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GRAÚNA, Graça. Contrapontos Da Literatura Indígena Contemporânea
GRAÚNA, Graça. Contrapontos Da Literatura Indígena Contemporânea
CONTRAPONÏOS DA
llÏERA'l'lIRA INDÍGENA
CONTEMPORÁNEA No BRASIL
MÍAZZA
edlçoes
www; ._ _. -_ _.r
“MW.“ :la líteratura indígena contemporânea no Brasil
"Gr ça Graúna
Revisão
Lourdes Nascimento
Capa
edmazza©uai.com.br
www.rnazzaedícoes.com.br
200 p. ;16x23cm
ISBN: 978-85-7160—591—6
CDD: 898.3
CDU: 821.8
A meus pais,`
Prefácio .................................................................................. 9
Iniciações .............................................................................. 15
Conclusão
“Multiplicando o cereal plantado” .................................... 169
Posfácio
A palavra indígena sempre existiu .................................... 173
1 Espaço nacional que, segundo o crítico Antonio Cornejo-Polar (2000, p. 147) é caracterizado por “hete—
rogeneidade conflituosa” como resultado da colonização imperialista. Para ele, as nações latino-americanas
são “traumaticarnenre desmembradas e cindidas”.
CONTRAPONTOS DA LITERATURA ¡NDÍGENA CONTEMPORÁNEA NO BRASiL
não identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada durante um pro-
cesso colonial, como no caso das primeiras nações indígenas pan-americanas,
significa ter uma não identidade. Ter uma história enraizada na terra roubada
durante um processo colonial, como no caso dos colonizadores e seus des-
cendentes, significa ter uma não identidade nutrida pelo remorso recalcado.
Refletída nestas não identidades — identidades fragmentadas e/ou alienadas
por condições de violência ~ é a importância da geografia e da memória en-
quanto elementos para se colocar como sujeito. Sem lugar a consciência e a
subjetividade do ser humano são inconcebíveis. Este lugar pode ser de natu-
reza geográfica e/ou linguistica, religiosa, cultural - um lugar epistêmico. Para
povos colonizados e grupos marginalizados, o processo da descolonização e
desmarginalização significa que o lugar un/Jez'mlic/a — o lugar (e a correspon-
dente episteme cultural) da subalternização » tem que ser transformado num
lugar heimlz'c/J; um lugar-lar onde a equação mundo/imagem do self(rompida
e distorcida pelo processo colonizador) é reestruturada com base no próprio
ethos e cosmovisão. O lugar-lar e sua construção na língua, portanto, é um dos
meios pós-coloniais cruciais para lembrar (e assim juntar) os fragmentos de
uma cultura/história/identidade estilhaçada e parcialmente perdida nos traços
nômades entre mares e (não)lugares, bem como entre os muitos ditos e não
ditos de diversos discursos. Um outro meio, talvez o mais importante no caso
das nações amerindias, é a luta jurídica pela posse/reconquista/não invasão da
terra, já que a questão da terra é crucial para a definiçâo da episteme sociocul-
tural e a produção da subjetividade e identidade individual e coletiva, ou seja
lO
PREPAGO
ll
1 z: Z K " :É :A LITERATURA INDÍGENA CONTEMPO
RÁNEA NO BRASIL
ii
indígenas,2 a maioria dos
brasileiros nega sua herança indígena? Em geral, os
indígenas são sujeitados
a uma forma cultural de hegemonia baseada em coop
tação e ressignificação.
v—
_,I Barrando o acesso deles ao discurso oficial por causa
'Qi de sua diferença cultural,
os grupos dominantes apropriam elementos culturais
particulares deles, tradu-
zindo-os para versões nacionalistas da cultura nacional:
hoje é muito lucrativo
(turismo) salvar a aparência de uma nação multicultural.
Daí resulta que a sig-
nificância destes elementos não é definida dentro do
conjunto de valores das
tribos indígenas, mas dentro daqueles dos grupos
dominantes. Como pode-
mos definir uma nação que é paradoxalmente carac
terizada por (e imaginada
como) um crisol, uma unidade em diferença —
ou seja, por uma interação
multicultural e uma autodefinição que percebe e aceita
a diferença cultural
como uma parte integral da sua estrutura social, er/Jos
e cosmovisão — e por
uma diferença como separação em que questões de gêne
ro, raça, etnicidade e
classe se entrelaçam e chocam? O outro étnico-racial,
poder-se-ia argumen-
tar, ocupa um lugar intersticial no Brasil. O deslize
entre inclusão e exclusão
define o entrelugar dos afro-brasileiros e indígenas como
nacionais outrizados
12
PREFÁCIO
REFERÊNCIAS
CORNEJO-POLAR, Antonio. O rondar wa: literatura e cultura latino-americanas.
I Org. Mario J. Valdés. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
HARRIS, Wilson. Explorariom: a selection of talks and articles 1966-1981.
Mundelstrap: Dangeroo Press, 1981.
SANTOS, Miltonn O espaço do cidadão. São Paulo: Edusp, 2007.
VEJA, v. 35, n. 15, p. 120—22, 12 abr. 2000.
INICIAÇÕES
O povo, a escola, a mídia brasileira
estão de costas para os povos indígenas ate' hoje.
(Frei Beto)
15
`.`L S DA LITERATURA INDÍGENA CONTEMPORÁNEA
NO BRASIL
___. ---__
Q-;~¬
:La-. aa discute-se o lugar da literatura nas socie
_?.vvn
16
lNlCIACÓES
Eliane Potiguara.
O quarto capítulo, “Contação de histórias: cumplicidades”, apresenta
a cumplicidade na leitura do mundo e da palavra dos Filhos da Terra.
Com
base nas contribuições de Georges Sioui (1989), Stuart Hall
(1999) e ou-
tros, a análise enfoca a noção de auto-história, lugar e identidade narrati
va
em Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória, de Daniel
Munduruku (2001). Em Paratz'g: o remo sagrado, de Yaguarê Yamã (2001)
)
da
narrativa observando, a partir do próprio texto literário, a noção de palavra
e a questão da alteridade na visão de Bartomeu Meliá (2000). Com
O saci
verdadeiro, de Olívio Jecupé (2000), a análise enfoca a questão da diferença
segundo Betty Mindlin (2000), o problema da educação indígena, a relação
identidade/alteridade fundamentados em Zilá Bernd (1998) e Leopoldo
Zea
(1992), entre outros estudiosos da cultura indígena. Em [ra/eita: o menino
criador, de Renê Kithãulu (2002), o estudo discute a relação entre cronista
e
narrador filndamentando-se em Cornejo-Polar (2000) e a noção de círculo
sa-
grado, conforme observamos em Sioui (1989) e outros estudiosos indígenas.
Os anexos reúnem textos eletrônicos de caráter informativo que pres-
supõem também exemplos práticos da relação “autor-texto-leitor”, quanto à
divulgação da literatura indígena no espaço da internet. Os anexos trazem
também um ementário que diz respeito ao trabalho com a literatura no meio
acadêmico indígena. Em síntese, o presente estudo (em aberto) tem por obje-
tivos: a) abordar o conceito de literatura indígena e as especificidades, a partir
de um conjunto de livros de autoria indígena contemporânea que configurou
o corpus da pesquisa; b) verificar a problematização dos temas transversais
que emanam do conjunto de textos literários de autoria indígena; c) abordar
o problema da diáspora na poesia de Eliane Potiguara; d) observar a relação
entre ancestralidade e vozes narrativas em Daniel Munduruku, Yaguarê Yamã,
Renê Kithãulu e Olívio Jecupé; e) contribuir para um remapeamento críti-
co-construtivo dos povos indígenas, com base em sua própria manifestação
artística.
18
INICIACÓES
20
q
INICIAÇÕES
21
CONTRAPONTOS DA UTERATU RA lNDÍG ENA COTCEÍ.':ÍRÂNEA NO BRAS‘L
aspectos, mas ressalva que “uma literatura indígena, se tiver de vir, virá a
seu tempo. Quando os próprios índios estiverem prontos para produzi-la”
(MARIÁTEGUI apud RAMA, 2001, p. 300). Na distinção entre literatura
indígena e indigenista feita por Mariátegui, a primeira refere-se “à produção
intelectual e artística realizada pelos índios, conforme seus próprios meios e
códigos, [a segunda implica a] vasta criatividade que, com base em outras
posições sociais e culturais [no lado Cocidentali] busca informar sobre o
universo e o homem indígenas” (CORNEJO-POLAR, 2000, p. 194).
Mais uma questão se coloca, com o objetivo de conclamar a sociedade
para repensar as origens da literatura no Brasil. Por que enfatizar a literatura
indígena? A pergunta vern de Eliane Potiguara, no site do Ibase, ao estender,
para este trabalho, a sua ideia da I Conferência Internacional de Escritores In-
dígenas eAfio-descendentes. Na sua percepção, as articulações em torno desse
Encontro configuram mais uma porta que se abre na História indígena ou
mais um caminho para combater o preconceito literário e o descaso com que
a literatura indígena é tratada no Brasil.
A quem interessar possa entrar nessa luta, os manifestos literários de
Potiguara se transformam em convite, para que nos tornemos “multiplicado-
Au
res de idéias que marcam a sua passagem no planeta TERRA e que buscam
contribuir para o avanço da cultura da paz, da ética, do amor, numa grande
corrente transformadora de idéias”.6 Tecendo seu próprio relato, respeitando
as diferenças, salvaguardando a Mãe-Terra, os escritores indígenas avançam
a cada página — pelo prazer do texto que implica também uma literatura de
combate, como sugere a poesia de Eliane Potiguara, no blog Literatura indíge-
na: um pensamento brasileiro. Nesse sentido ela expõe sua indignação:
6 Cf. depoimento pessoal de Eliane Potigura. Literatura indígena: um pensamento brasileiro. Disponível
em: <elianepotiguara@terra.com.br>. Acesso em: 12 jun. 2002.
22
raul-i*
INiclAcÕEs
24
1.
9 No que diz respeito ao aspecto linguístico, procuramos manter a convenção sugerida pela Associação
Brasileira de Antropologia (ABA), em 1953, isto é, não pluralizar os nomes dos povos e as línguas indí-
genas. No entanto, sem desmerecer as normas da ABA, mantém—se a grafia dos nomes como aparecem
no conjunto de textos de autoria indígena.
26
'.:- RODAPÉS DA HISTORIA
Í Cf. CIMI. Um ¿reves histórico sobre o Movimento Indígena. Disponível em: <http://www.cimi.org
.br/>.
Acesso em: 7 maio 2002.
¡ Conforme dados do CIMI, o número de candidatos indígenas cresceu nas eleições de 2000.
Em
média, participaram 279 candidatos indígenas, de 71 povos diferentes. Nas eleições
de 1996, aproxima-
¿amante “80 candidatos se inscreveram para os cargos eletivos. O CIMI elaborou subsídios didáticos
CONTRHPCÏQ . OS DA LITERATURA INDÍGENA
CCÏÏEK': Í ¿WEA NO BRASJL
28
'. : š acc-APE's DA HiSTÓRIA
30
LisoAPE's DA HlSTÓRIA
32
z_ ï—ïODAPÉS DA HISTORIA
34
x É S FÉODAPÉS DA HISTORIA
13 Cf. Educação dzferenfiada: respeito à cultura e tradição. Entrevista do Ibase com Eliane Potiguara.
Disponivel em: <http:¡'/www.ibase.br/paginas/potiguara.html>. Acesso em: 12 mar. 2002.
M CE Pomrzrz'm, mar./abr. 1999, p. 12. Ver as palavras de Fendó na epígrafe que abre o quarto capítulo
deste trabalho.
CONTRAPONTOS DA LITERATURA [NDÍGENA ;: :; 'fi 3' = ¿‘QEA NO BRASIL
terra nos pertence, temos que cuidar dela, da mesma forma que a
1.1.-
36
.í ’- ZJAPÉS DA HISTORJA
38
2.11130APÉ5 DA HistoRiA
40
; :1 '{ZDAPÉS DA HISTORIA
enas
Década de 1950 — Cerca de 100 mil indíg
Fonte: Darcy Ribeiro (199521).
1980 — 227.801
ade
Fonte: Pomntz'm, out. 1980 — Egydio Schw
1991 -— 294.135
, p. 8
Fonte: censo do IBGE - Pomntz'm, out. 1989
1996 - 325.652
a: Sociedades Indígenas e
Fonte: Documento da Presidência da Repúblic
a Áçáo do Governo
2000 — 701.462
2002)
Fonte: IBGE ~ Censo 2000 (publicado em
41
.
_
.__
_.-
--\;|Í
2.
_I\_
Identidades e utopias
io,
que o normal, uma visao de ína'
[...] desenvolvi uma visão maior
o.
um olfizto de índio, uma aadiçao de índi
(HENFIL, 2002, p. 31)
SÃO NA LITERATURA
2.1 VOZES ANCESTRAlS E EXCLU
BRASILEIRA
44
'I—F
“-4? .___-...1-
Í`ÇTIDADES E UTOPiAS
I4.1.—
teria tido até um nome nativo, já proposzo. pelos mais exaltados,
para substituir “Brasil”: Pindorama. designação supostamente dada
“Hu-“Em“..nl
pelos índios ao nosso país. Não sou historiador, mas também não
sou tão burro assim para acreditar que os indios tinham qualquer
noção geopolítica, ou alguma idéia de que pertenciam a um “pais”
chamado Pindorama. Não havia qualquer país, e' claro, nem sequer
a palavra Pindorama devia fazer sentido para os ocupantes que os
portugueses encontraram aqui, se e' que ela era usada mesmo. No
máximo, significaria o único mundo conhecido deles.18
ÍTELÍ-I-T-rf'
fato, a ideia ou a construção de país poderia não haver no todo, mas o que
pode garantir a João Ubaldo que Pindorama não fazia sentido aos primeiros
habitantes? Até porque, não teria a concepção “deste país” um recorte genera-
lizado? O sentido da expressão “no máximo” denega ao índio a consciência de
nação, locação e deslocação.19
Aos nativos cabe também o direito de imprimir sua licença poética que,
surpreendentemente, continua causando estranhamento ao outro. Criada a
poesia, fundamentada a História, o universo indígena pede que se leia: Pin—
dorama (Terra das palmeiras), Quarup (Festa dos mortos), Nhanderú (Deus)
,
Ikoé (Ser diferente), Nhemokyriri (Calar—se). Nomes e elementos sonhad
os
numa sociedade diferente. Metáforas do tempo de Yvi Marãey (Terra sem
males), uma metáfora feliz.
-.l:I_I.I:__-I._\_w--.!.!:I--`II--=-u_44
18 João Ubaldo e o besteirol dos 500 anos. O Estado de S.Paulo, 25 abr. 2000.
19 Devo essa interlocução ao colega Alexandre Furtado (professor da UPE).
CONTRAPONTOS DA LITERATURA ¡NDÍGENA CÍ'ÍE'Í? :31.35% NO BRASIL
Uma coisa é dizer que o Brasil foi descoberto no dia 22 de abril de 1500
e outra coisa é contar que “o Brasil foi introduzido de maneira violenta, na
cultura ocidental; foi o primeiro golpe da nossa história [...]; os índios não sa-
biam nem o que era golpe ainda, coitados. Levaram um, logo de cara”, afirma
Ariano Suassuna (1994, p. 24) em muitas de suas aulas. Fatídico dia em que
foi instaurado no Brasil o começo de um modelo mercantilista. Dos equívo-
cos que se aprende nos manuais literários, convém grifar a afirmação de que a
carta de Caminha significou para a nossa História “uma auténtica certidão de
nascimento”. Que essa carta é um dos mais importantes registros do processo
da transfiguração étnica20 com a chegada dos portugueses ao “Novo Mundo”
é um fato; que se trata de um texto bem elaborado e bastante persuasivo, é
incontestável; que tem uma estreita relação com o discurso literário, não resta
dúvida.
J
r Todavia, há outras manifestações que autenticam a existência da arte
nativa para o mundo. Basta um olhar sobre as itacoatiaras, e aguçar a sensi-
bilidade para ouvir as histórias de tradição oral e escrita dos povos indígenas
e africanos. A este respeito, as escolas em geral não contam. Trabalhar o mito
(realidade/história) pode não ser uma tarefa fácil; mas, a partir dele, é possível
fazer o (re)conhecimento da nossa identidade sufocada nesses mais de 500
anos. Quem teve a oportunidade de ler os mitos indígenas adaptados por Ciça
Fittipaldi para o público infanto-juvenil da cidade grande sabe que o “po—
rantim” é o principal símbolo da cultura Saterê Mawé, isto é, trata-se de um
remo onde está gravada/escrita toda a história mítica dos filhos do guaraná.
Na língua Saterê Mawé, “porantim” significa: remo, arma e memória; significa
uma expressão escrita de vida e espírito que existe muito antes da chegada dos
portugueses em Pindorama; ou como queiram: ao Brasil, Brazil, Brasis.
O estudo da representação do negro e do índio na literatura requer uma
abordagem específica. Da maneira como o assunto vem sendo trabalhado,
sobretudo nas escolas dominantes, o processo de formação política, social,
2° A transfiguraçáo étnica, segundo Darcy Ribeiro (199521, p. 30), “se dá pela gestação de uma etnia
nova, que foi unificando, na língua e nos costumes, os indios desengajados de seu viver gentílico, os
negros trazidos de África, e os europeus aqui querenciados. Era o brasileiro que surgia, construindo corn
os tijolos dessas matrizes à medida que elas iam sendo desfeitas".
46
VÍ, ETiTlDADES E UTOP‘AS
48
'ul-.XTIDADES E UTOP'Aä
il A imagem da transfiguração em Marabá revela uma das interfaces do parto da nação brasileira, sobre-
tudo a cara mestiça, como diz Darcy Ribeiro (1995a, p. 448), ao referir-se às “mulheres negras e índias,
muitíssimas, com uns pouquíssimos brancos europeus que nelas se multiplicaram prodígiosamente”.
49
CONTRAPOT'JTOS DA UTERATURA INDÍGENA. ÍÍ‘Ï" ` ` - ÍV :¿ÏJEA NO BRASIL
50
:ENTIDADES E UTOPIAS
52
:ENTIDADES E UTOPiAS
A linguagem é a história
e a história
é a fúria agora.
Para Antonio Hohlfeldt (1998, p. 15-16), esse poema abarca “em sua
síntese amplificada as contradições e as afirmações de um povo que, oprimi-
do ao longo dos séculos, marginalizado da história, sempre encontrou, em sí
mesmo, motivos de sobrevivência e resistência”. Em outras palavras, a fala do
Guarani, em SantjAnna, configura um exemplo das raras exceções em que os
povos indígenas aparecem na literatura brasileira como sujeitos da própria his-
tória. Tomamos de empréstimo as seguintes palavras de Aracy Lopes da Silva
1989) para afirmar que são raros:
5 Lema do “Fórum Social Mundial”. Um evento que se realiza, anualmente, em Porto Alegre e que
tem por objetivo geral: opor-se à globalização excludente e militarista representada pelo neoliberalismo.
“ma-u.
pode dar à questão são postas, aqui, como mais uma possibilidade de leitura.
Portanto, não se trata de uma leitura essencialista, do contrário cairíamos nas
armadilhas do “texto de autoridade” em detrimento do texto de alteridade.
Essa perspectiva nos aproxima de Bhabha (1998, p. 19) na argumentação do
local da cultura, mostrando-nos que a “Nossa existência hoje e' marcada por
uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do “presentefl
para as quais não parece haver nome próprio além do atual e controvertido
deslizamento do prefixo ‘pós’: pás-modernismo, pós-colonialismo, pós- emínis-
m0...” (grifo do autor).
Os textos literários contemporâneos de autoria indígena mostram, cla-
ramente, que a palavra indígena sempre existiu; que a “palavra foi nova para
os que tinham perdido a memória, mas para Vocês [os parentes indígenas e ín-
dio-descendentes] não é nova nossa palavra porque já a caminhavam desde os
- Q
54
Z ÉÏÁTXDADES E UTOPIAS
da co-
e autonomia e (re)afirmar o compromisso em denunciar a triste história
lonização e os seus vestigios na globalização ou no chamado neocolonialismo
indo a
corn a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) que vêm imped
paz desejada no universo das sociedades indígenas. Desse pressuposto, outras
questões se colocam como relevantes ao estudo da propriedade intelectual
indígena contemporânea no Brasil: indianidade, hibridismo, auto-história,
diáspora, assimilaçöes, preconceitos e perdas, entre outras questões.
Para uma melhor compreensão desses aspectos, convém averiguar o
que se depreende da relação querer/ser/saber/fazer no contexto da litera-
tura indígena. Um dos aspectos intensificadores desta análise prende-se ao
problema que é definir/conceituar literatura. Não nos parece uma tarefa
fácil, se considerarmos que o conceito de Literatura está sujeito a polêmicas.
Em outras palavras, são os desentendimentos que geram e determinam a
noção de Literatura, ou como observa Massaud Moisés (1985): uma noção
“comanda todas as divergências: a do conceito de Literatura, porquanto, a
rigor, la escolha dos critérios depende do conceito básico que cada um tem”,
(DANZIGE apud MOISÊS, 1985, p. 310). Em se tratando de literatura in-
dígena, as definiçöes, os conceitos esbarram na questão do reconhecimento,
no preconceito literário estampado no mascaramento das polêmicas dou-
trinais. No cânone, essa literatura não aparece mencionada; seu lugar tem
sido, até agora, a margem. Poucos se dão conta de sua pulsação.
Apesar da falta do seu reconhecimento na sociedade letrada, as vozes
indígenas não se calam. O seu lugar está reservado na história de um outro
mundo possível. Visando à construção desse mundo, os textos literários
de autoria indígena tratam de uma série de problemas e perspectivas que
tocam na questão identitária e que devem ser esclarecidos e confrontados
com os textos não indígenas, pois trata-se de uma questão muito delicada
e muito debatida hoje entre os escritores indígenas. Com efeito, a ques-
tão identitária vem sendo debatida por autores não índios, diz Maurizio
Gatti (2001), no artigo “Être auteur autochtone au Québec aujourdahui”.26
55
CONTRAPÜNTOS DA LITERATURA INDÍGEF‘LA Ç .Í ` ÏE `. '- ' Ï—KEA NO BRASH.
2000. p. 183—194 (Coll. Écrits de la francité). Disponivel em: <mau.gatti@katamail.com>. Acesso em:
16 maio 2002.
56
LÉÏWIDADES E JTOPÍAS
a
f "Por aculturación se quiere significar el processo de transito de una cultura
a outra y sus repercusiones
sociales de todo genero. Pero transculturación es vocablo más
apropiado” (cf. ORTIZ, 1978, p. 93).
58
.ÉENTIDADES E UTOPIAS
Nesses termos, uma coisa é afirmar que uma pessoa não tem cultura (ig-
norar sua existência) e outra coisa é reconhecer que as sociedades tradicionais
sofreram o impacto a partir da chegada do sujeito dominante. É possível di-
zer — dentro da percepção indígena — que o índio não deixa de ser ele mesmo
em contato com o outro (o não índio), ainda que o(a) indígena more numa
Cidade grande, use relógio e jeans, ou se comunique por um celular; ainda que
uma parabólica pareça, ao outro, um objeto estranho ou incompatível com a
comunidade indígena; ainda que nos deparemos com o indígena nos cami-
nhos da internet, em plena construção de aldeias (aparentemente) virtuais;
mesmo assim, a indianidade permanece, porque o índio e/ou a índia, onde
quer que vá, leva dentro de si a aldeia. Os que ficam sabem que vão junto, no
sangue do parente, na pele, na consciência, no cotidiano da história e da me-
mória do parente que não deixa de ser e/ou reconhecer-se filho legítimo pelo
amor à terra. Portanto, diferente do outro (o nâo índio). Essas questões são
claramente expostas por Daniel Munduruku, Ailton Krenak, Marcos Terena,
Darlene Taukane e René Kitháulu, entre outros pensadores indígenas.
Existe “desindianizaçâo” nos Pankararu que estão deslocados/desab-
jados em São Paulo? Ao que me consta, continuam iguais na indianidade,
parentes dos Pankararu que, pela força das circunstâncias, deixaram em Per-
nambuco. O mesmo sentimento e consciência ocorre com os Munduruku
(em São Paulo ou no Pará), com os Saterê-Mawé, os Potiguara, os Guarani e os
Terena, por exemplo. Negar essa existência, essa resistência significa contrariar
o pensamento indígena que rejeita a ideia de aculturaçâo. Nessa perspectiva,
parece-nos igualmente válido rejeitar a ideia de “desindianizaçâo” apresentada
em Ribeiro e em Canclini, conforme observamos anteriormente.
Ao retomar em Guilhermo Bonfil Batalla os conceitos de diferença e
“subordinação”, Canclini dá como exemplo de desíndíanizaçâo ou aculturação
as comunidades camponesas de mestiços que — no seu entender — perderam
59
¡“á-A.“-
O que resta, hoje, em termos de cultura que se possa falar de uma lite-
ratura indígena? Segundo Boudreau (1993), a literatura escrita do ameríndio
é um fenômeno cultural recente porque surge das decepções acumuladas após
a invasão europeia. Esse fenômeno opõe-se a todas as tentativas de assimilação
e dominação pelas quais os povos indígenas vêm passando atualmente. Dessa
m
60
Ïj EÏJTlDADES E UTOPIAS
33 Citação de Georges Sioui: "a América branca perdeu a briga cultural que travou contra os Amerín-
dios” (CE BOUDRFAU, 1993, P- 99).
3‘) Basil Johnston é doutor em Educação pela Universidade de Toronto, Canada.
revista
i” Em 1979, por iniciativa de cinco caciques representantes de cinco povos indígenas, foi criada a
Oflímszzgez'm; uma publicação bimensal que circula, também, pela internet. Com o apoio do CIMI,
não índios.
essa revista é dirigida aos povos indígenas, mas conta também com a participacao de leitores
A proposta dos seus organizadores é levar “a palavra do índio para o índio” e ser um veículo de inter»
câmbio entre aldeias.
61
Il"
Ill IIIIII
w. 4
62
.Ï ENTIDADES E UTOPEAS
literário pelo viés da ecocrítica (tanto quanto o seu objeto de estudo) implica
um olhar discernidor no que se refere também a estética dos excluídos. Nessa
perspectiva; a sabedoria dos pajés, por exemplo, não parece dissonante aos
ensaios críticos sobre o meio ambiente e a qualidade de vida e às denúncias
contra a segregação racial e a indiferença. Essa questão merece ser refletida.
Uma vez que estamos falando do compromisso também com a teoria, Bhabha
traz mais um argumento:
63
m.
64
Í ET ¿TIDADES E UTOP‘AS
tradu-
No caso da transcri(a) ção, o poeta afirma que não se trata de uma
so de tradução “hiperfiel”
ção despreocupada corn o original, mas de um proces
ao aspecto
ao original. Essa fidelidade não é apenas ao conteúdo original, mas
izado. Nesse
formal microestrutural desse conteúdo, a tudo que esta semal
pondências
processo reside “uma organização interna, jogos sonoros, corres
gramático-morfológicas que devem ser recriados”, diz Campos (1999, p. 25)
bastante es-
ressaltando adiante que emprega o termo reimaginação em casos
chinesa,
pecíficos, isto é, como ele sugere que deva ser na tradução da poesia
uma coisa mais parafrasica . Campos observa que:
t - I h ”
(E
pode ser
o chinês, sendo urna língua tonal, de quatro tons, não
reproduzida por nenhuma lingua ocidental. Essa dimensão sofis—
canto.
ticada faz com que a poesia chinesa soe sempre como um
[Desse modo, Campos propõe] reimaginar essa tonalidade na for»
o
ma de orquestração, transformando aquilo em verso livre, usand
de
eventualmente uma rima, reproduzindo em português os jogos
organização gramatical (idem).
tório
As adaptações de mitos e lendas indígenas oferecem um reper
er ao mercado
vastíssimo, embora algumas pareçam mais propícias ern atend
discurso
editorial destinado ao público infanto-juvenil. Em geral, resultam no
paradi-
folclorizado em torno da tradição oral indígena nos chamados livros
indígenas
dáticos. Dos trabalhos de tradução e de adaptação das narrativas
Campos,
que se aproximam da reimaginação e da transcri(a)cão teorizada em
ados em
cumpre sublinhar por exemplo: os mitos Yãnomami metamorfose
do concre-
poemas na antologia organizada por Mário Chamie (1978), poeta
'f
adaptação
tismo brasileiro responsável pela coordenação de edição, título e
de Luis
desses mitos. Outro exemplo remete ao enfoque identitário nos livros
de Ciça
Galdino (1985), à reimaginação que brota do trabalho semiótico
's.m=
ra de
Fittipaldi, na sua adaptação dos mitos amazônicos, e à imaginação criado
pé.
Aline Bittencourt (1984), ao narrar as aventuras do herói Tapira
s)
E mais ainda: temos a reimaginação do “quarup” (festa dos morto
índios Guarani,
em Antonio Calado (1984), os mitos e cantos sagrados dos
r dizendo, rei-
em Pierre Clastres (1990), a poesia Guarani traduzida, melho
ório de
maginada por Josely Vianna Batista e Luli Miranda (1996). No repert
65
se'
a
«Hum-mun-
“discurso efetuado por microssociedades de tipo arcaico (ou por grupos sobre-
viventes)”, como definem Greimas e Courte's (s.d, p. 263). Em contraponto à
visão etnocêntrica, as literaturas indígena, afro-brasileira e africana de expres-
são portuguesa redefinem as funções do contador de histórias, denunciando a
diáspora, a opressão linguística e cultural como fazem os narradores na “con-
tação de histórias” de Daniel Munduruku, Olívio Jekupé, Renê Kithãulu,
Yaguarê Yamã e a voz indígena na poética do exílio em Eliane Potiguara e
tantos outros que compartilham do diálogo multie'tnico.
A diversidade cultural, as fronteiras, os deslocamentos e os seus contra-
pontos dão conta de que uma das funções da contraliteratura (literatura das
minorías?) é interpretar a consciência coletiva e nacional e convocar a uma
solidariedade ativa, como sugere Zilá Bernd (1988) em seu estudo dedicado
à literatura negra. Essa desobediência aos paradigmas permite “que venha à
tona o homem concreto e sua denúncia, [embora a tendência seja a de se
manter] nas fronteiras da marginalidade, se não completamente marginais”
(BERND, 1988, p. 42—45).
Nessa instância, as fronteiras do texto dão conta de um processo cru-
cial: a diáspora indígena. O termo diáspora, segundo james Clifford (1997), é
66
I: ENTIDADES E UTOPÍAS
67
C0 NTRAPONTOS DA LITERATURA iNDÍGEN/l. CCH—Él” Í "¿ÁREA NO BRASIL
68
.3 EFLTEDADES E UTOPIAS
re,
ericanos e europeus. Shakespea
aos estilos literarios latino—am
erico Garcia
rquez, Pablo Neruda, Fed
Pavese, Gabriel Garcia Ma um
os contos do ‘Velho Antonio',
Lorca [m] se misturam com
os da cosmogonia maia, e corn
velho pajé indígena que conta mit de vida e dos
MW
unidades, do estilo `N
a narração do cotidiano das com Z, 1998,
atistas (D1 FELICE; MUÑO
valores que orientam os zap
p. 22-25).
r
luídos em Chiapas permite aborda
Essa visão do mundo acerca dos exc , “um
lica, segundo Walter (1999a, p. 77)
a dinámica da hifi’nz’zagáo que imp ir um
turais”, visto que o desafio é constru
desafio enorme para as ciências cul orien-
ta das diferenças culturais. Nessa
espaço à focalização não essencialis âneas
ro das vozes ancestrais e contempor
tação, portanto, vamos ao encont o corn a
ígena no Brasil, porque o trabalh
nos textos literários de autoria ind univer—
“o abandono de modos de pensar
literatura (indígena ou não) exige ltural é
stas e a rev isâo daq uele s mé tod os nos quais a transferência intercu
sali a re-
car act eriz ada pel o inte rcâ mb io entre nações delimitadas, cada um
ainda l”
tan do um esp aço inte gra do a um poder central e uma unidade. menta
presen
(idem).
ria oral
tritas para que uma parte da memó
abriu possibilidades ainda que res uns
pelos primeiros mestiços e por alg
dos povos americanos fosse escrita
a s las
quíchuas.
55 CE Montoya, o poeta Garcilaso de la Vega era filho “ilegitimo” de um‘ nobre andaluz conquistador e
de uma princesa da alta aristocracia inca.
72
ÍIEÍ~1TÉDADES E UTOPIAS
a delas,
Roubaram nossas terras e nos levaram P ara lonas
transformando em escravos os “Filhos do Sol".
73
Si;
4
CONTRAPONTOS DA LITERATURA INDÍGENA CIR??? Í ¿CEA NO BRASIL
74
IDENTIDADES E UTOPIAS
considera que:
A:_nl
g
i
4-...
3‘" Cf. interlocução da Professora Silvia Cortez durante a minha defesa do presente estudo, em 12 mar.
2003.
76
:ENTIDADES E UTOPIAS
colonizador dos índios” (SILVA, S. C., 1995, p. 50). O fato é que a noção
do eleito em Freyre configura um parámetro racista e aristocrático. Em ou—
tras palavras: “há índios e índios, como há negros e negros, [..] ha judeus e
judeus [n]. O sudanês foi, sem dúvida, o negro eleito! Ou seja, dos negros o
1
melhor!” (SILVA, S. C., 1995, p. 50). A percepção de Silva acerca do tempo
e da história na referida obra de Freyre revela uma grande e triste metáfora: “a
senzala [é] a grande excluida [...]. Ausente do texto freyriano não pode deixar
para a posteridade as suas tristes Vivências: foi um nar/.io negrez'ro ancorado em
term” (SILVA, S. C., 1995, p. 57, grifo da autora).
Os escritores indígenas no Brasil vêm, por muito tempo, expondo sua
visão de um vasto mundo que, em geral, todos desconhecemos. Isso faz ver que
a necessidade de falar e escrever em seu próprio nome é também um mecanis-
mo de defesa contra “intermediários e intérpretes indesejáveis ou mesmo pouco
atentos”, como observa Iokoi (1999, p. 42), acerca do discurso de Marcos Te-
rena. Uma vez que “os índios foram obrigados a defender a sua concepção de
cultura, de identidade e de visão de mundo,” as próprias comunidades indígenas
procuraram investir na formação de seus parentes, mesmo que essa formação
seja realizada “na lógica da cultura branca, como foi o caso de Marcos Terena
[..] Ailton Krenak” e de muitos outros, observa Iokoi (1999, p. 42).
Fruto das preocupações de Marcos Terena, o Instituto Indígena Brasi-
leiro de Propriedade Intelectual - INBRAPI38 foi criado em maio de 2002.
Participam dessa organização os escritores Darlene Taukane e Daniel Mun—
gâl-ëi
33 O Instituto Indígena Brasileiro da Propriedade Intelectual é uma ONG que foi criada em maio de
2002 e dirigida por indígenas de diferentes etnias. Sua proposta principal e' a defesa do conhecimento
tradicional e o combate a biopirataria. Sua diretoria está assim organizada: Presidente: Vilmar Guarany
Advogado; Vice: Darlene Taukane — Mestre em Educação; Secretária: Lúcia Fernanda Kaingang
-
Advogada; R. Públicas: Daniel Munduruku - Filósofo. O INBRAPI conta com o apoio de mais de 100
pajés e caciques de diversas etnias. Seu conselho é composto por nomes conhecidos nacional e interna-
cionalmente como: Ailton Krenak, Marcos e Jorge Terena, Getúlio Kaiowá, entre outros. Sua sede é em
Brasília. Disponível em: <inbrapi@uol.corn.br>. Acesso ern: 12 dez. 2002.
‘D‘fl
77
4-...
78
[DENTIDADES E UTOPIAS
uma tarde tranquilas, a aldeia foi perturbada por uma “santa bagunça” de
i¡.4.
79
mi
80
" SÍ .ÏÍDADES E UTOF’IAS
ao norte do país, ampliando a sua busca, à luz da sabedoria dos parentes in-
dígenas amazônicos e dos cerrados. Em outras palavras, a situação do escritor
a".
indígena no Brasil pode ser lida dentro de uma perspectiva que nos remete aos
mais de 500 anos de desencontros, pois “a semente do distanciamento entre
brancos e índios está na estrutura das sociedades: uma cultua o ter e a outra
o ser”, diz o escritor Kaka Jecupe'.42 Reiterando essas observações, permitimo-
I-
nos situar em alguns raros recortes da mídia para lembrar que o livro indígena
não configura uma ameaça às tradições:
una
tro inter-religioso que reuniu duzentos líderes religiosos de todo o mundo. Por meio do Instituto Nova
Tribo, em parceria com a Fundação Peirópolis, coordena uma ação de educação em valores humanos da
sabedoria indígena para os povos urbanos`
«nú
81
manual-...-
82
ÉDENTI DADES E UTOPIAS
83
CONTRAPONTOS DA UTERATURA marcam ¿2: '."—;'.'ï4:‘ ¿EA NO BRASIL
pelo direito de expor sua arte, pelo direito à saúde, pelo direito de escrever o
outro lado da história e outras questões pertinentes ao universo indígena.
Respeitando as diferenças, pode-se dizer que as manifestações literárias
indígenas são reveladoras de uma convergência temática, sobretudo no que
diz respeito à Mãe Terra e, com frequência, vêm abordando a relação autor-
texto-leitor e, ao mesmo tempo, denunciando a exclusão e as várias faces da
globalização, do (neo)colonialismo e do analfabetismo46 na América.
Não menos preocupante é a situaçao do escritor no Chile, onde poetas
indígenas não escaparam também desse mal que atinge os chamados “poe-
tas marginais” da sociedade letrada: a triste realidade de lerem a si mesmos,
como observa o poeta mapuche Jaime Huenún (2002), em sua entrevista ao
jornalista José Osório, do jornal El Siglo. Huenún observa, ainda, que são
abundantes os eventos e concursos literários na América Latina, no Chile,
principalmente; mesmo assim, o público leitor de obras indígenas ainda é
uma minoria. Segundo Huenún, essa situação revela:
4° No Brasil, a redução na taxa de analfabetismo, revelada pelo Censo 2000, mostra — por outro lado —
que 13,65% da população com mais de 15 anos e' analfabeta; ultrapassando a taxa dos paises vizinhos.
Na Argentina, a taxa de analfabetismo é de 3%; no Chile, 4%; na Venezuela, 7%. Na Colômbia, o
analfabetismo atinge 8% da população com mais de 15 anos de idade.
84
.ÍEKTIDAD ES E UTOPIAS
n.
47 Cf. HUENÚN, jaime. Entrevista ao jornal El Siglo, do Centro de Documentacion Mapuche,
172, 2002: “cada poeta tem uma voz diferente, uma voz própria, {cada poeta] contribui com sua visão
gh!-
de mundo, sua sensibilidade, seu fazer poético. Ao mesmo tempo, se tem produzido uma elitização da
poesia, principalmente no circuito universitário.”
85
"mms-__.
foram elaborados à luz das propostas do RCNEI e que foram publicados pelo
MEC, na década de 1990. As origens desse movimento sinalizam o final dos
anos 1970, quando a Comissão Pró—Índio do Acre (CPI/AC) criou a primeira
Escola de Formação de Professores Indígenas com o projeto c‘Urna experiência
de autoria”. Sob a coordenação de Joaquim Mana Kaxinavvai,4 8 esse projeto
ganhou formato de livro com Shenipúzbu Miyuz': história dos antigos, junto a
Organização dos Professores indígenas do Acre — OPIAC (2000). À luz dessa
experiência, Almeida acompanhou a produção coletiva de textos literários dos
Krenak, Maxakali, Pataxó, Xakríabá, em Minas Gerais.
A prática da literatura entre os povos indígenas no Acre e em Minas
Gerais propiciou o surgimento de uma geração de escritores e escritoras in-
dígenas em outros estados brasileiros, mas só os livros de autoria indígena
“subsidiados por órgãos oficiais [...] só em casos excepcionais publicados por
editoras privadas, os livros de autoria indígena fazem parte de utn movimento
político/literário” (ALMEIDA, 1999, p. 14). O QUADRO 3 é uma síntese
43 No artigo “Primeiros passos para uma gramática pedagógica da língua Kaxinwa'.” (Boletim Axeuvyru),
a linguista Adair Palácio registra a permanência de Joaquim Mana na UFPE (de setembro a dezembro
de 1991), sob os auspícios da CPI/AC, da Pró-Reitoria Comunitária da UFPE. Conforme Palácio, o
kaxinwá Mana teve a oportunidade de conviver com estudantes, frequentar o Núcleo de Estudos Indi—
genistas do Departamento de Letras da UFPE, a firn de aprofundar estudos a respeito de sua língua e
vivenciar uma Universidade.
86
ZDENTiDADES E UTOPIAS
da tabela em que Almeida situa as etnias que publicaram livros, até 1997.
Antes da leitura do referido quadro, convém observar o “conceito mais prag-
mático de literatura”, que ela descreve:
87
Il ll '-
A distinção entre livro subsidiado ou não por órgãos oficiais nos pare-
ce uma ideia de rejeição impregnada no rótulo “o livro com cara de índio”
que observamos em Almeida. Isto faz ver que o pensamento indígena e o
pensamento indígena-descendente publicados fora do cânone náo atendem
aos critérios institucionais. Se o purismo for o critério para designar a excep-
cionalidade do c(livro com cara de índio”, esse mesmo livro pode não abrir
as páginas para os seus descendentes. Na verdade, são os preconceitos que
desautorizam os livros de autoria indígena-descendente de serem designados,
também, de excepcionais. Até que ponto os livros indígenas subsidiados por
instituições governamentais promovem o reconhecimento dos autores indí-
genas e autores indígena-descendentes? Nosso questionamento parte de uma
constatação: com base na tabela original apresentada por Almeida (1999, p.
15—16), observamos que os Potiguara e outros povos do Nordeste nâo apare-
cem na tabela das etnias que publicaram livros no período que foi estudado
pela autora. Observamos, ainda, que na bibliografia do referido estudo consta
apenas uma breve referência à obra de Munduruku (1996) e de Potiguara
(1994).
Considerando que a prática da literatura (de autoria individual) e' uma
ponta do iceberg em movimento, no contexto da grande história das letras
indígenas, o nosso questionamento é uma forma de reiterar o pensamento do
escritor Ailton Krenak, ao enfatizar que todos estäo “sendo intimados a criar
novas respostas para um grande número de perguntas que não são tão novas
assim” (KRENAK apud ALMEIDA, 1999, p. 14). Tais perguntas são neces-
sárias à apreensão do conceito de escritura coletiva que, em Almeida, implica
uma “expressão do que é comum, ou de um consenso em torno do quem
somos” (1999, p. 18). Essa noção do coletivo nos aproxima do dialogismo em
Bakhtin e, dessa maneira, nos permite também observar que 0 texto indígena
de autoria individual implica um tecido de vozes, pois “todo texto verbal [...]
apresenta como dimensão constitutiva múltiplas relações dialógicas com ou-
tros textos”, diz Aguiar e Silva (1988, p. 624).
No período da pesquisa de Almeida, os povos indígenas de outras regiões
(em Pernambuco, por exemplo) publicaram livros, embora Almeida (1999, p. 18)
afirme que “a supremacia da produção intelectual indígena brasileira está com a
região Norte (Amazonas, Tocantins, Para, Roraima, Rondônia, Amapá, Acre)”.
88
IDEI'ÂTÍDADES E UTOPÍAS
4” Cf. as obras de Marcos Terena, Kaka Werá Jecupé, Daniel Munduruku, Olívio Jecupe', Renê Nambi-
kwara e Yaguarê Yamã, entre outros.
89
Mun
90
DENTIDADES E UTOPIAS
91
“ha...
92
:ENTIDADES E UTOPÍAS
A possível leitura de que fala Bernd nos remete ao livro de Olívio Jeku-
pé (2000), O Saci verdadeiro, no qual a questão do híbrido aparece associada
a dois personagens que carregam nomes semelhantes e a imagem do outro é
~Óroblematizada na escola, mas do ponto de vista de um garoto indígena: o
personagem Karaí. Situando a biblioteca da escola não indígena como um
entrelugar no espaço da narrativa, o escritor Jelrupé questiona a relação da
escola dominante com as comunidades indígenas. Essa situação mostra que a
pedagogia da diferença (Melia) implica o reconhecimento dos saberes negados
ao longo da crucial história da colonização, ressaltando que “a ação pedagó-
gica para a alteridade não é urna descoberta feita pela sociedade ocidental e
nacional para oferecer aos povos indígenas, muito pelo contrário: é o que os
povos indígenas podem ainda oferecer à sociedade nacional” (MELIÁ, 2000,
p. 16). Dessa perspectiva, D’Angelis ressalta:
93