
nar que disciplina estuda as manifestações literárias.
Gerando a sua própria teoria, a literatura escrita dos povos indígenas
no Brasil pede que se leiam as várias faces de sua transversalidade, a começar
pela estreita relação que mantém com a literatura de tradição oral, com a
história de outras nações excluídas (as nações africanas, por exemplo), com
a mescla cultural e outros aspectos fronteiriços que se manifestam na litera-
tura estrangeira e, acentuadamente, no cenário da literatura nacional. Como
distinguir as especificidades da literatura indígena em meio ao processo de
transculturaçäo? Como reconhecer a existência dessa literatura, em meio a
tantos “apagamentos”? Quais os pontos de confluência entre os diferentes sa-
beres sagrados dos povos indígenas no Brasil ou em Québec, no Paraguai ou
no México, na Guatemala ou no Chile, no Peru ou na Bolívia, levando em
conta o processo de laz'fem'zagáo?
Esse questionamento é um convite para repensar “a utopia em seu sen-
tido antropológico como toda possibilidade de sonhar um mundo melhor,
todo projeto coletivo, toda idéia que dê sentido à vida e às suas expressões
cotidianas”, como diz Luciana Tamagno (1999, p. 12). Esse convite deve es-
tender-se também à teoria da literatura, levando em conta que a literatura
indígena ainda e' pouco estudada em seu aspecto contemporâneo e, particu-
larmente, em seus aspectos fronteiriços.
Pensemos, entao, a escassez de estudos em torno do assunto como de-
corrência do preconceito. Daí a falta de reconhecimento da existência dessa

" Uma expressão de Eduardo Galeano (1994).


CONÏRAPOÏJTOS DA L‘TERATURA INDÍGENA COÏ‘QÏEÏJPSRÁ
HEA NO BRASXL

literatura (seja ela contemporánea ou não). Por isso,


considero oportuno res-
saltar a contribuição de Rene' Capriles (1987),
no artigo A força da poesia
pré-colombiana”. Suas observações da história da litera
tura universal mostram
que a literatura indígena c“foi sistematicamente negada
até bem avançado o
século XX” (CAPRILES, 1987, p. 5). Embora class
ifique de pré-colombianos
os povos indígenas e considere que a discussão em torno
da existência dessa
literatura esteja amplamente superada, sua análise most
ra a que se deve a falta
de reconhecimento à literatura ameríndia:

O principio no qual sempre se basearam os crític


os dos valores desta
narrativa sempre foi a etnocentrista e discutível afirm
ação de que toF
dos os povos do nosso continente desconheciam a lingua
gem escrita
fonética tal como ela é conhecida no mundo ocidental
europeu des-
de a sua invenção pelos fenícios e o seu aperfeiçoa
mento realizado
pelos gregos (CAPRILES, 1987, p. 5).

Convém esclarecer que essa noção de pré-colombiano anda


superada no
contexto da classificação reformulada pelos povos indíg
enas. É coisa do pas-
sado, afirma a jornalista Flávia Mattar (2002) na matéria
que trata do Fórum
Permanente para Povos Indígenas no Sistema da ONU
, realizado em maio
de 2002. Segundo Mattar, ccGraças à luta para a elabo
ração e aprovação da
Declaração Universal dos Direitos Indígenas, todos os
povos originários de
cada nação com língua, cultura, tradição e espirituali
dade diferenciadas da
sociedade em que vivem são considerados indígenas”.5
Século XXI: a literatura indígena no Brasil continua
sendo negada, da
mesma forma como a situação dos seus escritores
e escritoras continua sendo
desrespeitada. A situação não e' diferente com relação
aos escritores negros e
afrodescendentes. Essa questão ainda não se livrou do ¡{O
prisma etnocentrista.
Como se pode ver, a discussão não parece superada.
A situação do(a) escritor(a) negro(a) e indígena, por
exemplo, não está
desapartada da sua escrita. A sua história de vida (auto-histó
ria) configura-se

5 Cf. matéria publicada pelo IBASE e divulgada no site


GRUMIN. Disponível em: <Www.grumin.hpg.
com.br>. Acesso em: 17 jun. 2002.

20
q

INICIAÇÕES

como um dos elementos intensificadores na sua crítica-escritura, levando em


conta a história de seu povo. Sendo assim, as especificidades da literatura
indígena, tanto quanto as particularidades da literatura africana, devem ser
respeitadas em suas diferenças. No entanto, em alguns estudiosos o trata-
mento dado à questão parece contraditório quando aplicado, por exemplo, à
literatura negra. Nesse sentido, a visão de Jean-Paul Sartre (1989) em torno
do Que é óz literatura? pode ser um exemplo. Ele comenta que uma obra de arte
representa um “ato de confiança na liberdade dos homens” e afirma — con-
traditoriamente — que näo existe literatura negra, justificando que uma obra
“pode se definir corno uma apresentação imaginária do mundo, na medida
em que exige a liberdade humana [pois] por mais sombrias que sejam as cores
com que se pinta o mundo, pinta—se para que homens livres experimentem
[...] sua liberdade” (SARTRE, 1989, p. 51). Convém esclarecer que essa con-
tradição em Sartre não implica um pensamento racista, mas não seria o caso
de repensar as diferenças?
Em outubro de 1988, no México, quando intelectuais e historiadores
latino-americanos se reuniram para discutir questões como identidade, in-
terculturalísmo, mestiçagem, discurso indígena e marginalidade no simpósio
sobre os 500 anos de história na América Latina, o equatoriano Carlos Pala-
dines (1991, p. 120) apresentou um estudo intitulado “Discurso indígena y
discurso de ruptura”, no qual observa que “lo indigena deja de ser tema de
antropólogos, etnólogos, de algunos cientistas sociales o de pintores, nove—
listas y escultores (indigenismo’) para passar a ser assumido por los mismos
indígenas ((indianismoÚ”. O conceito de indianismo e indigenismo em Pala-
dines difere do significado desses mesmos termos empregado no Brasil. Em
outras palavras, indianismo refere-se à literatura de temática indígena escrita
por autores(as) não indígenas e ao indianisrno literário escrito por autores(as)
de descendência indígena chamados(as) também de mestiços(as). O termo
refere-se ainda à literatura inspirada em temas da Vida dos índios na América.
De acordo com Antonio Cornejo-Polar (2000, p. 194), “a produção
indigenista se instala no cruzamento de duas culturas e de duas sociedades”,
portanto distingue-se da produção literária que implica uma parte do universo
da propriedade intelectual dos povos indígenas. Jose' Carlos Mariátegui traz
para o estudo da literatura, em 1928, a problematização em torno desses

21
CONTRAPONTOS DA UTERATU RA lNDÍG ENA COTCEÍ.':ÍRÂNEA NO BRAS‘L

aspectos, mas ressalva que “uma literatura indígena, se tiver de vir, virá a
seu tempo. Quando os próprios índios estiverem prontos para produzi-la”
(MARIÁTEGUI apud RAMA, 2001, p. 300). Na distinção entre literatura
indígena e indigenista feita por Mariátegui, a primeira refere-se “à produção
intelectual e artística realizada pelos índios, conforme seus próprios meios e
códigos, [a segunda implica a] vasta criatividade que, com base em outras
posições sociais e culturais [no lado Cocidentali] busca informar sobre o
universo e o homem indígenas” (CORNEJO-POLAR, 2000, p. 194).
Mais uma questão se coloca, com o objetivo de conclamar a sociedade
para repensar as origens da literatura no Brasil. Por que enfatizar a literatura
indígena? A pergunta vern de Eliane Potiguara, no site do Ibase, ao estender,
para este trabalho, a sua ideia da I Conferência Internacional de Escritores In-
dígenas eAfio-descendentes. Na sua percepção, as articulações em torno desse
Encontro configuram mais uma porta que se abre na História indígena ou
mais um caminho para combater o preconceito literário e o descaso com que
a literatura indígena é tratada no Brasil.
A quem interessar possa entrar nessa luta, os manifestos literários de
Potiguara se transformam em convite, para que nos tornemos “multiplicado-
Au

res de idéias que marcam a sua passagem no planeta TERRA e que buscam
contribuir para o avanço da cultura da paz, da ética, do amor, numa grande
corrente transformadora de idéias”.6 Tecendo seu próprio relato, respeitando
as diferenças, salvaguardando a Mãe-Terra, os escritores indígenas avançam
a cada página — pelo prazer do texto que implica também uma literatura de
combate, como sugere a poesia de Eliane Potiguara, no blog Literatura indíge-
na: um pensamento brasileiro. Nesse sentido ela expõe sua indignação:

o paternalismo vê nas histórias e cultura indígenas, um objeto de


estudo antropológico e nunca literário, político ou ate' mesmo, es-
piritual, caso o pensamento parta de um líder espiritual. E todos
nós sabemos que paternalismo é uma forma sutil de racismo e po-
der. Observem quando vocês usam sua paternidade ou maternidade

6 Cf. depoimento pessoal de Eliane Potigura. Literatura indígena: um pensamento brasileiro. Disponível
em: <elianepotiguara@terra.com.br>. Acesso em: 12 jun. 2002.

22
raul-i*
INiclAcÕEs

para aplicar o pater/maternalismo. Seus filhos tornam-se mimados


e errantes... Seu poder oprime o educando e em breve ele vai se
revelar. E assim que a ciência tem tratado a essência e a filosofia
indígenas (POTIGUARA, 2002);"

A questao da especificidade da literatura indígena no Brasil implica


um conjunto de vozes entre as quais o(a) autor(a) procura testemunhar a sua
vivência e transmitir “de memória” as histórias contadas pelos mais velhos,
embora muitos Vezes se veja diferente aos olhos do outro. Nesse sentido, a
escritora indígena Darlene Taukane (1999, p. 17) fala da experiência que foi
o seu deslocamento da aldeia para completar os estudos na cidade, levando-a
mais tarde a transformar em livro a história do seu próprio povo, os Kurâ
-Bakairi (MT): “quando senti que tinha firmeza em reproduzir e transformar
de memória aquilo que ouvia [dos mais velhos], pude então sair e conversar
com outras pessoas”. Essa percepção da memória, da auto-história e da alteri»
dade configura um dos aspectos intensificadores do pensamento indígena na
atualidade. Observamos, na auto~história de Taukane, que a noção de deslo—
camento não constitui um ato voluntário. Nesse sentido, ela comenta:

Foram vários os momentos em que me vi diante dos outros e senti


necessidade de auto-afirmação. Senti necessidade de ser ouvida, de
que acreditassem e conhecessem a riqueza tão vasta de uma cultura
indígena. Talvez tenha sido a minha meta, de que os povos indíge-
nas falem por eles mesmos (TAUKANE, 1999, p. 18).

Essas observações permitem identificar algumas caracteristicas da lite-


ratura indígena que, a priori, sugerem problematizaçóes associadas aos seis
temas transversais que foram escolhidos e elaborados pelos professores indí-
genas e seus consultores para o Referencial Curricular Nacional para as Escola:
Indigena: (RCNEI) e reiterados no Caderno de apresentaçao (2002), um docu-
mento complementar do RCNEI, de 1998. São eles: 1) Terra e conservação
da biodiversidade; 2) Autossustentação; 3) Direitos, lutas e movimentos; 4)
Ética; 5) Pluralidade cultural; 6) Saúde e educação. As implicações em torno
ÍÇ"`Í-`¿:Í.`ÍÍ)S DA LITERATURA
INDÍGENA CÏÏE‘F CFÍ‘Í‘MEA NO
BRASIL

dessa temática permitem compre


ender o aspecto da auto-história
çäo corn a e a sua rela-
oralidade e a escrita, entre outras
questões identitárias que emana
da literatura contemporânea de autoria indíge m
na.
Parece evidente que a discussão
em torno da literatura indígena
Brasil está apenas começando, em no
bora duvidem também de sua exi
alegando que essa expressão literár stência,
a
ia só exis te se a cul tura de seus autores for
.
bas
eada unicamente [e obrigatoriam
- -
ente] na exi. steA nci.a do livr
. c
o [ brancoJ] tal
como o conhecemos na atualid
ade” (CAPRILES, 1987, p. 5).

24
1.

Nos rodapés da história


Não aceito esse negócio de milênio, nó; aqui, comemorando o ano
2000 depois de Cristo. Os índios comemoram o que? Um mil/vao? As
pedras comemoram o quê? O ano I trilhão? As aguas, que ano estao
comemorando? Ora, ora, ora, diria o Teotônio Vilela.
(HENFIL, 2002, p. 36)

1.1 UM PANORAMA DA RESISTÊNCIA INDÍGENA


A Verdade dos mitos (história) vem de muito longe (no tempo
), muito
antes de Cabral chegar aqui “com um punhado de aventureiros e
marginais,
[quando] pegou os habitantes dessa terra de surpresa. A primeira
resistência
foi a desconfiança e a gozação diante dos estranhos”.8 No palco da
história,
os “novos tempos” marcam as fronteiras provocando no individuo
uma busca
incessante por seu lugar no mundo. O chamado “progresso” agride
, fragmen-
ta, desloca traçando caminhos contrários aos sonhos das sociedades
indígenas.
Seria impossível isolarmos da literatura indígena a história da socied
ade
na qual está inserida. Seus leitores se multiplicam: estudantes, profes
sores(as),
advogados (as), escritores(as), lideranças, pajés (homens e mulhe
res) que lutam
por uma educação diferenciada, pela demarcação e posse de seus
territórios
e pelo reconhecimento de suas manifestações artísticas. Nessa
perspectiva,

3 CE Porantim, abr. 2000, p. 2.


CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA SX'É'ÏÏ‘ " A NO BRASIL

seria igualmente impossível não mencionar a história dos povos Nambikwara,


Guarani, Saterê Mawé, Munduruku e Potiguara9 a que pertencem os escritores
relacionados ao corpus pesquisado.
Comecemos pela década de 1970. Este período marca o surgimento
das organizações e movimentos em defesa dos direitos e interesses dos po-
vos indígenas. A presença da mulher indígena manifesta-se na política e na
literatura, no mesmo período em que surge a União das Nações Indígenas
(UNI): a primeira articulação do movimento pensado por um grupo de jo—
vens estudantes indígenas, liderado por Marcos Terena. Embora não tenha
alcançado abrangência nacional, a UNI inspirou o surgimento da UNI-Acre e
Sul do Amazonas e de outras organizações indígenas que, na década de 1990,
elegeram, como seu porta-voz, o criador do Movimento Indígena no Brasil:
Marcos Terena, atual representante dos direitos dos povos indígenas na Fun—
,s

dação Nacional do Índio — FUNAI.


Reportando-nos a 1979-1985, último período do regime militar no
Brasil, o palco da história traz à cena a expansão estrangeira em terras indíge-
nas. Cresce o domínio de mineradores, madeireiros, construções de rodovias
e hidroelétricas e de assassinatos em terras indígenas. Em meio ao estado de
opressão o movimento indígena realizou o seu primeiro encontro em 1974,
quando reuniu 16 lideranças indígenas, representantes de 9 tribos que “parti-
ciparam de quase todos os 12 Encontros realizados até 1979”, como observa
Zilda Marcia Gricoli Iokoi (1999, p. 41):

Na década de 1980, a relação entre o governo e os povos indíge-


nas torna-se cada vez mais tensa. O líder Kaingang Ângelo Kretã,
da aldeia Mangueirinha (PR), foi morto numa emboscada, em 29
de janeiro de 1980, por defender a terra dos Guarani. Em 1982,
a mobilização dos Pataxó marcou a retomada das terras indígenas
ocupadas por fazendeiros, na Bahia. Em 1983, a abertura de terras
indígenas à mineração no regime de Figueiredo resulta na morte de

9 No que diz respeito ao aspecto linguístico, procuramos manter a convenção sugerida pela Associação
Brasileira de Antropologia (ABA), em 1953, isto é, não pluralizar os nomes dos povos e as línguas indí-
genas. No entanto, sem desmerecer as normas da ABA, mantém—se a grafia dos nomes como aparecem
no conjunto de textos de autoria indígena.

26
'.:- RODAPÉS DA HISTORIA

mais uma liderança, dessa vez em Mato Grosso: terra do Marçal de


Souza, um guarani que foi assassinado quando lutava pela demarca-
ção de dois mil hectares de terra no Piraquá.

No histórico que faz do Movimento Indígena, o CIMI (2002) mostra


um painel da política emacz'da que foi o período de 198 5-1990, no governo de
Sarney. A semelhança dos seus antecessores, Sarney reforça as “concepções mi-
litares de Segurança Nacional, da fase da ditadura e prioridade aos interesses
econômicos de seus aliados regionais, constituídos por latifundiários, mine-
radores, madeireiros”.10 Em contraponto, foram intensos os debates voltados
à elaboração da Constituição de 1988. Inúmeras as campanhas contra uma
série de invasões no território Yanomami que foi transformado em palco de
operações militaristas e constantes as denúncias contra a “escalada de saque
promovida pelas madeireiras [e] a venda da madeira [...] promovida pela pró-
pria FUN ” (ROCHA, 2000, p. 217—226).
A repercussão em torno da política etnocida acelerou a inclusão dos
Direitos Indígenas na Constituição brasileira de 1988 e, consequentemente, o
avanço do Movimento Indígena. Nesse sentido, o artigo 232 da Constituição
assegura que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o
Ministério Público em todos os atos do processo”. Corn o avanço do movi-
mento surgem as representações. Existem cerca de trezentas associações ou
organizações indígenas, das quais, aproximadamente, 25% são registradas em
cartório. A existência dessas representações (com uma base tão diversa) é um
convite à reflexão do descaso da FUNAI com os povos indígenas que, até
hoje, continuam desamparados nas dificuldades, sobretudo, diante do pre-
conceito que sofrem no cotidiano. Uma prova disso não estaria relacionada às
eleições de 2002, para deputado, quando os candidatos indígenas não conse-
guiram se eleger?“

Í Cf. CIMI. Um ¿reves histórico sobre o Movimento Indígena. Disponível em: <http://www.cimi.org
.br/>.
Acesso em: 7 maio 2002.
¡ Conforme dados do CIMI, o número de candidatos indígenas cresceu nas eleições de 2000.
Em
média, participaram 279 candidatos indígenas, de 71 povos diferentes. Nas eleições
de 1996, aproxima-
¿amante “80 candidatos se inscreveram para os cargos eletivos. O CIMI elaborou subsídios didáticos
CONTRHPCÏQ . OS DA LITERATURA INDÍGENA
CCÏÏEK': Í ¿WEA NO BRASJL

Comentando a evolução do Movimento Indí


gena, Lux Vidal (2000,
p. 201) observa que os avanços “devem-se
às pressões cada vez mais orga-
nizadas dos próprios índios e ao trabalho
de apoio das ONGs e diferentes
entidades ligadas à causa indígena.” Ego
n Heck e Benedito Prezia (1998,
p. 5) também consideram que o mov
imento tem revelado há três déca-
das “importantes lições e registrado avan
ços significativos, especialmente
na demarcação e garantia das terras, conquis
ta dos direitos assegurados pela
Constituição de 1988 e nos processos de
luta, articulação e organização”.
Para o Instituto Socioambiental (ISA), a hist
ória das organizações indígenas
no Brasil mostra “uma tendência volátil
e dispersa”, levando em conta que
a diversidade (demográfica, linguística, espa
cial) influi na representação po-
lítica entre os índios. Conforme o ISA
, essa tendência mostra uma situação
peculiar:

se comparada, por exemplo, à situação na


Bolívia (onde 57% da po-
pulação nacional é indígena), no Peru (40%
) ou no Equador (30%).
Aqui, a política propriamente indígena,
autônoma e permanente, é
uma realidade fundamentalmente local
(de cada aldeia, comunida-
¡i de ou família), faccional (no caso,
por exemplo, de aldeias onde
a organização social está baseada em meta
des rituais à cada qual
corresponde um chefe) e descentralizada
(sem o reconhecimento de
um centro de poder).12

A encenação de mudanças no período de Col


lor (de 1990 a 1992) foi
uma tentativa de “recuperar o prestígio do
País no exterior, abalado pelas
denúncias de devastação de florestas e do
péssimo tratamento dispensado
aos povos indígenas” (VIDAL, 2000, p. 198)
. Nesse cenário, um grupo de
deputados federais do chamado Bloco Ama
zônico instalou uma Comissão
Parl amentar de Inquérito (CPI) para discutir
a Internacionalização da Ama-
zônia com o objetivo de fazer oposição ao Mov
imento Indígena.

( 72m político na aldeia e Têm aldeia mz palítz'm),


estimulando a reflexão do voto consciente” (CE
tim, out. 2000, p. 14). Poran-
12 Cf. ISA. Organizações indígenas. Disponível
em: <http://WWw.socioambiental.org/website
tugues/org/sobreorg.htm>. Acesso em: 26 maio /pib/por-
2002.

28
'. : š acc-APE's DA HiSTÓRIA

No início de 1992, em Brasilia, o Movimento realizou o segundo gran-


de encontro para discutir a demarcação das terras. A mobilização reuniu 350
lideranças de 101 povos e 55 organizações indígenas em todo o país. Nesse
mesmo ano, surgiu o Conselho de Articulação dos Povos e Organizações In-
dígenas do Brasil (CAPOIB).
Alvo de preconceito, a mobilização indígena em fóruns nacionais e
mundiais ainda causa estranhamento em alguns setores da mídia. Consti-
tui um exemplo o descaso à participação de Marcos Terena na Conferência
Mundial dos Povos Indígenas sobre Território, Meio Ambiente e Desenvolvi-
mento, em maio de 1992, no Rio de Janeiro. O encontro reuniu mais de 800
lideranças indígenas do mundo. Nesse sentido, o artigo “Imprensa e ques-
tão indígena: relações conflituosas”, de Priscila Siqueira (2000) ilustra bem
a questão. A indignação do líder Terena prova como a imprensa brasileira
(em geral) se alimenta do preconceito (disfarçado): “A imprensa Nacion
al não
prestigia a nossa causa; a luta indígena no país só recebe apoio da Impren
sa
Internacional” (TERENA apud SIQUEIRA, 2000). Solidários a Terena
, os
articuladores da Conferência manifestaram-se contra a presença de jornalistas
brasileiros. Conforme Siqueira:

Por pouco, a entrevista coletiva realizada [com Terena] na abertura


dos trabalhos do evento só teria a presença de jornalistas estran-
geiros. Foi toda uma negociação mostrando aos indígenas que esta
seria a oportunidade de expor na Imprensa Nacional suas reivin-
dicações e projetos. [...] Entretanto, duas semanas após o início da
Conferência dos Povos Indígenas, já em pleno andamento da Rio
92 e do Fórum Global sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente,
todas as telas de TV e manchetes de jornais de nosso país noti-
ciavam um fato ocorrido então com cerca de um mês de atraso:
o estupro de uma garota atribuída ao índio Paulinho Paiacã. Será
coincidência a forma diferenciada no tratamento dessas duas no-
tícias relacionadas com o assunto, isto é, a causa indígena no país?
(SIQUEIRA, 2000, p. 227).

A desatenção aos projetos e reivindicações indígenas foi uma constante


no governo de Fernando Henrique Cardoso, ou FHC (1995-2002). À seme-
lhança dos antecessores, a política de FHC revelou-se na falta de diálogo com
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CC‘ÍE‘.‘:ÍRÁÏ'JEA NO BRASIL

os povos indígenas, reforçando a arquitetura do preconceito da FUNAI, no


sentido de manter a tutela sobre os índios. Desse período, não podemos es-
quecer as cenas de violência que marcaram os 500 anos de colonização: “ [na]
omissão e [na] violação dos direitos dos povos indígenas; [no tratamento]
dispensado as comemorações oficiais dos 500, [que] está longe de ser indica-
tivo de uma postura de reconhecimento e revisão das relações de dominação”
(Porantz'm, dez. 2000, p. 8-9).
Não podemos esquecer que um índio foi morto, enquanto dormia,
numa parada de ônibus próxima ao prédio da FUNAI, em Brasília. Exposto
ao preconceito de cinco jovens de classe média que ateararn fogo em seu cor—
po, o Pataxó Galdino foi assassinado na madrugada de 20 de abril de 1997.
Galdino estava em Brasília para reivindicar a demarcação do território Pataxó
que foi invadido por fazendeiros na localidade de Pau Brasil, na Bahia (Porém-
tim, maio 2001, p. 8). Essa tragédia retrata a deficiente política de combate
aos crimes cometidos contra os povos indígenas e que se revelou, mais uma
vez, no dia 20 de maio de 1998, quando o Movimento Indígena perdeu mais
uma liderança: o Cacique Xicão Xukuru, assassinado por fazendeiros, em Pes-
queira (PE).
A desastrosa falta de diálogo de Fernando Henrique Cardoso com as
lideranças indígenas não impediu a marcha do Movimento de Resistência
Indígena Negra e Popular na contracomemoraçâo dos 500 anos do “desco-
brirnento”. No dia 13 de abril de 2000, em Brasília, 1.500 representantes
indígenas realizaram atos públicos; várias lideranças indígenas flecharam o
relógio da TV Globo. Esse gesto (concreto) foi “mais um jeito de dizer que
aquela contagem [...] ‘fajuta’ agredia a memória de seus povos” (Porantz'm,
maio 2000, p. 6).
Em Cabrália (BA), no dia 22 de abril de 2000, os Guarani, os Kaiova,
os Kadiwéu, os Camba, os Terena, os Kinikinau, os Ofaié, os Aticum, os Gua-
tó, os Laiana e os Guaicuru entre milhares de representantes indígenas (cerca
de 3.600) gritaram a construção do futuro para outros 500. A polícia baiana
impediu os integrantes do Movimento Negro de chegarem ao local da Confe-
rência Indígena. “Gildo Terena seguiu de joelhos e com os braços abertos, em
direção à tropa de choque [...] tentando evitar o lançamento de bombas contra
os manifestantes, foi derrubado e pisoteado. Sentado no asfalto, ele chorou”

30
LisoAPE's DA HlSTÓRIA

Pomntz'm, maio 2000, p. 13). No gesto de Gildo Terena, interpreta-se a espe-


:ança dos povos indígenas na construção de um outro mundo possível. Com
esse espírito, o Movimento Indígena reuniu mais de 600 lideranças indígenas
:10 I Fórum Social Mundial (FSM), 2001, em Porto Alegre (RS).
Em contraponto ao Fórum Econômico de Davos (Suíça), o Fórum de
1001 reuniu 18 mil pessoas, L“num espaço que buscou construir formas alterna-
rivas para um desenvolvimento ecologicamente sustentável, economicamente
viável e socialmente justo para todos os habitantes da Terra” (Porantím, jan./
fev. 2001, p. 16).
Em julho de 2001, no Rio de Janeiro, a Conferência Nacional Contra
o Racismo e a Intolerância reuniu representantes dos povos indígenas que
debateram o fim do estado de relativa incapacidade civil e de tutela do índio,
entre outros pontos defendidos no Código Civil Brasileiro e no Estatuto do
Indio (1975). A Conferência no Rio de Janeiro foi uma preparação para a 3a
Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a
Xenofobia e a Intolerância, realizada na África do Sul, entre 31 de agosto e 7
de setembro de 2001.
O II Fórum (2002), em Porto Alegre, mobilizou mais de 40 mil pes-
soas para manifestar o respeito às diferenças. Lideranças indígenas de toda a
América afirmaram “ [a vontade e o compromisso] de trabalhar em conjunto
com outros povos e setores afetados pelas mesmas realidades” (Porantz'm, mar.
1002, p. s).
Junto ao Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e outras organizações
de apoio aos povos indígenas, a CNBB realizou a Campanha da Fraternidade
CF), enfatizando o mito Guarani: “Em busca da terra sem males”, tema da
Semana dos Povos Indígenas (2002). Embora alguns setores da Igreja vejam na
pessoa do índio um ser pitoresco, ingênuo, incapaz, selvagem, dissimulado e al-
goz, entre outros predicativos, são evidentes os aspectos positivos da Campanha.
O subsidio didático estimulou a reflexão do tema nas escolas, em contraponto
`a postura de algumas paróquias que não souberam aproveitar ou trabalhar o
material, desperdiçando a oportunidade de aprofundar as palavras de reparação
referente ao martírio dos povos indígenas na América.
A exemplo dos anos anteriores, o Fórum de 2003 mobilizou milhares
de manifestantes em Porto Alegre. Representantes nacionais e estrangeiros e
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CÏ’.'E',’1Ï:Ï¿ÁÏQEANO BRASIL

lideranças indígenas pediram ao novo governo do Brasil e ao Congresso


um plebiscito oficial sobre a ALCA (Área de Livre Comércio das Amé-
ricas) e discutiram, entre outras questões, o problema da permanência
de invasores em seus territórios. O Movimento Indígena chorou a morte
de mais um parente assassinado por um grupo de jovens brasileiros de—
socupados. Dessa vez, um velho Kaingang: Leopoldo Crespo, 77 anos,
assassinado em 8 de janeiro, a chutes e pedradas enquanto dormia na rua,
em Miraguaí/RS.

1.2 ORGANIZAÇÕES DAS MULHERES INDÍGENAS


Na História indígena, as organizações têm propiciado o surgimento de
líderes e novas formas de aliança, mobilizando as comunidades locais e mos-
trando a necessidade de se constituírem representações indígenas regionais.
una..-

Algumas se articulam em um só povo, outras em uma categoria.


`Segundo Leonardo Bofl` (2001, p. 142-145), existem 73 organizações
indígenas registradas em cartório e 24 organizações não governamentais de
apoio aos povos indígenas, isto é, indigenistas ou comandadas por não índios.
Ele classifica o GRUMIN no quadro das ONGs indigenistas. No entanto,
convém notificar que o grupo foi fundado juridicamente em 1986, por Elia—
ne Potiguara: uma remanescente dos Potiguara. Aparecem também no jornal
Pommz'm referências ao GRUMIN como entidade indigenista ou de apoio à
causa indígena. Considerando a história do grupo e as raízes de sua fundado-
ra, tal classificação parece equivocada.
Contudo, o critério mais aceito para dizer se urna pessoa ou uma orga-
nização é ou não indígena, é ou não indígena-descendente encontra respaldo
em Mellati, alertando-nos para um aspecto-chave que é a “autoidentificação”.
Nesse sentido, Melo observa:

Atualmente, o mais aceito é o da auto-identificação (sic) étnica,


segundo o qual o que classifica ou não um grupo de indivíduos
como indígenas “é o fato de eles próprios se considerarem índios
ou não e de serem considerados índios ou não pela população que
os cerca”, como define o antropólogo Julio Cesar Mellati (MELO,
2000, p. 6).

32
z_ ï—ïODAPÉS DA HISTORIA

As informações de Grupioni, Melo e outros estudiosos confirmam a


existência de aproximadamente 300 organizações indígenas “muito diferen-
tes entre si [que podeml representar membros de um povo ou parte dele (só
as mulheres ou professores, por exemplo) ou varios povos de uma região,7
(MELO, 2000, p. 7). Se as organizações representadas pelos homens indíge-
nas são entidades relativamente recentes, as dezesseis representações formadas
pelas mulheres indígenas são mais recentes ainda.
Denunciando o genocídio mascarado na esterilização, construindo
caminhos contra todo tipo de preconceito, combatendo as discriminações
dentro da própria sociedade em que vivem, representando comitês de saúde,
educação e política, compartilhando as suas reivindicações, o Movimento das
Mulheres Indígenas “ganhou visibilidade e respaldo a partir da década de 90.
:Essal energia está, aos poucos, se fortalecendo em todo país. São caminhos
que apontam para a verdadeira luta dos povos indígenas, principalmente para
as mulheres indígenas” (Pomm‘im, mar. 2002, p. 15).
O QUADRO 1 permite ilustrar a força desse Movimento:

QUADRO 1. Representações das mulheres indígenas no Brasil


ADMIR Associaçao Desenvolvimento das Mulheres indígenas de Roraima
A.‘v1A h-1ovimento Articulado das Mulheres da Floresta Amazônica
AMA! Associaçao das Mulheres de Assunção do içana
AWARN Associação das .Mulheres indígenas do Alto Rio Negro
AWCOP Associação das Mulheres indígenas do Centro-Oeste Paulista
AMID Associaçao das iiíuiheres indígenas` do Distrito de iauarete
AfiílK Associação das Mulheres indígenas Kameba
AMIMS Associaçao das .'i-iuiheres indígenas do iviedio Solimões
AMiSM Associaçao das løiulheres indígenas SaterÓ-iiiawe
AWTRUT Associação das Mulheres indígenas de Tararua, Rio Uapes e Tíquié
AMP Associação das Mulheres Pared
AMP Associação das i'iiulheres Pataxo
AOMP Associaçao Orridšona das Mulheres Pares:
GRUiviiN Grupo iiiuiher- Educaçao indígena
OMIR Organização das Mulheres indígenas de Roraima
UfiAMi Uniao Nacional das Mulheres Indígenas
CONTRAPONTOS DA LETERATURAINDÍGENA
¿".3'31'1Í‘7Á7JBR NO BRASIL

Vem de Roraima um exemplo das mulhere


s indígenas que se mobilizam
para “fortalecer as lutas dos povos Macuxi,
Wapixana, Taurepang, Ingarikó,
Wai Wai e Yanomami e contribuir para a
coesão do movimento indígena e
para as conquistas dos direitos territoriais” (Pom
mz'm, mar. 2001, p. 14). Com
esse espírito, as indígenas enfrentaram em
Roraima, no ano de 1992, os “mo—
mentos difíceis para os índios de Raposa/Serr
a do Sol. Quando os garimpeiros
e a PM tentaram desbloquear a barreira
feita na aldeia Machado, em 1992,
as mulheres tomaram a frente dos maridos
e conseguiram fazer com que as
forçasrecuassern” (Pomntz’m, abr. 2001, p. 6).
Em defesa dos seus direitos, as mulhere
s indígenas de Minas Gerais,
Espírito Santo e Bahia participaram do
primeiro encontro estadual, em 1996.
”un“

No ano seguinte, em Roraima, um grupo


de mulheres indígenas liderou a
cam panha contra o consumo de bebida alco
ólica na aldeia. Nessa luta, duas
Tuxauas ganharam destaque: Diva de Souza,
eleita a primeira mulher cacique
na aldeia, e Lindalva Peixoto, que
assumiu, em 1998, a secretaria do
Movi-
mento. Nesse mesmo ano, mais um enc
ontro de mulheres indígenas reuniu
lideranças Tupinambá e Pataxó (BA), Max
akali, Xakriabá, Krenak, Pankararu
e Aranã (MG), Tupinikim e Guarani (ES).
Na contracomemoração dos 500 anos, o
artigo de Maninha Xukuru,
publicado no jornal Pomntz'm (mar. 2002,
p. 4), “Marcha: uma resposta à
fúria do opressor”, mostra o sentido de exis
tência do pensamento indígena.
Preocupação semelhante observamos nos
ensaios críticos de Darlene Taukane
e nas entrevistas de Eliane Potiguara, entr
e outras lideranças no campo das
representações de mulheres indígenas. De
Eliane Potiguara destacamos um
trecho de sua entrevista ao IBASENET, em
2002, na qual ela discute a situa-
ção da mulher indígena na cidade e na alde
ia:

As mulheres indígenas, aos olhos da socie


dade, estäo abaixo do
último degrau que compõe as camadas da socie
dade. Indígenas, po-
bres, discriminadas, excluídas, invisíveis
. São máo-de-obra escrava
em plantios de cana-de-açúcar, algodão e outro
s. Se estäo próximas a
mineradoras, são objeto sexual de garimpeiro
s ou mineradores. Se es-
tão nas cidades. empanadas por alguma razã
o social e política de sua
nação, tornam-«se prostitutas, objeto de tráfic
o internacional de mu-
lheres, empregadas domésticas ou oper
árias mal-remuneradas (sic).

34
x É S FÉODAPÉS DA HISTORIA

Dentro das aldeias urge um trabalho de conscientização contra a


violência sexual, o estupro, o assédio, o alcoolismo que resulta nas
violências interpessoais, nas intrigas, nos distúrbios psicológicos,
nos suicídios. Um programa imediato referente aos direitos repro-
dutivos e saúde integral deve ser implantado pelo governo e pelas
ONGs. Urge um trabalho de conscientização nessas nações que
mais sofreram com a neocolonização, ao lado dos povos Ressurgidos
e dos Quilombolas.13

Em síntese, reportando-nos às mobilizações consagradas ao Dia Inter-


nacional da Mulher, no Brasil, observamos a inclusão desse dia no calendário
indígena. Em 1999, a líder Kaingang Ana da Luz Portes do Nascimento/
Fendó, foi matéria de capa, no Porémtzim.14 No dia 8 de março de 2001, as or-
ganizações indígenas denunciaram o caso da esterilização de mulheres Pataxó
Hã-hã-hãe, ocorrido na Bahia, em 1994. A agonia das Pataxó (que é tema,
também, de poesia de Eliane Potiguara) revela-nos “a terrivel angústia causada
pela ameaça dos Direitos Humanos desses povos, ocasionando a perda da
identidade, a migração e o racismo” (POTIGUARA, 2002, cf. site do Ibase).

1.3 CAMINHOS DA AMERÍNDIA


Na Argentina, as utopias não se perderam, isto é, elas se materializam
“toda vez que as pessoas lutam para superar a alienação a que são submetidas
pelo capital, pelo mercado e agora pelo marketing”, observa Liliana Tamagno
(1999, p. 12), a respeito do povo Toba da Associação Civil Ntaunaq Nam
Qom de La Plata. Tamagno enfatiza que, apesar da globalização, os Toba se
organizam e vêm resgatando “o sentido de existência contínua e memória
coerente [o que] permite afirmar que o povo Toba [...] não perdeu sua iden-
tidade” (TAMAGNO, 1999, p. 12), porque se reconhecem indígenas no
direito de construir seu próprio relato e um lugar onde possam viver juntos.

13 Cf. Educação dzferenfiada: respeito à cultura e tradição. Entrevista do Ibase com Eliane Potiguara.
Disponivel em: <http:¡'/www.ibase.br/paginas/potiguara.html>. Acesso em: 12 mar. 2002.
M CE Pomrzrz'm, mar./abr. 1999, p. 12. Ver as palavras de Fendó na epígrafe que abre o quarto capítulo
deste trabalho.
CONTRAPONTOS DA LITERATURA [NDÍGENA ;: :; 'fi 3' = ¿‘QEA NO BRASIL

Entre os Pehuenche (localizados no Alto Bio Bio, ao Sul do Chile), a


luta contra o neoliberalismo também é contínua. Em março de 1999, a líder
Nicolasa Quintreman manifestou sua indignação contra a hidrelétrica que se
alastra “nas limitadas terras [___] que sobraram do processo de colonização de
que são Vítimas [os Mapuche e os Pehuenche] desde 1541” (Pommim, mar./
abr. 1999, p. 8). Suas palavras atestam a história de resistência dos povos in-
dígenas no mundo:

Não me interessa o dinheiro, nem uma casa com cozinha. Tenho


o meu lugar, meu fogao e minha terra para trabalhar. Tampouco
quero a luz que me oferecem, para isso tenho o sol... com isso es-
tou bem. [___] a barragem não melhora a qualidade de vida, como
disse o presidente. Tirar uma pessoa como se fosse um animal para
um lugar que não lhe serve, que não conhece, isso não e' qualidade
de vida. Viver bem e' permanecer na mesma casa onde eu nasci. A

terra nos pertence, temos que cuidar dela, da mesma forma que a
1.1.-

madeira, o rio e o capim que os porquinhos, as ovelhas e os cabritos


comem. [__] não vou amolecer, [_] meu futuro será sempre o mes-
mo, não vou muda-lo. Morrerei na minha terra (Porantim, mar_l
abr. 1999, p. 8).

Na história ameríndia, a solidariedade do Comitê Clandestino Revo-


lucionário Indígena ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN)
configura milhares de vozes tribais que ecoaram em 1° de janeiro de 2001,
no sétimo aniversario do levante indígena no Estado de Chiapas (México).
Centrada no respeito às diferenças, na luta contra a globalização e o neolibe-
ralismo, a história da resistência ameríndia vai se multiplicando:
° no III Congresso Latino-americano de Organizações do Campo re-
alizado em Tlapan (México), que reuniu, em agosto de 2001, “mais
de 500 representantes [indígenas e camponeses] de 37 organizações
procedentes de 18 países da América Latina [para] discutir os efeitos
nefastos do neoliberalismo”. Na mesma época, as mulheres indígenas
no Paraguai denunciaram o “difícil caminho da sobrevivência num
país, [onde se veem] três vezes discriminadas por serem mulheres,
indígenas e pobres” (Pammz'm, set. 2001, p. 12);

36
.í ’- ZJAPÉS DA HISTORJA

na luta de Rigoberta Menchú (Guatemala. de


Blanca Chancoso
(Equador) e de outras líderes na Arneríndia. No Bras
il, durante o II
Fórum Social Mundial/2002 (em Porto AlegreJ,
Blanca e Rigoberta
atuaram como mediadoras de uma série de conferências
relacionadas
aos conflitos em Chiapas, na Colômbia, no País Basco
e na Palestina.
Na opinião de Rigoberta Menchú (Prêmio Nobel da
Paz), esse Fó-
rum representa “uma voz étnica [_..] um protesto da
dignidade [que]
convoca a sermos multiculturais, pluriétnicos” (Pom
m‘z'm, mar. 2002,
p. 9). Essa mesma preocupação observamos em Blanca
Chancoso, ao
enfatizar “que a paz com justiça, que a paz não de cemi
tério, seja o
novo atalho para um outro mundo possível, plural e diver
so” (ídem);
° nas manifestações de três mulheres Mixtecas perse
guidas pela “jus-
tica” mexicana. Trata-se de Jaquelina López Alma
zán, Soledad Ortiz
Vásquez e María del Carmen López Almazán, membros
do Comité
de Defesa dos Direitos dos Povos (CODEP) de
Oaxaca (México).
Cruzando fronteiras na Europa, as três Mixtecas
usam da guitarra e
do cântico em defesa dos parentes indígenas do mun
do.”
No contexto populacional da América, o número maio
r do contingente
indígena que sobreviveu ao genocídio aparece em cinco
países: Bolívia, com
68,1%; Guatemala, com 63,3%; Equador, com 60,0%;
Peru, com 30,5%; e
México, com 14,2%. Abaixo de 2,0% encontra-se o
Canadá, onde 1,5% da
populaçao e' indígena. Nos Estados Unidos, constam 0,6%
. O Brasil ocupa
o 28° lugar, ou seja, do total de 147.404.0000 habitantes
, 3% (ou 378 mil
habitantes) são indígenas. Em último lugar (31°)
aparece Trinidad e Tobago,
¿om a população de 200 indígenas. O reduzido núm
ero da população indí-
gena resulta de um processo histórico, dos inúmeros
rastros da colonização;
marcas que perduram até hoje, e de forma não menos
agressiva, com a indus-
trialização, a exploração dos recursos dos territórios
ametíndios e as condições
de vida nas reservas.

Cl: BaíetífiAÓyzZ-llz/zz Especial' Oaxaca}! W’Zz/Ímizpu,


do ( Íomite' lnternacionalista
Arco Iris (COINARIR)
Disponível em: <l1rtp://wxmv.coinarir.org>. Mensagem
enviada pelo Grupo de Literatura Indígena.
Disponível em: <litcraturaindigenaçrziyahoogrupos.c‹›m
.br>. Acesso em: lldez. 2002.
.

CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGEF‘JA SÍ: ‘ÏÉÍ': CLÍÁNEA NO BRASIL


A*

Apesar da violência e da repressão, “voltamos a crescer”, afirmam Prezia e


Hoornaert (2000, p. 222), enfatizando que os “povos indígenas estão reagindo
[...] fazendo prevalecer seus direitos [...] um reflexo desse processo é o vigoroso
crescimento populacional dos povos indígenas [porque eles] perderam o medo
1-

e assumiram sua identidade indígena”. O levante indígena no México, as mani-


festações no Chile, na Guatemala e na Venezuela confirmam o fortalecimento
da luta pelos direitos e culturas indígenas; o direito de preservar a cultura mi-
lenar que se renova na modelagem do barro; na indianidade estampada nas
cerâmicas, no trançado das palhas, nos corpos pintados, nos cânticos sagrados,
no fogão de barro e em outras manifestações identitárias que se expandem como
fonte de resistência contra as decepções acumuladas ao longo dos 500 anos. O
c‘

QUADRO 2 sugere um mapeamento da resistência, considerando o total da


.›-

população indígena sobrevivente do genocídio na América.


za.

QUADRO 2. População indígena das Américas (1990-1999)


País População total População indígena 0/0
Bolivia 7.193.000 4.900.000 68,1
Guatemala 11.520.000 7.603.000 66,3
Equador 10.460.000 6.276.000 60,0
Peru 22.332.000 6.810.000 30,5
México 84.498.000 12.000.000 14,2
Honduras 5.261.000 720.000 13,7
Belize 188.000 21.000 11,2
Suriname 422.000 30.000 7,1
Panamá 2.370.000 145.000 6,1
El Salvador 5.207.000 293.000 5,6
Guiana 1.024.000 56.300 5,5
Chile 13.173.000 642.000 4,9
Guiana Francesa 100.000 4.000 4,0
Nicaragua 3.871.000 153.000 3,9
Dominica 82.000 2000 2,4
Colómbía 35.886.000 728.000 2,0
Paraguai 4.277.000 79.000 1,8
Canadá 22.500.000 350.000 1,5
Bahamas 250.000 3.000 1,2

38
2.11130APÉ5 DA HistoRiA

Antígua e Barbuda .000 .f 71' 1,2

Costa Rica 2959.00 _ ¿L 1,2

Guadalupe 360.000 r 1,1

Argentina 31.929.000 ' ' 1,1

Barbados 280.000 L. r I. 1,1

Martinica 359.000 ` .'Í'" ”7 0,3

Venezuela 19.246.000 140.560 0,7

Estados Unidos 248.709.873 1.415.000 0,6

Brasil 147.404.000 78.000 0,3

Porto RÍCO 3.600.000 700 0,02

3.094.000 400 0,01


Uruguai

Trznidad e Tobago 1.234.000 200 0,02


Total: 43.139.160

Fonte: Prezia; Hoornaert (2000, p. 240).

1.4 O IBGE E O CENSO INDÍGENA


O problema do recenseamento indígena no Brasil exige uma leitura
em contraposição ao censo que tem negado até então a existência dos povos
ressurgidos. Nesse sentido, nos apoiamos em Heck (2002) para alertar que os
dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
configuram um quadro preocupante.
Em sua análise de conjuntura “Os índios no censo do IBGE: números,
máscaras e esperança”, Heck (Pomntz'm, jun/jul., 2002, p. 3) chama a nossa
atenção para o crescimento populacional indígena: 158,15%. Acontece que a
população indígena de 294.155 em 91 passa para 701.462, no ano de 2002,
ou seja, “uma diferença de mais de 700, diante da previsão de população
indígena Zero, feita pelo amigo e assessor de campanha de FHC, o sociólogo
Hélio Jaguaribe, em 1994” (HECK, 2002, p. 3). Ajudando—nos a entender
esses números, Heck mostra quatro fatores responsáveis por esse fenômeno e
explica o que esse crescimento significa:
' uma vitória da esperança indígena sobre a sentença de seus algozes
de 500 anos;
° reconhecimento dos povos ressurgiclos que, (re) negados ao longo da
História oficiosa, agora se reconhec ,in “em suas origens e identidades
indígenas”;
CONTRAPONTOS DA LITERATURA H‘JDÍGETF Í Ï‘ÏÉ “-
ïiïJEANO BRASÉL.

° os índios que se viram obrigados a deixar as suas


terras ou que se
dispersaram nas metrópoles, “passaram a constar nos dados
oficiais
do IBGE”;
' a inclusão do censo da população indígena no censo geral
do país,
a partir de 1990, é fruto da história de resistência indígena.
Outro
ponto importante, segundo Heck, foi “a Campanha da Frate
rnidade,
Por uma Terra sem Males, [que] contribuiu para que se aumente
ain-
da mais a esperança e se reflita na conquista de novos espaç
os de vida
e autonomia” (HECK, 2002, p. 3).
A análise de Heck a respeiro do mascaramento estatístico repor
ta-nos à
situação de enfrentamento dos Pankararu, deslocados na cidad
e de Säo Paulo.
Estranhamente, o Referencial Curricular Nacional para
as Escolas Indígenas
(RCNEI) parece não reconhecer a existência dessa situação. Tanto
assim, que
alguns “tropeços” são notórios no documento complementar
do RCNEI, no
qual se afirma que “Nao há informações sobre índios urbanizadas
, embora
muitos deles preservem suas línguas e tradições” (RCNEL 1998,
p. 9, grifo
nosso). Na verdade, mediante a inclusão do censo indíge
na no IBGE (em
1994), existem aproximadamente 150.891 índios vivendo nas
cidades. Esses
dados são, também, confirmados pelo ISA:

Só na Grande São Paulo são 1.571 índios em situação


de mise'-
ria: 531 Guaraní Mbyá nas aldeias Jaraguá, Barragem, Kruku
tu e
Rio Branco; 600 Pankararu nas favelas Real Parque e Mada
lena,
além de outros 400 Pankararu e 40 Fulni-ô, também desald
ea-
dos. Os Pankararu e os Fulni-ô têm características de migra
ntes
nordestinos: fugindo da seca, vêm trabalhar em São Paulo
como
faxineiros, pedreiros ou vigilantes. Em tempos de crise, sofrem
com o desemprego.16

Na retrospectiva dos trinta anos do CIMI, o jornal Pomm


z'm (dez.
2002, Encarte) ressalta que o crescimento populacional indígena
resulta tam-
bém do papel que essa entidade tem desempenhado junto a difere
ntes etnias.

1° FERREIRA, Mariana K. Leal. Fame amêaçúpaz'os z'ndzgemzr em


São Paulo. Disponível em: <http://wWW.
socioambiental.org/Website/parabolicas/edicoes/'edicao46/reportag/
pg5.htm>. Acesso em: 7 maio 2002.

40
; :1 '{ZDAPÉS DA HISTORIA

trabalho missionário, hoje é


Em outras palavras, o “que antes era Visto como
se, os dados mais recentes
encarado como luta por uma vida digna”. Em sínte
mostram:

enas
Década de 1950 — Cerca de 100 mil indíg
Fonte: Darcy Ribeiro (199521).

1980 — 227.801
ade
Fonte: Pomntz'm, out. 1980 — Egydio Schw

1991 -— 294.135
, p. 8
Fonte: censo do IBGE - Pomntz'm, out. 1989

1996 - 325.652
a: Sociedades Indígenas e
Fonte: Documento da Presidência da Repúblic
a Áçáo do Governo

2000 — 701.462
2002)
Fonte: IBGE ~ Censo 2000 (publicado em

41
.
_
.__
_.-
--\;|Í
2.

_I\_
Identidades e utopias
io,
que o normal, uma visao de ína'
[...] desenvolvi uma visão maior
o.
um olfizto de índio, uma aadiçao de índi
(HENFIL, 2002, p. 31)

SÃO NA LITERATURA
2.1 VOZES ANCESTRAlS E EXCLU
BRASILEIRA

— Vamos brincar de Brasil?


Mas sou eu quem manda
Quero morar numa casa grande
Começou desse jeito a nossa história.
(Raul Bopp, Cobra Norato)

ial da tradição literária dos povos


Para uma abordagem da história soc no Bra-
ígena
nativos (filhos e filhas da terra)
e da atual situação do escritor ind
que sucinta, da influência e da
, ainda
sil, é necessário que se faça uma revisão u
ese ntaç ão do índ io na liter atura ocid en tal. Esta abordagem remete ao me
repr do
go “Um flag ran te do ma rgin aliz ado na literatura brasileira”,17 publica
arti
em 1999, no jornal Porantz'm.

C/UFPE, abr. 1999/2000.


Semana dos Povos Indígenas, NEI/CA
17 Tema da minha Conferência na ” (Por anrim, jul. 1999, p. 5).
marginalizado na literatura brasileira
CE o meu artigo “Um flagrante do
“J .

CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA Í Í‘ÏE 51 ¿NEA NO BRASIL

Na história da literatura brasileira, o preconceito literário contra os


povos indígenas tem alimentado o imaginário e o interesse de gerações e
ge-
rações da sociedade dominante que “queria ver [e quer ver ainda] com
seus
Ia-

próprios olhos o povo estranho, implantado nas praias, recebendo navios


cheios de bens preciosíssimosn (RIBEIRO, 1995a, p. 45-44). Os
discursos
m'

equivocados a respeito dos povos indígenas reportam-nos à literatura dos


jesuítas, aos diálogos de Ambrósio Fernandes Brandão, às crônicas de Pero
de Magalhães Gândavo, à poesia bucólica de Basílio da Gama e de
Santa
Rita Durão e aos romances de José de Alencar, entre outros exemplos
que se
seguem; em que o índio é visto superficialmente em sua identifi
caçâo étnica.
Sempre um marginalizado.
rhifi

Nesses moldes, a literatura brasileira tem se revelado mais excludente


do que se caracterizado pela convivência solidária na abordagem de temas
”g _

relacionados ao índio, ao negro, ao judeu, à mulher, à criança,


ao homosse-
xual e ao idoso, entre outros segmentos que a sociedade dominante rotula
de minorias. Passando o olhar pela geografia dos excluídos, por exemplo, as
minorias são os milhões de desempregados, maiores e menores abandonados
sem-teto, sem-terra, sem vez, sem voz, espalhados pelo país.
Quanto à imagem do índio na literatura e na cultura brasileira, a
teoria
da cultura e da literatura indígena alerta-nos para vários equívocos: um deles
refere-se ao nome Pindorama, ou Terra das Palmeiras, assim denominada pe—
los indios da nação Tupi. Terra à vista: nos atropelos em torno da criação
de
um nome para legitimar a posse do lugar, os colonizadores chamaram-no de
Monte Pascoal: um “monte mui alto e redondo” habitado por az'zorzgmes. Ace-
lerando o processo de desterritorializaçâo, os portugueses batizaram o lugar,
uma suposta Ilha, em 22 de abril de 1500. Deram—lhe o nome de Vera Cruz.
Posteriormente, por ordem de D. Manuel, mudaram o nome para Terra de
Santa Cruz. Por fim, decidiram chamar o lugar de Brasil.
Ao longo de sua história, a literatura brasileira (em muitos casos) tem
maltratado as vozes exiladas e a imaginação criadora com que os nativos
nomeiam os lugares, as pessoas e os elementos sonhados. Para ilustrar a
questão, poucos se dão conta do preconceito que perpassa um discurso do
escritor Joäo Ubaldo Ribeiro, em torno do nome Pindorama. O escrito
r
afirma o seguinte:

44
'I—F
“-4? .___-...1-
Í`ÇTIDADES E UTOPiAS

I4.1.—
teria tido até um nome nativo, já proposzo. pelos mais exaltados,
para substituir “Brasil”: Pindorama. designação supostamente dada

“Hu-“Em“..nl
pelos índios ao nosso país. Não sou historiador, mas também não
sou tão burro assim para acreditar que os indios tinham qualquer
noção geopolítica, ou alguma idéia de que pertenciam a um “pais”
chamado Pindorama. Não havia qualquer país, e' claro, nem sequer
a palavra Pindorama devia fazer sentido para os ocupantes que os
portugueses encontraram aqui, se e' que ela era usada mesmo. No
máximo, significaria o único mundo conhecido deles.18

Que noção geopolítica adota o famoso escritor em relação ao lugar


chamado Brasil? Não teria esta noção uma marca do olhar eurocêntrico? De

ÍTELÍ-I-T-rf'
fato, a ideia ou a construção de país poderia não haver no todo, mas o que
pode garantir a João Ubaldo que Pindorama não fazia sentido aos primeiros
habitantes? Até porque, não teria a concepção “deste país” um recorte genera-
lizado? O sentido da expressão “no máximo” denega ao índio a consciência de
nação, locação e deslocação.19
Aos nativos cabe também o direito de imprimir sua licença poética que,
surpreendentemente, continua causando estranhamento ao outro. Criada a
poesia, fundamentada a História, o universo indígena pede que se leia: Pin—
dorama (Terra das palmeiras), Quarup (Festa dos mortos), Nhanderú (Deus)
,
Ikoé (Ser diferente), Nhemokyriri (Calar—se). Nomes e elementos sonhad
os
numa sociedade diferente. Metáforas do tempo de Yvi Marãey (Terra sem
males), uma metáfora feliz.
-.l:I_I.I:__-I._\_w--.!.!:I--`II--=-u_44

2.1.1 Interfaces da Carta de Caminha


Uma metáfora enganosa, porém, estaria por vir na redação oficiosa de
Pero Vaz de Caminha: uma escritura de posse, um manuscrito que
serviu
de guia prático para os turistas da colônia fomentarem a briga de Portugal
e
Espanha; um roteiro extraordinário para legitimar a expansão portugu
esa. Eis
uma das interfaces da Carta do escrivão Caminha.

18 João Ubaldo e o besteirol dos 500 anos. O Estado de S.Paulo, 25 abr. 2000.
19 Devo essa interlocução ao colega Alexandre Furtado (professor da UPE).
CONTRAPONTOS DA LITERATURA ¡NDÍGENA CÍ'ÍE'Í? :31.35% NO BRASIL

Uma coisa é dizer que o Brasil foi descoberto no dia 22 de abril de 1500
e outra coisa é contar que “o Brasil foi introduzido de maneira violenta, na
cultura ocidental; foi o primeiro golpe da nossa história [...]; os índios não sa-
biam nem o que era golpe ainda, coitados. Levaram um, logo de cara”, afirma
Ariano Suassuna (1994, p. 24) em muitas de suas aulas. Fatídico dia em que
foi instaurado no Brasil o começo de um modelo mercantilista. Dos equívo-
cos que se aprende nos manuais literários, convém grifar a afirmação de que a
carta de Caminha significou para a nossa História “uma auténtica certidão de
nascimento”. Que essa carta é um dos mais importantes registros do processo
da transfiguração étnica20 com a chegada dos portugueses ao “Novo Mundo”
é um fato; que se trata de um texto bem elaborado e bastante persuasivo, é
incontestável; que tem uma estreita relação com o discurso literário, não resta
dúvida.
J
r Todavia, há outras manifestações que autenticam a existência da arte
nativa para o mundo. Basta um olhar sobre as itacoatiaras, e aguçar a sensi-
bilidade para ouvir as histórias de tradição oral e escrita dos povos indígenas
e africanos. A este respeito, as escolas em geral não contam. Trabalhar o mito
(realidade/história) pode não ser uma tarefa fácil; mas, a partir dele, é possível
fazer o (re)conhecimento da nossa identidade sufocada nesses mais de 500
anos. Quem teve a oportunidade de ler os mitos indígenas adaptados por Ciça
Fittipaldi para o público infanto-juvenil da cidade grande sabe que o “po—
rantim” é o principal símbolo da cultura Saterê Mawé, isto é, trata-se de um
remo onde está gravada/escrita toda a história mítica dos filhos do guaraná.
Na língua Saterê Mawé, “porantim” significa: remo, arma e memória; significa
uma expressão escrita de vida e espírito que existe muito antes da chegada dos
portugueses em Pindorama; ou como queiram: ao Brasil, Brazil, Brasis.
O estudo da representação do negro e do índio na literatura requer uma
abordagem específica. Da maneira como o assunto vem sendo trabalhado,
sobretudo nas escolas dominantes, o processo de formação política, social,

2° A transfiguraçáo étnica, segundo Darcy Ribeiro (199521, p. 30), “se dá pela gestação de uma etnia
nova, que foi unificando, na língua e nos costumes, os indios desengajados de seu viver gentílico, os
negros trazidos de África, e os europeus aqui querenciados. Era o brasileiro que surgia, construindo corn
os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo desfeitas".

46
VÍ, ETiTlDADES E UTOP‘AS

económica e cultural imposto aos povos indígenas e africanos continuará sen-


do ignorado. A expressão artística do ameríndio e do africano sugere uma
leitura das diferenças, pois o ato de conhecer o outro implica o ato de interio-
rizar a história, a auto»história, as nossas raízes.
A abordagem que se faz do índio na história da literatura brasileira não
é indígena, mas indigenista ou indianista. A contribuição do Padre Jose' de
Anchieta (indevidamente classificada como literatura informativa) inaugura o
que se pode chamar de cenário oficial da literatura brasileira, mas a sua poesia
e o seu teatro de intenção pedagógica e moralizante marginalizam o nativo.
“O auto da Festa de São Lourenço” (representado em 1583) é um exemplo do
discurso dominante sobre a conversão do índio e sua edificação com o branco,
como observa Bosi (1983). Nesse auto, um Tamoio representa o espírito ruim
(Guaixará) que atacou os lusitanos em São Sebastião do Rio de Janeiro no ano
de 1566. O texto de Anchieta endossa a doutrina do Padre Manuel da Nóbre-
ga ao alegar a necessidade de “pôr termo à antropofagia, que só cessará, [diz
Nóbregal, pondo fim à boca infernal de comer tantos cristãos” (RIBEIRO,
1995a, p. 50).
Em Anchieta, eis uma imagem do índio:

Quem sou eu?


Eu sou conceituado,
sou o diabão assado,
Guaixará chamado, por aí afamado.
im]

De enfurecer-se, andar matando,


comer um ao outro, prender tapuias,
amancebar-se, ser desonesto, espião adúltero,
não quero que o gentio deixe.

Para uma Visão panorâmica da literatura jesuíta, vale consultar o pensa-


mento de Bosi (1985) em sua História concisa da literatura brasileira; contudo,
em Dialética a'a colonização, Bosi oferece uma leitura mais profunda do ponto
de vista poético e crítico sobre o assunto, como sugerem os capítulos “An-
chieta ou as flechas opostas do sagrado” e “Vieira ou a cruz da desigualdade”.
CONTRAPOHTDSDALITERATURAINDIGEKAÏ ff '- 3—‘.Ï-¿\Ï‘JOBRAS\L

Nessa perspectiva, apreende-se em Bosi, que no Período Barroco, a Coroa


portuguesa reclama do Padre Antônio Vieira menos atenção aos nativos que
eram Vendidos como escravos. Em 1653, no “Sermão da Primeira Dominga
vay“;-

da Quaresma”, Vieira propõe que os nativos sejam “tomados em justa guerra,


da qual serão juizes o governador de todo o estado, o ouvidor geral, o vigário
do Maranhão ou Pará e os prelados das quatro religiões, Carmelitas, Francis-
canos, Mercedários” (BOSI, 1992 p. 114) e da Companhia de Jesus, à qual
pertencia Vieira.
A respeito dos negros e seus senhores, Vieira diz em 1653, no “Sermão
IV do Rosario”, que “Eles mandam e vós servis; e dormem e vós velais; eles
descansam, e vós trabalhais; eles gozam do fruto de vossos trabalhos, e o que
vós colheis deles é um trabalho sobre outro”. Por melhores que tenham sido
as intenções de Vieira, o fato e' que, em sua oratória, o índio continua mais
y

cativo e o negro mais escravo.


Em Gregorio de Matos, a visão do indio também não é consoladora.
Ainda que tenha procurado converter a realidade em poesia, o “Boca do In-
ferno” não escondeu seu desprezo pelos mestiços e sua cobiça pelas mulatas,
como sugerem alguns de seus poemas satiricos.
No Arcadismo, a duvidosa tentativa de imprimir uma cor local ao ce-
nário luso-brasileiro remete aos poemas “Uraguai”, de Basilio da Gama, e
“Caramuru”, de Santa Rita Durão. Com “Uraguai”, nota-se, em primeiro
plano, a louvação de Basilio da Gama ao seu protetor, o déspota Marquês de
Pombal, representante da Corte no século XVIII; em segundo plano, o herói
Cacambo, que agoniza na luta entre jesuitas e luso—castelhanos. No poema de
Santa Rita Durão, o personagem foi construído para honra e glória de Diogo
Álvares, um colonizador travestido de Caramuru: deus do trovão. Tanto no
poema “Uraguai”, quanto no poema “Caramuru”, resta a imagem do índio
perdedor, considerado por Frei de Santa Rita Durão como subespécie.

2.1.2 Marabá: filha da e(r)va


Á morte de Lindoia (em “Uraguai”) e de Moema (em “Caramuru”)
pressagia a marginalização da mulher em José de Alencar e em Gonçalves
Dias. Na prosa e na poesia romântica índianista, essa particularidade revela-se
na construção de personagens-metáfora da transfiguração étnica e da condição

48
'ul-.XTIDADES E UTOP'Aä

feminina ou as dores do parto21 da história de uma nação, de um país. Pelo


menos e' o que sugere a exclusão estampada em Iracema: personagem-título,
anagrama de uma América mecejana (abandonada}, romanceada por José de
Alencar ou mesclada na imagem da mulher de dois sangues, no grito de uma
nação mestiça no poema “Marabá”. Conforme se lê e se sente nos Últimos crm—
tos do mestiço Gonçalves Dias (2001, p. 115-116), a Filha das ervas, a Filha
da mistura do branco com o índio continua se perguntando:

EU VIVO SOZINHA; ninguém me procura!


Acaso feitura
Não sou de Tupá!
l---l
cTeus olhos são garços,7
Respondo anojado, mas és Marabá:
zQuero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
cUns olhos fulgentes,
(bem pretos, retintos, não cor dianajá.”
l---l
(Quero antes um rosto de jambo corado
cUm rosto crestado
CDo sol do deserto, não flor de cajá.7
[.,.]
‘Eu vivo sozinha
chorando mesquinha,
que sou Marabá!

No segundo volume da obra Formação da' literatura brasileira, Antonio


Candido (1981, p. 84) diz que esse poema e' um “cock-tail de medievalismo,
idealismo e etnografia fantasiada [que] nos aparece como construção lírica e
heróica, de que resulta uma composição nova para sentirmos os velhos temas
da poesia ocidental”. Contrariando a noção de “etnografia fantasiada” em-
pregada por esse estudioso, convém notificar alguns aspectos necessários `a

il A imagem da transfiguração em Marabá revela uma das interfaces do parto da nação brasileira, sobre-
tudo a cara mestiça, como diz Darcy Ribeiro (1995a, p. 448), ao referir-se às “mulheres negras e índias,
muitíssimas, com uns pouquíssimos brancos europeus que nelas se multiplicaram prodígiosamente”.

49
CONTRAPOT'JTOS DA UTERATURA INDÍGENA. ÍÍ‘Ï" ` ` - ÍV :¿ÏJEA NO BRASIL

compreensão do enfoque identitãrio no poema e a sua relação com a vida do


autor. Como nos aparece:
da bíobibliografia do poeta Gonçalves Dias não consta que ele tenha
procurado adotar uma postura de especialista da disciplina Etnogra-
fla;
embora tenha sido consultor de D. Pedro II e defendido o falar bra-
sileiro e não o falar indígena como língua nacional, o poeta não foi
desatento à questão do deslocamento do indivíduo no quadro de
exclusão social no Brasil do século XIX;
o cidadão-poeta Gonçalves Dias não fantasiou a Etnografia, mas
estudou-a, à medida que vivenciou o entrelugar no seu exílio em
Portugal;
autodidata no estudo e na descrição dos povos indígenas (sua língua,
religião e manifestações materiais de sua atividade), o poeta trava
contato com essa disciplina com o intuito de imprimir um efeito de
realidade ao texto;
o cerne do poema não se prende ao aspecto exótico e ao pitoresco,
mas a uma das faces da exclusão (seja na sociedade dominante, ou na
sociedade indígena);
com respeito ao recurso inventivo denominado de licença poética,
Gonçalves Dias não fantasiou a etnografia. Ele problematizou (nas
entrelinhas) a sua condição de mestiço, considerando que o seu pai
eta português e a sua mãe uma índia mestiça ou cafuza (negro + ín-
dio). Na opinião de Bosi, “o poeta se dizia descendente das três raças
que formaram a etnia brasileira” (BOSI, 1983, p. 1 14).
Apesar do rótulo “etnografia fantasiada” dado ao poema, o crítico Anto-
nio Candido vê em “Marabá” um belo exem lo de uasímodos
q monstros e
de construção da personagem largada ao desamparo amoroso e social, ou seja:

a admirável utilização da mulher de dois sangues, que traz ao lirismo


uma ressonância mais pungente do sentimento de incompreensão
amorosa. A marabá é desses monstros diletos do romantismo [...]
y
postos pela fatalidade aquém da plenitude afetiva: só que, neste
caso, monstro extremamente belo e, por isso, mais trágico no seu
desamparo (CANDIDO, 1981, p. 84).

50
:ENTIDADES E UTOPIAS

Candido também observa que o poema “I-Juca Piramazz”, de Gonçal-


ves Dias, traz “um recurso inesperado e excelente: o lamento do prisioneiro,
caso único em nosso indianismo, que rompe a tensão monótona da bravura
tupi graças à supremacia da piedade filial” (CANDIDO, 1981, p. 85—86).
Nao seria também o lamento da india-descendente que é Marabá um caso
único em Gonçalves Dias? Até que ponto o grito de Marabá corresponde ao
grito das mulheres indígenas e de todos os excluídos? As frustrações amorosas
dessa personagem são menores que o fardo de ser mestiça, pois a sociedade lhe
nega um lugar definido. Na literatura brasileira, essas questões se manifestam
na transculturaçâo (branca-negra-índia) dessa nação mestiça romanceada em
Macunaíma, de Mário de Andrade.
Poucos são os estudos que buscam no poema “Marabá” o suporte teó-
rico para repensar a questão do hibridismo cultural. Curiosamente, o referido
poema/personagem e o seu autor raramente são mencionados em estudos des-
sa natureza. Enquanto sua exclusão é notória nos estudos do indianista Darcy
Ribeiro, outros estudiosos mostram a figura de Marabá associada à constru-
ção de símbolos nacionais, como se vê na contribuição de Valéria Lamengo
(1992), nos Anais do [VSemz'na'rio Nacional, sobre mulher e literatura.
Marabá configura a atualidade do texto em Gonçalves Dias ao retratar a
“nossa” condição de filhos da mistura, filhos da erva (na visão indígena), filhos
de Eva (na visão ocidental cristã); filhos marginalizados, espoliados, excluídos.

2.1.3 Do Goitacá ao Popoqh dos tempos modernos


Um dos flagrantes da marginalidade do brasileiro revela-se ainda na
triste figura de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Nesse romance, o per-
sonagem central ora encarna um Goitacá,” ora encarna o quixotesco major
Policarpo Quaresma. Este último que pede às autoridades a inclusão do tupi
como língua oficial; no sentido de valorizar esse conhecimento e respeitar a

22 Significa “aquele que deve morrer”.


B Era costume entre os Goitacá e os Tupinambá as saudações lacrimosas. Em Lima Barreto, a seguinte
passagem sugere esse código de relaçäo: “— Eis aí! Vocês não têm a mínima noção das cousas da nossa
terra. Queriam que eu apertasse a mão. Isto não é nosso! Nosso cumprimento é chorar quando encon-
tramos os amigos, era assim que faziam os tupinarnba's” (BARRETO, 1981, p. 43).
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGE
NA .7 ,Í'ÏÏi'ïï "ÊÂÍJE NO BRASIL

identidade do outro. Para melhor compreender


essa noção de utopia, vamos
a Paulo Freire:

é exatamente esta vontade de ser nós mesm


os, e este desejo forte,
alentados pela UTOPIA táo necessária quan
to viável, que marcha»
mos os progressistas e as progressistas desta Terra
de América para
a concretude, a realização dos sonhos dos Vascos,
de Quiroga yTu-
pac, dos Bolívares, dos San Martins, dos
Sandinos, dos Tiradentes,
dos Ches, dos Romeros. O futuro é dos povos
e não dos Impérios
(FREIRE, 2000, p. 76).

Corn os tempos de global-colonização, repensar


o utópico é uma traje—
tória possível; ainda que a história mostre sua fúria
, como se vê (adiante) na
fala de um Guarani, em Alfonso Romano de
SantaAnna (1998, p. 56). A voz
do texto revela que na grande taba há uma grande
alma que se pergunta como
e para onde foi

o corpo de um sempre poeta morto


dessangrando
sobre as lombadas da história?

Na poética de SantiAnna, assim fala o Guarani, fragm


entado na fúria,
diante do choque cultural. Essa visão manifesta
o receio de não conhecer,
mais de perto, o que ainda resta do cheiro do
mato e da água; do cheiro de
uma aldeia onde se lê a terra sangrando por dent
ro. Meio-igual aos outros [os
não índios?], esse moderno Popol Vuh24 tamb
ém procura c“um texto que [lhe]
salve e [lhe] exaspete” das chamas onde se arde
ram Giordano Bruno, Galileu,
os judeus e outros tantos que — ao longo da História
e de um tempo mais re-
cente — se arderam. Sob urna marquise no Planalto
Central, em 19 de abril de
1997, um Pataxó foi morto. Em SantlAnna (1998,
p. 46), a linguagem corn
seus símbolos atesta que:

24 Livro composto de mitos, adivinhações, histór


ia, cosmología e outros saberes sagrados da civiliza
Maia. ção

52
:ENTIDADES E UTOPiAS

A linguagem é a história
e a história
é a fúria agora.

Para Antonio Hohlfeldt (1998, p. 15-16), esse poema abarca “em sua
síntese amplificada as contradições e as afirmações de um povo que, oprimi-
do ao longo dos séculos, marginalizado da história, sempre encontrou, em sí
mesmo, motivos de sobrevivência e resistência”. Em outras palavras, a fala do
Guarani, em SantjAnna, configura um exemplo das raras exceções em que os
povos indígenas aparecem na literatura brasileira como sujeitos da própria his-
tória. Tomamos de empréstimo as seguintes palavras de Aracy Lopes da Silva
1989) para afirmar que são raros:

os autores que se identificam com o pensamento indígena e, respei-


tando-o, nele exercitam sua própria capacidade de criaçao literária;
raros também são os que se comentam em transmitir os textos mí-
ticos sem adulterá—los ou “corrigi-los” segundo o que consideram
moral ou ideologicamente correto e adequado a seus leitores (SIL-
VA, A. L., 1989, p. 317—318).

2.2 “CRIATU RAS LITERÁRIAS, ANIMAIS POLÍTICOS”


Exemplos significativos da literatura indígena contemporânea nos
aguardam no terceiro e quarto capítulos, dedicados ao pensamento de Elia-
ne Potiguara, Daniel Munduruku, Renê Kithâulu, Yaguarê Yamâ e Olívio
_lekupe': autores, entre outros, que apresentam em suas obras perspectivas de
Iconstruçao de outro mundopossível25 Enquanto isso, tomemos de empréstimo
e grifemos também a expressão criaturas literárias, animais políticos, de Homi
Bhabha (1998), para desenvolver a nossa leitura das diferenças.
Com base em teorias que têm sido batizadas de pós-coloniais, periferi-
cas, plurais e não eurocêntricas, entre outras noções, permitimo-nos abordar
uma literatura de sobrevivência: a literatura indígena. As designações que se

5 Lema do “Fórum Social Mundial”. Um evento que se realiza, anualmente, em Porto Alegre e que
tem por objetivo geral: opor-se à globalização excludente e militarista representada pelo neoliberalismo.
“ma-u.

CONTRAPONTOS DA LïTERATURA lNDi'GENA :C'i'z' "i : ¿“IEA NO BRASIL

pode dar à questão são postas, aqui, como mais uma possibilidade de leitura.
Portanto, não se trata de uma leitura essencialista, do contrário cairíamos nas
armadilhas do “texto de autoridade” em detrimento do texto de alteridade.
Essa perspectiva nos aproxima de Bhabha (1998, p. 19) na argumentação do
local da cultura, mostrando-nos que a “Nossa existência hoje e' marcada por
uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do “presentefl
para as quais não parece haver nome próprio além do atual e controvertido
deslizamento do prefixo ‘pós’: pás-modernismo, pós-colonialismo, pós- emínis-
m0...” (grifo do autor).
Os textos literários contemporâneos de autoria indígena mostram, cla-
ramente, que a palavra indígena sempre existiu; que a “palavra foi nova para
os que tinham perdido a memória, mas para Vocês [os parentes indígenas e ín-
dio-descendentes] não é nova nossa palavra porque já a caminhavam desde os
- Q

mais antigos avós,” diz a Carta do Comitê Revolucionário Indígena (CCRI)


aos participantes do Fórum Nacional em Chiapas. Escrita em 1988 e publica-
da na antologia organizada por Massimo Di Felice e Cristobal Muñoz (1998),
essa carta do CCRI expressa o pensamento do subcomandante Marcos junto
ao Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
No “Prefacio cúmplice” dessa antologia, o poeta Pedro Casaldáliga
(1998, p. 9) — Bispo do Araguaia — mostra-nos que é “hora mesmo de ver tam-
bém no Brasil — ai, Brasil, tão pouco latino-americano ainda! — esta antologia
zapatista, disparar a palavra, a indignação, a mais legítima das reivindicações”.
Orientando-nos que é chegada a hora da nossa indig(e)Nação, essa antologia
sugere os caminhos (subsídios) que, por muito tempo, desejei encontrar para
compreender o universo da literatura indígena no Brasil: “subsídios de sonho,
de alternatividade, de co-responsabilidade, que podem nos estimular a essas
novasformas de luta”, como diz Casaldáliga (1998, p. 10, grifo do autor), ca-
minhos visionários para reafirmar o lugar da palavra nas sociedades indígenas,
em contraponto ao lugar dessa literatura na sociedade não indígena.

2.2.1 Literatura e auto-história


A busca da palavra, mais precisamente a luta dos povos indígenas
pelo direito à palavra oral ou escrita configura um processo de (trans)for-
mação e (re)conhecimento para afirmar o desejo de liberdade de expressão

54
Z ÉÏÁTXDADES E UTOPIAS

da co-
e autonomia e (re)afirmar o compromisso em denunciar a triste história
lonização e os seus vestigios na globalização ou no chamado neocolonialismo
indo a
corn a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) que vêm imped
paz desejada no universo das sociedades indígenas. Desse pressuposto, outras
questões se colocam como relevantes ao estudo da propriedade intelectual
indígena contemporânea no Brasil: indianidade, hibridismo, auto-história,
diáspora, assimilaçöes, preconceitos e perdas, entre outras questões.
Para uma melhor compreensão desses aspectos, convém averiguar o
que se depreende da relação querer/ser/saber/fazer no contexto da litera-
tura indígena. Um dos aspectos intensificadores desta análise prende-se ao
problema que é definir/conceituar literatura. Não nos parece uma tarefa
fácil, se considerarmos que o conceito de Literatura está sujeito a polêmicas.
Em outras palavras, são os desentendimentos que geram e determinam a
noção de Literatura, ou como observa Massaud Moisés (1985): uma noção
“comanda todas as divergências: a do conceito de Literatura, porquanto, a
rigor, la escolha dos critérios depende do conceito básico que cada um tem”,
(DANZIGE apud MOISÊS, 1985, p. 310). Em se tratando de literatura in-
dígena, as definiçöes, os conceitos esbarram na questão do reconhecimento,
no preconceito literário estampado no mascaramento das polêmicas dou-
trinais. No cânone, essa literatura não aparece mencionada; seu lugar tem
sido, até agora, a margem. Poucos se dão conta de sua pulsação.
Apesar da falta do seu reconhecimento na sociedade letrada, as vozes
indígenas não se calam. O seu lugar está reservado na história de um outro
mundo possível. Visando à construção desse mundo, os textos literários
de autoria indígena tratam de uma série de problemas e perspectivas que
tocam na questão identitária e que devem ser esclarecidos e confrontados
com os textos não indígenas, pois trata-se de uma questão muito delicada
e muito debatida hoje entre os escritores indígenas. Com efeito, a ques-
tão identitária vem sendo debatida por autores não índios, diz Maurizio
Gatti (2001), no artigo “Être auteur autochtone au Québec aujourdahui”.26

do que foi pu-


2° Em depoimento pessoal, o pesquisador Gatti informa que esse artigo e' urna versão
de l'exiguite'. Beauport: MNH,
blicado em; VIAU, Robert (Din). La rréation litte'mire dans [e contacte

55
CONTRAPÜNTOS DA LITERATURA INDÍGEF‘LA Ç .Í ` ÏE `. '- ' Ï—KEA NO BRASH.

Seguindo essa orientação, apresentamos alguns conceitos para auxiliar a nos-


sa leitura acerca de questões que, a priori, nos parecem intensificadores nos
textos literários de autoria indígena relacionados ao corpus pesquisado. São
eles: transculturação (Ortiz), auto-história (Sioui), indianidade (Boudreau),
hibridismo (Canclini e Bernd), deslocamento (Hall) e identidade literária,
entre outros aspectos.
A questão do lugar e da identidade na literatura indígena não está
dissociada da noção de deslocamento. Em Stuart Hall (1999), esse proces-
so remete à diáspora; experiência do judeu e de outros povos dispersos no
mundo, devido a perseguições religiosas, políticas e outras questões. Na per-
cepção de Ana Carolina D. Escosteguy (2001), o conceito de deslocamento
(em Hall) apresenta uma estreita relaçäo entre identidade e diáspora e impli-
ca uma nova configuraçâo de identidades culturais; pois, conforme Hall, “a
w.-

migração resultou ser o evento histórico-mundial da modernidade tardia, a


clássica experiência pós—moderna revela—se ser a experiência diaspórica” (ES—
COSTEGUY, 2001, p. 142). Nessa direção, ela enfatiza duas modalidades
do processo: o temporal e o espacial. O primeiro refere-se “à permanência de
uma ligação com o passado — mesmo que possa estar associado a ruínas. Por
essa razão, Hall Vai discutir a formação de novas formas de identidade ligadas
ao re-contar o passado através da memória e à afirmaçâo da diferença” (idem).
O segundo aspecto do deslocamento mostra o ser estrangeiro, um outro
ou quase-ele-mesmo no entrelugar; entre saídas e chegadas. Escosteguy ilustra
muito bem esse processo, mostrando ao leitor um aspecto do deslocamento
vivenciado por Hall. A esse respeito, ele mesmo conta de sua experiência na
Inglaterra e na Jamaica, onde a educação colonial lhe imprimiu uma identida-
de híbrida; daí não se reconhecer completamente desses lugares e isso, como
ele próprio confessa, “é exatamente a experiência diaspórica, distante o sufi-
ciente para experienciar o sentimento de exílio e perda, próximo o suficiente
para entender o enigma de uma chegada sempre adiada” (ESCOSTEGUY,
2001, p. 142).

2000. p. 183—194 (Coll. Écrits de la francité). Disponivel em: <mau.gatti@katamail.com>. Acesso em:
16 maio 2002.

56
LÉÏWIDADES E JTOPÍAS

As noções de deslocamento (Hall) nos aproximam da experiência indí-


gena, pois se nos reportarmos tanto ao passado quanto ao presente factuais (a
contar do “descobrimento” até o desalojamento dos povos indígenas de seus
territórios pelas hidrelétricas, mineradoras, etc.), nos aparece outra
terceira margem do deslocamento em âmbito mundial: a diáspora indígen
Isto se vê e se sente também nos personagens ou identidades literárias
face ou
a. t
(pode
ser um eu lírico social de autoria feminina com cara de índio(a), um narrad
or-
contador de histórias de índios e índias) deslocados na cidade grande, como se
observa no espaço da narrativa de Daniel Munduruku, Olívio Jekupe' e Renê
Kithãulu. A poesia de Eliane Potiguara, a auto-história de Marcos Terena, por llh

exemplo, dão pistas da construção de suas identidades literárias para denun


-
ciar como e por que as diferenças foram constituídas desde a colonização.
Sabendo-se diferente, a identidade literária na poesia e na prosa indíge-
na problematiza claramente essas questões, refletindo a consciência do autor
(cidadão indígena), da autora (cidadã indígena). A manutenção da diferen
ça
é um recurso também da neocolonização para dominar os grupos indígenas,
como diria Canciini (1998, p. 250). O nível dessa dominação se deu a ferro
e fogo, conforme a articulação de alguns jesuítas (principalmente o mentor
do não diálogo com os “(gentios”, o padre Manuel da Nóbrega). O projeto de
escravidão incluía, sobretudo, o extermínio daqueles que não pareciam ter
sido feitos do mesmo barro, como nos mostra Darcy Ribeiro (l995a, p.
57)
ern sua crítica ao projeto salvacionista atrelado à invasão.
Marcados pela diferença, os índios não tiveram muita escolha, limi-
tando-se a uma “triste vida de catecúmenos, suportãvel apenas diante
da
alternativa que era caírem cativos nas mãos do colono” (RIBEIRO, 1995a,
p. 60). Como teriam salvação? As missões jesuítas endossaram “as campanhas
de extermínio dos Potiguara do Rio Grande do Norte, em 1599, e no século
seguinte, a Guerra dos Bárbaros e as guerras na Amazônia -, os índios jamais
estabeleceram urna paz estável com o invasor, exigindo dele um esforço
conti-
nuado, ao longo de décadas, para dominar cada região” (RIBEIRO, I995a,
p.
33). A poesia de Eliane Potiguara mostra isso e mais: a desmitificação do apa-
gamento dos Potiguara e de outros povos indígenas. Neste sentido, podem
os
afirmar que a literatura dos ressurgidos compõe uma das faces do movimento
literário indígena no Brasil.
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INIDÊCEIET\`+'‹4 'ÍÍÏ. ‘ÏÉ'ïï ÍÍ-:XEA NO BRASIL

Um estudo da noção de diáspora associada aos povos indígenas seria


presumivelmente mais adequado no viés de várias perspectivas: literári
as,
históricas, antropológicas e culturais, entre outras. No presente estudo
, a pers-
pectiva comparada permite um relacionamento da noção de desloc
amento
corn outros aspectos-chaves. Nesse sentido, partindo de Ortiz
(1978), supo-
mos que será válido acolher o termo transculturaçâo que, segundo o
próprio
Ortiz, parece mais apropriado que o vocábulo aculturaçãio27 para design
ar/
explicar o processo de trânsito de urna cultura a outra e suas repercussões
so-
ciais de todo gênero. O termo transculturaçâo foi criado por Ortiz,
em 1940,
para expressar a complexidade desse processo “indispensable para compr
ender
la historia de Cuba y, por análogas razones, la de toda America”, diz
Ángel
Rama (1985, p. 32). Foi Ortiz que deu à luz “o termo afro-cubano
(do qual
derivaram [os vocábulos] afro-americano e afro-brasileiro”, afirma
Guillermo
Cabrera Infante (1996, p. 80).
Observamos em Canclini (1998) que a aproximação do colonizador
com as sociedades indígenas provocou uma ruptura da identidade étnica
original, que ele chama de ((desindianização”. A mesma ideia foi posta
por
Darcy Ribeiro (1995b). Ele diz que somos filhos do “desfazimen
to” pela
multiplicação, pela mistura entre brancos, negros e índios e enfatiza:
“Foi
desindianizando o indio, desafricanizando o negro, deseuropeizando o europeu
e fundindo suas heranças culturais que nos fizemos” (RIBEIRO, l995b,
p. 13). Nesses termos, a noção de transfiguração em Ribeiro é semelh
ante à
desindianizaçäo em Canclini, ou seja, um processo que decorre da coloniz
ação
alcançando, assim, como afirma Ribeiro, “paradoxalmente condições
ideais
para a transfiguraçâo étnica pela desindianizaçáo forçada dos índios” (idem). No
entanto, o pensamento de Ortiz vai mais longe. Ao rejeitar o termo aculturaçäo,
ele mostra que o individuo não perde a identidade, não deixa de ser ele mesmo
em contato com outro. De acordo com o pensador cubano:

el vocablo transculturación expresa mejor las diferentes fases del


proceso transitivo de una cultura a otra, porque éste no consiste

a
f "Por aculturación se quiere significar el processo de transito de una cultura
a outra y sus repercusiones
sociales de todo genero. Pero transculturación es vocablo más
apropiado” (cf. ORTIZ, 1978, p. 93).

58
.ÉENTIDADES E UTOPIAS

solamente en adquirir una cultura, que es lo que en rigor indica


la voz single-americana aculturación, sino que el proceso implica
también necesariamente la pérdida o desarraigo de una cultura
precedente, lo que pudiera decirse una parcial desculturación de
nuevos fenómenos culturales que pudieran denominarse neocultu—
ración (ORTIZ apud RAMA, 1982, p. 32—33, grifos do autor).

Nesses termos, uma coisa é afirmar que uma pessoa não tem cultura (ig-
norar sua existência) e outra coisa é reconhecer que as sociedades tradicionais
sofreram o impacto a partir da chegada do sujeito dominante. É possível di-
zer — dentro da percepção indígena — que o índio não deixa de ser ele mesmo
em contato com o outro (o não índio), ainda que o(a) indígena more numa
Cidade grande, use relógio e jeans, ou se comunique por um celular; ainda que
uma parabólica pareça, ao outro, um objeto estranho ou incompatível com a
comunidade indígena; ainda que nos deparemos com o indígena nos cami-
nhos da internet, em plena construção de aldeias (aparentemente) virtuais;
mesmo assim, a indianidade permanece, porque o índio e/ou a índia, onde
quer que vá, leva dentro de si a aldeia. Os que ficam sabem que vão junto, no
sangue do parente, na pele, na consciência, no cotidiano da história e da me-
mória do parente que não deixa de ser e/ou reconhecer-se filho legítimo pelo
amor à terra. Portanto, diferente do outro (o nâo índio). Essas questões são
claramente expostas por Daniel Munduruku, Ailton Krenak, Marcos Terena,
Darlene Taukane e René Kitháulu, entre outros pensadores indígenas.
Existe “desindianizaçâo” nos Pankararu que estão deslocados/desab-
jados em São Paulo? Ao que me consta, continuam iguais na indianidade,
parentes dos Pankararu que, pela força das circunstâncias, deixaram em Per-
nambuco. O mesmo sentimento e consciência ocorre com os Munduruku
(em São Paulo ou no Pará), com os Saterê-Mawé, os Potiguara, os Guarani e os
Terena, por exemplo. Negar essa existência, essa resistência significa contrariar
o pensamento indígena que rejeita a ideia de aculturaçâo. Nessa perspectiva,
parece-nos igualmente válido rejeitar a ideia de “desindianizaçâo” apresentada
em Ribeiro e em Canclini, conforme observamos anteriormente.
Ao retomar em Guilhermo Bonfil Batalla os conceitos de diferença e
“subordinação”, Canclini dá como exemplo de desíndíanizaçâo ou aculturação
as comunidades camponesas de mestiços que — no seu entender — perderam

59
¡“á-A.“-

CONTRAPONTOS DA UTERATURA INDÍGENA C '_ ‘Íï'fï ÍÂ :‘¿ÏQEA NO BRASH.

contato com a língua de origem, que abandonaram a indumentária tradi-


cional. Canclini demonstra reconhecer que o universo simbólico subsiste
nas comunidades mestiças. O vínculo com a tradição subsiste nos “traços da
ccultura material, das atividades produtivas, dos padrões de consumo, da or-
ganização familiar e comunitária, das práticas médicas e culinárias e de grande
parte do universo simbólico” (CANCLINL 1998, p. 250). Com efeito, não
podemos deixar de ver que essa questão remete aos temas transversais confi-
gurando um dos elementos intensificadores da literatura dos ressurgidos. No
entanto, Canclini reforça o conceito de aculturação quando afirma que “a
desindianização provoca nesses grupos ‘a ruptura da identidade étnica origi-
nal), mas continuam tendo consciência de ser diferentes ao se assumir como
depositários de um patrimônio cultural criado ao longo da história por essa
mesma sociedade” (CANCLINI, 1998, p. 250).
w”

O que resta, hoje, em termos de cultura que se possa falar de uma lite-
ratura indígena? Segundo Boudreau (1993), a literatura escrita do ameríndio
é um fenômeno cultural recente porque surge das decepções acumuladas após
a invasão europeia. Esse fenômeno opõe-se a todas as tentativas de assimilação
e dominação pelas quais os povos indígenas vêm passando atualmente. Dessa
m

forma, assegura Boudreau, os autores ameríndios expressam a sua visão de


mundo e a valorização de sua “indianidadeafl exercitada há séculos, no amor à
terra. É desse amor que a literatura indígena se alimenta para configurar um
espaço de denúncia contra os dirigentes políticos e as forças multinacionais
que continuam ignorando as nações ameríndias (BOUDREAU, 1993, p. 4).
Corn efeito, essa noção de “fenômeno recente” só pode conceber-se pela
história de resistência e luta dos índios na América, mas não por analogia
aos conceitos, às definições, às características (de escolas literárias, estilos de
épocas) de literatura, segundo os moldes da sociedade letrada. Em Boudreau,
a indianidade implica a consciência dos autores ameríndios sobre o desejo e
0 poder de afirmar, de expressar sua identidade cultural e social. A literatura
indígena não reproduz os modelos reconhecidos pela instituição letrada, não
procura o reconhecimento institucional a todo preço. Nela, os(as) autores(as)
procuram expressar sua identidade/alteridade. Nesse sentido, ela implica uma
literatura de sobrevivência para as nações indígenas e de resistência! para os
“brancos” (BOUDREAU, 1993, p. 15-16).

60
Ïj EÏJTlDADES E UTOPIAS

Na percepção de Georges Sioui (1989), um amerindio da nação Huron


Canadá), a auto-binária tem um significado peculiar. É diferente de auto-
biografia (na visão ocidental). A auto—história implica a crítica/escritura, a
ltistória/memória do indivíduo da nação indígena. Ciente da própria história,
Sioui afirma que “L’Amérique blanche a perdu le combat culturel qu’elle a
Livré contre le peuple amérindien”28 (SIOUI apud BOUDREAU, 1993).
No Canadá, os autores de literatura que descende da tradição oral são
;onsiderados polimorfos e mestiços, pois trata-se de um escritura que póe em
relevo a vontade de sobreviver, e as formas que lhe revestem correspondem
a realidade ameríndia (Boudreau). Resistência, sobrevivência: essa particula-
ridade é própria da literatura que trafega na contramão, a exemplo da atual
manifestação literária de autoria indígena e de seus descendentes no Brasil.
No panorama indígena-descendente, circula em Goiás, por exemplo, o livro
:lo brasiguaio Brígido Ibanhes (1999), descendente dos Guarani, no Paraguai.
ibanhes é autor de contos em que os personagens mestiços falam dos costu-
mes peculiares das fronteiras entre Brasil e Paraguai.
A literatura indígena contemporânea no Brasil pode e deve ser lida
na interface da auto-história, da luta e da literatura ameríndia. Essa relação
pode ser observada na entrevista de Basil Johnston29 (um índio Anishinaube/
Canadá) publicada no Brasil pela revista O iwerzsagez'm.” A sua visão da
natureza, da educação, do sagrado, da política e da cultura, por exemplo,
mostra uma confluencia com o pensamento indígena no Brasil. É uma
confluência natural, pois, sendo filhos da terra, trabalham para manter
o equilíbrio da Mãe-Terra, como sugere o pensador Daniel Munduruku
(ZOOOb, p. 38): muitos paje's “estão chacoalhando o maraca para manter o
[equilibrio da terra] E não são apenas os paje's indígenas, não. São todos

33 Citação de Georges Sioui: "a América branca perdeu a briga cultural que travou contra os Amerín-
dios” (CE BOUDRFAU, 1993, P- 99).
3‘) Basil Johnston é doutor em Educação pela Universidade de Toronto, Canada.
revista
i” Em 1979, por iniciativa de cinco caciques representantes de cinco povos indígenas, foi criada a
Oflímszzgez'm; uma publicação bimensal que circula, também, pela internet. Com o apoio do CIMI,
não índios.
essa revista é dirigida aos povos indígenas, mas conta também com a participacao de leitores
A proposta dos seus organizadores é levar “a palavra do índio para o índio” e ser um veículo de inter»
câmbio entre aldeias.

61

Il"
Ill IIIIII
w. 4

CCNTRAPCNTOS DA LITERATURA INDÍGENA CCH—31': LÏÁ‘QEA NO BRASIL

aqueles homens e mulheres que vivem nos quatro cantos do planeta e


acreditam na possibilidade de Viver em paz”.
O pensamento indígena circunscreve-se no Círculo Sagrado da vida
l-

(Sioui), na persistência de uma relaçäo ideológica própria do sistema de va-


lores das sociedades autóctones. Entretanto, uma interpretação ocidental da
realidade espiritual e cultural dos ameríndios explica muito pouco a com-
“A

plexa relaçäo entre a realidade e o símbolo (BOUDREAU, 1993, p. 62).


Sioui esclarece que e' próprio do ser ameríndio reconhecer a interdependência
universal de todos os seres (físico e espiritual). Ciente dessa interdependên-
cia, o ameríndio procura, por todos os meios, se organizar para estabelecer
um contato intelectual e emocional, a fim de assegurar a todos os parentes
¡”4‘

a abundância, a igualdade e a paz. É o círculo sagrado de vida que se opõe à


concepção evolucionista do mundo, de acordo com o qual os seres diferentes
L..

são frequentemente ignorados e constantemente empurrados e substituídos


por outros que parecem adaptados `a evolução (SIOUI, 1989, p. 3). Essa con-
cepção vai ao encontro também do pensamento de Kaka Werá Jecupe' (1994),
firmado no “compromisso de traduzir da vermelha escrita-pintura [do] corpo
para o branco corpo [da] pintura escrita. Cumprindo a tarefa nesse relato,
para tingir o que até então no mundo tem parecido intingivel (sic), a mistura
do vermelho sobre o branco resultando na cor da vida” (JECUPÉ, 1994, p. 8).
Manter o sagrado é preservar a identidade que Werá Jecupé procura
transmitir aos parentes indígenas e aos não índios, conforme observamos
em outros livros de sua autoria mostrando o outro lado da história do Brasil
na visão do índio. Seu pensamento reporta-nos à visão indígena de Sioui e
outros parentes: em Johnston, por exemplo, “a cultura indígena apesar de
ser primitiva em tecnologia, não é nada primitiva em pensamento, nem nas
instituições, conhecimentos, percepções, relacionamentos, atitudes, códigos,
éticas” (JOHNSTON, 1998, p. 8).
Utilizando o conceito de literatura mundial em Homi Bhabha (1998,
p. 53), é possível dizer que o estudo da auto-história pressupõe “o estudo da
literatura mundial [que] poderia ser o estudo do modo pelo qual as culturas
se reconhecem através de suas projeções de alteridade”. Esse entendimento
do outro oferece subsídios para remodelar o estudo da teoria da literatura e
apreender o(s) significado(s) das diferenças, se considerarmos que o estudo

62
.Ï ENTIDADES E UTOPEAS

literário pelo viés da ecocrítica (tanto quanto o seu objeto de estudo) implica
um olhar discernidor no que se refere também a estética dos excluídos. Nessa
perspectiva; a sabedoria dos pajés, por exemplo, não parece dissonante aos
ensaios críticos sobre o meio ambiente e a qualidade de vida e às denúncias
contra a segregação racial e a indiferença. Essa questão merece ser refletida.
Uma vez que estamos falando do compromisso também com a teoria, Bhabha
traz mais um argumento:

É um sinal de maturidade política aceitar que haja muitas formas


de escrita política cujos diferentes efeitos são obscurecidos quando
se distingue entre o “teórico” e o “ativista”. Isso não significa que o
panfleto utilizado na organização de uma greve seja pobre em teoria,
ao passo que um artigo especulativo sobre a teoria da ideologia deva
ter mais exemplos ou aplicações práticas. Ambos são formas de dis-
curso e nessa medida produzem, mais do que refletem, seus objetos
de referência (BHABHA, 1998, p. 46).

Não precisamos ir muito longe para entender que a falta de reco-


nhecimento em torno do pensamento indígena parece mesmo enraizada
na ausência de solidariedade das sociedades imaginadas como nacionais.
Por isso, Darcy Ribeiro (1995b, p. 14) expõe a sua indignação com ironia:
“Somos uma nação etnicamente unificada e coesa, sem qualquer contin-
gente oprimido a disputar autodeterminação”. Se alcançarmos o estágio de
reconhecer o outro reconhecendo a nós mesmos, é provável que nos tor-
nemos “criaturas literárias” e/ou “animais políticos”, como sugere Bhabha,
lembrando-nos que “devemos nos preocupar com a compreensão da ação
humana e do mundo social como um momento em que algo esta' fora do
controle, mas míofom da possibilidade de organização” (BHABHA, 1998, p.
54, grifo do autor).
Essa problematização vem reforçar a noção de abordagem periférica
acerca do entrelaçamento literatura/história na estética dos excluídos: espe-
cificamente, a literatura indígena que, por sua natureza, pode ou não ser lida
entre as manifestações dos chamados pós-modernismo, pós-colonialismo e
outros tantos pós- e pré-fixos que, via de regra, Vêm se instalando no arca-
bouço teórico dos textos literários ocidentais. De fato, o modernismo e o

63
m.

CCTÇÍRAÊC'NTOS DA LÏTERATURA INDÍGENA ÍÂ I"; 'ï f 1' ¿"LEA NO BRASJL

colonialismo não deixaram de existir. O modernismo e o colonialismo conti-


nuam fazendo as suas travessias, sacralizando a arquitetura do preconceito, ou
como nos ensina Eliana Lourenço de Lima Reis (1999, p. 14): “a chamada li-
1-

teratura pós-colonial não consegue, assim, escapar ao neo-colonialismo”, mas


os estudos críticos “mais recentes” tendem a considerar que:
re* zm-

o prefixo pós de pós-colonialismo não significa o fim do colonialismo,


mas a inserção num contexto de internacionalização do mercado —
inclusive do mercado de bens culturais. Afinal, depois do processo de
globalização iniciado pelo imperialismo, não há como separar a histó-
ria das antigas metrópoles das histórias dos povos colonizados e nem
se manter o antigo conceito de Estado-nação (REIS, 1999, p. 14).

2.2.2 (Re)imaginações: confluéncias


Os aspectos intensificadores da literatura indígena contemporânea no
Brasil remetem à auto—história de resistência, à luta pelo reconhecimento dos
direitos e dos valores indígenas, à esperança de um outro mundo possível, com
respeito às diferenças. O reconhecimento desses aspectos perpassa na contribui-
ção de escritores(as), pesquisadores(as) e artistas que se identificam com a causa
indígena, particularmente, aqueles(as) que se empenham em transmitir e “tra-
duzir” com apurada sensibilidade a poética de tradição oral dos povos indígenas
no Brasil e na Ameríndia. Nesse contexto, ternos Aracy Lopes da Silva, Aryon
Rodrigues, Barromeu Meliá, Berta Ribeiro, Betty Mindlin, Curt Nimuendaju,
João Pacheco de Oliveira, Júlio Cezar Melatti e Nunes Pereira, entre outros. As
suas contribuições são prova de uma leitura não equivocada sobre as diferentes
sociedades indígenas. Sem dúvida, haveria uma lacuna na história indígena se
não fosse o olhar diferenciado desses estudiosos acerca do pensamento indígena.
No que diz respeito ao trabalho de tradução e/ou de adaptação do tex-
to extraocidental ou texto literário indígena, o poeta e ensaísta Haroldo de
Campos (1999) explica em que consiste esse processo que ele denomina de
“transcri(a)ção” e, em casos específicos, de “(re)imaginação”. Ao mostrar que
a literatura é feita de literatura, o ensaísta observa que esse processo se aplica
à poesia indígena, africana e chinesa, ressaltando que essas literaturas devem
participar do contexto da tradição brasileira, da poesia em geral.

64
Í ET ¿TIDADES E UTOP‘AS

tradu-
No caso da transcri(a) ção, o poeta afirma que não se trata de uma
so de tradução “hiperfiel”
ção despreocupada corn o original, mas de um proces
ao aspecto
ao original. Essa fidelidade não é apenas ao conteúdo original, mas
izado. Nesse
formal microestrutural desse conteúdo, a tudo que esta semal
pondências
processo reside “uma organização interna, jogos sonoros, corres
gramático-morfológicas que devem ser recriados”, diz Campos (1999, p. 25)
bastante es-
ressaltando adiante que emprega o termo reimaginação em casos
chinesa,
pecíficos, isto é, como ele sugere que deva ser na tradução da poesia
uma coisa mais parafrasica . Campos observa que:
t - I h ”
(E

pode ser
o chinês, sendo urna língua tonal, de quatro tons, não
reproduzida por nenhuma lingua ocidental. Essa dimensão sofis—
canto.
ticada faz com que a poesia chinesa soe sempre como um
[Desse modo, Campos propõe] reimaginar essa tonalidade na for»
o
ma de orquestração, transformando aquilo em verso livre, usand
de
eventualmente uma rima, reproduzindo em português os jogos
organização gramatical (idem).

tório
As adaptações de mitos e lendas indígenas oferecem um reper
er ao mercado
vastíssimo, embora algumas pareçam mais propícias ern atend
discurso
editorial destinado ao público infanto-juvenil. Em geral, resultam no
paradi-
folclorizado em torno da tradição oral indígena nos chamados livros
indígenas
dáticos. Dos trabalhos de tradução e de adaptação das narrativas
Campos,
que se aproximam da reimaginação e da transcri(a)cão teorizada em
ados em
cumpre sublinhar por exemplo: os mitos Yãnomami metamorfose
do concre-
poemas na antologia organizada por Mário Chamie (1978), poeta
'f

adaptação
tismo brasileiro responsável pela coordenação de edição, título e
de Luis
desses mitos. Outro exemplo remete ao enfoque identitário nos livros
de Ciça
Galdino (1985), à reimaginação que brota do trabalho semiótico
's.m=

ra de
Fittipaldi, na sua adaptação dos mitos amazônicos, e à imaginação criado
pé.
Aline Bittencourt (1984), ao narrar as aventuras do herói Tapira
s)
E mais ainda: temos a reimaginação do “quarup” (festa dos morto
índios Guarani,
em Antonio Calado (1984), os mitos e cantos sagrados dos
r dizendo, rei-
em Pierre Clastres (1990), a poesia Guarani traduzida, melho
ório de
maginada por Josely Vianna Batista e Luli Miranda (1996). No repert
65
se'
a
«Hum-mun-

CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CÏÏÏÉ'Iï' ÍV "¿NEA NO BRASIL

expressáo portuguesa de “além—mar”, uma transcri(a)ção se destaca: a poesia


ameríndia revisitada por Herberto Helder (1997).

2.2.3 Indianidade e diáspora


Justifica-se rotular de subliterários os mitos indígenas? Até que ponto a
literatura indígena pode ser considerada um fenômeno cultural recente? Por
que as literaturas indígena, afro-brasileira e mestiça reivindicam um lugar e
rejeitam o dogmatismo e a visão eurocêntrica? Quando saímos do lugar de
origem, jogamos nossas raízes ao vento?
Nos códigos das cidades letradas,31 a literatura indígena e a literatura
africana (oral, ou escrita) não ocupam as vitrines porque problematizam as
diferenças, subvertem a noção predominante que é a de rotular as literaturas
extraocidentais de discurso “subliterário”. No estruturalismo, trata-se de um
A

“discurso efetuado por microssociedades de tipo arcaico (ou por grupos sobre-
viventes)”, como definem Greimas e Courte's (s.d, p. 263). Em contraponto à
visão etnocêntrica, as literaturas indígena, afro-brasileira e africana de expres-
são portuguesa redefinem as funções do contador de histórias, denunciando a
diáspora, a opressão linguística e cultural como fazem os narradores na “con-
tação de histórias” de Daniel Munduruku, Olívio Jekupé, Renê Kithãulu,
Yaguarê Yamã e a voz indígena na poética do exílio em Eliane Potiguara e
tantos outros que compartilham do diálogo multie'tnico.
A diversidade cultural, as fronteiras, os deslocamentos e os seus contra-
pontos dão conta de que uma das funções da contraliteratura (literatura das
minorías?) é interpretar a consciência coletiva e nacional e convocar a uma
solidariedade ativa, como sugere Zilá Bernd (1988) em seu estudo dedicado
à literatura negra. Essa desobediência aos paradigmas permite “que venha à
tona o homem concreto e sua denúncia, [embora a tendência seja a de se
manter] nas fronteiras da marginalidade, se não completamente marginais”
(BERND, 1988, p. 42—45).
Nessa instância, as fronteiras do texto dão conta de um processo cru-
cial: a diáspora indígena. O termo diáspora, segundo james Clifford (1997), é

31 Expressão usada pelo uruguaio Ángel Rama (1985).

66
I: ENTIDADES E UTOPÍAS

:nuito evocado por grupos étnicos deslocados que sentem uma


conexão com
3 lugar de origem. Esse sentimento de conexão deve ser forte
o suficiente para
:esistirem ao processo de deslocamento, perda e distanciame
nto. A noção e
3 sentimento em torno do processo diaspórico podem
ser “traduzidos” ou
possivelmente explicados com base na tensão de Viver em deter
minado local,
:nas com o pensamento voltado para o lugar de origem. Em
princípio, é o
que sugere Clifford. Porém, ao tentar estabelecer uma relação entre
diáspora e
tribo, ele pergunta: “quanto tempo uma pessoa leva para se torna
r indígena?”.
Não se trata de uma pergunta política, como ele pretende,
mas uma questão
:apciosa, essencialista, que se confirma no conceito de raízes
que ele procura
formular Subestimando a relação entre identidade/ alteridade no
que se refere
aos povos indígenas.
A visão de Clifford parece excludente ao considerar que
o senso de
raízes que tem o indígena (referindo-se às primeiras nações)
é precisamente
o que falta nos grupos diaspóricos. Em suas contradições, ele
admite que a
oposição entre diáspora e tribo não é absoluta, pois não
é possível definir
quando ocorre diáspora, claramente. Em suas afirmações, esse
processo não
existe na cultura indígena. Em outras palavras, “Tribal cultures
are not dias-
poras”32 (CLIFFORD, 1997, p. 254). Se esta e' uma
noção pós-moderna,
pós-colonialista de cultura, que outros “isrnos” devemos utiliza
r para (re)defi-
nir o “caminho de volta” que alguns povos indígenas no Brasi
l estão fazendo,
“recuperando narrativas tradicionais e resgatando [_..] o modo
antigo de ver e
interpretar o mundo”.>35 Onde estão as raízes?
A noção de diáspora, infelizmente, atinge tanto os indígenas
quanto os
judeus, africanos, muçulmanos e outros povos excluídos. Isso
também quer
dizer que “todas as culturas são de fronteira” (CANCLIN
L 1998, p. 348).
Essa questão nos permite aplicar à luz de Ortiz e Ribeiro
(quanto aos con—
ceitos de transculturação e transfiguração) o termo /azfenz'zaçáo
para explicitar
os possíveis efeitos positivo e negativo do processo. No camp
o da literatura

32 CE CLIFFORD, 1997, p. 254: “(Precisely how long it takes


to become indigenous is always a po-
litical question.) Tribal cultures are not diasporas; their sense
of rootdness in the land is precisely what
diasporic peoples have lost.”
33 MUNDURUKU, ZOOOa, p. 71.
1. ua;

67
C0 NTRAPONTOS DA LITERATURA iNDÍGEN/l. CCH—Él” Í "¿ÁREA NO BRASIL

e dos estudos culturais, o /Jz'fen pode adquirir outras configurações, pois já


não se trata simplesmente de um sinal gráfico horizontal que une e/ou separa
palavras; mas trata-se do interdito configurando uma Zona de conflito, de
intermediação. As entrelinhas do texto literário dão conta de que a hifeniza-
ção (em contraposição ao sentido denotado nos dicionários e nas gramaticas)
sugere um signo de múltiplas significações, de hibridaçóes.
Se, por um lado, a hibridaçâo alude à negatividade que revela o deslo-
camento resultante do aparato tecnológico, globalizante e dos podres poderes
_ oblíquos (CANCLINI, 1998, p. 345), por outro, parece criar laços, se pensar-
mos na positividade do diálogo multiétnico. Mas os poderes se alastram por
territórios (indígenas) e subsolos, visando à sua comercialização. As tramas
desse processo, em termos globalizadores, vêm intensificado o neoliberalismo
e o neoconservadorismo aos quais estäo expostos os povos indígenas e outros
excluídos.
O lado positivo do processo, embora apresente uma composição di-
ferenciada de fronteiras, tende a configurar outros recursos: a reunião, a
reorganização, o reconhecimento e o ressurgimento dos povos indígenas, por
exemplo. Pode ser utopia, mas esse mundo possivel se daria pelo dialogo (sem
hifens, isto é, com o apagamento de fronteiras). Assim nos parece esse aspecto
da bzfenizaçâo no caminho de volta dos povos ressurgidos, entre estes: os Po-
tiguara no Ceará; os Katoquim, em Alagoas; os Kambiawá, em Pernambuco
e outros ressurgidos nos últimos 25 anos, de acordo com os dados do CIMI.
Apesar da ALCA e de outras forças contrárias, os excluídos marcham e mul-
tiplicam-se na luta pelo direito à terra (propriedade coletiva) e à palavra porque
a palavra também fertiliza a terra. Perde-las (a palavra e a terra) “significaria
perder a própria história coletiva, a própria identidade, enfim, o próprio sig-
nificado que orienta as relações sociais do indivíduo dentro do grupo e da
comunidade em relaçäo às demais e em relação ao próprio mundo simbólico”
(DI FELICE; MUÑOZ, 1998, p. 20). Diáspora, transculturaçâo, hibridis-
mo, /Jz'fim'zózçrão. Os contrapontos mostram que o diálogo deve ser o critério
revelador, “pois em toda fronteira há arames rígidos e arames caídos”, diz
Canclini (1998, p. 349). Como distinguir, entao, os contrapontos em meio à
travessia? O diálogo entre literatura e os diferentes saberes sugerem que as coi-
sas “só têm sentido se ungidas pelo Homem” (LUKÁCS apud DIMAS, 1987,

68
.3 EFLTEDADES E UTOPIAS

oferece a abordagem periférica


p. 43). Nessa perspectiva, mais uma pista nos
seja:
para compreender as formas de exclusão, ou
pós-modernas do mer-
Essa travessia por algumas transformações
i para entender por
' cado simbólico e da cultura cotidiana contribu
ica baseadas em dois
que fracassam certas maneiras de fazer polít
dos processos simbólicos,
princípios da modernidade: a autonomia
popular. Pode ajudar-
e a renovação democrática do culto e do
ralizado das políticas
nos a explicar, da mesma forma, o êxito gene
socializantes ou mais
neoconservadoras e a falta de alternativas
vimento tecnológico
democráticas adequadas ao grau de desenvol
vantagens econômicas
e à complexidade da crise social. Além das
itada por ter capta-
dos grupos neoconservadores, sua ação é facil
s estruturas de poder
do melhor o sentido sociocultural das nova
(CANCLINL 1998, p. 345).

ena com relação aos mi-


No Brasil, os estudos do pensamento indíg
da Antropologia. No campo
tos estão quase sempre incluídos no domínio
ecer o pensamento indígena e o afro
das Letras, cresce o interesse de se conh
estudos literarios. Contudo, isso
-brasileiro, entre outros povos excluídos dos
dessas questões tenha acabado.
não quer dizer que o preconceito em torno
5, p. 10), “hoje, as coisas não mu-
Em verdade, diz José Carlos Leal (198
enças. As universidades ainda
daram muito, embora já se note algumas difer
as suas portas francamente para este
. prosseguem tímidas com respeito a abrir
ular, a literatura de tradição oral
produto marginalizado”, ou seja, o conto pop
(africana ou indígena).
o possibilidade de apro-
Pensemos a palavra com outros saberes, com
perspectiva, convém sublinhar
z-

l fundar o estudo da literatura indígena. Nessa


eira tese de Doutorado relacio-
o trabalho de Almeida (1999), autora da prim
il. Ela afirma a existência do
nada à atual literatura de autoria indígena no Bras
ionando-o às manifestações dos
movimento politico-literário indígena, relac
xó, Xacriabá e de outros povos
escritores das nações Krenak, Maxakali, Pata
e oralidade e escrita na poesia e
i indígenas. A sua pesquisa enfoca a relação entr
textos que os autores de dife-
na prosa, especificamente, o aspecto coletivo dos
de Capacitação para Professores
rentes etnias escreveram ao longo dos Cursos
as Gerais.
Indígenas (sob a sua coordenação), em Min
69
l
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA C ZÍ‘ÏE'ÜÏÍÏ3,ÏA.ÏJFA NO BRASIL

Um dos traços caracterizadores da literatura indígena converge à noção


de auto-história, fundamentada por Sioui. Na tipologia do gênero (ocidental),
a noção de auto-história (extraocidental) tende a configurar um recorte do hí-
brido, isto é, uma categoria à qual pertencem ou nela estão inseridos os ensaios,
os textos autobiogrãficos, os artigos, os depoimentos, os relatos, as entrevistas,
as cartas, as ilustrações, 'ate' os e-maz'k e outras formas de expressão que os(as) es-
critores(as) indígenas e descendentes utilizam para falar das diferenças culturais,
imprimindo vez e voz aos seus personagens, a sua indianidade.
Neste trabalho que pretende um encontro com a literatura indígena,
a cumplicidade é o método; a solidariedade é ritmo; a disciplina, paixão; o
profetismo, denúncia; a realidade, utopia; um caminho a seguir, se quisermos
e desejarmos realmente compartilhar com as vozes proféticas e periféricas que
denunciam o racismo e toda forma de segregação e apartheid que se espalha
pelo mundo. Portanto, ouvir/intuir a voz do outro é reconhecer-se no proces-
so identidade/alteridade e perceber que “a intuição é a mensageira da alma”,
como afirma Eliane Potiguara em depoimento pessoal. Essa cosmovisão põe
em relevo a ancestralidade — uma linha de força que se estende contra o está-
tico, a indiferença e a repressão.
Tratando-se de diálogo e dessa outra linha de força que é a capacidade
visionária ou intuição, ousamos perguntar: o que é ser poeta, pajé, contador/
_ contadora de histórias, irmãos-de-luta no contexto das sociedades indígenas?
Ao contrário do que se pensa, é esse conjunto de capacidade visionária que
vem mantendo a tradição oral e organizando-se, também, por meio da
literatura escrita. Convém sublinhar que e' dessaforma, também, que se 'traduzi'
o ora! na escrita. O que se depreende desse processo junta—sc a outros temas e
situações identitárias que fomentam o diálogo nas pequenas e grandes aldeias
e nos textos teóricos e literários dos(as) escritores(as) indígenas e descendentes
que representam essas aldeias. Um exemplo dessa capacidade configura—se
nos manuscritos do subcomandantc Marcos. Da convivência em Chiapas, os
pesquisadores Di Felice e Muñoz (1998) constataram que nos manuscritos
desse visionário se juntam:

diferentes estilos literários, mas sobretudo linguagens heterogê-


neas, que unem a simbologia mítica dos descendentes dos maias
:ENTlDADES E UTOPlAS

re,
ericanos e europeus. Shakespea
aos estilos literarios latino—am
erico Garcia
rquez, Pablo Neruda, Fed
Pavese, Gabriel Garcia Ma um
os contos do ‘Velho Antonio',
Lorca [m] se misturam com
os da cosmogonia maia, e corn
velho pajé indígena que conta mit de vida e dos
MW
unidades, do estilo `N
a narração do cotidiano das com Z, 1998,
atistas (D1 FELICE; MUÑO
valores que orientam os zap
p. 22-25).

r
luídos em Chiapas permite aborda
Essa visão do mundo acerca dos exc , “um
lica, segundo Walter (1999a, p. 77)
a dinámica da hifi’nz’zagáo que imp ir um
turais”, visto que o desafio é constru
desafio enorme para as ciências cul orien-
ta das diferenças culturais. Nessa
espaço à focalização não essencialis âneas
ro das vozes ancestrais e contempor
tação, portanto, vamos ao encont o corn a
ígena no Brasil, porque o trabalh
nos textos literários de autoria ind univer—
“o abandono de modos de pensar
literatura (indígena ou não) exige ltural é
stas e a rev isâo daq uele s mé tod os nos quais a transferência intercu
sali a re-
car act eriz ada pel o inte rcâ mb io entre nações delimitadas, cada um
ainda l”
tan do um esp aço inte gra do a um poder central e uma unidade. menta
presen
(idem).

2.2.4 Diálogo multiétnico


ígenas vivenciaram a impossibilidad
e nas! .-
Ao longo da história, os povos ind de 500
pria língua. Na questão dos mais
de escrever livremente em sua pró rín—
sendo o único caminho para [o ame
anos, “a memória oral continuou Rojas
história”, afirma Rodrigo Montoya
dio] guardar, pelo menos, parte da chuas”.34 Ele
mória y olvido en los Andes Que
(1998), no artigo “Historia, me onial
s indígenas dentro do império col
comenta que a coexistência de elite
_

ria oral
tritas para que uma parte da memó
abriu possibilidades ainda que res uns
pelos primeiros mestiços e por alg
dos povos americanos fosse escrita
a s las

quíchuas.

Dra. Janice Theodoro e da equipe


eveu esse artigo .r ronvire da Profa.
M Ci. Rodrigo Montoya Rojas escr s e Ciências Humanas da Uni-
g

to de História da Faculdade de Letra


de Hist ória virtu al do Dep arta men
mbro de 1998.
versidade de São Paulo, em nove
71
EH?!
CONTRAPONTOS DA LITERATURA lNDÍGENrï L 7 1'37: "¿ÁREA NO BRASllV

Garcilaso de la Vega, el Inca,“ Guamán Poma de Ayala e Titu Cusi


Yupanqui são exemplos notáveis da historiografia andina. Exilado na Espa-
nha, onde morreu em 1609, o Inca mestiço escreveu o outro lado da história
indígena contrapondo o que fora narrado pelos cronistas que receberam
a incumbência da coroa espanhola para mostrar os Incas como selvagens,
pagãos, sodomitas e indignos de respeito, a monarquia proibiu a leitura da
história escrita por De la Vega e, consequentemente, o uso do quíchua e das
vestimentas da época incaica. Em 1781, os quíchuas são levados à pobreza
e ao analfabetismo forçado com a morte do líder Túpac Amaru (ROJAS,
1998).
Há milhares de anos, a vocação enunciativa dos povos indígenas ecoa
como sinal de sobrevivência e continuará ecoando contra os conflitos gerados
pela cultura dominante. Com essa preocupação, o ativista Cacique George
Manuel reagiu ao Projeto de cidadania canadense reunindo milhares de vozes
tribais em Port Alberny, no ano de 1975, quando foi proclamada a seguinte
Declaração Solene dos Povos Indígenas do Mundo (PREZIA; HECK, 1998,
p. 75):

Nós, povos indígenas do mundo, unidos numa grande


¡H

assembléia de homens sábios, declaramos a todas as nações:

Quando a terra-mãe era o nosso alimento


quando a noite escura formava o nosso teto,
quando o céu e a lua eram nossos pais,
quando todos éramos irmãos e irmãs,
quando nossos caciques e anciâos eram grandes líderes,
quando a justiça dirigia a lei e sua execução,
aí outras civilizações chegaram!
Corn fome de sangue, de ouro, de terra e de todas as suas riquezas,
trazendo numa mão a cruz e na outra a espada,
sem conhecer ou querer aprender
os costumes de nossos povos,
nos classificaram abaixo dos animais.

55 CE Montoya, o poeta Garcilaso de la Vega era filho “ilegitimo” de um‘ nobre andaluz conquistador e
de uma princesa da alta aristocracia inca.

72
ÍIEÍ~1TÉDADES E UTOPIAS

a delas,
Roubaram nossas terras e nos levaram P ara lonas
transformando em escravos os “Filhos do Sol".

Entretanto, não puderam nos eliminar, nem nos fazer


esquecer o que somos,
porque somos a cultura da terra e do céu
porque somos de uma ascendência milenar e somos milhões.

Mesmo que nosso universo seja destruído,


NÓS VIVEREMOS,
por mais tempo que o império da morte!

Tecida na solidariedade, a poética declaração que acabamos de observar


é expressão viva contra o projeto canadense de cidadania aos ameríndios, não
menos desastroso que o projeto brasileiro. O primeiro está associado ao surgi-
mento do Livro bmrzcofó em 1969. O seu objetivo é neutralizar definitivamente
a pessoa do Ameríndio (BOUDREAU, 1993, p. 114). Nesse livro, o governo
do Canadá redefine sua política excludente, propondo igualdade, liberdade e
cidadania canadense aos nativos que ocupam o território desde muito antes da
chegada dos franceses e ingleses colonizadores. Isso significa a perda da indiani-
dade, a assimilação e a extinção progressiva dos direitos adquiridos. __
Muito embora o surgimento do Livro branco tenha abalado as associa-
ções políticas e ameríndias e venha gerando, ainda, inúmeras discussões sobre
“mA-19.:.

o assunto, Boudreau (1993) considera que o despertar literário do ameríndio


acontece após a liberação desse livro.
No Brasil, o ptojeto governamental de 1978 propôs também aos
o ca-
nativos (filhos e filhas da terra) uma política semelhante à do govern
em
nadense, ou seja, uma proposta indecorosa de converter os indígenas
cidadãos brasileiros, especificamente aqueles “que estivessem mais próximos
de nossa cultura, numa segunda edição da política do Marquês de Pombal.

indígenas: Os Inuit, que


3° No Canadá, a Constituição só reconhece a existência de três grandes grupos
os Métis (descendentes da miscigena ção entre os nativos e
vivem em pequenas comunidades no Ártico;
s de Manitoba , Saskarch wan e Alberta; e os Índios, também de-
os franceses) que habitam as província
em reservas e 40% em centros
nominados de First Nations. Dessas nações, aproximadamente 60% vive
urbanos (O Memzzgeim, n. 110, p. 9).

73
Si;
4
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CIR??? Í ¿CEA NO BRASIL

Se no século XVIII a conseqüência desta medida foi desastrosa, em nossos


dias seria o atestado de óbito de um grande número de nações” (PREZIA;
HOORNAERT, 2000, p. 207).

2.3 ESCRITOR(A) INDÍGENA: TEMA E slTuAçõEs


Uma de nossas preocupações é abordar a propriedade intelectual indíge-
na, por isso consideramos oportuno observar alguns aspectos da periodizaçâo
da literatura indígena e a situação dos escritores no Brasil: o papel que eles
desempenham, como são vistos pela sociedade envolvente, como seus livros
passaram a integrar a sociedade industrial e de consumo no país e como vivem
diante da realidade que os cerca.
Estudar a periodização das literaturas indígenas, dicionarizar seus auto»
to
res é uma perspectiva futura. A priori, permitimo-nos afirmar que o conjun
de manifestações literárias de autoria indígena produzido no Brasil sugere dois
momentos singulares: o período clássico referente à tradição oral (coletiva)
que atravessa os tempos com as narrativas míticas e o período contempo-
râneo (de tradição escrita individual e coletiva) na poesia e na “contação de
histórias” com base em narrativas míticas e no entrelaçamento da história (do
ponto de vista indígena) corn a ficção (em fase de experimentalismo).
Comecemos pela década de 1970, período de gestação da literatura
indígena contemporânea no Brasil e no qual praticamente não se falava da
existência de manifestações literárias de autoria individual indígena. Falava-
se do discurso indígena, tema dos mais estudados, no âmbito da linguística.
Dessa área, permitirme—nos citar as contribuições de três professores da Uni-
versidade Federal de Pernambuco, onde há vários anos (ao longo das décadas
de 80 e 90) dedicamo-nos ao estudo do pensamento indígena junto ao Núcleo
mencionar
de Estudos Indigenistas — NEI/UFPE. Dos pesquisadores, cabe
Adair Pimentel Palácio, que estudou os Guató; Gilda Maria Lins de Araujo,
que analisou a fala de Mário Juruna, Ailton Krenak e Raoni (três lideranças
indígenas), Francisco Gomes de Matos, voltado aos Direitos Linguísticos, e
Núbia Borges, que, junto ao NEI, incentivou estudos acerca da cultura dos
povos indígenas; nesta perspectiva, o acervo do NEI foi indispensável para
trilharmos o caminho da militância em prol da causa indígena. Nessa época, a

74
IDENTIDADES E UTOPIAS

literatura contemporânea de autoria indígena era praticamente desconhecida.


Na busca de textos de autoria indígena, isto é, dos historicamente excluídos, a
quantidade de artigos e livros referentes à história e `a cultura indígenas mos-
traram uma rajada do preconceito.
O artigo “Literaturas contam história de duas Américas”, de Norma
Kouri (2000), traz um elenco de obras e autores; entre estes, alguns brasileiros.
Apresentando um breve histórico dos acontecimentos, Kouri discute o pro-
blema da depressão dos Estados Unidos entre a Primeira e a Segunda Guerra
Mundiais, traça um perfil dos anos 1960 e observa que o Brasil não teve a
geração beat, ressaltando que esse movimento, entre outros, foi determinante
nos questionamentos acerca do lugar do outro na literatura americana. Dai
uma “literatura marcada por guetos: judeus, gays, indios, mulheres, negros e
étnicos (sic). Os guetos viraram subguetos e subdividiram-se num mar de plu-
ralidade cultural”, diz Kouri (2000). Ora, se não tivemos uma geração beat,
tivemos uma geração de perseguidos, torturados e desaparecidos nos “anos
dourados” que a mídia globalizada não conta. Canclini aborda com clareza
politica essa questão:

Seriam dois milhões, de acordo com as cifras mais timidas, os


sul-americanos que por perseguição ideológica e sufocamento eco-

nômico abandonaram nos anos 70 a Argentina, o Chile, o Brasil
e o Uruguai? Não e' por acaso que a reflexão mais inovadora sobre
a desterritorialização esteja se desenvolvendo na principal área de
.anna

migrações do continente, a fronteira do México com os Estados


Unidos (CANCLINI, 1998, p. 512).

No panorama brasileiro, Kouri (2000) observa que tivemos “uma de-


pressão permanente aliviada por milagres econômicos como o dos anos 70
— que, afinal, era mentira. [Os brasileiros viveram] de 1968 até quase os
anos 80 sob censura”. Pesaram tipos de censura: “a leve, [...] a psicológica,
num

a troglodita e, quando terminou, viveram durante muito tempo os efeitos


da autocensura”, diz Kouri (2000), observando que a produção literária nas
Américas, mesmo feita dentro de um mesmo continente, apresenta profundas
diferenças nas quais se reflete a história dos movimentos. Nesse sentido, ela
_

considera que:
A:_nl
g
i
4-...

CONTRAPONTOS DA LlTERATURA INDÍGENA CTI—51";"¿‘{EZANO BRASIL

los] movimentos construíram a literatura americana e a brasileira,


racharam ou aproximaram as duas Américas, a de cima quase sem-
pre influenciando, mas ignorando a de baixo. A que teve a sorte
de nascer em língua inglesa espalhou-se pelo mundo, a de origem
MH;-

lusitana com pitadas indígenas e africanas confrnou-se aos próprios


mitos (KOURI, 2000).

Ocorre, porém, que no artigo de Kouri a única referência a escritores


indígenas vai para o índio americano N. Scott Momaday. Considerando a data
em que foi escrito, o artigo apresenta algumas contradições e, ao mesmo tem-
po, prova a omissão e/ou a falta de (re)conhecimento da autora no que diz
respeito às obras de literatura indígena no Brasil, publicadas nesse período. Esse
artigo reflete o que ela mesma ignora: “a [literatura] de cima quase sempre in-
fluenciando, mas ignorando a de baixo”. E mais ainda: o preconceito literário
confirma-se, claramente, na passagem em que a autora declara que “O Brasil
não teve a geração beat, mas e' um mundäo, explicado por Gilberto Freyre a
mw

partir de Casa Grande 8C Senzala, antropologia com estilo literario” (KOURI,


2000). Concordo com a noção de Kouri no que diz respeito ao estilo literário de
Freyre na referida obra que é considerada um marco da cultura brasileira. Con-
tudo, esse marco configura, infelizmente, outra forma sutil de racismo e poder.
Para Silvia Cortez Silva (1995), o mais perigoso preconceito é o da in-
diferença.37 Na polêmica análise que faz da referida obra de Gilberto Freyre, a
professora Silva mostra que o Mestre de Apipucos subestima índios e negros,
judeus e mestiços. Os estereótipos incapaz, molengo e movediço mostram, cla-
ramente, o tipo de respeito que Gilberto Freyre dispensa ao índio. E a exceção
no tratamento, qualquer que seja o eleito, parece falsa, diz Silva questionando
os contrapontos desse tratamento que se estende no duvidoso reconhecimen-
to dos bandeirantes quanto ao “ardor guerreiro” dos povos indígenas que lhes
prestaram serviços (SILVA, S. C., 1995, p. 58).
A visão excludente de Freyre eleva o negro “a urna condição semelhante
ao português colonizador. O escravo africano colonizado, [torna-se] agente

3‘" Cf. interlocução da Professora Silvia Cortez durante a minha defesa do presente estudo, em 12 mar.
2003.

76
:ENTIDADES E UTOPIAS

colonizador dos índios” (SILVA, S. C., 1995, p. 50). O fato é que a noção
do eleito em Freyre configura um parámetro racista e aristocrático. Em ou—
tras palavras: “há índios e índios, como há negros e negros, [..] ha judeus e
judeus [n]. O sudanês foi, sem dúvida, o negro eleito! Ou seja, dos negros o

1
melhor!” (SILVA, S. C., 1995, p. 50). A percepção de Silva acerca do tempo
e da história na referida obra de Freyre revela uma grande e triste metáfora: “a
senzala [é] a grande excluida [...]. Ausente do texto freyriano não pode deixar
para a posteridade as suas tristes Vivências: foi um nar/.io negrez'ro ancorado em
term” (SILVA, S. C., 1995, p. 57, grifo da autora).
Os escritores indígenas no Brasil vêm, por muito tempo, expondo sua
visão de um vasto mundo que, em geral, todos desconhecemos. Isso faz ver que
a necessidade de falar e escrever em seu próprio nome é também um mecanis-
mo de defesa contra “intermediários e intérpretes indesejáveis ou mesmo pouco
atentos”, como observa Iokoi (1999, p. 42), acerca do discurso de Marcos Te-
rena. Uma vez que “os índios foram obrigados a defender a sua concepção de
cultura, de identidade e de visão de mundo,” as próprias comunidades indígenas
procuraram investir na formação de seus parentes, mesmo que essa formação
seja realizada “na lógica da cultura branca, como foi o caso de Marcos Terena
[..] Ailton Krenak” e de muitos outros, observa Iokoi (1999, p. 42).
Fruto das preocupações de Marcos Terena, o Instituto Indígena Brasi-
leiro de Propriedade Intelectual - INBRAPI38 foi criado em maio de 2002.
Participam dessa organização os escritores Darlene Taukane e Daniel Mun—
gâl-ëi

duruku, entre outros defensores dos direitos linguísticos, literários e humanos


dos povos indígenas. O surgimento do INBRAPI faz crer na possibilidade de
que as ONGs e os missionários estrangeiros deixem de interferir nas socieda-
des indígenas da forma que têm feito até hoje. Por isso mesmo, os pensadores
“Qu!

33 O Instituto Indígena Brasileiro da Propriedade Intelectual é uma ONG que foi criada em maio de
2002 e dirigida por indígenas de diferentes etnias. Sua proposta principal e' a defesa do conhecimento
tradicional e o combate a biopirataria. Sua diretoria está assim organizada: Presidente: Vilmar Guarany
Advogado; Vice: Darlene Taukane — Mestre em Educação; Secretária: Lúcia Fernanda Kaingang
-
Advogada; R. Públicas: Daniel Munduruku - Filósofo. O INBRAPI conta com o apoio de mais de 100
pajés e caciques de diversas etnias. Seu conselho é composto por nomes conhecidos nacional e interna-
cionalmente como: Ailton Krenak, Marcos e Jorge Terena, Getúlio Kaiowá, entre outros. Sua sede é em
Brasília. Disponível em: <inbrapi@uol.corn.br>. Acesso ern: 12 dez. 2002.
‘D‘fl

77
4-...

CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CCÏÏE'ÜïÏz‘íïlïA NO BRASIL

indígenas continuam se perguntando a respeito dos 5 milhões de parentes


desaparecidos, cerca de novecentos povos. Hoje, são 350 mil, afirma Terena,
enfatizando o descaso do governo com os povos indígenas:
“4-4.

O governo brasileiro tem uma grande dívida com os povos indíF


genas. Imprescritível e impagável. Como a gente vai ressuscitar os
novecentos povos que desapareceram? Então, a gente olha pro siste-
ma de governo e a gente vê que ele cria um ministério pra onça, pro
jacaré, ele cria um ministério para os sem—terra, um ministério pro
esporte. E para os índios? Ele da urna Funai desse tamanhozinho e
anualmente os recursos da Funai são cortados em 60 por cento. A
Funai é o único sistema de governo que trabalha corn 180 línguas
indígenas e ela só tem um indigenista, um lingüista. Quem domina
a língua indígena no Brasil são as organizações americanas missio-
nárias através de uma instituição chamada Instituto Lingüista de
...-Ba

Verão. [..] — Summer Language Institute. [...] Se você quiser apren-


der a falar xavante, vai lá que tem um americano que vai te ensinar
Xavante, se você quiser aprender nhambiquara, vai lá que tem um
alemao que vai te ensinar o nhambiquara. [...o trabalho deles] é
basicamente religioso, tradução da Bíblia.”
w

Na década de 1970, uma geração de poetas brasileiros foi rotulada


de marginal por contestar o marasmo ou o mar asmático das academias e
de outras representações do meio literário, digamos, dominante. À margem
desse movimento de vanguarda, a escritora indígena Eliane Potiguara mostrou
também a “cara” da poesia indígena no Brasil. Na época, muitos dos parentes
de sua etnia e de etnias diferentes ignoravam e alguns desconhecem, ainda
hoje, a existência de sua poesia. Contudo, a história de resistência de sua
família e de outros parentes indígenas e índios-descendentes foi a gota
d'água para Eliane Potiguara expor o poema “Identidade indígena”, escrito
em 1975.
É possível dizer que o referido poema inaugurou o movimento li-
terário indígena contemporâneo no Brasil e continua sugerindo um grito

39 Entrevista de Marcos Terena à revista Caros Amigas. Disponível em: <http://Www.uol.c0rn.br/carosa-


migos/edicao/ed37/entrevista.html>. Acesso em: 12 out. 2002.

78
[DENTIDADES E UTOPIAS

indígena em meio aos contrapontos da palavra em 1975: ano da morte do


jornalista Vladimir Herzog e da primeira manifestação pública de contes-
tação depois do AI—S. Partindo desse panorama, em plena ditadura militar,
a poesia de Eliane Potiguara pode e deve ser considerada como a Ba mar-
gem da chamada poesia marginal e de outros movimentos libertarios que
propiciam o surgimento de novos leitores e poetas independentes, ou seja,
“independentes na batalha pela divulgação de seus trabalhos: poemas [___]
democraticamente expostos nas ruas e nas praças, em cordas estendidas,
atraindo leitores, transeuntes, curiosos” (HOLANDA, 1982, p. 8). Hoje,
a situação dos escritores e escritoras indígenas (independentes) continua
muito difícil. E mais ainda: levando em conta também o alto índice de
analfabetismo no Brasil, os escritores leem a si mesmos.
Outro ângulo da situação do escritor indígena reside na crônica “Ín—
dio nietzscheano”, de Daniel Munduruku (1996). Ele fala da intolerância,
com base em uma de suas experiências, durante a sua visita aos parentes
Guarani, ao Sul de São Paulo, onde mora o escritor Olívio Jekupé. Da-
niel refere-se à noite que passou corn os Guarani em vigília, ((dançando,
cantando, pintando e ouvindo as vozes dos deuses, que se manifestavam
por intermédio do pajé que batizava as crianças e confirmava os adultos”
(MUNDURUKU, 1996, p. 37) e que, no dia seguinte, após uma manhã e
u

uma tarde tranquilas, a aldeia foi perturbada por uma “santa bagunça” de
i¡.4.

um grupo de evangélicos. Como nao foram autorizados pelos Guarani a


entrar na aldeia, os crentes foram convidados a se retirar. O pastor agrediu
com palavras que tornaram os Guarani e o convidado mais arredios ao seu
argumento. O fragmento que segue remete ao diálogo entre o pastor e o
guaranietzscheano Olívio Jekupé:
_

O diálogo foi mais ou menos assim:


OLIVÏO: Você não tem o direito de vir ate' aqui para pregar em
uma

nome de um Deus que já está morto. Aqui nós seguimos um Deus


vivo que nos oferece a vida.
PASTOR: é mentira. Vocês são ignorantes. Nós temos a salvação.
Nosso Deus é capaz de dar a salvação para vocês. Por isso estamos
aqui, para pregar a verdadeira porta que deve ser aberta para a
salvação.

79
mi

CÍJ‘NTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA C' H'Ê'XÍ , ¿NEA HU ÊiRASlL

OLÍVÏO: Felizmente não precisamos acreditar nisso que você cha-


ma de salvação. Bem se vê que você não entende nada sobre o que
prega. Você precisa ler mais. Precisa fazer filosofia. Há uma multi-
dão de pensadores contrários a tudo isso que Você diz aí. Tudo isso
H__

é bobagem. Nietzsche já comentou que esse Deus que você prega


está morto e foram vocês que o mataram. Portanto não venha pregar
coisas velhas pra nós. Vá embora daqui, que é a melhor atitude que
você pode tornar.

Achei muito interessante a coragem do jovem filósofo em enfrentar argu-


mentos religiosos com outros tão racionais. Acredito que Olívio venceu a parada
mais pela ira santa que o assolou na defesa da cultura guarani do que pelas idéias
do velho Nietzsche. De qualquer maneira, o pastor nunca mais voltou à aldeia
Morro da Saudade para importunar a comunidade. Graças, talvez, à força da
M,

palavra do franzino guarani de nome Olívio (MUNDURUKU, 1996, p. 37).


A discriminação e o preconceito que latejam das inquisiçóes urbanas são
uma forma de inibir os escritores e escritoras indígenas que vêm conquistando,
aos poucos, o seu lugar no mundo. Parece que o tempo da inquisiçâo não pas-
sou. Mas devemos, ao contrário desse tempo, nos situar, pois:
III

[as] Inquisições urbanas condenararn os primeiros moradores da


term brasilis ao fogo. Condenaram sua boa fé. Das terras indígenas
pouco sobrou. E o povo que sofreu (e sobreviveu) com a gripe e a
sífilis se fez forte. Já não se envaidece com as bugigangas dos bran-
cos. E precisa contar a sua versão da História do indígena no Brasil.
A Terra Dos Mil Povos, de Kaka Werá Jecupé, da editora Fundação
Peirópolis, faz isso.40

Essa referência à visão dos mil povos, especificamente ao segundo livro


de Kaka Werá Jecupe,41 mostra — apesar de pouco reconhecido o lugar dos

4° Cf. Correio Brazilimre, 26 maio 1998.


41 Kaka \Verá Jecupe' e' filho de pais Tapuia, ou Txucarramâe. Nasceu em 1964, próximo à represa Billin-
gs, limite da zona sul de São Paulo. De 1989 a 1992 atuou na Aldeia Morro da Saudade em São Paulo,
apoiando os Guarani na Construção do Centro de Cultura Indígena. Em 1996 foi convidado pela
Universidade de Oxford (Inglaterra) para falar sobre a religiosidade indígena, e em 1997, a convite da
Universidade de Stanford (Estados Unidos), discursou religiosidade ancestral indígena, em um encon-

80
" SÍ .ÏÍDADES E UTOF’IAS

escritores indígenas no mercado editorial dominante — uma das faces da evo-


lução do movimento literário indígena no Brasil. Essa evolução revela-se em
muitos aspectos: na propriedade intelectual de autores indígenas que atuam,
também, como articuladores de fóruns sobre a questao de gênero e direitos
indígenas e de eventos literários, conforme observamos em Eliane Potiguara;
na editoria dos próprios livros e/ou dos livros que os parentes da mesma etnia
e/ou de etnias diferentes escrevem, conforme observamos no projeto “Palavra
de Índio”, um selo editorial do escritor Daniel Munduruku.
Não é ` toa que os(as) escritores(as) indígenas apareçam no mercado
editorial, em produções teatrais, em documentários mostrados em vídeo, em
fundações culturais e organizações não governamentais representativas, com
o objetivo de consolidar o resgate e a difusão da sabedoria atual e milenar dos
povos indígenas no Brasil e, por extensão, difundir o saber ancestral e con-
temporâneo dos parentes indígenas na América. Desse modo, o escritor Kaka
Werá Jecupé fundou, em 1992, com Roman Ketchua, Daniel Munduruku
e outros parentes uma comissão intertribal para lutar pela cidadania cultural
indígena.
Em 1994, W jecupé criou a Nova Tribo, sem perder de vista os princí-
pios difundidos pela comissão intertribal. Nesse mesmo ano, publicou o seu
primeiro livro, Todas as vezes que dissemos adeus, e realizou uma peregrinação
a.

ao norte do país, ampliando a sua busca, à luz da sabedoria dos parentes in-
dígenas amazônicos e dos cerrados. Em outras palavras, a situação do escritor
a".

indígena no Brasil pode ser lida dentro de uma perspectiva que nos remete aos
mais de 500 anos de desencontros, pois “a semente do distanciamento entre
brancos e índios está na estrutura das sociedades: uma cultua o ter e a outra
o ser”, diz o escritor Kaka Jecupe'.42 Reiterando essas observações, permitimo-
I-

nos situar em alguns raros recortes da mídia para lembrar que o livro indígena
não configura uma ameaça às tradições:
una

tro inter-religioso que reuniu duzentos líderes religiosos de todo o mundo. Por meio do Instituto Nova
Tribo, em parceria com a Fundação Peirópolis, coordena uma ação de educação em valores humanos da
sabedoria indígena para os povos urbanos`
«nú

42 Cf. ¡:o 21 jul. 1999.

81
manual-...-

CONTRAPONTOS DA LITERATURA {NDÍGENA CÏ‘ÏEÏ': kÏPÍï‘QEA NO BRAS‘L

Apesar de nunca ter vencido por completo o medo do genocidio,


Kaka conseguiu ameniza-lo quando compreendeu o porquê de tan-
tos séculos de perseguição. As respostas estavam menos nos ensaios
acadêmicos que se habituara a devorar e mais, muito mais, nos ensi-
namentos de pajés que recolheu em andanças pelo país.45

Kaka Werá Jecupe' é um caso raríssímo de escritor no Brasil. Índio


tapuia ou txucarramãe (guerreiro sem arma), como ele prefere, fi-
lho legítimo dos ancestrais habitantes das terras “descobertas” pelos
portugueses, resolveu romper o silêncio de cinco séculos e escrever
a história vista pela ótica dos que habitavam o Novo Mundo há mi-
lhares de anos. O resultado é o belíssimo livro poético-mitologico A
Terra dos Mil Povos, publicado pela editora Peirópolis.44

Educado em escolas de “'branco”, o Txukarramâe Kaka Werá Jecupé


nula-“.5;

registrou as memórias de seus antepassados no livro A Terra dos Mil


povos — História Indígena do Brasil Contada por um Índio. [._.] Os
relatos foram parar no teatro, num curioso e colorido espetáculo. Em
cartaz no Centro Cultural, Oca utiliza os recursos da animação para
mostrar à garotada a origem do universo segundo lendas indígenas.45

As teorias que procuramos interpretar ao longo deste trabalho remetem


a situações hflaridas vivenciadas pelos autores e, ao mesmo tempo, permitem
ilustrar um ângulo da questão identitária relacionada ao deslocamento e ao
lugar, por exemplo. Constatarnos no paratexto das obras indígenas que alguns
autores se autodenominam índio-descendentes; outros se reconhecem índio
-brasileiro, guarani-paraguaio, mestiço, nativo(a) (filho(a) da terra).
Apoiando-nos em Bernd (1988) e em Canciini (1998), foi possível
observar que as diferentes literaturas indígenas citadas aqui trafegam na con-
tramão, porque são obras que surgem nos lugares explorados pela colonização.
Isto significa “novas possibilidades de alianças que reconhecem suas especifici-
dades e diferenças intrínsecas” (WALTER, 1999a, p. 264). Assim nos parecem

‘53 Cf. Fal/Ja de S. Paulo, 03 abr. 1998.


44 Cf. nota n. 21.
45 cf. Veja, 21 jul. 1999.

82
ÉDENTI DADES E UTOPIAS

alguns dos lugares da literatura indígena contemporânea no Brasil, uma lite-


ratura marcada pela inevitável /JÚfem'zaçâo ou transfiguraçäo que une e separa,
ao mesmo tempo, a literatura indígena de língua portuguesa:
Brígido Ibanhes e' de origem Guarani. Nasceu no Paraguai e vive
numa cidade grande, em Goiás, e se autodenomina brasiguaio.
Daniel Munduruku nasceu no Pará. Como ele próprio afirma, nas-
ceu índio e tem orgulho de ser índio, mas vive em São Paulo.
Darlene Taukane pertence ao povo Bkurâ-Bakairi (MT). Estudou
fora da sua aldeia, desde a adolescência. Vive atualmente no perí-
metro urbano de Cuiabá (MT). Embora não tenha voltado à aldeia,
Taukane nunca esteve separada do seu povo.
Eliane Potiguara sofreu a migração. Corn o desaparecimento do avó,
por questões de terra, a família deslocou-se da Paraíba para o Rio de
Janeiro, onde ela vive ate' hoje. Embora não tenha nascido na aldeia,
Eliane nunca deixou de ser Potiguara.
Kaka Werá Jecupé, filho de Tapuias, nasceu em São Paulo, onde foi
iniciado (batizado) pelos Guarani e se autodenomina Txukarramäe,
em alusão aos guerreiros sem arma da família Kaiapó, no Alto Xingu.
Olívio Jekupé, índio descendente, mora na Aldeia Krukutu, ao sul
de São Paulo. Pelo sangue baiano do lado paterno e corn o sangue
materno de origem Guarani, ele se considera mestiço.
Renê Kithäulu nasceu no Município de Comodoro (MT). E Nambi-
un;

kwara e vive entre os Guarani, em São Paulo.


Yaguarê Yamã nasceu na fronteira — entre os estados do Amazonas
e do Pará. Fez universidade em São Paulo. Continua Saterê Mawe'.
No contexto contemporâneo, as manifestações literárias dos povos indíge-
g

nas na América apresentam semelhanças temáticas, principalmente, na questão


relativa aos mais de 500 anos de colonização e outros problemas relacionados
aos chamados temas transversais. No tratamento dado ao tema, pouco se tem
El!

falado da situação dos escritores e escritoras indígenas. Sua situação não é —


como se imagina — um assunto menos importante que outras questões indígenas,
se considerarmos que os autores e autoras (de diferentes etnias) são formadores de
opinião; guardadores dos costumes, do conhecimento ancestral; atuantes, entre
outros, na luta pela demarcação de territórios, na luta pela educação diferenciada,

83
CONTRAPONTOS DA UTERATURA marcam ¿2: '."—;'.'ï4:‘ ¿EA NO BRASIL

pelo direito de expor sua arte, pelo direito à saúde, pelo direito de escrever o
outro lado da história e outras questões pertinentes ao universo indígena.
Respeitando as diferenças, pode-se dizer que as manifestações literárias
indígenas são reveladoras de uma convergência temática, sobretudo no que
diz respeito à Mãe Terra e, com frequência, vêm abordando a relação autor-
texto-leitor e, ao mesmo tempo, denunciando a exclusão e as várias faces da
globalização, do (neo)colonialismo e do analfabetismo46 na América.
Não menos preocupante é a situaçao do escritor no Chile, onde poetas
indígenas não escaparam também desse mal que atinge os chamados “poe-
tas marginais” da sociedade letrada: a triste realidade de lerem a si mesmos,
como observa o poeta mapuche Jaime Huenún (2002), em sua entrevista ao
jornalista José Osório, do jornal El Siglo. Huenún observa, ainda, que são
abundantes os eventos e concursos literários na América Latina, no Chile,
principalmente; mesmo assim, o público leitor de obras indígenas ainda é
uma minoria. Segundo Huenún, essa situação revela:

[que] Los poetas siguen leyéndose a si mismos porque, además de


otras razones, existen más de tres millones de personas que no han
completado la enseñanza básica; más de 64.000 mil niños y jóvenes
desertan del sistema educacional cada año y un altísimo porcentaje
de chilenos es incapaz de comprender y redactar textos sencillos.
El panorama de la creación y la producción literaria, tal vez sea
mejor en términos cuantitativos respecto del que existia en nuestra
“temporada en el infierno” (más libros editados al año, más géneros
cultivados), pero en términos socialmente cualitativos decrece cada
día más, porque no hay interlocutores para esos libros. Creo que
la calidad de un texto no sólo tiene que ver con sus valores litera-
rios intrínsecos sino también con la capacidad de interlocución y
diálogo crítico que pueda generar a nivel social. Son muchos los
factores que influyen en este orden de cosas, sobre todo aquellos
que se dejan caer desde la 'alta política, y desde el poder económico
imperante (HUENÚN, 2002, p. 172).

4° No Brasil, a redução na taxa de analfabetismo, revelada pelo Censo 2000, mostra — por outro lado —
que 13,65% da população com mais de 15 anos e' analfabeta; ultrapassando a taxa dos paises vizinhos.
Na Argentina, a taxa de analfabetismo é de 3%; no Chile, 4%; na Venezuela, 7%. Na Colômbia, o
analfabetismo atinge 8% da população com mais de 15 anos de idade.

84
.ÍEKTIDAD ES E UTOPIAS

Ao estabelecer uma comparação entre os poetas da geração 80 e os da


geração 90, no Chile, Huenún observa que a poesia da década de 1980 man-
tém uma estreita relação com a história e a política; enquanto a década de
'_990 mostra uma geração mais conhecedora da poesia. O foco de atenção é o
'fazer poético, o trabalho com a linguagem, diz Huenún; acrescentando que o
panorama literário no seu país tem se democratizado, considerando que “cada
poeta tiene una voz diferente y tiene que aportar su visión, su sensibilidad,
su escritura. Al mismo tiempo, se ha producido una elitización de la poesía,
sobre todo en el circuito de poetas universitarios”.47

2.3.1 Movimento literário indígena


A linha de caracterização observada por Huenún pode ser associada
as ideias estéticas da literatura indígena contemporânea no Brasil, particu-
Êarmente na década de 1990 e no período 2000/2002 com a produção de
textos individuais, como podemos observar nas obras relacionadas ao corpus
pesquisado.
A produção de texto coletivo de autoria indígena que caracteriza o
movimento literário analisado por Almeida (1999) Continua nos anos subse-
quentes, com edições e reedições de obras resultantes de projetos que propõem
resgatar narrativas míticas e, entre outros aspectos, problematizar a questão
dos 500 anos. São exemplos: o exercício de escrita dos autores indígenas do
¡0-1.

Acre orientado por Antonieta Lindemberg Monte e a produção de textos in-


terculturais que se verifica no cruzamento da poesia Xacriabá com a literatura
de cordel (em Minas Gerais), sob a coordenação de Almeida.
No Brasil, o trabalho com a literatura indígena está apenas (re)come-
çando. O resultado mostra-se proveitoso nurna série de publicações coletivas,
em geral, subsidiaclas pelo MEC e com a participação da FUNAI, e as publi-
cações do CIMI e do Centro de Cultura Luiz Freire entre outras organizações
de apoio aos povos indígenas.
1

n.
47 Cf. HUENÚN, jaime. Entrevista ao jornal El Siglo, do Centro de Documentacion Mapuche,
172, 2002: “cada poeta tem uma voz diferente, uma voz própria, {cada poeta] contribui com sua visão
gh!-

de mundo, sua sensibilidade, seu fazer poético. Ao mesmo tempo, se tem produzido uma elitização da
poesia, principalmente no circuito universitário.”

85
"mms-__.

CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CCI—EXC: PÁWEA NO BRASIL

O conceito de propriedade intelectual indígena implica um conjunto


de diferentes manifestações de diferentes etnias. No campo literário, as mani-
festações apresentam uma dinâmica que se instala ora no fazer coletivo, ora no
fazer individual dos textos. Essa dinâmica alude à passagem entre a oralidade e
a escrita que alguns estudiosos preferem classificar de omture, isto é, oratura —
um termo adaptado, em 1991, à língua portuguesa. Antonio Houaiss chama
de oratura o “conjunto de saberes, fazeres e crenças retidos oral e mneumo-
nicarnente pelas sociedades primitivas, como se de literatura se tratasse, mas
antes do advento das letras e suas decorrências na história do homem. ETIM
omUidúzde) + (1ítem)tum, à feição do fr. Mature” (HOUAISS, 2001, p. 2075,
grifo do autor).
Ao identificar em sua tese a existência do Movimento Político-Literário
Indígena, Almeida (1999) traça algumas características a partir dos textos que
:NLM-.s

foram elaborados à luz das propostas do RCNEI e que foram publicados pelo
MEC, na década de 1990. As origens desse movimento sinalizam o final dos
anos 1970, quando a Comissão Pró—Índio do Acre (CPI/AC) criou a primeira
Escola de Formação de Professores Indígenas com o projeto c‘Urna experiência
de autoria”. Sob a coordenação de Joaquim Mana Kaxinavvai,4 8 esse projeto
ganhou formato de livro com Shenipúzbu Miyuz': história dos antigos, junto a
Organização dos Professores indígenas do Acre — OPIAC (2000). À luz dessa
experiência, Almeida acompanhou a produção coletiva de textos literários dos
Krenak, Maxakali, Pataxó, Xakríabá, em Minas Gerais.
A prática da literatura entre os povos indígenas no Acre e em Minas
Gerais propiciou o surgimento de uma geração de escritores e escritoras in-
dígenas em outros estados brasileiros, mas só os livros de autoria indígena
“subsidiados por órgãos oficiais [...] só em casos excepcionais publicados por
editoras privadas, os livros de autoria indígena fazem parte de utn movimento
político/literário” (ALMEIDA, 1999, p. 14). O QUADRO 3 é uma síntese

43 No artigo “Primeiros passos para uma gramática pedagógica da língua Kaxinwa'.” (Boletim Axeuvyru),
a linguista Adair Palácio registra a permanência de Joaquim Mana na UFPE (de setembro a dezembro
de 1991), sob os auspícios da CPI/AC, da Pró-Reitoria Comunitária da UFPE. Conforme Palácio, o
kaxinwá Mana teve a oportunidade de conviver com estudantes, frequentar o Núcleo de Estudos Indi—
genistas do Departamento de Letras da UFPE, a firn de aprofundar estudos a respeito de sua língua e
vivenciar uma Universidade.

86
ZDENTiDADES E UTOPIAS

da tabela em que Almeida situa as etnias que publicaram livros, até 1997.
Antes da leitura do referido quadro, convém observar o “conceito mais prag-
mático de literatura”, que ela descreve:

[a] literatura indígena no Brasil configura um movimento literário,


na medida em que pode ser observado nos seus aspectos coerentes e
sistemáticos, como um grande texto que se dá a ler. Seus escritores
representam uma população de cerca de 550.000 individuos [...]
um movimento [..] intencionalmente produzido pelas lideranças
intelectuais, e professores indígenas e por intelectuais e professores
“brancos” que têm claramente se posicionado a favor da emancipa-
ção dos povos autóctones. Sua pertinência para os estudos literários
consiste sobretudo em que seu produto principal, “o livro com cara
de índio” é o resultado de um processo de edição. Esta constatação
faz admitir a autoria coletiva e assumir um conceito mais pragmáti-
co de literatura (ALMEIDA, 1999, p. 13—17).

QUADRO 3. Povos indígenas


Estado Povos indígenas
Arara, Asheninka, Katutina do Acre, Poyanawa, Yaminawá,Yawanavá,
Acre . . .
Katukina, Kaxinawa (Peru)
Amapá Waiäpi
Amazonas Sateré-Mawe’, Tikuná Torá, M unduruku, Yanomami l

Bahia KÍrÍrÍ, Pataxó há ha häe, Tuxá l


Bakairi, Bororo, Kaiapalo, Karnayurá, Paresi, Tapirapé; Xavante,
Mato Grosso
Kadiwéu, Kayabi, Kayapó, Cinta-Larga, Nambikwára
Mato Grosso Sul Kadiwéu
Minas Gerais Krenak, Maxakaii, Xakriaba, Pataxó
Pará Munduruku
Paraná Guaranihandeva, Guarani-M`Biá, Kaingang
Rio Grande do Sul Kaingang :
Rondônia Karipúna,TuparifiintafLarga, Narnbikwára à
Roraima Yanomami
Santa Catarina Xokleng, Guarani-M'Biá, Kaingang
São Paulo GuaranifM'Biá,
Tocantins KrahÓ
unc-

Fonte: ALMEIDA, 1999, p. 15-16.

87
Il ll '-

CONTRAPONTOS DA LITERATURA iNDÍGEIJA‘Ï' Í ` ._Í'U'5 "`F`Â_.`~‹`EA NO BRASIL

A distinção entre livro subsidiado ou não por órgãos oficiais nos pare-
ce uma ideia de rejeição impregnada no rótulo “o livro com cara de índio”
que observamos em Almeida. Isto faz ver que o pensamento indígena e o
pensamento indígena-descendente publicados fora do cânone náo atendem
aos critérios institucionais. Se o purismo for o critério para designar a excep-
cionalidade do c(livro com cara de índio”, esse mesmo livro pode não abrir
as páginas para os seus descendentes. Na verdade, são os preconceitos que
desautorizam os livros de autoria indígena-descendente de serem designados,
também, de excepcionais. Até que ponto os livros indígenas subsidiados por
instituições governamentais promovem o reconhecimento dos autores indí-
genas e autores indígena-descendentes? Nosso questionamento parte de uma
constatação: com base na tabela original apresentada por Almeida (1999, p.
15—16), observamos que os Potiguara e outros povos do Nordeste nâo apare-
cem na tabela das etnias que publicaram livros no período que foi estudado
pela autora. Observamos, ainda, que na bibliografia do referido estudo consta
apenas uma breve referência à obra de Munduruku (1996) e de Potiguara
(1994).
Considerando que a prática da literatura (de autoria individual) e' uma
ponta do iceberg em movimento, no contexto da grande história das letras
indígenas, o nosso questionamento é uma forma de reiterar o pensamento do
escritor Ailton Krenak, ao enfatizar que todos estäo “sendo intimados a criar
novas respostas para um grande número de perguntas que não são tão novas
assim” (KRENAK apud ALMEIDA, 1999, p. 14). Tais perguntas são neces-
sárias à apreensão do conceito de escritura coletiva que, em Almeida, implica
uma “expressão do que é comum, ou de um consenso em torno do quem
somos” (1999, p. 18). Essa noção do coletivo nos aproxima do dialogismo em
Bakhtin e, dessa maneira, nos permite também observar que 0 texto indígena
de autoria individual implica um tecido de vozes, pois “todo texto verbal [...]
apresenta como dimensão constitutiva múltiplas relações dialógicas com ou-
tros textos”, diz Aguiar e Silva (1988, p. 624).
No período da pesquisa de Almeida, os povos indígenas de outras regiões
(em Pernambuco, por exemplo) publicaram livros, embora Almeida (1999, p. 18)
afirme que “a supremacia da produção intelectual indígena brasileira está com a
região Norte (Amazonas, Tocantins, Para, Roraima, Rondônia, Amapá, Acre)”.

88
IDEI'ÂTÍDADES E UTOPÍAS

Considerando o trabalho pioneiro de Nietta Monte, iniciado em meados da


década de 1970, corn os povos indígenas dessas regiões, a noção de supremacia
faz sentido: um exemplo vem da Antologia dzzflorestóz, que e' fruto do diálogo
de diferentes etnias nos Cursos de Formação de Professores Indígenas do Acre
1997), sob a coordenação de Nietta Monte. Considerada o primeiro livro de
literatura criado e pensado por autores indígenas, essa antologia divide-se em
três partes: a primeira é dedicada aos textos em prosa de autoria indígena. A
segunda (em Verso) e a terceira (em prosa) reúnem uma seleção de textos de
Íviário de Andrade, Rubem Braga, Manoel de Barros, José de Alencar e outros
nomes da literatura brasileira.
A produção do material didático de apoio às escolas indígenas que foi
editada pelo MEC na década de 1990 mostra uma progressão qualitativa dos
textos que resultaram de atividades didáticas na área de Literatura nos cursos
de formação de professores indígenas junto à Secretaria de Educaçao Funda-
mental. Ainda é pequeno o percentual de livros de literatura indígena que
foram editados pelo MEC, considerando que nesse período um grupo de
autores49 indígenas enfrentou o mercado editorial, por conta própria. Nes-
se contexto, há uma semelhança entre escritores indígenas e não indígenas
(considerados marginais) que bancam o próprio livro. Dessa forma, o escritor
indígena e' levado pelas circunstâncias a produzir urna literatura alternativa,
independente ou, para sermos mais precisos, uma literatura de sobrevivência,
considerando esta urna das características do movimento literário indígena
nos anos 1990.
O catálogo de apoio ao livro didático do RCNEI nâo informa aos usuá-
rios acerca de outros autores indígenas (ainda que independentes), atendo-se,
apenas, aos onze livros que foram editados na década de 1990. Entre estes
constam apenas dois livros classificados como Literatura: O tempo passa e a
história fica, dos Xacriabá (1997), e Txopaz' e [tô/Já, dos Pataxó (1997),
incluídos por Almeida no contexto do movimento político-literário indíge-
na. Outras referências à literatura indígena aparecem na resenha do livro

4” Cf. as obras de Marcos Terena, Kaka Werá Jecupé, Daniel Munduruku, Olívio Jecupe', Renê Nambi-
kwara e Yaguarê Yamã, entre outros.

89
Mun

CONTRAPONTOS DA UTERATURA INDÍGENA CCI—EL”? Í :ÁREA NO BRASIL

Aprendendo portugués nas escolas da floresta, da CPI/AC (1997), no qual se


menciona que as “57 publicações [de diferentes áreas representam] uma nova
literatura indígena em sua fase atual de aquisição e uso da escrita com a con-
comitante valorização dos mecanismos tradicionais de oralidade” (RCNEI,
1998, p. 32). Corn exceção dos livros de literatura entre os 57 que foram
mencionados na resenha, o estudo de geografia dos Ticuna com O livro das
árvores (1997) nos aproxima da surpresa estilística dos Ivai-kms. Com a fauna e
a flora da região ilustradas pelos próprios autores, os Ticuna foram premiados
pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil (FNLU) como autores do
melhor livro informativo e melhor projeto editorial, em 1997.
No Brasil, o saldo positivo dos projetos políticos e pedagógicos pen-
sados e gestados junto às comunidades indígenas e aos grupos de apoio
configura uma resposta a política de assimilação; uma resposta para garantir
¡HM-nz:

os direitos indígenas assegurados no artigo 232, da Constituição brasileira de


1988, propiciando o surgimento dos cursos de formação de professores e o
ingresso de estudantes indígenas, em busca de um espaço diferenciado, nas
universidades.50

2.3.2 Desafios da escola indígena


A construçao de um referencial curricular diferenciado deve definir os
compassos de uma escola. É nessa perspectiva que a edição 49 do Caderno
Cade; (2000) atualiza as questões relacionadas ao RCNEI, ao focalizar a
interculturalidacle entre os aspectos-chaves discutidos pelos educadores
Bartomeu Meliá, Wilmar da Rocha DiAngelis, Gilvan Müller de Oliveira,
Héctor Muñoz Cruz, Rosa Helena Dias da Silva e Paulo Humberto Porto
Borges, entre outros, na edição organizada e apresentada por Angel Corbera
Mori.
Uma leitura das diferenças. Eis a questão ou uma das questões per-
tinentes à autonomia no ensino/aprendizagem nas escolas indígenas e que
exige “dos próprios índios (e também de nós, pesquisadores, assessores, alia-
dos nesse processo de construção e garantia de sistemas indígenas de educação

5° Cf. anexo com o ementário de literatura aplicado no 5° Grau Indígena da UNEMAT.

90
DENTIDADES E UTOPIAS

Dias da Silva (2000, p.


escolar) ainda muita reflexáo”, afirma Rosa Helena
do Amazonas, de
62-75) a respeito do movimento dos professores indígenas
discute no artigo
Roraima e do Acre. Nessa perspectiva, o educador D’Angeiis
a falta de clareza
“Contra a ditadura da escola” o problema do estereótipo e
são do cur-
politica no tratamento da temática indígena. Ele atualiza a discus
“império do senso
rículo escolar, alertando para a necessidade de combater o
nas. Segundo
comum”, considerando que nao há um padrão de escolas indíge
D,Angelis, existe uma diferenciação:
nas estão
bastante grande [...] que em sua maioria, as escolas indíge
es em
em grande descompasso com as necessidades das comunidad
ruim com um
que se encontram e que [...] substituir uma escola
te a
vasto currículo por uma boa escola que ensine só e simplesmen
de con-
ler (e não silabar), a escrever e bem contar é a melhor forma
nas
tribuir efetivamente para a autonomia das comunidades indíge
(D’ANGELIS, 2000, p. 22).
de cruza-
A esse tipo de descompasso, o referido educador chama
ra “enfiar toda a
da, de epidemia educacional, um processo no qual se procu
ho, esse descom-
cultura para dentro da escola”` Por muito que pareça estran
s, garimpeiros,
passo decorre, em parte, da massiva presença de missionário
s, ONGs e
indigenistas, antropólogos, historiadores, professores, especialista
omia dos po-
multinacionais, entre outros, que têm criado obstáculos à auton
os índios Yanomami
vos indígenas; particularmente os garimpeiros, dos quais
as hidrelétricas
foram e continuam sendo as grandes vítimas. Prova disso são
diferentes etnias de
e hidrovias que, em nome do progresso, estão afetando
mentalistas que
norte a sul do país. Como se não bastasse, “as igrejas funda
onar suas tra-
atuam nas áreas indígenas vêm convencendo esses povos a aband
números,
dições e seus rituais” (PREZIA; HOORNAERT, 2000, p. 240). Em
II!“

assessor para cada 70 ou


a presença massiva significa, aproximadamente, um
GELIS,
80 índios, do total aproximado de 250 mil índios, em 1995 (D’AN
2000, p. 23—25).
00 indí-
Na América totalizam 43.139.160 indígenas; cerca de `578.0
o mundo com
genas sobrevivem no Brasil em luta contínua para sustentar
cantos. AS evidencias comprovam O
SCUS I'lÍOS, seus mitos, 81.13 poesía, SCLlS

91
“ha...

CONTRAPONTOS DA LITERATURA lNDÍGENA CI' ._É'f? Í FÁÏ‘EA


NO BRASIL

conservadorismo dos programas escolares, pois enquanto a literatura brasile


i-
ra e a portuguesa são trabalhadas nas escolas de educação indígena, a tradiçã
o
oral e os livros de autoria indígena percorrem, salvo algumas exceções,
os
corredores da exclusão nas escolas brasileiras. Embora pareça redundante
per-
guntar sobre o lugar do índio na história e na literatura brasileiras, o que
se
segue e' frequente nas escolas dominantes e são muitos os que propagam
o
estereótipo. Canciini (1998, p. 165) cita um exemplo: aquando a ordem
é
transgredida, os professores costumam dizer que na escola (não devemos nos
comportar como selvagensi; para passar do pátio do recreio para a sala de aula
alega-se que acabou a hora do índio”. Por essas e outras, os projetos pedagó
-
gicos dominantes devem ser repensados, de maneira que haja, também, mais
n

espaço para leitura e produção de textos. Nesse sentido, o exercício de cidada


-
nia depende também do trabalho continuado da escrita e da leitura.
Apesar dos (des)compassos entre o RCN e o RCNEI, “a produção de
textos para as escolas indígenas concretiza-se com a publicação de livros de
¡HM

qualidade, que resultam direta ou indiretamente dos cursos de formação de


professores indígenas” (RCNEI, 1998, p. 7). Infelizmente, nas escolas domi-
nantes prefere~se o caminho mais curto e, por isso mesmo, mais nocivo
. O
famigerado livro do professor com respostas que constituem um desrespeito
não à “autoridadeifi mas à alteridade do aluno e do professor. Desse ponto de
vista e para tornar a questão mais esclarecedora, convém sublinhar o pensa—
mento de Meliá (2000, p. 16): “mão /oa' um problema de educaçao indzzgena,
ba'
sim uma soluçao indígena ao problema da educaçao”.
Retomando essa última consideração, entendemos que o trabalho com
a literatura na área da educação indígena sugere urna tipologia de textos que
comportam, em princípio, uma série de produção de textos culturais e textos
literários de perfil mais c“indianizado” que “indigenizado”. Em geral, híbridos
porque empreendem, entre outras tarefas, a de historicizar na linguagem de
hoje os saberes ancestrais. Esse recorte do híbrido na educação e na literatu
ra
indígena não desqualifica o trabalho de educadores, nem a vocação enunci
a-
tiva dos escritores nativos (filhos e filhas da Terra) que a representam; pois “a
História pode admitir mais de uma interpretação, permanecendo aberta a
outras possíveis leituras”, diz Bernd (1988, p. 15) na direção do pensamento
de Walter Benjamin (1993).

92
:ENTIDADES E UTOPÍAS

A possível leitura de que fala Bernd nos remete ao livro de Olívio Jeku-
pé (2000), O Saci verdadeiro, no qual a questão do híbrido aparece associada
a dois personagens que carregam nomes semelhantes e a imagem do outro é
~Óroblematizada na escola, mas do ponto de vista de um garoto indígena: o
personagem Karaí. Situando a biblioteca da escola não indígena como um
entrelugar no espaço da narrativa, o escritor Jelrupé questiona a relação da
escola dominante com as comunidades indígenas. Essa situação mostra que a
pedagogia da diferença (Melia) implica o reconhecimento dos saberes negados
ao longo da crucial história da colonização, ressaltando que “a ação pedagó-
gica para a alteridade não é urna descoberta feita pela sociedade ocidental e
nacional para oferecer aos povos indígenas, muito pelo contrário: é o que os
povos indígenas podem ainda oferecer à sociedade nacional” (MELIÁ, 2000,
p. 16). Dessa perspectiva, D’Angelis ressalta:

os desafios de criar escolas indígenas tem produzido experiências


importantíssimas que, aos poucos, vão permitindo um certo acú-
mulo de conhecimento nessa área bastante nova, mas em nenhum
caso pode~se afirmar com segurança que já se construiu uma “escola
indígena”. O que temos conseguido são escolas mais, ou menos, in-
dianizadas (por vezes, mais indigenizadas do que indianizadas). Na
esmagadora maioria dos casos, são tentativas de “tradução” da escola
para o contexto indígena (D’ANGELIS, 2000, p. 22).
ã
O estereótipo implica um posicionamento discriminatório que se apoia
no que Homi Bhabha (1998) chama de repúdia de diferenças; quer sejam dife-
renças raciais, históricas, culturais ou literárias. As perspectivas pedagógicas e
literárias que problematizam a alteridade, a indianidade e o hibridismo, entre
outros aspectos relacionados a questão dos 500 anos, constituem exemplos de
uma leitura das diferenças para uma melhor compreensão dessa utopia índi-
vidual/coletiva (mito, auto—historia, realidade em prosa e verso) que é a atual
El"!

literatura indígena no Brasil.

93

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