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Front Matter / Elementos Pré-textuais / Páginas Iniciales


Apresentação
A crítica biográfica
Janelas indiscretas
A biografia: um bem de arquivo
Biografar é metaforizar o real
Freud explica
A traição autobiográfica
As mortes imaginárias de pessoa
A memória de Borges
Cyro dos anjos: a verdade está na Rua Erê
O avesso da escrita: intelectuais a serviço de JK
Memórias imperfeitas
Macunaíma: quem é você?
Macunaíma de Daibert
Amizade modernista
“Márioswald” pós-moderno
Carmen Miranda: do kitsch ao cult
O tic-tac do meu coração
Pan-américas de áfricas utópicas
O samba da minha terra
Espelho de tinta
Com açúcar e com afeto
Janelas indiscretas:
ensaios de crítica biográfica

Eneida Maria de Souza


SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros
SOUZA, E.M. Janelas indiscretas: ensaios de crítica biográfica [online]. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2011. Humanitas series. ISBN: 978-85-423-0303-2.
https://doi.org/10.7476/9788542303032.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
REITOR: Clélio Campolina Diniz
VICE-REITORA: Rocksane de Carvalho Norton
EDITORA UFMG
DIRETOR: Wander Melo Miranda
VICE-DIRETOR: Roberto Alexandre do Carmo Said
CONSELHO EDITORIAL
Wander Melo Miranda (PRESIDENTE)
Flavio de Lemos Carsalade
Heloisa Maria Murgel Starling
Márcio Gomes Soares
Maria das Graças Santa Bárbara
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Paulo Sérgio Lacerda Beirão
Roberto Alexandre do Carmo Said
ENEIDA MARIA DE SOUZA

Janelas indiscretas
ensaios de crítica biográfica

Belo Horizonte
Editora UFMG
2011
© 2011, Eneida Maria de Souza
© 2011, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.
S831j
Souza, Eneida Maria de
Janelas indiscretas [livro eletrônico]: ensaios de crítica biográfica / Eneida Maria de
Souza. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
3129 Kb; ePUB – (Humanitas)
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-423-0303-2
1. Escritores – Biografia – História e crítica. 2. Ensaios brasileiros. 3. Literatura –
História e crítica. I. Título. II. Série.
CDD:928
CDU:929
Elaborada pela DITTI – Setor de Tratamento da Informação
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COORDENAÇÃO EDITORIAL: Danivia Wolff
ASSISTÊNCIA EDITORIAL: Eliane Sousa e Euclídia Macedo
COORDENAÇÃO DE TEXTOS: Maria do Carmo Leite Ribeiro
PREPARAÇÃO DE TEXTOS: Ana Maria de Moraes
REVISÃO DE PROVAS: Beatriz Trindade e Simone Ferreira
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PROJETO GRÁFICO: Revisto por Cássio Ribeiro, a partir de Glória Campos - Mangá
FORMATAÇÃO: Robson Miranda
MONTAGEM DE CAPA: Cássio Ribeiro
PRODUÇÃO GRÁFICA: Diêgo Oliveira
EDITORA UFMG
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Ala direita da Biblioteca Central – Térreo
Campus Pampulha | CEP: 31270-901 – Belo Horizonte – MG
Tel.: +55 (31) 3409-4650
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Fax: +55 (031) 3409-4768
editora@ufmg.br
Versão digital: julho de 2019
Ao amigo Wander,
leitor e parceiro destes ensaios
Ao CNPq,
os agradecimentos pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa
À CAPES,
pela Bolsa de Professor Visitante Nacional Sênior
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Apresentação
A crítica biográfica
Janelas indiscretas
A biografia: um bem de arquivo
Biografar é metaforizar o real
Freud explica
A traição autobiográfica
As mortes imaginárias de pessoa
A memória de Borges
Cyro dos anjos: a verdade está na Rua Erê
O avesso da escrita: intelectuais a serviço de JK
Memórias imperfeitas
Macunaíma: quem é você?
Macunaíma de Daibert
Amizade modernista
“Márioswald” pós-moderno
Carmen Miranda: do kitsch ao cult
O tic-tac do meu coração
Pan-américas de áfricas utópicas
O samba da minha terra
Espelho de tinta
Com açúcar e com afeto
Apresentação

A reunião destes ensaios sobre crítica biográfica é o resultado de pesquisas realizadas


no decorrer dos últimos anos, quando pude aprimorar questões teóricas e exercitar a
criação de perfis literários. O convívio permanente com arquivos de escritores e a
necessidade de sistematizar tanto seus dados pessoais, quanto sua produção literária e
intelectual, exigiam mudanças no modo de abordagem do texto. A sedução pelos
manuscritos, cadernos de notas, papéis esparsos, correspondência, diários de viagem e
fotos tem como contrapartida a participação efetiva do pesquisador para a construção
de ensaios de teor biográfico. A tarefa, a princípio simples, reveste-se de complexidade,
por se tratar de uma prática narrativa que une objetividade com estilo pessoal, concisão
com clareza expositiva. No exercício dessa prática, o apelo ao ficcional atua como
procedimento que formaliza o texto e o molda segundo princípios comuns à arte da
escrita.
A distinta dicção da crítica biográfica frente ao ensaio de vocação teórica ou de
natureza interpretativa reside na condensação entre ficção e teoria, narratividade e
argumento teórico. Nesse sentido, há maior liberdade criativa por parte do crítico, por
revigorar o enredo narrativo e permitir associações entre texto e contexto, obra e vida,
arte e cultura. Mas a escolha do método biográfico impõe determinada disciplina e se
afasta de aproximações ingênuas e causalistas operadas por adeptos da pesquisa
biográfica como caça aos segredos e enigmas do texto.
Cumpre ainda mencionar que o arquivo da crítica latino-americana sobre o texto
autobiográfico foi de extrema importância para o desdobramento de questões ligadas à
leitura desconstrutora e pós-colonialista, realizada por representantes das consideradas
literaturas periféricas. Em diálogo mais aberto com essas questões teóricas, a
bibliografia fornecida por pensadores da cultura latino-americana ampliou a
perspectiva teórica dominante, qual seja a europeia, sempre voltada para uma
preocupação etnocêntrica e sem interesse pelas demandas próprias dos países
emergentes. Cite-se, como exemplo dessa linhagem, a abordagem do texto
autobiográfico realizada por Sylvia Molloy, em Vale o escrito – a escrita autobiográfica
na América Hispânica, em que se analisa a prática de leitura como gesto político e
cultural, uma forma de resposta da barbárie à civilização. Trair modelos e “citar mal”
configuram o traço original e criativo dos leitores periféricos, como o escritor argentino
Sarmiento, responsável pela atitude contraditória entre a sedução e o repúdio da
cultura europeia.1
O início do meu interesse pela abordagem biográfica teve como motivação o trabalho
de edição da correspondência entre escritores – Mário de Andrade, Henriqueta Lisboa,2
Murilo Rubião –, pela oportunidade de esclarecer dados até então nebulosos de suas
obras, soluções que possibilitaram sistematizar com mais rigor a poética defendida por
eles. A publicação da correspondência entre Mário e Henriqueta representou o convívio
direto com referências de vida dos autores, indispensáveis para o entendimento da
poética modernista e do ambiente literário correspondente às décadas de 1930 e 1940.
Seguiu-se a preparação da edição crítica de Beira-mar/memórias 4, de Pedro Nava, não
só pela análise de uma obra memorialista, mas pela necessidade de conhecer o arquivo
do escritor, composto por documentos de inegável valor para o aprimoramento e a
revisão da historiografia literária. Sua publicação está a caminho.
Graças à experiência com textos autobiográficos e memorialistas, publiquei o livro
Pedro Nava – o risco da memória e Pedro Nava, coletânea de textos e estudo crítico,
editado pela Coleção Nossos Clássicos.3 Por se tratar de uma obra de teor
memorialístico, a única maneira de ir além dos dados biográficos aí narrados consistiu
no procedimento relativo à ficcionalização e teorização do que já havia sido registrado
pelo autor. Essa prática ensaística não pretende distorcer nem embelezar os fatos
narrados, mas interpretá-los segundo sua relação com o contexto e com a ajuda de
instrumental teórico exigido para tal. Ficcionalizar os dados significa considerá-los
como metáforas, ordená-los de modo narrativo, sem que haja qualquer desvio em
relação à “verdade” factual. O gesto ficcional de composição de biografias torna-se
obrigatório para a elaboração de uma dicção que se situa entre a teoria e a ficção,
expressa como marca pessoal de cada ensaísta. A definição de Jacques Rancière para o
conceito de ficção, presente em A partilha do sensível, merece ser aqui transcrita, pela
semelhança de argumento por mim assumido nos ensaios sobre crítica biográfica e pelo
discernimento propiciado pelo termo:
Fingir não é propor engodos, porém elaborar estruturas inteligíveis. A poesia não tem contas a
prestar quanto à “verdade” daquilo que diz, porque, em seu princípio, não é feita de imagens ou
enunciados, mas de ficções, isto é, de coordenação entre atos. (…) O real precisa ser ficcionado para
ser pensado. (…) A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem “ficções”, isto é, rearranjos
materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e
o que se pode fazer.4
De nítida inclinação autobiográfica, a obra de J. L. Borges constitui uma das leituras
preferidas, por serem os exercícios ficcionais do escritor respostas adequadas aos
enganos e embustes exercidos pela má crítica biográfica. Desconfia do apelo realista que
privilegia as coincidências entre obra e vida, incentiva os deslocamentos contínuos
entre ficção e realidade, além de embaralhar o senso comum dos leitores.5 Tempo de
pós-crítica,6 memorial apresentado ao concurso para professor titular de Teoria da
Literatura na UFMG, registra outra vertente da pesquisa sobre o traço biográfico e a
crítica, desta vez centrada na revisão de uma trajetória acadêmica, aliada à da crítica
literária brasileira. Restrita à experiência pessoal e à de uma geração, essa revisão
permitiu que outros ensaios recebessem igual atenção, tendo em vista a ampliação do
panorama da crítica hoje. Destaco, entre eles, os ensaios sobre Luiz Costa Lima7 e
Silviano Santiago,8 intelectuais responsáveis pela sistematização e consolidação de um
pensamento crítico brasileiro e da formação acadêmica de grande parte de
pesquisadores que passaram pela maioria das universidades nacionais nas décadas de
1970 até o momento.
A pesquisa “O avesso da escrita: intelectuais a serviço de JK”, apoiada pelo CNPq,
consistiu no inventário do grupo de intelectuais que trabalharam com Juscelino
Kubitschek de 1940 a 1960. Nesse particular, foi ainda de grande relevância o registro
biográfico dos autores escolhidos, entendendo que a fabricação desses perfis envolve o
desdobramento da obra dos autores na sua vida, por se constituir como discurso de
natureza heterogêneo. O que mereceu maior destaque nessa abordagem foi a diferença
existente entre projeto político e projeto literário, levados a termo pelos intelectuais a
serviço do Estado. Autran Dourado, Alphonsus de Guimaraens Filho, Murilo Rubião,
Guimarães Rosa, Cyro dos Anjos, entre outros, foram respectivamente estudados a
partir do engajamento no emprego público como sistema de trabalho – um dos meios de
se alcançar prestígio e ascensão social – e a distinta posição assumida na confecção de
sua obra, nitidamente em descompasso com o programa desenvolvimentista do governo
de JK.
A editoração do Diário de guerra de Guimarães Rosa – cuja cópia do manuscrito
original se encontra no Acervo de Escritores Mineiros, finalizada há mais de três anos
pelos colegas Reinaldo Marques, Georg Otte e por mim – tem sido o corpus atual de
pesquisa em torno da criação de perfis biográficos. Esse enfoque, centrado em
documentos e manuscritos alocados nos arquivos, além de reconstituições dos lugares
frequentados pelo escritor, entende ser a vida literária componente imprescidível para
a compreensão da obra dos autores. Diante da impossibilidade de tornar público o texto,
por proibição da família, passamos a divulgá-lo por meio de ensaios que exploram a
atitude por vezes ambígua entre os deveres do escritor e as obrigações burocráticas
exigidas pelo cargo público. É de extrema relevância para a compreensão do estudo do
período e para a obra do autor ampliar o registro biográfico, dotado tanto de valor
documental quanto de gênese literária. “A biografia, um bem de arquivo”, ensaio
incluído neste volume, pretende esclarecer o enlace sempre revigorado entre gênese
biográfica, gênese textual e arquivo.
Os artigos que integram este livro se destacam por uma linha de pesquisa comum e
respondem não só pela distinção de enfoques – teóricos, temáticos, autorais –, mas pelas
épocas distintas de publicação das obras, além da diferença de gêneros – literatura,
artes plásticas, música, cinema, crítica, depoimento. O conjunto dos ensaios, à primeira
leitura, poderia soar um tanto discrepante, por abranger desde Mário de Andrade, Cyro
dos Anjos, Fernando Pessoa, Silviano Santiago, Jean-Paul Sartre e Bernardo Carvalho a
João Moreira Salles, Carmen Miranda, Caetano Veloso, Chico Buarque, ao lado do
testemunho pessoal sobre minha experiência de aprendizado na Escola Primária (“Com
açúcar e com afeto”). Na aparente profusão de nomes, persiste, contudo, um objetivo
comum: articular temas construídos nas obras com eventos pessoais e tentar,
principalmente, enlaçar as múltiplas paixões que regem tanto a vida como a literatura. O
nascimento, a morte, o destino literário, a família, a nação, a identidade e a memória
persistem ainda como os grandes temas que movem e compõem a escrita de todos os
tempos.
A esta escrita autobiográfica que se corporifica nos diversos discursos se ajusta a bela
metáfora empregada por Michel Beaujour, o “espelho de tinta”,9 para manter o
movimento paradoxal de proximidade e distanciamento entre literatura e vida, ficção e
documento. A literatura como destino foi, sem dúvida, uma das mais belas lições legadas
por Borges, com exemplos encontrados em toda sua obra. Não é por acaso ser um dos
contos de História universal da infâmia a constatação dessa verdade. “Espelho de tinta”,10
provável apropriação de uma narrativa árabe recolhida por R. F. Burton, relata o destino
da personagem estampado no círculo de tinta colocado, pelo feiticeiro, na palma de sua
mão. O círculo de tinta se espalha na mão, no papel-espelho, artifício capaz de prefigurar
a sina trágica da personagem, sua própria morte. O penúltimo ensaio deste livro,
“Espelho de tinta”, revisita o tema do duplo em O filho da mãe, de Bernardo Carvalho, e
inverte a imagem estereotipada de família. Escrever em terra estrangeira sobre
conflitos e dramas alheios não impede que se considere a narrativa o “espelho de tinta”
de conflitos pessoais, embora distorcidos e transformados.
Bibliografia
BEAUJOUR, Michel. Miroirs d’encre. Paris: Seuil, 1980.
BORGES, Jorge Luis. O espelho de tinta. In: ____. História universal da infâmia. Obras
completas de Jorge Luis Borges. I. São Paulo: Globo, 1999. p. 375-377.
MIGNOLO, Walter. Histórias locais, projetos globais. Tradução de Solange Ribeiro de
Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
MIRANDA, Wander Melo; SOUZA, Eneida Maria de (Org.). Navegar é preciso, viver.
Escritos para Silviano Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: EDUFF;
Salvador: EDUFBA, 1997.
MOLLOY, Sylvia. Vale o escrito – a escrita autobiográfica na América Hispânica. Tradução
de Antonio Carlos Santos. Chapecó: Argos, 2004.
PIGLIA, Ricardo. Respiração artificial. São Paulo: Iluminuras, 1988.
PIGLIA, Ricardo. El último lector. Barcelona: Anagrama, 2005.
RAMOS, Julio. Saber do outro. Escritura e oralidade no Facundo de Domingos Faustino
Sarmiento. In: ____. Desencontros da modernidade na América Latina. Tradução de
Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 31-45.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. Tradução de Mônica Costa
Netto. São Paulo: EXO Experimental/Editora 34, 2005.
SOUZA, Eneida Maria de. A crítica em palimpsesto – reflexões sobre a obra de Luiz Costa
Lima. Chasqui, Revista de Literatura Latino-americana, Brighan Young University, EUA, v.
XX, n. 1. p. 54-66, May 1991.
SOUZA, Eneida Maria de. O século de Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
SOUZA, Eneida Maria de. Cadernos do NAPq, Belo Horizonte, FALE/UFMG, 2002.
SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava – o risco da memória. Juiz de Fora: Funalfa, 2004.
SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava. Rio de Janeiro: Agir, 2005. (Coleção Nossos
Clássicos).
SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós-crítica. Belo Horizonte: Veredas & Cenários,
2007.
SOUZA, Eneida Maria de. Márioswald pós-moderno. In: CUNHA, Eneida Leal (Org.).
Leituras críticas de Silviano Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Perseu
Abramo, 2008. p. 23-50.
SOUZA, Eneida Maria de (Organização, apresentação e notas). Correspondência – Mário
de Andrade & Henriqueta Lisboa. São Paulo: Edusp; Peirópolis: IEB, 2010.
A crítica biográfica

A estreita e bem humorada relação entre obra e vida, teoria e ficção se deve ao
depoimento de Richard Rorty, filósofo pragmático americano, falecido em 2007.
Confessou, em texto publicado na Folha de S. Paulo, que sofria do mesmo mal de Jacques
Derrida, o câncer no pâncreas. Segundo Rorty, a coincidência era tributária da excessiva
leitura que ambos faziam de Hegel, o vício intelectual visto como a causa do mal. A
doença é diagnosticada, no entender do filósofo, pela escolha profissional do paciente e
pela leitura de determinado autor, não havendo, portanto, separação entre vida e
trabalho. A justificativa se apoia na inversão da causa física da doença pela profissional,
pela criação do mal pelo próprio indivíduo, graças à sua formação e desejo intelectual.
Rorty, filósofo pragmático e um dos seguidores da difícil obra de Hegel, morre, como
Derrida, daquilo que viveu, de sua paixão pelo conhecimento e por uma particular forma
de saber.
A declaração de Rorty, à primeira vista dotada de efeito humorístico, é capaz de
suscitar reflexões que iluminam a questão biográfica e a aproxima do livro de Michel
Schneider, Mortes imaginárias.1 São aí escritos e encenados os últimos momentos e as
prováveis frases pronunciadas por alguns escritores, assim como a situação, o lugar ou
as condições de sua morte. Esse exercício teórico/ficcional remete ao fascínio biográfico
motivado pela vida literária e a sensível aproximação entre teoria e ficção.
É digna de nota a pesquisa pioneira de Susan Sontag a respeito das doenças e suas
metáforas, como a tuberculose, o câncer e a Aids. Descrevendo as moléstias entre as que
eram aceitas e as excluídas pela sociedade, estabelecendo a relação entre arte e vida,
contribui do ponto de vista social, cultural e político para o avanço das discussões sobre
a crítica biográfica. A utilização da metáfora para a discriminação das doenças na
sociedade funciona de forma negativa, ao servir como reforço ao preconceito e à
exclusão. Reelabora, assim, conceitos arraigados e como resultado de crenças e
superstições, como a culpa, a vitimização e a irresponsabilidade social atribuídas aos
pacientes.2
A metáfora literária, utilizada como mediação por escritores para justificar a vocação
pela vida intelectual, tem em Roland Barthes um dos exemplos mais bem-sucedidos. Em
Roland Barthes por Roland Barthes, a legenda que registra a foto do escritor ainda
criança, “Contemporâneos?”, enlaça seu destino ao de Proust, pela relação entre seus
primeiros passos e o término da Busca. A contemporaneidade é construída no presente,
ao ser conferida à criança um passado literário: “Contemporâneos?/Eu começava a
andar,/Proust ainda vivia e/terminava a Busca.”3 Silviano Santiago se vale igualmente
dessa metáfora para construir relatos pseudoautobiográficos, utilizando-se da data de
seu nascimento, 1936, para apontar aí coincidências entre eventos vividos por
escritores de sua predileção, como Graciliano Ramos e Antonin Artaud.4 O destino
literário é marcado por injunções biográficas, pela escolha de precursores que garantam
a entrada do escritor no cânone. Entende-se, portanto, a concepção de biografia
intelectual como resultado de experiências do escritor não só no âmbito familiar e
pessoal, mas na condensação entre privado e público. As datas recebem tratamento
alegórico e a história pessoal se converte em ficção, pela intromissão do outro na
narrativa.
É importante, enfim, assinalar a contribuição de teóricos latino-americanos para a
leitura pós-colonial do gênero autobiográfico, na qual são introduzidas cenas que
remetem ao ato de leitura dos escritores. O livro, a leitura, a pose do leitor assumem
significado semelhante à iniciação do sujeito na escrita, gesto não apenas individual e
particular, mas cultural. Nesse sentido, os relatos autobiográficos giram em torno da
experiência do leitor latino-americano em relação ao arquivo europeu, promovendo
distorções e leituras desencontradas, com o objetivo de desconstruir o mito da escrita
como controle da barbárie. As incursões de Ricardo Piglia no universo da leitura; de
Sylvia Molloy na escrita autobiográfica; de Walter Mignolo na revisão dos conceitos de
local e global nos textos pós-coloniais; e de Julio Ramos na relação entre escrita e
modernização na constituição de saberes descontextualizados e, por esta razão,
inaugurais, autorizam a vertente cultural e comparada de minhas leituras.
No que diz respeito à abordagem mais pontual da crítica biográfica, é preciso
distinguir e condensar os polos da arte e da vida, por meio do emprego do raciocínio
substitutivo e metafórico, com vistas a não naturalizar e a reduzir os acontecimentos
vivenciados pelo escritor. Não se deve argumentar que a vida esteja refletida na obra de
maneira direta ou imediata ou que a arte imita a vida, constituindo seu espelho. A
natureza artificial da arte recebeu do dandy e decadentista Oscar Wilde a definição
primorosa: a vida imita a arte. A presença de mediações, de terceiras pessoas, da relação
oblíqua entre arte e vida é passível de intervenções entre as duas instâncias, sem que o
lastro biográfico se defina pela empiria e pela interpretação textual baseada em
soluções fáceis e superficiais. A preservação da liberdade poética da obra na
reconstrução de perfis dos escritores reside no procedimento de mão dupla, ou seja,
reunir o material poético ao biográfico, transformando a linguagem do cotidiano em ato
literário. Ainda que determinada cena recriada na ficção remeta a um fato vivenciado
pelo autor, deve-se distinguir entre a busca de provas e a confirmação de verdades
atribuídas ao acontecimento, do modo como a situação foi metaforizada e deslocada
pela ficção. O nome próprio de uma personagem, mesmo que faça referência a pessoas
conhecidas do escritor, não impede que sua encenação embaralhe os dados e coloque a
verdade biográfica em suspenso.
Pelo fato de a crítica literária se expandir em várias e múltiplas vertentes, incluindo-
se aí a crítica comparada, a cultural, a biográfica, a genética, a textual – sem que os
preconceitos e as hierarquias sejam prioritárias no tratamento das mesmas –, torna-se
às vezes difícil impor limites para sua prática. Diante do aspecto abrangente das
disciplinas e de sua abertura transdisciplinar, revela-se inoperante e retrógrada a
separação entre domínios específicos, embora deva ser exigida a definição de
pressupostos teóricos e de metodologias na realização de um trabalho crítico.
A crítica biográfica se apropria da metodologia comparativa ao processar a relação
entre obra e vida dos escritores pela mediação de temas comuns, como a morte, a
doença, o amor, o suicídio, a traição, o ódio, as relações familiares, como o tema dos
irmãos inimigos, da busca do pai, da bastardia, do filho pródigo e assim por diante.
Reunidos por um fio temático e enunciativo, independente de intenções ou da época em
que viveram, escritores e pensadores constituem matéria biográfica a ser explorada no
nível teórico e ficcional. A comparação conta, portanto, com a ajuda de critérios
biográficos ao promover encontros entre escritores e incentivar a criação de diálogos
muitas vezes inesperados. Esse procedimento é dotado de liberdade criativa, por
conceder ao crítico certa flexibilidade ficcional sobre o objeto em análise, não se
prendendo à palavra do autor, mas indo além dela. Por essa razão, o elemento factual da
vida/obra do escritor adquire sentido se for transformado e filtrado pelo olhar do
crítico, se passar por um processo de desrealização e dessubjetivação.
Essa crítica não se concentra, contudo, apenas em obras de teor biográfico ou
memorialista, por entender que a construção de perfis biográficos se faz
independentemente do gênero. Nas entrelinhas dos textos consegue-se encontrar
indícios biográficos que independem da vontade ou propósito do autor. Por essa razão,
o referencial é deslocado, por não se impor como verdade factual. A diferença quanto à
crítica biográfica praticada durante esses últimos anos consiste na possibilidade de
reunir teoria e ficção, considerando que os laços biográficos são criados a partir da
relação metafórica existente entre obra e vida. O importante nessa relação é considerar
os acontecimentos como moeda de troca da ficção, uma vez que não se trata de
converter o ficcional em real, mas em considerá-los como cara e coroa dessa moeda
ficcional. Consiste ainda na liberdade de montar perfis literários que envolvem relações
entre escritores, encontros ainda não realizados, mas passíveis de aproximação,
afinidades eletivas resultantes das associações inventadas pelo crítico ou escritor. Esses
perfis exercem, em geral, papel importante na elucidação de propostas literárias,
questões teóricas e contextuais.5
Se considerarmos que a realidade e a ficção não se opõem de forma radical para a
criação do ensaio biográfico, não é prudente checar, no caso de autobiografias ou de
biografias, se o acontecimento narrado é verídico ou não. O que se propõe é considerar
o acontecimento – se ele é recriado na ficção – desvinculado de critérios de julgamento
quanto à veracidade ou não dos fatos. A interpretação do fato ficcional como repetição
do vivido carece de formalização e reduplica os erros cometidos pela crítica biográfica
praticada pelos antigos defensores do método positivista e psicológico, reinante no
século 19 e princípios do século 20. O próprio acontecimento vivido pelo autor – ou
lembrado, imaginado – é incapaz de atingir o nível de escrita se não são processados o
mínimo distanciamento e o máximo de invenção. A crítica biográfica não pretende
reduzir a obra à experiência do autor, nem demonstrar ser a ficção produto de sua
vivência pessoal e intransferível. As relações teórico-ficcionais entre obra e vida
resultam no desejo de melhor entender e demonstrar o nível de leitura do crítico, ao
ampliar o polo literário para o biográfico e daí para o alegórico.
A retomada de conceitos referentes à autobiografia, como o de autoficção, inaugurada
por Serge Doubrovsky, em 1977, teve o mérito não só de rever a relação complexa entre
ficção e realidade, como de reforçar a incapacidade do sujeito de se manter íntegro e
onipotente. Considerada pela crítica como “aventura teórica”, a autoficção, longe de se
impor como chave que abre todos os enigmas da autobiografia – e se contrapõe a ela –,
guarda, segundo Jean-Louis Jeannelle, o conhecido estatuto conferido ao sujeito pelas
teorias psicanalíticas, foucaultianas e barthesianas, da ficcionalização de si, da
encenação de subjetividades no ato da escrita e do discurso. Essa aventura foi
proclamada por Roland Barthes em Roland Barthes por Roland Barthes, de 1975, ao
admitir na sua “autobiografia”, que “com as coisas intelectuais, fazemos ao mesmo
tempo teoria, combate crítico e prazer”.6 Para Serge Doubrovsky, a autoficção é a forma
pós-moderna, quer dizer, pós-holocausto, da autobiografia, pois, “mesmo que todos os
detalhes sejam exatos, o relato é sempre reinvenção do vivido” ou, mais à frente, “Não se
lê uma vida, lê-se um texto.” ou ainda:
Uma vez mais, nenhum autobiografia, nenhuma autoficção pode ser a fotografia, a reprodução de
uma vida. Não é possível. A vida se vive no corpo; a outra, é um texto. (…) A autoficção é o meio de
ensaiar, de retomar, de recriar, de remodelar num texto, numa escrita, experiências vividas de sua
própria vida que não são de nenhuma maneira uma reprodução, uma fotografia… É literalmente e
literariamente uma invenção.7
A autoficção, pela sua defesa da narrativa a meio caminho entre o testemunho e a
ficção, se declara uma narrativa pós-holocausto, por ter sido a narrativa do holocausto
sempre pautada pela obediência às normas de fidelidade aos acontecimentos vividos,
embora tal exigência se revelasse equivocada. Não resta dúvida de que a publicação, em
1998 (e em português, em 2008), do livro de Giorgio Agamben, Ce qui reste d’Auschwitz,
evidencia o avanço teórico das narrativas do holocausto, ao afirmar, com a ajuda de
outros pensadores, como Primo Levi, que todo testemunho contém necessariamente
uma lacuna, pois quem teria mais condições de se expressar com mais autoridade sobre
o fato, os considerados “muçulmanos”, não o fizeram. Como testemunhos integrais, não
puderam expressar sua experiência, por se encontrarem na condição de não humanos,
entregando sua vida ao destino, sem vontade nem para sofrer, à semelhança do
“muslim”, o suposto fatalismo islâmico. Eram denominados figuras, manequins, por se
situarem, como sobreviventes, na zona intermediária entre a vida e a morte, o humano e
o inumano.8
Outras indagações referentes à autoficção conduzem à desestabilização do
referencial, ao seu deslocamento, assim como aos deslocamentos espaçotemporais,
considerando serem os protocolos enunciativos mais livres. O autor tem a liberdade de
utilizar o mesmo nome para sua personagem ou narrador, sem que tal gesto interfira no
grau de fidelidade/infidelidade narrativa, em posição distinta daquela defendida por
Philippe Lejeune quanto ao pacto autobiográfico. Essa estratégia referencial às avessas
reveste-se ainda da antiga poética narrativa, marcada pelo gesto de “mentir-vrai”,
“mentir-verdadeiramente”, operação que reúne princípios enunciativos ligados ao
teatro e ao romance, construindo uma cenografia da enunciação. A desestabilização do
referencial produz, com efeito, a invenção e a estetização da memória, esta não mais
subordinada à prova de veracidade. Trata-se da ação deliberadamente ficcional por
parte do sujeito, do gesto de dessubjetivação que o insere no jogo fabular da narrativa.
Estar ao mesmo tempo no interior da linguagem e fora dela consiste na operação
paradoxal da presença/ausência do sujeito na complexa cena enunciativa. Essa
premissa ficcional é ainda assumida por muitos dos autores modernos – e pós-
modernos –; entre eles, a figura de Louis Aragon, na literatura francesa, e a de Silviano
Santiago, na brasileira, com o Falso mentiroso, de 2004, e Histórias mal contadas, de
2005.9 O artigo de Silviano Santiago, “Meditação sobre o oficio de criar”, recém-
publicado pela Revista Aletria, esclarece sobre o conceito de autoficção, além de ilustrar
uma das tendências mais controvertidas e, mesmo assim, mais presentes na literatura e
nas artes contemporâneas:
Um dos grandes temas que dramatizo em meus escritos, com o gosto e o prazer da
obsessão, é o da verdade poética. Ou seja, o tema da verdade na ficção, da experiência
vital humana metamorfoseada pela mentira que é a ficção. Trata-se do óbvio paradoxo,
cuja raiz está entre os gregos antigos. Recentemente, encontrei a forma moderna do
paradoxo num desenho de Jean Cocteau, da série grega. Está datado de novembro de
1936. No desenho vemos um perfil nitidamente grego, o do poeta Orfeu. De sua boca,
como numa história em quadrinho, sai uma bolha onde está escrito: Je suis un mensonge
qui dit toujours la verité. [Sou uma mentira que diz sempre a verdade.] Esse jogo entre o
narrador da ficção, que é mentiroso e se diz portador da palavra da verdade poética,
esse jogo entre a autobiografia e a invenção ficcional é que possibilitou que eu pudesse
levar até as últimas consequências a verdade no discurso híbrido. De um lado, a
preocupação nitidamente autobiográfica (relatar minha própria vida, sentimentos,
emoções, modo de encarar as coisas e as pessoas etc.), do outro, adequá-la à tradição
canônica da ficção ocidental.10
(Ensaio inédito. Cf. artigo de minha autoria, “Notas sobre a crítica biográfica”, publicado em Crítica
Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. Este ensaio dá continuidade à reflexão ali iniciada.)
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. Ce qui reste d’Auschwitz. Traduzido do italiano por Pierre Alferi.
Paris: Rivages Poche, 2003.
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-
Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
DOUBROVSKY, Serge. Les points sur les “i”. In: JEANNELLE, Jean-Louis; VOLLET,
Catherine (Dir.). Genèse et autofiction. Louvain-la Neuve: Bruylant-Academia, 2007. p.
53-65.
JEANNELLE, Jean-Louis. Où en est la réflexion sur l’autofiction? In: JEANNELLE, Jean-
Louis; VOLLET, Catherine (Dir.). Genèse et autofiction. Louvain-la Neuve: Bruylant-
Academia, 2007. p. 7-37.
SANTIAGO, Silviano. Em liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
SANTIAGO, Silviano. Viagem ao México. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. Revista Aletria, Belo Horizonte, n.
18, p. 178, jul./dez. 2008.
SCHNEIDER, Michel. Morts imaginaires. Paris: Grasset, 2003.
SONTAG, Susan. A doença e suas metáforas. São Paulo: Graal, 1984.
SONTAG, Susan. A Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava – o risco da memória. Juiz de Fora: Funalfa, 2004.
VASSEVIÈRE, Maryse. Autofiction et mentir-vrai chez Aragon: les aveux de la génétique.
In: JEANNELLE, Jean-Louis; VOLLET, Catherine (Dir.). Genèse et autofiction. Louvain-la
Neuve: Bruylant-Academia, 2007. p. 89-104.
Janelas indiscretas

Por ocasião da posse de François Mitterrand como presidente da França, em 1981,


recebi em Paris dois artigos publicados em jornais de São Paulo, um de Paulo Francis e
outro de Lúcio Rangel. A vitória tardia do socialismo no país era motivo de júbilo e
esperança por parte da população, num início de década ainda sujeita a transformações
de toda ordem. Os dois artigos se distinguiam quanto à abordagem do fato, insistindo
Francis na revelação de segredos amorosos do presidente, ao contrário de Rangel,
pouco interessado no assunto. Paulo Francis, jornalista cujo estilo se pautava pelo
modelo da imprensa americana, banalizava a vitória de Mitterrand e despolitizava o
evento ao mencionar a existência da amante, interferindo na vida privada do presidente.
A ênfase na transparência dos bastidores da vida do homem público se chocava com os
princípios da imprensa francesa, dotada sempre de discrição e respeito frente à
privacidade de cada um. A minha indignação se explicava por certa rejeição à tendência
da mídia em desestabilizar personalidades, valendo-se de detalhes pessoais e pelo
endosso de uma ética de fachada.
A separação entre a esfera privada e a pública, responsável pela legitimação do
exercício da democracia, é um dos lemas da política moderna, instauradora dos padrões
republicanos e pautada por práticas de representação e participação. Essa separação
inibia julgamentos particularizados sobre a conduta dos governantes, uma vez que cabia
à instituição zelar pela moralidade pública. A mídia, ao humanizar a imagem do
presidente, o considera como homem comum e o destitui de sua função representativa.
Esse gesto de naturalização da figura pública, aproximando-a do ambiente de família, se
explica pela atração voyeurista da mídia no seu papel de espectadora do jogo político.
Nos últimos anos, os desdobramentos desse processo espetacular da sociedade
contemporânea receberam provas de sua eficácia. Um dos pedidos de François
Mitterrand, antes de morrer em 1996, foi o de ter nos seus funerais a presença da filha e
da amante ao lado da família oficial. A declaração da doença, escondida do público
durante sua gestão presidencial, de 1981 a 1995, coincidiu com o reconhecimento
público da existência de uma relação extraconjugal. Mas os tempos hoje são outros. Nos
Estados Unidos, o escândalo do governo Clinton, no final dos anos de 1990, irá legitimar
o poder da mídia – e da internet – como veículos que começam a ocupar o lugar da
esfera pública. A invasão da privacidade denuncia a fragilidade do representante do
poder público diante de ameaças que ferem a moral e os bons costumes da sociedade.
Denunciado por assédio sexual pela estagiária Monica Lewinsky, o presidente por pouco
não sofre o impeachment, ao desrespeitar os valores moralistas da sociedade americana.
O escândalo político torna-se ainda mais atraente quando se tem como pivô a figura
feminina, motivadora de reações preconceituosas por parte da opinião pública.
Em 1997, a morte de Lady Di e do namorado em Paris, exemplo trágico da
intromissão da imprensa na vida privada das celebridades, constitui um dos mais
emblemáticos casos envolvendo a relação conflituosa entre a criação e a destruição de
mitos na atualidade. Com o acidente, inicia-se na imprensa o debate em torno da
superexposição da imagem pela mídia, da falta de privacidade e do comportamento
esquizofrênico dos meios de comunicação de massa. Lady Di, na condição de princesa
pop, atingiu popularidade até então inexistente na coroa inglesa, por ter, entre outros
fatores, seguido o modelo da plebeia que se casa com o príncipe. Conhecida como
“Rainha dos corações” ou “Rainha do povo”, seu ritual funerário será palco de uma das
grandes explosões de emoção popular, não só pela perda causada por uma morte
trágica, mas pelo simbolismo que representa na época pós-moderna. A distância entre o
povo e a princesa, separação que aumentava seu poder e sedução, se desfaz durante o
rito funerário pela conjunção imaginária entre a multidão e o corpo em exposição. A
estrutura ambígua do espetáculo permite, por momentos, que a manifestação pública
predomine sobre a privada, em que se mesclam sentimentos os mais variados. O
mercado de notícias sensacionalistas no mundo globalizado opera, portanto, a diluição
gradativa das esferas pública e privada, graças ao enfraquecimento dos valores que
definiriam os seus componentes.
A sociedade do espetáculo, polêmico livro de Guy Debord, lançado em 1967 na França,
consistiria num manifesto convertido em profecia para o tempo presente. Denuncia o
império capitalista da mercadoria, a vida como representação e a afirmação da
realidade sob a forma de imagens: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas
uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.”1 Intolerante diante da
sociedade de consumo, condena ainda a ação destruidora do tempo espetacular, ao se
revelar como devorador de imagens e do próprio tempo. Na condição de consumidor de
ilusões, o sujeito se priva de sua liberdade e se entrega à fruição de uma cultura que se
banaliza e se proletariza. O suicídio de Debord, em 1994, é significativo para se avaliar o
grau de intransigência manifestado contra essa sociedade, que a cada dia se mostrava
de modo artificial, desumano e ilusório. Ao cometer suicídio, converte-se ironicamente
em autor de uma cena espetacular na qual irá expor o que de mais íntimo e solitário
guarda o ser humano, o momento da morte. Esvaziado pelo excesso de representação e
envolto na dimensão obscena das imagens, torna-se vítima da sociedade que tanto
criticou.
O legado de Debord tem rendido bom número de adeptos entre os que respondem
pelo saber iluminista e por uma posição cultural elitista, norteados pela clássica divisão
entre público/privado, racionalidade/subjetividade, coletivo/particular. Dentre os
argumentos favoráveis ao corte com esse raciocínio binário estão a contínua
flexibilização das condutas, o enfraquecimento do Estado moderno, assim como as
marcantes transformações culturais e políticas dos últimos vinte anos. A flexibilização
dos pares opositivos não implica sua extinção, mas a relativização de princípios rígidos
responsáveis pela afirmação da autonomia de cada polo. A mudança de eixo
interpretativo se deve à intenção de contextualizar posições teóricas modernas,
pautadas pela dicotomia entre as esferas pública e privada, com vistas a abrir o debate
para a contemporaneidade. Nesses termos, a condenação da sociedade do espetáculo
por Debord não deverá ser avaliada, no presente, com base em critérios da época, em
virtude da natureza híbrida das diversas instâncias formadoras das referidas esferas.
Autobiografias em rede
É em torno da produção de novas subjetividades que a discussão sobre a sociedade
do espetáculo consegue avançar, por se apresentar de modo positivo. O gênero
autobiográfico, em larga expansão nas diversas áreas do conhecimento, se impõe de
modo exemplar para se refletir sobre as subjetividades contemporâneas e a relação que
aí se estabelece entre os domínios do público e do privado. No entender da socióloga
argentina Leonor Arfuch, em O espaço biográfico, a configuração atual das noções de
espaço público e privado se apresentam sem limites rígidos ou incumbências
específicas, por se submeterem a um constante processo de experimentação. Ao
discorrer sobre as subjetividades contemporâneas a partir de relatos autobiográficos,
refuta a posição radical e pessimista quanto à invasão de uma esfera por outra,
ponderando sobre o trânsito frequente entre elas. As diversas modalidades de
atualização das narrativas autobiográficas, longe de se constituírem como exacerbação
de individualidades ou narcisismo excessivo, exercitam o direito à expressão de vozes
anteriormente excluídas dos discursos hegemônicos.
Mais perto de Elias do que das partições dicotômicas, poderíamos dizer que ambos os espaços – se
conservamos uma distinção operativa – se entrecruzam sem cessar, numa e noutra direção: não só o
íntimo/privado sairia de seu caminho invadindo territórios alheios, mas também o público (em
seus velhos e novos sentidos, o político, o social o de uso, interesse bem comum etc.) não alcançaria
o tempo todo o estatuto da visibilidade; antes, e como se assinalou reiteradamente, poderia recuar,
de maneira insondável, sob a mesma luz da superexposição. Essa dinâmica, que às vezes se
transforma numa dialética, conspira contra todo conteúdo “próprio” e designado. Os temas – e seus
formatos – seriam então públicos ou privados, segundo as circunstâncias e os modos de sua
construção.2
O mesmo se verifica com o espaço da mídia, pois, antes de ser alvo de crítica, deverá
passar por outras instâncias de definição e avaliação, de revisão de seus critérios
estéticos e éticos como decorrência do enfraquecimento da oposição entre as esferas
privada e pública. Os exemplos do discurso autobiográfico e de reflexões teóricas sobre
a sociedade contemporânea serão retirados de alguns artigos e livros publicados na
França em 2004, com o objetivo de dialogar com distintas posições e melhor definir os
novos espaços comunicativos. Na sociedade francesa atual persiste o mesmo mal-estar
diante do excesso de exposição de escritores, celebridades ou pessoas comuns no meio
literário, social e midiático. Se a febre biográfica atingiu vários setores da vida cultural,
são evidentes as causas de sua expansão pelos discursos das minorias, redefinidores de
identidades e de lugares políticos. As reivindicações não se limitavam a substituir o
emprego de pronomes pessoais, a terceira pela primeira pessoa, mas em deslocar o
papel dos mediadores culturais, porta-vozes do outro.
O relato autobiográfico, nas suas distintas atualizações, ressurge como revelador de
individualidades criadoras, de senhas que ultrapassam interesses locais para se
integrarem às redes transnacionais de comunicação. Como exemplo dessa prática,
verifica-se a passagem da escrita do diário íntimo entre adolescentes para o exercício
dos blogs e de webcams na tela do computador, comprovando-se a retomada do
discurso autobiográfico sob forma coletiva.
“Le grand déballage” [“A grande exposição”] é o título da reportagem publicada na
revista francesa Le Nouvel Observateur, em abril de 2004, versando sobre a confissão
deliberada dos segredos íntimos como assunto preferido da época. No entender dos
autores da reportagem, o hábito de compartilhar segredos estaria se tornando um dos
últimos projetos coletivos da sociedade contemporânea, presente na produção de livros
de memórias, autobiografias, autoficções e nos programas de televisão. Entrevistas
feitas com escritores, celebridades e animadores de debates televisivos demonstram ser
a exposição da vida privada o meio de afirmação do sujeito pelo olhar do outro. A
confissão tornada pública atua de forma ambígua, tanto como gesto possível de
realização pessoal quanto na forma de recalque de situações de extrema solidão. Busca-
se no outro a identificação que lhe dá direito de pertencer a um grupo ou a uma tribo.
Michel Maffesoli, um dos teóricos citados, reitera a tendência atual do procedimento
autobiográfico diferente do simples narcisismo, ao defini-lo como narcisismo de grupo.
A passagem da atitude narcisista em direção à identificação tribal e comunitária
implica mudanças quanto à abordagem de questões identitárias, considerando-se que a
televisão e a internet são, no momento, os meios de produção de novas e heterogêneas
subjetividades. O avanço da sociedade do espetáculo e da cultura de massa possibilitou
o reconhecimento de diferentes modelos de valorização estética, da inserção do
cotidiano como sendo o pequeno mundo íntimo das pessoas comuns. Trata-se de
experiências da comunidade multicultural que se forma atualmente diante das telas do
computador ou da TV. O fenômeno kitsch – expressão perfeita da cultura
contemporânea – se impõe pela falta de autenticidade dos objetos e pela diluição dos
valores centralizados num estilo único, universal e hegemônico. Nada mais indicado
para se entender a distância que se verifica entre o culto, no passado, da posse de
objetos originais com marca registrada, e a fábrica do falso reinante, hoje, em quase
todas as expressões culturais e nos objetos de consumo.
A publicação do pequeno e simpático livro de Anne Cauquelin, L’exposition de soi – du
journal intime aux webcams, faz a revisão dos conceitos de subjetividade e de realidade
a partir da prática de comunicação atual, efetuada pelos blogs e webcams. Segundo a
autora, a realidade está sempre colocada em xeque diante da proliferação do aparato de
imagens produtoras de simulações, do virtual ou da criação de clones, invadindo o
vocabulário cotidiano de termos como tempo real, tele-realidade, reality shows. O
destino reservado ao mundo das imagens, após ter inserido no cotidiano das pessoas
altas doses de vivência virtual, é o de tentar proceder à reversão da realidade,
encenando a perda e se projetando subjetivamente pelo olhar do outro. A saída desse
universo fechado da incomunicabilidade e da solidão se dá por procedimentos que
guardam analogias com a arte do espetáculo: existir é ser percebido. A formação desse
diário íntimo coletivo na internet se caracteriza pela vivência simultânea do tempo, por
ações interativas que atualizam o tempo real. Dessa experiência, o que se ressalta como
fator positivo para o conhecimento de outras realidades é a valorização do banal, da
vida comum, tornada reality show pela sua associação à estética pobre da arte
contemporânea. O fato de os cibercamistas colocarem câmeras em diferentes lugares
dos apartamentos serve para captar a imagem de não lugares considerados banais,
repetitivos e sem interesse. Assim, “os ritos diários são acompanhados de minigestos:
tomar um sorvete, acender uma lâmpada, se olhar no espelho do banheiro”.3
Os relatos de ficção autobiográfica – batizados, em 1977, por Serge Doubrovsky de
autoficções4 – têm se proliferado na França desde Simone de Beauvoir, com Les
mandarins, na década de 1950, a Julia Kristeva, nos anos 1980, com Les samouraïs,
romances bem-comportados sobre períodos distintos da vida intelectual parisiense.
Mas a geração formada por filhos de escritores e celebridades irá escandalizar, nas
décadas seguintes, os frequentadores de Saint-Germain-de-Près, pela ousadia com que
narram os relacionamentos familiares e amorosos. O livro de estreia de Justine Lévy –
filha do filósofo Bernard Henri-Lévy –, Le rendez-vous, assim como o mais recente, Rien
de grave, se transformaram em best-sellers, pela ousadia em dramatizar, de forma crua,
cenas privadas envolvendo personagens entre a realidade e a ficção.
Estéticas do efêmero
A publicação de um bom número de ensaios sobre cultura contemporânea tem
suscitado discussões, não só no meio intelectual francês como em outras partes do
mundo. Dentre os mais recentes, vale mencionar o do etnólogo Marc Augé, intitulado
Pour quoi vivons-nous?, o do sociólogo Gilles Lipovetsky, Les temps hypermodernes e
Esthétique de l’éphémère, da crítica de arte Christine Buci-Glucksmann. Pela atenção
dedicada ao domínio da imagem, à precariedade dos valores, ao individualismo e às
questões envolvendo noções de tempo e espaço, esses livros mantêm diálogo indireto
com A sociedade do espetáculo, de Debord, sem contudo se vincularem a preceitos
racionalistas e socialistas ou à condenação radical dessa sociedade. É de interesse
teórico citá-los por dialogarem com as novas e múltiplas formações de relatos
autobiográficos na cultura contemporânea, ressaltando o enfraquecimento atual das
instituições, a metamorfose da ética e a espetacularização de sentimentos.
O conceito de hipermoderno – que, a meu ver, pouco se distingue do pós-moderno –
representaria a segunda revolução moderna, graças à dimensão hiperbólica alcançada
pelas transformações culturais. Ao momento eufórico do pós-moderno segue-se sua
exaustão, obtida pela excessiva reconfiguração de seus princípios, principalmente
quanto à transformação hiperindividualista do sujeito. Em decorrência da falta de
proteção coletiva e do esgotamento das instituições, vive-se entregue a si próprio, se
autoinventando e procurando saídas no interior de espaços privados e solitários. A falta
de comunicação na sociedade hipermoderna conduz, no entender de Lipovetsky, ao
isolamento, gerado pela troca de hábitos e comportamentos. A domesticação da vida
pública se efetua pelo exercício virtual e interativo da comunicação eletrônica, capaz de
diminuir espaços e converter a dimensão temporal em recepção simultânea do real. Um
dos principais itens de sua crítica à hipermodernidade consiste na denúncia da noção de
cultura que se confunde com o consumo, gerando a desestabilização e o barateamento
dos valores. A obra de Lipovetsky, embora forneça contribuição válida para o avanço
das questões contemporâneas, revela-se, contudo, limitada em vários pontos de sua
exposição. Mas a ausência de conotação apocalíptica consegue sustentar um
pensamento que se interessa pela busca de justificativas possíveis para o entendimento
do momento presente.5
Em Pour quoi vivons-nous? Marc Augé amplia o conceito de “não lugar” elaborado em
Não lugares – introdução a uma antropologia da supermodernidade. Ao defini-lo como
espaço de circulação (aeroportos, supermercados, tela de televisão), o “não lugar”
refere-se também ao espaço do debate público – “lugar metafórico onde se forma a
opinião pública”. O polo oposto ao conceito de “não lugar” não se define como o conceito
de “lugar”, ou o espaço privado, à medida que essas instâncias se cruzam e se
relativizam, de modo semelhante à articulação flexível das esferas pública e privada.
Nas palavras do autor, o que se processa atualmente é o deslocamento generalizado
desses espaços, resultando em distorções e na mudança do próprio sentido do adjetivo
“público”. A fraca oposição entre lugar e não lugar permite compreender o
deslocamento da fronteira entre público e privado, chegando até a sua diluição,
considerando que o espaço público transformou-se em espaço de consumo.6 A reflexão
de Marc Augé se concentra na articulação e redefinição dos espaços urbanos, lidos de
modo literal e metafórico. Na discussão em pauta sobre os espaços autobiográficos na
literatura e na mídia, deverá ser levada em conta a construção em processo da opinião
pública.
O livro de Buci-Glucksmann, Esthétique de l’éphémère, resolve o impasse existencial
frente às questões da época globalizada utilizando-se da arte como discurso que exibe o
sintoma de um tempo passageiro e precário. Mas é a partir do salto da estética para uma
reflexão ética e política da existência que se configura o efêmero, isolando o modelo
pessimista e enlutado da modernidade e atuando como saída positiva para o tempo
presente. A precariedade e desconforto do homem moderno traduzem as inquietações
ligadas a problemas de natureza identitária, surgidos pela convivência do eu com o
estranho outro. O tempo, analisado enquanto categoria frágil e nômade, capaz de
modificar a relação do sujeito com o mundo, pelo engendramento de uma estética dos
fluidos, modifica as condições de construção de imagens, de paisagens e dos ambientes
urbanos. A explicação para o sentido da existência suscita, portanto, novas formas de
subjetivação, conforme lição de Michel Foucault, com vistas a construir uma
“hermenêutica do sujeito”, referente ao cuidado de si e do outro.
Christine Buci-Glucksmann, na distinção entre duas categorias do efêmero, o
“melancólico” e o “cósmico”, sintetiza o trajeto da modernidade para a pós-
modernidade, sem que a passagem se traduza em perda ou luto. O “efêmero
melancólico”, marcado pelo spleen baudelairiano, pela alegorização do eu e pela
alienação de si, diferencia-se do “efêmero cósmico” dos tempos atuais, por transformar
o peso existencial e plástico em leveza positiva e em energia vital, categoria estética
legada por Nietzsche ao século 20.7 A lição que daí se retira permite chegar ao conceito
de efêmero cultural, contemplado nas suas fragilidades e esquecimentos, espécie de
desordem produtiva que movimenta o imaginário de uma época.
Não é de se estranhar que a comunidade intelectual francesa, reconhecida pelo recato
e respeito pela vida privada de seus membros, reaja de forma hostil à avalanche de
discursos da intimidade, veiculados principalmente pelos livros de memórias, pelos
programas da mídia televisiva e pelos relatos autoficcionais. Esse ambiente cultural não
se mostra exclusivo dos países considerados desenvolvidos, mas se encontra
disseminado na maior parte das regiões letradas do mundo. Os vários tipos de reação à
cultura do espetáculo omitem as reais intenções aí subjacentes, por se tratar da defesa
de uma sociedade que deveria se pautar pelo comportamento opaco e distanciado
quanto às expressões exteriorizadas de sua intimidade. A transparência operada pela
cultura moderna – amante dos vidros, dos espelhos, da indistinção entre exterior e
interior, do precário, do perecível e da pobreza da experiência – assiste ao declínio do
valor absoluto dos objetos e à banalização do conceito de gosto. Para a maioria letrada,
essa situação é insuportável, por abalar orientações estéticas unificadoras e
universalistas, além de retirar dos objetos contemporâneos traços de profundidade e
perenidade. A sociedade do espetáculo não deveria ser entendida apenas como a
sociedade das aparências manipulada pelo discurso do poder, mas como aquela em que
a realidade se constitui nas suas formas mais brandas e fluidas.
(Artigo publicado no número 5 da Revista Margens/Márgenes, Belo Horizonte, UFMG, p. 92-101,
2004.)
Bibliografia
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico – dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de
Janeiro: Eduerj, 2010.
AUGÉ, Marc. Não lugares – introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Tradução de Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus, 1992.
AUGÉ, Marc. Pour quoi vivons-nous? Paris: Fayard, 2003.
BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Esthétique de l’éphémère. Paris: Galilée, 2003.
CAUQUELIN, Anne. L’exposition de soi – du journal intime aux webcams. Paris: Editions
Eshel, 2003.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1997.
DOUBROVSKY, Serge. Fils. Paris: Galilée, 1980.
LIPOVETSKY, Gilles. Les temps hypermodernes. Paris: Grasset, 2004.
A biografia: um bem de arquivo

A pesquisa em arquivos é uma atividade que não atrai a maior parte dos estudiosos
do texto literário, por se confundir, muitas vezes, com uma atitude conservadora e
retrógrada frente à literatura. Teorias críticas dos últimos anos contribuíram para o
gradativo apagamento do interesse pelo exame das fontes primárias, ao ser valorizado o
texto na sua integridade estética, sem o interesse pelos bastidores da criação. A recusa
em se deter no processo construtivo como resultado do trabalho do autor se justifica
por ele ter sido entidade incômoda para a crítica, que pouca importância conferia ao
contexto histórico das obras. É significativa esta retomada crítica da figura do autor, seu
retorno por meio de traços e resíduos, da assinatura, abolindo-se o procedimento de
recalque como produto do pacto ficcional com a escrita, inscrita de modo asséptico e
distanciado. Na história da crítica ocidental, a atitude mais comum da crítica se
concentrava na censura da presença do escritor na cena literária, impondo-se a
linguagem como absoluta e eliminando-se a assinatura segundo padrões de
objetividade.
Com a doação de seus manuscritos à Biblioteca Nacional da França, em 1971, Miguel
Ángel Asturias preparou o espírito de seus futuros pesquisadores, incentivando-os a
preservar não apenas as obras publicadas, mas também os rascunhos e variantes que
acompanham o material de trabalho dos escritores. Esse gesto motivou a criação da
Coleção Archivos, cujo objetivo maior é a preservação do acervo dos escritores para que
sirva de fonte documental para o aprimoramento das edições comentadas e críticas. O
destino material e analítico desse acervo literário passou a ser uma das maiores metas
da crítica filológica e genética, no sentido de se considerar a obra não mais como objeto
fechado e acabado, mas sujeita a modificações e transformações interpretativas. Se o
trabalho de recuperação do texto original exige do pesquisador exame exaustivo das
diferentes edições e mudanças processadas pelo autor ou causadas pelos erros de
edição, a crítica genética revela o lado inconcluso e incompleto da criação, permitindo
que a abordagem dos documentos não mais se restrinja ao texto publicado e ao seu
estatuto de objeto intocável e inerte.
A obra submetida à edição crítica recebe tratamento editorial capaz de lhe conceder
dignidade, ao introduzir metodologias de trabalho centradas nas fontes primárias,
procedimento analítico em estágio de desenvolvimento e amadurecimento entre
pesquisadores do manuscrito literário. Trata-se de uma das aspirações pós-modernas
de recuperação da memória literária, pelo abandono do projeto totalizante e unificador
da modernidade para se fixar nas diferenças que delineiam o fragmentado e vigoroso
arquivo cultural da atualidade.
A prática analítica voltada para as fontes primárias não irá revelar um olhar
conservador sobre a escrita literária, mas a sua revitalização: o “manuscrito será o
futuro do texto”, assim se expressa Jean-Louis Lebrave, um dos notáveis representantes
da crítica textual e genética francesas. Enquanto os manuscritos estiverem sendo
guardados com vistas a um procedimento analítico, reinstaura-se ainda um pouco da
gênese literária. Segundo Louis Hay, autor de uma das mais claras reflexões sobre a
questão,
o manuscrito é de uma extraordinária diversidade, e pertence a todas as etapas e a todos os estados
do trabalho, dossiês, esboços, planos, rascunhos. Mas, desde que o pensamento ou a imaginação os
tocaram, todos, do documento inerte – até a página inspirada –, encontram-se dotados de vida e
convocados a desempenhar seu papel num projeto de escritura.1
É forçoso lembrar que esta prática de lidar com os manuscritos começa a perder sua
utilidade e prestígio nos tempos atuais, pela ação dos novos instrumentos da escrita
como o computador, substituto da máquina de escrever, mas dotado de potencialidades
muito mais destrutivas frente ao arquivo pessoal do escritor. Os rascunhos
desaparecem ao serem apagados pela eficiência de uma tecla que deleta o que se
apresenta como excessivo ou descartável para a finalização da obra. No entanto, outros
procedimentos começam a surgir, com vistas a recuperar o rascunho – ainda que
digitado – das obras, o que está, curiosamente, provocando o excesso de arquivos desta
natureza, além de outros relacionados à memória digital.2
É digno de nota o rico material existente nos acervos dos escritores, como a
correspondência entre colegas, depoimentos, iconografias, entrevistas, documentos de
natureza privada, assim como a sua biblioteca, cultivada durante anos. Um esboço de
biografia intelectual emana desses papéis ao serem incorporados, ao texto em processo,
a cronologia dos autores, o encarte de fotos, a reprodução de documentos relativos à
sua experiência literária, assim como a revisão da bibliografia sobre os titulares das
coleções. As pesquisas respondem por sua originalidade, uma vez que o objeto de
estudo é construído no decorrer do arranjo dos arquivos, da surpresa vivenciada a cada
passo do trabalho. A elaboração de perfis biográficos deve contemplar não só o que se
refere à obra publicada do autor, mas também os objetos pessoais, imprescindíveis para
a recomposição de ambientes de trabalho, de hábitos cotidianos e processos
particulares de escrita. Objetos muitas vezes triviais, mas pertencentes ao cotidiano de
todo escritor, adquirem vida própria ao serem incorporados à sua biografia: mesa de
trabalho, máquina de escrever, canetas, agendas, porta-retratos, objetos decorativos,
cadernos de anotações, papéis soltos, recibos de compra, diários de viagem e assim por
diante. As condecorações e diplomas servem ainda de registro quanto à participação do
titular na vida pública. Não devem, portanto, ser negligenciados como objetos
desprovidos de valor. Compõem, com as obras de arte ou as edições de luxo, espaço de
trabalho e de intimidade do escritor.
Os bastidores da criação, as experiências vividas pelos autores – ligadas à produção
literária e existencial – constituem lugares pouco conhecidos pela crítica. A intenção de
reunir crítica biográfica e crítica genética permite expandir o registro documental dos
autores como tentativa de recuperar estágios pré-textuais e estágios previvenciais. A
página de rascunho, metaforicamente considerada o jardim íntimo do escritor, revela o
que o texto definitivo não consegue transmitir: a imaginação sem limites, os recuos da
escrita, os borrões, o espaço no qual a face escondida da criação deixa transparecer o
fulgor e a paixão da obra em processo. Página branca, marcada de signos negros, torna-
se a imagem do espelho que refletiria as relações pessoais do escritor com o texto, onde
se supõe ser tudo permitido. Pela liberdade de rasurar, de escrever entre as linhas, de
acrescentar aos originais margens desordenadas e rebeldes, este laboratório
experimental desempenha papel importante na história da literatura moderna. O
entusiasmo pelo processo da escrita e o interesse pela gênese dos textos ultrapassam a
curiosidade do crítico em penetrar nos bastidores da criação e atingem dimensões
próprias ao exercício literário e biográfico.3
Seguindo parâmetros referentes à crítica biográfica,4 é necessário distinguir e
condensar os polos da arte e da vida, através da utilização de um raciocínio substitutivo
e metafórico, com vistas a não naturalizar e a reduzir os acontecimentos vivenciados
pelo escritor. A preservação da liberdade poética da obra na reconstrução de perfis
biográficos consiste no procedimento de mão dupla, ou seja, reunir o material poético
ao biográfico, transformando a linguagem do cotidiano em ato literário. Ainda que
determinada cena recriada na ficção remeta a um fato vivenciado pelo autor, é preciso
distinguir entre a busca de provas e a confirmação de verdades atribuídas ao
acontecimento, do modo como a situação foi metaforizada e deslocada pela ficção. O
nome próprio de uma personagem, mesmo que se refira a pessoas conhecidas do
escritor, nada impede que sua encenação embaralhe as referências e coloque a verdade
biográfica em suspenso.
A crítica genética, responsável pelo trabalho em torno da gênese da escrita, contribui
ainda para seu aparato biográfico, considerando a importância de se processar o cotejo
entre manuscrito e texto, assim como entre a trajetória literária do escritor e a relação
com o lugar escolhido para exercer seu ofício, seja no próprio escritório, nos
deslocamentos e viagens, seja no ambiente boêmio dos bares e dos cafés. Nesse
particular, é possível reconstituir o espaço de escrita dos autores, pela transformação de
sua casa ou de seu acervo em museu ou fundação. Essa solução museográfica confere ao
titular a oportunidade de se tornar conhecido no seu cotidiano de escritor e de homem
comum pelos leitores do futuro, ao lado da sua obra. Alguns escritores se preocupam em
legar à posteridade um pouco do que ficou desse ambiente, ainda que sob a forma
textual, como é o caso de Pedro Nava, ao descrever seu apartamento no bairro da Glória,
no Rio, em Galo-das-trevas. O interior burguês é ornamentado de peças reveladoras da
“adesão dos mortos aos objetos”, a lembrança dos amigos que se foram, personificada
nos retratos, numa cadeira, num encosto de poltrona, numa carta. Os objetos são
dotados de memória e de forte marca do passado. O museu imaginário contém, em
miniatura, a lembrança dos parentes, pequenos objetos mágicos que se configuram
como ruínas do passado.5 Em outros escritores, o recurso metalinguístico de descrição
do ambiente de trabalho funciona também como exposição de uma poética particular.
Destinado ao futuro, ao devir de uma leitura, ou à desmitificação do lugar sagrado
conferido a esta atividade, o livro de Georges Perec, Penser/classer, ilustra diferente
perspectiva estética. De forma distinta da poética de Nava, o escritor francês, por meio
de uma narrativa/descrição distanciada e minimalista do ambiente de trabalho,
desconstrói qualquer tipo de ligação com a tradição e o passado. Enumerando os
instrumentos de escrita, os empilhando sobre a mesa e misturando objetos com
diferente função, Perec desconfia da hermenêutica crítica, representada pelo leitor
ávido em descobrir o sentido oculto dos textos ou em decifrar enigmas literários:
Antes, eu não tinha mesa de trabalho, quero dizer, não havia uma mesa expressamente para isso.
Hoje, me ocorre, ainda com bastante frequência, de trabalhar num café; mas, na minha casa, é
raríssimo que trabalhe (escreva) em outro lugar que não seja minha mesa de trabalho (por
exemplo, não escrevo por assim dizer jamais na cama) e minha mesa de trabalho serve apenas para
meu trabalho (ainda uma vez, escrevendo essas palavras revela-se precisamente que isso não é
totalmente exato: duas ou três vezes por ano, quando faço festas, minha mesa de trabalho,
inteiramente desocupada, recoberta de toalhas de mesa de papel – como a prancha sobre a qual se
empilham meus dicionários –, torna-se buffet).6
Colecionar/Pensar
O livro exige vizinhança e complemento, necessita do contexto de outros livros, àqueles aos quais
remete. A biblioteca facilita a transtextualidade concreta, física, o descobrimento e a produção de
referências entre as peças individuais da coleção. Já que se repete o processo de formar parte de um
todo dentro das capas de um só livro, este contém em si uma biblioteca em miniatura.7
O comportamento do crítico que se interessa pelos manuscritos e bibliotecas autorais
se pauta ainda pela lição de Walter Benjamin, autêntico e apaixonado colecionador de
livros. Rodeado de mil tomos, de variada literatura, afirmava que o bibliófilo, ao adquirir
um livro velho, assumia o poder de lhe dar nova vida. Na sua obra, Benjamin repete o
processo revitalizador do bibliófilo, transformando-se em colecionador de citações,
arrancando os fragmentos de seu contexto e os organizando numa forma nova, sempre
arbitrária e nunca definitiva. Lê e coleciona, desloca a tradição, por um processo
simultâneo de conservação e destruição. Amplia este raciocínio para o ambiente privado
do burguês, o qual se afasta do espaço público e transforma sua casa – o espaço privado
e afetivo – em santuário, lugar propício à criação da privacidade. A biblioteca atua como
materialização dessa privacidade, por se erigir como lugar de encontro do colecionador
com seu universo de lembranças e de objetos auráticos, sejam eles de qual natureza for:
Não há nenhuma biblioteca viva que não abrigue, em forma de livro, um número de criaturas das
regiões fronteiriças. Não precisam ser álbuns de colar ou de família, nem cadernos de autógrafos ou
textos religiosos: muitas pessoas se afeiçoam a folhetos e prospectos, outras a fac-símiles de
manuscritos ou cópias datilografadas de livros impossíveis de achar; e, com certeza, revistas podem
compor as orlas prismáticas de uma biblioteca.8
No Arquivo Henriqueta Lisboa, entre documentos de outros escritores, encontra-se
uma cópia do Diário de guerra, de Guimarães Rosa, período em que serviu como cônsul-
adjunto no Consulado Brasileiro em Hamburgo, de 1938 a 1942.9 O documento é de rara
importância para o esclarecimento das relações políticas existentes entre o Brasil e a
Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, além de revelar uma escrita em processo
do escritor, entre silêncios e rasuras referentes ao período conturbado pela perseguição
nazista aos judeus. Sem menção direta à ajuda prestada por Rosa e sua companheira de
trabalho e futura mulher, Aracy Moebius de Carvalho, à causa judaica, o Diário denuncia
a ascensão do regime totalitário e excludente representado pelo nazismo.
O texto registra a passagem por Hamburgo do então aspirante a escritor, anotando,
desenhando, colando e copiando notícias sobre a situação de uma cidade às vésperas da
guerra, assim como outros informes de seu cotidiano: alarmes constantes de bombas;
impressões pessoais sobre leituras; registro de saídas e visitas aos amigos; recortes, em
alemão, de fatos sobre a guerra; anotações para futuros textos literários; desenhos de
lugares e de pessoas; anedotas, listas em alemão de nomes da flora e de espécies de
temperos; referências sobre a revisão dos contos de Sagarana, ainda inédito. O Diário se
assemelha, portanto, a uma caderneta de notas, pelo seu caráter híbrido, entre o
documento e o exercício da escrita subjetiva, prática que acompanhará Rosa nas viagens
ao exterior e nas andanças pelo sertão, sempre à cata de material para a narrativa
fabulosa que estava compondo.
Em 1934, Guimarães Rosa ingressa na carreira diplomática, deixa a medicina e torna-
se, nas décadas seguintes, um dos maiores escritores da literatura brasileira. Publica,
em 1946, o primeiro livro de contos, Sagarana, e, em 1956, Grande sertão: veredas e
Noites do sertão. Em plena fase de uma modernidade reciclada pelo projeto industrial de
modernização do Brasil, o escritor mineiro volta-se para a tradição, apropriando-se da
matéria regional como pano de fundo à experimentação de linguagem. Reúne
procedimentos revolucionários na literatura, com temas considerados arcaicos, e rompe
com a tendência hegemônica reinante nas manifestações modernas, voltada para o
nacionalismo, ao se abrir para a proposta universalista.
O arquivista Guimarães Rosa, na prática cotidiana da escrita, é assim descrito por
Walnice Nogueira Galvão:
Um olhar sobre a natureza de operar do nosso escritor é facultado pela frequentação do Arquivo
Guimarães Rosa, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. (…)
Há ali abundância de materiais, tais como correspondência ativa e passiva, ainda inédita, recortes,
cardápios, fotos e postais, diplomas e certificados, documentos, papéis relativos à carreira
profissional, mementos de todo tipo. Mas sobressai uma notável coleção de 7 cadernetas e 25
cadernos, que serviram a diferentes propósitos. Podem conter impressões de boiadeiro, da ocasião
em que o escritor tangeu boiadas pelo sertão mineiro, em configuração que se tornou legendária;
necessitando das mãos livres para subjugar a montaria, levava o caderno atado ao pescoço por um
barbante.10
Na escrita do Diário de guerra, o leitor se depara com os bastidores da criação, com as
experiências do escritor frente à sua produção literária e existencial, lugares pouco
explorados pela crítica. Na intenção de reunir crítica biográfica e crítica genética,
expande-se o registro documental dos arquivos e recuperam-se os estágios pré-textuais
como meio eficaz de criação de biografias.
A experiência de Rosa durante sua estada em Hamburgo rendeu, além do Diário,
quatro contos-crônicas, publicados em periódicos e, mais tarde, reunidos em Ave,
palavra, em 1970: “O mau humor de Wotan” (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 fev.
1948); “A senhora dos segredos” (Correio da Manhã, 6 dez. 1952); “Homem, intentada
viagem” (O Globo, 18 fev. 1961); “A velha” (O Globo, 3 jun. 1961). Esses textos
completam a experiência do escritor vivida no exterior e durante a perseguição judaica
pelo nazismo, produzem o efeito biográfico por meio do registro de fatos reais, embora
estejam construídos segundo parâmetros ficcionais. A meio caminho da crônica e do
conto, as histórias revestem-se tanto do aparato documental quanto fictício, o que
permite reconhecer a ambiguidade de sua concepção e de seu resultado textual.
Sem descartar dados de ordem política que atenuem a imagem de conservador e
apolítico imputada a Guimarães Rosa – nas anotações do Diário de guerra refere-se
constantemente à discriminação judaica –, a criação do perfil biográfico do escritor
relativo a essa época remete obrigatoriamente à relação entre a escrita diplomática, o
exercício autobiográfico do Diário de guerra e suas recriações literárias. Lidar com a
história pessoal ou coletiva significa alçá-la à categoria de um texto que ultrapassa e
metaforiza os acontecimentos, sem recalcar o valor documental e o estatuto da
experiência que aí se inscrevem. O procedimento criativo se sustenta por meio do ritmo
ambivalente produzido pela proximidade e pela distância em relação ao fato. O escritor
procede, por exemplo, à colagem de anúncios fúnebres publicados em jornal de alemães
mortos em sacrifício pela pátria ao lado de informação pessoal sobre a venda de seu
carro. No mesmo espaço da página, o arquivista torna o estranho familiar – o anúncio
fúnebre – e contrasta seu sentimento de propriedade – a venda do carro – com o
sacrifício dos alemães pela causa patriótica. O processo de montagem resulta na
simultaneidade dos discursos heterogêneos e sua consequente uniformidade e
contraste. O sentimento de propriedade do regime capitalista e burguês se expõe de
forma individualista diante da iminência de mortes coletivas causadas pela guerra:
21.XI.1940 – Vendi o automóvel hoje. Lá se foi o meu HH 727, por 2.535 Reichsmark. Que venham
outros, mais tarde!
20.XI.1940
Foi vítima de um ataque de aviões britânicos a um bairro residencial de Hamburgo a companheira
Elfriede Festersen [17 anos]
Ela também morreu pela Alemanha!
NSDAP Distrito Hamburgo 1
Rümker, p/chefe de distrito11
Por se tratar de um texto fragmentado e lacunar, como é a estrutura do diário, cresce,
contudo, sua importância como documento do escritor/diplomata que vivenciou um
período marcado por grandes conflitos internacionais. A prática do arquivista se
manifesta no contato real com a cultura europeia, ameaçada pela barbárie da guerra e
da distorção dos princípios de cidadania e liberdade. O avanço tecnológico resultante da
modernização se desviava para o aprimoramento dos instrumentos bélicos, para a
exclusão étnica e para o extermínio das cidades. Como reagiria o Guimarães Rosa
poliglota, recém-chegado ao continente para cumprir missão diplomática, com os
originais de Sagarana na mala e ainda interessado em aprimorar seu espírito
cosmopolita? Como conciliar os alarmes de bomba, as notícias transmitidas pelo rádio
sobre ataques aéreos e mortes, com o trabalho no Consulado, com a revisão dos contos,
com a curiosidade do escritor por tudo que se referia à língua e à cultura alemã, e por
extensão, à europeia?
O pacto de Rosa com a linguagem se pontua nesse intervalo, na pausa entre textos e
vivências construídas em contraponto, em que o diplomata divide com o escritor a
missão de desconfiar do apelo da racionalidade moderna, contaminada pela destruição
e ruína dos valores. Silenciar este texto e censurar o diálogo futuro com os leitores
concede ao Diário de guerra o destino de textos relegados ao esquecimento e
convertidos em falsa mitologia.
(Artigo publicado na Revista Alea – Estudos Neolatinos, v. 10, p. 121-129, 2008.)
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Biografar é metaforizar o real

A análise do documentário de João Moreira Salles, Santiago, de 2007, tem o objetivo


de discutir a construção de relatos biográficos sobre personagens que exercem a
memória e a escrita como forma de sobrevivência, além de ser o protagonista um
mordomo, por ocupar um lugar socialmente inferior no meio de uma sociedade
burguesa. O diretor do documentário, ao pretender registrar a experiência de vida dessa
personagem que serviu à sua família durante 30 anos, realiza uma obra que o coloca
também como um dos protagonistas do filme. Falar do outro, resgatar sua memória, não
seria ainda distinta maneira de narrar a si próprio?
O documentário Santiago se inscreve na linha tênue entre realidade e ficção, entre
autobiografia e autoficção, ao se considerar o grau de tradução de uma vida em obra de
arte. Alçado à categoria de personagem, este nobre mordomo representa a contingência
de uma vida que se pautou pela mediação da arte e da literatura, cultivando a existência
de forma estética e segundo padrões que fugiam do modelo de um simples serviçal de
uma casa burguesa. Na leitura realizada por João Moreira Salles, o documentário se vale
de procedimentos metalinguísticos que irão reforçar e justificar a proposta de
realização de um filme biográfico, no sentido de se desvincular do propósito de
desvendamento de segredos, de revelações espetaculares, condizente com o espírito da
escrita e da mídia jornalística. O apelo metafórico reside na apropriação da história de
vida do mordomo com vistas a desconstruir relações causais e estereotipadas entre
diretor e personagem, arte e referente, patrão e empregado. Metaforizar o real significa
considerar tanto os fatos quanto as ações praticadas pela pessoa biografada como
possibilidade de inserção na esfera ficcional. Ao espectador o direito de construir
também sua história e interpretação do enredo, além de usufruir das maravilhosas
cenas protagonizadas por Santiago.

Santiago1
Santiago é um homem que fantasiou sua vida inteira – à sombra dos lustres e arranjos florais de
uma aristocracia (ou altíssima burguesia) à qual sonhara pertencer. Para Santiago, a “casa da
Gávea” era o Palazzo Pitti de Florença. Ele, “senhor dos salões” por 30 anos, simulava seu reino
entre acordes de Beethoven, áreas de Puccini e lembranças das cores de Giotto. Sua obra mestra,
contudo, o aproximava dos copistas da Idade Média. Por mais de meio século aquele homem
solitário e peixotiano frequentou bibliotecas de vários países, muitas vezes durante as viagens com
o patrão, Walther Moreira Salles (1912-2001). Ao morrer, deixou para “Joãozinho” um conjunto de
30.000 fichas, enfeixadas em maços com fitas vermelhas, contendo anotações sobre todas as
dinastias da nobreza de todas as épocas e regiões do mundo, acrescidas das vidas dos papas, de
estrelas de cinema e de tribos indígenas. Uma cornucópia borgiana, que acabou se transformando
no grande comentário paralelo do filme.
Carlos Alberto Mattos2
De quais subjetividades esse documentário de João Moreira Salles irá tratar? Como
penetrar no universo de Santiago Badariotti Merlo – mordomo de nacionalidade
argentina e de ascendência italiana, embora tenha vivido a maior parte de sua vida no
Brasil – cuja história se mescla à da infância do cineasta, por ter servido à sua família,
durante 30 anos, na casa onde hoje está alocada a sede carioca do Instituto Moreira
Salles? Qual o tratamento conferido à montagem desse filme-documentário que coloca
frente a frente o antigo patrão e seu empregado, por meio de uma voz em off, na
primeira pessoa, que narra os anseios e as falsificações da filmagem realizada em 1992,
apenas concluída 13 anos depois?
Em entrevista à revista Bravo, o diretor confessa ter realizado o filme para se curar:
Fiz Santiago pensando sobretudo em sanar as aflições que me rondavam a alma e que, de certo
modo, ainda me atormentam. Trata-se de um filme essencialmente terapêutico. Quando decidi
rever o material que rodei em 1992, tinha 43 anos e atravessava uma intensa crise. Estava
adquirindo a consciência muito profunda de que as coisas realmente passam e de que não
conseguimos recuperá-las.
O teor autobiográfico do documentário enriquece a figura do mordomo, tornando-o
protagonista de uma das narrativas cinematográficas mais fascinantes e bem realizadas
dos últimos anos. Graças à mescla de fato e ficção, além do procedimento
metalinguístico do filme, tem lugar a construção simbiótica de cenas que envolvem a
família, o mordomo e o diretor, tendo como cenário a casa da Gávea e o apartamento de
Santiago.
Uma das funções exercidas pelo procedimento metalinguístico reside no registro das
impressões manifestadas pelo diretor durante a retomada do documentário, o que
descarta qualquer acusação de poder aí exercido sobre a personagem. Nesse sentido, a
figuração dos bastidores, o caráter obsessivo da repetição das cenas, a partir das ordens
emitidas por João Moreira Salles na condução dos trabalhos, confirma o clima despojado
e experimental do filme. Este se compõe de imagens que metaforizam as tomadas de
cena, como o passar do tempo, ilustrado tanto pela recorrência do movimento do
elevador do prédio de residência do mordomo quanto pela inserção do vídeo colorido –
revelador do momento de descontração da família na piscina e de uma possível
evocação de felicidade ligada à infância do cineasta e dos irmãos.
Uma das possíveis indagações do espectador a respeito do enredo do filme seria a de
tomar conhecimento das histórias vividas na residência burguesa, cujo proprietário
acumulou cargos de embaixador, de banqueiro e empresário dos trópicos,
protagonizadas pelo mordomo e montadas pelo filho/diretor do documentário. Nada
disso acontece. A casa é encenada de modo fantasmagórico, desprovida de traços
identitários, pela ausência de móveis e de pessoas, como se estivesse à espera do
trabalho de memória a ser efetuado pela lembrança de seus personagens. O que se
narra, de forma bastante discreta, é a passagem do tempo, a impossibilidade de
preencher, com imagens, o que as palavras de Santiago dizem e as que são transmitidas
pelo narrador, interpretado pela voz do irmão Fernando, e não por João, o autor do
roteiro familiar. Portas abertas, cortinas esvoaçantes, folha caindo na piscina vazia,
corredores também vazios simbolizam o tempo passado/perdido. O documentário não
pretende preencher esse vazio dos salões nem restaurar, de modo falso, a casa
moderna/antiga, a família, pela exposição de fotos, vídeos, imagens ou outro tipo de
registro.
O vazio da memória responde pela crueza do décor do interior da casa e das
recordações emitidas pelos discursos do narrador e de Santiago. A amplitude e o
silêncio desse espaço contrastam com o apartamento do ex-mordomo, onde são
tomadas as cenas, espaço minúsculo que a câmera reproduz em perspectiva, o que
permite torná-lo ainda mais reduzido pelo efeito de enquadramento. A técnica
cinematográfica utilizada para a entrevista com o mordomo se apropria daquela
exercida pelo diretor japonês Yasujiro Ozu, pela ausência de close na reprodução da
imagem do protagonista, abolindo-se a utilização de grandes planos. Constata-se apenas
o enquadramento de Santiago na altura da câmera, ao ser filmado ora sentado num
canto da cozinha, ora na beirada da banheira ou da cama, ora entre duas paredes, o que
resulta na ausência de movimentos largos e no aproveitamento do espaço aberto.
Retrata uma personagem que se enclausura no interior do apartamento, decorado com
reproduções de quadros e cheio de estantes, onde são colocadas as páginas e páginas de
textos datilografados e empilhados. Representam o resultado de sua escrita, do
exercício lento e obsessivo de quem se dispõe a copiar listas de reis, de chefes indígenas,
de artistas de TV, de Hollywood e de aristocratas.
Uma das tomadas do filme focaliza Santiago ao fundo, na cozinha, apenas a parte
superior do corpo em destaque, tendo como primeiro plano, em vertical, a maçaneta da
porta, a chave e, à esquerda, a parte visível do fogão. Sobre ele, panelas dependuradas. À
direita da cena, uma máquina de escrever sobre a mesa, uma folha de papel sob os
óculos e um porta-lápis. Seria na cozinha o ambiente de trabalho de Santiago, o espaço
escolhido para o prazer de sua escrita? Captado pela câmera por meio do
enquadramento, Santiago representa, responde às perguntas do diretor, atende às suas
ordens, repete o script, quando este não se realiza conforme a vontade do
patrão/diretor, reclama, declama em latim orações que decorou na infância e repete
frases de várias personalidades, como de cineastas, entre outras. Sua figura atinge
incrível plasticidade e um movimento que revitaliza a imagem desse mínimo espaço que
lhe é reservado para atuar, o que produz, ao longo do documentário, o crescimento da
personagem e seu desligamento do roteiro preestabelecido pelo diretor, além de criar
empatia com o espectador. Mas o que escapa a essa ordem do documentário é a criação
do pathos, da simpatia e do desvendamento gigantesco e atordoado de uma pessoa que
mantém referências com outras personagens da literatura e do próprio cinema.
A movimentação mínima em cena é esteticamente dirigida pela dança das mãos, na
verdade um dos mais belos momentos do filme, em que se presencia a sensibilidade
artística de Santiago por meio de seu instrumento mais precioso. São essas mãos que
exercem a coreografia de uma vida fantasiosa, seja através de sua função de copista das
histórias das dinastias e da nobreza do mundo, do manuseio dos arranjos de flores, do
cuidado com a casa e sua ordem, seja pela dança em que toca castanholas, ritmo em
descompasso com a música que o acompanha (estratégia usada para referir-se ao
deslocamento de função e de lugar desse mordomo). Na evocação do narrador se
presentifica ainda o ritual assumido por Santiago ao se vestir a rigor (de fraque),
quando toca piano numa noite em que os patrões estão ausentes. Ao ser indagado sobre
a razão de tal indumentária, justifica-se pela escolha de Beethoven, o compositor a ser
interpretado. A falta de audiência (e dos patrões) se preenchia pelo cultivo da música
como forma interiorizada de realização pessoal, de satisfação solitária do desejo.
Roland Barthes, em entrevista concedida à revista Magazine Littéraire, n. 108, em
janeiro de 1976, discorre sobre a prática dos copistas Bouvard e Pécuchet, de Flaubert,
ao considerá-la como pura conservação do gesto manual, sem nenhum sentido, apenas
reforçando a inutilidade de se conseguir um saber enciclopédico e sem valor. Segundo
Barthes, este gesto representaria o momento histórico de crise da verdade, de crise da
modernidade que começava a abrir suas portas. Em Santiago, embora o ato de copiar
não se restringisse à mera reprodução flaubertiana, persiste, contudo, o desejo de
conservar verdades já inoperantes e desaparecidas, ao lado do fervor de preservar, pelo
registro escrito, um mundo em crise, a burguesia em extinção, o tempo dos bailes e
recepções que pertenciam, agora, ao tempo passado. O filme expõe o ritual de denúncia
dessa situação de decadência, de resto e de fim. É esta a imagem que permanece do
apartamento de Santiago, povoado de lembranças e de resíduos de uma época em que,
curiosamente, o país vivia um momento de extrema euforia desenvolvimentista. Se na
casa da Gávea não se preservaram os vestígios de um interior opulento e nobre, o
apartamento do mordomo reproduz, em miniatura, as ruínas que remeteriam para o fim
desse tempo.
O cuidado em arquivar, pela cópia, a vida e dinastias dos nobres, o desejo de
revitalizá-los e torná-los companheiros e amigos, de ficcionalizar sua existência e
superar a solidão com a ajuda desse trabalho de criação/cópia de livros escritos em
línguas diversas, transformam Santiago em personagem borgiano, em “Funes, o
memorioso”. Como Funes, ele não se esquecia de nada, sofria de insônia e no lugar de
selecionar, acumulava registros, transformando-se num depósito infinito de objetos, em
réplica naturalista do universo. Nesta implacável memória, nada se perde, nada se
destrói, em razão de ser ela regida pelo princípio de conservação acumulativa, no qual o
ato de pensar não passa de reprodução do percebido. A predileção do escritor argentino
por personagens consideradas simples e comuns, como Bouvard e Pécuchet, como
Bartleby, o escriturário de Melville, ou pelos criadores de textos, como os copistas das
Mil e uma noites, os tradutores que sempre traíam os textos originais, justifica seu oficio
de escritor, assumido como compilador e tradutor de textos alheios. Essa predileção por
essas figuras literárias comprova, portanto, o fato de ser Santiago uma das inúmeras
personagens de Borges.
O arquivo de Santiago assume feição enciclopédica, por ser ele acometido pela febre
de tudo registrar, principalmente quando se trata de histórias de reis e de dinastias. À
feição dos copistas antigos, faz anotações e acrescenta dados ao texto, tornando-se
coautor de uma escrita retirada de livros alheios, além de inserir sua assinatura entre as
páginas reproduzidas. O resultado desse trabalho de esteta e de copista carece de
objetivo prático, pois na luta para que suas personagens não fossem esquecidas, o
escriba torna-se proprietário dos textos utilizados de segunda mão e registra aí sua
marca. Essa prática de escrita o impede de ser dominado pela solidão, pela sensação de
inutilidade e pela ausência de desejo diante da vida. Por um processo de transferência,
vive sempre a experiência do outro, torna-se o guardião da memória da casa, dos
nobres, da família Moreira Salles e de si próprio. Como os copistas flaubertianos,
Bouvard e Pécuchet, Santiago cultua a repetição na certeza de que tudo já foi dito e
escrito, o que resta é inscrever novamente seu nome sobre os de outros escribas. A
cópia é a forma de escrita que remete ao palimpsesto, ao texto da vida que se produz
por camadas, por remissões, por ecos, por espelhismos. O desejo de alcançar o ideal de
nobreza dos patrões, a paixão pelo cinema americano e suas atrizes, contribuíram para
que Santiago se transformasse também na réplica de personagens cinematográficas,
como o criado, protagonista do filme homônimo de Losey, ou o mordomo de Vestígios do
dia, de James Ivory. As diferenças entre eles são, sem dúvida, substanciais, por se tratar
de situações sociais distintas de subserviência e de poder.
Como esteta, Santiago apreciava sua coleção de madonas, de pratos de porcelana, de
estatuetas. O colecionador se conjuga ao espírito enciclopédico, na ânsia de tudo
conservar e abarcar. À feição dos hábitos e costumes dos patrões, por meio de um
processo de reduplicação, é vítima de espelhismo e de plágio, uma vez que a função do
mordomo é a de servir ao outro e de se entregar totalmente ao ofício de cuidar, com
elegância e estética, do bom andamento da casa. Os arranjos de flores recebiam formas e
sentidos conforme a imaginação de Santiago, o modo de valorizar o que poderia
engrandecer e enobrecer o ambiente. Pequenos cuidados que alcançavam significados
além de seu valor real, em virtude da imaginação e dos sonhos desse mordomo
exemplar.
O mea-culpa do diretor se configura em contraponto à fala de Santiago, pela
necessidade de se posicionar de forma transparente no documentário, rascunho
guardado por muito tempo na gaveta. A decisão pessoal do diretor de registrar seu
comportamento na filmagem de 1992 motivou a retomada do documentário.
Autoritário, João Moreira Salles mapeia as falas, orienta os gestos da personagem e o
impede de confessar verdades íntimas. A confissão fugiria das intenções do script. Na
retomada da filmagem, com Santiago já morto e ausente, o diretor conserva
intencionalmente a relação de poder entre ele e a personagem, na qual são
problematizados os impasses advindos da diferença social entre eles, por revelar agora
muito mais a reflexão sobre os bastidores deste longa, como a relação de poder e o fato
de o diretor também aí se colocar como protagonista.
Como reflexão final, gostaria de mencionar duas cenas de filmes estrangeiros
apresentadas no documentário, cada uma revelando, em particular, o perfil de ambos
protagonistas: primeiramente, a cena de Viagem a Tóquio, de Ozu, remetendo à técnica
utilizada no filme, pela ausência de close e sem grandes planos. Mas o que se percebe,
como uma espécie de mote para a compreensão do documentário, é a pergunta feita por
uma das personagens femininas: “a vida é uma decepção?”, e respondida pelo cineasta
com um sim e um sorriso, ou na própria interpretação de João Moreira Salles em
entrevista: “O júbilo de um sorriso diante do que não se pode evitar.” A segunda refere-
se à dança de Fred Astaire e Cyd Charisse, no filme A roda da fortuna (1943), dirigido
por Vincent Minelli, um dos filmes preferidos de Santiago. No documentário, a razão que
motiva a reprodução, a cores, da cena, são a beleza e a gratuidade do entrosamento
entre os bailarinos, antes descompassados e incapazes de se entender durante os
ensaios realizados no próprio filme. O acaso propicia o encontro, pela dança, dos
bailarinos, assim como remete para a sensação de medo diante da finitude das coisas,
segundo declaração do cineasta, ao conjugar a preferência pelo filme hollywoodiano de
Santiago com a necessidade de preservar a imagem leve, nostálgica e feliz dos tempos
passados, do ambiente da casa da Gávea. A música, “Dancing in the dark”, ilumina os
passos dos atores no Central Park de Nova York e se contrapõe à possível amargura da
pergunta presente no filme de Ozu, “A vida é uma decepção?” e a resposta de João
Moreira Salles, “Talvez a arte e a fantasia contribuam para que isso reverta em algo mais
feliz”.
(Texto apresentado no Fórum Virtual de Literatura e Teatro. Programa Avançado de Cultura
Contemporânea. Rio de Janeiro, 20 set. 2008.)
Freud explica

A psicanálise, ciência do inconsciente, só poderia ter sido inventada no intervalo


entre dois séculos, precisamente o 19 e o 20, e por iniciativa de um judeu austríaco,
contemporâneo do decadentismo artístico e da crise da racionalidade positivista. Só
poderia ter sido gerada no interior de uma sociedade burguesa, reprimida e sujeita à
dramatização de histórias mentais. A descoberta da representação psíquica como
resposta à realidade repressora anunciava a dissolução do sujeito individual e a
insuficiência da linguagem em referir-se ao real.
Com Freud instaura-se, em definitivo, o saber calcado na suspeita, ao considerar a
vida mental um sistema altamente sofisticado, no qual se processam falsidades,
sublimações e deslocamentos. O século 20 se abre com a publicação de A interpretação
dos sonhos, quando são postas em xeque as noções de irracionalidade onírica, magia e
superstição, cedendo lugar à ciência do inconsciente.
A consciência de Zeno,1 publicado em 1923 na cidade de Trieste, e escrito antes do
início da Primeira Guerra Mundial, é uma das primeiras e bem-humoradas reações às
descobertas da psicanálise. O título já indica o tratamento irônico da narrativa
confessional de Zeno Cosini, levada a termo por sugestão do analista, o doutor S. Ao
assinar o prefácio, este se considera coautor do livro, por ter encaminhado os originais
para publicação, sem o conhecimento do autor e como vingança pela interrupção da
terapia pelo analisando. A consciência refere-se à determinação da personagem em se
apresentar como curado diante do doutor S., por estar gozando de uma “saúde sólida,
perfeita”, e não mais se comportando como doente imaginário.
A natureza da doença de que sofre Cosini é da ordem do imaginário, constituindo-se
seja pelo vício do fumo, seja por inquietações próprias a todo ser humano: o medo de
envelhecer e de morrer, o tédio de viver e o adultério, este visto como entrega às
pulsões e relações perigosas. Segundo a personagem, o comércio foi a causa de sua cura.
Entregar-se ao comércio – no seu sentido literal e metafórico – foi a saída para os
problemas existenciais, ao se convencer de que na compra indiscriminada de qualquer
mercadoria reside o sistema de trocas e de substituições dos valores. Alcança-se a saúde
– e o lucro nas transações comerciais – graças ao mecanismo de sublimação que se
processa no interior das relações humanas: o que se perde é logo superado por outro
objeto de desejo. Convencida de ter criado durante a vida um pacto comercial com os
outros, de ter vivido o desejo alheio, a personagem aceita ainda fazer e entregar o diário
ao doutor S., o que confirma a promoção do desejo do analista.
Aceitar a vida e agir de maneira indiferente aos fatos seria para Cosini a prova de
estar gozando de uma invejável saúde. Sua consciência se justificaria pela própria
escrita do livro, verdadeiro exemplo do ato de denegação, conceito psicanalítico
indicador da ambivalência causada pelo duplo ato de negar e de afirmar. A crítica à
psicanálise e à posição do analista como lugar do poder atua também como preservação
da “doença” do analisando. Daí se conclui ser o livro, paradoxalmente, um libelo pró e
contra a psicanálise.
No endosso da concepção moderna de literatura que se autodefine como artifício e
invenção, Italo Svevo assume o procedimento metalinguístico, largamente utilizado pelo
romance contemporâneo. O texto autobiográfico se apresenta, desde o início, no seu
estatuto de ficção, quando a paródia se contrapõe à verdade do escritor, através da
encenação banalizada dos problemas existenciais, como a necessidade de parar de
fumar da personagem, a morte do pai, o casamento, a amante e a participação numa
associação comercial. Por um processo de sublimação, o comportamento de Zeno Cosini
se move conforme o sistema de deslocamentos e descentramentos ininterruptos. Ações
que poderiam resultar em efeito trágico, como a bofetada que Cosini recebe do pai na
hora da morte, são facilmente resolvidas, em virtude da comédia de equívocos aí
encenada.
A relação entre terapia analítica e invenção ou entre criação e mentira permite a
aproximação, pela linguagem, do discurso terapêutico com o ficcional. Rompidas as
barreiras antes reservadas à diferença entre ciência e ficção, o que já se anuncia no
relato autobiográfico de Svevo é a falência da língua no seu objetivo de dizer o real, além
da constatação da natureza ambígua do psiquismo humano: “Uma confissão escrita é
sempre mentirosa. Mentimos em cada palavra toscana que dizemos!” Por ser um
intelectual também de fronteira – Trieste, em virtude do tráfico comercial e de sua
posição geográfica, encontra-se na encruzilhada de culturas contraditórias –, o escritor
se sente mais à vontade para agredir a problemática psicanalítica. E o faz por meio do
recurso irônico, exercido com total eficácia. Durante a leitura do romance, o que mais se
nota é o movimento constante da escrita, onde prevalecem os atos de imprevisibilidade
e falsidade cometidos pelo homem sem qualidades, defensor de valores efêmeros e
provisórios.
Contemporâneo de Luigi Pirandello, Marcel Proust e James Joyce, Svevo soube criar
uma narrativa sobre o nada, com base num enredo banal, retrato da vida burguesa de
um doente imaginário, entregue ao ócio e aos problemas cotidianos que beiram a
simplicidade. Renovador na maneira despojada de narrar e na linguagem desprovida da
retórica dos escritores que lhe antecederam, o livro se impõe como clássico da literatura
italiana, ao introduzir não só a descrença nas grandes narrativas, mas a vacuidade das
relações humanas. Capturadas através do jogo inócuo dos diálogos, essas relações são
guiadas pelo ritmo lento da imaginação e do teatro mental.
A ambiguidade gerada pela relação entre realidade e ficção é fortalecida pela
utilização da narrativa em primeira pessoa, permitindo aos defensores do realismo
confundir autor e narrador, escritor e personagem. Não é sem razão que Octave
Manonni, em Ficções freudianas, promove, em Paris, o encontro ficcional entre Joyce e
um psicanalista de Trieste, que acusa Svevo de ter se servido de sua análise para
desmoralizar a ciência que nascia. O diálogo cumpre o papel de desfazer o equívoco
realista, ao romper o teor de verossimilhança entre a personagem do doutor S. e o
analista de Svevo, doutor Edoardo Weiss, um dos iniciadores da psicanálise na Itália.
A narrativa autobiográfica desconstrói o limite rígido entre ciência e ficção, ao
apontar a potencialidade enganosa e fugidia do ato de linguagem, praticada tanto pela
literatura quanto pela psicanálise. Joyce encarnaria, no texto de Manonni, o alerta para a
presença da alteridade como constituinte do sujeito-autor, assim como o teor plagiário
da escrita que se impõe como escrita do outro. A autenticidade autoral do livro de Svevo
já é desmitificada no prefácio de doutor S., que se coloca como responsável pela edição
do romance.
Reeditado pela Nova Fronteira e revisado pelo tradutor brasileiro, A consciência de
Zeno merece destaque no quadro das novas reedições. Merece ainda ser lido por todos
que se interessam não só pela construção do romance moderno, como pelo desencanto
e pelo spleen que marcaram as grandes personagens finisseculares. Embora não tenha o
traço experimental da obra de seu amigo e incentivador Joyce, nem de Proust a
investigação minuciosa da memória, Svevo tem o mérito de trazer à superfície da
linguagem o exercício de autoanálise através da qual imperam a neutralidade, a
indiferença e o sucesso do homem comum.
(Artigo publicado na Folha de S.Paulo, n. 90, 12 out. 2002. Jornal de Resenhas, p. 3.)
Bibliografia
SVEVO, Italo. A consciência de Zeno. Tradução de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2002.
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Direção de Jaime Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 1987. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. IV, V).
MANNONI, Octave. Ficções freudianas. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Taurus,
1983.
A traição autobiográfica

Recusar o prêmio Nobel de Literatura, após a publicação, em 1964, de As palavras, foi


a resposta de Jean-Paul Sartre ao risco de se deixar converter em instituição, em
“estátua de si mesmo” ou de se tornar “patrimônio nacional”. A construção da imagem
que nega o culto da personalidade, do escritor que se exprime mais por infidelidade a si
próprio do que por obediência a padrões estabelecidos, justifica o desprezo por um dos
maiores ritos de consagração do escritor. Motivado pela energia criativa, pelo dispêndio
como força necessária à crítica da sociedade burguesa da qual é um dos atores, Sartre
rejeita a posse do dinheiro como reserva e acúmulo, preferindo considerá-lo como dom,
como moeda gasta sem escrúpulo, fogo que se queima no ato da doação. O ganho
simbólico se reverte na eterna rebeldia e na intransigência diante do poder
conservador, ingredientes exigidos para a prática da liberdade como princípio
norteador do sujeito.
No empenho de viver para a literatura e de se alimentar da alegria que a escrita lhe
proporciona, Sartre gasta a vida escrevendo, com a ajuda de psicotrópicos que irão
causar, mais tarde, danos à saúde. A vitalidade se mescla à entrega desmesurada à causa
do outro, à certeza de que a sua infatigável fome de palavras – que remonta aos seus
primeiros anos – lhe traria condições de melhor pensar o mundo. Segundo Bernard-
Henri Lévy, essa entrega às drogas é o que justifica o excesso e a abundância vitais como
forma de se ter uma visão ampla de tudo: “Mas o que ele diz desde já, o que sempre
disse e repetirá até o fim, é que a escrita é uma droga. Uma verdadeira droga. Uma
autointoxicação permanente do escritor por si próprio e da literatura pelos seus
próprios encantos e toxinas.”1 Comemorar o centenário de nascimento do escritor não
estaria também contrariando o seu projeto de intelectual, em desacordo com as
honrarias e salamaleques da classe burguesa? Não seria um gesto de mumificação de
sua imagem? Acredito que não. Pela presença maciça de 50.000 pessoas ao seu funeral,
em 19 de abril de 1980, confirma-se a importância e a popularidade do pensador Sartre
para o mundo, para os estrangeiros residentes em Paris, principalmente vindos do
Terceiro Mundo. Muito se comentou, à época, sobre a sua morte, como sendo a morte do
último filósofo, do último intelectual francês. As homenagens em torno de seu
centenário têm ainda a função de consagrá-lo ainda mais, embora não se deva esquecer
de acentuar a contraditória imagem que ele mesmo ajudou a construir.
Apesar de cioso dessa imagem, ao romper com o sentimento narcisista comum à
maioria dos autores, Sartre transforma sua vida em obra autobiográfica, ao escolher o
ofício de escritor como razão da existência. Sua autobiografia escrita, As palavras,2
demonstram, sob o olhar do autor já adulto, a obsessão do menino prodígio pelo
universo ficcional da literatura, a paixão pelas palavras, lidas como simulacros da
realidade. Considerada obra-prima pela crítica, pelo vigor do estilo e da desconstrução
da narrativa tradicional autobiográfica, o livro se notabiliza pela ausência do relato
sensacionalista sobre as possíveis façanhas de Sartre na idade adulta, encenadas nos
lugares hoje mitológicos e antes frequentados pelo bando de jovens existencialistas.
Reduziu o texto ao destino familiar e pessoal que o fez tornar-se escritor. Sem idealizar
a infância ou a se furtar a desconstruir o ambiente burguês no qual se criou, As palavras
são o testemunho do intelectual que reflete sobre a sua situação no presente, dotado da
responsabilidade para com o outro e disposto a confessar ser a escrita o mais cobiçado
projeto existencial.
A autobiografia corresponde, em termos cronológicos, ao período que vai do
nascimento até os 12 anos do jovem Sartre, momento que coincide com o segundo
casamento da mãe. Devido à perda precoce do pai, a criança é envolvida num ambiente
familiar propício à concessão do excesso de cuidado na sua criação. Cercado pela
proteção dos avós maternos e por sua mãe, vive no meio de livros e se entrega ao ritual
de iniciação à leitura e à entronização no meio letrado da sociedade francesa do
princípio do século 20. Violentado pela separação daquela que seria menos a mãe do
que a futura noiva ou irmã, a companheira de infância, o escritor irá se recusar a
escrever suas “memórias” por não crer na singularidade da existência, mas na sua
múltipla configuração: “Ora, malgrado as aparências, sou um falso personagem
secundário” (p. 171).
É na biblioteca familiar que o pequeno leitor irá conviver com os amigos ficcionais,
personagens nascidas dos livros e que irão povoar o seu imaginário universo infantil.
Arredio ao convívio com a natureza, estrábico, franzino e feio, Sartre constrói um
mundo alternativo, acreditando ter sido gerado pela escrita e, contrariamente à tradição
familiar, sendo capaz de gerar a própria vida: “Filho de ninguém, fui minha própria
causa, cúmulo de orgulho e cúmulo de miséria” (p. 82). As palavras, contudo, não se
reduzem ao simples relato de infância. Trata-se de uma autoanálise, um romance de
aprendizagem, ode à mãe e uma prestação de contas com a família, por meio de uma
crítica feroz à pequena burguesia intelectual da qual é oriundo. Inverte, ainda, o
esquema da autobiografia tradicional, ao lançar pistas, optar por uma estratégia que
rompe com o acúmulo de informações e instaura o vazio e o silêncio na escrita.
Trai ainda a celebração da infância como paraíso perdido, a valorização da família
como célula da sociedade, ao negar a morte do pai e, consequentemente, todo direito à
herança paterna e à continuidade familiar. Os laços de parentesco se embaralham, os
papéis sociais se invertem, o que provoca, em Sartre, a capacidade de imaginar outra
fórmula autobiográfica, rompendo com a fatalidade da genealogia. Uma vez negada a
linhagem paterna, impõe-se a materna, na figura do avô, que o atirou na literatura e que
mais tarde o escritor consagrado irá revelar ter sido a sua prática literária uma forma de
cumprir o desejo manifesto de Charles Schweitzer:
Em suma, ele me atirou na literatura pelo cuidado que despendeu em me desviar dela: a tal ponto
que me acontece ainda hoje perguntar-me, quando estou de mau humor, se não consumi tanto dias
e tantas noites, se não cobri tantas folhas com minha tinta e lancei no mercado tantos livros que não
eram almejados por ninguém, na única e louca esperança de agradar a meu avô (p. 118).
A escrita literária tem a liberdade de engendrar autobiografias falsas, instaurar
genealogias bastardas e permitir o livro trânsito entre presente, passado e futuro. O
escritor adulto, ao escrever sua vida, engendra a si próprio, por negar o estatuto
convencional das funções familiares. O pai, pela morte precoce, não teve, aos olhos do
filho, tempo de ser seu pai, tornando-se, no momento da escrita autobiográfica, filho do
filho-escritor; por seu lado a mãe, viúva e novamente sob as ordens paternas, irá se
mostrar frágil e dependente, o que exigirá a proteção do filho, invertendo-se o papel a
ela destinado:
Houvesse vivido, meu pai ter-se-ia deitado sobre mim com todo o seu comprimento e ter-me-ia
esmagado. Por sorte, morreu moço; em meio dos Eneias que carregam às costas seus Anquises,
passo de uma margem à outra, só e detestando todos esses genitores invisíveis montados em seus
filhos por toda a vida; deixei atrás de mim um jovem morto que não teve tempo de ser meu pai e
que poderia ser, hoje, meu filho. Foi um mal, um bem? Não sei; mas subscrevo de bom grado o
veredito de um eminente psicanalista: não tenho superego (p. 16-17).
A invenção da família é a façanha do escritor na sua vida/obra autobiográfica. Arredio
ao matrimônio burguês, à legalização da união entre homem e mulher, Sartre foi o
amante oficial de Simone de Beauvoir, sua companheira durante toda a existência. Mas a
infidelidade amorosa faz também parte desse pacto celibatário, pois ambos se
relacionam livremente com os demais parceiros, sem o sentimento de serem
propriedade privada um do outro. A solidariedade humana se estende também para o
convívio amoroso, uma forma de o escritor sublimar a falta da mãe, ao considerar o
relacionamento segundo critérios de fraternidade, união incestuosa que reúne literatura
e existência: “Graças ao quê, talvez, os anos quatorze foram os mais felizes da minha
infância. Minha mãe e eu contávamos a mesma idade e não nos largávamos. Ela me
chamava seu chevalier servant, seu homenzinho” (p. 157).
Nos últimos anos de vida, em situação precária de saúde, cego e dependente, o
celibatário que nunca se casou e que não quis ter filhos, assume Arlette Elkaïm como
filha adotiva, moça judia que “tentava servir de olhos para ele”, ajudando-lhe na
correção de textos e na leitura. Trata-se do reencontro com o espectro da mãe, de cujo
convívio amoroso foi prematuramente afastado. Inventar o passado e resgatá-lo pela
simulação da imagem materna instaura o espaço imaginário em que se cruzam ficção e
realidade, escrita e vida. A opção por esse espaço transgressor irá fundamentar toda a
trajetória autobiográfica de Sartre.
Abraçar a filosofia existencialista significava, para o escritor, não só desfazer os
limites familiares, mas ainda ampliá-los para o espaço público, para o debate na rua, um
convite à exteriorização e à transparência de saberes aprisionados nos gabinetes.
Definido tanto como uma filosofia nascida do cruzamento de Kierkegaard e da
fenomenologia alemã, quanto um “estilo de vida”, uma maneira de existir que aspirava
às liberações motivadas pelo ambiente de pós-guerra, o existencialismo inaugura a
prática biográfica como contraparte da teórica. Recusa separar a filosofia da política, a
literatura da ciência, o doméstico do público, o sujeito do objeto. Inserido ainda nesse
processo de deslocamento do espaço endogênico da cultura francesa, Sartre se volta
para o exterior, seja por meio das leituras e da predileção pelo romance americano, pelo
cinema e pelo jazz, seja se entregando às causas políticas defendidas pelo Terceiro
Mundo.
Na condição de um pensador moderno, desde cedo se torna sensível a outras culturas
e às diferentes manifestações artísticas, como o jazz e o cinema americano, o que lhe
propicia o rompimento com critérios hierárquicos de arte, pela sedução que os clubes
de jazz e as salas de cinema lhe proporcionam, experiências ligadas ao convívio mais
próximo com a multidão e o imaginário coletivo. A saída para a ação na praça pública
representa a necessidade de mobilizar conhecimentos e acreditar no deslocamento
permanente como meio de revitalizar posições e buscar o novo como sinônimo de
transgressão e liberdade. A reunião da filosofia e da música, do mundano com a
reflexão, legitima a corrente existencialista como estilo de vida que acompanha a
modernização dos costumes e assume o risco contínuo da improvisação, inaugurado
pela ousadia e popularidade do jazz americano de pós-guerra. Usufruir de expressões
artísticas consideradas inferiores pelos puristas, penetrar nas salas de projeção de
filmes, desconfortáveis, mas igualitárias, complementam a formação do escritor, no seu
engajamento futuro em favor das massas e dos marginalizados:
…quando muitos homens estão juntos, cumpre separá-los por meio de ritos ou então eles se
chacinam. O cinema provava o contrário: mais do que uma festa, o seu público tão mesclado parecia
reunido por uma catástrofe. (…) Tomei aversão pelas cerimônias, adorei as multidões; vi multidões
de toda espécie, porém nunca mais encontrei aquela nudez, aquela presença sem recuo de cada um
em todos, aquele sonho desperto… (p. 88-89).
Desde criança, o deslocamento constituiu uma forma de resistência do escritor,
personagem nômade no espírito e, literalmente, em virtude das mudanças constantes de
residência, causadas pela morte do pai, pela convivência com os avós e com o novo
casamento da mãe. Essa situação de estrangeiro e hóspede na sua própria casa alimenta
as posteriores reações contra o sentido de propriedade e contra a ingênua noção de
identidade vinculada aos bens materiais e à posse simbólica do sujeito. Sentindo-se
sempre na condição de hóspede em sua casa, Sartre assim também se comporta em
relação ao país de origem, indo contra a política colonialista francesa, em que se destaca
o papel do filho que transgride os valores defendidos pelo pai, pela família política e
pela nação. Justifica-se, portanto, a sua preocupação com os irmãos postiços do Terceiro
Mundo, dos filhos bastardos não reconhecidos pelas leis universais de cidadania e de
direitos humanos. Como “viajante sem passagem”, Sartre não abdicou do direito de
estar permanentemente em conflito consigo mesmo e entregue à errância, à aventura e
à busca do desconhecido:
Em meus raros minutos de dissipação, minha mãe me segredava: ‘Tome cuidado! Não estamos em
nossa casa!’ Nunca estivemos em nossa casa: nem na rua Le Goff nem mais tarde, quando minha
mãe tornou a casar-se. Eu não sofria com isso, pois me emprestavam tudo: mas eu continuava
abstrato. Para o proprietário, os bens deste mundo refletem o que ele é; a mim, ensinavam-me o
que eu não era: eu não era consistente nem permanente; eu não era o continuador futuro da obra
paterna; eu não era necessário à produção do aço: em suma, eu não tinha alma (p. 65).
Annie Cohen-Solal, a mais conceituada biógrafa de Sartre, no último ensaio intitulado
Sartre,3 pondera sobre o seu papel de intelectual, interpretando-o a partir de sua
repercussão atual no mundo e na França. Recupera a imagem do existencialista voltado
para fora da Europa, quando observa que nos dias atuais tem sido mais festejado e
valorizado nos países do Terceiro Mundo do que no seu lugar de origem. Registra o
lugar do escritor como referência obrigatória no estrangeiro, não só pelas suas
inúmeras viagens realizadas na década de 1960 à América Latina e a outros continentes,
como pela atenção voltada para os conflitos religiosos e políticos verificados no correr
dos últimos 50 anos. A biógrafa irá sustentar, com base nesses argumentos, a tese do
olhar multicultural de Sartre e de sua importância para a formação do pensamento de
esquerda no mundo. Não é de se estranhar que na lista de escritores dedicados à
preservação da herança sartriana se incluem aqueles que também se dedicaram às
causas políticas pós-colonialistas, suplementando a lição legada pelo intelectual: Susan
Sontag, Edward Said, Salman Rushdie, Ernesto Sábato, entre outros. Na certeza de ser
impossível classificar Sartre segundo critérios rígidos e institucionais, a autora reforça a
sua posição marginal no universo tradicional francês e ressalta o seu lugar como
intelectual crítico e engajado, figura hoje cada vez mais rara entre nós.
As palavras finais deste texto são retiradas da autobiografia de Sartre, na qual se
constata uma das mais contundentes lições de intransigência e repúdio às falsas
aparências e ao papel idealizado da autobiografia como forma de consagração do
escritor: “Tornei-me traidor e continuei a sê-lo. Em vão me ponho de corpo inteiro no
que empreendo, entrego-me sem reserva ao trabalho, à cólera, à amizade; num instante
me renegarei, eu o sei, o quero e me traio já em plena paixão, pelo pressentimento
jubiloso de minha traição futura” (p. 171).
(Artigo publicado na Revista Margens/Márgenes, Belo Horizonte, UFMG, n. 6/7, p. 24-31, 2005.)
Bibliografia
COHEN-SOLAL, Annie. Sartre. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Pocket,
2005.
LÉVY, Bernard-Henri. O século de Sartre. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.
SARTRE, Jean-Paul. As palavras. Tradução de J. Guinsburg. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, [s.d.].
As mortes imaginárias de pessoa

Blanchot diz que o escritor “morre” a partir da existência da escrita. Entra-se no espaço literário, e
tudo é branco, tudo é possível. Se você quiser, eu escrevo como em todos meus livros,
autobiografias de outrem.
Antonio Tabucchi
No campo fértil da crítica biográfica, na qual se incluem as escritas autoficcionais,
biográficas e literárias, Fernando Pessoa ocupa, sem dúvida, um dos lugares mais
destacados. Sua autobiografia literária, composta da invenção de inúmeros
heterônimos, atualiza os princípios da poética moderna ocidental, calcada na
disseminação do sujeito, na descoberta da alteridade e no elo indissociável entre escrita
e morte. O deslocamento intencional da figura única do poeta em múltiplos avatares e
espectros instaura a sombra e o reflexo como imagens distorcidas do modelo, operação
capaz de nomear tanto a literatura quanto a vida como domínios da representação e do
artifício. Uma vez firmado o pacto ficcional, a vida do escritor se reverte
necessariamente em grafia, e a biografia se traduz em literatura.
Quais seriam, portanto, as mortes imaginárias de Pessoa? O escritor francês Marcel
Schwob, autor de Vidas imaginárias, texto publicado em 1896, é um dos singulares
biógrafos da literatura, festejado por muitos e atualmente esquecido, mas que se vê
revitalizado pela crítica, em virtude da reedição dessa obra pela Editora 34, com
tradução de Duda Machado e prefácio original de Jorge Luis Borges.1 A peculiaridade de
seu texto reside na criação de biografias de pessoas desconhecidas e no exercício livre
da escrita, ao narrar ações fabulosas atribuídas a personagens reais. Borges, ao
apresentar o livro na Colección “Jorge Luis Borges, Biblioteca Personal, em 1985”,
considera o autor uma de suas fontes literárias, pelo interesse por personagens julgadas
“infames”, e pelo método utilizado na escrita, ao misturar realidade e ficção: “O sabor
peculiar deste volume está neste vaivém.”2 Acrescenta ainda que, à semelhança de suas
personagens, Schwob “não buscou a fama; escreveu deliberadamente para os happy few,
para poucos”. A história universal da infâmia, primeiro livro de contos de Borges, de
1935, ao se apropriar do tema da fama através de atos praticados por personagens
infames e sem importância, é uma das evidências quanto ao mérito de Schwob para a
compreensão da poética borgiana.
Uma constatação relevante para o tema desta minha reflexão é a analogia entre a obra
e a vida de Schwob, por ambas se pautarem pelo signo do imaginário. Nos últimos dias
em que viveu, a imagem do escritor Robert Louis Stevenson lhe serviu de modelo,
estimulando-o a partir para a ilha Samoa, aventura que reduplicava a vida e pastichava a
literatura do escritor escocês. Schwob viaja com o objetivo de encontrar o túmulo de
Stevenson, mas não o acha, desilusão igualmente sentida pela filósofa Hannah Arendt,
ao chegar a Port-Bou à procura do túmulo do amigo Walter Benjamin, seis meses após
seu suicídio. O desejo de comprovar a morte pela visita ao túmulo do escritor traduz o
gesto de homenagem e a consolidação de um lugar de pouso e assinatura. No entanto,
diante da ausência do túmulo, a morte deixa de ser verossimilhante e se converte em
morte imaginária, lida em consonância com a vida nômade e inquieta de seus
protagonistas. Torna-se ainda componente básico para a estreita ligação entre obra e
vida.
Túmulos imaginários se revertem em manuscritos enigmáticos, em obra póstuma a
ser decifrada pelos futuros leitores da vida e da produção literária dos escritores.
Marcel Schwob, ao morrer, em Paris, de pneumonia, se une finalmente ao seu duplo,
após ter vivido à sombra de Robert Louis Stevenson morto. A morte imaginária de
Schwob é marcada pela projeção do outro na cena final, em que é reiterado o desejo de
conjunção entre modelo e cópia. Projetar-se na imagem fantasmática do outro consiste
na escolha da literatura como destino e da vida como ficção. O texto autobiográfico
corresponde à escrita da vida como autoficção. Os mundos paralelos se explicam pela
conversão da letra em experiência copiada da letra de outrem.
Essas reflexões foram motivadas pelo livro de Michel Schneider, Morts imaginaires, no
qual são reescritos os últimos momentos e as possíveis frases pronunciadas por alguns
escritores, assim como a situação e o lugar de sua morte. São ainda relevantes os
documentos e objetos pessoais pertencentes ao cotidiano da vida do sujeito, dotados de
valor significativo para a melhor compreensão da obra dos autores, como os
manuscritos, os livros ou pastas cheias de papéis, deixados como obras inacabadas, à
espera de uma publicação póstuma.3 A mitificação do lugar onde se escolhe para morrer,
seja a morada familiar, o quarto de hotel, o hospital ou o local mais propício à cena do
suicídio, se associa também à visita de amigos e admiradores ao túmulo, com vistas a
render culto e a ver ali representada a morte como o livro fechado de uma vida.
Sigmund Freud, Stefan Zweig, Immanuel Kant, Truman Capote, Marcel Schwob, Walter
Benjamin, entre outros, compõem a galeria dos mortos imaginários analisados por
Schneider e são interpretados conforme a feição e o ritual assumidos na hora da morte:
ora como morte plagiária, ora como morte paralela, mort d’occasion, ou “morte usada”.
Esta se explica pela analogia mantida com a expressão livros usados, antigos, vendidos
no sebo, os quais, após terem sido lidos, relidos e manuseados pelos leitores, serão
novamente compartilhados por aqueles que lhes sucedem.
A expressão “morte usada” refere-se também aos escritores que, nos últimos
momentos, se comportam de forma semelhante a outras situações, por meio de frases
pedidas de empréstimo e de clichês, metaforizando a imagem da morte como edição
repetida e de segunda mão e convertendo a experiência própria em cópia da experiência
alheia. A projeção e a realização imaginária por meio do exemplo literário constroem o
enredo dessas narrativas de vida. Stefan Zweig, ao decidir se suicidar com a mulher em
Petrópolis, em 1942, e após ter escrito, obsessivamente, um número considerável de
biografias, repete e plagia, segundo Schneider, o escritor Heirich von Kleist: “A mesma
morte voluntária, cheia da alegria de desaparecer; a mesma partilha com a mulher
amada, conduzida a um final apaixonado; a mesma febre de escrever até os últimos
instantes.” E mais abaixo: “Stefan Zweig quis situar sua morte na estante das mortes
heroicas de escritores.”4
Em 1986, doente e na iminência da morte, Borges decide voltar à Genebra de sua
juventude, optando pela eleição de um espaço que talvez mantivesse algum laço com o
sentimento de pátria, lugar este que será emblematicamente seu eterno exílio. Enquanto
procuravam um imóvel para se instalar na cidade velha, que lhe concederia maior
proximidade com o passado, hospeda-se com María Kodama em um hotel nessa região,
chamado “L’Arbalète”. Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 19 de maio de 1996,
Kodama relata a associação feita pelo escritor entre o hotel em Genebra e o “L’Hôtel” de
Paris, onde morreu Oscar Wilde, em 1900, no início de um século que irá desconsiderar
a personalidade artística, relegada a segundo plano pela obra. A referência a esse lugar
simbólico permitiu a Borges convencer o proprietário da casa de que sua morte poderia
proporcionar-lhe benefícios materiais, por se tratar de um escritor que se transformara,
ao longo do tempo, em “uma velha superstição”. Ao escolher um quarto de hotel para
reencenar o gesto de seu precursor Oscar Wilde, estaria cumprindo, ao pé da letra, esse
destino literário. De forma irônica, interpreta a morte como ato literário que se repete,
assim como o caráter ficcional da própria vida:
Sabe, eu, para os argentinos, sou como uma velha superstição. E o senhor sabe que em Paris há um
hotel, que se chama “L’Hôtel”, onde morreu Oscar Wilde. Hoje todo mundo quer dormir no quarto
em que Wilde morreu. Então isso vai acontecer comigo, de modo que o sr. pode passar a cobrar
mais.5
Outra cena relativa à citação literária, como forma de tornar mais nobre a existência
pela historicização da doença, encontra-se registrada no discurso de entronização de
Roland Barthes no Collège de France, publicado com o título de Aula. No final do texto, o
encontro do escritor com a literatura se processa pela mediação da doença sofrida no
passado, a tuberculose, o que lhe permite ser contemporâneo e parceiro do corpo
doente de Hans Castorp, o herói de A montanha mágica de Thomas Mann.
Reconhecendo ser o seu corpo histórico, por ter a dimensão que ultrapassa o presente e
reconstrói o passado, Barthes, no momento da aula inaugural, confessa: “Portanto, se
quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que
sou contemporâneo dos jovens corpos presentes, e não do meu próprio corpo, passado.
Em síntese: periodicamente, devo renascer, fazer-me mais jovem do que sou.”6 O
renascer para a vida nova implica a concepção do tempo simultâneo dos encontros e
não a cronologia marcada pelo calendário. A entronização de Barthes no Collège de
France elege a desconstrução como método, ao se nutrir da literatura como mediação
para seu discurso de posse. Além de Thomas Mann, responsável pela sua inserção na
história literária, cita Dante, da Vita nuova, ao optar pela revitalização do corpo
institucional, reduplicando e se colocando como vida paralela à dos seus modelos.
Nesse espaço ocupado pelo tema literário da morte, Fernando Pessoa inaugurou uma
poética original, elegendo a morte do autor como princípio básico, multiplicando-se em
heterônimos, e reiterando a perda do sujeito no meio de outras vozes, por meio da
criação de diversas instâncias discursivas. Esse artifício articula paradoxalmente o
exilar-se e o habitar a linguagem pelo sujeito, ao se tornar tanto seu hóspede como seu
anfitrião, deslocar o sentido de propriedade para o de expropriação, pela mobilidade
significativa atingida pelo trânsito intersubjetivo entre morte e vida. Na invenção genial
dos heterônimos, com biografias e horóscopos próprios, Pessoa adquire liberdade para
“matar” Alberto Caeiro, o mestre de todos, que, em 1915, é vitimado pela tuberculose,
moléstia fatal para a época e também dotada de conotação literária.
Antonio Tabucchi, em Os três últimos dias de Fernando Pessoa, utilizando-se de licença
poética, registra a morte de Álvaro de Campos no mesmo dia e ano da morte do poeta,
conforme a lista de personagens anexada no final do livro. O escritor italiano, ao narrar
os três últimos dias de Pessoa, reencena, livremente, o encontro dos pseudoautores com
seu criador, escrita que evoca outra morte imaginária, em que se dramatiza o diálogo
entre eles: segredos são revelados, confissões apresentadas, registro de últimos
pedidos, em resumo, uma prestação de contas que marca os momentos de
desnudamento e fingida exposição de verdades.
O subtítulo do livro recebe a denominação de “um delírio” e funciona sob a forma de
um procedimento ficcional, por eleger a fantasia e o sonho como procedimentos
literários a serviço da narração dos últimos dias de um poeta, pelo menos reconhecido e
atestado pelos documentos de identidade. Os fatos narrados, as personagens que aí se
instalam, participam, contudo, da autobiografia literária de autoria pessoana, o que
permite diminuir o valor do delírio e considerá-lo verossimilhante à poética dos
heterônimos, logo, dispensável como recurso ficcional. Os nomes se transformam em
personagens, saem das páginas dos livros e dramatizam o encontro com Pessoa, ao ser
hospitalizado. Atuam como parceiros e fantasmas da escrita de Tabucchi e recebem
sobrevida ficcional ao serem convocados para se despedirem do autor-moribundo.
A morte imaginária de Pessoa, encenada por Tabucchi, representa a conciliação
ilusória do poeta com os heterônimos, o reconhecimento da morte como reencarnação
do sujeito na natureza, uma saída para a entrega do poeta no cosmos. Morte e vida são
interpretadas como peças da mesma moeda, desde que o sonho é a mola da vida, a luz,
parceira das trevas e a ficção, o espelho da existência. O sentimento da precariedade da
vida e a fuga pela ficção, a mentira e o sonho compõem o universo poético de Pessoa e
são reproduzidos por Tabucchi na criação de sua personagem. O tema da morte – e sua
misteriosa presença – constitui o traço peculiar do poeta melancólico, dominado pelo
medo e pela insatisfação. No poema o “Primeiro Fausto; passagem das horas”, de Pessoa,
esse pensamento se expressa de modo forte e esclarecedor:
– Me toma a gorja, com horror de negro / O pensamento da hora inevitável, / E a verdade da morte
me confrange. / Pudesse eu, sim, pudesse eternamente / Alheio ao verdadeiro ser do mundo, /
Viver sempre esse sonho que é a vida! / Expulso embora da divina essência, / Ficção fingindo, vã
mentira eterna, / Alma-sonho, que eu nunca despertasse! /Suave me é o sonho, e a vida (…) é
sonho.7
Na conversa do poeta com o heterônimo e filósofo António Mora, Tabucchi coloca
Pessoa se despedindo da vida e recitando fragmentos de versos de “Primeiro Fausto;
passagem das horas”, de Álvaro de Campos, texto que retoma a crença numa existência
fabulosa, na qual o sujeito se sente capaz de alcançar a visão total do universo e de se
corporificar em vários seres e objetos, mas que resulta inevitavelmente na
fragmentação e no desvio desse sujeito: “Multipliquei-me, para me sentir, / Para me
sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei, não fiz senão extravasar-me, / Despi-me,
entreguei-me, / E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.”8 No
texto de Tabucchi, o discurso de Pessoa se cruza com esses versos e também remete
para a apropriação do procedimento criativo de Borges, a visão do aleph. Descreve, com
minúcia, a capacidade visionária do poeta, alcançada pela concepção enciclopédica e
alucinante do universo, imagem proporcionada pela experiência da visão do aleph,
presente no conto homônimo de Borges. Reproduz, de forma imaginária e sob o signo
do pastiche, a plenitude, o excesso e a ilusão da totalidade experimentada pelo poeta-
moribundo. Na repetição, por Tabucchi, da cena borgiana, os últimos momentos de
Pessoa atualizam a figuração do aleph, esfera luminosa cujo centro está em todas as
partes e a circunferência em nenhuma, por se tratar de uma visão que simboliza o
encontro imaginário, eterno e fugaz do infinito. Através desse processo redutor e
minimalista, esse momento representa a cifra da vida de Pessoa. A aproximação entre
Pessoa e Borges por Tabucchi – e agora por mim – entra em consonância com o delírio
borgiano, por apresentarem ambos poéticas semelhantes e traduzirem o que se entende
pelo “cogito melancólico da modernidade”.9 O trecho final de Os três últimos dias de
Fernando Pessoa encena a exaustão como experiência vital e como contraparte da
imaginação poética, delírio que condensa os versos do poeta português com a imagem
borgiana do aleph:
Está na hora de partir, é hora de deixar este teatro de imagens que chamamos de nossa vida. Se
soubesse as coisas que vi com os óculos da alma, vi os contrafortes de Órion, lá no alto no espaço
infinito, andei com esses pés terrenos pelo Cruzeiro do Sul, atravessei noites infinitas como um
cometa reluzente, os espaços interestelares da imaginação, a volúpia e o medo, e fui homem,
mulher, velho, menina, fui a multidão dos grandes bulevares das capitais do Ocidente, fui o plácido
Buda do Oriente, do qual invejamos a calma e a sabedoria, fui eu mesmo e os outros, todos os outros
que podia ser, (…) e tudo porque a vida não basta. (…) Mas agora basta, meu caro António Mora,
viver a minha vida foi viver mil vidas, estou cansado, minha vela consumiu-se, peço-lhe, me dê os
meus óculos.10
Pessoa se declara entediado com a experiência de ter vivido mil vidas e de ter se
fragmentado nas múltiplas imagens da alteridade. Morre pelo cansaço na busca da
plenitude que se reveste de contradição, esvaziando-se pelo excesso de luz que cega o
conhecimento, dimensão paradoxal referente ao sentimento de totalidade e de vazio.
Integrando-se à plenitude cósmica, perde o sentido alegre da vida, o que resulta no
próprio tédio, no spleen, na melancolia e na morte por crise hepática. Morre em
consequência de sua autobiografia, do alimento e do vício melancólicos da
modernidade. No texto citado, Pessoa pede a António Mora, na forma do último desejo,
que lhe passe os óculos, gesto que mimetiza e desconstrói a frase de Goethe,
pronunciada no leito de morte, “Mais luz”. Na interpretação de Leyla Perrone-Moisés, no
ensaio sobre Pessoa “Pensar é estar doente dos olhos”, “nesse confronto, o pedido de
Pessoa toma ares de paródia involuntária. No século XX, o poeta já não ocupa aquele
lugar reconhecido de vidente que lhe coube no Romantismo; perdeu a auréola
(Baudelaire), a supervisão, e só tem acesso à visão parcial dos fenômenos.”11
A morte datada de Pessoa, em 30 de novembro de 1935, no Hospital São Luis dos
Franceses, causada por crise hepática, permite não só a associação do alcoolismo e da
boemia com a figura do poeta maldito, mas ainda com o sentimento de melancolia
explicada, etimologicamente, pelo vocábulo grego “melancolia”, o qual remete para o
sentido de “humor negro” e de “bile negra”. Atormentado pelo mal-du-siècle, Pessoa se
refugia na criação de personagens, na transformação da escrita em espaço ficcional dos
encontros e na metáfora da própria vida. Morre daquilo que construiu como verdade
estética e programa existencial, quais sejam o deslocamento constante do sujeito, a
perda da aura e a experiência do sonho e do delírio como formas de prazer e realização
poética e existencial. A sensibilidade exacerbada do artista, a multiplicação e ruína da
subjetividade em tempos sombrios motivam Tabucchi a recriar os últimos três dias de
Pessoa, captando o momento da morte como simulacro de uma vida levada às últimas
consequências. Morre-se com o mesmo estilo com que se viveu, não havendo
contradição entre a grafia, a vida e o fim. A literatura antecipa e constrói o destino do
escritor, inscrevendo-o no cânone dos artistas representativos da alta modernidade.
Se a melancolia é considerada a doença do pensamento, é ela que ainda assinala a
necessidade de reconhecer a presença do corpo como alteridade e registro,
determinando o comportamento do sujeito e não se opondo à razão. Instauram-se,
portanto, novas modalidades subjetivas. A teoria filosófica de Nietzsche, desenvolvida
na Gaia ciência, elege o “saber alegre” como saída para se transformar a dor em
conceito, pela ação afirmativa em dizer sim ao sofrimento e por considerar o ato de
pensar com uma das possibilidades de cura. A prática da escrita desempenha
igualmente a transfiguração da doença, gesto paradoxal que reúne dor e alegria, humor
e tragédia, além de comprovar que a criação poética atua como letra que sobrevive à
efemeridade da vida e do tempo. Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa e
personagem de Tabucchi, num misto de ironia e desdém, despede-se de Pessoa
conforme o estilo que o singularizou:
E depois dei de querer decifrar a realidade, como se a realidade fosse decifrável, e veio o desânimo.
E com o desânimo, o niilismo. Depois, nunca acreditei em nada, nem sequer em mim mesmo. E hoje
estou aqui, à sua cabeceira, como um trapo sem qualquer serventia, fiz as malas para lugar nenhum,
e o meu coração é um balde esvaziado. (…) Campos colocou a capa sobre os ombros, pôs o
monóculo no olho direito, fez um rápido gesto de despedida com a mão, abriu a porta, deteve-se por
um instante e repetiu: Adeus, Fernando. E depois sussurrou: Talvez nem todas as cartas de amor
sejam ridículas.12
Uma vez compactuado com a alteridade e a fantasia, o poeta Fernando Pessoa passa a
ter prerrogativas de personagem, recebendo, conforme o momento e a intenção de
outros fabulistas, tratamento literário e vida própria. José Saramago, em 1984, escreve
O ano da morte de Ricardo Reis, romance que estabelece o diálogo com as tradições
nacionais, literárias e históricas, tendo como protagonista um dos mais conhecidos
heterônimos de Pessoa. Ricardo Reis, agora personagem de Saramago, volta do Brasil
após a morte do poeta, ocorrida em 1935, permanece em Lisboa durante o ano de 1936,
visita o túmulo do poeta, conversa com o espectro e a aparição de Pessoa durante todo o
tempo, até ir ao seu encontro graças à sua morte ficcional criada por Saramago. De
feição distinta do livro de Tabucchi, O ano da morte de Ricardo Reis reforça o aspecto
histórico e político do país, ressaltando o alheamento da personagem diante da
presença assustadora da ditadura de Salazar, a ascensão de Hitler e de Mussolini, além
da iminência da Guerra Civil espanhola. Na defesa de um Portugal mais esperançoso e
mobilizado, Pessoa e Ricardo Reis, na cena final do romance e no encontro na morte,
acreditam na mudança e na libertação políticas do presente, condensadas na imagem de
Adamastor:
Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu, Melhor do que eu sabe
que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra
ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa. Vamos, disse Ricardo Reis. O
Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui
onde o mar se acabou e a terra espera.13
Sem o chapéu, que não mais terá sua serventia, Ricardo Reis é também uma fantasia
literária de Saramago, o que nos permite concluir que, decorridos mais de 70 anos da
morte de Pessoa, o que permanece são a imortalidade de uma obra e a transfiguração
imaginária do poeta, que se multiplica em personagem na pele de outros autores e de
textos distintos. Com óculos e sem chapéu para enfrentar a morte, essas personagens
continuarão a povoar o universo espectral da literatura enquanto houver leitores que
lhes proporcionem uma sobrevida literária transtemporal, sobrevida que sempre irá se
nutrir da imaginação e do vir a ser.
(Ensaio publicado em: MARQUES, Reinaldo; SOUZA, Eneida Maria de (Org.). Modernidades
alternativas na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 407-417.)
Bibliografia
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, [s.d.].
BORGES, Jorge Luis. A história universal da infâmia. Tradução de Flávio J. Cardoso. Porto
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KODAMA, María. Entrevista. Folha de S. Paulo, 19 maio 1996. Ilustrada.
MONEGAL, Emir Rodriguez. Borges, auteur de Fernando Pessoa. Magazine Littéraire,
Paris, n. 259, 1988.
NIETZSCHE, F. Gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PERRONE-MOISÉS Leyla. Pensar é estar doente dos olhos. In: NOVAES, Adauto (Org.). O
olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 327-346.
PESSOA, Fernando. Primeiro Fausto; passagem das horas. In: ____. Obra poética. Rio de
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SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
SCHNEIDER, Michel. Morts imaginaires. Paris: Grasset, 2003.
SCHWOB, Marcel. Vidas imaginárias. Tradução de Duda Machado. Rio de Janeiro: Editora
34, 1997.
TABUCCHI, Antonio. Os três últimos dias de Fernando Pessoa. Um delírio. Tradução de
Roberta Barni. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
A memória de Borges

Talvez no futuro alguém, uma mulher que ainda não nasceu, sonhe receber a memória de Borges tal
como Borges sonhou que recebia a memória de Shakespeare.
Ricardo Piglia
Na década de 1980, Octave Mannoni, psicanalista francês, escreveu Ficções freudianas,
inspirado na poética de Borges e tendo Freud como objeto. O livro se compõe de uma
série de contos envolvendo Freud, seus amigos e clientes, com o objetivo de
desconstruir os limites rígidos entre ciência e ficção, ao apontar a potencialidade
enganosa e fugidia do ato de linguagem, praticada tanto pela literatura quanto pela
psicanálise. Nesse espaço baldio da escrita, a alteridade se impõe como constituinte do
sujeito e a dessubjetivação autoral celebra o gesto de apropriação do outro. A literatura
borgiana já se consolidava mundialmente em vários campos do saber como produtora
de artifícios capazes de desbancar racionalidades e de penetrar sem escrúpulos no jogo
indomável da ficção.
O escritor catalão Enrique Vila-Matas – assim como boa parte da literatura global –
tem reativado a invenção ficcional borgiana, pautada pelo desaparecimento (também
ficcional) do sujeito/autor e do surgimento do fantasma da alteridade e do duplo.
Estamos agora no reino da literatura e não apenas na sua relação com os demais
saberes disciplinares. Ela se alimenta de si própria, visita lugares literários, inventa
encontros entre escritores, imagina diálogos entre personagens retirados de livros,
brinca com as citações alheias e reforça o fascínio de leitores pela aura literária.
“A memória de Shakespeare”, conto de Borges que narra como a memória do autor
inglês foi presenteada ao narrador/escritor por um desconhecido, não estaria sendo
reconfigurada, na literatura contemporânea, pela memória de Borges? A metáfora da
memória alheia permitiria definir a tradição poética e a herança cultural da literatura
contemporânea? Estaria a profecia de Ricardo Piglia, segundo a qual a memória de um
escritor latino-americano poderia ser enxertada, no futuro, na memória de um europeu?
E acrescentaria: na memória de tantos outros escritores do planeta? O legado literário
do cânone ocidental, no qual o norte sempre se impôs como exportador de modelos
estaria sendo ocupado pelo sul, ou pela literatura dita periférica? Ou ainda, a escolha
dos precursores literários, realizada contra a passividade da influência, não poderia ser
lida como prisão, mais do que como presente recebido, por sua vez, como herança
nefasta?
Essas reflexões foram motivadas pela leitura de Doutor Pasavento, último romance de
Vila-Matas, traduzido no Brasil pela Cosac Naify,1 pelo romance do marroquino Ben
Jelloun, L’ enfant de sable,2 assim como pelo olhar frente à atual configuração estética da
literatura. Não se pretende aqui apontar a permanência de Borges na cultura europeia
do século 20 e na primeira década do século 21, o que não constitui novidade e nada
acrescentaria à proposta deste texto. De Calvino a Vila-Matas, de formas diferentes e
com soluções literárias distintas, a poética de Borges se confunde com a própria
literatura, e a ultrapassa. O consagrado valor atribuído à sua obra se resumiria no
desejo deliberado de se apropriar da cultura alheia como contraponto à afirmação de
autoria e originalidade, valendo-se da “política da modéstia”, como assim a nomeia
Nicolás Helft e Alan Pauls.3 Essa política consiste na formação da imagem de escritor
clássico, por meio de protocolos enunciativos visando ao reconhecimento público. A
impessoalidade como estilo e a criação de personagens dotadas de um “saber menor” e
da gratuidade de existir concorrem para a consagração ilimitada de Borges, por ter-se
convertido em escritor mundialmente citado e eleito como precursor da estética pós-
moderna. A extrema visibilidade que a assinatura Borges adquire ao longo do tempo se
pulveriza no gesto contrário, o da invisibilidade. O autor como sujeito pleno no ato
criador se dilui, revertendo-se na figura do escritor clássico, anônimo, despersonalizado,
embora o ato responsável pelo desaparecimento seja, ironicamente, o momento de
maior fulguração póstuma. Segundo o escritor, um de seus maiores desejos seria a
transformação da humanidade em ideal de construção coletiva dos saberes, em que
cada indivíduo fosse capaz de se considerar artista e criador. O anonimato significaria a
recusa do sentido de propriedade autoral, uma vez que se postula o gesto democrático
de recepção e produção do conhecimento.
Ao leitor familiarizado com a obra de Vila-Matas, não causa nenhuma surpresa a
repetição de temas sobre criação e vida literárias, já exploradas em textos anteriores,
como Bartleby e companhia, Paris não acaba nunca, Mal de Montano e Suicídios
exemplares. O desaparecimento do escritor e o desejo de anonimato se associam à
estética vital da negatividade e da literatura como doença, mal que atinge as
personagens de Mal de Montano. Escritores destinados à reclusão e à interrupção de sua
carreira são os preferidos de Vila-Matas, no endosso do desaparecimento como
realização às avessas do ofício de escritor. O autor suíço Robert Walser, os americanos
Jerome David Salinger e Thomas Pynchon constituem os melhores exemplos do
comportamento herdado pelo Doutor Pasavento. Peripécias literárias são urdidas no
romance, de natureza híbrida, misto de ensaio e ficção, metaficção e autoficção, termos
que correspondem a uma das feições literárias que delineiam a literatura do presente.
Convidado a proferir uma palestra em Sevilha sobre os limites entre ficção e
realidade, o narrador se esconde na figura de um sósia encontrado num trem e foge do
compromisso, assumindo a personalidade do psiquiatra fictício, Doutor Pasavento. Os
fatos são relatados a partir do hotel da rua Vaneau, em Paris, famosa por ter sido
domicílio de escritores, como Marx, Gide e outros. O tema do desaparecimento se
concentra na imagem de Robert Walser, internado nos últimos 23 anos de vida no
manicômio e encontrado morto na neve, no Natal de 1956. A mitologia do escritor que
diz não ao sucesso e se fecha na solidão da escrita e do anonimato é a resposta desse
livro para a exposição espetacular imposta pela mídia ao mundo das celebridades.
No entanto, nunca se escreveu com tanto entusiasmo sobre a vida literária, sobre a
curiosidade do leitor/escritor em tentar penetrar na ficção e na vida dos escritores e
nunca a biografia mereceu lugar maior do que a obra, mesmo quando era exercida de
forma precária e causalista. A literatura de Vila-Matas, no empenho de transformar
figuras históricas em personagens, e criações ficcionais em verbetes, não necessita de
decifradores das redes intertextuais aí apresentadas à exaustão. O valor enciclopédico
de Doutor Pasavento não é apenas fictício, mas documental, precário e permanente, de
força vital e de valor textual, ingredientes que combinam com a natureza fugidia e
citacional da cultura contemporânea. Essa memória livresca, obsessivamente voltada
para os escritores e os caprichos da criação literária, como para o destino marginal e
gauche de seus intérpretes estaria, por certo, preconizando, como Maurice Blanchot,
citado por Vila-Matas, de ser o desaparecimento o que marca o destino da literatura:
“Para onde vai a literatura?”, perguntaram. “Vai em direção a si mesma, em direção à
sua essência, que é o desaparecimento.”4 O enxerto da memória de Borges em escritores
pertencentes às culturas antes consideradas hegemônicas e colonialistas representaria
uma sobrevida para a literatura que sempre se nutriu do apagamento do outro. Esta
seria a resposta positiva em face da proposta literária de Vila-Matas, ao se colocar como
mediador de escritas e de memórias alheias, estratégia escolhida para se reconhecer
integrado no quadro da literatura contemporânea globalizada. Mas essa posição pode se
converter em algo negativo ao insistir na reduplicação de modelos que já atingiram a
exaustão e o fastio, esquecendo-se o escritor de buscar um caminho diferente, ainda que
nem sempre original para a criação. A metaficção, quando reduzida ao parasitismo e ao
mimetismo de fórmulas consagradas, corre o risco de se transformar em ficção para
escritores fascinados pela mitologia criada em torno de si próprios. Nesse sentido, no
lugar de se pregar o desaparecimento da literatura, como queria Blanchot, ou o
desaparecimento do escritor, como assim Vila-Matas preconiza, teríamos a volta triunfal
daquilo que, ironicamente, estaria fadado a desaparecer.
Esse discurso reforça ainda um dos pontos da poética borgiana responsável por sua
consagração mundial, o da autonomia literária, ao conferir à literariedade valor
indiscutível para a obra. A presença/ausência da imagem do escritor/autor se
transforma em tema literário, intriga que se enreda/desenreda como espelho
reduplicador da vida literária e da literatura. A comunidade letrada do século 21 se
refestela na fruição infinita dos jogos de linguagem e do teor indecidível das questões
estéticas, e a academia encontra na literatura de escritores material permanente para as
lições de crítica literária. Não seria mais rentável receber a memória de Borges pelo viés
de outras investidas, em contraponto com a cultura letrada, como a cultura popular e a
cultura de massa? Nesse sentido, a literatura contemporânea – e por extensão, a crítica –
poderia se valer também de suas lições sobre a cultura resumida e condensada que se
extrai da leitura desconstrutora das enciclopédias, retirando das mesmas os
estereótipos de um saber pautado pela racionalidade, o tédio e a erudição. Em estreita
oposição ao saber capitalista, pautado pela aquisição, acumulação de informação e
conhecimento, o autor articula, de modo irônico, a alta literatura e o projeto divulgador
de saberes menores. Por essa razão, é considerado defensor do conceito Reader’s Digest
de cultura, por exercer duas maneiras de fazer literatura: “Uma culta, hermética,
‘intelectual’, dirigida a um grupo de amigos e iniciados; a outra popular, acessível, leve,
atenta aos apetites de um público de massa e anônimo.”5 Mas, é seguindo a lógica
capitalista da publicidade que Borges redige o texto para Seleções do Reader’s Digest, em
1967, inscrevendo, à maneira de sua poética, a relação estreita entre cultura erudita e
popular. O toque de humor arremata a condensação entre culturas, obtida pelo olhar
oblíquo do escritor, o que converte a escrita na prática divergente e dupla, com vistas a
criar o curto-circuito entre as Mil e uma noites e os textos resumidos das Seleções do
Reader’s Digest.6 A arte do resumo e da concisão, traço da moderna literatura e da
publicidade, agrada ao escritor, não só pelo abandono do excesso e do palavrório, mas
também pelo prazer da leitura. A cultura letrada, portanto, cede lugar às manifestações
artísticas transnacionais e à presença de comunidades periféricas, produtoras de novas
sensibilidades e múltiplas subjetividades. Mudanças que acentuam a fragmentação do
espaço urbano e a produção de redes comunicativas virtuais, como efeito das novas
tecnologias e da transformação das experiências estéticas.
A segunda reflexão para o debate de hoje se dá por intermédio da apropriação da
imagem de Borges como trovador cego, inserido no romance do marroquino Ben
Jelloun, L’ enfant de sable, de 1985. A intenção de inseri-lo como herdeiro da poética
borgiana responde, inicialmente, pela recepção também periférica do escritor – e da
literatura latino-americana –, assim como pela retomada do imaginário oriental na arte
de contar histórias. Em segundo lugar, pela relação entre literatura e valor de mercado,
realizada pelo diálogo entre escritores pertencentes a diferentes culturas. Marrocos e
Argentina se interagem pela apropriação da moeda literária lançada no comércio global:
ou para aquilatá-la como objeto de valor real e simbólico, ou para trocá-la pela prática
do gesto ancestral dos nômades contadores de histórias. Borges torna-se personagem
de Ben Jelloun, ao ver-se encarnado no trovador cego saído de um bairro de Buenos
Aires e enxertado numa medina árabe, para narrar histórias que repetem, em abismo, a
trama que envolve as personagens do romance. Marrakech e Buenos Aires se encontram
pela voz do rapsodo da praça pública, assim como o escritor cego e sua poética plagiária
são condensados na mesma figura do rapsodo:
Quando leio um livro, me instalo no seu interior. É o meu defeito. Acabei de lhe dizer que eu era um
falsificador. Sou biógrafo do erro e da mentira. Não sei quais mãos me impeliram até você. Creio
que são as de seu contador, que deve ser um contrabandista, um traficante de palavras.7
Pelas mãos do contador contrabandista, a literatura argentina, sob a imagem de
Borges é enxertada na literatura marroquina, pela mediação das Mil e uma noites árabes,
texto de referência da poética narrativa borgiana e fonte quase natural do livro de Ben
Jelloun. A falsificação de histórias coloca o comércio literário nas mãos de trovadores da
praça pública, para quem a questão da identidade pessoal do protagonista – nascido
mulher e sendo obrigado a se comportar como homem – é o enigma da trama. Essa
questão de ordem pessoal se desdobra na troca intersubjetiva dos narradores e da
moeda que será passada adiante, no espaço aberto e heterogêneo da cidade. Não há
nenhuma dívida a ser paga ao escritor argentino, visto ser ele próprio inspirador do
tráfico de palavras e de culturas. Os ecos no deserto árabe da literatura que não mais
pertence a um só território convidam o leitor a refletir sobre o domínio inesgotável da
ficção que não conhece fronteiras. Se antes a literatura latino-americana e, em especial,
Borges, teve que se construir através do cruzamento da cultura europeia com a nativa,
será que neste princípio de século, repito, seria possível pensar na inversão desses
lugares? A resposta é menos utópica e se pauta pela força que literaturas de países
periféricos podem representar na bolsa de valores global, mesmo que seja através de
manifestações que se situam fora do contexto literário. A predominância da poética do
mais pobre, da poética do menos, tem conseguido driblar a ostentação e a epicidade da
indústria cultural dos defensores da poética calcada no acúmulo e na riqueza.
Ficaremos, portanto, à mercê do valor imposto pelas transações fiduciárias, as quais
revertem em lucro os resíduos culturais deixados pelas narrativas das margens, das
intrigas familiares e das complexas redefinições de identidades nacionais? O endosso da
lentidão e do ócio como reação à poética do acúmulo e da rapidez não se imporia, ao
lado da expressão da oralidade, em praça pública, entre as inúmeras saídas para o
impasse entre a visão globalizante e a releitura das demais manifestações artísticas fora
de eixos culturais hegemônicos? Buenos Aires, Marrakech, seriam esses velhos/novos
espaços os inventores de fábulas que retomam tradições, intercambiam vozes, negociam
parcerias e superam os limites territoriais de cada região?
No ensaio de Josefina Ludmer, “Comment sortir de Borges?”, a posição ocupada pelo
escritor no mapa literário do século 20 é assim por ela interpretada:
Podemos ler Borges a partir da nação e a partir do exterior (numa posição interna/externa em
relação à Argentina), porque para nós, os argentinos, ele encarna hoje o símbolo da exportação
literária do século 20: é o escritor que se globalizou. (…) Se estivesse nos Estados Unidos ou na
Inglaterra, poderia me perguntar: de que tipo de produto literário latino-americano se trata? Quais
são as condições literárias e também culturais, históricas e sociais para que um escritor latino-
americano como Borges possa participar da literatura universal, ou de um cânone ocidental que
abraça todo um século?8
Uma das possíveis respostas a essa questão reside, segundo Ludmer, na tentativa de
desagregar as unidades da autonomia textual, a estrutura do cânone, deslocando a
tradição literária e cultural na sua íntegra e assumindo a instabilidade do texto e a
volatização da autoridade do autor. Na perspectiva da ensaísta, a leitura de Borges
poderá se situar entre a nação e além dela, entre a ilusão da cultura letrada que sua
literatura oferece e a cultura do presente, situada entre a autonomia e a perda da
autonomia, entre passado e presente, entre seu nome e sua dispersão em tradições:
“Porque para mim, sair de Borges, retirar de Borges seu nome e sua autoridade não
significa não nomeá-lo, mas desagregar a unidade orgânica de sua obra, retirar-lhe seu
caráter imutável e monumental.” E conclui: “Gostaria de ler Borges enquanto tradição, e
ler o presente com a tradição Borges, que será, aliás, a da apropriação crítica (aquela de
uma contra-Escrita) de suas próprias tradições literárias e culturais.”9 Nas lições de
Borges para a literatura do presente – contaminada pela metaficção, pelo convívio
estreito entre documento e ficção, teoria e ficção, verdades e mentiras, bartlebys e
companhias – o que se propõe é a prática da irreverência diante de sua obra, da mesma
forma que ele assim entendia a leitura da tradição. O mimetismo e a subserviência aos
modelos não constroem boa literatura, pois a leitura dos clássicos e das tradições exige
rupturas e clama por um diálogo impertinente com os precursores. A desconfiança
demonstrada pelo narrador pelos espelhos e pelas cópulas, no conto “Tlon, Uqbar, Orbis
Tertius” atua como reforço ao horror de Borges pela repetição, a reprodução e a
paternidade. Destituir a função paterna de sua obra, herança nefasta da memória que
paralisa no lugar de revitalizar, constituiria, de um ponto de vista positivo, uma das
múltiplas entradas no imaginário borgiano, resguardando-se os limites e abrindo-se
para o diálogo. A herança negativa se configuraria no espectro do escritor atuando na
composição das novas gerações e de uma literatura que apenas se alimenta do artifício
criativo como sinal de erudição e conversa entre escritores/críticos. Nada impede que o
amor pela literatura e sua atração atávica sirvam de tema para grandes ou menores
romances, ou que os acidentes comuns do cotidiano se metaforizem em cenas da mais
fina literatura. Ou o que se questiona, nas obras representativas dessa herança negativa,
é a prisão a fórmulas estéticas e a consequente exaustão dos procedimentos.
A crítica acadêmica – entre a retomada de princípios de crítica textual e autônoma,
fiel à consagração canônica e ao beletrismo, e a abertura para fluxos e redes
comunicativos, que vão além da cultura letrada e do universo sagrado da literatura – se
apresenta, no momento, como herdeira da memória de Borges. Por um lado, assumindo
atitude conservadora, própria de momentos considerados de crise, nos quais são
refutados critérios de valor deste ou daquele discurso; por outro, a herança borgiana
ressoa no ensaio crítico pautado pela atenção dedicada à construção de um discurso
situado entre a teoria e a ficção e pelo exercício de saberes menores, avessos ao apelo à
totalidade. O ensaio literário praticado por grande parte da produção brasileira
acadêmica retoma a posição do escritor/crítico borgiano, ao se desvencilhar da dicção
hermética e fechada dos tratados e se valer de critérios que se aproximam da critica de
natureza imagética e “religiosa” de Borges. Os conceitos tradicionais da crítica são
transformados em imagens ao atuarem como operadores de leitura: aleph, biblioteca de
babel, Funes, o mapa do império e assim por diante. Do ponto de vista religioso,
expressões como “superstição”, “sacrilégio”, “destino”, “ateísmo”, “sacerdócio” envolvem
o vocabulário crítico borgiano e com diferenças apenas no modo de expressão, ganham
terreno, ressoam no discurso crítico contemporâneo. A literatura como destino, as
imagens de escritores, a preferência por lugares simbólicos por onde passaram os
escritores, como Oscar Wilde no hotel em Paris, “L’Hôtel”, são algumas das heranças de
leitura legadas por Borges. Vila-Matas, como foi aqui demonstrado, seguiu os passos do
escritor argentino e construiu uma poética que leva ao extremo essas obsessões.
Nos anos 1970, a ensaística brasileira recebeu do escritor/crítico brasileiro Silviano
Santiago uma reflexão sobre o lugar do discurso latino-americano, de onde surgiu o
conceito de “entre-lugar”.10 Tributário da teoria da desconstrução de Jacques Derrida, o
conceito consiste no “lugar de observação, de análise, de interpretação que não é nem cá
nem lá, é um determinado ‘entre’ que tem que ser inventado pelo leitor”.11 Mas a
definição do conceito de “entre-lugar” se alimenta ainda da lição de Borges, legítimo
representante de um escritor das margens. Ao adotar esse espaço intermediário de
reflexão, Silviano descarta “o lugar-comum dos nacionalismos brabos” e o “lugar-fetiche
do aristocrata saber europeu”. Desconsidera ainda o rancor próprio da teoria marxista
da dependência, por meio da qual se evidencia o descompasso temporal e a consciência
trágica do atraso dos países periféricos em relação à cultura metropolitana.
Com a definição de Silviano Santiago do conceito de “entre-lugar”, finalizo minhas
palavras dedicadas a este encontro com Borges:
Borges me deu a coragem do pensamento paradoxal quando estava preparado (ou estavam me
preparando) para os caminhos da racionalidade francesa numa terra onde os lugares-comuns nos
impelem para o irracional. Nunca fui vítima da lucidez racional da Europa como um novo Joaquim
Nabuco, nem me deixei seduzir pelo espocar dos fogos de artifício ou pelas cores do carnaval nos
trópicos. Fiquei com os dois e com a condição de viver e pensar os dois. Paradoxalmente. Nem o
lugar-comum dos nacionalismos brabos, nem o lugar-fetiche do aristocrata saber europeu. Lugar-
comum e lugar-fetiche imaginei o entre-lugar e a solidariedade latino-americana. Inventei o entre-
lugar do discurso latino-americano que já tinha sido inaugurado pelos nossos melhores escritores.12
(Artigo publicado no Jornal de Resenhas, Discurso Editorial, v. 10, p.18-19, 2010. A versão ampliada
deste texto foi divulgada na revista Aletria, v. 20, p. 27-35, 2011.)
Referências
BORGES, Jorge Luis. Une lo útil a lo agradable. Selecciones del Readers Digest, p. 143, nov.
1967 apud HELFT, Nicolás; PAULS, Alan (Org.). El factor Borges. Nueve ensaios
ilustrados. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2000.
BORGES, Jorge Luis. Tlon, Uqbar, Orbis Tertius. In: ____. Ficciones. Obras completas.
Buenos Aires: Emecé, 1990. p. 431-443.
BORGES, Jorge Luis. A memória de Shakespeare. In: ____. Obras completas. São Paulo:
Globo, 1999. p. 444-451.
HELFT, Nicolás; PAULS, Alan (Org.). El factor Borges. Nueve ensaios ilustrados. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2000.
JELLOUN, Tahar Ben. L’enfant de sable. Paris: Seuil, 1985.
LUDMER, Josefina. Comment sortir de Borges? Disponível em: <http://www.vox-
poetica.com/t/ludmer.html> Acesso em: 14 jul. 2010.
MANNONI, Octave. Ficções freudianas. Tradução de Jorge Bastos. Rio de Janeiro, Taurus,
1983.
SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: ____. Uma literatura
nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 11-28.
SANTIAGO, Silviano. Borges. In: SCHWARTZ, Jorge (Coord.). Borges no Brasil. São Paulo:
UNESP/Imprensa Oficial/Fapesp, 2001. p. 433-434.
SANTIAGO, Silviano. Literatura é paradoxo. Entrevista concedida a Carlos Eduardo
Ortolan Miranda. Disponível em:
<http://Pphp;uol.com.br/tropico/HTML/textos/2375> Acesso em: 1 nov. 2010.
VILA-MATAS, Enrique. Doutor Pasavento. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo:
Cosac Naify, 2010.
Cyro dos anjos: a verdade está na Rua Erê

O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, publicado em 1937 em Belo Horizonte, é


produto do diário escrito por Belmiro Borba durante o ano de 1935. Com esse
pseudônimo, o autor mantinha a coluna de crônicas diárias para o jornal A Tribuna. Com
seu fechamento em 1933, Cyro assume a redação da mesma coluna no Estado de Minas.
Graças à insistência de amigos e leitores, o escritor decide transformar as crônicas em
romance, aproveitando-se da ausência do governador de Minas, Benedito Valadares, de
quem era chefe de Gabinete. A obra antecipa futuros memorialistas e romancistas que
integram a literatura brasileira e que escolhem Belo Horizonte como tema: Fernando
Sabino, com O encontro marcado, romance que recria a cena literária e existencial da
década de 1940; Carlos Drummond de Andrade, na série de livros de poemas iniciados
com Boitempo; Beira-mar/memórias 4, de Pedro Nava, sobre os anos 1920; o ensaio Um
artista aprendiz, de Autran Dourado, de 1989, relata a experiência intelectual que um
grupo de artistas protagoniza na década de 1940. Guardadas as diferenças de gênero e
de intenção poética, ressalte-se que O amanuense Belmiro registra, em primeira mão, o
ambiente intelectual e seus dramas existenciais da época, por meio de uma narrativa
entre a autobiografia e a ficção. O romance torna-se referência da vida mundana e
letrada, do mapa cultural da Belo Horizonte dos anos 1930, mas se reveste de
contemporaneidade, por transpor os limites de uma literatura local. Da rua Erê à
Paraibuna, o amanuense ainda perambula e destila seu tédio e seu impecável humor.
À maneira de Belmiro Borba, que se vale da mediação literária e filosófica para a
composição de sua “personagem de romance”, evoco lembranças livrescas, com a
convicção de reacender o debate atual sobre sua obra. Não se trata de legitimar o
romance pela mediação de textos contemporâneos, cuja temática se encontra presente
no Amanuense. O que se pretende, ao contrário, é reunir as pontas referentes ao
momento de publicação do livro com sua recepção no século 21. Tomo a liberdade de
registrar tanto os livros visitados pelo autor, como os de Georges Duhamel, Machado de
Assis, Carlos Drummond de Andrade, Proust, Nietzsche, entre outros, como os que não
constam de sua biblioteca pessoal, como O homem sem qualidades, de Musil (1930-
1933), e Bartleby, o escrivão, de Melville, publicado em 1856, e reeditado, em edição de
luxo, pela Cosac Naif, em 2005.
Considerada uma das personagens mais enigmáticas da ficção moderna, Bartleby
desafia a interpretação racionalista e mantém pontos de contato com as criações de
Kafka, Musil e Borges. A novela narra a história de um silencioso escrivão, dominado
pela pulsão negativa e pelo nada da existência. Narrada pelo advogado que contrata o
copista, este passa a se negar a atender aos pedidos do chefe, expressando-se sempre
com a frase, “Acho melhor não”. A situação recorrente é levada a tal extremo que o chefe
nem consegue contra-argumentar ou mandá-lo embora. Bartleby revela-se resistente e
vítima passiva do sistema de poder que o rodeia.
O caminho para chegar até Belmiro Borba havia ainda sido preparado por outro
romance, este de 2004, Bartleby e companhia, do espanhol Enrique Vila-Matas. O mesmo
sentimento de imobilidade irá caracterizar os escritores selecionados pelo autor,
tomados pela síndrome de Bartleby, como representantes da “literatura do não”, os
quais, “mesmo tendo consciência literária muito exigente (ou talvez precisamente por
isso), nunca cheguem a escrever; ou então escrevam um ou dois livros e depois
renunciem à escrita; ou ainda, após retomarem sem problemas uma obra em
andamento, fiquem, um dia, literalmente paralisados para sempre”.1 A associação com o
comportamento de Belmiro Borba é evidente, não só nas crônicas publicadas no jornal,
como o que se constata no último capítulo do livro, intitulado “Última página”. Ao
receber do amigo Carolino os blocos da Seção de Fomento da repartição onde trabalha,
material utilizado para a escrita do diário, a personagem revela-se um dos Bartleby do
livro de Vila-Matas, renunciando definitivamente à escrita, paralisação que coincide com
o final do livro: “Previdente e providente amigo! Esqueceu-me comunicar-lhe que já não
preciso de papel, nem de penas, nem de boiões de tinta. Esqueceu-me dizer-lhe que a
vida parou e nada há mais por escrever.”2
O homem sem qualidades, embora conste da biblioteca do autor, em edição francesa
de 1957, mas não sendo referenciada por ele, dramatiza um dos mais contundentes
temas do início do século 20 – dominado pelo spleen e pelo desencanto das personagens
do romance moderno – como sinal de uma época que denuncia a fragilidade dos
vínculos entre sujeitos. A precariedade e o desconforto do homem moderno se vinculam
ao conflito identitário, ao desvirtuamento dos valores e da convivência do eu com seu
“estranho” outro. Baudelaire, um dos maiores representantes da estética moderna,
pautada pelas noções de efêmero e transitório, reforça a genealogia desses princípios
que se estendem à pós-modernidade.
Segundo Christine Buci-Gluksmann, no livro Esthétique de l’éphémère, tanto o spleen
da personagem de Musil quanto o baudelairiano – este caracterizado pelo “efêmero
melancólico”, pela alegorização do ego e da alienação de si –, se distinguem do “efêmero
cósmico” da atualidade, pela sua leveza e positividade, creditadas à herança legada por
Nietzsche ao século 20.3 A vinculação desse conceito à obra de Cyro dos Anjos é de
notória pertinência:
Teatro do luto e da aflição, o Trauerspiel participa de um princípio formal destrutivo que
interrompe o curso da história inscrevendo aí o efêmero como precário, fragmento e ruína.
Dominado por um Édipo infeliz, ele introduz um efêmero melancólico, em oposição à arte do tempo,
cheio de humor, de sensualidade e metamorfose, comum à comedia dell’arte, que celebra a vida
como princípio carnavalesco, representando assim o mito de um Ícaro desafiando a lei do pai sem
“cair”.4
O amanuense Belmiro é a narrativa sobre o nada, de enredo banal, cujo retrato da vida
pacata do amanuense-funcionário público vale-se da ausência de problemas do
cotidiano, pela simplicidade da personagem, que se salva, pela escrita, dos males do
século. Dotado de estilo despojado, de linguagem sem maneirismos, o livro se impõe
como clássico da literatura brasileira, ao introduzir não só a descrença nas grandes
narrativas, mas a vacuidade das relações humanas. Capturadas através do jogo inócuo
dos diálogos, essas relações seguem o ritmo lento da imaginação e do teatro mental. No
endosso da concepção moderna de literatura que se autodefine como artifício e
invenção, o escritor assume o procedimento metalinguístico, bastante comum no
romance contemporâneo. O texto autobiográfico se exibe de modo ficcional, de modo
que o distanciamento e o humor se contrapõem à verdade do escritor, por meio da
encenação banalizada dos problemas existenciais. Por um processo de sublimação,
Belmiro Borba se comporta segundo o processo de deslocamentos ininterruptos. Ações
que poderiam resultar em efeito trágico, como a loucura e a morte da irmã, o casamento
de Cordélia, a diluição do grupo de amigos, são facilmente resolvidas, em virtude do
tratamento irônico adotado pelo narrador.
A leitura de Belo Horizonte como cidade que se apaga e se revigora ganha sobrevida
graças ao gesto ficcional. Três letras compõem o nome da rua onde mora o amanuense,
a rua Erê, assim como traduzem o sentimento contraditório de conformidade da
personagem à banalidade de sua vida miúda, expressa em tom erudito e metafísico, “a
verdade está na rua Erê”. Dividido entre a realidade e a fantasia, o que resta a Belmiro é
representar papéis, praticar seu “teatro íntimo” e tentar escrever o livro, já esboçado no
diário. A dramatização da escrita, das notas do diário, o afastamento do narrador da
realidade, obtido pela encenação em primeira pessoa, permitem o livre trânsito entre
autobiografia e ficção, sendo o ato de escrever o devir inacabado, o ausentar-se e o
deslocar-se das experiências, uma das múltiplas formas de desalojar o eu de sua própria
casa. Esse distanciamento evidencia o grau de representação da literatura, à medida que
o narrador, ao impessoalizar a narrativa, a singulariza. Esse devir, nas palavras de Gilles
Deleuze, remete para a posição intermediária do narrador, a de “estar sempre ‘entre’ ou
‘no meio’” à medida que “a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira
pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu (o neutro de Blanchot)”.5
A primeira pessoa de Belmiro brinca e disfarça o tempo todo, compondo a figura do
escritor-narrador como voyeur do escrito, como personagem da narrativa
pretensamente autobiográfica:
Não se trata, aqui, de romance. É um livro sentimental, de memórias. Tal circunstância nada altera,
porém, a situação. Na verdade, dentro de nosso espírito as recordações se transformam em
romances, e os fatos, logo consumados, ganham outro contorno, são acrescidos de mil acessórios
que lhes atribuímos, passam a desenrolar-se num plano especial, sempre que os evocamos,
tornando-se, enfim, romance, cada vez mais romance.6
E continua Cyro dos Anjos: “Devo retificar, nesta página, o que atrás foi dito sobe o
amanuense que espia o amanuense e lhe estiliza o sofrimento.”7
I
O núcleo familiar do romance, formado por Belmiro e as duas irmãs, se inclui na
categoria da “comunidade de celibatários”, responsável pela linhagem fraterna,
suplemento da paterna, submetida ao apagamento e ao silêncio. Essa comunidade é
formada pelo gesto que transgride a genealogia paterna e instaura o corte com a
procriação que visa à conservação e à reprodução de linhagens de família. A amizade
entre homens, a rede de empréstimos passada de tio para sobrinho, inventa famílias
literárias, cria laços de parentesco a partir de afinidades eletivas. Belmiro Borba
representa, com as irmãs, o término da família Borba, por se verem dotados da marca da
esterilidade, interrompendo a continuidade e a preservação da genealogia de uma
aristocracia rural. Como a personagem de Melville, Bartlebly, o celibatário, Belmiro é
sem qualidades, sem ambição, sem posses, sem fortuna e sem herança – tem apenas a
casa da rua Erê, num bairro de operários de Belo Horizonte. Considerando-se um
“Borba errado”, pondera sobre o fracasso de sua vida, tendo demonstrado a falência
tanto na sua relação com a fazenda, na Vila Caraíbas, quanto no curso não realizado de
agronomia, um dos desejos do pai. Nega a estirpe familiar e recebe como herança as
duas irmãs, que passam a morar com ele depois da morte do pai. Irmãs que, pela doença
mental e a esquisitice, compõem o quadro de uma linhagem que parou ali:
Coitado do velho. Neguei as virtudes da estirpe. Sou um fruto chocho do ramo vigoroso dos Borbas,
que teve seu brilho rural. Em face do código da família, (cinco avós, pelo menos estão me dizendo –
ilustres sombras!) foi um crime gastar as vitaminas do tronco em serenatas e pagodes. Lá estava a
fazenda, grande, poderosa como um estabelecimento público, com suas lavouras à espera de
cuidados moços. Sinto muito, avós. Eu não podia ouvir uma sanfona. Tocavam a Varsoviana e eu me
dissolvia (lá na Vila lhe chamavam Valsa Viana…).8
O comportamento da personagem resulta no gesto parricida e na construção da
“comunidade de celibatários”, como função de uma fraternidade universal, “que já não
passa pelo pai, que se constrói sobre as ruínas da função paterna, (…) segundo uma
linha autônoma de aliança e vizinhança que faz da mulher uma irmã, do outro homem
um irmão”.9 Nessa relação fraterna, instaura-se a resistência contra a sociedade
capitalista, com sua estrutura hierárquica, consumidora e mercadológica. Ao destruir o
retrato do pai, que é o centro do sistema representativo, abre-se o futuro de uma
humanidade fraternal. O grupo de amigos ao redor de Belmiro Borba – Silviano, Glicério,
Florêncio, Jandira e outros – traduz o seu desejo de exercer um igualitarismo
dissolvente, por se sentir na condição de um “procurador de amigos”. Na crônica de 28
de outubro de 1934, publicada em A Tribuna, intitulada “Política da amizade”, o cronista
assim se expressa:
Tenho os amigos mais diversos em clima, e emprego, no convívio de cada um deles, a política que
lhes convém. Podem me achar político, mas a amizade o exige e sou um homem devotado à
amizade. (Que tem o leitor com isso? É provável que se irrite ao ver-me assim discursando a meu
respeito. Fique o leitor certo de que assim procedo, não porque me julgue um espetáculo curioso,
mas porque sou um homem tão comum, tão da rua, que, falando de mim, é como se falasse da
humanidade).10
De natureza distinta é a comunidade vivida por Cyro, na república de estudantes em
Belo Horizonte, denominada “Castelo de Celibatários”. Nesta, a condição de celibatário
se traduzia pela imposição da supremacia masculina como sinal de libertinagem, farras
de estudante e um moralismo próprio dos anos 1920. Embora se formasse “um
aglomerado homogêneo, tecido de parentescos, de amizades, interesses afins,” o
“Castelo de Celibatários” se caracterizava muito mais, segundo o narrador, pela
“reputação duvidosa, e seus moradores representavam escassa esperança matrimonial.
Namoro com rapazes do interior, destinados a voltar a terra e por lá casarem, constituía
investimento precário. As moças preferiam promissória firme, com aval idôneo.”11
Evidencia-se o oposto da condição de uma sociedade de celibatários, pela ênfase no
mercantilismo amoroso e no casamento como vitalidade e mola propulsora da estrutura
social. No “Castelo de Celibatários” a exclusão feminina se destinava às moças bem
comportadas, reforçando o celibato não pela carência de relacionamentos, mas pelo seu
excesso. Como traço da economia capitalista, o casamento se oporia à noção de
dispêndio improdutivo, de desperdício, por optar pela reprodução e conservação da
vida, o acúmulo dos bens, guiando-se pela necessidade e não pelo prazer.12
A relação histórica entre o escritor moderno e sua ocupação em órgão público se
inscreve na imagem do papel timbrado da Seção de Fomento onde Belmiro trabalha,
papel este que funciona como o suporte da escrita do amanuense. Espaço de inscrição
revelador da situação híbrida do escritor, dividido entre o cargo público e a literatura,
por intermédio da ociosidade e das benesses proporcionadas pelo Estado. Entre o pão e
o papel fornecidos pelo emprego público, Belmiro adquire a saúde da escrita, a
possibilidade criada para o estado de devaneio e a entrega ao mundo imaginário,
condição desejada para o exercício da descontração e a cura da doença, causada pelo
tédio e a passividade. É por meio desse devir-criador, do engendramento do livro por
gestação e parto, metáforas utilizadas por vários escritores, que Belmiro Borba torna-se
o pai do filho-livro e de si próprio. Desprovido de capacidade natural para engendrar
descendentes, substitui a falta pela escrita, ato que cumpre, simultaneamente, a
transformação do narrador em escritor, do seu nascimento aos 38 anos, assim como da
sua desistência em continuar o diário. Embora a personagem se encontre, no final do
livro, ciente de que a vida parou e que não haveria mais nada para escrever, consegue,
ao mesmo tempo, fechar o diário e inaugurar o romance. Da mesma forma que engendra
a si próprio como escritor, interrompe a escrita e se cala, à espera da morte. Torna-se
autor do próprio destino, assim como o foi da narrativa. Saúde e doença se
complementam, vida e escrita se conjugam, morte e vida se completam.
No Capítulo 4, “Questão de obstetrícia”, Belmiro condensa a criação literária à
gravidez, associação que reúne vida e literatura, conjunção adquirida pelo processo
transformador da criação:
“Por que um livro?” foi a pergunta que me fez Jandira, a quem, há tempos, comuniquei esse
propósito. “Já não há tantos? Por que você quer escrever um livro, seu Belmiro?” respondi-lhe que
perguntasse a uma gestante por que razão iria dar à luz um mortal, havendo tantos. (…) Sim vago
leitor, sinto-me grávido, ao cabo, não de nove meses, mas de 38 anos. E isso é razão suficiente. Posta
de parte a modéstia, sou um amanuense complicado, meio cínico, meio lírico, e a vida fecundou-me
a seu modo, fazendo-me conceber, qualquer coisa já me está mexendo no ventre e reclama
autonomia no espaço. Ai de nós, gestantes.13
Ao aceitar a metáfora feminina do parto, o amanuense se contrapõe à recusa de Mário
de Andrade por essa metáfora, substituída pela imagem do orgasmo, que se vincula à
sensação de prazer. A afirmação corresponde à teoria da criação artística em Mário,
liberta do sofrimento e inscrita como alegria e júbilo, além da manifestação de virilidade
no ato de criar. Em O amanuense Belmiro, o celibato permite a metamorfose do homem
em imagem feminina, ao ser fecundado pela vida e dar origem à literatura. Se a vida
parou e o que resta ao amanuense é a invenção da narrativa de retorno ao passado – o
traço proustiano de construção da memória –, a escrita impulsiona o novo nascimento e
a busca do conhecimento de si. A rua Erê – espaço real e simbólico onde se escreve o
diário, mônada que se impõe como verdade, ou lugar onde Belmiro se “encolhe na Rua
Erê, como dentro de um caramujo” –, longe de ser o pouso tranquilo, responde pelo
deslocamento contínuo a que está sujeita a personagem. Ao remeter à imagem do útero
que protege seu morador e que o restitui ao ambiente privado e doméstico, a casa da
rua Erê contém o embrião e a fonte da criação, onde se engendra o mundo imaginário e
particular de Belmiro Borba.
Convivendo com a realidade e o artifício, substitui a experiência em sociedade pela
reclusão, o sofrimento e a dor em saída bem-humorada e estilizada da vida, filtrada pela
escrita. A verdade da rua Erê se evidencia pela negação do amanuense de participar
efetivamente do convívio com a comunidade, manifestando, como Bartleby, a sua
passividade por meio da potência de poder dizer não. Negativa que torna positivo o ato
de escrever e de viver, assim como permite afastar-se do sentimento melancólico da
modernidade, ao optar pelo humor e pela “afirmação da vida segundo o princípio
carnavalesco”: “As coisas, louvado Deus, não se mexeram de seu lugar. Tudo está como
deixei e como sempre esteve. (…) Entretanto, as transformações interiores me
devastaram.”14 Ou:
A um Belmiro patético, que se expande, enorme, na atmosfera caraibana – contemplando a
devastação de suas paisagens –, sempre sucede um Belmiro sofisticado, que compensa o primeiro e
o retifica, ajustando-o aos quadros cotidianos. Chegado à sua toca, da rua Erê, o Belmiro egresso de
Caraíbas se apalpa, se reajusta e assobia a fantasia do hino nacional de Gottschalk.15
Como expressão de uma coincidência literária, Belmiro Borba tem, em 1935, a mesma
idade de Belo Horizonte, ou seja, 38 anos, coincidência que remete para a natureza
alegórica do texto, cujo tema é a narração de experiências vividas na cidade. Belo
Horizonte, cidade republicana e moderna, condensa a passagem do antigo para o novo,
do interior para a capital, do ambiente rural do campo para a modernização urbana. A
modernidade cultural chega pelos livros estrangeiros avidamente adquiridos na rua da
Bahia, razão pela qual é possível entender a atmosfera do novo a inspirar a
intelectualidade mineira, residindo numa metrópole também nova e moderna. O
desenraizamento do sujeito, a perda da individualidade no meio da multidão, a
separação entre a esfera privada e a pública – responsável pela legitimação do exercício
da democracia, um dos lemas da política moderna, instauradora dos padrões
republicanos – redimensionam a vida em sociedade e compõem o cenário do livro. De
que modernidade pertence a cena montada pelo amanuense Belmiro?
É possível admitir, no presente, que a noção de modernidade assume várias
modalidades, por não se constituir como homogênea e universal. O atual conceito de
modernidades alternativas, que nega a interpretação de ser a modernidade sinônimo do
ocidentalismo eurocêntrico, poderá ser entendido, no caso de Cyro dos Anjos, como a
expressão de um modernista tardio. Nesse sentido, sua obra se justifica pela extrema
concordância com a poética contemporânea, justamente por não se circunscrever ao
modelo modernista e se desvincular da proposta nacionalista que marcou a maior parte
da produção dos anos 1920 e 1930. No penúltimo capítulo de O amanuense Belmiro,
“Mundo, mundo”, a descrição do sonho da personagem evoca a cena modernista,
composta por Drummond, Emílio Moura e um poeta sem nome. Classificando os dois
primeiros, respectivamente, como poeta irônico e místico, e o sem nome como
intérprete da poesia popular e anônima, o amanuense presta a devida homenagem aos
amigos, registrando as duas vertentes da poesia modernista, aliada à terceira, a popular.
Sem escolher qual caminho seguir, fecha a cena-sonho com a imagem festiva de um
congraçamento entre todos: “Depois, braços dados, volteando em redor de mim e
acompanhados pelo chefe de trem, que soprava um grande trombone, cantavam a una
voce: ‘Mundo mundo vasto mundo / mais vasto é meu coração’.”16
Sua posição entre os modernistas é afirmada, de modo mais direto, em A menina do
sobrado, quando comenta sua experiência no jornal O Diário, ao lado de Drummond,
Emílio Moura e João Alphonsus:
Oficializou-se, desse modo, a adesão, meio cômica, do companheiro que entrava no fogo quando
alguns já saíram dele, que, afinal de contas, nenhum fervor levava na alma. Minha atitude genuína,
perante modernistas e passadistas, assemelhar-se-ia à do velho Horácio, filho de Bernardo
Guimarães e primo do João, a quem igualmente fui conhecer no Diário, como redator de tópicos:
cético, avesso a radicalismos, Horácio via os moços com olhos sorridentes, cheios de simpatia,
derramando compreensão, mas nem por isso atirava os velhos à geena; menos, talvez, por apego à
sua geração que por fidelidade à sua musa, a dúvida. Na verdade, eu não me engajava naquele
movimento já a desintegrar-se.17
II
Um grupo de amigos, e entre eles João Alphonsus e Oscar Mendes, reunidos na
redação do jornal Folha de Minas, oferece a Cyro dos Anjos, em dezembro de 1937, o
retrato a óleo pintado por Delpino Júnior, como homenagem ao sucesso de O amanuense
Belmiro. A festividade, ao marcar um dos rituais de consagração do escritor, traduz a
conjunção entre a imagem de Cyro e a da personagem de Belmiro Borba. A ambiguidade
gerada pela relação entre realidade e ficção é acrescida pelo reforço à semelhança,
evocada pela saudação do escritor João Alphonsus. O clima de cumplicidade entre a
ficção e a realidade permite que sejam confundidos Belmiro Borba, o retrato de Cyro e a
profissão de amanuense exercida pelos amigos.
Ao ampliar a dimensão biográfica de uma geração de amanuenses, o autor do conto
“Galinha cega” retira o valor de verossimilhança do retrato circunscrito à singularidade
do escritor e da pretensa autobiografia atribuída a O amanuense Belmiro. Registra-se a
consagração do romance de uma geração, pelo reconhecimento não só da
intelectualidade local, mas da consideração da crítica em nível nacional. “Quero
acentuar a sua descoberta, ou a sua revelação, Cyro dos Anjos: a parte belmiriana ou
belmírica de cada indivíduo da nossa geração, nos altos e baixos do destino, onde quer
que estejamos.”18
A leitura, primeiro, condensa autor e personagem para, em seguida, consagrar a
literatura como discurso que supera a imagem do real e a substitui. A personagem
torna-se mais forte do que o seu criador, o que possibilita a entrada do escritor no meio
dos notáveis e a conquista da notoriedade. É comum, no campo intelectual e artístico da
sociedade letrada, o processo de fabricação de imagens através de retratos pintados por
artistas reconhecidos. A imagem pública do escritor se consolida pela sua representação
plástica, a ser exposta como signo de poder e de negociações futuras. Dessa maneira, o
livro e o retrato tornam-se símbolo da consagração autoral de Cyro dos Anjos. As
palavras de João Alphonsus são as que se seguem:
Neste retrato a óleo que lhe oferecemos com alvíçaras (o termo não é meu: alvíçaras pode ser
atribuído à presença espiritual do nosso comum amigo Belmiro Borba), Delpino pintou você, não
somente com talento, mas também com amizade. Não ligo que haja favorecido o modelo, como se
diz em gíria fotográfica, por efeito da amizade: empregou engenho e compreensão. Retratou a
imagem física e a psicológica. Não esqueceu nenhum dos acidentes epidérmicos, minucioso na
complicada orografia de sua pele. E também não esqueceu nenhum dos traços sutis do rosto como
espelho da alma e do espírito: inteligência, talento, bondade, solidariedade humana, perplexidade
diante dos problemas eternos e, por aí, os sinais do amanuense Belmiro Borba…19
São dessa época os inúmeros retratos realizados por Delpino Júnior, entre eles os de
Juscelino Kubitschek, Clóvis Salgado, ao lado de caricaturas, como as autocaricaturas e a
de Emílio Moura. Concorre com o retrato de Cyro dos Anjos ao Prêmio do II Salão de
Belas Artes de Belo Horizonte, em 1938, além de apresentar o desenho de Belmiro
Borba, comentado por João Alphonsus, em conferência apresentada no Salão. Nesse
texto, a personagem, ao ser retratada por Delpino, adquire vida própria, preservando-se
ainda a crença na imagem verdadeira, reproduzida, ironicamente, pelo desenho. Em tom
humorístco, João Alphonsus decide sobre o estatuto de Belmiro Borba como ficção,
graças à imagem criada pelo desenhista. Cyro e Belmiro, autor, pseudônimo e
personagem se acham expostos no Salão, e adquirem, ainda que imaginariamente,
autonomia, no entender do conferencista João Alphonsus:
Belmiro seria uma ficção? Belmiro existiria na realidade, ainda que fosse na realidade profunda,
fora do comum? O II Salão de Belas Artes veio solucionar o problema. Aqui podemos contemplar, de
olhos baixos, recolhido no fundo de si mesmo, num retrato exposto, o verdadeiro Belmiro Borba.
Belmiro sonha com as moças em flor… Esta é a legenda.20
Em 2006, ano do centenário de Cyro dos Anjos, as comemorações atuaram como novo
ritual de consagração do escritor, configurado tanto pela doação, pela família, de seu
acervo à UFMG, quanto pela publicação do desdobrável Cyro dos Anjos, homenagem do
programa Sempre UFMG ao ex-aluno, e da realização da exposição. A literatura cumpre,
assim, a função de ser um recado do escritor para a contemporaneidade, por atuar como
mensagem para o futuro.
(Ensaio publicado em: MARQUES, Reinaldo; SOUZA, Eneida Maria de (Org.). Modernidades
alternativas na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 56-79.)
Bibliografia
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Cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte, 1938.
ALPHONSUS, João. (1937). O discurso de João Alphonsus. In: NOBILE, Ana Paula Franco.
A recepção de O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos (1937). São Paulo: Annablume,
2006. p. 180-181.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo & a falta que ama. Rio de Janeiro: Sabiá,
1968.
ANJOS. Cyro dos. O amanuense Belmiro. Belo Horizonte: Garnier, 1994a.
ANJOS. Cyro dos. A menina do sobrado. Belo Horizonte: Garnier, 1994b.
ANJOS. Cyro dos. Política da amizade. In: ____. A Tribuna. Belo Horizonte, p. 186, 28 out.
1934.
BATAILLE, Georges. A noção de despesa. In: ____. A parte maldita. Rio de Janeiro: Imago,
1975. p. 27-45.
BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Esthétique de l’éphémère. Paris: Galilée, 2003.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34,
1997.
MELVILLE, Herman. Bartleby e companhia. São Paulo: Cosac Naify, 2005. (Coleção
Particular).
NAVA, Pedro. Beira-mar/memórias 4. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
SABINO, Fernando. Encontro marcado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1956.
VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e companhia. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
O avesso da escrita: intelectuais a serviço de JK

Dedico este texto a Solange, exemplo de inteligência, rigor e amizade, qualidades


reveladas ao longo dos quatro anos do curso de Letras da UFMG, década de 1960, na
saudosa rua Carangola.
O Palácio da Liberdade tomou ares de academia, tantos são os ilustres escritores que têm já o seu
“bureau” e cruzam a todo instante as muitas portas que dão acesso ao gabinete de S. Exa.
Quando, há pouco, fui ao palácio, querendo falar com o chefe de gabinete do governador
(naturalmente, para amolar e pedir coisas, como todo mundo) e encontrei o Murilo Rubião numa
salinha apertada e entulhada de calhamaços de processos, confesso que tive pena. Fiquei
procurando naquele homem que falava em dois telefonemas ao mesmo tempo, dando ordens e
assinando papéis, o Murilo artista que escrevia os contos mais malucos que se possa imaginar.
Sim, porque o atual chefe de gabinete é escritor premiado pela Academia Brasileira de Letras, pelo
seu livro de contos O ex-mágico, publicado em 1947, no Rio de Janeiro. No meio daquela barulhada
de máquinas de escrever e campainhas, fiquei pensando se ele se sentiria como a sua personagem
que, tendo entrado para o Serviço de uma Secretaria de Estado, perdeu a sua faculdade
sobrenatural de fazer mágicas – a burocracia a havia aniquilado – e o coitado passou o resto da vida
a se lastimar: “sem os antigos e miraculosos dons de mago, não posso abandonar a pior das
profissões humanas…
RAMOS, Maria Luiza. A “Academia” da Liberdade.
Diário de Minas, 7 out. 1951.
Pretendo discutir neste ensaio o lugar ocupado pelos intelectuais brasileiros que
trabalharam diretamente com Juscelino Kubitschek no período relativo às suas gestões
como governador de Minas (1950-1955) e presidente do Brasil (1956-1961), assim
como a relação entre função pública e realização literária. Inserido em projeto de maior
dimensão, este texto se restringe à construção do perfil de apenas dois escritores entre
os escolhidos para análise – Autran Dourado e Murilo Rubião – com vistas a examinar
até que ponto o apreço do governante pelas artes e pela literatura justificaria a
nomeação de assessores pertencentes à classe intelectual. Conforme interpretação de
Humberto Werneck, esse apreço traduziria a forma de garantir “luz e brilho à face
verbal de sua administração e neutralizar a perigosa inclinação oposicionista dos
intelectuais”.1 Nas palavras de Autran Dourado, a situação é descrita em tom mais jocoso
e pragmático:
Logo no início do governo JK, o Schmidt aconselhou-o a conviver com gente mais culta e inteligente.
Cafajeste é para campanha, para carregar nos ombros, disse ele. Já tenho os meus escritores, que
não me dão problemas, disse JK. Mas você não convive com eles, não os convida para almoçar e
jantar, não lhes dá importância, disse o poeta. Eles são máquinas de trabalhar, mas de qualquer
maneira dão nome ao seu governo. Quando chega a hora de jantar estão mortos de cansaço.2
A importância concedida ao intelectual pelos governantes sofre transformações ao
longo da história e é motivo de controvérsias entre os estudiosos do assunto. Nesse
sentido, toda cautela é pouca, pois afirmações apressadas muitas vezes correm o risco
de caírem no ridículo. O inventário desse grupo de intelectuais funciona, portanto, como
parâmetro para a compreensão do emprego público como sistema de trabalho, um dos
meios de se alcançar prestígio e ascensão social, e de contribuir para a construção do
perfil do escritor a serviço do poder republicano, em vigência até a metade do século
20.3
Entre os escritores que participaram do projeto modernizador de JK, exercendo a
função de funcionários públicos, encontram-se Affonso Ávila, Alphonsus de Guimaraens
Filho, Fábio Lucas, Cristiano Martins, Rui Mourão, Autran Dourado, Murilo Rubião, no
governo do Estado; Cyro dos Anjos, Josué Montello, Álvaro Lins, Francisco de Assis
Barbosa, Augusto Frederico Schmidt, Antônio Houaiss, Geraldo Carneiro, na presidência.
Alguns deles ocuparam cargos nas duas gestões, como é o caso de Autran Dourado, seja
como oficial de gabinete no governo de Minas Gerais e de secretário de imprensa na
presidência.
A proximidade – ou a distância – entre o projeto político e o projeto literário, artístico
e crítico desenvolvido pelos intelectuais a serviço de JK merece ser analisado de modo
cauteloso, para que não seja atribuída a este ou àquele escritor a pecha de conivência
com regimes políticos. Uma primeira abordagem da situação constata a existência de
obras literárias que ora defendem princípios poéticos em consonância com o
vanguardismo político, ora dele se afastam, por se caracterizarem como discursos
sempre em tensão e conflito. A legitimação dos discursos artísticos não depende da
chancela política, mas torna-se inoperante nesse raciocínio acreditar no papel neutro
desempenhado pelo escritor no exercício de um cargo público.
Para o prosseguimento desse raciocínio, torna-se necessário incluir a discussão sobre
a defasagem entre o processo de modernidade e o de modernização efetuado na
América Latina, através do conceito de modernidades tardias, considerando as inúmeras
vias de recepção da modernidade entre as comunidades de cada país, assim como a
dificuldade de generalizar manifestações que se produzem num mesmo espaço
temporal. O que norteia essa análise é o exame das contradições que se processam no
âmbito dos discursos – sejam eles de diferentes modalidades – diante do embate entre
conservadorismo e vanguarda, comportamento personalista e impessoal, indefinições
entre esfera pública e privada, cordialidade e representação. A relação horizontal que se
estabelece entre os níveis diferentes de discurso é responsável por interpretações
casuísticas e sociologizantes, resultando em perda para ambos os lados. Torna-se
necessário, portanto, indicar pontos de contato e diferenças entre a pesquisa de teor
sociológico – realizado por Sérgio Miceli em Intelectuais e classe dirigente no Brasil
(1920-1945) –, a partir de um enfoque que privilegie o texto produzido por esses
intelectuais, sem prejuízo de associar essa escrita à posição por eles ocupada no cargo
público, levando em conta um raciocínio binário e realista.
O livro de Miceli atua como referência para nossa reflexão, ao enfocar o lugar ocupado
na vida pública pelos intelectuais modernistas sob o rótulo de “cooptação” com o
governo ditatorial de Vargas, por motivar associações com outro grupo de escritores
que se sucederam imediatamente àquele. Nossa abordagem, contudo, se distancia
daquela assumida pelo sociólogo, ao se considerar não só a participação pública dos
intelectuais, como também a articulação entre obra literária (ou de outra natureza) e
compromisso político. Na abordagem em pauta, regida por princípios de ordem
biográfica e cultural, são valorizadas as contradições existentes entre as esferas pública
e privada, assim como entre a escrita pessoal, artística e a escrita oficial desses
escritores.
Augusto Frederico Schmidt, por exemplo, poeta da segunda geração do Modernismo,
representava a corrente romântica e espiritualista na poesia brasileira, além de
defensor de uma retórica discursiva muito a gosto do discurso político. Editor,
empresário, crítico literário, o poeta redigia os discursos de JK na presidência,
tornando-se a figura mais influente do governo, pelas suas boas relações sociais na
capital do país. Como homem de negócios e pela experiência mundana, respondia ao
projeto desenvolvimentista de JK, mas no que diz respeito à sua escrita pessoal e
literária, esta se contrapunha completamente aos princípios de vanguarda presentes na
poética que surgia na década de 1950, como o concretismo, o neoconcretismo artístico e
o recorte abstracionista. O conservadorismo em poesia estava em conflito com a astúcia
e a retórica palacianas, considerando estar Schmidt investido na produção de discursos
do “presidente bossa-nova”. Como articulador de relações internacionais entre o Brasil,
a América Latina e os Estados Unidos, foi o responsável pela Operação Pan-Americana
(OPA), que tinha como objetivo captar recursos para projetos de desenvolvimento com
vistas a colocar o Brasil na posição de liderança frente aos países latino-americanos e
assegurar boas relações com a superpotência americana.4 Os resultados, embora
negativos, anteciparam outros planos e intercâmbios realizados por futuros
governantes, como a ALCA e o Mercosul, também abortados.
Modernidades tardias no Brasil
Na década de 1940, a equação moderna brasileira, com plena realização nas áreas da
literatura e das artes plásticas, recebe novo impacto e se configura, tardiamente, nos
projetos arquitetônicos, com a presença de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer e sob a
influência do arquiteto suíço Le Corbusier. O projeto da Pampulha, em Belo Horizonte,
desenhado para se instalar na periferia de uma cidade moderna e recém-construída, deu
continuidade às obras anteriores assinadas por seus autores, além de abrir o caminho
para a construção de Brasília, obra-prima de arte concreta. Inaugurado em 1942 – com
exceção da Igreja de São Francisco –, o conjunto arquitetônico representava, no Brasil, o
desdobramento do que tivera início, nos anos 1920, nos planos literário e artístico. Essa
construção, por se achar afastada do centro da cidade e enxertada na parte ainda
despovoada de Belo Horizonte, deslocava o espaço tradicional reservado à vida pública
e inaugurava a arquitetura moderna na “periferia” de uma cidade igualmente moderna.
Com traços racionalistas e abstratos, voltado para o caráter internacional que presidia
seu projeto estético e para a singularidade da arte de Niemeyer, o conjunto
arquitetônico acrescentou, nesta época, outra dimensão ao conceito de moderno.
No auge do movimento modernista prevaleceu, segundo Otília Arantes, em Mário
Pedrosa – itinerário crítico, a tendência nacionalista, após uma fase de total abertura à
lição das vanguardas europeias, que culminou no endosso de propostas de ordem
francamente social. Entende-se assim a intenção de pôr em prática uma atividade
cultural que se pautava por contornos expressionistas do país, na ânsia de consolidar,
pelo apelo à figuração, a imagem ainda pouco definida de pátria.
Se o primitivismo inspirado pelo cubismo fora substituído pelo caráter deformado e
contundente da arte expressionista-barroca, o abstracionismo receberá ainda certa
resistência. Para os defensores de um traçado mais nítido para o desenho do
nacionalismo brasileiro, a configuração plástica do país não coincidia com o aspecto
disforme e sem rosto da arte abstrata, dotada de uma estética calcada mais nas manchas
e nas linhas do que nas imagens, embora deformadas, das figuras. Portinari e Segall
representavam, plasticamente, o momento de alta significação monumentalista e social
da arte brasileira dos anos 1930. A fusão entre vanguarda estética e vanguarda política
permitia ainda a permanência de valores sociais e coletivos no âmbito da arte, a ponto
de ser a pintura dessa época uma das grandes referências da tradição nacionalista e
engajada do moderno. Indaga-se, contudo, o que ficou deste programa estético, com o
abalo das ideologias desencadeado pela Segunda Guerra Mundial ou pela presença de
novas ideias introduzidas pelos Estados Unidos. O abstracionismo da década de 1940,
por exemplo, aclamado por Mário Pedrosa como uma das formas de redefinir
regionalismos e nacionalismos artísticos, chegava aos portos do país com a mobilidade
das esculturas do artista americano Calder.
O discurso de abertura da Exposição de Arte Moderna de 1944 aponta o desejo do
então prefeito da cidade, Juscelino Kubitschek, de reforçar a atmosfera de renovação
artística de Belo Horizonte, com o intuito de colocá-la no nível das grandes metrópoles.
Uma nova metrópole deveria, pela sua tradição e história, sensibilizar-se com as
mudanças processadas na área cultural, sem se deixar contaminar “pela toxina de
idades mortas”.5 Sem ignorar a relação ambivalente, e por vezes precária, existente
entre estética, técnica e política, torna-se necessário refletir sobre o convívio da
industrialização com a vanguarda artística promovida pelo discurso modernizador de
Kubitschek. A arquitetura, em escala bem maior do que outra manifestação cultural,
representou, para o governo, uma maneira visível e popular de novamente redefinir os
conceitos de território e de apropriação na era moderna. O preço a pagar por esse
investimento residia na proposta da arte abstrata, referida linhas atrás: o começo da
capo, a recusa em admitir o passado como modelo e o desejo de construção da
nacionalidade pelo viés de valores internacionais e cosmopolitas. A abertura de Minas
para as formas mais arrojadas da arquitetura inseria o discurso político na rota da
vanguarda, pelo rompimento com o passado do período colonial, visto como
“subdesenvolvido”.
Um quadro polêmico da Exposição de Arte Moderna de 1944 merece ser comentado:
trata-se da obra de Guignard, Retrato do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, do
mesmo ano, considerado pela imprensa como incompleto, ou seja, “a ser concluído
oportunamente pelo Sr. Alberto da Veiga Guignard”. Segundo a opinião pública, esta e
outras peças expostas na referida Exposição se apresentavam de forma imperfeita e
deformada, por contrariar os princípios naturalistas da obra de arte. A crítica ao quadro,
ainda que feita por pessoas comuns, atinge a imagem do prefeito, confundindo-se, mais
uma vez, arte e realidade, com prejuízos para a integridade física e moral do retratado.
Ser fiel ao modelo conferia, à obra, o selo de sua autenticidade e legitimidade.
Curiosamente, a trajetória do quadro – hoje integrando uma coleção particular –
reveste-se de interesse para que seja valorizado como “um dos melhores trabalhos do
Mestre Guignard”, conforme avaliação de seu ex-aluno do Parque Municipal, Jefferson
José Lodi.6 No entanto, segundo declaração de Maria Beatriz Soares Prates, sobrinha de
Juscelino, o referido quadro, tendo sido presenteado por ele à irmã, Dona Naná
Kubitschek Soares – e que, posteriormente, o doou à filha –, esteve por 20 anos
escondido por trás de uma gravura. Após a descoberta da obra e de seu valor, a peça foi
encaminhada para restauração, onde foram detectadas algumas sujidades
generalizadas, como “respingos de cera no lado inferior esquerdo” e “perda do suporte
da moldura no lado inferior esquerdo”.7 A restauração permitiu devolver à pintura a sua
qualidade inicial, o que se comprova pelo ótimo estado atual da peça.
A pergunta que resta dessa aventura é sobre a relação entre Juscelino e o seu retrato
feito por Guignard, considerando-se o fato de o prefeito ter dado o quadro à irmã e esta
tê-lo escondido atrás de uma gravura. Estaria o retratado também em desacordo com a
imagem inventada pelo artista, ou teria sido influenciado pelas críticas da opinião
pública? O homem político exigiria a analogia perfeita entre arte e realidade, entre
modelo e cópia, contrariando o que pregava como moderno em arte? As possíveis
distorções da figura deveriam obedecer aos princípios de coerência entre pessoa física e
a imagem produzida pelo outro? É possível cobrar coerência em arte ou em política?
Essas questões compõem um dos grandes desafios desta tese a ser defendida: qual
retrato seria mais fiel ao nosso então prefeito de Belo Horizonte? Que tratamento
estaria mais condizente com a figura múltipla e controvertida de um governante que
ajudou a construir, com audácia e coragem, a nova imagem de uma cidade moderna?
Seria essa imagem o avesso da escrita política, ou o lado direito da arte?
Uma escrita enviesada
A produção literária e artística da época contava, entre seus representantes mais
notáveis, poucos remanescentes escritores modernistas que ainda permaneciam na
cidade, como Cyro dos Anjos, Abgar Renault, Henriqueta Lisboa, além de jovens que
começavam a surgir no cenário intelectual do momento. Alphonsus de Guimaraens
Filho, Murilo Rubião, Fernando Sabino, Autran Dourado, Hélio Pellegrino, Otto Lara
Resende, entre vários outros, irão lançar os primeiros textos literários na década de
1940, embora já exercessem a profissão de jornalistas. Alguns entre eles serão futuros
parceiros de Kubitschek na vida pública, ainda que tenham, à época, se posicionado de
forma contrária à política municipal, por sua filiação à imagem de Getulio Vargas. Outra
parcela da classe de jornalistas, ensaístas e escritores defendia, a seu modo, o espírito
de academia, pelo conservadorismo e passadismo de suas ideias, destacando-se entre
eles Eduardo Frieiro e Jair Silva. Esses intelectuais terão uma posição crítica frente às
realizações da arte moderna, não pelo bom senso, mas pela incapacidade de
acompanhar as mudanças da cidade e a chegada, mesmo que tardia, do movimento
cultural e artístico que transformaria a cidade no que ela é atualmente.
Eduardo Frieiro sempre se colocou contra o Modernismo, embora tenha publicado,
pelo selo “Os Amigos do Livro”, Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade, em
1930 e O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, em 1937. Na gestão de Juscelino
Kubitschek como governador de Minas, Frieiro foi eleito primeiro diretor da Biblioteca
Pública Estadual, em 1954, exercendo o cargo com muito entusiasmo e competência.
Mas no Novo diário, destila o preconceito contra os artistas modernos, convidados por
Juscelino para a Exposição de Arte Moderna de 1944. Misturava modernidade com
comunismo, o que o tornava adepto de uma posição conservadora em arte:
6 de maio – Inauguração, hoje, da Exposição de Arte Moderna, promovida pela prefeitura.
Expositores do Rio e de São Paulo. (…) Acontece que os artistas e literatos, campeões da arte
moderna, são todos comunistas. A “arte de vanguarda” é uma das armas de propaganda dos
bolchevizantes das Américas. (…) O momento é mesmo de confusão. Os artistas e literatos
comunistas do Rio e São Paulo são todos uns grã-finos, filhos de famílias privilegiadas, repimpados
em bons empregos públicos, frequentadores das rodas burguesas. Snobs da alta ralé. Bolcheviques
de salão aristocrático.8
Nas obras de Autran Dourado e Murilo Rubião, dois escritores representativos desta
literatura nascente e dessa ideologia tão combatida por Frieiro, há a predominância da
estética não figurativa no processo de construção do texto, em que se diluem as marcas
de referência do espaço urbano, próprias da estética modernista, e se acentuam os
traços intimistas das personagens. O conto “O edifício”, de Murilo Rubião, de 1965, se
desenvolve em torno da construção de um edifício interminável, através do movimento
ininterrupto e pela apropriação do motivo do arranha-céu, um dos ícones da cidade
moderna.9 Na interpretação de Renato Cordeiro Gomes, o conto seria “uma narrativa
alegórica de fundação da modernidade, aberta a um futuro interminável, sempre em
construção, mas conjugado a forças míticas arcaicas, para criar, em seu paradoxo, um
outro mito, o da própria modernidade”.10 O descompasso entre o caráter progressista e
eufórico da modernização urbana processada, à época, em Belo Horizonte, e o texto de
Rubião, reforçam a necessidade de se ler, pelo avesso, e numa perspectiva crítica, as
contradições existentes entre os domínios da arte e os da política.
Em resenha publicada na Folha de S.Paulo, por ocasião da publicação da obra
completa de Murilo Rubião, Davi Arrigucci expõe a natureza da escrita urbana do
contista, segundo a perspectiva abstrata e diáfana de sua poética:
A cidade muriliana é o palco cinzento, decaído e arruinado que sobrou das ilusões romanescas, não
o sertão ainda transverberado pela luz da transcendência; pode ser também um espaço onírico e
labiríntico, onde destinos próximos e por vezes incestuosos vivem errantes a existência sem centro
dos tempos modernos. Na verdade, o cenário muriliano por excelência forma um continuum com o
tempo: encerrado em si mesmo, congelado como uma sala de visitas mineira recoberta de pó, teia e
rendas da memória, mas a uma só vez eco ou reflexo ruinoso da sociedade industrial, da metrópole
capitalista, descontínuo e sistemático (no sentido que o termo tem em Minas), metódico até à
mania, rangendo em rodopio segundo os sestros descompassados de um relógio com as molas do
ventre expostas, ele se presta à osmose fantástica das temporalidades diversas, que se invertem, se
entrecruzam e se mesclam com a mesma identidade escorregadia dos seres raros aí imersos.11
Em 1946, um grupo de poetas e escritores funda a Revista Edifício, tendo como
redator-chefe Autran Dourado, na qual são utilizados, como epígrafe, versos de
Drummond, indicadores de uma construção em ruínas: “Que século, meu Deus! Diziam
os ratos. / e começaram a roer o edifício.”12 Nessa revista, além do espírito cosmopolita e
universalista do grupo, registram-se as marcas da modernização do espaço urbano, com
a construção de prédios amplos e a abertura de livrarias “modernas”, pelos reclames
inseridos nos quatro únicos números da revista. Irônicos e em descompasso com a nova
postura estética dos jovens, os reclames funcionam ainda como contraponto à epígrafe
da revista, cujo intuito era mostrar a ruína e as contradições de uma modernidade
periférica. É evidente o elo entre as pretensões desse grupo literário – formado por
comunistas e católicos – com o conto de Murilo Rubião, “O edifício”, embora a data de
publicação seja posterior, pela utilização do arranha-céu como tema. A transformação
modernizante da paisagem urbana estava sujeita a críticas, da mesma forma que servia
de inspiração para os poetas e escritores da época.
Inicia-se um tempo de novas subjetividades, do desamparo do sujeito diante da sua
perda gradativa no anonimato da cidade grande, dando lugar para diferente atitude
estética e uma poética mais intimista e fantástica, como no caso específico de Murilo
Rubião. Babeliza-se a cidade através da construção de torres que anseiam chegar ao céu;
concebe-se diferente espaço de moradia, pela redução do lugar de convivência,
ampliando-se, contudo, os sítios de encontro em praça pública, pela criação de
ambientes de lazer e de convívio coletivo.
No mesmo diapasão, a obra de Autran Dourado é interpretada por João Luiz Lafetá, ao
considerá-la centrada na releitura metafórica de um Brasil arcaico, o que reforça o
descompasso temporal entre presente e passado. Ao optar o escritor pela configuração
de um país que parou na década de 1950, antes da modernização conservadora e,
segundo o crítico, da “mais terrível desigualdade social”, o ambiente urbano da
metrópole é substituído por lugares ainda desprovidos da febre progressista, da
contradição entre modernidade e modernização. Lafetá assim se expressa:
Não quero terminar sem uma última observação: a fotografia de Duas Pontes que Autran Dourado
pendura na parede é o retrato de um Brasil que acabou nos anos 1950, ao longo do governo
modernizador de Juscelino, esse presidente cordial e autoritário (à moda mineira), fino e grosseiro
como os políticos de Duas Pontes, e que bem poderia ter nascido em Duas Pontes, em vez de
Diamantina, a qual, por sua vez, poderia ser Duas Pontes, de tanto que se parecem.13
João da Fonseca Nogueira, alter ego de Autran Dourado, exerce o papel de escriba das
histórias da cidade imaginária Duas Pontes, sintomaticamente nomeada sob o signo da
dualidade e sobre a qual se estrutura o ambiente de fantasia do autor. Apropriando-se
da máscara e da persona como artifícios poéticos, a criação literária autraniana se
explica pelo princípio aristotélico de verossimilhança interna. Uma autobiografia
imaginária é encenada, com a ajuda do protagonista João da Fonseca – evidente em “Um
artista aprendiz” e A serviço del-Rei – pela condensação e deslocamento da imagem do
escritor e de outras personagens, procedimento capaz de enriquecer os retratos
ficcionais e de disfarçar pretensas associações com atores reais.
Em 2000, Autran publica Gaiola aberta,14 “memórias palacianas”, livro que relata o
convívio mantido entre o secretário de imprensa e o presidente. Ao assumir o texto de
memória, o autor se posiciona como cronista da corte, abstendo-se de ficcionalizar sua
experiência, como o faz em A serviço del-Rei. O pacto de fidelidade ao vivido, pela sua
natural impossibilidade, não se realiza de forma completa, uma vez que o recorte da
narrativa já está contaminado pela atitude subjetiva daquele que narra os fatos. A
intenção do narrador é a de colocar em cena episódios ligados à vida privada de um
presidente que, no Brasil dos anos 1950, ainda poderia desfrutar de certa liberdade de
comportamento, atitude hoje inadmissível. Na intenção de descrever Kubitschek, tanto
na informalidade das ações quanto na formalidade exigida pelo cargo, ao leitor é
apresentada a descoberta de um país ainda em processo de modernização, e um
governo no qual eram resolvidos os problemas de maneira quase privada e sem grandes
riscos.
Os bastidores do poder são interpretados, ao longo da narrativa, como
acontecimentos ficcionalizados, ao receberem o toque pessoal do escritor e se
integrarem ao imaginário da época. O leitor se frustra por não encontrar grandes cenas
envolvendo o presidente, mas pequenas histórias descritas com sutileza e ironia,
valorizando-se o cotidiano das pessoas famosas. A decisão sempre adiada de publicar as
memórias foi motivada não só pela dificuldade de narrar experiências pessoais, mas
pela possível reação dos antigos correligionários de Kubitschek. De fato, ao se sentirem
traídos pela memória “distorcida” do escritor, não perceberam ser a narrativa
autobiográfica sujeita a invenções e a interpretações de ordem pessoal. Afinal, o
biografado, pelo seu carisma e importância, tornou-se refém da memória coletiva e da
crônica política, de uma mitologia criada em torno do enaltecimento da figura do
presidente. O período JK está sendo analisado e interpretado por distintos leitores, não
havendo a possibilidade de se construir uma imagem coesa e una, mas contraditória e
fragmentária. O cotidiano de um estadista, com suas idiossincrasias e curiosidades,
oferece condições para que sejam recuperados momentos significativos da vida política
brasileira da época. Desenhar perfis desconhecidos, abandonar lugares-comuns e
clichês biográficos não pertencem ao repertório do leitor ávido de revelações e de
segredos de estado.
A posição do narrador reforça o sentido de desgaste físico e emocional no seu
convívio com o poder, pelo prejuízo a ser computado na sua carreira de escritor. Se em
A serviço del-Rei a insatisfação se encena por meio do recurso à alegoria e cumpre o
papel de denúncia indireta, em Gaiola aberta o ambiente palaciano é moderadamente
representado e o escritor-aprendiz se liberta ao se desligar do cargo público. Gaiola
aberta é a metáfora da entrada de Autran Dourado na vida literária e o desapego do
fardo oficial e do serviço ao rei.
O fim de uma época
Merece ser mais bem pontuado o lugar ocupado pelo intelectual nessa época,
especificamente na cidade do Rio de Janeiro, e que coincide com o final dos anos JK. Pela
leitura da crônica jornalística do momento, registra-se a criação da mitologia urbana e
do estilo de vida desses intelectuais, os quais ainda usufruíam dos valores de um país
que despontava para outras formas de modernidade. Éramos um país jovem, criativo,
boêmio, entediado, alegre, brincalhão, progressista, esperançoso, embalado pela fé no
futuro e em consonância com a abertura política e a democracia. A intelectualidade
brasileira, sediada na capital do país, se reunia nos bares e nas residências dos
escritores, onde se mesclavam a joie de vivre com o quase esquecimento das diferenças
sociais. A configuração geográfica da cidade permitia interpretações sociologizantes por
parte dos cronistas, que a distinguia da vizinha São Paulo pela função anárquica da
praia, com seu “comunismo”, provocando a indistinção de classes e a ausência de
preconceitos. A academia não havia, tampouco, exercido o papel antes reservado à
boemia intelectual, difusora de uma especial estética do cotidiano, pautada pelo
fragmentário e o inacabado. É por volta dos anos de 1970 que iria tornar-se mais visível
a distância entre a mídia e a universidade, em virtude da troca de função do intelectual,
quando transfere sua participação pública para o ambiente restrito das instituições.
Com as crônicas de Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, entre outros, compõe-se, de
forma perfeita, o retrato de um Brasil provinciano, que nas asas de Kubitschek
começava a se impor como país de vanguarda, pelo deslocamento do Rio de Janeiro para
Brasília, do litoral para o planalto central do país. O espaço político da nova capital
motiva igualmente o apagamento da imagem de uma geração que reunia política e
boemia, trabalho e ócio, bem-estar e responsabilidade. Na alegre, pacata e doméstica
Ipanema dos anos 1940, era possível reunir, num só jogo de futebol, Augusto Frederico
Schmidt, Di Cavalcanti, Vinicius de Moraes, Aníbal Machado e Rubem Braga.
A função heterogênea de político e boêmio no Brasil é também retratada no livro de
Russel Jacoby, Os últimos intelectuais, no qual descreve o declínio do intelectual na vida
pública da sociedade norte-americana da década de 1950. Sinaliza o desaparecimento
do espaço urbano marcado pela convivência agradável e pelo bom rendimento social,
situação capaz de agregar e de produzir saberes. As livrarias, os cafés, os restaurantes,
lugares de discussão e de formação de grupos, cedem espaço para os campi, construídos
longe dos centros urbanos e arquitetados segundo princípios que promoviam o
isolamento e o trabalho individual. No caso brasileiro, o afastamento do intelectual
diante dos anseios da comunidade é comprovado pela presença do vazio comunicativo
instaurado na década de 1960 pela ditadura. No entender de Beatriz Sarlo, a
neutralidade valorativa passa a vigorar entre os intelectuais, ao se entregarem ao
exercício do relativismo cultural como forma de aceitação das diferenças, sem que haja
a quebra do consenso e esteja conforme as regras do jogo neoliberal. A baixa
credibilidade das instituições, o retrocesso da cultura letrada, a crise da escola como
lugar de redistribuição simbólica e o pequeno espaço reservado à questão da arte nas
agendas culturais compõem o quadro desta comunidade imaginada de intelectuais.
A crise da esquerda em todos os segmentos da sociedade não constitui fato isolado
entre nós. Por todo o mundo contemporâneo, a intelectualidade procura justificar o
lugar ainda deslocado e híbrido em que se encontra.
(Ensaio publicado em: DINIZ, T.; VILELA, L. H. (Org.). Itinerários. Homenagem a Solange Ribeiro de
Oliveira. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2009. p. 29-43.)
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WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
Memórias imperfeitas

Em 2003, ano do centenário do memorialista Pedro Nava, Baticum, de Sonia Lins,1 foi
reeditado. Trata-se do relato bem-humorado da vida provinciana de Belo Horizonte no
início do século 20. As coincidências com a obra de Nava se revelam curiosas, pois a data
de publicação de Beira-mar/memórias 4 (1978) é o ano da primeira publicação de
Baticum pela editora Pedra Q Ronca, em coedição com a Funarte. A diferença entre as
obras reside no modo pelo qual a narrativa memorialista é construída, priorizando-se o
relato tradicional em Nava e optando-se pelo registro fragmentado e humorístico em
Sonia Lins.
Entende-se, com a pouca divulgação de Baticum em sua primeira edição, como a
memória oficial se mantém pela restrição a obras fora do mercado e pela valorização de
uma bibliografia consolidada e legitimada pelo cânone. Com a reedição do livro de Sonia
Lins, falecida há poucos anos, mineira de Belo Horizonte e artista plástica, a imagem da
cidade recebe traços finos, nebulosos e caricatos, desfazendo-se o contorno bem-
comportado dos textos memorialistas. Embora a dicção narrativa seja caracterizada por
um estranhamento poético singular que lembra os desenhos distorcidos dos adultos
feitos pelas crianças, consegue-se ampliar essa visão irônica e se referir ao cenário
cultural e político da cidade. Os leitores contemporâneos dessa metrópole, entre alegres
e espantados, percebem, ainda que de modo tardio, as batidas fortes de Baticum, cientes
de que outras formas de narrar irão enriquecer e deslocar as tradicionais.
A reconstrução da cidade se converte, em Beira-mar/memórias 4, em referência para
os estudos da geração modernista, do cotidiano da rua da Bahia e da classe letrada,
formada pelos estudantes universitários, intelectuais e políticos. Nava desenha, com
detalhes, o mapa sentimental de Belo Horizonte, recolhendo dados e pesquisando cada
esquina, cada prédio e cada rua, com vistas à captação, mesmo que ilusória, de uma
época, um grupo e uma maneira de viver. Narrativa que acredita na eficácia política dos
grandes relatos, ao sistematizar as genealogias familiares e inseri-las na formação
cultural do Brasil republicano e moderno.
Em Baticum, a fragmentação, o recorte jornalístico, o pastiche de notícias da coluna
social ou das páginas políticas, a plasticidade das letras e do espaço em branco
formando poemas concretos, a leitura aleatória dos minicapítulos, a ausência de ordem
cronológica do relato e os jogos poéticos com as palavras respondem pelo endosso de
procedimentos artísticos já consagrados pela vanguarda artística. Diferentemente de
Nava, a narrativa se detém na observação de pequenas cenas do cotidiano urbano e na
composição metonímica das experiências vividas pela narradora (“o braço grosso da
mãe”, “voz de bigode”, “o pai, que baixo assobiava”, “as irmãs Renault, que apoiavam
cotovelos em almofadas”). Não seria, pois, anacrônico, elogiar esse livro que, apesar de
ter sido publicado na década de 1970, retoma muito da poética vanguardista já presente
em Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade?
Onde residiria, portanto, a originalidade de Sonia Lins? No fato de ser uma escrita que
se sobressai por sua dicção feminina, ao reunir plasticidade poética com agilidade e
sedução da linguagem? Ou por retomar uma estética inusitada entre os escritores
contemporâneos, qual seja a de romper com os modelos da escrita memorialista,
centrados no desejo de completude biográfica e integridade autoral? Como resposta a
essas indagações, pode-se afirmar que Baticum inova na linguagem, não repetindo
fórmulas poéticas, e aguçando, com humor, a visão infantil e fragmentada do universo
familiar e urbano. Reacende, ainda, o brilho de uma linguagem que, ao contrário de
algumas tendências atuais, não se banaliza pela repetição uniforme de clichês literários.
O processo de modernização da cidade que crescia com o século se faz sentir, por
exemplo, nas colagens de textos jornalísticos, nas novidades do primeiro curso de
ginástica criado na chácara do dr. Estevão Pinto, ou na cena composta pela presença da
paraquedista Anésia Pinheiro Machado, cujo salto do aeroplano é descrito de forma
singular: “Do seu ventre foi parida / Anésia Pinheiro Machado que / no espaço saltou
como 1 biscoito.” O ritmo da narrativa, entremeado de pequenos anúncios, de notícias
sucintas, se constrói através de imagens que lembram o movimento rápido e nervoso de
uma câmara fotográfica, recurso plástico que ilustra, de forma brilhante, uma
modernidade nascente na linguagem.
Muitas das personagens evocadas por Nava em Beira-mar/memórias 4 reaparecem
em Baticum, dotadas igualmente do vigor plástico do memorialista, mas desprovidas de
qualquer referência a uma dimensão interior. Essa técnica caricatural reforça a
construção residual da memória, o movimento intermitente das cenas guiadas pelo ir e
vir, o apagar e o aparecer, o lembrar e o esquecer. Um olhar que se fixa na superfície, no
rés do chão, na exterioridade descritiva dos tipos, como se esses fossem bonecos
animados pela escrita. O trabalho de memória não assume a solenidade das origens nem
investe na legitimação do passado como forma de preservar o patrimônio familiar. Lá
estão o presidente Antônio Carlos, descrito na sua aparência física de forma semelhante
à do avô da narradora, por serem ambos “altos, cabeças roçando o pé direito onde o azul
terminava, magros como se estivessem guardados durante séculos dentro de livros”; o
dr. Estevão Pinto, que “passou a andar de preto com fumo no braço. Era uma
semicolcheia correndo pelas ruas de Belorizonte”; ou a chegada na cidade do expresso
de Diamantina, cujo som reproduzia, plasticamente, o nome de Juscelino Kubitschek,
ressoando na página sob a forma de um poema concreto.
A reedição luxuosa de Baticum pelo Museu Histórico Abílio Barreto, com reproduções
de fotos das famílias Lins e Mendes Pimentel, presta ainda uma homenagem à cidade, ao
enriquecer o seu acervo e torná-lo acessível ao público. Nesse sentido, houve a
preocupação de transformar o livro num álbum de família nos moldes tradicionais, o
que estaria em contradição com a sua proposta estética e ideológica. Sonia Lins
decompõe o quadro familiar pela utilização do risco ágil e irônico da escrita, pelo
traçado caricatural das personagens e pelo deslocamento das hierarquias sustentadas
pela moral burguesa. Não estariam essas fotos reeditando uma pose oficial da estrutura
familiar? Ou suplementando o que fora negado pela força de uma escrita rebelde e
desmitificadora? Estas são as indagações para as futuras edições dos livros de memórias
imperfeitas, escritos na contramão das bem-comportadas histórias familiares.
(Artigo publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 jan. 2004. Suplemento Ideias, p. 2.)
Bibliografia
NAVA, Pedro. Beira-mar/memórias 4. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
LINS, Sonia. Baticum. 2. ed. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2003
Macunaíma: quem é você?

Em 2008, Macunaíma comemorou 80 anos com muitas gargalhadas, piscando o olho


para seus fiéis leitores e dando uma banana para os detratores. Seu lugar na literatura
brasileira está garantido, pois, ao contrário do que escreveu seu autor, não permaneceu
como o “brilho inútil das estrelas”. De modo gaiato e malandro, passeia pra lá e pra cá
no céu, num banzo solitário, mas visível. Batizado por Mário de Andrade como “o herói
sem nenhum caráter”, nascido da mistura de textos de diversas culturas, Macunaíma
conserva permanente mobilidade significativa, sua maior qualidade como personagem
de ficção. Incapturável como símbolo fixo de nacionalidade, ostenta, ao longo dos anos, a
imagem do malandro tupiniquim, da astúcia mesclada à ingenuidade, da preguiça como
resposta ao modernizante apelo da civilização do trabalho. A ambiguidade e a complexa
caracterização da personagem são os possíveis motivos do lugar importante que ocupa
ao serem discutidas questões envolvendo redefinições de cultura brasileira, política e
literatura.
A revolução promovida pelos modernistas de São Paulo nos anos de 1920 contou com
a revisão rigorosa do imaginário literário e histórico nacional, no qual se celebrava a
importação de modelos europeus como chave capaz de impulsionar a criação. Romper
com o mimetismo das nossas pretensas origens culturais contribuiu para a instauração
do programa modernista, pautado pela experimentação, o compromisso com a
produção de obras que atendessem à singularidade e à heterogeneidade de nossa
cultura. A rapsódia Macunaíma, o herói sem nenhum caráter,1 publicada em 1928,
representou para o movimento a perfeita realização de sua proposta nacionalista,
entendida no seu duplo movimento, na sua ambiguidade: o olhar voltado para fora, o
olhar voltado para dentro.
A recusa em repetir modelos importados não implicava o desconhecimento nem o
apagamento das ideias que circulavam aqui e no mundo, mas sim o seu aproveitamento
astucioso e criativo. O homem sem qualidades, do austríaco Robert Musil, o aflorar do
inconsciente nas pesquisas freudianas, os movimentos de vanguarda, a modernização
urbana, a valorização da mitologia indígena, a releitura das narrativas de viagem, todos
esses ingredientes entraram no banquete macunaímico. O herói sem nenhum caráter,
meio brasileiro, meio venezuelano, denuncia a diluição de espaços de origem e a
mistura de lugares, um dos desejos do autor em falsear e descaracterizar uma
identidade fixa da personagem.
Os três irmãos, da tribo amazônica dos tapanhumas, Macunaíma, Jiguê e Maanape,
descem para o sul pelo rio Araguaia, mas antes o herói vai até a foz do rio Negro e deixa
a consciência na ilha de Marapatá. No final da rapsódia, de volta à terra de origem, o
Uraricoera, o herói buscou a consciência e, não a encontrando, “pegou na consciência
dum hispano-americano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma”. A procura de
um traço nacionalista em Macunaíma se faz por meio de sua ausência, de rupturas com
os tradicionais meios de consolidação da nacionalidade. A abertura para a América
Latina participa de um programa mais amplo, de repercussões na época
contemporânea, em que se questiona sobre as particularidades nacionais, e, ao mesmo
tempo, discute-se a existência de uma cultura heterogênea e diversificada. “Profetizar
americanamente o Brasil” é a definição expressa por Mário para a arte do escultor
Aleijadinho, podendo servir para a atual condição identitária do continente. O projeto
nacionalista do escritor modernista não se limita a criar estereótipos, mas em ressaltar
a complexidade inerente às redefinições de valores impostas pelas diferentes épocas.
Este é um dos mais significativos legados que a obra deixa para os tempos atuais,
embora seja ainda mal-interpretada por muitos.
Que consciência teria deixado na ilha de Marapatá? Que tipo de personagem estava
sendo criada pelo autor modernista, qual a finalidade de se produzir um anti-herói
brasileiro, um malandro com sangue de índio, aparência de branco, alma de preto, com
suas superstições e feitiçarias? Macunaíma deveria, pelo seu atestado de nascimento,
representar o índio da tribo Tapanhumas, “preto retinto e filho da noite”. No entanto,
por ter mergulhado na água encantada, transforma-se numa pessoa branca, loura e de
olhos azuis. Os irmãos, Jiguê e Maanape, representam o índio e o negro, por não terem
conseguido se valer integralmente da água milagrosa.
A discussão sobre as três raças brasileiras é ironizada na rapsódia, pela presença
caricatural dos três irmãos: o branco é esperto, ingênuo e preguiçoso (“Macunaíma era
muito preguiçoso”); o índio, dotado de pouca inteligência (“Jiguê era muito bobo”); e o
negro, marcado pelo discurso da superstição (“Maanape era feiticeiro”). Cai por terra o
mito do índio como símbolo dos valores nacionais, bem como da afirmação do caráter
brasileiro centrado numa raça específica. Passados mais de 80 anos dessa constatação, a
lição de Mário de Andrade parece não ter muito eco. A separação ideológica entre a raça
branca e a negra ainda persiste, reiterando o raciocínio binário e anulando a
ambiguidade, a coexistência e a indefinição das raças no Brasil.
De igual importância para se avaliar a resistência de Macunaíma ao tempo e sua
proposta identitária, consiste a deliberada diluição dos esquemas definidos, das leis do
gênero romanesco, da defesa da oralidade como marco de uma língua brasileira e de
uma cultura popular. O deslocamento processado pelo programa estético e político da
obra constitui um dos mais relevantes experimentos de Mário de Andrade. O universo
linguístico da personagem articula-se em torno da imagem do papagaio, seu único
companheiro no final da rapsódia. Na condição de avatar da fala do pássaro, Macunaíma
registra e veicula o tempo todo as palavras de outros, repete frases-feitas,
contrabandeia signos alheios, confunde o sentido literal com o figurado, nega a
propriedade dos signos quanto aos seus referentes. Essa astúcia de linguagem se filia
ainda à herança de seu animal totêmico, o jabuti, personagem de muitas fábulas dos
contos populares brasileiros. Trapaceiro e sagaz como o animal, plagia histórias e
lendas nacionais e estrangeiras, o discurso retórico dos doutos, os provérbios e as
adivinhas. A força da linguagem e o seu aproveitamento astucioso permitem entender o
papel do herói no âmbito de um discurso que também carece de caráter, por
desrespeitar normas e inventar situações inusitadas.
No entanto, essa denúncia funciona muitas vezes como arma de dois gumes para os
intérpretes de plantão da cultura brasileira. Sem atentar para o caráter ambíguo da
personagem, para a malandragem entendida no seu aspecto tanto positivo quanto
negativo, as possíveis lições da rapsódia tendem, na maioria das vezes, a serem lidas
como alegoria de um país malandro, preguiçoso e sem saída. O discurso do senso
comum referente ao jeitinho brasileiro, à cordialidade, como resultado da precária
separação entre público e privado, alimenta o estereótipo do brasileiro, além de sua
imagem vendida ao estrangeiro. Macunaíma, ao longo desses anos, é argumento
utilizado para diversos e múltiplos fins sejam eles políticos – o boquirroto e língua solta
presidente Lula, “este não é um país sério” –, sejam referentes ao diagnóstico da
malandragem como marca registrada do país.
Na literatura, pelo contrário, a obra é considerada, ao lado de Grande sertão: veredas,
revolucionária por excelência, por revitalizar a tradição oral, romper com a separação
entre erudito e popular, tradição e vanguarda, cidade e campo. A composição heteróclita
e irônica da natureza tropical sujeita a interpretações igualmente distorcidas reitera e
critica o ufanismo nacionalista, a eloquência do verde-amarelo como tonalidades
representativas do ufanismo patriótico. O filme homônimo de Joaquim Pedro de
Andrade, de 1969, leva às ultimas consequências o aparato parodístico presente no livro
de Mário de Andrade. A natureza é caricaturada, o verde-amarelo de crepon das
fantasias das personagens se reduplica no bordado de um jacaré imenso no peito de
Macunaíma, vestindo uma camisa Lacoste. Toda essa herança macunaímica torna-se
salutar para se rever, nos dias atuais, a proliferação de discursos vinculados à natureza,
a territórios vazios, como o deserto, a reservas naturais, como o mar, florestas, campos,
rios, ou à vida animal, os quais se inscrevem como espaços alternativos para se reler a
modernidade e os desencantos da civilização. Não se trata, contudo, de saída utópica
para os possíveis males do presente. O tratamento dado à natureza se desvincula tanto
do sentido estereotipado dos discursos colonialistas – espaço virgem e utópico – quanto
do sentimento de nostalgia pelo equilíbrio ecológico perdido.
Macunaíma, quem é você?
(Verbete para o Livro do ano, em: VERANO, Paulo (Org.). São Paulo: Barsa Planeta, 2009.)
Bibliografia
ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Edição do
Autor, 1928.
Macunaíma de Daibert

A interpretação que Mário de Andrade daria à série de desenhos de autoria de


Arlindo Daibert, Macunaíma de Andrade, possivelmente seria a mesma conferida ao seu
retrato feito por Portinari: “Eu é que estava me pintando.” Ao se colocar como coautor
do retrato, Mário expôs uma das linhas de sua poética, a convicção de estar a vida
artística aliada ao exercício da experiência. Na interpretação pessoal que faz desse
quadro, Mário se apropria de um dos princípios da ação cristã, implícito em charitas, ao
reivindicar o direito de autoria da imagem criada por Portinari. Trata-se de um retrato
que Mário ajudou a construir, por revelar o seu “lado bom”, prova evidente do
entrosamento entre dois amigos. Em carta a Henriqueta Lisboa, esse gesto criativo é
entendido como expressão da simbiose perfeita da amizade, o que permite ampliar o
gesto da autoria: “E foi nesse estado iluminado de amor que ele fez o meu retrato que
(…) eu fiz ele fazer de mim: só bom.”1 Essa afirmativa se justificaria por ter Arlindo
Daibert traduzido, em imagens, o retrato de Mário, sob pretexto de estar relendo
Macunaíma. Ao condensar no título do trabalho, Macunaíma de Andrade, o nome da
personagem com o do autor, assume a proposta de invenção de teor biográfico
semelhante à de Mário, ao reunir obra e vida a partir da reconstrução de retratos que
reportam a cenas literárias, artísticas e políticas do período. As apropriações, as
associações livres e os deliciosos roubos cometidos pelo escritor na produção literária
de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter demonstram ser a estética parodística o
ponto fulcral da arte modernista, procedimento encontrado nas colagens e reproduções
de figuras da época.
No texto “Macunaíma de Andrade - diário de bordo”,2 registro da preparação e da
feitura de seus desenhos, Arlindo confessa ter cometido licenças artísticas durante o
processo de reconstrução das personagens da rapsódia, ao transformar a Uiara – e Ci –
na imagem da bela e talentosa Tarsila do Amaral, além de escolher a figura de Getulio
Vargas para protagonizar o gigante Piaimã, ou eleger o amigo e pintor Siron Franco
como representação de Macunaíma, estampado no episódio referente às adivinhas. A
mais evidente inserção autobiográfica de Arlindo na obra revela-se na colagem da cena
final do capítulo “Macumba” (em Macunaíma, o herói sem nenhum caráter), além de
contar com a entrada autobiográfica de Mário: na festa da tia Ciata, a mãe de santo do
cerimonial da macumba, o escritor introduz e “cola” os amigos, transformando-os em
personagens da rapsódia. O procedimento não só concede maior liberdade à criação de
Arlindo, como também permite romper os limites entre ficção e realidade. O registro da
liberdade conferida à cena é apresentado pelo artista em Cadernos de escritos, com
vistas a reiterar a intenção autobiográfica presente na sua leitura de Macunaíma:
No final do capítulo, Mário mistura aos personagens da ficção alguns “macumbeiros” reais como
Bandeira, Antônio Bento, Cendrars etc. Trata-se de uma lembrança de caráter afetivo, ou talvez por
identificação ideológica, como no caso de Raul Bopp também envolvido no estudo da cultura
popular. (…) Incluo entre os meus “macumbeiros” alguns dos de Mário e outros como Drummond,
Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Virginia Woolf etc. (…) O quadro ainda não está completo e para
confundir um pouco os exegetas incorporei ao trabalho algumas… afinidades eletivas (ou seria
liaisons dangereuses?) que, para terminar, “fizeram a festa juntos.”3
Ao lado da intenção autobiográfica do artista em recriar outro Macunaíma, encontra-
se a deliberada proposta de trazer à superfície das gravuras a mistura/condensação
entre a personagem e seu autor, Mário de Andrade. A assinatura de Andrade, no último
desenho da série que precede o “Ex-libris”, está presente na reprodução da foto do
escritor feita por seu amigo Warchavchic, personificando o narrador-rapsodo do livro
que, ao chegar à tribo dos Tapanhumas, encontra somente o papagaio para contar
história. O registro da fala popular, inscrito na frase “Tem mais não”, funciona como
refrão que sela tanto o livro quanto o conjunto de imagens de Macunaíma de Andrade.
No canto direito do desenho, insere-se a figura emblemática do beija-flor, que, ao
deixar em aberto a cena que finalizaria o trabalho, insinua sua saída do espaço fechado
da gravura. Após bolebolir no “beiço do homem”, como assim registra o final da
rapsódia, a imagem lembra o gesto contagiante representado pelo bico do pássaro que
transmite para o outro os segredos passados de boca em boca. Esse contato entre o
pássaro e o narrador se reduplica na estreita relação entre a sensibilidade do artista
Arlindo Daibert e a tradução da linguagem de Macunaíma, a qual desde sua origem
nunca foi propriedade de Mário, revelando-se um texto sempre compartilhado e
parodiado.
Macunaíma de Andrade responde, portanto, à frase de Mário de Andrade, “Eu é que
estava me pintando”, por insinuar tanto o possível sentimento do escritor de ter sido
relido através de seu lado macunaímico, quanto do artista de se valer do pacto
autobiográfico no esboço de seu retrato e na construção de seu Macunaíma. Desta vez
não é o lado bom e comportado de Mário que está sendo recriado, mas o seu lado
desconstrutor e trapaceiro, a outra face da moeda, que se impõe como traço relevante
da paródia modernista. A imagem que funciona como “Ex-libris”, o cágado mordendo
uma flâmula, com a inscrição “Nome começado por Ma tem má sina”, legitima, pela
semelhança das iniciais de Mário e de Macunaíma, a condensação lúdica entre autor e
personagem.
Mário e Arlindo tornam-se “possuídos” e unidos, de modo demoníaco, pela ação de
Exu-Arlindo. Afinidades eletivas ou liaisons dangereuses? O processo de apropriação do
texto alheio corre sempre o risco de estar participando de uma festa que excede nos
empréstimos e se liberta do enredo inicialmente previsto: “A descoberta de uma foto do
sítio de Santo Antônio, paixão da vida do escritor, parece ter alguma coisa a ver com a
volta para o Uraricoera. A imagem não pertence ao livro, e sim à vida de Mário. Já não
sei mais o que estou ilustrando.”4
Diferente posição artística irão assumir os demais ilustradores de Macunaíma,
destacando-se entre eles Carybé, Rita Loureiro e Pedro Nava, este último tendo deixado
apenas oito aquarelas estampadas no seu exemplar da primeira edição, trabalho
realizado de maneira descompromissada e sem intenção editorial. (A publicação dos
desenhos é de 1978.) A proposta de Carybé, por exemplo, foi a de ilustrar, em 1943, o
volume, infelizmente não publicado na época, mas somente em 1979, escolhendo as
cenas que julgava importantes, além de se manter fiel à construção do ambiente
indígena e à estilização da natureza. A distância entre eles é notória, notadamente se for
levado em conta que a série de desenhos de Arlindo Daibert não tem a intenção de
ilustrar o livro, por ser o seu projeto voltado para a leitura do Modernismo e de suas
personagens, por meio de associações livres e de colagens bem-humoradas.
O que merece atenção nesta troca infinita de imagens e de releituras da obra-prima
de Mário de Andrade é a rede que começa a ser tecida em torno dos antigos amigos do
escritor, da bibliografia sobre sua obra, da correspondência e encontros que Arlindo
Daibert promove, com o desejo obsessivo de pelo menos reviver imaginariamente este
momento da cultura brasileira.
A figura de Pedro Nava, conterrâneo de Arlindo, reveste-se de importância para o
entendimento dessa rede de relações afetivas e artísticas aí criadas. Na época da
concepção de Macunaíma de Andrade, o escritor já havia saído da condição de poeta
bissexto e se tornado autor de quatro volumes das Memórias. Arlindo dirige-se em carta
a Nava, em 1981, de forma bastante tímida, com o intuito de tomar conhecimento do
episódio referente às ilustrações de Macunaíma. Como nesta época se comprovou, as
referidas ilustrações foram inseridas, em 1978, na edição crítica do texto, feita sob a
direção de Telê Porto Ancona Lopez. A solicitação de ajuda ao amigo de Mário se realiza
nos seguintes termos:
Talvez o senhor não me conheça nem ao meu trabalho. Sou desenhista. Moro e trabalho em Juiz de
Fora. No momento estou envolvido com um projeto de desenhos que me fascina muitíssimo:
ilustrar o Macunaíma de Mário de Andrade. (…) É muito importante para mim entrar em contato
com pessoas que tenham conhecido diretamente Mário de Andrade e aprender um pouco com elas.5
A resposta de Nava irá explicitar as razões pelas quais os desenhos só foram
conhecidos tardiamente, uma vez que o exemplar da primeira edição, de sua
propriedade, havia sido “confiscado por Mário”, por ocasião de uma visita à sua casa.
Por se tratar de um volume diferenciado, a irmã do escritor o havia guardado, motivo
pelo qual ele não se encontrava no Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
Respondendo a um pedido de Nava sobre o destino dos desenhos, Telê Porto Ancona
Lopez, após ter ficado com a “história encucada” durante um tempo, pôde descobrir com
quem estava o exemplar. Ainda que não tenha fornecido detalhes sobre a natureza ou a
qualidade de suas aquarelas, o memorialista narra dados curiosos de sua relação com
Mário, tornando-se também o responsável pela descoberta do material até então
desconhecido até pelos especialistas na obra do autor.6
Uma das mais fortes contribuições de Nava para a obra de Arlindo consiste, contudo,
na retomada do gênero memorialístico, ocasionando a reflexão de categorias recalcadas
pela vanguarda literária, tais como a de tradição e a de escrita do eu. O boom do texto
autobiográfico não tardaria a ter lugar na história da literatura contemporânea,
principalmente com a abertura política no Brasil e a volta dos ex-exilados ao país. O
registro das experiências vividas durante o período de ditadura militar inaugura outra
modalidade de relato. Acrescente-se ainda a publicação de Beira-mar/memórias 4, em
1978, volume das memórias que discorre sobre a década de 1920, em Belo Horizonte,
com o início do Modernismo mineiro, incentivado pela visita, em 1924, dos intelectuais
paulistas à capital.
A história literária e artística do movimento se enriquece com o apaixonado e
minucioso relato de um de seus protagonistas. Nessa empresa memorialista, o perfil das
personagens da época é detalhadamente elaborado pelo escritor, destacando-se o de
Mário de Andrade, descrito a partir dos retratos e fotos realizados pelos amigos. Arlindo
Daibert, ao se preparar para o trabalho de releitura de Macunaíma, se vale de vasta
bibliografia sobre Mário de Andrade e o Modernismo, com vistas a não se posicionar
como intérprete ingênuo desse rico momento cultural brasileiro.
Na composição do retrato de Mário, Nava emprega o processo criativo de associação
livre, o que resulta na confecção de um traçado biográfico muito pessoal, o qual se
conjuga ao exercício artístico de Arlindo em Macunaíma de Andrade. São diferentes, por
exemplo, as interpretações do retrato de Portinari fornecidas por Mário e Nava: o
primeiro, ao considerá-lo a expressão de seu lado bom, da imagem que ele próprio
construiu, justifica a frase “eu é que estava me pintando”; o segundo, ainda que
reconheça o valor da obra segundo critérios estéticos, irá desconsiderá-la do ponto de
vista da semelhança com o modelo e preferir o quadro de Segall, por ser mais fiel ao
espírito alegre do poeta enquanto jovem:
O retrato de Portinari, obra-prima de pintura, não dá uma ideia perfeita de Mário. Ele é
expressionalizado numa megaforma que caberia melhor ao gigante Wenceslau Pietro Pietra. É tórax
demais e queixo demais. Fora isto e faltarem os óculos – a semelhança é quase total. O de Lasar
Segall aproxima-se mais e dá ideia perfeita da miopia e do que ela adiciona à expressão. Trata-se de
um retrato da mocidade e os olhos de Mário ainda não tinham adquirido a amargura que
transparece no óleo de Flávio de Carvalho, nem a resignada santidade que está no pastel de Tarsila.7
A obsessão pela anatomia da personagem, em virtude da dupla condição de Nava,
dividido entre o médico e o escritor, o faz ler realisticamente as imagens pintadas de
Mário, com o objetivo de melhor expressar aquela que ele próprio constrói do amigo. Ao
memorialista não agrada a deformação expressionista da “megaforma” do quadro de
Portinari, intolerância que irá permitir, curiosamente, a relação inusitada entre o autor
de Macunaíma e sua personagem, Wenceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã. Quem já
havia se dedicado a desenhar oito aquarelas do texto, sem estabelecer qualquer vínculo
entre obra e autor, realiza agora a conjunção entre Mário e sua personagem, pela
mediação do retrato de Portinari. Comprova-se mais uma vez a presença do trânsito
livre entre biografia e ficção, considerando-se o grau de proximidade entre as duas
instâncias.
O lado bom do retrato de Portinari, assim interpretado por Mário, cede lugar ao seu
lado mau, contaminado pela analogia com Piaimã. Inverte-se e reitera-se a frase do
escritor sobre a pintura feita pelo amigo, pois a leitura de Nava permite traduzir o grau
de arbitrariedade e de subjetividade que define cada interpretação particularizada do
objeto artístico. O punctum – expressão utilizada por Roland Barthes no ensaio sobre a
fotografia8 – consiste na escolha de um detalhe específico da foto/obra realizada de
modo distinto pelos leitores, liberdade esta que lhes concede o direito de se sentirem
igualmente coautores das obras.
A foto de Mário feita por Warchavchik e também reapropriada por Arlindo Daibert
merece de Nava tratamento especial, não só pelo seu valor artístico, mas pela
ambiguidade da figura, ao mesmo tempo dionisíaca e amargurada: “Mas que retrato…
Dividido por uma horizontal que passasse pela ponta do nariz temos embaixo o queixo
voluntarioso e possante dum dionísio sorridente. Já a metade de cima é a de uma
górgona míope atormentada pelas próprias serpentes.”9 Desta vez é Arlindo quem
engloba na mesma imagem o escritor e o narrador-rapsodo, ao inscrever, através do
sorriso de Mário, a marca autoral do Macunaíma, de Andrade, e do Macunaíma, de
Daibert. A cumplicidade entre os dois é metaforicamente condensada neste desenho, em
que o conceito de autoria retorna, simultaneamente, de forma esvaziada e restaurada:
Passei a tarde dando aulas no ateliê. Enquanto a aluna japonesa copiava uma figurinha de Maillol eu
trabalhava num retrato de Mário de Andrade. Quando comecei a fazer o desenho pensava fazer
somente o estudo, mas, aos poucos, foi tomando forma e resolvi aproveitá-lo. Talvez seja o último
desenho do livro (!) “Tem mais não! ”10
No extenso e vigoroso convívio de Mário de Andrade com os escritores e artistas
mineiros, cultivado não só pelos encontros e projetos realizados, mas ainda pela vasta
correspondência mantida com intelectuais de muitas gerações, como Drummond, Nava,
Henriqueta Lisboa, Murilo Rubião, vários retratos foram compostos pelos amigos, seja
através de poemas, ensaios, ficção ou obras de arte.
A primeira viagem de Mário a Minas, datada de 1919, é registrada por Drummond no
belíssimo poema “A visita”, em que se dramatiza o encontro, na pacata Mariana, entre o
jovem poeta e o consagrado Alphonsus Guimaraens.11 A imagem do autor de “Há uma
gota de sangue em cada poema” é evocada por Drummond de modo a ressaltar a
atmosfera noturna da estética simbolista, conjugada à iniciação poética de Mário, leitor
de Poe, dos impressionistas franceses e do próprio Alphonsus. Mais tarde, o jovem irá
conhecer João Alphonsus e Alphonsus Guimaraens Filho, tornando-se correspondente e
amigo dos filhos do poeta simbolista e leitor da obra modernista de ambos. A
homenagem que Drummond presta a esse encontro, um projeto há muito tempo
sonhado pelo autor, só se realiza em 1977, por solicitação de José Mindlin, que edita o
poema em edição de luxo. O texto tem o mérito de não só reconstruir um momento
revelador de extrema força literária, mas ainda de introduzir Mário de Andrade na
confraria dos poetas mineiros, em que passa de aprendiz de poeta a interlocutor e guia
intelectual de gerações futuras.
A segunda visita, em 1924, adquire caráter oficial, quando Mário se integra à caravana
paulista, na “Viagem de descoberta do Brasil”, protagonizada pelo grupo modernista e
pelo poeta franco-suíço Blaise Cendrars. A reunião do princípio artístico moderno com a
arte barroca das cidades mineiras instaura a perspectiva do novo em convívio
contrastante com o antigo, razão principal para se repensar o conceito de primitivo e de
identidade artística nacional. O retrato do Brasil se reveste agora do cruzamento entre a
vanguarda e a restauração de uma atmosfera arcaica, até então recalcada pela sedução
da novidade, de uma estética do urbano e do culto ao progresso modernizante. Essa
aventura dos modernistas é relida por vários escritores e ensaístas, constituindo uma
das mais ricas contribuições para se entender a importância desse convívio entre
mineiros e paulistas.
Dentre os textos que se nutrem da lição de 1924 para a reflexão da poética
contemporânea, cite-se “O dentro do dentro do dentro”, de Silviano Santiago, em que se
procede à interpretação da aventura modernista em Minas a partir da crônica de Mário
de Andrade, publicada logo depois da viagem. Utilizando-se do procedimento de
colagem, nos moldes dos ready-made linguísticos de Oswald de Andrade, Santiago reúne
na composição os dois Andrades: Mário e Oswald lhe inspiram o tema da viagem da
“descoberta do Brasil”; de Oswald retoma a linguagem concisa e curta do pastiche,
processo retórico empregado no Roteiro de Minas. Nessa empresa, configura-se mais um
retrato do movimento modernista, recortado pela presença dos Andrades, mas
principalmente nutrido pela inserção de uma leitura pessoal de Santiago de um
determinado momento. A contínua retomada da herança modernista por parte dos
autores contemporâneos, longe de significar a necessidade de repetir uma estética,
aponta o avanço de olhares dirigidos às exigências da arte do presente.
Da estreita convivência de Mário de Andrade com os mineiros, o que mais se impõe
como traço de amizade é a figura do missivista contumaz, de quem não deixava uma
carta sem resposta, tornando esse ofício uma das formas encontradas para se escrever a
obra “incompleta” e as memórias. Permanece essa imagem que resulta de uma
generosidade do escritor, ao mesmo tempo que o coloca como divisor de águas da
intelectualidade brasileira da época, formada por um grupo que com ele se
correspondia e lhe rendia fidelidade e, por outro, que dele se distancia, afastando-se
dessa comunidade de literatos. O fantasma de Mário de Andrade permaneceu por muito
tempo rondando o imaginário dos autores brasileiros, não só pelo forte legado
intelectual como pela sua morte prematura, em 1945. Autran Dourado ficcionaliza essa
imagem idealizada de Mário de Andrade, ao construir, em “Tempo de Mário e outros
tempos”, a figura de um escritor fracassado, vivendo na Belo Horizonte dos anos de
1940:
Se lembrou dos tempos de Mário de Andrade, como ele chamava 1942, 1943, 1944. Um homem
enorme, as mãos grandes, a calva, a boca avançando. O poeta Mário de Andrade rodeado de piás no
bar do Grande Hotel. Guardava, ainda, com os versos, num baú velho, as cartas de Mário, como
diziam. Hoje recebi carta de Mário, era como eles falavam uns para os outros, como se passassem
uma mensagem cifrada. (…) Quase todos tinham cartas de Mário, quem não recebia carta de Mário
não entrava para a literatura. O poeta Mário de Andrade descendo aos infernos no poema de
Drummond, subindo ao céu cercado de piás. As cartas voavam dos bolsos cheios da casaca do
mágico.12
Em 1982, Macunaíma de Andrade chega até a mim através do recorte da revista Veja,
enviado por um dos muitos amigos que me mandavam do Brasil notícias e bibliografia
sobre Mário de Andrade. Nessa época estava terminando o doutorado em Paris, cujo
tema era a análise do discurso e da linguagem em Macunaíma, o herói sem nenhum
caráter.13 A impressão de ver plasticamente traduzido o texto literário com o qual
estava, há mais de três anos, em diária companhia, foi a mais impactante possível,
embora não pudesse ainda avaliar a obra, por desconhecê-la na íntegra.
O contato mais próximo com a série de desenhos ocorreu em 1993, por ocasião da
montagem da exposição em homenagem ao centenário de Mário de Andrade, voltada
para a relação entre o escritor e os intelectuais e artistas de Minas. Mário de Andrade -
carta aos mineiros contou com a presença de Arlindo, que teve parte de sua obra
exposta, juntamente com as ilustrações de Nava sobre Macunaíma e de documentos
relativos ao convívio epistolar e literário de Mário. Nessa ocasião, já havia optado por
uma abordagem mais contextual e biográfica de sua obra, através do estudo da
correspondência, de ensaios, diários de viagem e entrevistas do autor. De posse de nova
postura metodológica e teórica, foi possível perceber que Macunaíma de Andrade
realizava, 10 anos antes, uma leitura em que o texto ficcional atua como pretexto para a
invenção teórica, cultural e artística, além de tornar mais tênue a distância entre
realidade e ficção.
Os fatos da experiência, ao serem interpretados como metáforas e como componentes
importantes para a construção de biografias, se integram ao trabalho artístico e ficcional
sob a forma de uma representação do vivido. Os grandes temas existenciais da literatura
e da arte, como o suicídio, a morte, o amor, a paixão, guardam sua natureza ficcional e se
espraiam na página aberta do espaço plástico e textual e nos interstícios criados pelo
jogo ambivalente entre a arte e o referente biográfico.
Macunaíma de Andrade/Macunaíma de Daibert. Já não sei mais o que estou ilustrando.
(Ensaio publicado em: ASBACH, J. (Org.). Macunaíma de Andrade. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2000.
p. 26-35.)
Bibliografia
ANDRADE, Carlos Drummond de. A visita. São Paulo: Metal Leve, 1977.
ANDRADE, Mário de. Querida Henriqueta. Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta
Lisboa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. (Organização, introdução e notas de PALU,
Pe. Lauro.)
BARTHES, Roland. A câmara clara. Tradução de Júlio Guimarães. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.
CARTA de Arlindo Daibert a Pedro Nava, de 2 de junho de 1981. Arquivo Museu de
Literatura – Pedro Nava. Fundação Casa de Rui Barbosa.
CARTA de Pedro Nava a Arlindo Daibert. In: SOUZA, Eneida Maria de; SCHMIDT, Paulo
(Org.). Mário de Andrade – carta aos mineiros. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. p.
155-156.
DAIBERT, Arlindo. Macunaíma de Andrade – diário de bordo. In: ____. Cadernos de
escritos. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995 (Organização de Júlio Castañon Guimarães.).
p. 13-27.
DOURADO, Autran. Tempo de Mário e outros tempos. In: ____. Solidão, solitude. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. p. 127-136.
NAVA, Pedro. Beira-mar/memórias 4. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
SOUZA, Eneida Maria de. A pedra mágica do discurso. 2. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1999.
Amizade modernista

A biografia literária, uma das fortes vertentes da crítica atual, recebe maior impulso
com a publicação, no Brasil, da correspondência de escritores modernistas, incentivada
por Mário de Andrade, um de seus maiores representantes. A separação operada pela
crítica textual entre autor e obra, biografia e literatura, história e escrita considerava
como critério valorativo a autonomia do texto frente ao contexto de sua produção,
excluindo-se aí os documentos pessoais do escritor, como a troca de correspondência
mantida com seus pares. No início da década de 1980, com a abertura política e a
proliferação de uma escrita autobiográfica dos exilados, a crítica literária brasileira –
tendo Silviano Santiago como um de seus titulares – volta-se para o enfoque particular
do Modernismo, a epistolografia e o memorialismo, indo além de sua produção literária
e ensaística. Configura-se, em definitivo, a aliança entre obra e autor, escrita e política,
processando-se, contudo, o deslocamento do lugar reservado ao autor para o do
intelectual, o que revela o avanço da crítica para a revisão da historiografia literária
brasileira. Na apresentação ao volume, Santiago esclarece a importância de se estudar a
correspondência entre escritores para a abertura do próprio conceito de crítica
biográfica:
A leitura de cartas escritas aos companheiros de letras e familiares, bem como a de diários íntimos
e entrevistas, tem pelo menos dois objetivos no campo duma nova teoria literária. Visa a
enriquecer, pelo estabelecimento de jogos intertextuais, a compreensão da obra artística (poema,
conto, romance…), ajudando a melhor decodificar certos temas que ali estão dramatizados, ou
expostos de maneira relativamente hermética (como a questão da felicidade, em Mário de Andrade,
ou a questão do nacionalismo, no primeiro Carlos Drummond. Visa a aprofundar o conhecimento
que temos da história do Modernismo, em particular do período consecutivo à Semana de Arte
Moderna.1
Passados mais de 50 anos da morte de Mário de Andrade, seu baú de cartas pôde ser
aberto, propiciando ao leitor a reunião das partes desse diálogo iniciado com o início e
expansão do Modernismo. Carlos Drummond de Andrade é um dos mais notáveis
parceiros dessa correspondência, tanto pela sua posição como poeta quanto pela sua
imagem de intelectual, entre atuante e reservado, avesso à exposição pública, embora
tenha exercido cargo político durante o governo Vargas, como chefe de gabinete de
Gustavo Capanema, então ministro de Educação e Saúde. A publicação recente dessas
cartas rompe o silêncio da voz de Drummond, saciando a curiosidade da crítica, além de
entregar ao público um rigoroso e excelente trabalho editorial.2
A vida estampada nas cartas revela-se de forma distinta para os interlocutores. Se em
Mário prevalece a exuberância vital, unida à exuberância criativa, em Drummond, o
“pouco de vida tímida e inconformada”, o menos que se traduz no mais de uma obra,
confirma ser a vida nada mais do que um segredo impenetrável. E esse segredo se
explica pelo comportamento contido do poeta mineiro, em oposta atitude assumida pelo
amigo paulista. Mário, em carta datada de 1944, ao revelar sua insatisfação diante da
resolução dos médicos em não operá-lo, define seu estilo de vida inclinado muito mais
para o gasto do que para a usura:
Eles partem do princípio profissional talvez lógico mas antimário de que viver é conservar a vida.
Pra mim, viver é gastar a vida. (…) Mas se vê pelas minhas cartas de todos os tempos que se eu
quero me gastar e não conservar a vida, não se trata de nenhuma desistência, de nenhuma covardia
atual, de nenhum suicídio. É questão de temperamento, de realidade instintiva do meu ser.3
O excesso, como assim o nomeia Silviano Santiago, à luz da teorização de Georges
Bataille,4 seria o traço peculiar do escritor, que “não fala por alusões, símbolos ou
metáforas. É direto e certeiro. (…) Mário tem um único estilo: na carta excessiva, ele se
automodela pelo excesso. Tudo que nele sobra, falta ao jovem mineiro. (…). Comunica-se
com o interlocutor pelo desperdício do que lhe sobra.”5 Essa exuberância se contrapõe
ao comportamento retraído do poeta mineiro, contrário à exposição subjetiva e, por
essa razão, autor de uma obra cujas qualidades encaminham para o apagamento do
sujeito de forma quase absoluta. Esse apagamento se traduz tanto na vida quanto na
arte, uma forma esquiva de participar de momentos significativos da vida pública
nacional, ao mesmo tempo que construía sua poética em desacordo e em sentido
contrário à ideologia autoritária da política do momento: “Me sinto capaz de viver. Não
uma grande vida, nem uma vida cheia, mas o meu pouco de vida tímida e inconformada,
com desejo de fazer alguma coisa que não sei o que seja, mas que seja bom para os
outros, isso eu vivo.”6
As confissões pessoais expressas na correspondência não se restringem a revelar
segredos ou a apontar desavenças e dissabores entre os missivistas/personagens. Ao
serem lidas no seu estatuto de texto, as cartas se integram ao domínio da ficção, sendo,
portanto, motivo de interpretações contraditórias. Vozes dissonantes são colocadas em
cena, por meio do diálogo que aponta não só a troca de experiências entre dois poetas –
o jovem Drummond recebe lições de poesia e de vida, discute sobre nacionalismo e
política –, mas o silêncio e o não dito como sinais invisíveis de uma complexa relação de
amizade.
Em virtude da diferença de temperamento e de trajetória intelectual e literária
assumida pelos poetas, a correspondência evidencia certa irregularidade, por deixar
lacunas e silêncios ao longo do diálogo entre amigos de 20 anos. Não é difícil perceber
possíveis desentendimentos entre eles, marcados pelo tom distanciado e frio das cartas
trocadas no final da década de 1930 em diante. Desavenças da idade, desencontros de
ordem política? O certo é que essa situação se apresenta por meio de comentários de
ambas as partes sobre a perda de uma comunicação antes exercida de modo mais
contundente e vigoroso. Descompassos e reconciliações vão sendo aos poucos
negociados pelos missivistas, à medida que a conversa entre eles, pelo menos no papel,
carecia de alimento e justificativa para se sustentar. Em 1942, quando Mário publica a
reunião de sua obra poética, com o título Poesias, o reencontro entre os amigos-poetas
se manifesta a lembrança contida nos versos relidos por Drummond, pelo lugar da
literatura como traço fiel de um antigo sentimento de camaradagem. Drummond
reencontra e revê o longínquo Mário das cartas por meio da releitura de sua produção
poética, gesto capaz de dar sobrevida à memória:
…ao lado dos motivos grandes de satisfação poética, a mim oferecidos por seu livro, motivo de pura
voluptuosidade de espírito, houve um que me tocou mais de perto, foi o de reencontrar nele o
Mário dos anos 1920-30, o das cartas torrenciais, dos conselhos, das advertências sábias e
afetuosas, indivíduo que tive a sorte de achar em momento de angustiosa procura e formação
intelectual. Ele está inteiro nas poesias. E como permaneceu grande depois desse tempo todo! Sei
que compreenderá a minha emoção encontrando esse velho companheiro.7
A desilusão de Mário diante do movimento modernista é ainda motivo para
Drummond perceber o grau de distanciamento entre o atual e o antigo companheiro, o
qual não mais se comportava como bravo defensor de uma determinada causa literária
e nacional. A desilusão demonstrada pelo intelectual que havia, no passado, se
notabilizado como um dos responsáveis pela revolução da historiografia literária
brasileira não representava, para Drummond, apenas o acerto de contas de Mário com
sua geração, mas também o fim do sonho moderno entre amigos. O bilhete endereçado a
Mário pelo poeta, após receber o texto da conferência proferida no Itamaraty em 1942,
sintetiza todo o desencanto do intelectual ao assumir o mea-culpa: “Recebi o Movimento
modernista. Obrigado, mas que melancolia!.”8 O tempo das “grandes cartas paulistanas,
escritas com amor e verdade implacável”, já se impõe como marca do entusiasmo que os
uniu e que muito concorreu para a legitimação do programa moderno de criação da
literatura nacional. A formação literária e profissional de Drummond, adquirida em
parte com a ajuda do amigo paulista, se encontrava, no momento, em situação
privilegiada, pelo reconhecimento público de sua obra. O balanço existencial será
tributário da lição de poesia legada pelo amigo, consequência inevitável no destino de
sua obra: “Eu era então um sujeito muito desgraçado, pelo menos me supunha tal, mas
agora reconheço que tudo foi ótimo e valeu a pena. E em grande parte valeu por causa
de você.”9
Carlos & Mário, além de ser um dos documentos e registros mais valiosos para a
compreensão do programa modernista no Brasil, coloca à disposição do leitor um livro-
objeto de luxo, contendo grande parte da vida passada a limpo de uma geração literária
do início do século 20. As notas explicativas revelam-se de grande utilidade para a
pesquisa, demonstrando fidelidade na recomposição dos fatos, cuidado presente tanto
no trabalho anteriormente realizado por Drummond na edição das cartas de Mário,
quanto na editoração das cartas de Drummond por Silviano Santiago. As reproduções
das imagens de esquinas, de cidades históricas de Minas, de fragmentos de cartas
manuscritas, de fotos dos protagonistas e companheiros da época se mesclam às
primeiras edições de livros, periódicos e pinturas de artistas. O projeto gráfico, da
autoria de Victor Burton, transforma a edição das cartas num álbum modernista, misto
de imagem e texto, a ser folheado e lido com certo toque de nostalgia. Mas os resíduos
de uma modernidade em ebulição, de uma vida literária construída através de
encontros e sonhos de mudança se perpetuam e se revitalizam neste desenho composto
pelas cartas e suas notáveis personagens.
(Artigo publicado na Revista Margens/Márgenes, Belo Horizonte, UFMG, p. 84-85, 1 jul. 2003.)
Bibliografia
BATAILLE, Georges. A noção de despesa. In: ____. A parte maldita. Rio de Janeiro: Imago,
1975. p. 27-45.
SANTIAGO, Silviano; FROTA, Lélia Coelho (Org.). Carlos & Mário. Rio de Janeiro: Bem-te-
vi, 2002.
“Márioswald” pós-moderno

[Ficha 18]
Escutando distraído o rádio, de repente sou tomado pela mais vasta das emoções. Avassaladora.
Descobri a pólvora. Inventada por Herivelto Martins e Grande Otelo. A pólvora tem rótulo, versos e
notável conteúdo lírico. Chama-se “Praça Onze”. “Vão acabar com a Praça Onze”, diz o verso que me
nocateou de vez, levando-me à lona. Meio grogue, levantei, dei dois passos, cumprimentei o
vencedor e disse de alto e bom som: Vamos acabar com o Modernismo. Vou acabar com o
Modernismo, ecoei, enquanto tomava o café da manhã.
Silviano Santiago
A literatura se alimenta da tradição cultural, seja para legitimá-la ou contrariá-la.
Silviano Santiago, escritor e ensaísta, se comporta diante dessa tradição de modo
paradoxal, por entender que só o gesto de traição/fidelidade quanto aos modelos
literários instaura a descontínua linhagem da literatura. A relação do escritor com o
Modernismo, tendo Mário e Oswald de Andrade como protagonistas, permite revisar
conceitos da crítica literária tradicional, como os de influência, herança, filiação,
propriedade autoral, em sintonia com os critérios de semelhança e continuidade,
diferença e repetição, sujeição e dívida, modelo e cópia. Revisitar a tradição moderna
latino-americana é uma das metas buscadas pela sua obra, no sentido de processar
desdobramentos conceituais e apontar limites e rasuras teóricas nos textos em diálogo.
No fragmento em epígrafe, retirado do conto “Caíram as fichas”,1 o escritor se mascara
em narrador ao se apropriar da voz do outro para expressar pontos de vista que
contrariam ou reiteram os seus, articulação enunciativa pautada pelo deslocamento e
pelo desvio. Narra, através de recurso ficcional – as fichas de trabalho –, o conflito vivido
por Mário, quando preparava a conferência proferida no Itamaraty, em 1942, durante a
comemoração dos 20 anos de Modernismo. Ao tomar para si fragmentos de cartas do
escritor aos amigos, Silviano constrói um dos perfis de Mário, captado no momento de
grande desencanto com os rumos do país e com sua contraditória adesão ao programa
cultural do governo Vargas.
A crítica ao Modernismo já estava sendo feita desde os anos de 1930, referência
encontrada em Silviano no artigo “Fechado para balanço”, onde se afirma que a
contestação tinha por base o Rio de Janeiro e o movimento literário que ali se
desenvolvia. Nova época se descortinava para os colaboradores da revista Lanterna
Verde, destacando-se, dentre eles, Tristão de Ataíde, Octávio de Faria e Jorge Amado.
Partidários de ideologias diferentes, esses intelectuais se uniam contra o liberalismo
clássico e o niilismo de 1922, em defesa de um período esperançoso para a cultura,
constituindo uma força política que reunia catolicismo com integralismo e comunismo
com stalinismo.2
A opção por se apropriar da experiência alheia para falar de si é um dos recursos
usados por Silviano para apagar a assinatura autoral, o que confere ao seu texto alto
grau de ficção e tendência a embaralhar afirmações, inseridas tanto no texto-modelo
quanto na cópia. Marcada pela ambiguidade, a escrita se inscreve no registro factual e
no fabular, no autobiográfico e no biográfico, estratégia escolhida na composição de
perfis identitários. A contaminação de vozes narrativas impede associações que levem à
indistinção entre narrador e personagem, convidando, antes, ao deslocamento entre
eles. A autocrítica do movimento realizada pela personagem Mário é motivada pela
necessidade modernizadora do presente em acabar com a “Praça Onze”, reduto do
samba e da concentração popular, da mesma forma que o elogio à modernização
operada pelos modernistas em nada contribuiu para o “amilhoramento (sic) político-
social do homem”. Mas o que o narrador insinua é justamente a coincidência entre o
esvaziamento das manifestações populares – o início da modernização política com o
crescimento e controle das massas pelo Estado – e a feição elitista assumida pelo
movimento, em defasagem com o desejo popular.
Por intermédio da canção popular, do apelo emocional que atinge o ouvinte, Mário
encontra o fio da meada e a mensagem a ser legada à jovem geração: a desconfiança em
relação ao passado. Se na “Praça Onze” lamenta-se o fim de uma época e os efeitos da
modernização urbana para a marginalização da cultura – a construção da avenida
Presidente Vargas –, no texto de 1942 são apontados os equívocos do movimento, ao
repetir o gesto destruidor do ensaio “Mestres do passado”, quando a poética inovadora
exigia a ruptura com a poesia parnasiana.3 O deslocamento do tema sério da conferência
para o âmbito lúdico e sensorial da música popular se processa de modo a ressaltar o
valor da sensibilidade e do inesperado na composição de saberes. Por um processo de
montagem, Silviano retira a passagem da canção contida na carta de Mário a Moacir
Werneck de Castro e a enxerta no meio das fichas de trabalho, produzindo o efeito
irônico e a condensação da dor com a alegria. Dramatiza ainda o momento de satisfação
do escritor ao criar a analogia aqui explicitada como desforra pelo mal-estar vivido
durante os anos passados no Rio. Ao evocar, através de Mário de Andrade, a sabença
popular como via necessária para a construção de saberes considerados eruditos,
Silviano reúne a experiência de Mário com a sua concepção de literatura. Se a negra que
dançava na avenida durante o carnaval passado no Rio, em 1923, ensinou a Mário o que
é a felicidade, a canção ouvida no rádio, em 1942, lhe permite “descobrir a pólvora”, ter
o insight sobre o tema da conferência. É no “sentimento religioso da vida”, no
aprendizado de emoções motivadas pela experiência e não apenas pela inteligência e
pela erudição que reside uma das lições de Mário para a obra de Silviano.4 O apelo ao
popular como motivo de desvio do erudito é igualmente incorporado pelo escritor nas
suas considerações sobre a cultura de massa, um dos desdobramentos atuais do sentido
de popular.
Mas é sobre a escrita bem-humorada, substituta da “ironia corrosiva”, que o escritor
se apoia para criar o perfil de Mário, quando este encontra a saída para a conferência.
Na desconstrução do conceito clássico de felicidade, o escritor a associa à dor, revelando
a proximidade com a lição dionisíaca e nietzschiana: “A própria dor é uma felicidade.”5
Em “Caíram as fichas”, o sofrimento e o conflito vividos pelo modernista ao fazer o
balanço do movimento recebe tratamento ficcional resgatando-se o bom humor
expositivo, a transfiguração do sentimento em atividade criadora. A recuperação da
antiga imaginação poética da mocidade – a vontade “que transformava a dor em luz que
os faróis projetavam para iluminar a estrada” – se dá pela rememoração causada pela
música, revertendo na revitalização do corpo atormentado pelo reumatismo, pelos
movimentos tolhidos e pela fragilidade de um andar de chinelos de velho:
E ontem, eu que me queixava do andar de chinelos da minha imaginação crítica. Guardei-os no
armário. Tranquei-os. Calcei meias e chuteiras de jogador de futebol. Peguei a bola no fundo do baú
da memória e estou disposto a entrar em campo minado, chutando para todos os lados, que nem
uma metralhadora giratória. Cuidem-se das canelas, quarentões – rapazes no passado e figurões do
presente.6
Ainda que Mário tenha modestamente se esquivado de deixar herança literária para a
nova geração, é com base no corte de uma sequência evolutiva que se legitima a
linhagem: descontínua, fragmentária e paradoxal. Na vasta correspondência trocada
com os amigos, o modernista distribuiu lições e lições de poesia e vida, sem ter a
intenção de exercer papel catalisador e autoritário frente aos amigos. Alguns títulos dos
volumes de correspondência confirmam, contudo, o seu lado professoral, como A lição
do amigo, A lição do guru, reafirmando ser notório o seu poder de formar jovens
escritores. A conferência de 1942 desfaz, contudo, o mito do Modernismo como
movimento imune a críticas e instaura a necessidade de se romper com a ideia de
passado como herança recebida de olhos fechados.
Como ensaísta, a posição de Silviano no debate literário e cultural se manifesta de
forma desconstrutora e distanciada frente aos objetos de análise, reiterando opiniões já
registradas na ficção. O ensaio se desvincula do estudo acadêmico, por adquirir
liberdade criativa e optar por uma dicção mais dramatizada e em diálogo com o leitor.
Distingue-se da ficção, por ainda respeitar protocolos e pactos da escrita ensaística,
embora se perceba de que se trata de um discurso intervalar, híbrido e em simetria com
o universo fabular do escritor. A reflexão sobre manifestações culturais do presente ou
do passado requer a escolha de uma estratégia comparativa capaz de problematizar
certezas e apontar contradições. Leituras bem-comportadas tendem a repetir o que o
conceito de tradição guarda de mais conservador e intocável, como muito bem assinala
Mário de Andrade. Leituras desconstrutoras têm o mérito de deslocar saberes
consolidados, de se entregar à prática do jogo ambivalente dos conceitos e de optar pelo
excesso produzido pelo olhar suplementar do ficcionista ou do ensaísta.
Essa leitura exercitada por Silviano ao longo de sua trajetória intelectual é tributária
da teoria da desconstrução de Jacques Derrida, que consiste no duplo gesto de
denunciar, em determinado texto, tanto o que ele diz, assim como o que, sob o olhar do
presente, foi dissimulado e recalcado. Transgredir é o gesto herdado por excelência,
invenção, o esforço do leitor na criação do texto que desconfia das origens e acredita na
repetição como sinal de diferença e resistência. Cabe ao leitor de cada época reinventar
tradições, romper com a cômoda atitude do senso comum, reprodutora fiel do discurso
alheio.
Privilegia-se a descrição da obra em perspectiva, no lugar da análise do quadro, do
texto isolado, considerando que toda obra se inscreve a partir de determinados modelos
que ampliam os espaços particulares em que foi gerada. Nenhum texto se impõe como
produto singular e autônomo por manter compromissos com outros que lhe serviram
de suporte e com os futuros leitores. Desses lugares de enunciação, canônicos ou não, é
de onde parte Silviano no seu trabalho de desconstrução, por meio da utilização do
conceito de “entre-lugar”7 segundo o qual “o lugar de observação, de análise, de
interpretação não é nem cá nem lá, é um determinado ‘entre’ que tem que ser inventado
pelo leitor”.8 A criação desse espaço teórico relacional se aproxima da dobra leibniziana,
desprovida de avesso e direito, de interior e de exterior, tendo o deslocamento como
movimento instaurador da categoria nômade da escrita. A definição do conceito de
“entre-lugar” se alimenta ainda da lição de Borges, legítimo representante de um
escritor das margens. Ao adotar esse espaço intermediário de reflexão, Silviano descarta
“o lugar-comum dos nacionalismos brabos” e o “lugar-fetiche do aristocrata saber
europeu”. Desconsidera ainda o rancor próprio da teoria marxista da dependência, por
meio da qual se evidencia o descompasso temporal e a consciência trágica do atraso dos
países periféricos em relação à cultura metropolitana.9
A posição de Silviano diante da estética modernista brasileira se caracteriza também
por essa leitura intervalar, perspectiva analítica voltada para o balanço do movimento
de modo a respeitar o que ainda possui rendimento para a compreensão do momento
presente, ou o que não mais se sustenta em termos literários e teóricos. Sem apelar para
critérios binários, pautados pela exclusão de termos em favor de outros, o ensaísta
assinala, em artigo referente às comemorações dos 60 anos do Modernismo, a
necessidade de realizar o balanço do movimento de forma a não só legitimar conquistas,
mas apontar equívocos, fechar o círculo e cortar o cordão umbilical com o passado.10
O que sustenta essa avaliação é a perspectiva do presente, estratégia capaz de
entender o passado por meio da lógica do suplemento, ou seja, o “acrescentar algo ao
que já é um todo”. Não se trata de considerar o texto anterior como incompleto e tentar
complementá-lo, um exercício repetitivo e parasitário, mas de partir de situações
consolidadas a fim de gerar formas transgressoras. Nesse sentido, as personagens que
compõem o quadro do Modernismo brasileiro – Mário e Oswald de Andrade, Murilo
Mendes, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, entre outros – não se
apresentam para o ensaísta de modo intocável e inseridos tranquilamente nesse cânone.
Recebem tratamento crítico sem a adoção de um raciocínio binário, de princípios
excludentes, mas são interpretados segundo a lógica do diálogo, do contraste e do
paradoxo. Procede-se ao descentramento da estética modernista, confrontada à dos
autores pré-modernistas, como Euclides da Cunha ou Lima Barreto, cuja obra rompe
com os princípios modernizadores e os ideais de progresso. Rever o que foi recalcado
pela crítica ou o que sofreu o processo de exclusão por força de critérios de
universalização do cânone oficial é uma das propostas acrescidas à leitura
desconstrutora do Modernismo realizada por Silviano: “O que se pode aprender nos
textos de Lima Barreto e Euclides da Cunha, que nos deixam para fora dos padrões
estéticos e ideológicos estabelecidos pela estética modernista?”11
O argumento usado para a leitura do balanço modernista se concentra nos modelos
universais de análise, instaurados na década de 1950 pela publicação de obras de
história literária, como Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, A
literatura no Brasil, coordenada por Afrânio Coutinho e História concisa da literatura
brasileira, de Alfredo Bosi, responsáveis pela institucionalização e transformação do
cânone estético do ideário modernista. Esses modelos ou são fielmente fortalecidos pela
vertente crítica ligada à Universidade de São Paulo, voltada para a consolidação do
cânone modernista, ou são questionados pela nova geração. A mudança desse olhar
crítico é tributária da posição de Silviano e reelaborada por seus seguidores,
concorrendo para a redução de uma visão única assumida pela geração formada na USP.
Em razão de transformações culturais e políticas, as demais vertentes se desvinculam de
interpretações associadas ao modelo de fundamento econômico e de seus cânones,
partindo para uma análise do Modernismo segundo uma visão antropológica e
desconstrutora. Célia Pedrosa, em artigo intitulado “Crítica e grouxismo”, desenvolve
pontos essenciais da posição de Antonio Candido na crítica nacional e destaca a
diferença assumida por Silviano diante desse quadro, em que são deslocados pontos de
referência e apontados novos critérios de interpretação.12
É incisivo o apelo do crítico pela revisão desses modelos, tendo em vista as
transformações de ordem política e cultural causadas por eventos mundiais, além da
luta pelos direitos de cidadania das minorias e organismos afins. Nesse sentido, os
paradigmas da modernidade serão revisitados pela crítica contemporânea, com o
objetivo de alargar o horizonte interpretativo, não se restringindo apenas à abordagem
literária, mas se impondo como crítica cultural. Reside aí uma das maiores reações ao
aprisionamento teórico a que se submete grande parcela da crítica. Em artigo de 1995,
(“Atração do mundo”) Silviano sinaliza o impasse das culturas periféricas diante do
então nascente processo de globalização, alertando para a mudança de posicionamento
crítico e teórico, a revisão dos conceitos frente às transformações sofridas pela “rápida
globalização do capitalismo periférico”.13
Para além do moderno
Na elaboração de reflexões vinculadas à crítica cultural – atividade da qual é um dos
expoentes –, Silviano também se vale da leitura da tradição da cultura brasileira como
argumento capaz de concorrer com teorias estrangeiras. É por acreditar na construção
de um pensamento crítico no Brasil como produto da conjunção entre conceitos locais já
consolidados e aqueles resultantes dos processos de globalização, que se apropria do
cânone moderno, sem deixar de apontar diferenças causadas por imposições de ordem
espacial e temporal. O trabalho de valorização e divulgação dos “intérpretes do Brasil”
moderno não se restringe, para o crítico, na produção literária, mas se dirige também
para a produção ensaística existente nas demais áreas. Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado, entre outros, compõem, ao lado de Oswald e
Mário de Andrade, um dos desenhos possíveis da identidade cultural brasileira.14
Na posição de crítico cultural, irá proceder à análise da produção modernista,
segundo parâmetros que ultrapassam o valor imanente das obras, ao problematizar a
complexa relação mantida entre os escritores e o Estado Novo. A leitura, motivada pelo
polêmico livro de Sérgio Miceli, Intelectuais e classe dirigente no Brasil, contribui para a
revisão dos autores modernistas sob o prisma da vinculação obra/público,
intelectual/atuação política, debate também facilitado pelo clima de pré-abertura
política no Brasil. No entender de Silviano, o novo enfoque permitiu que se chegasse a
conclusões menos unilaterais sobre o movimento, apesar das limitações do enfoque
sociológico de Miceli, que desconsidera a produção literária dos escritores envolvidos.15
A desconstrução dos princípios universalistas erigidos pela civilização europeia, com
forte impacto nos estudos contemporâneos, é vista por Silviano como herança do
Modernismo, pois, embora se pensasse na consolidação de uma nacionalidade artística,
Mário e Oswald de Andrade lutaram pelo reconhecimento da civilização indígena e pela
abertura a outras civilizações. Na percepção da América Latina, como cultura híbrida,
isenta de radicalismos relativos aos sentidos de pureza e unidade, e, por essa razão,
capaz de transgredir modelos e inventar respostas próprias, o ensaísta remete à lição de
Oswald sobre o tema, introduzindo-o como um dos seus precursores teóricos no artigo
“O entre-lugar do discurso latino-americano”. O argumento encontrado é a mistura de
raças, a “mulatização”, que, comparado às novas formas do multiculturalismo, não se
vincularia à posição defendida por Gilberto Freyre: “A Alemanha racista, purista e
recordista precisa ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado
do Peru e do México, pelo africano do Sudão. E precisa ser misturada de uma vez para
sempre. Precisa ser desfeita no melting-pot do futuro. Precisa mulatizar-se.”16
Mário de Andrade fornece também ingredientes para o sustento do pensamento
multicultural contemporâneo, ao ser citado em ensaio dedicado à tolerância racial em
Oswald de Andrade. Neste texto, salienta a lucidez do escritor paulista que, em 1924,
ainda que defendesse o nacionalismo como primeira preocupação, se abre para a
compreensão da existência de várias etnias. O emprego do plural para o termo
civilização serve como abertura para a multiplicidade cultural e funciona como previsão
para o debate atual do tema: “Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas
nossas casas de Belo Horizonte e São Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização.
Há civilizações.”17
O multiculturalismo dos dias atuais recebe do crítico (em “O cosmopolitismo do
pobre”) tratamento diferenciado daquele anunciado na obra de Gilberto Freyre, por este
se associar à fórmula do Estado-nação. Não resta dúvida de que se apoia na lição legada
pelos modernistas para “ir mais além”, com o cuidado de não reproduzir noções criadas
em tempo diferente e segundo intenções que se distanciam das atuais. Nesse sentido,
torna-se evidente o comportamento analítico de Silviano diante do texto dos
modernistas, ao acatar e ao mesmo tempo avançar na reformulação do nosso repertório
teórico e cultural. No ensaio “Atração do mundo”, essa contribuição é ressaltada:
Com olhos livres, o modernista rechaça a idealização e o recalque do passado nacional, acima
referidos, para adotar como estratégia estética e economia política a inversão dos valores
hierárquicos estabelecidos pelo cânone eurocêntrico. Essa estratégia e economia de pensamento,
necessariamente periféricas, ambivalentes e precárias, tanto aponta para o resgate da
multiplicidade étnica e cultural da formação nacional quanto para o vínculo que esta mantém com o
pensamento universal não eurocêntrico.18
A convivência sistemática do escritor com o Modernismo, além de ser distinta da
vertente canonizadora de grande parte da crítica, contribui tanto para o aproveitamento
de conceitos operatórios fornecidos pela obra de Mário e de Oswald de Andrade quanto
para o exercício da escrita ficcional. Sem se entregar a critérios binários de exclusão de
um autor por outro, vale-se da posição de Mário sobre a questão da dependência
cultural, a “traição da memória”, assim como do conceito de antropofagia de Oswald. Em
artigo de 1981, “Apesar de dependente, universal”, amplia o conceito de “entre-lugar”
com a apropriação das teorias modernistas, uma vez que estas iniciaram o diálogo
transcultural, ao transformarem o atraso e o subdesenvolvimento das nações periféricas
em resposta eufórica e positiva às questões da dependência. Considera ainda o
concretismo como o terceiro antídoto proposto para se repensar a cultura nacional,
segundo critérios que reforçam o conceito de defasagem temporal entre o produto da
cultura dominante e a da dominada, resultado do descompasso entre modernidade e
modernização.19 Dos textos de Mário de Andrade, Silviano irá se valer na sua totalidade,
mas de forma mais rentável no que se refere à quebra de barreiras entre a cultura
erudita e popular, aos temas referentes à criação literária, à relação entre arte e vida, à
linhagem fraterna como substituição da paterna e ao papel do intelectual moderno.
O ensaio de 1985, “A permanência do discurso da tradição no Modernismo”
representa, na crítica brasileira, uma das reflexões mais agudas sobre a poética
modernista, à luz de uma leitura pós-moderna. Considera que na tradição da própria
crítica foi prioritário o endosso da estética da ruptura, responsável pela exclusão de
vários escritores que não seguiam esses parâmetros, como Murilo Mendes, ou os textos
filosóficos de Oswald de Andrade. A defesa de poéticas vanguardistas pela crítica e pelos
escritores-críticos também motivou o estreitamento de padrões estéticos, a escolha de
determinados nomes para compor o cânone modernista, além do desprezo da produção
que não fosse literária, como a correspondência, memórias, ensaios e outros textos. A
abertura para o enfoque de feição cultural e política, ao colocar entre parêntese a
valorização do estético em si e do imanentismo textual, é motivada, na obra de Silviano,
pelo exercício da crítica memorialista e pela atenção voltada para a correspondência de
Mário de Andrade, assim como para a atenção dedicada à cultura de massa. Se, na
década de 1970, uma parcela da crítica ainda se pautava pelo endosso das estéticas da
ruptura, tendo a poética oswaldiana como emblema, na década de 1980, a obra de Mário
e o seu papel como intelectual são reconsiderados, pioneiramente por Silviano, como
assinala Italo Moriconi:
Nos anos 1980, a figura de Mário voltou a predominar como tópico de interesse não só dos estudos
literários, mas também da criação, através de montagens teatrais etc. O espírito tropicalista e o
realce da figura de Oswald entraram em declínio, embora os anos 80 e 90 tenham sido pródigos em
publicações dele e sobre ele, Oswald. Na PUC do Rio de Janeiro, Silviano Santiago passou a
desenvolver uma linha de pesquisas centrada em estudos da correspondência de Mário,
praticamente pondo em prática uma proposta que, como se vê, era de Candido.20
Mas a mudança que ocorre na crítica acadêmica na década de 1980, principalmente
relacionada à preferência dos autores modernistas, recebe do ensaísta autoanálise, por
ter também incorporado, nos anos de 1970, a vertente elitista da arte da qual Oswald de
Andrade foi um de seus expoentes (e que Mário já havia denunciado na conferência de
1942). Em “O teorema de Walnice e a sua recíproca”, reacende-se o debate sobre a
complexa relação entre escritor e Estado e entre obra literária e público leitor, com o
objetivo de, entre outras considerações, ponderar sobre arte e mercado. A conhecida
frase de Oswald, “a massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico”, é um dos
argumentos reveladores da atitude hierarquizante de Oswald e do Modernismo quanto
ao diálogo entre obra e público. Elitista, por deslocar a atenção para o público, na
confiança de que algum dia ele pudesse comer o biscoito fino, alcançando o valor e a
qualidade da verdadeira obra de arte. Não se cogitava ainda de repensar se a qualidade
e o hermetismo do texto poderiam ser revistos pelo escritor ou que a exigência de
aprimoramento por parte do público respondia, no meio literário, a um desejo que
reportava ao saber iluminista da classe letrada.
Nesse sentido, Silviano se distancia da premissa de Oswald, por acreditar que o
pensamento do modernista se definiria pela “estetização do popular”, cuja função seria
a de conservar o saber erudito. Não deixa ainda de reconhecer que, no ano de 1972, por
ocasião do cinquentenário da Semana de Arte Moderna, “reinstala-se o projeto
modernista” e “redefine-se a arte brasileira como arte elitista”, o que irá perpassar toda
a década.21
As aproximações entre Silviano e Oswald se verificam no âmbito literário, ao ser
incorporada a poética oswaldiana em várias obras. Os contos de O banquete (1970), de
temática antropofágica, se pautam pela revitalização da paródia oswaldiana e pela
exploração de ingredientes da cultura pop e tropicalista. O livro de poemas de 1978,
Crescendo durante a guerra numa província ultramarinha,22 se apropria dessa poética
pela utilização de colagens textuais, de ready-made linguísticos, numa clara alusão à
herança do modernista e ao momento político da década de 1940. A referência a esse
período contém tanto a relação das experiências familiares do jovem que crescia
durante a guerra, quanto ao momento presente da ditadura militar brasileira. Nessa
mesma linha de criação-apropriação de textos alheios, reescreve a crônica de Mário
sobre a viagem da caravana paulista a Minas, valendo-se, antropofagicamente, da dicção
oswaldiana, mas empregando o pastiche como recurso poético.23 Nesse poema,
intitulado “O dentro do dentro do dentro,24 por meio da montagem de citações,
reverencia ao mesmo tempo Oswald e Mário, transgredindo, de forma lúdica e alegre, os
textos originais. Como suplemento à viagem modernista, Silviano ressalta o que sobra
dessa poética, indo além da proposta, sem pensar em completá-la. O trabalho de
restauração do texto-modelo joga com o sentido de incompletude e de exposição das
várias vozes ali inscritas. Reveste-se em exercício poético que dialoga com o ensaio “A
permanência do discurso da tradição no Modernismo”, no sentido de presentificar os
ecos e ruínas do moderno e trazê-los à superfície da escrita contemporânea.
O poema reveste-se ainda da alegria modernista relativa à descoberta, à viagem ao
interior de Minas, colonial e barroca, através do gesto criativo e desconstrutor que
evidencia a natureza da leitura pós-moderna como um saber alegre: a “gaia ciência”
nietzschiana, via Jean-François Lyotard (“o saber alegre da pós-modernidade”) e a
poética moderna de Mário de Andrade (“a própria dor é uma felicidade”) se contrapõem
à leitura sociológica de Roberto Schwarz (“as ideias fora do lugar”), caracterizada pelo
sentimento de “mal-estar da dependência”, do descompasso temporal entre metrópole e
colônia.25
Com a abertura política e a proliferação de uma escrita autobiográfica dos exilados,
Silviano se concentra no estudo do Modernismo a partir da produção epistolar e dos
livros de memórias. Configura-se a aliança entre obra e autor, entre escrita e política, ao
ampliar o estatuto de autor para o de intelectual e revestir a escrita de distinto sentido
político daquele assumido pela obra dos ex-exilados. No cruzamento da experiência
ficcional com a ensaística, retoma a tradição da crítica biográfica e memorialista, no
momento em que escreve Em liberdade, diário fictício do Graciliano Ramos recém-saído
da prisão.26
Se no artigo “Fechado para balanço” Silviano registra o ano de 1936 como a
proclamação da morte do Modernismo de 1922, corporificada na crítica feita pelos
colaboradores da revista Verde, a data remete tanto para o nascimento do escritor
quanto para a prisão de Graciliano pela repressão do governo Vargas. A utilização do
artifício autobiográfico cumpre função metafórica, ao serem aproximadas referências
documentais que respondem tanto pela ambiguidade e transfiguração do ficcional,
quanto pela contextualização da escrita de Silviano como intelectual. Procede-se à dupla
releitura do Modernismo seja através da figura de Graciliano, seja através de Em
liberdade, uma das primeiras manifestações da literatura pós-moderna entre nós.
Diferentes procedimentos narrativos se constroem nesta obra – a estilização e o
pastiche, gestos paradoxais de celebração e distanciamento quanto ao modelo – por
meio dos quais se afasta do artifício parodístico exercido pelos modernistas. Embora se
atualize textualmente o diálogo transgressor com a tradição literária brasileira, o livro
rompe com o projeto radical de ruptura dos modelos fundadores.
No âmbito político-existencial, Em liberdade nasce simbolicamente do útero cerebral
de Graciliano/Silviano, criação especular que evoca o processo de simbiose e
afastamento do narrador, na escolha da difícil tarefa de falar de si através do outro, com
vistas a refletir sobre um dos perfis do intelectual brasileiro. Ao invés de se valer da
experiência carcerária do passado, produtora de discursos do ressentimento, o
intelectual deveria se concentrar no compromisso livre e positivo com o presente. Nas
palavras de Wander Melo Miranda, em Corpos escritos, ensaio pioneiro sobre a escrita
memorialista de Silviano, a obra é a tradução de Memórias do cárcere, pastiche e
reverência ao texto de Graciliano, traço de uma leitura que atualiza o conceito de
suplemento derridiano: “A ficção de Silviano, ao propor-se como ‘acréscimo’ ou
suplemento às memórias de Graciliano – no sentido de multiplicar seus significantes e
não de reduplicá-los –, não visa, à semelhança do texto primeiro, a atingir um
significado último ou definitivo.”27
Lições de Sabença
Como ativista no campo da construção de uma nova sociedade, Mário de Andrade abdica
passageiramente da cultura de elite e se entrega ao exercício da solidariedade. (…) A forma mais
absoluta do conhecimento pela solidariedade do outro étnico e cultural, pela solidariedade, é a
conversa, cujo exercício extrapola agora o campo limitado da correspondência literária e do
privado, para ter a abrangência de uma indistinção fraterna e pública que se confunde com o amor
à humanidade.
Silviano Santiago
Rasurar a primeira pessoa, escolhendo a terceira como álibi e mediação, se esquivar
do sentido pleno de identidade autoral ou existencial compõem o fazer literário de
Silviano, o traçado de um estilo errante e travestido, no qual se elege o outro como
parceiro fiel/infiel de seus escritos. No caminho tortuoso da autoficção – a fabulação
autobiográfica – o escritor embaralha as pessoas do discurso, finge falar do outro para
falar de si, ou mesmo que se coloque especularmente no texto, se comporta de modo
distanciado, irônico e oblíquo. Como escritor-crítico, um dos temas explorados na sua
obra incide na elaboração metafórica do conceito de criação literária, desdobrado em
vários livros e a partir de afirmações emitidas por Mário em cartas e depoimentos.
Inúmeras são as cenas em que o tema é dramatizado, comportando associações com
filósofos como Nietzsche, Georges Bataille e Jacques Derrida para o redimensionamento
dos empréstimos. A atuação diferenciada da dança da negra eleita por Mário no
“Carnaval carioca” e em carta a Drummond, funciona como leitmotiv inscrito em alguns
de seus textos e se associa à noção de arte como excesso, dispêndio improdutivo e
energia vital desprovida de utilidade imediata.
A entrega religiosa à vida se confunde com charitas, o amor à humanidade, o dom que
não envolve troca nem retorno, conforme assinala Mário em carta a Oneyda Alvarenga.
Considerada no sentido mais abrangente, a doação significa entregar-se com paixão em
tudo o que se faz, desdobrando-se o propósito em gesto artístico e prática existencial.
Em carta de 1944 dirigida a Drummond, o autor se diz insatisfeito com a decisão dos
médicos em não operá-lo, cautela que não combina com seu estilo de vida, dotado de
mais propensão para o gasto do que para a usura. O excesso, como assim se refere
Silviano na apresentação da correspondência de Mário e Drummond, à luz da teorização
de Bataille, seria o traço peculiar do escritor.
Essa atitude remete à concepção de arte como energia que excede como transgressão
ao interdito e que foge às regras impostas pela racionalidade, dando origem à festa e ao
ritual dionisíaco. A noção de dispêndio improdutivo, de desperdício, está relacionada às
manifestações que contêm fim em si mesmo, como o luxo, as guerras, os cultos, as artes,
distinguindo-se daquelas que se prestam a reproduzir e a conservar a vida, a acumular
bens e a se guiar pela necessidade e não pelo prazer.28 No entender do filósofo, é na
transgressão e na violência que o homem potencialmente se revela. Essa atitude,
denominada soberana, refere-se a situações em que a submissão ao sacrifício se
apresenta de modo excessivo, comportando o sujeito de forma destemida diante da
iminência da morte. O êxtase erótico ou sacrificial é uma experiência que nasce no
sujeito por obra da arte, “mas que o consome em seu movimento, através de um
processo de pura perda do sujeito”.29 É ainda contra o clássico pensamento econômico
do sistema capitalista, pela ênfase na necessidade de utilizar os recursos de maneira
eficiente que Bataille recorre ao antropólogo Marcel Mauss e se vale de sua teoria sobre
o dom. Essa teoria surge como alternativa para o cálculo racionalista da troca
capitalista. A influência exercida no pensamento de Bataille o leva a enfatizar o
irracional no lugar do racional, o erótico contra a moral burguesa, a celebração do
excesso em oposição à economia capitalista e a transgressão contra a conformidade.
Mary Douglas tece também considerações sobre o ensaio de Mauss, acrescentando que a
noção de dom remete à teoria política contemporânea, por ela denominada de “teoria da
solidariedade social”.30
Como motivo recorrente nos seus escritos, Silviano recria a cena da performance da
negra fisgada por Mário no “Carnaval carioca” nos romances Stella Manhattan e Viagem
ao México, imprimindo-lhe significados conforme o contexto em que se encontra. É
importante ressaltar que a apropriação feita por Silviano da lição de solidariedade
representada pelos escritos de Mário recupera o conceito de doação como força ativa do
projeto existencial. Na substituição do sentido cristão inerente ao termo charitas pela
teoria pagã do dispêndio, da alteridade e da falta como categorias formadoras do
sujeito, Silviano entende, com Bataille, ser o gesto criativo composto paradoxalmente de
ganho e perda. No ensaio “Atração do mundo” e na “Apresentação” ao volume de
correspondência entre Mário e Drummond, Silviano retoma a cena, desta vez para
destacar o papel de Mário como intelectual moderno, pelo “exercício da solidariedade”
conseguido através da conversa, do encontro com o outro étnico e cultural, o que irá
concorrer para a legitimação do sentimento de “amor à humanidade”. O artista
brasileiro deveria se comportar, segundo Mário, como ator e não espectador na vida,
não se dividindo entre o intelecto e o sentimento, e procurando aprimorar cada vez
mais o conhecimento que se produz na rua, no meio de gente sem instrução:
O literato 24 horas de plantão cede lugar ao etnólogo amador: o coração do homem não bate lá na
biblioteca, bate cá no espetáculo das ruas. “Puxar conversa” não é diferente de trocar cartas. Puxar
conversa na rua é o modo de se aproximar agressiva e despudoradamente, sensual e
fraternalmente, do outro, para que o outro, ao passar de objeto a sujeito, transforme o sujeito que
puxara a conversa em objeto.31
O narrador de Stella Manhattan estabelece com a cena dos músicos no metrô
parisiense o elo entre a performance da negra no “Carnaval carioca”, assumindo a dívida
teórica para com Bataille e retomando o conceito de “fazer milhor” de Mário. O melhor
dos músicos, um mulato “retraído e gordo” no meio de brancos esfuziantes, “era todo
equilíbrio” e “explodia nele um acúmulo de energia que fugia da norma que satisfaz a
necessidade”. Percebe-se, na passagem, a metáfora do desperdício, retirada da cena
doméstica de encher o leite numa xícara e deixá-lo transbordar até ensopar toda a
toalha, assim como a interpretação musical do mulato no metrô. Introduz, com a ajuda
de fragmentos de Bataille, a definição sobre a criação artística, ao considerar que “arte
não é e não pode ser norma, é energia desperdiçada mesmo”.32 A recriação do cenário
musical no metrô parisiense, tendo como destaque a interpretação do mulato,
redimensiona o significado da cena original, ao ressaltar a presença diferenciada da
cultura periférica na metrópole. O excesso que a distingue diz respeito tanto à sua
exclusão social como imigrante na comunidade, quanto à criatividade e energia
existencial que extrapolam a ordem e o bem-estar público.
Viagem ao México narra, no Capítulo VII, sobre Cuba, situação oposta à cena original e
à de Stella Manhattan, ao ser contemplado um grupo musical, apático e sem energia,
comportando-se como se estivesse realizando um rito operário. A falta de engajamento
dos intérpretes os coloca na situação de espectador e não de ator do espetáculo
promovido e dirigido pelo governo autoritário. A recorrência da cena funciona como
ilustração do cenário do regime socialista, de um espetáculo que nada motiva a quem o
observa. Destituída de vitalidade e de entusiasmo, a execução musical obedece ao ritual
de trabalho e se apaga enquanto manifestação artística coletiva. O povo se contenta em
ser o espectador de uma festa que não lhe reserva mais o direito de exercer o papel de
ator na sociedade:
A maioria dos cubanos tira a graça e a alegria da vida sendo espectador. Não consegue mais
participar como ator dos eventos públicos e dos espetáculos, das coisas do dia a dia. Foi um direito
que lhes foi pouco a pouco dado e pouco a pouco roubado, talvez pela excessiva especialização
profissional, talvez pela rotina do trabalho setorizado, talvez…33
Tio Mário
Os seres sem vontade como Bartleby ou Billy Bud aniquilam, por meio de um excesso simétrico, a
figura da obediência filial. Eles a petrificam identificando-a a uma não preferência radical. A
tragédia dos originais libera assim, em uma dialética bem hegeliana e em uma dramaturgia
wagneriana, a possibilidade do homem sem qualidades. Ao destruir esse retrato do pai que é o
centro do sistema representativo, ela abre o porvir de uma humanidade fraternal.
Jacques Rancière
Mário entende ser a criação artística semelhante ao orgasmo e não ao parto, como
assim reformularam Rilke e Nietzsche, por simbolizar o estado de prazer que arrebata o
criador, que se encarregará de retomar o trabalho e revisar o que fora escrito de forma
intempestiva.34 O culto da preguiça, presente na economia textual do escritor, se estende
ao gesto de meditação do intelecto, modos de filosofar e de exercitar o saber paciente,
lento e desprovido de utilidade imediata. A consideração da preguiça como valor e a sua
transformação em metáfora da criação e em ganho cultural teve em Mário um de seus
maiores defensores, ao se referir aos países periféricos, marcados por males de origem
e pela perda natural dos bens. Oswald de Andrade, nos manifestos “Pau-Brasil e
“Antropófago”, este mais tarde retomado em Crise da filosofia messiânica, ao eleger a
preguiça “mãe da fantasia, da invenção e do amor”, reacende o diálogo intercultural,
abolindo traumas e ressentimentos relativos à condição de culturas dependentes da
metropolitana. Contribui de forma efetiva para a configuração do desenho lúdico e
carnavalizado das manifestações culturais.35
O diálogo com Mário de Andrade permite a Silviano desenvolver conceitos que foram
se depurando ao longo de sua trajetória ficcional, fazendo do imaginário andradino um
dos textos-referência para a elucidação de sua escrita. Além da retomada das noções de
criação artística e de preguiça, o escritor escolhe a alegria como mote para a sua
concepção de literatura, recado positivo enviado aos leitores de hoje e de amanhã. Na
carta ficcional a ele endereçada, “Conversei ontem à tardinha com o nosso querido
Carlos”, publicada por ocasião do centenário de Mário de Andrade, discute-se sobre a
relação entre Drummond e o poeta paulista, entre a poética do sofrimento em Manuel
Bandeira, ocasião criada pelo narrador para a elucidação de seu labor literário. A tônica
da correspondência é o sentido do verso andradino – “a própria dor é uma felicidade” –
relido com a mediação do conceito de paradoxo em Deleuze e acrescido da inversão da
noção de criação artística como parto, de elaboração nietzschiana.
As personagens transitam no interior da carta de modo familiar, como pertencentes à
categoria de tios intelectuais do autor, tendo tio Mário como principal interlocutor.
Jacques, Giles, Alexandre Eulálio, Nietzsche compõem a estrutura familiar fraterna,
suplemento da figura do pai, submetido ao apagamento e ao silêncio. A comunidade
formada pelo gesto que transgride a genealogia paterna instaura o corte com a
procriação, com a concepção de arte que visa à conservação e à reprodução de linhagens
verticais de família. A amizade entre homens, a rede de empréstimos passada de tio
para sobrinho, inventa famílias literárias, cria laços de parentesco a partir de afinidades
eletivas e pela força da ficção. Em permanente conflito com seus pares, o diálogo entre
eles constitui o fazer e o desfazer de perfis identitários, pelo deslocamento aí
processado. Na cumplicidade fraterna não se aspira à obediência ou ao exemplo, mas à
convivência sempre marcada pela vontade de suplementar o outro. Tio Mário é a
personagem de Uma história de família, declaração efetuada pelo narrador da carta na
última versão impressa, confirmando o que fora sugerido na primeira versão. A escolha
do escritor como personagem não se vincula a semelhanças de ordem biográfica, mas se
presta a extrair da loucura da personagem da novela a lição de alegria transmitida pela
obra de Mário, conjugada à força vital que o sobrinho, moribundo, recebe do tio:
O narrador/personagem quer saber o que é a loucura (do tio e/ou a sua), o que é a alegria (ausência
de dor) diante da iminência da morte, e para isso busca o significado da imagem representada no
fotograma. Quer saber ainda por que esse rosto sorridente não coincide com a imagem de sofredor
que a família passa, ao manifestar a vontade de que morresse o mais depressa possível.36
O símbolo materno, ao contrário do paterno, é o protagonista da ficção de Silviano,
marcada pela sua perda e pelo “mistério da dor inútil”. Como contraponto à teoria da
criação como parto, regida por critérios próprios ao feminino – o dizer duplamente sim
à alegria e à dor –, a morte da mãe ao dar à luz ao filho se distancia também da metáfora
do orgasmo, defendida por Mário, e se inscreve como dor inútil: a mãe diz sim à vida do
filho e não à sua. Paradoxalmente, a “dor inútil” se aproxima da lição poética e vital de
Mário, do excesso atingido pelo êxtase criativo e sacrificial, da afirmação da morte como
contrapartida da vida. Para Silviano, é para entender o enigma da criação pela perda da
figura materna que se dedica à literatura, uma forma de suplementar o vazio da origem:
O enigma maior que tentei dramatizar nos meus livros é o mistério da dor inútil. A dor que advém
no momento em que a mulher grávida morre das “dores do parto”, para retomar a expressão de
Nietzsche, ou seja, no momento em que ela só pode dizer sim à vida através do filho que nasce.37
Em “Poder e alegria – a literatura brasileira pós-64 – reflexões”,38 ao proceder ao
balanço dessa época, Silviano se exclui da vertente pessimista de certa produção
artística brasileira e se declara adepto da escrita que, à maneira de Mário de Andrade e
Caetano Veloso, se impõe de modo afirmativo. O prazer e o sofrimento tornam-se faces
da mesma moeda, considerando ser o discurso literário o espaço por excelência da
ambiguidade e do paradoxo. O prazer do texto resulta da cristalização da dor,
transformada em positividade e alegria criadora, uma resposta bem-humorada que
transgride e liberta. No ensaio de 1996, “O tempo não para”, o crítico lembra que o
exemplo da obra/vida de Cazuza o coloca em lugar semelhante ao de Caetano e Mário,
pela lição de vida transmitida na iminência da morte. Lembra ter sido o grito público do
cantor na década de 1980 a continuidade dos discursos poéticos de Caetano em 1967,
com “Alegria, alegria”, e de Mário, nos anos 1920, com o verso “A própria dor é uma
felicidade”. Embora sejam distintos os momentos e as situações pessoais vividas por
eles, o tom dos discursos se iguala, pela transformação do sofrimento em força vital e
pela “capacidade que teria o jovem moderno, como um avestruz do asfalto, de digerir o
mal que lhe fere, saindo fortalecido da experiência”.39
Em entrevista concedida à revista Imagem, Silviano Santiago declara, de forma
eloquente, que o século 20 terminou “desastrosamente nos anos 30”. Para ele, a
imobilidade registrada dessa época até os dias de hoje, dominada pelos nacionalismos
econômicos, pela inutilidade da Segunda Grande Guerra e dos campos de concentração
nazistas, coincide com a década de seu nascimento, em 1936. Em razão dessa
coincidência temporal, o escritor procura, através de sua obra, interpretar “a inutilidade
da vida vivida por mim (e da vida vivida pela minha geração)”, reescrevendo o momento
de experiência limite dos escritores-personagens: o de Graciliano Ramos, preso em
1936, em Maceió, e o de Artaud, ao deixar a Europa em direção ao México. A experiência
alheia a ser narrada supre o vazio da experiência pessoal, permitindo o nascimento do
escritor pós-moderno a partir da morte do século moderno e do Modernismo em 1936.
A sobrevida do filho após a morte da mãe se vale da contingência de ter nascido da dor,
com a responsabilidade de transformar a perda em alegria criativa.
O conto “Hello, Dolly!”, concebido em forma de carta a Walter Benjamin, narra a
aflição da personagem em busca da identidade perdida, uma vez que se comemorava a
primeira clonagem animal, o início da reprodução técnica não apenas da obra de arte,
mas de seres. O texto remete, mais uma vez, para a coincidência irônica do nascimento
do autor, pois o ensaio de Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica” é de 1936. Fadado a repetir experiências do outro, a viver a ficção como
filtragem e suplemento de obras alheias, o escritor se inscreve no texto, na figura do
narrador, como produto clonado, exigindo carteira de identidade e a recuperação da
aura perdida. Rebela-se por se transformar em “antepassado e prole de si próprio”,
rompendo com a linhagem familiar tradicional e se perdendo no anonimato. O texto
dialoga também com o ensaio de 1986 “O narrador pós-moderno”, no qual se constata o
afastamento do narrador diante do material narrado, além de excluir o paternalismo
como conexão entre gerações. O narrador de “Hello, Dolly!”, ao contrário, se afasta da
concepção pós-moderna, exigindo identidade e aproximação com o objeto narrado.
Situa-se, portanto, entre o narrador benjaminiano – testemunha da própria experiência
– e o narrador pós-moderno: “A história não é mais vislumbrada como tecendo uma
continuidade entre a vivência do mais experiente e a do menos, visto que o
paternalismo é excluído como processo conectivo entre gerações.”40
De modo irônico, simula-se o nascimento do escritor Silviano Santiago, declarando-se
contra o seu destino vaticinado por Benjamin, no artigo de 1936, rejeitando sua
condição de clone e se colocando numa situação paradoxal, entre o moderno e o pós-
moderno:
Pergunto-lhe, meu caro Walter: Sou homem depois desse falimento? Não é a minha própria
identidade que está sendo manuseada por profissionais incompetentes? Será que outro que não eu
conseguirá me representar tão bem quanto eu me represento nas minhas crises e angústia, na
montanha-russa da minha depressão e nos meus piques de euforia? Espero uma resposta honesta
sua, e não me chame de retrógrado, por favor. Sou benjaminiano e pós-moderno, graças a Deus.41
(Ensaio publicado em: CUNHA, Eneida Leal (Org.). Leituras críticas de Silviano Santiago. Belo
Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Perseu Abramo, 2008. p. 23-50.)
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Carmen Miranda do kitsch ao cult

Durante o período da Política da Boa Vizinhança, programa instaurado pelo governo


americano para tornar próximas as relações com a América Latina, uma artista é
escolhida como símbolo do continente: Carmen Miranda. Entre 1939 e 1945, participou
de vários filmes de sucesso de Hollywood, assumindo o papel de “representante da
cultura musical-popular brasileira nos Estados Unidos”. Os interesses políticos se
sobrepunham aos culturais, transformando a artista no estereótipo da mulher latino-
americana, que se expressava musicalmente no ritmo de samba, rumba e bolero. A
construção estilizada de sua imagem guardava um pouco de cada lugar da América, o
que dificulta vê-la hoje como representante de uma “autêntica cultura brasileira”. Para
que a referida política lograsse êxito, deveria ser estimulada a comunicação entre os
dois continentes através do cinema e do rádio, veículos responsáveis pela divulgação de
um ideal de modernização a ser difundido nos países situados ao sul do Equador. Na
troca linguística e cultural, na mistura de samba, marchinha e rumba exportava-se uma
música de fácil aceitação e importavam-se americanismos de contraditória inserção na
sociedade brasileira da época, cujas consequências seriam de difícil previsão. O
cancioneiro popular refletia o clima de intercâmbio linguístico, apontando a
americanização dos costumes que se manifestava na aquisição de gadgets, na linguagem
sedutora inspirada pelas expressões inglesas referentes às noites passadas em night-
clubs e cassinos.
Noel Rosa, em 1933, compõe a música “Não tem tradução”, com o objetivo de ironizar
a presença de estrangeirismos no modo de vida nacional:
O cinema falado
É o grande culpado da transformação (…)
Tudo aquilo
Que o malandro pronuncia
Com voz macia
É brasileiro
Já passou do português
Amor lá no morro é amor pra chuchu.
E as rimas do samba não são I love you
E esse negócio de alô
Alô boy, Alô Johnny,
Só pode ser conversa de telefone.1
O distanciamento provocado quer pelo inglês, quer pela conversa mediatizada pelo
telefone era já o sintoma da estilização cultural, da falsificação da “voz macia” do
malandro pela língua mais sensual do estrangeiro. A relação amorosa entre a cultura
latino-americana e a do norte começa a tomar corpo, seja através da figura feminina
representativa da América Latina e construída pelo imaginário do período, seja pela
sedução armada pelo conquistador do norte no diálogo com a glamourosa e sexy mulher
tropical. Carmen Miranda ocupa o lugar simbólico desse diálogo, estampado pelos meios
de comunicação de massa, e contribui para a alegorização do território por meio da
expressão de uma imagem lúdica e liberada da mulher.
Com a mediação do discurso musical e artístico, o Brasil se incorporava, no entender
da política norte-americana, ao concerto das nações desenvolvidas e cosmopolitas, ao
mesmo tempo que, antropofagicamente, o ritmo do pandeiro minava o fox e o swing,
resultando no enriquecimento cultural de ambos os continentes. Mas a tão decantada
integração cultural, imposta pelo discurso político, é certo que não se resolveria com
facilidade. Tal situação se comprova pela presença dessa preocupação nas letras de
música da época, ora enaltecendo a força de Carmen Miranda, como em “Brasil
pandeiro”,2 de 1941, quando Assis Valente tenta recuperar a imagem “americanizada”
da cantora, ora na composição de Gordurinha, anos mais tarde, em 1958, no conhecido
“Chiclete com banana”,3 em que a resistência à americanização revelava-se mais
contundente.
No primeiro exemplo, celebra-se a imaginária integração entre os continentes, graças
à mediação do samba, veículo capaz de reunir a gente bronzeada da favela com os ioiôs
da Casa Branca. Os Estados Unidos eram vistos como o exportador oficial do samba
brasileiro para o mundo. A matéria-prima utilizada como exportação, conduzida pela
“Embaixatriz do Samba”, penetrava não só na classe média americana, mas entrava de
forma oficial na Casa Branca. Essa benção sacralizaria a Política da Boa Vizinhança, ao
reconhecer como internacional a música que nascia nos morros do Rio de Janeiro:
Chegou a hora dessa gente bronzeada
Mostrar seu valor
Eu fui à Penha, fui pedir à padroeira para me ajudar
Salve o morro do Vintém, Pindura-saia,
Eu quero ver
Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro
Para o mundo sambar.
O Tio Sam está querendo conhecer a
Nossa batucada
Anda dizendo que o molho da baiana
Melhorou seu prato
Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará
Na Casa Branca já dançou a batucada
De Ioiô e Iaiá.4
No segundo caso, em “Chiclete com banana”, exigiu-se a participação dos dois países,
pela leitura inicial das diferenças entre samba e rumba, entre os ritmos que
caracterizam cada região – menos a generalização da América Latina – para que a
mistura de Miami com Copacabana e do chiclete com banana gerasse o samba-rock.
Nessa convergência de discursos musicais, o interesse é de que se conservem as
particularidades, para que se obtenha o efeito de estranhamento. Conservam-se
também as relações binárias entre os símbolos, ou seja, o brasileiro, representado pela
fruta tropical, a banana, matéria-prima e riqueza natural de um país agrícola e em
processo de desenvolvimento, e o chiclete, produto resultante da industrialização e
índice do progresso norte-americano:
Eu só ponho bip-bop
No meu samba
Quando Tio Sam pegar no tamborim
Quando ele pegar no pandeiro
E no zabumba
Quando ele entender
Que o samba não é rumba
Aí eu vou misturar
Miami com Copacabana
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba vai ficar assim.5
Antonio Pedro Tota, no interessante livro O imperialismo sedutor, irá entender o
esforço de um país que se via impelido a participar da ordem política mundial com o
concurso da expressão musical, que o permitiria se inserir nessa ordem, mesmo que de
uma forma midiática e residual:
O Brasil era reconhecido em Carmen no plano político e no plano da cultura de massa. A presença
de um artista de sucesso, no sentido adorniano, legitimava nosso país, e esse, na letra do samba de
um dos nossos grandes compositores, era o único jeito de a gente bronzeada ter seu valor
reconhecido.6
É, portanto, por meio da utilização da figura feminina como signo de latino-
americanismo que se repete o estereótipo e a visão tradicionalista do latino-americano
como “pureza originária”, criando a cumplicidade entre o mito do “propriamente”
feminino e do “propriamente” latino-americano. No entender de Nelly Richard, no artigo
“Feminismo, experiência e representação”, antigos pares de oposição são reproduzidos,
tornando-os responsáveis pelo valor atribuído à identidade latino-americana inscrita no
âmbito da irracionalidade, do instintivo, do natural e do autêntico, em contraposição à
síntese racional da modernidade do Ocidente.7 A essa posição se acrescenta o emprego
da rede de oposições, com vistas a desconstruir o caráter naturalista e pouco
formalizado das proposições. A imagem utilizada recai no símbolo feminino, que,
associado ao discurso corporal e à sensibilidade, opõe-se ao discurso masculino, à
racionalidade, concentrado na cabeça, na parte superior do corpo.
Em virtude da Política da Boa Vizinhança, a imagem do norte começa a ser nuançada,
com as viagens de Rockefeller à América Latina, por meio das quais disseminava um
discurso calcado nas boas intenções dos amigos do norte. O encontro amoroso entre os
continentes era orquestrado por mitologias populares sabiamente empregadas, já que a
mídia se utilizava dessa estratégia para reforçar o encontro. Segundo Tota, Orson Welles
atua num programa de rádio com Carmen Miranda, em 1942, no qual ela o ensinava a
cantar e a dançar. A encenação da mulher seduzindo o homem-América revelava o
sistema de trocas subjacente ao código amoroso. A manipulação da máquina publicitária
concentrava-se na glamourização dos atores que divulgavam, pela mídia, a simulação de
um encontro erótico, prevalecendo a ideia de ser a América Latina a terra dos prazeres e
da liberação sexual.8 Carmen Miranda motiva ainda a imagem construída de América
Latina pela indústria cinematográfica americana por seu caráter totalizador, como se o
continente formasse um só bloco e se caracterizasse pela universalidade e unificação de
suas regiões. Dentre os produtos de publicidade e de consumo criados pela sociedade
americana, destaca-se uma boneca de papel, vendida como brinquedo de criança, cujo
objetivo consistia em vestir o modelo com roupas de todas as Américas. A boneca se
molda em traje de praia e as roupas a serem coladas remetem a dois filmes, estrelados
por Carmen Miranda, That night in Rio e Down Argentine way, ambos realizados na
década de 1940. A reprodução, em papel, da artista, e a prática lúdica de colar imagens
ao modelo sugerem a idéia de fabricação de uma mulher-continente para uso de
mercado e na exploração kitsch da figura como consumo de massa, esvaziando-se o
sentido original do modelo. O gesto simbólico de vestir o corpo de papel de Carmen
Miranda com indumentárias que denunciam mais semelhanças do que diferenças –
turbante, colares, estilo de saia, balangandãs, pulseiras –, embora visasse à
multiplicidade, funciona como perverso brinquedo infantil, conduzido à exaustão pelo
jogo aleatório de vestir/desnudar a boneca.
A montagem lúdica de um corpo exposto como traço natural da identidade revela,
contudo, o avesso da proposta política, voltada para a unificação e a integração latino-
americana. Na condição de simulacro, cortado e desenhado à imagem de um continente
em fragmentos, a exposição desse corpo desnuda uma pretensa naturalidade aí imposta.
No jogo de armar, o significante permanece vazio, à espera de substituições que
reforçam a simulação da presença e da ausência de sentido. Ainda que se reconheça o
caráter múltiplo dessa cartografia, o que interessava ao programa de controle político e
econômico dos Estados Unidos dessa época era o esquecimento das diferenças locais da
América Latina. O que mais importava era a criação de identidades coletivas, expressas
nos conceitos de hispano-americanismo ou de latino-americanismo. Substituía-se, aos
poucos, a hegemonia europeia, primeira intérprete e inventora do Novo Mundo, pela
inserção imperialista dos Estados Unidos.
A montagem de Carmen Miranda como alegoria da América Latina responde,
portanto, por um sofisticado aparato, que vai da fantasia de baiana até a encenação
contínua de um papel que deveria sustentar perante a máquina política criada pelas
relações entre os dois continentes. A diversidade de opiniões em torno da figura de
Carmen Miranda contribui para que se entenda a construção contraditória de um mito.
Aos olhos da opinião pública brasileira, ela deveria continuar a ser a “Pequena Notável”,
a baiana legítima e a defensora da autenticidade do samba; no entender do discurso
cultural e político, subjacente aos interesses de criação de uma imagem naturalizada e
autêntica, ela estaria representando uma baiana de cor branca, ao gosto do estrangeiro,
travestida, artificial e produzida como um objeto de consumo. Na montagem do
estereótipo, o objetivo é alcançar a aceitação, por parte do espectador, de que se trata de
um produto naturalmente dado que, consequentemente, deverá receber tratamento
semelhante.
Entende-se assim a complexa relação de amor e ódio ao estrangeiro, vivenciada pelos
brasileiros, relação que se desdobra nas questões de identidade e alteridade, pois, ao
mesmo tempo que a figura de Carmen Miranda era cultuada como mito nacional, era
criticada pela sua transformação artificializada e distante do modelo nativo. Na
exigência de uma naturalidade estaria o desejo de identidade nacional, a baiana
autêntica como símbolo e ícone de um continente; na acusação de artificialidade, a
necessidade de retirar da imagem qualquer lastro de alteridade que a tornasse próxima
dos valores estrangeiros. O senso comum não suporta a convivência de valores
contraditórios num mesmo espaço, excluindo um valor em favor de outro, em lugar de
procurar entender que é a partir dessa contradição que se constroem os mitos. A
América do Norte seduz e é desprezada pela opinião pública da época, incapaz ainda de
enxergar os interesses políticos disfarçados em exportação da cultura de massa.
O processo de criação da fantasia de baiana de Carmen Miranda se aparenta à
montagem/desmontagem da boneca de papel usada como brinquedo infantil, referida
anteriormente, ao serem destacados o vestuário e os adereços que a compõem. A
imagem da baiana nasce da música de Dorival Caymmi, que, em 1939, lança “O que é
que a baiana tem?”, canção interpretada pela cantora no filme Banana da terra. É nessa
ocasião que Carmen Miranda se veste de baiana pela primeira vez. O batismo realizado
por Caymmi não ficou só na composição da música, mas se estende à ida à costureira
para a confecção da roupa, tecido em listras vermelhas, verdes e amarelas escolhido
pela atriz, para, em seguida, acompanhá-la na compra dos balangandãs. Registra-se
ainda que no dia da filmagem, Dorival Caymmi tenha sugerido o movimento e os
trejeitos de Carmen, apontando os enfeites mencionados na canção.9
Na produção da figura de Carmen Miranda, à pergunta inserida no título da canção, “O
que é que a baiana tem?”,10 segue-se o ritual de identificação através da lista de seus
adereços e fantasia: tem torso de seda, brincos de ouro, correntes de ouro, pano da
costa, saia rendada, pulseira de ouro, saia engomada, sandália enfeitada e graça como
ninguém. A baiana vai sendo vestida e criada pela canção, toma forma e movimento e é
legitimada pelo encadeamento de perguntas e respostas que compõem a estrutura de
seu corpo. O efeito obtido é semelhante ao dos jogos infantis relativos às adivinhas, ao
“o que é que é”, resultando na fabricação da imagem de uma baiana que provoca um
prazer lúdico, infantilizado e repetitivo. Na sugestão de um erotismo mesclado à dança,
procede-se à sua naturalização, principalmente quando a carga erótica da mulher se
concentra no gesto corporal e na sedução pelo olhar. A baiana se oferece sedutora e o
interesse maior do espectador é que esse corpo tão bem formado e enfeitado “caia por
cima de mim”, pois é o parceiro da dança e quem a legitima como baiana. Carmen
Miranda expõe a natureza tropical no turbante tutti-frutti que passa a usar nas suas
apresentações, signo alegórico de um país exportador de bananas e de samba para o
mundo. Daí a razão de ter-se notabilizado pela frase várias vezes por ela repetida,
banana is my business:
O que é que a baiana tem?
Mas o que é que a baiana tem?
Tem torso de seda, tem!
Tem brinco de ouro, tem!
Correntes de ouro, tem!
Tem pano da costa, tem!
Tem bata rendada, tem!
Pulseira de ouro, tem!
Tem saia engomada, tem!
E sandália enfeitada, tem!
Tem graça como ninguém!
Como ela requebra bem!
Quando você se requebrar
Caia por cima de mim
Caia por cima de mim
Caia por cima de mim.11
Portadora de objetos de ouro, de enfeites que criam o efeito ligado à acumulação e ao
excesso, próprio à estética kitsch, a fantasia de baiana revela ainda outro tipo de riqueza,
qual seja, o brilho de um metal já inexistente como riqueza do país, mas que se mostra
como resíduo e traço de ostentação corporal. A boneca-baiana revela, ainda, a sua
procedência, a Bahia, além de ser incorporada às festas religiosas do Bonfim. Samba e
religião concorrem para a legitimação da baiana como símbolo nacional, embora tenha
se originado de uma região particular do país. No momento de redefinição de
identidades à luz de um princípio moderno, o regional tende a se apagar em função de
uma resposta de ordem internacional, objetivando a diluição das diferenças internas e
da imposição de um conceito totalizante de nacionalidade. Símbolos nacionais como a
baiana e o samba foram criados nessa época como resultado da política nacionalista do
Estado Novo, com a ajuda da divulgação popularizada pelos meios de comunicação de
massa. Com a Política da Boa Vizinhança em curso, era preciso valorizar ainda mais os
símbolos que poderiam render dividendos culturais e políticos para a economia da
guerra.
O preço a pagar pela internacionalização de sua imagem provoca em Carmen Miranda
o desconforto de estar sendo cobrada pela opinião pública brasileira, ansiosa por
preservar a autenticidade do samba e da nacionalidade, embora falsa, de sua maior
intérprete. (Carmen Miranda era de origem portuguesa e só mais tarde, em 1946, é que
conseguiu, nos Estados Unidos, o passaporte de brasileira, tendo sido registrada, em
foto, vestida de baiana.)12 O poder da mídia americana, a necessidade de conquistar a
América Latina numa época delicada para os Estados Unidos iam transformando
Carmen Miranda num produto de massa a ser consumido da forma a mais degustável
possível. Nesse processo de travestimento identitário – a baiana torna-se americanizada
–, a opinião pública brasileira se posiciona de forma redutora e nacionalista, exigindo-se
a volta da atriz às raízes do samba e à autenticidade de sua imagem nativa. É nesse
período, em 1940, quando a cantora volta ao Brasil, no auge de seu sucesso em
Hollywood, que se imprime à baiana a pecha de americanizada. A resposta às acusações
é transmitida por meio das canções feitas especificamente para ela, com o intuito de
revelar o avesso da acusação, obrigando-a a defender um nacionalismo chauvinista e
ingênuo: “Eu sou brasileira / Meu it revela que a minha bandeira é verde-amarela.”13 Os
versos de “Diz que tem…”, de Aníbal Cruz e Vicente Paiva, reforçam, ironicamente, a
carência do sentimento de nacionalidade em Carmen Miranda, pela utilização, em
excesso, de argumentos desse gênero. Ela se via na obrigação de atender aos anseios da
opinião pública, travestindo-se de novo através de uma fantasia a ela imposta. É mais
uma roupa a ser colada à bonequinha de maiô, um corpo a ser usado como se fosse
eternamente a outra e sempre encarnando a fantasia de si mesma.14 A encenação
nacionalista progride e Carmen chega ao Rio, em 1940, vestindo um costume verde e
amarelo, não dispensando o turbante e os balangandãs. Além da conhecida canção “Me
disseram que voltei americanizada”, de 1940, de Luiz Peixoto e Vicente Paiva, quando
defende a sua preferência pelo “camarão ensopadinho com chuchu”,15 outros versos irão
revelar a construção de uma imagem nacionalista kitsch, pela evocação de um país
harmonioso, do Norte ao Sul, e que é cantado nas suas cores e riquezas naturais. A
baiana incrementa as roupas tradicionais, vestindo-se de bandeira verde-amarela, ao
afirmar que tem o amor pelo Brasil dentro do peito:
Fiquei pensando e comecei a descrever
Tudo, tudo de valor
Que meu Brasil me deu…
Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo
Um pano verde-amarelo
Tudo isso é meu!
Tem feriado que pra mim vale fortuna
A Retirada da Laguna vale um cabedal!
Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia
Um conjunto de harmonia que não tem rival16
Gostaria, finalmente, de remeter para o presente a importância da figura de Carmen
Miranda como uma das responsáveis pelas transformações que as noções de alteridade
e identidade sofreram nos últimos anos. Em primeiro lugar, a cantora consegue passar
de uma imagem kitsch, pela naturalização da nacionalidade inscrita na roupa, nos
adereços e no remelexo, para uma imagem cult, penetrando numa facção do mercado
gay, além de outra composta por intelectuais. De kitsch ela guardaria não só o aspecto
cafona e excessivamente alegórico dos trópicos, mas o eterno deslocamento a um
modelo original que lhe era imposto.17 Como imagem cult, incitaria a releitura de seu
papel na construção de identidades heterogêneas, fazendo com que, a distância, fosse
possível encará-la como um raro momento de viabilidade brasileira aos olhos
desconfiados do estrangeiro. A caricatura dessa nacionalidade vai ser interpretada de
forma criativa por Caetano Veloso e o grupo tropicalista, pelo caráter parodístico
somado à imagem de Carmen Miranda e o resgate de uma imagem cult. (A atriz seria,
nas palavras de Caetano, “um emblema tropicalista, um signo sobrecarregado de afetos
contraditórios que eu brandira na letra de ‘Tropicália’, a canção-manifesto, Carmen
Miranda surgia nesses discos como uma reinvenção do samba.”)18
A música popular brasileira enfrenta, com o Tropicalismo, o desafio do bom gosto
próprio de um segmento de elite, contrário à inserção das manifestações de massa no
quadro do repertório nacional. A encenação kitsch de um Brasil pintado de palmeiras e
bananas refletia a leitura parodística dos trópicos, uma forma de mostrar que, pela
diferença, essa gente bronzeada também poderia mostrar o seu valor. Os empréstimos
estrangeiros serviriam, portanto, de alimento pop para se abandonar a defesa ingênua
de uma música autenticamente nacional. A imagem de Carmen Miranda funcionaria
como símbolo dessa diferença residual e midiática representada pelas culturas dos
países periféricos frente aos demais.19
Ao voltar, em 1972, do exílio em Londres, Caetano Veloso cita Carmen Miranda no
primeiro show apresentado no país, ao interpretar “O que é que a baiana tem” com os
mesmos trejeitos de corpo da cantora. Trata-se de uma homenagem que se reveste de
uma “imitação distanciada” da artista, por remeter à sua própria condição de exílio e,
principalmente, às relações mantidas pela cultura brasileira com o exterior. Essa
imitação teria ainda reforçado a posição antimachista do intérprete, através da
exploração irônica de sua imagem sexualmente ambígua. Nesse sentido, a releitura de
um símbolo que se legitima pela ausência de contornos identificatórios, seja quanto ao
gênero ou à nacionalidade, permite colocá-lo em constante processo de redefinição. A
atualização dessa leitura é que possibilita a passagem do kitsch ao cult, dependendo do
grau de inserção cultural que determinado segmento social impõe ao símbolo.
Num verbete sobre cultura publicado no Caderno Mais da Folha de S.Paulo, Silviano
Santiago nos esclarece sobre a intrincada relação entre arte e cultura de massa neste
início de século. Aproprio-me dessa ideia para melhor entender a imagem de Carmen
Miranda como uma das que profetizaram essa convivência conflitiva e, ao mesmo
tempo, salutar entre arte e mercado. Se hoje a academia aceita, com naturalidade, as
lições que a música popular pode oferecer às nossas mentes ilustradas, tal fato se deve à
contaminação dessas manifestações artísticas até pouco tempo consideradas espúrias,
no universo nem tão puro da arte e da literatura:
Nada nos distancia mais das estéticas do século 20 que o célebre trocadilho de Oswald de Andrade:
“A massa ainda comerá do biscoito fino que eu fabrico.” Bye bye, 1900! Para falar de cultura hoje e
amanhã, nada como inverter os termos do trocadilho: artistas e críticos ainda se regalarão, se já não
estiverem se regalando, com o biscoito banal que a massa fabrica.20
(Ensaio publicado em: CAVALCANTI, B.; STARLING, H.; EISENBERG, J. (Org.). Retrato em branco e
preto da nação brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; São Paulo: Perseu Abramo, 2004. p. 73-
87.)
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O tic-tac do meu coração

Carmen morreu como deveria morrer sempre os cantores, os poetas e os passarinhos: ainda jovens,
ainda fortes. Antes que o tempo e a velhice os tornem simples e melancólicos fantasmas vivos de
um passado glorioso, antes que o público os esqueça.1
João Martins
Em 20 de agosto de 1955, João Martins, repórter de O Cruzeiro, enviado a Hollywood
para cobrir a morte de Carmen Miranda, registra essa opinião que lhe foi comunicada
por um americano. Trata-se de um dos componentes ritualísticos de consagração da
artista vítima de morte prematura, uma forma de congelar o sucesso e de eternizar o
presente glorioso. A juventude, aliada ao vigor e ao reconhecimento público, permite a
entrada do sujeito no espaço sagrado do mito, além de promover a construção de
biografias, motivadas pela proliferação de textos compostos pela mídia. Morrer cedo, e
em plena atividade profissional, condensa os ingredientes da tragédia com o
melodrama, do sacrifício pelo outro com a catarse provocada no público.
A morte de Carmen Miranda, nas palavras de Henrique Pongetti, em texto publicado
na época, significaria “a morte em glória, polianteia e biográfica”. O cronista se referia à
recomposição de uma vida a partir da miscelânea de homenagens, de opiniões
apaixonadas ou equivocadas, versões da opinião pública que sempre são preservadas
como verdadeiras. Diante dessa variada gama de informações e de depoimentos sobre
Carmen, confirma-se, no entanto, a impossibilidade de os biógrafos construirem um
perfil unívoco, considerando-se que os textos escritos sobre ela já se inscrevem como
interpretações. Biografias prematuras são igualmente causadas pelas mortes
prematuras.
Outro componente que interfere no processo de consolidação do mito cultural é a
maneira repentina de morrer, no caso, por ataque cardíaco. Nessa circunstância, o corpo
não sofre mutilação, o coração apenas para de bater. Em pleno vigor e uso de sua
vitalidade, esse corpo que serviu de mediação para a transposição de fronteiras e a
consagração internacional, é o cadáver que deverá ser repatriado ao lugar de origem.
Participa desse relato de imortalização o fato de ser a artista incorporada ao panteão
dos ilustres da nação, graças ao ritual de repatriamento do corpo como expressão da
política de sobrevivência simbólica. O imaginário sentimento de posse vivido pela
população se manifesta no momento em que o corpo inerte regressa definitivamente ao
solo natal e aos braços do povo, significando um ganho adquirido pela morte: “Mágoas e
ciúmes desfeitos – a cidade reconquista sua grande intérprete”, diz uma das manchetes
de a Última Hora.2
No calor da emoção, a memória de Carmen Miranda é lentamente construída, através
de vários gestos cívicos que contribuem para tal: discursos de despedida, músicas
cantadas durante o cortejo, promessa de realização de um busto, de criação de um
museu, de nome de rua, e assim por diante. Mas a presença de um número considerável
de pessoas aos funerais, as filas intermináveis para se aproximar do corpo exposto à
visitação, os desmaios e a expressão de dor que contaminava a todos constituem uma
das maiores provas da popularidade e consagração póstuma da artista. É nesse
momento de intensa aglomeração popular que se revelam, provisoriamente,
comunidades imaginadas em torno de um objetivo comum, graças à mediação dos
meios de comunicação de massa, como o rádio e a imprensa. Nessa época, esses meios
de comunicação se responsabilizavam por uma grande parcela do processo de
integração popular e de vivência de um sentimento cotidiano de nação. Carmen
Miranda, como “Embaixatriz do Samba” nos Estados Unidos, cumpria a função de
mediadora da América Latina junto à Política da Boa Vizinhança desenvolvida durante a
ditadura de Vargas e o governo americano.
Com a sua morte, representava-se o sacrifício de quem, aos olhos da opinião pública,
se perdeu em termos de identidade e se deixou levar pela sedução de uma vida em que
mais se valorizava a entrega a um capitalismo devorador e ao consumismo da imagem.
Segundo depoimentos prestados por pessoas da classe artística, Carmen Miranda pagou
um preço alto pelo sucesso no exterior, pela agenda de compromissos que lhe exigia
total dedicação ao trabalho. O que se verificou foi o desfalecimento gradativo de um
corpo, cujo objetivo era o de se expor através do bamboleio latino e da estereotipada
“força telúrica” dos trópicos.
“Carmen não sairá mais daqui”
Ela foi o símbolo popular do coração carioca e o corpo de mais alma que jamais se viu em terra
brasileira.
Aníbal Machado
A trajetória artística de Carmen se forjou em torno da exploração estética e
profissional de uma voz que se expressava através do corpo e de sua fantasia. Corpo que
era ainda símbolo de um país, de um continente, à medida que representava a
proliferação de símbolos referentes à América Latina. A sedução da mulher-continente,
com seu olhar malicioso, o movimento inusitado dos braços, simulava o ritual
carnavalesco, com sua ótica invertida, o descentramento e o embaralhamento dos
valores. A alegria dos trópicos se estampava como promessa de felicidade, evocando-se
a terra paradisíaca, onde “plantando tudo dá”. O corpo, naturalizado pelo apelo às
riquezas naturais do país – a banana, o abacaxi –, vendia um produto exótico bem ao
gosto da Política da Boa Vizinhança, que não media esforços para angariar simpatia e
apoio dos amigos do Sul.
Interpretada ainda como corpo político, Carmen Miranda era também a expressão de
um corpo público, cuja autonomia autoral desaparecia em favor do signo vazio,
preenchido pelos inúmeros significados a ele atribuídos. Representava o corpo
simulado, o estereótipo a ser preservado e conservado como suporte à imagem criada e
alimentada pela mídia. O corpo da artista foi se transformando em simulacro que se
afastava do original, em cópia de si mesma e em caricatura. A exaustão da imagem
repetida em série imitava um modelo de forma congelada e eterna, segundo as regras de
produção midiática. A vitalidade da fantasia de baiana durou enquanto o corpo exibia,
em superfície, os signos de uma identidade que se perdia no meio dos turbantes de
vários tipos, dotados de uma estética kitsch. Uma das causas do apagamento gradativo
de sua figura residiria no artifício repetitivo, na perpetuação de uma grife, em
detrimento da criatividade. Reduplicada em torno de uma sombra, Carmen Miranda não
conseguia manter o padrão de sucesso que gozava durante a década de 1940.
A recomposição do corpo da artista se processa por ocasião de sua morte, por meio
dos depoimentos de amigos, de jornalistas e de intelectuais. A Carmen Miranda que
volta ao Rio de Janeiro, em 12 de agosto de 1955, é um corpo “mudo e paralisado”,
“cerrados aqueles olhos, muda aquela boca, sem movimento aquelas mãos”, como assim
escreve o escritor Marques Rebelo. A imobilidade da morte resgata o corpo que havia se
afastado do lugar de origem, promovendo sua posse imaginária. O retorno ao país, “sem
voz e sem bata rendada”, integra Carmen simbolicamente ao corpo da nação, ao
descanso em terra brasileira. Antropofagicamente, a cidade a recebe, a acolhe e a
devora, pois só a morte propicia o congelamento do corpo ao mesmo tempo próximo e
distante.
Nas inúmeras manchetes estampadas nos jornais, a tônica é a de um regresso da
artista aos braços do povo, como se a morte a restituísse inteira e sem máscaras, ao
lugar de onde, para muitos, nunca deveria ter saído: “Carmen não sairá mais daqui,”
“Agora Carmen Miranda voltou para ficar”, “A morte trouxe Carmen de volta”,
“Descansará hoje em terra brasileira o corpo de Carmen Miranda”, “Carmen ficará no
Brasil para sempre”.3
O processo de bricolagem desse corpo que recebe o estatuto de mito se realiza pelo
olhar do outro e se conjuga à glorificação do samba, símbolo de integração popular, do
nacionalismo e da figura lendária de Carmen Miranda. Na alegria motivada por sua
interpretação da música brasileira, o samba se confunde com a artista, pois, se aos olhos
do povo, o samba nasce do coração, também “Carmen nasceu ao bater compassado de
um pandeiro como uma canção de ninar”. A generosidade do bom coração produz a boa
mediação, a positividade capaz de provocar alegria e bem-estar aos ouvintes, além do
eficaz papel desempenhado pela “Embaixatriz do Samba” em projetar o nome do Brasil
lá fora. Em reportagem do jornalista Alberto Conrado para O Mundo Ilustrado, de 17 de
agosto de 1956, intitulada à maneira de Hollywood, “Nunca houve uma mulher como
Carmen”, registra-se a índole natural atribuída à artista. À feição do samba, prescindia
de intermediários e tampouco se desvirtuava pelo endosso da técnica estilizada e
artificial, própria da publicidade. A permanência do traço fortemente nacional é
defendida pelo cronista como sendo a maior qualidade de Carmen Miranda:
Nunca houve uma mulher como Carmen. Nunca haverá sambista como Carmen. Mulher
extraordinária de personalidade e talento no mais puro e amplo sentido da palavra, pois nasceu
com a inquietação natural dos que fazem arte, extraindo do âmago do povo a essência de sua raça;
Carmen nunca deixou de ser brasileira, pouco importa um título de naturalização, pois a “pequena
notável” sentia nossos anseios como filha natural da terra. (…) Assim como o samba nasce do
coração, Carmen nasceu ao bater compassado de um pandeiro como uma canção de ninar.4
O coração, órgão vital para o ser humano, define metonimicamente todo o corpo, por
se identificar como lugar do sentimento, confundido com a natureza feminina, em
contraste com o cérebro, ideologicamente associado ao masculino. Interpretações de
ordem sentimental dominam os depoimentos de amigos, o que motiva a construção do
relato folhetinesco em torno da vida e da morte de Carmen Miranda. Utilizando-se de
recursos retóricos com vistas a exaltar as qualidades da artista, esses depoimentos
reduplicam o modelo biográfico ao gosto da cultura de massa, quando se presta a
exaltar seus ídolos. A humanização da artista é essencial para que seu papel
desempenhado no meio social receba o estatuto do mito que se consolida com a morte.
Pretende-se, com isso, reforçar a função do público diante de Carmen, por não se
interessar com o que ocorreu na vida da artista, mas com o que se esconde, o que estaria
no nível da invisibilidade. Nas palavras de Nina Gerassi-Navarro, um dos processos de
despolitização da figura política de Evita Perón se encontra no filme homônimo de
Parker, em que é percebida como mulher comum, sendo destronada, de certa forma, de
seu lugar excepcional: “É justamente no seu desejo de humanizá-la, mostrando-a
humilhada, vingativa, egocêntrica, dedicada e vaidosa, que Parker a despolitiza.”5
Como mediadora mítica, sua função desaparece, depois de cumprida a missão de ser a
ponte entre a América Latina e os Estados Unidos, entre o povo e o samba. Torna-se,
portanto, vítima de sua disponibilidade para se doar aos outros, do coração que se
entregou ao mundo de forma apaixonada. Paschoal Carlos Magno interpreta a morte por
ataque cardíaco de Carmen Miranda em perfeita consonância com a natureza
desprendida de sua pessoa e de sua profissão. A vida pública não se distingue da
privada, explicando-se a vida pelo viés da arte, a morte como resultado de um estilo de
vida. Constitui uma das formas de explicar a morte pela vida, a de assumir a
interpretação de ordem fatalista, em que tudo se justifica pelo viés do destino e da
predestinação: “Agora Carmen morreu como podia morrer, de um ataque do coração,
desse coração que bateu por milhares e que se deu todo inteiro a amigos, parentes,
desconhecidos.”6
Elsie Lessa, em artigo publicado em O Globo, traça uma linha a mais na criação do
retrato de Carmen Miranda, empregando recurso discursivo que acentua a função de
mediadora mítica. Ao revelar a face oculta e sofredora, o lado avesso de sua vida a
cronista lembra os últimos anos da artista como “mulher insone, de nervos tensos,
devorada pela própria chama, com que aquecia e iluminava os outros”. Seu depoimento
reforça a carga de sacrifício religioso imputada à artista, acrescentando à sua biografia
traços de santidade e de imortalidade. Carmen Miranda é valorizada como se fosse uma
pessoa próxima dos outros, graças à interpretação de natureza personalista. Nesse
sentido, artista e público se assemelham, pela intensidade de experiências comuns,
como o sofrimento, que confere à personalização da grandeza artística o perfil de uma
santa, próprio da hagiografia. A valorização do grande homem, no entender de Nathalie
Heinich, em Être écrivain,7 reúne indissociavelmente a exemplaridade de sua vida à
grandeza de sua obra. Valoriza-se o sofrimento como resultado da junção naturalista
entre arte e vida. A morte prematura da artista é interpretada por Elsie Lessa por meio
da metáfora da chama que cedo se apaga, em virtude da luz intensa mantida sempre
acesa para os outros: “Chama pura e viva que se devorou a si mesma, para iluminar aos
outros, era natural que cedo se apagasse. Mas, enquanto durou, como foi bela, alegre e
viva a sua luz! Por ela, muito obrigada, Carmen!”8
Adeus batucada
Na preparação do ritual funerário de Carmen Miranda, seu corpo é igualmente
exibido como exótico diante do público brasileiro, tendo causado um efeito de
estranhamento. Segundo os costumes norte-americanos, após a morte, o corpo é
embalsamado, maquiado e penteado, para que os sinais de morte sejam disfarçados e se
produza a impressão de uma pessoa dormindo. Trajando tailleur vermelho de sua
predileção – o mesmo com o qual havia desembarcado na última vinda ao Brasil, em
1955 –, Carmen se destacava ainda pela pintura dos lábios, aparência mortuária até
então inusitada para os hábitos brasileiros. Estaria fantasiada para o ritual da morte,
expondo-se no último espetáculo dirigido a uma multidão que contemplava agora o
corpo inerte e convivia com o silêncio. Povo e cidade compõem o cenário representativo
da máxima consagração da artista, através da manifestação sentimental e espontânea de
um acontecimento que marca a passagem da fama à posteridade.
O ritual de imortalização se completa, quando a pessoa é vítima de morte prematura,
remetendo ao tema da “bela morte”, conceito originário da civilização grega. Por
sucumbir em combate no auge da vida, o herói grego, segundo pesquisa de Maria
Cláudia Coelho, em A experiência da fama,9 realiza nesse momento duplo movimento: ao
furtar-se, à velhice, pela morte prematura, salva-se também do esquecimento. Pela
natureza dessa morte, atinge-se a dimensão do ritual coletivo, uma vez que o herói se
liberta da função particularizada e inscreve sua biografia na memória coletiva. “A
Embaixatriz do Samba”, repetindo a simbologia traçada pelo ritual da cultura ocidental,
recebe as honras dos funerais da “bela morte”, com direito à imortalidade. É consagrada
estrela da canção popular e ídolo da cultura de massa, lugar a ser ocupado pelo mito
Carmen Miranda ao longo de todo o século 20.
O espaço público legitima a consagração da artista durante o funeral, ao ser velado o
corpo no salão da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, integrando-o ao corpo oficial da
cidade. O ritual se amplia ao tornar visível a consagração de Carmen Miranda como
alegoria da nação, quando o esquife é coberto com a bandeira brasileira. Se, antes, ao
cantar para um público insatisfeito com sua condição de americanizada, a artista se viu
obrigada a exaltar as cores nacionais como resposta a um apelo populista (“Eu sou
brasileira / Meu it revela que a minha bandeira é verde-amarela”10); com a morte, seu
corpo se torna o da nação. Samba e mulher representam, ironicamente, a glorificação e o
fim do pensamento estadonovista, através do qual a Política da Boa Vizinhança
representou um de seus maiores exemplos.
O jornalista João Martins termina sua crônica revestindo o corpo da artista com as
cores verde e amarela e manifestando o direito de posse do mito como consolidação do
símbolo nacional: “Mesmo porque a nossa Carmen não morreu. Gente como ela não
morre. A nossa Carmen continuará viva para sempre. Apenas o seu corpo é que estava
descansando naquele caixão coberto de flores verdes e amarelas, amigos.”11 A afirmação
tende a desvincular o valor real do corpo do sentido de imortalidade, inscrito na força
da imagem da artista. Cria-se outra dimensão para a perda do corpo, a da memória,
mecanismo capaz de substituir o objeto pelo jogo ambivalente de perdas e ganhos. O
devir-Carmen anuncia a sobrevivência do mito, que, amparado pelo nome, transcende a
materialidade corporal.
A década de 1950 será marcada por mortes de figuras públicas que desempenharam
importantes papéis no panorama artístico e político do país. Em 1952, morre Francisco
Alves, “O rei da voz”, num desastre de automóvel na Via Dutra; em 1954, Getúlio Vargas,
no dia 24 de agosto, comete suicídio. O Brasil, livre da ditadura de Vargas, o reelege
presidente em 1950, mas o mandato é interrompido, provocando tumultos de toda
sorte. 1955 será ainda o ano da eleição de Juscelino Kubitschek para presidente,
comprometendo-se o país com um programa político desenvolvimentista e a abertura
para a internacionalização. Nesse clima de país novo, constrói-se Brasília, a cidade
moderna, ao lado de movimentos culturais de vanguarda, com a estética concreta
voltada para o futuro e com desprezo pelos valores da tradição.
No campo musical, abole-se a dicção eloquente e ornamental, presente, entre outras,
na interpretação de Carmen Miranda, substituindo-se o samba tradicional, a marchinha
e os boleros por novo gênero, a bossa-nova. Com o fechamento dos cassinos pelo
presidente Dutra, em 1947, os teatros de revista sofrem também grande abalo,
acarretando o fim dos shows com as grandes orquestras, espetáculos frequentados pela
classe média nos fins de semana. A bossa-nova nasce em ambiente distinto do samba da
Lapa, dos morros, da periferia das cidades, para se concentrar na zona sul, junto a um
grupo de universitários e intelectuais. O cotidiano é interpretado de forma intimista, em
voz baixa, no pequeno espaço das casas noturnas, e tendo como palco apenas uma voz e
um violão. De natureza mais subjetiva e minimalista, descartando qualquer tipo de
artificialidade na interpretação, a bossa-nova seguia os caminhos abertos pelo jazz
americano e se impunha como ritmo moderno.
A televisão, por seu turno, entra nos lares brasileiros por volta dos anos 1950,
consolidando-se como veículo de massa na década de 1960. A morte de Carmen
Miranda se dá no momento de passagem do cinema para a televisão, da diminuição da
força do rádio, no Brasil, como meio de integração nacional. Mas o cinema nacional
ainda será devedor de sua imagem, com o advento das chanchadas, um gênero popular
que viria atingir o grande público. Sintomaticamente, será no filme a ser transmitido
pela televisão americana, no programa de Jimmy Durante, que o corpo de Carmen
Miranda ensaia sua morte. Cai dos braços do ator, consegue se levantar e sair,
sorrateiramente, de cena. Mais tarde, já em casa, preparando-se para dormir e sem ter
tempo para tirar a maquiagem, fecha a cortina. A imagem estereotipada e desgastada de
Carmen Miranda como baiana coincide com a imagem de um corpo igualmente
desgastado pelo trabalho e cansado de repetir as mesmas cenas.
A figura de Carmen Miranda é interpretada, atualmente, como representante das
transformações que as noções de mito e de identidade sofreram ao longo do tempo. Em
depoimentos recentes, distinta leitura ilumina o mito, conferindo-lhe uma dimensão
utópica e reveladora de nossa cultura contemporânea. Arnaldo Jabor, com irônica
sensibilidade, constrói diferente perfil de Carmen, ao qual se distancia das opiniões
expressas pelos amigos e colegas que, no calor da hora, não conseguiram se isentar de
um discurso sentimental e apaixonado. Por ocasião do lançamento do documentário
Carmen Miranda – banana is my business, de 1994, o cineasta se refere à artista por meio
da metáfora da luz, também utilizada por Elsie Lessa em seu depoimento. Amplia,
contudo, seu sentido, ao considerar a atriz dotada de extraordinária inteligência e de
visão avançada para a época. Segundo Jabor, consciente de seu papel no cenário
hollywoodiano, Carmen soube conviver com o travestimento identitário como saída
para a convivência com a alteridade. O teor avançado de sua performance se nutria de
intenções parodísticas e de deboche à cultura americana a qual servia. A luz que aí se
propaga serviria, certamente, para iluminar tempos futuros, ao funcionar como sustento
de políticas de dependência cultural, assim como de resistência à imposição de modelos
hegemônicos de cultura:
Aí surgiu Carmen Miranda com seu riso, seu jeito. Ela era um futuro. Seus gestos já eram uma
paródia do mundo em volta que ninguém percebia. Ela era mais inteligente que todos. Acho que ela
intuiu a cultura de massas, como diria o Caetano muitos anos depois, ela, que já apontava na direção
do que seria o tropicalismo. Carmen ilumina seu tempo e, com sua luz, podemos ver também as
pistas de algo de nosso destino que se perdeu depois, podemos ver as pegadas dos passos que ainda
iríamos dar. (…) Carmen chega à Broadway triunfante, na beleza de seus gestos perfeitos, sua voz
desenhando uma alegria matematicamente exata. Carmen usava o corpo como se ela fosse uma
“outra” que cantasse. Carmen teve a ideia do travestimento, a ideia de ser uma fantasia de si
mesma, de ser uma “outra”, um “eu” sem centro. Carmen inventa a alegoria moderna viva e isto dá a
ela a Semana de 22 e prefigura a indeterminação de hoje. Daí o seu imenso fascínio atualíssimo. Daí,
os travestis adorarem-na.12
A cantora consegue passar de uma imagem kitsch, pela naturalização da
nacionalidade inscrita na roupa, nos adereços e no remelexo, para uma imagem cult,
penetrando numa facção do mercado gay, além de outras compostas pela mídia e pelos
intelectuais. Daí a sua relação com o fenômeno camp, conceito criado por por Susan
Sontag em seu artigo “Notas sobre camp”. A atualidade da imagem cada vez mais
artificializada da artista foi gradativamente reconstruída politicamente pelo movimento
queer nos Estados Unidos e, mais recentemente, no Brasil. A transformação do
estereótipo kitsch por meio da leitura do aspecto performático do camp confere à
mitologia de Carmen Miranda penetração muito mais politizada na sociedade
contemporânea, contribuindo para a revisão contínua de sua imagem.
O mito de Carmen Miranda sobrevive ao tempo e continua se expondo como uma das
mais representativas e complexas marcas identitárias.
Carmen Miranda volta à América
No século 21, constata-se que o hibridismo latino-americano, considerado do ponto
de vista musical, étnico e político, agrega-se a outras manifestações periféricas e se
impõe como resistência cultural aos países hegemônicos. Na comemoração, em 2009, do
centenário de Carmen Miranda, torna-se evidente a força com que a herança de sua
imagem persiste com toda força. Híbrida e integradora, ela se converte em símbolo
cultural capaz de reunir, em diferença, o ritmo migratório e diaspórico da latinidade
com o som nem tão dissonante da música asiática, africana e pós-colonial.
O artigo de Denílson Lopes, “Música ambiente e bossa-nova”,13 nos ajuda a refletir
sobre a situação da música contemporânea, discorrendo sobre a junção da bossa-nova
com a música eletrônica, com o intuito de
construir mais do que um objeto de uma cultura nacional, mas processos socioculturais híbridos
que interligam o local e o global, e em que as estruturas ou práticas, que existiam antes em forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas, opondo-se a qualquer
discurso essencialista de identidade, autenticidade e pureza culturais…14
Seu raciocínio, seguindo o de Néstor Canclini, se pauta por uma perspectiva pop e
transcultural, rejeita discursos fundamentalistas, os quais se reportam à tradição do
nacional popular. A tendência ao hibridismo na cultura contemporânea merece ainda a
atenção de especialistas em música, ao se constatar a inevitável, saudável e libertadora
confluência de estilos, raças, origens, aliada aos bons resultados daí surgidos. Na atual
configuração do discurso musical transnacional, prevalece tanto o adjetivo “latino”,
quanto o world music, de registro não recomendável pelos intérpretes, o que contribui
para a indefinição e globalização das manifestações musicais. No entanto, é possível
admitir a influência da música negra e asiática nas práticas musicais não só da
atualidade, como das cinco últimas décadas, revestidas da mistura de ritmos vinculados
ao jazz, à bossa-nova, ao blues, ao be-bop, ao pop rock, cool, free jazz, salsa, samba, entre
outros. A primazia do heterogêneo e a presença irreversível de múltiplas modalidades
temporais na constituição das modernidades contemporâneas, no campo específico da
música e na cultura em geral, desconstroem qualquer pensamento centrado na
identidade musical de um determinado país. No entanto, é preciso desconfiar das fusões
rítmicas e musicais como traço de fraternidade sonora entre intérpretes do Terceiro
Mundo, instalados ou não nos centros hegemônicos.
As críticas endereçadas a Carmen Miranda nas décadas de 1940 e 1950, centradas no
mito da identidade nacional e na isenção de empréstimos estrangeiros para a
construção da imagem pura da intérprete, não teriam hoje a repercussão esperada.
Tanto a sua imagem quanto a mescla heterogênea de ritmos, fantasias e trejeitos
encontram ressonâncias e retomada crítica nos palcos daqui e do exterior. O caráter
migratório e diaspórico das sociedades periféricas contemporâneas se reproduz na
presença maciça do aspecto sonoro na vida cotidiana, considerando ser o fenômeno
musical uma das mais contundentes e revolucionárias manifestações da multidão. A
mudança de posicionamento diante das variadas formas de se conceber a modernidade,
até então hegemônica e excludente, instaura o jogo entre tradição e modernidade,
abolindo-se as hierarquias presentes na ideologia da alta modernidade.
A modernidade eurocêntrica, ao servir de modelo para justificar o descompasso e o
atraso da recepção artística nos países periféricos, encontra-se hoje enfraquecida por
manifestações culturais que deslocam o compasso entre centro e periferia. Renovam-se
as relações no campo musical da América Latina, contribuindo para a integração
diferenciada entre variadas concepções musicais; ou entre músicos das Américas,
congregando tendências ditas primitivas e locais com a abertura trazida pelas
modernidades eletrônicas e revolucionárias da música contemporânea. Sob o signo da
tensão entre categorias vistas como opostas, o discurso musical se configura de modo
heterogêneo, disposto a negociar as contradições e não aderir às oposições. As
mudanças tecnológicas e a inauguração da era digital neste início de século não só
desfazem propostas identitárias como revelam ser o discurso musical capaz de
dispersar os sons dos lugares de origem, o que resulta na condição de “esquizofonia”
dos nossos tempos, como assim entende Ana Maria Ochoa Gautier.15
(Artigo publicado na revista Palavra (PUCRJ), Rio de Janeiro, v. 9, p. 174-183, 2002.)
Referências
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1955.
A MORTE trouxe Carmen de volta. Manchete, 20 ago. 1955.
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106, 21 ago. 1955.
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Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
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QUEIROZ JÚNIOR. Carmen Miranda – vida, glória, amor e morte. Rio de Janeiro:
Companhia Brasileira de Artes Gráficas. 1956. p. 153.
DEPOIMENTO de Marques Rebelo. In: QUEIROZ JÚNIOR. Carmen Miranda – vida, glória,
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GERASSI-NAVARRO, Nina. Las tres Evas: de la historia al mito en cinemascope. In:
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HEINICH, Nathalie. Être écrivain. Création et identité. Paris: Editions La Découverte,
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JABOR, Arnaldo. Carmen foi do getulismo ao capitalismo. Folha de S.Paulo, 8 ago. 1995.
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MIRANDA, Carmen. Diz que tem… CRUZ, Aníbal; PAIVA, Vicente. A pequena notável
Carmem Miranda. Curitiba: Revivendo, 1993. 1 CD. Faixa 10.
OLIVEIRA, Celestino Silveira. Carmen não sairá mais daqui. In: QUEIROZ JÚNIOR.
Carmen Miranda – vida, glória, amor e morte. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de
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QUEIROZ JÚNIOR. Carmen Miranda – vida, glória, amor e morte. Rio de Janeiro:
Companhia Brasileira de Artes Gráficas. 1956.
SONTAG, Susan. Notas sobre camp. In: ____. Contra interpretação. Tradução de Ana Maria
Capovilla. Porto Alegre: L&PM Edições, 1987. p. 318-337.
ÚLTIMA HORA, 13 ago. 1955.
Pan-Américas de Áfricas utópicas

No romance Três tristes tigres,1 a desconhecida cantora de boleros Estrella Rodriguez


se destaca como personagem de Cabrera Infante, na recriação do clima da cidade de
Havana antes da revolução cubana. Conhecida na vida real como Freddy, a cantora se
destacava pela aparência grotesca, “era uma mulata enorme, gorda gorda, de braços
como coxas”, mas que cativava pela graça e beleza de sua performance. Protagonista de
alguns capítulos do romance, como “Ela cantava boleros”, a imagem de Estrella como
artista marginal das noites de Havana se mescla à imagem sensual, sentimental e
popular de uma América Latina ainda embalada pela fantasia de realização de sonhos
coletivos. Cultura que se impunha de forma visível como mestiça, heterogênea, marcada
pela modernidade que aportava através do cinema americano, mas que ainda guardava
a vitalidade da tradição negra, dos cantores de blues e das letras ardentes dos boleros.
É no cabaré Tropicana, palco de espetáculos realizados nas décadas de 1940 e 1950,
que se condensava a vida noturna e musical de Cuba, e, por extensão, a relação entre a
América Latina e os Estados Unidos, movida por uma aparente confraternização entre
povos vizinhos. Por se situar na ilha tropical e sedutora do Caribe, o cabaré era a atração
de turistas americanos, os quais se divertiam ao som de rumbas, se embebedavam e se
regalavam com as delícias e a sensualidade dos trópicos. A Tropicana, na função
mediadora dos interesses econômicos entre os continentes, reveste-se como alegoria do
programa político de natureza expansionista, o pan-americanismo, com vistas à
unificação das Américas. Com a Política da Boa Vizinhança, no governo Vargas, reforça-
se a contribuição dos países latinos para a economia americana de guerra. O talento
artístico de Carmen Miranda – que parte para a América, em 1939, e integra o programa
expansionista, atuando como “Embaixatriz do Samba” – impulsiona o intercâmbio entre
os dois continentes.
Boleros, tangos e milongas penetravam nos lares da América pelas ondas do rádio e
pela transmissão das imagens cinematográficas de Hollywood, o que contribuiu para a
importação de modelos de conduta e a revitalização de sonhos coletivos. O maior
incentivo para a expansão do espírito modernizador do período foi ainda a construção
de salas de cinema em estilo americano que funcionavam, ao lado dos clubes noturnos,
como formadores do imaginário cotidiano e da redefinição de identidades. Uma época
ainda não marcada pelas ditaduras na América Latina, em busca de uma integração
plausível, ainda que sob a égide da cultura de massa que penetrava de mansinho no
continente. Turistas endinheirados desciam na ilha e se fartavam do clima de euforia aí
reinante.
Entre o corpo grotesco e sedutor de Estrella Rodriguez, a cantora cubana de boleros, e
o corpo exótico e atraente de Carmen Miranda estariam inscritos os sinais da mais
radical alteridade, da natureza heterogênea de um discurso cultural que se impunha no
continente. Era preciso dizer não à idealização do samba, da rumba, do bolero, do jazz
ou do swing. O Brasil se incorporava, no entender da política norte-americana, ao
concerto da nação desenvolvida e cosmopolita, ao mesmo tempo que,
antropofagicamente, o ritmo do pandeiro minava o fox e o swing, resultando no ganho
cultural da América. O preço a pagar pela internacionalização de sua imagem provoca
em Carmen Miranda o desconforto de estar sendo cobrada pela opinião pública
brasileira, ansiosa por preservar traços de uma brasilidade imposta a força,
emblematizada nos requebros e nos turbantes “tutti-frutti”.
Carmen Miranda e Estrella Rodriguez, ao longo do tempo, recebem duplo tratamento,
que se traduz na passagem de uma representação kitsch para uma representação cult.
Na condição de artistas que se comportavam de maneira kitsch, elas se destacavam ora
pelo sentimentalismo das letras dos boleros e pelo estilo marginal de vida (Estrella), ou
pela exposição caricata do corpo e pela fantasia de baiana como ícone tropical
(Carmen). Interpretadas como imagem cult, as duas intérpretes ganham,
respectivamente, de Cabrera Infante e de Caetano Veloso, o estatuto de personagem
literária de Três tristes tigres, e de emblema do Tropicalismo. O que se condenava como
sinal de mau gosto e descompasso com os ideais estéticos e políticos do momento passa
a ser eleito como manifestação de desejos populares. A reação a qualquer preconceito
de ordem musical será protagonizada por Caetano e pelo grupo tropicalista, pelo
tratamento parodístico reservado aos ritmos tradicionais da canção latino-americana.
A encenação kitsch de um Brasil pintado de palmeiras e bananas compunha a leitura
parodística dos trópicos, apontando, pela diferença, o valor produzido pela
musicalidade mestiça, pelo jeito de corpo, condições estas que se tornariam uma reação
contra outros tipos de performance. Após o silêncio causado pela entrada em cena de
ritmos mais sofisticados e do esquecimento dos intérpretes do passado, o Tropicalismo
proclama a mescla e a abertura musical, num gesto revolucionário, que se tornaria
responsável pelo destino da música popular na atualidade. A imagem tropical de
Carmen recebe, assim, interpretação irônica e debochada, uma forma inteligente de
apontar, no seu reboleio, as mazelas do país. Pelo riso, pela dança, pela aceitação da
condição de país periférico, com palmeiras e bananas prateadas, com a artificialidade
própria à encenação da tradição pop brasileira.
O debate sempre revigorado entre as posições nacionalista e cosmopolita no âmbito
cultural corresponde a outras preocupações vinculadas à dimensão local e global dessas
manifestações. Se hoje a situação política dos países latino-americanos não mais se
pauta pela ditadura militar subvencionada pelos Estados Unidos, as duas décadas
vividas sob o fantasma do imperialismo ianque determinaram o nível de repulsa pelos
irmãos do Norte. É nesse clima de Guerra Fria que se processa a reivindicação de
vanguarda para a Cuba pós-revolucionária frente à política colonialista norte-
americana. A narrativa artística e cultural do período se formou simultaneamente à
narrativa política, graças à articulação engenhosa entre elas. O projeto de ocupação do
espaço cultural latino-americano pelos seus agentes contou, a partir da Segunda Guerra
Mundial, com a interferência dos Estados Unidos, entendendo-se melhor os embates
ideológicos impostos pela Guerra Fria.
Alegre e parodístico, o Tropicalismo bebe em várias fontes musicais, do bolero ao
rock, da música pop às expressões de mau gosto. Em descompasso com a elite musical,
contrariava a esquerda ortodoxa e nacionalista, empenhada na defesa de valores
vinculados às raízes da cultura brasileira. O cenário artístico da década de 1960 se alia à
abertura revolucionária e libertária da América Latina, por meio de discursos de
vanguarda, aliados à denúncia social e política. O Cinema Novo, o Tropicalismo, o Teatro
Oficina, o Concretismo e o Neoconcretismo propõem redefinições artísticas e
revolucionam o ambiente político dominado pela ditadura. Em torno do regime recém-
instalado em Cuba, os ideais latino-americanos se voltavam contra os americanos e
almejavam a coerência política no continente.
Em 1967, Terra em transe, realização cinematográfica de Glauber Rocha, por meio da
imagem do país imaginário, o Eldorado, traduz de forma contundente aspirações latino-
americanas em defesa da liberdade e da denúncia social e política. Trata-se de uma das
inspirações de Caetano Veloso para deslanchar o movimento Tropicalista. “Soy loco por
ti América”, de Capinam e Gilberto Gil, gravado por Caetano, “Gracias a la vida”, por
Milton Nascimento e Mercedes Sosa (além de Elis Regina), expressavam os anseios
políticos do momento. Pôsteres de Che Guevara enfeitavam as paredes da juventude e El
Paradiso cubano acenava com charutos, rumba, boleros e salsa caliente. E
principalmente revolução.
Nesse ambiente de euforia e desbunde tropicalista, a literatura, o teatro e o cinema
desfaziam a almejada integração americana proposta pelos Estados Unidos, inserindo a
criatividade revolucionária dos trópicos. Colocando-se na posição paradoxal – e
inteligente – diante da cultura americana, seus intérpretes realizaram, talvez, a mais
lúcida integração entre Norte e Sul. O rock dos anos 1950 conversou com os
tropicalistas na mesma proporção que o ritmo negro do jazz e das rumbas. Caetano
sempre defendeu o fascínio que a música americana exerceu na sua formação e no
imaginário de toda uma geração. José Agripino de Paula, no romance PanAmérica,
constitui um dos mais instigantes textos do momento, ao se filiar à proposta da
literatura pop e da contracultura.
Fina estampa, CD de 1994, redefine o olhar de Caetano Veloso frente ao arquivo
musical latino-americano. Numa viagem sentimental e nostálgica, o intérprete revitaliza
sons e ritmos pontuados pelo glamour dos anos 1950 e de um passado pré-
revolucionário e pós-utópico. Seleciona canções que vão do cubano Lecuona ao
argentino Piazzolla, recorte que se desenha como autobiografia musical. Fecha o CD com
a composição de 1988, “Vuelvo al sur”, de Piazzolla, como forma de justificar o projeto
do disco. Boleros, rumbas, guarânias ressurgem na voz do intérprete de forma
particular, pela presentificação de tempos passados. Estranhar o conhecido e revitalizá-
lo são uma das mais frequentes atitudes de Caetano como leitor atento da tradição
musical à qual pertence. Sem endossar a volta romântica ao passado nem a uma
nostalgia petrificada, Fina estampa aguça o sentimento contemporâneo de uma
retomada crítica e de uma reverência à tradição de uma América mais feliz e menos
pobre.
Dez anos passados, no momento em que os Estados Unidos invadem o Iraque,
Caetano grava “A foreign sound”, “para lançar um olhar sobre a americanidade
americana”, nas palavras de Eucanaã Ferraz. Prevalece a proposta tropicalista de
romper preconceitos de toda ordem em se tratando de cultura, pelo exercício livre da
história pessoal do cantor, pela homenagem, à sua maneira, às canções americanas que
embalaram os bailes de sua geração. A interpretação obedece a uma escolha pessoal, ao
inserir percussões baianas e instrumentos nativos nos arranjos das canções, estratégia
perfeita para a prática da leitura crítica como traço singular. A apropriação amorosa e
irônica do repertório clássico americano se vale de procedimentos que deslocam e
condensam ritmos, diferentes línguas e o feeling musical herdado da melhor tradição da
cultura negra das Américas.
A retomada da tradição musical latino-americana inevitavelmente se apoia na leitura
dos vazios e intervalos de intérpretes excluídos pelo cânone, representantes de estilos e
ritmos marginalizados pela racionalidade moderna. Entre eles se encontram os boleros
da cubana Estrella, do pianista cubano de ritmos caribenhos, Bola de Nieve, e de vários
outros esquecidos sambistas brasileiros.
(Artigo publicado no Estado de Minas, Belo Horizonte, 10 nov. 2007. Caderno Pensar, p. 1.)
Referências
CABRERA INFANTE, Guillermo. Tres tristes tigres. Barcelona: Seix Barral, 1970.
PAULA, José Agripino de. Pan-América. São Paulo: Tridente, 1967.
VELOSO, Caetano (Interp.). Fina estampa. Poligram, 1994. CD.
O samba da minha terra

O papel exercido pela música popular na invenção do imaginário cultural e político


brasileiro tem recebido, nos últimos anos, efetivo reconhecimento. Com a abertura
veiculada pela crítica cultural na universidade, principalmente na área de letras,
constatou-se a diluição de hierarquias discursivas e a relativização dos paradigmas
hegemônicos, como o da alta literatura, das grandes narrativas, da estética pura ou da
alta modernidade. A releitura desses paradigmas no interior das ciências humanas
permitiu a transformação do corpus de análise, valorizando-se os discursos até então
relegados ao segundo plano ou desprovidos de valor conceitual. O discurso musical,
assim como o da cultura de massa, tem sido recuperado pela academia, em virtude do
deslocamento dos saberes e da gradativa interferência das instâncias multiculturais.
Se a música popular brasileira – na sua complexidade conceitual – atingiu o prestígio
que tem hoje, tal fato se deve à sua ligação com os compositores representativos da
década de 1960, de nível universitário, e com forte engajamento social e político. Graças
à revolução musical instaurada pela bossa-nova, no final dos anos de 1950, em
consonância com o programa desenvolvimentista de governo do presidente Juscelino
Kubitschek (1956-1961), traça-se no país um desenho cultural e político de dimensão
significativa para a compreensão do imaginário da época. Embora o samba tenha
ocupado, em períodos anteriores, papel relevante para a legitimação dos conceitos
modernos de nacionalidade e identidade popular, articulando-se em torno de
compositores e intérpretes de classes sociais distintas, somente mais tarde é que essas
relações serão sistematizadas por estudiosos no assunto. Os fatores que mais
contribuíram para a retomada de uma posição reflexiva sobre a tradição da música
popular brasileira resultaram do diálogo iniciado entre a classe intelectual e a classe
artística, de modo ainda incipiente nas décadas de 1920 e 1930 (Pixinguinha e Gilberto
Freyre, Manuel Bandeira e Sinhô), e a continuação operada por parte dos artistas que se
sucederam. Antônio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto, Chico Buarque de
Holanda, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, entre outros, pertencentes à
classe média, desempenhavam a dupla função de artista e intelectual, ao se
posicionarem como porta-vozes dos desejos populares de transformação social.
Ao substituírem o lugar dos poetas do Modernismo diante da cultura popular, pela
sua formação letrada, encurta-se a distância entre a classe intelectual e o compositor
popular, uma vez que a mediação se efetua de modo eficaz. Torna-se mais próximo o
diálogo entre as experimentações vanguardistas do discurso musical do período e a
tradição da música popular. Chico Buarque conversa com o samba urbano de Noel Rosa,
com o chorinho matreiro de Pixinguinha, assim como Caetano Veloso articula as
inovações da música internacional aos ritmos nacionais. Essa reflexão torna-se
necessária para a construção da linha evolutiva do discurso musical brasileiro.
O fator de legitimação do grupo, marcado pela influência revolucionária da música de
João Gilberto, das variações jazzísticas e internacionais de Jobim e da poética de Vinicius
consiste no nível literário das letras, produto da relação estreita entre a classe
universitária e a artística. João Cabral de Mello Neto, Carlos Drummond de Andrade,
Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e os poetas concretistas, como
Haroldo e Augusto de Campos, participam indiretamente desse momento de
transformação da cena musical brasileira, ao se transferir a experiência literária para os
experimentos resultantes da conjunção entre letra e música. Os textos cinematográfico,
plástico e teatral (o Cinema Novo, a arquitetura de Niemeyer, o teatro de Arena e o de
José Celso Martinez Correia) exerceram igualmente papel definidor na troca de
experiências com a canção popular que estava sendo produzida no momento.
Como representante desses compositores que respondem por uma poética na qual se
conjuga a herança literária da poesia moderna com o engajamento político, a escolha
recaiu em Chico Buarque de Holanda, não só pelo lugar ocupado na música popular
brasileira, mas por estar o Brasil comemorando os seus 60 anos. Com ele poderiam ser
contemplados os componentes do movimento tropicalista, como Caetano Veloso,
Gilberto Gil, Tom Zé, além de outros artistas do período, os quais dispensam
comentários quanto à defesa dos valores de cidadania e liberdade assumidos na luta
contra o governo ditatorial instaurado em 1964. O papel exercido pela canção popular
como formadora de opinião pública nessa época se deve, em grande escala, à posição de
Chico Buarque mantida ao longo de sua trajetória profissional, na condição de pensador
– e de inventor – da cultura nacional. Como motivo condutor desta proposta de análise,
será enfocada a apropriação da música como antídoto e saída para os males da nação.
Os artistas de formação literária e cultural comum à juventude universitária das
décadas de 1960 e 1970 ocuparam o lugar de intérpretes de uma comunidade
estudantil atuante e representativa dos movimentos populares e políticos do período.
Uma geração que cresceu ao lado de seus ídolos musicais, que se alimentou dos mesmos
paradigmas literários e políticos, e que hoje ocupa espaços significativos no cenário
nacional. Por essa e outras razões, a fidelidade aos princípios estéticos e culturais
próprios a essa geração de compositores constitui, às vezes, empecilho para a aceitação,
por parte da crítica, de estilos musicais contemporâneos alheios a essa prática. Através
da mediação do compositor letrado, evidencia-se o teor de miscigenação racial como
marca da produção heterogênea existente seja entre a música brasileira e a estrangeira
– o jazz, o rock –, seja em relação ao samba ou a outros ritmos nacionais. Ainda que a
opinião pública se comportasse de maneira desconfiada diante das manifestações
musicais oriundas da classe popular – da favela e da periferia – e da classe média
universitária, somente nas últimas décadas do século 20 é que a natureza heterogênea
desse discurso recebeu tratamento adequado.
Na opinião de Hermano Vianna, em O mistério do samba, o discurso da
homogeneidade mestiça terá que ser revisto a partir da presença simultânea de projetos
heterogeneizadores, que pregam a diferença como contrapartida da semelhança entre
os discursos. A presença dos “mediadores transculturais” propicia a interpenetração de
projetos os mais variados e de mundos diferentes, “remodelando constantemente os
padrões correntes à vida social e mesmo redefinindo as fronteiras entre esses mundos
diferentes”. E acrescenta:
O discurso da homogeneidade mestiça, criado no Brasil através de um longo processo de
negociação, que atinge seu clímax nos anos 30, tornou determinados “atos decisivos” possíveis e
aceitos (como, por exemplo, o desfile de escola de samba com patrocínio do Estado), inventando
uma nova maneira de lidar com os problemas da heterogeneidade étnica e do confronto
erudito/popular.1
É forçoso lembrar que a função mediadora dos artistas junto aos anseios populares se
configura atualmente de modo diferenciado, uma vez que se reatualiza o verso do
samba antigo “eu sou o samba / a voz do morro sou eu mesmo / sim sinhô”, ao ser
dispensada a mediação pelo intérprete e assumida a voz de seu gueto. O funk, o rap e o
pagode são performances que registram a inserção da marginalidade no debate
contemporâneo sobre a música popular. O nível de complexidade existente na sociedade
brasileira merece ser levada em conta, para que não sejam cometidos equívocos
interpretativos nem preconceitos referentes a esta ou aquela manifestação musical,
considerando que a diversidade cultural de um país periférico certamente conduz a
discussões sobre o gosto ou os critérios de valorização estética.
Como procede o discurso crítico universitário diante das transformações sofridas
pela música popular brasileira, seja aquela surgida nos anos de 1980, com forte
influência do rock internacional, seja a mais atual, pautada pelas manifestações da
periferia e das favelas e se inserindo nos movimentos marginais tanto dos países
periféricos quanto dos centros urbanos globalizados? O discurso musical anterior era
interpretado pela erudita conjunção entre o valor poético e o político, procedimento
capaz de promover uma reflexão estética sobre o cotidiano urbano, as utopias políticas
ou ainda as referências metalinguísticas, numa época de censura e repressão. Pela
utilização de um discurso alegórico – as “segundas intenções” segundo a censura – se
sobrepunham alusões ao discurso amoroso e ao político, ao jogo enganoso das palavras,
o que se traduzia no convívio paradoxal entre o riso e a dor. Com a abertura política na
década de 1980, considerada, contudo, como a década perdida, procedeu-se à revisão
dos procedimentos artísticos, em busca de outra linguagem que pudesse desenhar
novas linhas criativas e diferentes inserções políticas. O cinema, a literatura, a música, o
teatro e as demais artes irão passar por momentos de indefinição e crise, o que
culminará com o aparecimento de distintos parâmetros poéticos, aliados a
instabilidades de toda ordem.
O comportamento da opinião pública que acompanhou a trajetória do discurso
musical dos compositores letrados reage, muitas vezes, de modo conservador e
saudosista diante das manifestações mais populares, ao se sentir órfã de novos nomes e
intérpretes à altura dos anteriores. Torna-se comum a utilização de clichês valorativos
em defesa da superioridade das composições realizadas pela classe letrada de
compositores frente aos produtos contemporâneos, em que são diluídas as fronteiras
entre o espaço público e o privado, entre a cultura erudita e a de massa, ou entre classes
sociais. A tendência habitual dessa crítica é a de se munir igualmente de um
instrumental teórico que contemple os discursos vinculados a uma concepção moderna
dos valores, em que se privilegiam as letras das músicas em detrimento dos inúmeros
componentes das mesmas, como a sua inserção no mercado e na complexa rede da
cultura de massa. Os critérios de valor estético, antes válidos para um determinado
grupo e em razão da própria contingência histórica desse discurso musical, deverão ser
redimensionados, considerando que os conceitos de boa música ou de má qualidade das
composições dependem das mudanças processadas no contexto social e político em que
são geradas.
Um artista brasileiro
Em 1993, a canção “Paratodos” vem selar a linha genealógica instaurada por Chico
Buarque diante dos pais legítimos e pais musicais, por se tratar de uma toada-
homenagem aos personagens que integram a tradição da música popular. A letra
contém uma bem-humorada saudação à música produzida em todo território nacional,
justificada pela origem múltipla do compositor, que se nomeia filho de paulista, neto de
pernambucano, bisneto de mineiro e tetraneto de baiano. Na qualidade de defensor do
conceito de música popular, que privilegie o aspecto nacional na sua heterogeneidade,
uma proposta distinta da modernista considera as manifestações locais como diferenças
que se suplementam ao conceito de nação. A herança musical completa a genética, por
conjugar na figura do “maestro soberano”, Antônio Brasileiro, o nome e a função
relativos à gestação musical de um compositor brasileiro, inserido na tradição do
samba, do chorinho e da bossa-nova. O artista nasce do duplo poder de Antônio
Brasileiro, que, ao lado da função de iniciador e maestro, pelo nome e pela sua lição, se
pauta pela construção de uma música com raízes brasileiras: “O meu pai era paulista /
Meu avô, pernambucano / O meu bisavô, mineiro / Meu tataravô, baiano / Meu maestro
soberano / Foi Antônio Brasileiro.”
A leitura da música popular sob esse ângulo esclarece não só a reflexão sobre sua
tradição, como avança na sistematização das questões identitárias. José Miguel Wisnik,
em “A gaia ciência - literatura e música popular no Brasil”, aborda a presença, em
“Paratodos”, de vários pais, dentre eles o pai paulista, “o próprio Sérgio Buarque de
Holanda, autor de Raízes do Brasil, remetendo a toda uma linhagem de fundações
colhida nessa toada serenada”.2 À herança genética se acrescentam a livresca e a
intelectual, responsáveis por um pensamento moderno e canônico sobre a identidade
nacional.
Na década de 1930, o samba carioca “começou a colonizar o carnaval brasileiro,
transformando-se em símbolo de nacionalidade”,3 conforme afirma Hermano Vianna,
em O mistério do samba, ao relegar os demais gêneros regionais. Tal atitude respondia,
como se sabe, pelo projeto de modernização e de nacionalização da sociedade. O mesmo
não se verifica na posição de Chico Buarque em “Paratodos”, ao deslocar o samba de seu
lugar anterior, portanto, de origem negra e carioca, e alçado a símbolo de nacionalidade.
Ao optar por compor uma toada, cantiga popular, de melodia simples e não circunscrita
a uma região específica, o compositor dirige a saudação aos intérpretes de vários ritmos
nacionais, do samba ao rock, e confirma a natureza heterogênea, híbrida e mestiça da
música popular, avessa a critérios de pureza criativa ou de essência étnica. O mesmo
não se deve afirmar sobre o “Samba da bênção”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes,
modelo musical de “Paratodos”, composto na década de 1960. Nesse samba, é saudada a
comunidade de compositores negros, homenagem que a bossa-nova presta aos seus
precursores e à tradição musical. Nas palavras de Maria Alice Resende de Carvalho,
citada por Maria Rita Khel, em “Da lama ao caos: a invasão da privacidade na música do
grupo Nação Zumbi”,4 esta comunidade não era brasileira, mas carioca, tendo alcançado
o status brasileiro a partir das palavras de Vinícius, que se coloca como “o branco mais
preto do Brasil”:
Ouvimos a voz de Vinicius de Moraes saudando, como se estivesse, no mesmo ato, nomeando essa
comunidade, e criando simbolicamente essa comunidade. (…) E Vinicius vai dizendo: saravá
Cartola, Pixinguinha, Nelson Cavaquinho, saravá Sinhô, Ismael Silva, Donga, Noel (este era branco),
Lupicínio (este era gaúcho). Vinicius e Baden Powell saúdam a comunidade negra do samba
brasileiro.5
Eleger Tom Jobim, o “maestro soberano”, é ainda legitimar a filiação à bossa-nova,
representada por um de seus maiores símbolos, além de colocá-la como marco
revolucionário da música brasileira, em todos os seus aspectos. Por ocasião dos 90 anos
de Oscar Niemeyer, Chico Buarque, em texto de homenagem, confirma as afinidades
eletivas com Tom Jobim e as estende ao arquiteto. Ao sentimento de decepção do
compositor por não ter morado em casa projetada para o pai por Niemeyer se mescla a
sua dívida diante da profissão de arquiteto, por ter deixado o curso pela metade. Nesse
texto, verifica-se a condensação das figuras de Niemeyer e Tom Jobim como símbolos do
desejo de perfeição buscado pelo artista, aliando o sonho do arquiteto à música. O livro
de Fernando de Barros e Silva, Chico Buarque, recupera esse texto e o elege como
abertura do ensaio. A passagem citada é daí retirada: “Quando minha música sai boa,
penso que parece música do Tom Jobim. Música do Tom, na minha cabeça, é casa do
Oscar.”6
Fernando de Barros e Silva vai além da escolha pessoal e profissional de Chico,
interpretando alegoricamente a autobiografia do compositor como forma de expressar
um pensamento de construção do Brasil, principalmente no período moderno e
desenvolvimentista protagonizado pelo presidente JK e a bossa-nova:
A casa de Oscar e a música de Tom pertencem a um país cuja construção era visível. Mais do que
isso, Oscar e Tom projetam e exprimem esse país tangível. Estamos falando de Brasília e de bossa-
nova, do final dos anos 1950, com toda sua atmosfera de encantos, quando se vislumbrou a
possibilidade de realização do que se pode chamar de uma utopia brasileira. Foi a época em que se
viveu a ilusão de que a mesma chave que podia reparar as injustiças de uma herança histórica
pesada serviria também para abrir as portas da nossa modernidade.7
A escolha do precursor por Chico, assim como a linha evolutiva seguida por ele, insere
o compositor na mesma tradição de Caetano Veloso, representada pela bossa-nova,
embora tenham eleito percursores e caminhos diferentes. Delineiam-se mais de perto as
distinções entre eles, principalmente por ter o compositor baiano preferido João
Gilberto como seu precursor, afinidade que permite desenhar poéticas particulares e
justificar posições ideológicas. Em ambos, contudo, persiste a intenção de legitimar
influências e o propósito de assumir o pertencimento a um país igualmente inventado
pelas suas canções e carregado de utopias. No ensaio citado de Wisnik, o
músico/ensaísta registra também a homenagem/filiação de Gilberto Gil a Dorival
Caymmi, na canção “Buda Nagô”, preocupação comum a esta geração de compositores. A
música de Gil se definiria pela defesa do traço identitário negro: “Dorival é Eva / Dorival
Adão / Dorival é lima / Dorival limão / Dorival é a mãe / Dorival é o pai / Dorival é o
peão / balança mas não cai.”
A admiração de Chico Buarque por Antônio Brasileiro reside, portanto, na defesa de
uma poética pautada pelo lirismo, pelos temas amorosos e pela harmonia musical que
busca recriar as imagens e os sons da natureza, uma forma de eleição dos temas
nacionalistas. É brasileiro o tom, é revolucionária a urgência em preservar o desgastado
sentimento de nação, através de resíduos ainda presentes na voz inaugural dos
pássaros. O primeiro encontro entre eles talvez tenha sido com “Sabiá”, de 1968, nova
canção do exílio que, durante o Festival da Canção foi interpretada como distante dos
ideais políticos do momento. Concorrendo com a politizada “Pra não dizer que não falei
de flores”, de Geraldo Vandré, “Sabiá” é a escolhida e recebe uma homérica vaia.
O canto melancólico do exílio não correspondia ao tempo marcado por gritos e
mordaças causados pela repressão. O recado era sofisticado, tanto no nível melódico
quanto textual, tornando-se incompreensível para os ouvidos da opinião pública,
voltada para o estilo eloquente e direto das canções que animavam o ambiente
espetacular dos festivais. A letra denuncia, em tom melancólico e lírico, o silêncio
imposto pela censura, pela evocação da paisagem emudecida do país das palmeiras. A
expressão artística reprimida se metaforiza na emergência do canto e da voz “da sabiá”:
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá.
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia.
O meu samba é uma corrente
O poder atribuído à música em “Paratodos” refere-se ao seu valor de antídoto, capaz
de curar a humanidade de todos os males, constituindo um motivo recorrente na obra
de Chico Buarque. A função catártica e libertária da música está presente desde a
primeira canção, “Tem mais samba”, de 1965, em que se anuncia que “se todo mundo
sambasse, seria tão fácil viver”.
Mas a trajetória do artista, no empenho de ler a realidade pela mediação do discurso
musical, sofre transformações ao longo do tempo e acarreta mudanças no tratamento
desse discurso. O período vivido sob repressão política abala o impulso revolucionário
do samba, como em “Esta moça tá diferente”, “Corrente” e “Agora falando sério”,
notando-se que a ênfase no recurso autorreflexivo e metalinguístico de sua obra contém
uma leitura alegórica e denunciante do momento histórico:
Agora falando sério
Eu queria não cantar
A cantiga bonita
Que se acredita
Que o mal espanta
Dou um chute no lirismo
Um pega no cachorro
E um tiro no sabiá
Dou um fora no violino
Faço a mala e corro
Pra não ver banda passar.
Em “Paratodos”, a mensagem musical vinda dos intérpretes e compositores nacionais
atua em todos os sentidos, ultrapassando o auditivo, uma vez que o seu consumo
antropofágico se reverte em força positiva e em experiência de vida. A formação do
artista se nutre do exemplo e da presença da música, a ponto de se redimir dos males
pelo exercício salutar da profissão. Na sua ação catártica, propicia ao outro a vivência da
tristeza e da alegria, como prova do valor a ela atribuído. Seguindo o modelo das
cantigas populares que se revestem de lição e de exemplo, o narrador-artista dirige-se
ao público para aconselhá-lo, cumprindo missão instrutiva, muito comum aos rapsodos
de feira nordestina:
Nessas tortuosas trilhas
A viola me redime
Creia, ilustre cavalheiro
Contra fel, moléstia, crime
Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro.
Vi cidades, vi dinheiro
Bandoleiros, vi hospícios
Moças feito passarinho
Avoando de edifícios
Fume Ari, cheire Vinicius
Beba Nelson Cavaquinho.
Se a experiência da ditadura provocou sentimentos de mal-estar no artista e
descrença na denúncia política pela música, em “Paratodos” o clima é de bem estar e de
purgação da dor pela alegria, em que se exercita o conceito de “gaia ciência”, o “saber
alegre” de F. Nietzsche (1844-1900). A positividade existencial se nutre da experiência
da dor, sem que haja a superação de um polo pelo outro. Os discursos do ressentimento,
do luto e da melancolia são substituídos pela alegria restauradora. A abertura política
no país já havia sugerido o extravasamento de emoções, por meio do desfile alegórico e
metafórico pela avenida do bloco da ditadura, em “Vai passar” (1984), em que se reforça
o desejo de restauração da democracia e da vitória do samba popular. Semelhante
posição se encontra na mais famosa canção do autor, “A banda” (1966), em que se exalta
o poder mágico e revolucionário da música. Durante a passagem da banda, vivencia-se,
por instantes, a participação do homem comum, capaz de sair da alienação e despertar
para a ação. O tom lírico dessa composição, aliado a uma melodia contagiante e
sedutora, marcou o lançamento oficial de Chico Buarque no cenário nacional, ao mesmo
tempo que serviu de argumento negativo para o balanço de sua obra feito pela crítica. O
espírito alegre, apoteótico e catártico de “Vai passar” responde, sem dúvida, por outra
função exercida agora pelo “bloco do sanatório geral”, trazendo o fim da ditadura
militar.
A década de 1990 é responsável pelo convívio dos países periféricos com o processo
político e econômico da globalização, o que resultou não só no poder de igualar as
qualidades locais com as estrangeiras, mas de ampliar as desigualdades, integrando,
globalmente, as minorias. A imagem de nação moderna vai perdendo o seu traçado
original, como na canção de 1998, “Iracema voou”, uma revisão do modelo romantizado
da personagem Iracema, de José de Alencar. O voo de Iracema em direção à América, em
busca de emprego, emblematiza o destino de milhares de habitantes das nações
periféricas, embalados pelo desconcertante ritmo neoliberal. América refere-se ao nome
do continente que se incrusta e se alegoriza no nome de mulher, Iracema, efetuando-se
a inversão do sul pelo norte e a perda gradativa da identidade, causada pela ausência de
pertencimento ao lugar de origem. Rompe-se o sentido positivo de Iracema representar
o continente e se impor como mito fundador da colônia, presente no romance
romântico, para ser relida na condição de desterrada na própria terra:
Iracema voou
Para a América
Leva roupa de lã
E anda lépida
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá
Tem saído ao luar
Com um mímico
Ambiciona estudar
Canto lírico
Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudades do Ceará
Mas não muita
Uns dias afoita
Me liga a cobrar:
– É Iracema da América.
Um sambista que escreve livros
Se a força revolucionária do samba só encontraria lugar propício de realização no
espaço público da rua, da avenida, do carnaval ou das manifestações populares como as
passeatas, os comícios das diretas, a literatura de Chico Buarque é menos ainda de
“levantar poeira”. Estorvo (1991), Benjamim (1995), Budapeste (2003) e Leite
derramado (2009), além de Fazenda modelo (1975), compõem o seu acervo literário,
mas se desvinculam, com exceção da primeira novela, de força alegórica e política, do
apelo emotivo, lírico e sedutor das canções. O efeito truncado e labiríntico da narrativa
atende ao descompasso das personagens com o mundo, à ausência de saída dos
problemas que atingem a sociedade pós-urbana e pós-moderna. A praça pública perde a
função de ser o local de convivência humana e de palco de discussões, ao ceder lugar
para a dispersão dos grandes centros urbanos, povoados pela fantasmagoria dos falsos
encontros e de troca de experiências. Com a ruína dos discursos utópicos, pelo
esvaziamento do poder de mudança radical alimentado pelo teor revolucionário da
década de 1960, Chico Buarque se reduplica em artista e escritor, e abandona
gradativamente o palco da rua. O narrador de Budapeste é retratado na sua função
invisível de ghost writer, o escritor fantasma que perde a identidade e se torna autor de
livros que nunca escreveu. Por meio de um processo irônico, instaura-se um clima de
estranhamento do escritor com a sua própria imagem.
Chico Buarque é hoje um escritor pop, o duplo do artista consagrado, que, em virtude
de seu temperamento e de estratégias mercadológicas, cultiva o sonho de se
transformar em artista invisível, não cedendo à solicitação esquizofrênica da mídia. O
compositor se esconde na pele do escritor, o artista detesta o palco e o espetáculo,
alcança a popularidade por se mostrar avesso a ela e se consagra muito mais pela
negação da celebridade. Ao contestar a participação mais efetiva na vida pública,
furtando-se a emitir opiniões políticas ou se recusando a comparecer a sessões de
homenagens, defende a vida privada como refúgio e se fecha para o populacho.
Comparece, contudo, ao Festival do Livro em Parati, declarando que “às vezes é bom que
o escritor se exiba um pouquinho, que saia da toca e se reúna com outros escritores.
Senão viram bichos esquisitos.”
Bicho esquisito ou não, Chico Buarque responde por uma participação efetiva na
história da música popular brasileira e na defesa de uma imagem de país que ajudou a
inventar através de seus acordes dissonantes. Se os sonhos ficaram no meio do caminho,
a intenção em realizá-los pela mediação da música permanece e se desdobra na
revitalização de sua obra pelos futuros leitores.
(Artigo publicado em Ciência Hoje, v. 35, p. 20-24, 2004.)
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183-189.
Espelho de tinta

Um dos traços marcantes da literatura contemporânea é o alto nível de deslocamento


e de estranhamento do sujeito-escritor no discurso, traço que comprova a complexa
sensibilidade literária de nosso tempo. O deslocamento literal e metafórico dos
parâmetros modernos nacionalistas responde hoje por uma ficção politicamente
engajada nos dramas sociais, situados aqui e além dos territórios e dos interesses locais.
O estranhamento é decorrência do estatuto de estrangeiro conferido ao escritor, ao se
encontrar em constante processo de dessubjetivação. Diante da inevitável perda de
identidade autoral, aliada ao esforço de entender o aspecto heterogêneo e mestiço das
manifestações culturais, a literatura afasta-se das aventuras imaginárias do passado,
pautadas pela nostalgia da origem.
O que, na realidade, significa ser um autor brasileiro hoje? Ou esta pergunta carece de
sentido? Qual seria a aspiração de qualquer escritor que se preze, a de ser reconhecido
apenas no país de origem ou no resto do mundo? Quais os tipos de linguagem e de
abordagem temática são reservados para a conquista da notoriedade nacional e
estrangeira, num momento em que as diferenças contextuais tendem a ser devoradas
pelo apelo à padronização estética e cultural?
Os títulos mais recentes do romancista Bernardo Carvalho, incluindo O filho da mãe,1
confirmam a saída romanesca para outros lugares, como Mongólia e Rússia (Mongólia),
passando pelo diálogo entre Brasil e Japão em O sol se põe em São Paulo. A experiência
do contato com o estrangeiro não se configura apenas enquanto ligada ao exterior, mas
por ser manifestação do outro, reflexo invertido do sujeito/escritor. A escrita
autobiográfica, comparada ao “espelho de tinta” por Michel Beaujour, encontra
ressonâncias na ficção de Carvalho, por manter o movimento paradoxal de proximidade
e distanciamento entre literatura e vida, ficção e documento.
Como parte do projeto intitulado “Amores Expressos”, O filho da mãe se passa na
cidade de São Petersburgo, com rápidas cenas em Moscou e em outros lugares da
Rússia, no mar do Japão, no Oiapoque, Brasil. O tema da maternidade se articula com o
da guerra, do amor e da morte, sentimentos contraditórios responsáveis por momentos
de rara beleza na narrativa. O estranhamento, que à primeira vista o livro provoca no
leitor, deve-se à sua produção gráfica e ao sentido do título, sugerindo ambos uma
publicação nos moldes de pulp fiction, ficção que explora temas menos nobres, de
natureza popular e de massa. A capa do livro lembra a de um exemplar velho e usado,
em diálogo com a acepção residual do título, xingamento que remete à bastardia, traço
irônico atuante nos dramas centrais do romance.
Quem imagina São Petersburgo como a cidade literária por excelência, povoada de
personagens que transitam nas ruas, como os funcionários de Gogol ou o próprio
escritor Dostoiévski, se depara com os fantasmas que essa mesma literatura consagrou,
graças ao clima sombrio e misterioso aí recriado por Carvalho. O cenário em construção
das ruínas da cidade – em 2003, às vésperas da comemoração de seus 300 anos –
constitui a alegoria desse romance: os resíduos do passado político e cultural do país
presentificam-se no descompasso entre a liberdade revolucionária e a máquina
ditatorial e corrupta do Estado. Envolvidos nesse clima sufocante, dois jovens
“estrangeiros” encontram o amor e a morte como único recurso para ultrapassar as 300
pontes de São Petersburgo.
Os protagonistas – Ruslan, nascido na Chechênia, e Andrei, fruto da união de um
exilado político brasileiro e uma russa, natural de uma cidade fronteiriça com a China –
veem-se em constante conflito com o tecido urbano, dotado de visibilidade e controle.
Fogem, escondem-se e unem-se perigosamente nos prédios abandonados: “De alguma
forma, Ruslan passou a associar o amor ao risco e à guerra, porque não conhecia outra
coisa. Associou o sexo à trégua (o desejo deixava a realidade em suspenso) e o amor à
iminência da perda. E daí em diante só conseguia amar entre ruínas.”2
O enredo de O filho da mãe obedece aos malabarismos próprios da técnica
parapolicial, pela inversão da ordem narrativa e a produção de suspense, um convite ao
diálogo ficcional. Esse pacto entre escritor e leitor é uma das razões do sucesso editorial
de Bernardo Carvalho, por ser a trama policialesca e investigativa uma das mais
atraentes modalidades da literatura de nossos dias. Mas, além da construção engenhosa
do enredo, o livro denuncia as ruínas do ambiente artístico, literário e político da cidade
de São Petersburgo para encenar as contradições e os problemas existenciais causados
pelos problemas multiculturais. A ausência de sentimento patriótico entre os jovens
permite considerar os dramas sob os âmbitos local e global, entendendo-se essa
articulação como justificativa para o abandono da postura nacionalista em literatura ou
em outra manifestação artística.
Os amores expressos exibidos em O filho da mãe alternam-se entre o sentimento
materno e o desamparo dos filhos em meio às crueldades da guerra e à relação amorosa
entre os dois rapazes. O desfecho do romance metaforiza-se na formação do jogo
especular entre a cena final envolvendo Andrei e a morte do bezerro recém-nascido –
disforme e produto da mistura de dois embriões, portador de mau agouro, “o filho da
mãe” – e a passagem anterior referente à carta deixada por Ruslan e lida por Andrei,
reportando um fato de infância presenciado nas montanhas. Trata-se do nascimento
monstruoso de um potro, mais tarde por ele reconhecido como a versão aproximada da
quimera, animal mítico composto pela mistura de vários animais. É ainda o título do
segundo capítulo do livro. A eliminação do diferente se realiza no romance nos planos
animal e humano, por meio dos quais se apaga a imagem do duplo como espelho do
sujeito e de seu outro. A união “monstruosa” e o consequente extermínio entre iguais se
processa tanto no nível do enredo amoroso quanto no da proposta do livro, que é a de
considerar a invenção de histórias em terras estranhas o espelho invertido de
experiências pessoais.
A literatura como destino, este espelho de tinta, se realiza de forma admirável em O
filho da mãe.
(Artigo publicado no Jornal de Resenhas, São Paulo, p. 8-9, 6 jul. 2009.)
Bibliografia
CARVALHO, Bernardo. O filho da mãe. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Com açúcar e com afeto

Naqueles primeiros dias de março de 1951, não sabia que as aulas do curso primário
iriam começar. Mamãe me alertou, aflita, que já estava na hora de me aprontar para ir à
escola. Foi uma correria e, nessa aflição, até a cozinheira trocou o sal pelo açúcar, o
arroz ficou adocicado e foi impossível almoçar. A lembrança desse dia sempre me
evocou a ideia de inversão, de deslocamento, uma coisa pela outra, momento que
marcaria minha atitude diante da vida para sempre. Tinha sete anos e pela primeira vez
começava a aprender a escrever e a ter noção do espaço branco da página. A única
leitura que praticava – não sei como explicar – era a das partituras musicais, pois aos
seis anos e meio iniciara o estudo de piano com a professora Nise Silva.
As primeiras letras no Curso Primário da Escola Normal Oficial de Manhuaçu – hoje
Escola Estadual Maria de Lucca Pinto Coelho – foram marcadas pelo entusiasmo e pela
alegria da descoberta, pelo contato, visto hoje como transparente e cordial com os
colegas, funcionários e professores. De saia azul-marinho pregueada, blusa branca e um
pequeno distintivo preso ao bolso da blusa, além de uma gravata fininha e da mesma cor
da saia – sempre perdida e alvo de reprimendas por parte do sr. João, o porteiro –,
começávamos a lidar com a ordem e a disciplina, com a obrigação de obedecer às filas,
aos lugares fixos na sala, além das regras e dos exercícios de escrita, de leitura e do
desenho.
Da primeira experiência com a escrita e com a leitura, indo da cópia enviesada de meu
nome no caderno de exercícios, da falta de controle do lápis sobre o papel, do lento
aprendizado das frases aprendidas por inteiro – o método conhecido como global –, da
visualização das sílabas, do fragmento que se completava no todo da frase, me é difícil
lembrar, com clareza, das lições de alfabetização. Não se tratava do Livro de Lili, tenho
certeza, pois o único resquício de frase que retenho, “Olhem o Paulinho, ele tem um
cachorrinho”, estampada no cartaz colado ao quadro negro, parece não dizer muita
coisa sobre os manuais da escola primária. Ou esta lição eu a ouvi durante o
aprendizado de meu irmão, um ano e meio mais novo do que eu?
“Ivo viu a uva”, que soa hoje como um verso, talvez tenha sido uma das práticas
utilizadas no processo de alfabetização, mas será que não foi ela incorporada às
experiências de leitura dos outros? O esquecimento não se explicaria pela recusa em
arquivar o que veio primeiro, se o Ivo ou a uva, se a escrita ou a leitura, se a voz do outro
no lugar da minha, a inverter a ordem das coisas, a embaralhar as lembranças, a comer
arroz com açúcar? Pela seleção subjetiva da memória, que conserva alguns momentos
ou mentaliza passagens que mais tenham marcado a criança, fica difícil separar o que de
fato se passou entre quatro paredes de uma remota sala de aula da década de 1950. No
frigir dos ovos, essa seleção rememorativa tende a reforçar o gosto da criança pela
literatura, ao compor, de forma ingênua, poemas e dramatizações sobre temas
patrióticos, já na quarta série primária. Ou ainda de ter sido escolhida a oradora da
turma, discurso redigido numa sentada, embora contendo uma página e meia, mas lido
diante de um auditório repleto. A foto desse momento estampa um vestido rodado, de
cor rosa, sapato preto e meia soquete, penteado preso em pequeno coque e papel em
punho, remetendo, sem dúvida, para a carreira a ser abraçada pela jovem formanda, a
de professora universitária, com atuação na vida acadêmica e pública.
A ousadia se mesclava à timidez, componentes de minha personalidade que ainda se
integram à versão adulta. A escrita da iniciante nas letras, por força da facilidade de
expressão e de certa ingenuidade, não era produto de muito esforço, assim como o
hábito de leitura, que passou de hábito a vício, de vício a obsessão. As composições –
termo utilizado no primário – eram redigidas com rigor e imaginação, mas sem a
vivacidade e criatividade que eram a marca registrada de uma colega do primário,
Cristina Leite, dotada de capacidade invejável na arte de narrar, principalmente quando
se expressava oralmente. Na interpretação que fazia na época, Cristina assim se
comportava por morar na fazenda, onde o cotidiano era bem mais animado do que o
nosso. Contava histórias que a gente custava a acreditar, misturando ficção e realidade,
reunindo peripécias infantis com fatos inacreditáveis. As professoras responsáveis pelas
horas de leitura se encantavam com a sua proeza. De feição distinta, minha tendência
era para o texto escrito, o que servia de escudo para a timidez, muitas vezes detectada
na performance oral. E se antes a redação fluía de modo a não revelar as dificuldades de
confecção, à escrita a que hoje me entrego, elaborada e sofrida, é produto desse
entusiasmo próprio das primeiras letras.
Na infância, o que mais me marcou como iniciação à leitora que hoje sou, foi o
presente dado pela minha mãe de um abajur de cabeceira, em cristal e com pingentes
brancos. Esse objeto mágico iluminava, em close, as letras pretas das páginas dos livros
de Monteiro Lobato, que devorava noite adentro. A leitura sempre foi, para mim, um
gesto solitário. Conviver com os livros é uma forma deliberada de encontrar prazer no
mundo imaginário trazido pela linguagem escrita. Os rituais de leitura complementam a
criação desse ambiente fascinante, particular e subjetivo do leitor. Os livros e a noite
guardam o mistério da ficção, do ato solitário se deslocar em direção à experiência do
outro, ao espaço que ultrapassa nosso tão prosaico cotidiano.
A escola sempre foi para mim o prolongamento do ambiente familiar, pois minha
mãe, Lilita Carvalho, lecionava português nos cursos ginasial e normal e minha
madrinha, Ilza Campos, era a diretora. Embora não gozasse de regalias, no íntimo me
sentia protegida, certa de que aquele novo espaço de convivência não me afastava dos
amigos próximos, nem da rede de relações sociais de meus pais. Acostumada a
manusear os livros das estantes de casa, e de perceber, desde cedo, minha vocação para
as letras, o tempo de leitura na escola não correspondia à liberdade sentida em casa.
Câmara Cascudo, Malba Tahan, Monteiro Lobato, entre outros escritores e divulgadores
do folclore e dos contos infantis, compunham, sem dúvida, a biblioteca de toda criança
desse período. Mas o que incentivava a comunicação mais vital entre as colegas eram as
brincadeiras realizadas nos recreios, as cantigas aprendidas nos períodos de lazer, entre
as quais o “Atirei o pau no gato”, “São Francisco entrou na roda” ou “Terezinha de Jesus”.
A descontração e a alegria iam ao lado da responsabilidade em cumprir os deveres de
casa, incluindo poemas a serem decorados, para serem recitados em sala de aula (quem
não se lembra, de cor, de “O vaga-lume”, de Fagundes Varela, de “A pátria”, de Olavo
Bilac?), além dos hinos cantados nos dias de hasteamento da bandeira ou de festas
cívicas. A “Parada” de sete de setembro – e não o “Desfile” – consistia na mais
importante festa do calendário escolar, dia no qual todos desfilavam sem pudor e se
sentiam engrandecidos pela oportunidade de render um culto à pátria. Tudo hoje ressoa
de forma mágica, pois fazíamos parte da elite da cidade e, embora vivêssemos
modestamente, o limite de nosso mundo não se fechava nas montanhas.
A primeira professora deixou marcas nesta história inventada de meu curso primário.
Dona Beatriz Pacini, viúva jovem e bonita, nos encantava com sua maneira especial de
ensinar, reunia outro atrativo aos olhos dos alunos do primário: não repetia nenhuma
blusa durante os cinco dias de aula na semana, sendo todas de muito bom gosto.
Compunha sua figura o sorriso largo, o batom vivo e o corpo bem feito. A grande
variedade de blusas de seu guarda-roupa ganhava mais brilho com o uso do cinto largo
de elástico, arrematando a beleza de seu traje. Ficamos tristes quando ela foi embora da
cidade para se casar de novo. (Professora que se preze não devia nunca abandonar os
alunos dessa forma.) As outras que se seguiram, Dona Nair Leite, Carmelita Leitão, não
preencheram o vazio da primeira. Ainda mais que as matérias iam se tornando mais
complexas, ou menos atraentes para mim, como matemática, trabalhos manuais,
desenho.
É forçoso lembrar que as experiências feitas nas aulas de ciência contribuíam para o
contato mais sistematizado com a natureza, as plantas, as árvores, os animais. O dever
de casa relativo ao estudo da fotossíntese, por exemplo, teve a ajuda de um colega,
Etelvino Bechara, uma vez que sua inteligência e trato com a matéria me aliviavam nos
trabalhos. Ele se tornou um dos grandes pesquisadores da USP, na área de química. O
que me atraía, contudo, no momento, era o aprendizado da música, por meio do estudo
do piano, e o convívio constante com a literatura. As partituras serviam para a leitura do
repertório clássico, o ouvido, para criar arranjos de música popular. O gosto adocicado
do arroz mostrava ainda a força da inversão dos objetos e das intenções sempre fora do
lugar.
As dramatizações realizadas no âmbito da escola – a história de dona Baratinha e
Dom Ratão, por exemplo – completavam o aprendizado oficial, as provas orais de final
de ano, os prêmios aos melhores alunos, o respeito aos mestres e funcionários.
Aprendíamos a ser atores mirins, decorando poemas, repetindo cenas da história
brasileira, copiando lições nos cadernos de caligrafia para melhorar a letra, gravando
datas e acontecimentos significativos da história, saberes que são muitas vezes
questionados pelos métodos modernos de ensino. Com as falhas e vazios presentes na
estrutura curricular da escola primária ao longo desses 50 anos, poderia afirmar que
resta ainda um saldo positivo.
Nossa geração que vivenciou, de forma simultânea, o contato com as primeiras letras
e o restabelecimento da democracia no país, foi também espectadora do clima de
euforia do governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, do suicídio de Getúlio
Vargas, em 1954, dos acordes do samba-canção e do início da bossa-nova. Cantamos o
“Peixe vivo” por ocasião da visita de JK à escola e aplaudimos a chegada, na cidade, de
Milton Campos e Abgar Renault, respectivamente governador e secretário de Estado de
Minas Gerais, em sua recepção pelos professores da Escola Normal. Tornamo-nos
cúmplices da entrada da coca-cola nos lares brasileiros e da importação da calça
americana, hoje calça jeans, que iria substituir mais tarde os uniformes comportados da
escola e revolucionar os costumes do mundo inteiro. A morte de Getúlio, lembrada de
modo anedótico, não nos impressionou como devia. Aos olhos da infância, o que contava
era a suspensão das aulas. Voltamos alegres para casa com a notícia e fomos jogar
peteca na rua. O mesmo se deu com a morte de Evita Perón, em 1952, e a de Carmen
Miranda, em 1955. As notícias vinham pelo rádio, eram lidas nos jornais e, finalmente,
estampadas nas páginas coloridas de O Cruzeiro. Tomamos conhecimento da morte de
Evita pelas páginas da revista: os boatos sobre as armadilhas existentes no Palácio do
Governo, seu guarda-roupa luxuoso e sua rica coleção de sapatos. A lembrança está
vinculada ao fato de mamãe ter quebrado a perna na escada da escola e de meu pai ter
comprado revistas para ela se distrair enquanto estava impedida de se mover.
De Carmen Miranda, a impressão até hoje viva de sua foto mortuária, em que aparecia
maquiada e trajando um tailleur vermelho. A leitura de revistas ou de revistas em
quadrinhos em casa não era um hábito, assim como a compra de frutas estrangeiras,
dentre elas a maçã argentina, pois além de custar caro, eram de difícil acesso.
Curiosamente, a década de 1950 iria ser objeto de minhas atuais pesquisas acadêmicas,
ao reunir os estudos de literatura e crítica cultural à política, às artes e à própria
biografia. Compor fragmentariamente este período continua sendo para mim uma
forma de discorrer também sobre minha geração, de esclarecer pontos obscuros da
história individual e de contribuir para a transmissão de um recado aos futuros leitores
do país.
(Ensaio publicado em: NUNES, Maria Therezinha; TEIXEIRA, Maria das Graças; GARCIA, Maria
Mello; ANDRADE, Therezinha (Org.). Ecos do passado – memórias da infância e da escola no século
XX. Belo Horizonte: O Lutador, 2010. p. 44-48.)
Notas
Apresentação
1.
Cf. PIGLIA. Respiração artificial; PIGLIA. El último lector; RAMOS. Saber do outro.
Escritura e oralidade no Facundo de Domingos Faustino Sarmiento, p. 31-45; MIGNOLO.
Histórias locais, projetos globais; MOLLOY. Vale o escrito – a escrita autobiográfica na
América Hispânica.

2.
SOUZA. Correspondência – Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.

3.
SOUZA. Pedro Nava – o risco da memória; SOUZA. Pedro Nava.

4.
RANCIÈRE. A partilha do sensível. Estética e política, p. 53-59.

5.
SOUZA. O século de Borges.

6.
SOUZA. Tempo de pós-crítica.

7.
SOUZA. A crítica em palimpsesto – reflexões sobre a obra de Luiz Costa Lima.

8.
MIRANDA, SOUZA (Org.). Navegar é preciso, viver. Escritos para Silviano Santiago;
SOUZA. Márioswald pós-moderno, p. 23-50.

9.
BEAUJOUR. Miroirs d’encre.

10.
BORGES. O espelho de tinta.

A crítica biográfica
1.
SCHNEIDER. Morts imaginaires.

2.
Cf. SONTAG. A doença e suas metáforas; SONTAG. A Aids e suas metáforas.

3.
BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 35.

4.
SANTIAGO. Em liberdade; SANTIAGO. Viagem ao México.

5.
Cf. meu livro Pedro Nava – o risco da memória, especialmente o capítulo inicial sobre
sua morte. Sem me preocupar com a razão do suicídio do escritor, analiso o
acontecimento segundo critérios ligados à elucidação da modernização urbana do final
do século 20, do lugar deslocado do sujeito diante das mudanças operadas pelo tempo.
De flâneur o escritor passa a voyeur, além de se integrar ao patrimônio da cidade do Rio
de Janeiro, no momento em que comete suicídio em pleno espaço público, lugar que
soube tão bem lutar por sua preservação. SOUZA. Pedro Nava – o risco da memória.

6.
JEANNELLE. Où en est la réflexion sur l’autofiction?, p. 17.

7.
DOUBROVSKY. Les points sur les “i”, p. 63-64. (Tradução da autora).

8.
AGAMBEN. Ce qui reste d’Auschwitz, p. 164.

9.
O artigo de Maryse Vassevière, “Autofiction et mentir-vrai chez Aragon: les aveux de la
génétique”, define com clareza esta proposta teórico/poética do escritor: “Porque em
Aragon, o discurso autobiográfico tem sempre anseio do necessário desvio pela ficção. É
o que ele teorizou sob o nome de mentir-verdadeiramente e que se pode considerar seja
como uma pura teoria do romance se o acento é colocado sobre o mentir, seja como um
território no vasto continente da autoficção se se coloca o acento sobre o verdadeiro.”
(Tradução da autora). VASSEVIÈRE. Autofiction et mentir-vrai chez Aragon: les aveux de
la génétique, p. 90.

10.
SANTIAGO. Revista Aletria, n. 18, p. 178.

Janelas indiscretas
1.
DEBORD. A sociedade do espetáculo, p. 14.

2.
ARFUCH. O espaço biográfico – dilemas da subjetividade contemporânea, p. 96.

3.
CAUQUELIN. L’exposition de soi – du journal intime aux webcams, p. 88.

4.
DOUBROVSKY. Fils.

5.
LIPOVETSKY. Les temps hypermodernes.

6.
AUGÉ, Marc. Pour quoi vivons-nous?, p. 144.

7.
BUCI-GLUCKSMANN. Esthétique de l’éphémère, p. 84.

A biografia: um bem de arquivo
1.
HAY. A literatura dos escritores. Questões de crítica genética, p. 17.

2.
Jacques Derrida, em entrevista concedida em 1995 sobre o tema do arquivo, já estava
sensível à mudança de suporte dos manuscritos: “Ainda no século 19, havia escritores
que recopiavam os manuscritos para vendê-los. Agora, pode-se imaginar que por razões
de autoridade, de legitimidade, os escritores vão multiplicar os rascunhos nos disquetes
para confiá-los às instituições de legitimação, porque ter seu “troço” no IMEC valoriza
alguém; há cada vez mais pessoas que têm vontade de depositar seu trabalho. E ser
aceito no IMEC, é como já ser publicado na Gallimard. Então, permanecem lutas
terríveis, e lutas que acontecem também no interior da universidade. (Tradução da
autora) DERRIDA. Archive et brouillon. Table ronde du 17 juin 1995, p. 207-208.

3.
A bibliografia sobre este tema é vasta. Tomo a liberdade de citar alguns títulos de minha
predileção. Entre os autores escolhidos, estão: a) para a crítica biográfica: Nathalie
Heinich, Être écrivain. Création et identité; e La gloire de Van Gogh. Essais de
l’anthropologie de l’admiration; Michel Schneider, Mortes imaginárias; e Marilyn,
últimas sessões; Roland Barthes, Roland Barthes por Roland Barthes; Georges Perec,
Penser/classer; Les choses; e Espèces d’espaces; Maria Helena Werneck, O homem
encadernado, Machado de Assis na escrita das biografias. b) para a crítica textual e
genética: Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda (Org.). Arquivos literários;
Michel Contat e Daniel Ferrer, Pourquoi la critique génétique?; Almuth Grésillon,
Elementos de crítica genética; Louis Hay, A literatura dos escritores. Questões de crítica
genética.

4.
Cf. artigo de minha autoria, “Notas sobre a crítica biográfica”, p. 105-113.

5.
Cf. SOUZA. Pedro Nava – o risco da memória, p. 113.

6.
PEREC. Penser/classer, p. 22-23. (Tradução da autora).

7.
SÁNCHEZ. Coleccionismo y literatura, p. 118. (Tradução da autora).

8.
BENJAMIN. Desempacotando minha biblioteca, p. 234.

9.
Os originais foram transcritos, anotados e editados por Reinaldo Marques, Georg Otte e
por mim, na condição de pesquisadores do Acervo de Escritores Mineiros do Centro de
Estudos Literários da UFMG.

10.
GALVÃO. Rapsodo do sertão: da lexicogenêse à mitopoese, p. 149.

11.
Trata-se de recortes de anúncios de jornal, em alemão, recortados e colados; as datas
foram manuscritas nas margens. Tradução de Georg Otte.

Biografar é metaforizar o real
1.
Santiago. 2007. Direção de João Moreira Salles; fotografia de Walter Carvalho; produção
de Maurício Andrade Ramos; trilha sonora de João Saldanha.

2.
MATTOS, Carlos Alberto. O senhor dos salões. Disponível em:
<http://eglobo.com/blogs/docblog/posts/2007/03/23> Acesso em: 23 jan. 2011.

Freud explica
1.
SVEVO. A consciência de Zeno.

A traição autobiográfica
1.
LÉVI. O século de Sartre, p. 246.

2.
SARTRE. As palavras.

3.
COHEN-SOLAL. Sartre.

As mortes imaginárias de Pessoa
1.
SCHWOB. Vidas imaginárias.

2.
SCHWOB. Vidas imaginárias, p. 10.

3.
SCHNEIDER. Morts imaginaires.

4.
SCHNEIDER. Morts imaginaires, p. 278-279.

5.
KODAMA. Entrevista, p. 1. Nas palavras de Luis Bilbao, Borges, “como o Tenente Henry
de Adeus às armas, foi viver com sua amada num hotel da Suíça”. A ficção e seus modelos
sempre acompanhando os atos do escritor.

6.
BARTHES. Aula, p. 46.

7.
PESSOA. Primeiro Fausto; passagem das horas, p. 454-455.

8.
PESSOA. Primeiro Fausto; passagem das horas, p. 345.

9.
O encontro entre Pessoa e Borges já fora imaginado pelo crítico uruguaio, Emir
Rodriguez Monegal, no artigo “Borges, auteur de Fernando Pessoa”, em Magazine
Littéraire, de 1988.

10.
TABUCCHI. Os três últimos dias de Fernando Pessoa, p. 61.

11.
PERRONE-MOISÉS. Pensar é estar doente dos olhos, p. 344.

12.
TABUCCHI. Os três últimos dias de Fernando Pessoa, p. 23.

13.
SARAMAGO. O ano da morte de Ricardo Reis, p. 427-428.

A memória de Borges
1.
VILA-MATAS. Doutor Pasavento.

2.
JELLOUN. L’enfant de sable.

3.
HELFT; PAULS. El factor Borges. Nueve ensaios ilustrados.

4.
VILA-MATAS. Doutor Pasavento, p. 20.

5.
HELFT; PAULS. El factor Borges. Nueve ensaios ilustrados, p. 134-135.

6.
BORGES. Une lo útil a lo agradable, p. 143.

7.
JELLOU. L’enfant de sable, p. 173.

8.
LUDMER. Comment sortir de Borges?. (Trdução da autora).

9.
LUDMER. Comment sortir de Borges?, p. 10. (Trdução da autora).

10.
SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latino-americano.

11.
SANTIAGO. Literatura é paradoxo.

12.
SANTIAGO. Borges, p. 434.

Cyro dos Anjos: a verdade está na Rua Erê
1.
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 10.

2.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 227.

3.
“Um efêmero sem melancolia, que retrabalharia, no precário e no frágil, os estratos do
tempo, suas paisagens e seus imaginários, a ponto de se entregar a este ‘espaço
vibrante’ onde sonhava Matisse. Como dizia Edgar Poe: ‘Nosso futuro está no ar’.” BUCI-
GLUCKSMANN. Esthétique de l’éphémère, p. 73. (Tradução da autora).

4.
BUCI-GLUCKSMANN. Esthétique de l’éphémère, p. 84. (Tradução da autora).

5.
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 11-13.

6.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 95.

7.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 41.

8.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 27.

9.
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 91.

10.
ANJOS. Política da amizade, p. 186.

11.
ANJOS. A menina do sobrado, p. 274.

12.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 30.

13.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 31.

14.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 205.

15.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 99.

16.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 227.

17.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 395-396.

18.
ALPHONSUS. O discurso de João Alphonsus. Folha de Minas, p. 181.

19.
ALPHONSUS. O discurso de João Alphonsus Folha de Minas, p. 180.

20.
ALPHONSUS. O romancista e seus personagens.

O avesso da escrita: intelectuais a serviço de JK
1.
WERNECK. O desatino da rapaziada, p. 134.

2.
DOURADO. Gaiola aberta, p. 167.

3.
Projeto desenvolvido como bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq de março de
2005 a março de 2008.

4.
BOJUNGA. JK – o artista do impossível, p. 506.

5.
Discurso de Juscelino Kubitschek na inauguração da Exposição de Arte Moderna de
1944. Folha de Minas, Belo Horizonte, 7 maio 1944.

6.
LODI. Avaliação do quadro Retrato do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, de
Alberto da Veiga Guignard.

7.
LAGES. Proposta de restauração da pintura Retrato de J. K. – Alberto da Veiga Guignard.

8.
FRIEIRO. Novo diário, p. 161.

9.
RUBIÃO. O edifício.

10.
GOMES. Modernização e controle social – planejamento, muro e controle espacial, p.
201.

11.
ARRIGUCCI. Folha de S.Paulo, 11 abr. 1998.

12.
Os componentes da revista, quase todos pertencentes ao partido comunista, são os
seguintes: Wilson Figueiredo (secretário), Valdomiro Autran Dourado (redator-chefe);
redatores (Sábato Magaldi, Francisco Iglésias, Pedro Paulo Ernesto, Edmur Fonseca e
Walter Andrade). Outros contistas, poetas e ensaístas são igualmente representativos
dessa geração: Jacques do Prado Brandão, Marco Antonio Tavares Coelho, Octavio
Alvarenga e Pontes de Paula Lima.

13.
LAFETÁ. Revista de Teoria Literária e Literatura Comparada, p. 30.

14.
DOURADO. Gaiola aberta. Tempo de JK e de Schmidt.

Memórias imperfeitas
1.
ANDRADE. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter.

Macunaíma: quem é você?
1.
ANDRADE. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter.

Macunaíma de Daibert
1.
ANDRADE. Querida Henriqueta. Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, p. 57.

2.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo.

3.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo, p. 25-26.

4.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo, p. 21.

5.
Carta de Arlindo Daibert a Pedro Nava, de 2 de junho de 1981.

6.
Carta de Pedro Nava a Arlindo Daibert, cuja cópia foi cedida pelo artista durante a
exposição “Mário de Andrade – Carta aos Mineiros”, de 1993, realizada em Belo
Horizonte, sob a curadoria de Eneida Maria de Souza e Paulo Schmidt. A carta foi
reproduzida em SOUZA; SCHMIDT (Org.). Mário de Andrade – carta aos mineiros, p. 155-
156.

7.
NAVA. Beira-mar/memórias 4, p. 190.

8.
BARTHES. A câmara clara.

9.
NAVA. Beira-mar/memórias 4, p. 191.

10.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo, p. 16.

11.
ANDRADE. A visita. O Banco de Boston fez uma edição fac-similar. O poema foi incluído,
mais tarde, nos livros Reunião e A paixão medida (Rio de Janeiro: Record, 1996).

12.
DOURADO. Tempo de Mário e outros tempos, p. 115.

13.
SOUZA. A pedra mágica do discurso.

Amizade modernista
1.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 10.

2.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário.

3.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 504.

4.
BATAILLE. A noção de despesa.

5.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 13.

6.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 523.

7.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 478.

8.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 475.

9.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 497.

“Márioswald” pós-moderno
1.
SANTIAGO. Caíram as fichas.

2.
“…o Modernismo de 22 é enterrado em 1936 ao repicar dos sinos maniqueus (nitidez na
oposição de luz e sombra, de Deus e Diabo, de catolicismo e comunismo). As vozes dos
sinos guerreiros traçam o perfil do intelectual intolerante, de feição totalitária e bem
pouco democrático nas suas intenções revolucionárias, pois deseja modernizar o Brasil
e atualizar a sua arte pela destruição do seu oposto.” SANTIAGO. Fechado para balanço,
p. 78.

3.
Cf. a dissertação de Roniere Menezes, Notas de um turista canibal, p. 173., Ao discorrer
sobre a relação entre Mário de Andrade e a música popular urbana, enfoca o trecho
sobre as canções “Amélia” e “Praça Onze”, contida em carta enviada a Moacir Werneck
de Castro, em 19 fev. 1942: “Os sambas trazem para Mário de Andrade aquele aspecto
artístico do inesperado, aquela comoção que põe de pé o ouvinte, pela riqueza de vida
pulsante, cotidiana, simples, irônica e dramática.”

4.
“O artista brasileiro, dublê de intelectual, deve ser ator e não mais espectador, ensina
Mário. Por isso, a vida é mais importante do que a literatura; o trato do corpo é tão
importante quanto o trato da cabeça. Caminhar a pé e escutar uma tocata de Bach, o
gozo do corpo e o gozo do livro – essas atividades não se excluem, elas se
complementam.” SANTIAGO. Atração do mundo, p. 28.

5.
Cf. SANTIAGO. Poder e alegria – a literatura brasileira pós-64 – reflexões, p. 20-22.

6.
SANTIAGO. Caíram as fichas, p. 192.

7.
SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latino-americano.

8.
SANTIAGO. Literatura é paradoxo, p. 4.

9.
SANTIAGO. Borges, p. 43.

10.
“A questão é a seguinte: de que maneira a estética do romance modernista gera hoje,
para o jovem escritor brasileiro, armadilhas artísticas e ideológicas de que ele deve se
liberar, para que corte de uma vez por todas o cordão umbilical que ainda o prenderia a
esses ‘mestres do passado’, para usar a gloriosa expressão de Mário de Andrade em
contexto passado e semelhante. Pensamos assim porque o projeto básico do
Modernismo – que era o da atualização da nossa arte através de uma escrita de
vanguarda e o da modernização da nossa sociedade através de um governo
revolucionário e autoritário – já foi executado, ainda que discordemos da maneira como
a modernização foi implantada entre nós.” SANTIAGO. Fechado para balanço, p.76.

11.
SANTIAGO. Fechado para balanço, p. 88.

12.
“Ao fazê-lo, configura questões que nortearão, ao longo das décadas de 80 e 90, as
discussões sobre o pós-modernismo, em que a compreensão da pluralidade e da
desierarquização vai implicar, além da relativização dos valores estéticos modernos, a
reativação de uma visada antropológica, igualmente atenta à função estética e política
de diferentes níveis de manifestação cultural. As instigantes polêmicas provocadas por
essa orientação apontam, entre outras motivações, para a polarização entre duas formas
de definição de nosso pensamento acadêmico a partir da metade do século 20, que
repõem em termos específicos uma tradicional luta pela hegemonia cultural no interior
do eixo Rio-São Paulo.” PEDROSA. Crítica e grouxismo, p. 238.

13.
SANTIAGO. Atração do mundo, p. 38-39.

14.
Cf. SANTIAGO. Intérpretes do Brasil.

15.
“Só de posse destes e de outros dados sobre a atuação política dos modernistas é que se
poderá ter uma visão menos adocicada, menos unilateral, ou menos maniqueísta
daquele movimento artístico e dos seus participantes, podendo o espírito crítico de hoje
problematizar situações, aliando à segurança da leitura rigorosa do texto o pleno
conhecimento de dados empíricos.” SANTIAGO. O teorema de Walnice e sua recíproca, p.
83.

16.
ANDRADE. Sol da meia-noite, p. 63 apud SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latino-
americano, p. 18.

17.
SANTIAGO. Oswald de Andrade ou: elogio da tolerância étnica, p. 77.

18.
SANTIAGO. Atração do mundo, p. 27.

19.
SANTIAGO. Apesar de dependente, universal. Cf. ainda meus artigos: “Estéticas da
ruptura” e “O discurso crítico brasileiro”, contidos em SOUZA. Crítica cult.

20.
MORICONI. Conflito e integração. A pedagogia e a pedagogia do poema em Antonio
Candido – notas de trabalho, p. 267.

21.
“O Oswald de Andrade, que eu costumo citar com alguma frequência, é o ópio: ‘a massa
ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico’; em outras palavras, acredito mais na
educação do que no saber da massa. Quer dizer, esse saber da massa não pode ser
trabalhado pela cultura, ele não pode consumir a cultura que eu fabrico, porém, se
houver educação, se esse pessoal for preparado, eles vão consumir. (…) É, deslocam o
Mário porque ele inegavelmente tem mais abertura para o saber popular. E Oswald de
Andrade não tem essa abertura; ele tem abertura para uma estetização do popular, mas
não para o saber popular.” SANTIAGO. Um intelectual entre a vanguarda e o consumo, p.
213-214.

22.
SANTIAGO. Crescendo durante a guerra numa província ultramarinha.

23.
Mais próximo da proposta de cinema de David Lynch, O falso mentiroso descarta
qualquer tentativa de definição do sentido de autobiografia, autoficção, ao jogar com a
mentira como ponto de partida do ficcional. O romance, pelo tom picaresco das
aventuras e a natureza grotesca das situações, remete para as Memórias sentimentais de
João Miramar. Distancia-se, contudo, da estrutura fragmentada da poética oswaldiana.
SANTIAGO. O falso mentiroso.

24.
SANTIAGO. O dentro do dentro do dentro.

25.
Cf. artigos de SCHWARZ. Cultura e política: 1964-1969; Nacional por subtração. Cf.
também os artigos de CUNHA. Leituras de dependência cultural; SOUZA. Estéticas da
ruptura; O discurso crítico brasileiro.

26.
SANTIAGO. Em liberdade. Uma ficção de Silviano Santiago.

27.
MIRANDA. Corpos escritos, p.118.

28.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 30.

29.
Cf. BORGES. Georges Bataille: imagens do êxtase.

30.
KOSALKA. Georges Bataille and the notion of gift.

31.
SANTIAGO. Atração do mundo, p. 28; SANTIAGO. Apresentação, p. 15.

32.
SANTIAGO. Stella Manhatan, p. 68-71.

33.
SANTIAGO. Viagem ao México, p. 212.

34.
Em várias de suas cartas endereçadas aos amigos, Mário de Andrade expõe sua teoria
sobre criação poética, associando-a ao orgasmo e ao prazer. Para Fernando Sabino,
assim se expressa: “Não: a arte não é um sofrimento, exatamente, nem é só o sofrimento
que a pode legitimamente proporcionar. O momento da criação é um prazer sublime, e
estou completamente em desacordo com os que o consideram um parto. Nem posso
compreender mesmo essa assimilação da criação artística com o parto. Deriva
certamente da semelhança objetiva, entre o filho e a obra de arte. O momento de criação
é gostosíssimo, verdadeiramente aquela sublimidade de integração e de dadivosidade
do ser, em que a gente fica na ejaculação sexual.” ANDRADE. Cartas a um jovem escritor:
de Mário de Andrade a Fernando Sabino. Carta de 16 fev. 1942.

35.
Em 1973, a formulação do conceito de escrita como prazer será sistematizada por
Roland Barthes, no livro O prazer do texto, o que provocou muita polêmica por parte da
crítica literária da época. Ao considerar a literatura como mediadora da dimensão
hedonística entre o escritor e o leitor, em que o prazer atua como força criadora e
catártica, Barthes reúne os princípios nietzschianos à psicanálise lacaniana,
recuperando a relação entre o trabalho literário, o ócio e a alegria.

36.
SANTIAGO. Entrevista: Viagem ao México. Concedida por Silviano Santiago à revista
Imagem.

37.
SANTIAGO. Conversei ontem à tardinha com o nosso querido Carlos, p. 170.

38.
SANTIAGO. Poder e alegria – a literatura brasileira pós-64 – reflexões.

39.
SANTIAGO. O tempo não para.

40.
SANTIAGO. O narrador pós-moderno, p. 46-47.

41.
SANTIAGO. Hello, Dolly!, p. 156.

Carmen Miranda do kitsch ao cult


1.
ALVES (Interp.). Não tem tradução. Faixa 10.

2.
ANJOS DO INFERNO (Interp.). Brasil pandeiro. Faixa 18.

3.
PANDEIRO, Jackson do (Interp.). Chiclete com banana. Faixa 1.

4.
ANJOS DO INFERNO (Interp.). Brasil pandeiro. Faixa 18.

5.
PANDEIRO, Jackson do (Interp.). Chiclete com banana. Faixa 1.

6.
TOTA. O imperialismo sedutor. A americanização do Brasil na época da Segunda Guerra,
p.118. As informações sobre Carmen Miranda a serem utilizadas neste texto foram
extraídas desse livro, além de outros que serão devidamente mencionados.

7.
RICHARD. Experiência e representação – o feminismo. O latino-americano, p. 142-155.

8.
TOTA. O imperialismo sedutor. A americanização do Brasil na época da Segunda Guerra,
p. 40.

9.
Cf. MENDONÇA. Carmen Miranda foi a Washington, p. 18.

10.
MIRANDA (Interp.). O que é que a baiana tem? Faixa 20.

11.
MIRANDA (Interp.). O que é que a baiana tem? Faixa 20.

12.
MENDONÇA. Carmen Miranda foi a Washington.

13.
MIRANDA. Diz que tem… .Faixa 10.

14.
Cf. análise de Arnaldo Jabor do filme Banana is my business, na Folha de S.Paulo,
Ilustrada, p. 8. Foi reproduzida, em parte, no artigo “O tic-tac do meu coração”, neste
livro.

15.
MIRANDA. Disseram que voltei americanizada. Faixa 20.

16.
MIRANDA. Recenseamento. Faixa 2.

17.
Importante assinalar a relação que Carmen Miranda terá com o fenômeno camp, termo
utilizado por Susan Sontag no célebre artigo “Notas sobre camp”. Estudos sobre a
artista, nos Estados Unidos e na Argentina, desenvolveram, de forma exaustiva, a
caracterização de Carmen como típica do espírito de extravagância e artificialidade, a
expressão de uma estética e de um comportamento queer. Entre os ensaios, destacam-
se: GARAMUÑO. Modernidades primitivas; SANTOS. Kitsch tropical - los medios en la
literatura y el arte en America Latina.

18.
VELOSO. Verdade tropical, p. 267-268.

19.
“O fato de ela ter se tornado, com o sucesso em Hollywood, uma figura caricata de que a
gente crescera sentindo um pouco de vergonha, fazia da mera menção de seu nome uma
bomba de que os guerrilheiros tropicalistas fatalmente lançariam mão. Mas o lançar-se
tal bomba significava igualmente a decretação da morte dessa vergonha pela aceitação
desafiadora tanto da cultura de massas americana (portanto da Hollywood onde
Carmen brilhara) quanto da imagem estereotipada de um Brasil sexualmente exposto,
hipercolorido e frutal (que era a versão que Carmen levava ao extremo) – aceitação que
se dava por termos descoberto que tanto a mass culture quanto esse estereótipo eram
(ou podiam ser) reveladores de verdades mais abrangentes sobre cultura e sobre Brasil
do que aquelas a que estivéramos até então limitados.” VELOSO. Verdade tropical, p.
268.

20.
SANTIAGO. Folha de S.Paulo. Caderno Mais, p. 7.

O Tic-Tac do meu coração
1.
MARTINS. Carmen ficará no Brasil para sempre.

2.
ÚLTIMA HORA, 13 ago. 1955.

3.
Manchetes dos periódicos nacionais por ocasião da morte da artista.

4.
CONRADO. Nunca houve uma mulher como Carmen, p. 157.

5.
GERASSI-NAVARRO. Las tres Evas: de la historia al mito en cinemascope, p. 69.

6.
CARLOS MAGNO. Carmen Miranda, p. 106.

7.
HEINICH. Être écrivain. Création et identité, p. 240.

8.
LESSA. Adeus, Carmen!, p. 130.

9.
COELHO. A experiência da fama. Individualismo e comunicação de massa, p. 29.

10.
MIRANDA. Diz que tem… . Faixa10.

11.
MARTINS. Carmen ficará no Brasil para sempre.

12.
JABOR. Carmen foi do getulismo ao capitalismo, p. 8.

13.
LOPES. Revista Margens/Márgenes.

14.
LOPES. Revista Margens/Márgenes, p. 43.

15.
GAUTIER. Revista Margens/Márgenes, p. 15. Citando o canadense Murray Schaeffer,
Gautier afirma que a separação dos sons de seus lugares de origem e sua maior
transportabilidade permitem criar o termo “esquizofonia” para explicar esse processo.

Pan-Américas de Áfricas utópicas
1.
CABRERA INFANTE. Tres tristes tigres.

O samba da minha terra
1.
VIANNA. O mistério do samba, p. 154.

2.
WISNIK. A gaia ciência – literatura e música popular no Brasil.

3.
VIANNA. O mistério do samba, p. 111.

4.
KHEL. Da lama ao caos: a invasão da privacidade na música do grupo Nação Zumbi.

5.
KHEL. Da lama ao caos: a invasão da privacidade na música do grupo Nação Zumbi, p.
149.

6.
Hollanda apud BARROS E SILVA. Chico Buarque, p. 15.

7.
BARROS E SILVA. Chico Buarque, p. 15.

Espelho de tinta
1.
CARVALHO. O filho da mãe.

2.
CARVALHO. O filho da mãe, p. 38.

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