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Janelas indiscretas
ensaios de crítica biográfica
Belo Horizonte
Editora UFMG
2011
© 2011, Eneida Maria de Souza
© 2011, Editora UFMG
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização
escrita do Editor.
S831j
Souza, Eneida Maria de
Janelas indiscretas [livro eletrônico]: ensaios de crítica biográfica / Eneida Maria de
Souza. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
3129 Kb; ePUB – (Humanitas)
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-423-0303-2
1. Escritores – Biografia – História e crítica. 2. Ensaios brasileiros. 3. Literatura –
História e crítica. I. Título. II. Série.
CDD:928
CDU:929
Elaborada pela DITTI – Setor de Tratamento da Informação
Biblioteca Universitária da UFMG
DIRETORA DA COLEÇÃO: Heloisa Maria Murgel Starling
COORDENAÇÃO EDITORIAL: Danivia Wolff
ASSISTÊNCIA EDITORIAL: Eliane Sousa e Euclídia Macedo
COORDENAÇÃO DE TEXTOS: Maria do Carmo Leite Ribeiro
PREPARAÇÃO DE TEXTOS: Ana Maria de Moraes
REVISÃO DE PROVAS: Beatriz Trindade e Simone Ferreira
COORDENAÇÃO GRÁFICA: Cássio Ribeiro
PROJETO GRÁFICO: Revisto por Cássio Ribeiro, a partir de Glória Campos - Mangá
FORMATAÇÃO: Robson Miranda
MONTAGEM DE CAPA: Cássio Ribeiro
PRODUÇÃO GRÁFICA: Diêgo Oliveira
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Versão digital: julho de 2019
Ao amigo Wander,
leitor e parceiro destes ensaios
Ao CNPq,
os agradecimentos pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa
À CAPES,
pela Bolsa de Professor Visitante Nacional Sênior
Table of Contents / Sumário / Tabla de Contenido
A estreita e bem humorada relação entre obra e vida, teoria e ficção se deve ao
depoimento de Richard Rorty, filósofo pragmático americano, falecido em 2007.
Confessou, em texto publicado na Folha de S. Paulo, que sofria do mesmo mal de Jacques
Derrida, o câncer no pâncreas. Segundo Rorty, a coincidência era tributária da excessiva
leitura que ambos faziam de Hegel, o vício intelectual visto como a causa do mal. A
doença é diagnosticada, no entender do filósofo, pela escolha profissional do paciente e
pela leitura de determinado autor, não havendo, portanto, separação entre vida e
trabalho. A justificativa se apoia na inversão da causa física da doença pela profissional,
pela criação do mal pelo próprio indivíduo, graças à sua formação e desejo intelectual.
Rorty, filósofo pragmático e um dos seguidores da difícil obra de Hegel, morre, como
Derrida, daquilo que viveu, de sua paixão pelo conhecimento e por uma particular forma
de saber.
A declaração de Rorty, à primeira vista dotada de efeito humorístico, é capaz de
suscitar reflexões que iluminam a questão biográfica e a aproxima do livro de Michel
Schneider, Mortes imaginárias.1 São aí escritos e encenados os últimos momentos e as
prováveis frases pronunciadas por alguns escritores, assim como a situação, o lugar ou
as condições de sua morte. Esse exercício teórico/ficcional remete ao fascínio biográfico
motivado pela vida literária e a sensível aproximação entre teoria e ficção.
É digna de nota a pesquisa pioneira de Susan Sontag a respeito das doenças e suas
metáforas, como a tuberculose, o câncer e a Aids. Descrevendo as moléstias entre as que
eram aceitas e as excluídas pela sociedade, estabelecendo a relação entre arte e vida,
contribui do ponto de vista social, cultural e político para o avanço das discussões sobre
a crítica biográfica. A utilização da metáfora para a discriminação das doenças na
sociedade funciona de forma negativa, ao servir como reforço ao preconceito e à
exclusão. Reelabora, assim, conceitos arraigados e como resultado de crenças e
superstições, como a culpa, a vitimização e a irresponsabilidade social atribuídas aos
pacientes.2
A metáfora literária, utilizada como mediação por escritores para justificar a vocação
pela vida intelectual, tem em Roland Barthes um dos exemplos mais bem-sucedidos. Em
Roland Barthes por Roland Barthes, a legenda que registra a foto do escritor ainda
criança, “Contemporâneos?”, enlaça seu destino ao de Proust, pela relação entre seus
primeiros passos e o término da Busca. A contemporaneidade é construída no presente,
ao ser conferida à criança um passado literário: “Contemporâneos?/Eu começava a
andar,/Proust ainda vivia e/terminava a Busca.”3 Silviano Santiago se vale igualmente
dessa metáfora para construir relatos pseudoautobiográficos, utilizando-se da data de
seu nascimento, 1936, para apontar aí coincidências entre eventos vividos por
escritores de sua predileção, como Graciliano Ramos e Antonin Artaud.4 O destino
literário é marcado por injunções biográficas, pela escolha de precursores que garantam
a entrada do escritor no cânone. Entende-se, portanto, a concepção de biografia
intelectual como resultado de experiências do escritor não só no âmbito familiar e
pessoal, mas na condensação entre privado e público. As datas recebem tratamento
alegórico e a história pessoal se converte em ficção, pela intromissão do outro na
narrativa.
É importante, enfim, assinalar a contribuição de teóricos latino-americanos para a
leitura pós-colonial do gênero autobiográfico, na qual são introduzidas cenas que
remetem ao ato de leitura dos escritores. O livro, a leitura, a pose do leitor assumem
significado semelhante à iniciação do sujeito na escrita, gesto não apenas individual e
particular, mas cultural. Nesse sentido, os relatos autobiográficos giram em torno da
experiência do leitor latino-americano em relação ao arquivo europeu, promovendo
distorções e leituras desencontradas, com o objetivo de desconstruir o mito da escrita
como controle da barbárie. As incursões de Ricardo Piglia no universo da leitura; de
Sylvia Molloy na escrita autobiográfica; de Walter Mignolo na revisão dos conceitos de
local e global nos textos pós-coloniais; e de Julio Ramos na relação entre escrita e
modernização na constituição de saberes descontextualizados e, por esta razão,
inaugurais, autorizam a vertente cultural e comparada de minhas leituras.
No que diz respeito à abordagem mais pontual da crítica biográfica, é preciso
distinguir e condensar os polos da arte e da vida, por meio do emprego do raciocínio
substitutivo e metafórico, com vistas a não naturalizar e a reduzir os acontecimentos
vivenciados pelo escritor. Não se deve argumentar que a vida esteja refletida na obra de
maneira direta ou imediata ou que a arte imita a vida, constituindo seu espelho. A
natureza artificial da arte recebeu do dandy e decadentista Oscar Wilde a definição
primorosa: a vida imita a arte. A presença de mediações, de terceiras pessoas, da relação
oblíqua entre arte e vida é passível de intervenções entre as duas instâncias, sem que o
lastro biográfico se defina pela empiria e pela interpretação textual baseada em
soluções fáceis e superficiais. A preservação da liberdade poética da obra na
reconstrução de perfis dos escritores reside no procedimento de mão dupla, ou seja,
reunir o material poético ao biográfico, transformando a linguagem do cotidiano em ato
literário. Ainda que determinada cena recriada na ficção remeta a um fato vivenciado
pelo autor, deve-se distinguir entre a busca de provas e a confirmação de verdades
atribuídas ao acontecimento, do modo como a situação foi metaforizada e deslocada
pela ficção. O nome próprio de uma personagem, mesmo que faça referência a pessoas
conhecidas do escritor, não impede que sua encenação embaralhe os dados e coloque a
verdade biográfica em suspenso.
Pelo fato de a crítica literária se expandir em várias e múltiplas vertentes, incluindo-
se aí a crítica comparada, a cultural, a biográfica, a genética, a textual – sem que os
preconceitos e as hierarquias sejam prioritárias no tratamento das mesmas –, torna-se
às vezes difícil impor limites para sua prática. Diante do aspecto abrangente das
disciplinas e de sua abertura transdisciplinar, revela-se inoperante e retrógrada a
separação entre domínios específicos, embora deva ser exigida a definição de
pressupostos teóricos e de metodologias na realização de um trabalho crítico.
A crítica biográfica se apropria da metodologia comparativa ao processar a relação
entre obra e vida dos escritores pela mediação de temas comuns, como a morte, a
doença, o amor, o suicídio, a traição, o ódio, as relações familiares, como o tema dos
irmãos inimigos, da busca do pai, da bastardia, do filho pródigo e assim por diante.
Reunidos por um fio temático e enunciativo, independente de intenções ou da época em
que viveram, escritores e pensadores constituem matéria biográfica a ser explorada no
nível teórico e ficcional. A comparação conta, portanto, com a ajuda de critérios
biográficos ao promover encontros entre escritores e incentivar a criação de diálogos
muitas vezes inesperados. Esse procedimento é dotado de liberdade criativa, por
conceder ao crítico certa flexibilidade ficcional sobre o objeto em análise, não se
prendendo à palavra do autor, mas indo além dela. Por essa razão, o elemento factual da
vida/obra do escritor adquire sentido se for transformado e filtrado pelo olhar do
crítico, se passar por um processo de desrealização e dessubjetivação.
Essa crítica não se concentra, contudo, apenas em obras de teor biográfico ou
memorialista, por entender que a construção de perfis biográficos se faz
independentemente do gênero. Nas entrelinhas dos textos consegue-se encontrar
indícios biográficos que independem da vontade ou propósito do autor. Por essa razão,
o referencial é deslocado, por não se impor como verdade factual. A diferença quanto à
crítica biográfica praticada durante esses últimos anos consiste na possibilidade de
reunir teoria e ficção, considerando que os laços biográficos são criados a partir da
relação metafórica existente entre obra e vida. O importante nessa relação é considerar
os acontecimentos como moeda de troca da ficção, uma vez que não se trata de
converter o ficcional em real, mas em considerá-los como cara e coroa dessa moeda
ficcional. Consiste ainda na liberdade de montar perfis literários que envolvem relações
entre escritores, encontros ainda não realizados, mas passíveis de aproximação,
afinidades eletivas resultantes das associações inventadas pelo crítico ou escritor. Esses
perfis exercem, em geral, papel importante na elucidação de propostas literárias,
questões teóricas e contextuais.5
Se considerarmos que a realidade e a ficção não se opõem de forma radical para a
criação do ensaio biográfico, não é prudente checar, no caso de autobiografias ou de
biografias, se o acontecimento narrado é verídico ou não. O que se propõe é considerar
o acontecimento – se ele é recriado na ficção – desvinculado de critérios de julgamento
quanto à veracidade ou não dos fatos. A interpretação do fato ficcional como repetição
do vivido carece de formalização e reduplica os erros cometidos pela crítica biográfica
praticada pelos antigos defensores do método positivista e psicológico, reinante no
século 19 e princípios do século 20. O próprio acontecimento vivido pelo autor – ou
lembrado, imaginado – é incapaz de atingir o nível de escrita se não são processados o
mínimo distanciamento e o máximo de invenção. A crítica biográfica não pretende
reduzir a obra à experiência do autor, nem demonstrar ser a ficção produto de sua
vivência pessoal e intransferível. As relações teórico-ficcionais entre obra e vida
resultam no desejo de melhor entender e demonstrar o nível de leitura do crítico, ao
ampliar o polo literário para o biográfico e daí para o alegórico.
A retomada de conceitos referentes à autobiografia, como o de autoficção, inaugurada
por Serge Doubrovsky, em 1977, teve o mérito não só de rever a relação complexa entre
ficção e realidade, como de reforçar a incapacidade do sujeito de se manter íntegro e
onipotente. Considerada pela crítica como “aventura teórica”, a autoficção, longe de se
impor como chave que abre todos os enigmas da autobiografia – e se contrapõe a ela –,
guarda, segundo Jean-Louis Jeannelle, o conhecido estatuto conferido ao sujeito pelas
teorias psicanalíticas, foucaultianas e barthesianas, da ficcionalização de si, da
encenação de subjetividades no ato da escrita e do discurso. Essa aventura foi
proclamada por Roland Barthes em Roland Barthes por Roland Barthes, de 1975, ao
admitir na sua “autobiografia”, que “com as coisas intelectuais, fazemos ao mesmo
tempo teoria, combate crítico e prazer”.6 Para Serge Doubrovsky, a autoficção é a forma
pós-moderna, quer dizer, pós-holocausto, da autobiografia, pois, “mesmo que todos os
detalhes sejam exatos, o relato é sempre reinvenção do vivido” ou, mais à frente, “Não se
lê uma vida, lê-se um texto.” ou ainda:
Uma vez mais, nenhum autobiografia, nenhuma autoficção pode ser a fotografia, a reprodução de
uma vida. Não é possível. A vida se vive no corpo; a outra, é um texto. (…) A autoficção é o meio de
ensaiar, de retomar, de recriar, de remodelar num texto, numa escrita, experiências vividas de sua
própria vida que não são de nenhuma maneira uma reprodução, uma fotografia… É literalmente e
literariamente uma invenção.7
A autoficção, pela sua defesa da narrativa a meio caminho entre o testemunho e a
ficção, se declara uma narrativa pós-holocausto, por ter sido a narrativa do holocausto
sempre pautada pela obediência às normas de fidelidade aos acontecimentos vividos,
embora tal exigência se revelasse equivocada. Não resta dúvida de que a publicação, em
1998 (e em português, em 2008), do livro de Giorgio Agamben, Ce qui reste d’Auschwitz,
evidencia o avanço teórico das narrativas do holocausto, ao afirmar, com a ajuda de
outros pensadores, como Primo Levi, que todo testemunho contém necessariamente
uma lacuna, pois quem teria mais condições de se expressar com mais autoridade sobre
o fato, os considerados “muçulmanos”, não o fizeram. Como testemunhos integrais, não
puderam expressar sua experiência, por se encontrarem na condição de não humanos,
entregando sua vida ao destino, sem vontade nem para sofrer, à semelhança do
“muslim”, o suposto fatalismo islâmico. Eram denominados figuras, manequins, por se
situarem, como sobreviventes, na zona intermediária entre a vida e a morte, o humano e
o inumano.8
Outras indagações referentes à autoficção conduzem à desestabilização do
referencial, ao seu deslocamento, assim como aos deslocamentos espaçotemporais,
considerando serem os protocolos enunciativos mais livres. O autor tem a liberdade de
utilizar o mesmo nome para sua personagem ou narrador, sem que tal gesto interfira no
grau de fidelidade/infidelidade narrativa, em posição distinta daquela defendida por
Philippe Lejeune quanto ao pacto autobiográfico. Essa estratégia referencial às avessas
reveste-se ainda da antiga poética narrativa, marcada pelo gesto de “mentir-vrai”,
“mentir-verdadeiramente”, operação que reúne princípios enunciativos ligados ao
teatro e ao romance, construindo uma cenografia da enunciação. A desestabilização do
referencial produz, com efeito, a invenção e a estetização da memória, esta não mais
subordinada à prova de veracidade. Trata-se da ação deliberadamente ficcional por
parte do sujeito, do gesto de dessubjetivação que o insere no jogo fabular da narrativa.
Estar ao mesmo tempo no interior da linguagem e fora dela consiste na operação
paradoxal da presença/ausência do sujeito na complexa cena enunciativa. Essa
premissa ficcional é ainda assumida por muitos dos autores modernos – e pós-
modernos –; entre eles, a figura de Louis Aragon, na literatura francesa, e a de Silviano
Santiago, na brasileira, com o Falso mentiroso, de 2004, e Histórias mal contadas, de
2005.9 O artigo de Silviano Santiago, “Meditação sobre o oficio de criar”, recém-
publicado pela Revista Aletria, esclarece sobre o conceito de autoficção, além de ilustrar
uma das tendências mais controvertidas e, mesmo assim, mais presentes na literatura e
nas artes contemporâneas:
Um dos grandes temas que dramatizo em meus escritos, com o gosto e o prazer da
obsessão, é o da verdade poética. Ou seja, o tema da verdade na ficção, da experiência
vital humana metamorfoseada pela mentira que é a ficção. Trata-se do óbvio paradoxo,
cuja raiz está entre os gregos antigos. Recentemente, encontrei a forma moderna do
paradoxo num desenho de Jean Cocteau, da série grega. Está datado de novembro de
1936. No desenho vemos um perfil nitidamente grego, o do poeta Orfeu. De sua boca,
como numa história em quadrinho, sai uma bolha onde está escrito: Je suis un mensonge
qui dit toujours la verité. [Sou uma mentira que diz sempre a verdade.] Esse jogo entre o
narrador da ficção, que é mentiroso e se diz portador da palavra da verdade poética,
esse jogo entre a autobiografia e a invenção ficcional é que possibilitou que eu pudesse
levar até as últimas consequências a verdade no discurso híbrido. De um lado, a
preocupação nitidamente autobiográfica (relatar minha própria vida, sentimentos,
emoções, modo de encarar as coisas e as pessoas etc.), do outro, adequá-la à tradição
canônica da ficção ocidental.10
(Ensaio inédito. Cf. artigo de minha autoria, “Notas sobre a crítica biográfica”, publicado em Crítica
Cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. Este ensaio dá continuidade à reflexão ali iniciada.)
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. Ce qui reste d’Auschwitz. Traduzido do italiano por Pierre Alferi.
Paris: Rivages Poche, 2003.
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-
Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
DOUBROVSKY, Serge. Les points sur les “i”. In: JEANNELLE, Jean-Louis; VOLLET,
Catherine (Dir.). Genèse et autofiction. Louvain-la Neuve: Bruylant-Academia, 2007. p.
53-65.
JEANNELLE, Jean-Louis. Où en est la réflexion sur l’autofiction? In: JEANNELLE, Jean-
Louis; VOLLET, Catherine (Dir.). Genèse et autofiction. Louvain-la Neuve: Bruylant-
Academia, 2007. p. 7-37.
SANTIAGO, Silviano. Em liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
SANTIAGO, Silviano. Viagem ao México. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. Revista Aletria, Belo Horizonte, n.
18, p. 178, jul./dez. 2008.
SCHNEIDER, Michel. Morts imaginaires. Paris: Grasset, 2003.
SONTAG, Susan. A doença e suas metáforas. São Paulo: Graal, 1984.
SONTAG, Susan. A Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SOUZA, Eneida Maria de. Pedro Nava – o risco da memória. Juiz de Fora: Funalfa, 2004.
VASSEVIÈRE, Maryse. Autofiction et mentir-vrai chez Aragon: les aveux de la génétique.
In: JEANNELLE, Jean-Louis; VOLLET, Catherine (Dir.). Genèse et autofiction. Louvain-la
Neuve: Bruylant-Academia, 2007. p. 89-104.
Janelas indiscretas
A pesquisa em arquivos é uma atividade que não atrai a maior parte dos estudiosos
do texto literário, por se confundir, muitas vezes, com uma atitude conservadora e
retrógrada frente à literatura. Teorias críticas dos últimos anos contribuíram para o
gradativo apagamento do interesse pelo exame das fontes primárias, ao ser valorizado o
texto na sua integridade estética, sem o interesse pelos bastidores da criação. A recusa
em se deter no processo construtivo como resultado do trabalho do autor se justifica
por ele ter sido entidade incômoda para a crítica, que pouca importância conferia ao
contexto histórico das obras. É significativa esta retomada crítica da figura do autor, seu
retorno por meio de traços e resíduos, da assinatura, abolindo-se o procedimento de
recalque como produto do pacto ficcional com a escrita, inscrita de modo asséptico e
distanciado. Na história da crítica ocidental, a atitude mais comum da crítica se
concentrava na censura da presença do escritor na cena literária, impondo-se a
linguagem como absoluta e eliminando-se a assinatura segundo padrões de
objetividade.
Com a doação de seus manuscritos à Biblioteca Nacional da França, em 1971, Miguel
Ángel Asturias preparou o espírito de seus futuros pesquisadores, incentivando-os a
preservar não apenas as obras publicadas, mas também os rascunhos e variantes que
acompanham o material de trabalho dos escritores. Esse gesto motivou a criação da
Coleção Archivos, cujo objetivo maior é a preservação do acervo dos escritores para que
sirva de fonte documental para o aprimoramento das edições comentadas e críticas. O
destino material e analítico desse acervo literário passou a ser uma das maiores metas
da crítica filológica e genética, no sentido de se considerar a obra não mais como objeto
fechado e acabado, mas sujeita a modificações e transformações interpretativas. Se o
trabalho de recuperação do texto original exige do pesquisador exame exaustivo das
diferentes edições e mudanças processadas pelo autor ou causadas pelos erros de
edição, a crítica genética revela o lado inconcluso e incompleto da criação, permitindo
que a abordagem dos documentos não mais se restrinja ao texto publicado e ao seu
estatuto de objeto intocável e inerte.
A obra submetida à edição crítica recebe tratamento editorial capaz de lhe conceder
dignidade, ao introduzir metodologias de trabalho centradas nas fontes primárias,
procedimento analítico em estágio de desenvolvimento e amadurecimento entre
pesquisadores do manuscrito literário. Trata-se de uma das aspirações pós-modernas
de recuperação da memória literária, pelo abandono do projeto totalizante e unificador
da modernidade para se fixar nas diferenças que delineiam o fragmentado e vigoroso
arquivo cultural da atualidade.
A prática analítica voltada para as fontes primárias não irá revelar um olhar
conservador sobre a escrita literária, mas a sua revitalização: o “manuscrito será o
futuro do texto”, assim se expressa Jean-Louis Lebrave, um dos notáveis representantes
da crítica textual e genética francesas. Enquanto os manuscritos estiverem sendo
guardados com vistas a um procedimento analítico, reinstaura-se ainda um pouco da
gênese literária. Segundo Louis Hay, autor de uma das mais claras reflexões sobre a
questão,
o manuscrito é de uma extraordinária diversidade, e pertence a todas as etapas e a todos os estados
do trabalho, dossiês, esboços, planos, rascunhos. Mas, desde que o pensamento ou a imaginação os
tocaram, todos, do documento inerte – até a página inspirada –, encontram-se dotados de vida e
convocados a desempenhar seu papel num projeto de escritura.1
É forçoso lembrar que esta prática de lidar com os manuscritos começa a perder sua
utilidade e prestígio nos tempos atuais, pela ação dos novos instrumentos da escrita
como o computador, substituto da máquina de escrever, mas dotado de potencialidades
muito mais destrutivas frente ao arquivo pessoal do escritor. Os rascunhos
desaparecem ao serem apagados pela eficiência de uma tecla que deleta o que se
apresenta como excessivo ou descartável para a finalização da obra. No entanto, outros
procedimentos começam a surgir, com vistas a recuperar o rascunho – ainda que
digitado – das obras, o que está, curiosamente, provocando o excesso de arquivos desta
natureza, além de outros relacionados à memória digital.2
É digno de nota o rico material existente nos acervos dos escritores, como a
correspondência entre colegas, depoimentos, iconografias, entrevistas, documentos de
natureza privada, assim como a sua biblioteca, cultivada durante anos. Um esboço de
biografia intelectual emana desses papéis ao serem incorporados, ao texto em processo,
a cronologia dos autores, o encarte de fotos, a reprodução de documentos relativos à
sua experiência literária, assim como a revisão da bibliografia sobre os titulares das
coleções. As pesquisas respondem por sua originalidade, uma vez que o objeto de
estudo é construído no decorrer do arranjo dos arquivos, da surpresa vivenciada a cada
passo do trabalho. A elaboração de perfis biográficos deve contemplar não só o que se
refere à obra publicada do autor, mas também os objetos pessoais, imprescindíveis para
a recomposição de ambientes de trabalho, de hábitos cotidianos e processos
particulares de escrita. Objetos muitas vezes triviais, mas pertencentes ao cotidiano de
todo escritor, adquirem vida própria ao serem incorporados à sua biografia: mesa de
trabalho, máquina de escrever, canetas, agendas, porta-retratos, objetos decorativos,
cadernos de anotações, papéis soltos, recibos de compra, diários de viagem e assim por
diante. As condecorações e diplomas servem ainda de registro quanto à participação do
titular na vida pública. Não devem, portanto, ser negligenciados como objetos
desprovidos de valor. Compõem, com as obras de arte ou as edições de luxo, espaço de
trabalho e de intimidade do escritor.
Os bastidores da criação, as experiências vividas pelos autores – ligadas à produção
literária e existencial – constituem lugares pouco conhecidos pela crítica. A intenção de
reunir crítica biográfica e crítica genética permite expandir o registro documental dos
autores como tentativa de recuperar estágios pré-textuais e estágios previvenciais. A
página de rascunho, metaforicamente considerada o jardim íntimo do escritor, revela o
que o texto definitivo não consegue transmitir: a imaginação sem limites, os recuos da
escrita, os borrões, o espaço no qual a face escondida da criação deixa transparecer o
fulgor e a paixão da obra em processo. Página branca, marcada de signos negros, torna-
se a imagem do espelho que refletiria as relações pessoais do escritor com o texto, onde
se supõe ser tudo permitido. Pela liberdade de rasurar, de escrever entre as linhas, de
acrescentar aos originais margens desordenadas e rebeldes, este laboratório
experimental desempenha papel importante na história da literatura moderna. O
entusiasmo pelo processo da escrita e o interesse pela gênese dos textos ultrapassam a
curiosidade do crítico em penetrar nos bastidores da criação e atingem dimensões
próprias ao exercício literário e biográfico.3
Seguindo parâmetros referentes à crítica biográfica,4 é necessário distinguir e
condensar os polos da arte e da vida, através da utilização de um raciocínio substitutivo
e metafórico, com vistas a não naturalizar e a reduzir os acontecimentos vivenciados
pelo escritor. A preservação da liberdade poética da obra na reconstrução de perfis
biográficos consiste no procedimento de mão dupla, ou seja, reunir o material poético
ao biográfico, transformando a linguagem do cotidiano em ato literário. Ainda que
determinada cena recriada na ficção remeta a um fato vivenciado pelo autor, é preciso
distinguir entre a busca de provas e a confirmação de verdades atribuídas ao
acontecimento, do modo como a situação foi metaforizada e deslocada pela ficção. O
nome próprio de uma personagem, mesmo que se refira a pessoas conhecidas do
escritor, nada impede que sua encenação embaralhe as referências e coloque a verdade
biográfica em suspenso.
A crítica genética, responsável pelo trabalho em torno da gênese da escrita, contribui
ainda para seu aparato biográfico, considerando a importância de se processar o cotejo
entre manuscrito e texto, assim como entre a trajetória literária do escritor e a relação
com o lugar escolhido para exercer seu ofício, seja no próprio escritório, nos
deslocamentos e viagens, seja no ambiente boêmio dos bares e dos cafés. Nesse
particular, é possível reconstituir o espaço de escrita dos autores, pela transformação de
sua casa ou de seu acervo em museu ou fundação. Essa solução museográfica confere ao
titular a oportunidade de se tornar conhecido no seu cotidiano de escritor e de homem
comum pelos leitores do futuro, ao lado da sua obra. Alguns escritores se preocupam em
legar à posteridade um pouco do que ficou desse ambiente, ainda que sob a forma
textual, como é o caso de Pedro Nava, ao descrever seu apartamento no bairro da Glória,
no Rio, em Galo-das-trevas. O interior burguês é ornamentado de peças reveladoras da
“adesão dos mortos aos objetos”, a lembrança dos amigos que se foram, personificada
nos retratos, numa cadeira, num encosto de poltrona, numa carta. Os objetos são
dotados de memória e de forte marca do passado. O museu imaginário contém, em
miniatura, a lembrança dos parentes, pequenos objetos mágicos que se configuram
como ruínas do passado.5 Em outros escritores, o recurso metalinguístico de descrição
do ambiente de trabalho funciona também como exposição de uma poética particular.
Destinado ao futuro, ao devir de uma leitura, ou à desmitificação do lugar sagrado
conferido a esta atividade, o livro de Georges Perec, Penser/classer, ilustra diferente
perspectiva estética. De forma distinta da poética de Nava, o escritor francês, por meio
de uma narrativa/descrição distanciada e minimalista do ambiente de trabalho,
desconstrói qualquer tipo de ligação com a tradição e o passado. Enumerando os
instrumentos de escrita, os empilhando sobre a mesa e misturando objetos com
diferente função, Perec desconfia da hermenêutica crítica, representada pelo leitor
ávido em descobrir o sentido oculto dos textos ou em decifrar enigmas literários:
Antes, eu não tinha mesa de trabalho, quero dizer, não havia uma mesa expressamente para isso.
Hoje, me ocorre, ainda com bastante frequência, de trabalhar num café; mas, na minha casa, é
raríssimo que trabalhe (escreva) em outro lugar que não seja minha mesa de trabalho (por
exemplo, não escrevo por assim dizer jamais na cama) e minha mesa de trabalho serve apenas para
meu trabalho (ainda uma vez, escrevendo essas palavras revela-se precisamente que isso não é
totalmente exato: duas ou três vezes por ano, quando faço festas, minha mesa de trabalho,
inteiramente desocupada, recoberta de toalhas de mesa de papel – como a prancha sobre a qual se
empilham meus dicionários –, torna-se buffet).6
Colecionar/Pensar
O livro exige vizinhança e complemento, necessita do contexto de outros livros, àqueles aos quais
remete. A biblioteca facilita a transtextualidade concreta, física, o descobrimento e a produção de
referências entre as peças individuais da coleção. Já que se repete o processo de formar parte de um
todo dentro das capas de um só livro, este contém em si uma biblioteca em miniatura.7
O comportamento do crítico que se interessa pelos manuscritos e bibliotecas autorais
se pauta ainda pela lição de Walter Benjamin, autêntico e apaixonado colecionador de
livros. Rodeado de mil tomos, de variada literatura, afirmava que o bibliófilo, ao adquirir
um livro velho, assumia o poder de lhe dar nova vida. Na sua obra, Benjamin repete o
processo revitalizador do bibliófilo, transformando-se em colecionador de citações,
arrancando os fragmentos de seu contexto e os organizando numa forma nova, sempre
arbitrária e nunca definitiva. Lê e coleciona, desloca a tradição, por um processo
simultâneo de conservação e destruição. Amplia este raciocínio para o ambiente privado
do burguês, o qual se afasta do espaço público e transforma sua casa – o espaço privado
e afetivo – em santuário, lugar propício à criação da privacidade. A biblioteca atua como
materialização dessa privacidade, por se erigir como lugar de encontro do colecionador
com seu universo de lembranças e de objetos auráticos, sejam eles de qual natureza for:
Não há nenhuma biblioteca viva que não abrigue, em forma de livro, um número de criaturas das
regiões fronteiriças. Não precisam ser álbuns de colar ou de família, nem cadernos de autógrafos ou
textos religiosos: muitas pessoas se afeiçoam a folhetos e prospectos, outras a fac-símiles de
manuscritos ou cópias datilografadas de livros impossíveis de achar; e, com certeza, revistas podem
compor as orlas prismáticas de uma biblioteca.8
No Arquivo Henriqueta Lisboa, entre documentos de outros escritores, encontra-se
uma cópia do Diário de guerra, de Guimarães Rosa, período em que serviu como cônsul-
adjunto no Consulado Brasileiro em Hamburgo, de 1938 a 1942.9 O documento é de rara
importância para o esclarecimento das relações políticas existentes entre o Brasil e a
Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, além de revelar uma escrita em processo
do escritor, entre silêncios e rasuras referentes ao período conturbado pela perseguição
nazista aos judeus. Sem menção direta à ajuda prestada por Rosa e sua companheira de
trabalho e futura mulher, Aracy Moebius de Carvalho, à causa judaica, o Diário denuncia
a ascensão do regime totalitário e excludente representado pelo nazismo.
O texto registra a passagem por Hamburgo do então aspirante a escritor, anotando,
desenhando, colando e copiando notícias sobre a situação de uma cidade às vésperas da
guerra, assim como outros informes de seu cotidiano: alarmes constantes de bombas;
impressões pessoais sobre leituras; registro de saídas e visitas aos amigos; recortes, em
alemão, de fatos sobre a guerra; anotações para futuros textos literários; desenhos de
lugares e de pessoas; anedotas, listas em alemão de nomes da flora e de espécies de
temperos; referências sobre a revisão dos contos de Sagarana, ainda inédito. O Diário se
assemelha, portanto, a uma caderneta de notas, pelo seu caráter híbrido, entre o
documento e o exercício da escrita subjetiva, prática que acompanhará Rosa nas viagens
ao exterior e nas andanças pelo sertão, sempre à cata de material para a narrativa
fabulosa que estava compondo.
Em 1934, Guimarães Rosa ingressa na carreira diplomática, deixa a medicina e torna-
se, nas décadas seguintes, um dos maiores escritores da literatura brasileira. Publica,
em 1946, o primeiro livro de contos, Sagarana, e, em 1956, Grande sertão: veredas e
Noites do sertão. Em plena fase de uma modernidade reciclada pelo projeto industrial de
modernização do Brasil, o escritor mineiro volta-se para a tradição, apropriando-se da
matéria regional como pano de fundo à experimentação de linguagem. Reúne
procedimentos revolucionários na literatura, com temas considerados arcaicos, e rompe
com a tendência hegemônica reinante nas manifestações modernas, voltada para o
nacionalismo, ao se abrir para a proposta universalista.
O arquivista Guimarães Rosa, na prática cotidiana da escrita, é assim descrito por
Walnice Nogueira Galvão:
Um olhar sobre a natureza de operar do nosso escritor é facultado pela frequentação do Arquivo
Guimarães Rosa, sob a guarda do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. (…)
Há ali abundância de materiais, tais como correspondência ativa e passiva, ainda inédita, recortes,
cardápios, fotos e postais, diplomas e certificados, documentos, papéis relativos à carreira
profissional, mementos de todo tipo. Mas sobressai uma notável coleção de 7 cadernetas e 25
cadernos, que serviram a diferentes propósitos. Podem conter impressões de boiadeiro, da ocasião
em que o escritor tangeu boiadas pelo sertão mineiro, em configuração que se tornou legendária;
necessitando das mãos livres para subjugar a montaria, levava o caderno atado ao pescoço por um
barbante.10
Na escrita do Diário de guerra, o leitor se depara com os bastidores da criação, com as
experiências do escritor frente à sua produção literária e existencial, lugares pouco
explorados pela crítica. Na intenção de reunir crítica biográfica e crítica genética,
expande-se o registro documental dos arquivos e recuperam-se os estágios pré-textuais
como meio eficaz de criação de biografias.
A experiência de Rosa durante sua estada em Hamburgo rendeu, além do Diário,
quatro contos-crônicas, publicados em periódicos e, mais tarde, reunidos em Ave,
palavra, em 1970: “O mau humor de Wotan” (Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 29 fev.
1948); “A senhora dos segredos” (Correio da Manhã, 6 dez. 1952); “Homem, intentada
viagem” (O Globo, 18 fev. 1961); “A velha” (O Globo, 3 jun. 1961). Esses textos
completam a experiência do escritor vivida no exterior e durante a perseguição judaica
pelo nazismo, produzem o efeito biográfico por meio do registro de fatos reais, embora
estejam construídos segundo parâmetros ficcionais. A meio caminho da crônica e do
conto, as histórias revestem-se tanto do aparato documental quanto fictício, o que
permite reconhecer a ambiguidade de sua concepção e de seu resultado textual.
Sem descartar dados de ordem política que atenuem a imagem de conservador e
apolítico imputada a Guimarães Rosa – nas anotações do Diário de guerra refere-se
constantemente à discriminação judaica –, a criação do perfil biográfico do escritor
relativo a essa época remete obrigatoriamente à relação entre a escrita diplomática, o
exercício autobiográfico do Diário de guerra e suas recriações literárias. Lidar com a
história pessoal ou coletiva significa alçá-la à categoria de um texto que ultrapassa e
metaforiza os acontecimentos, sem recalcar o valor documental e o estatuto da
experiência que aí se inscrevem. O procedimento criativo se sustenta por meio do ritmo
ambivalente produzido pela proximidade e pela distância em relação ao fato. O escritor
procede, por exemplo, à colagem de anúncios fúnebres publicados em jornal de alemães
mortos em sacrifício pela pátria ao lado de informação pessoal sobre a venda de seu
carro. No mesmo espaço da página, o arquivista torna o estranho familiar – o anúncio
fúnebre – e contrasta seu sentimento de propriedade – a venda do carro – com o
sacrifício dos alemães pela causa patriótica. O processo de montagem resulta na
simultaneidade dos discursos heterogêneos e sua consequente uniformidade e
contraste. O sentimento de propriedade do regime capitalista e burguês se expõe de
forma individualista diante da iminência de mortes coletivas causadas pela guerra:
21.XI.1940 – Vendi o automóvel hoje. Lá se foi o meu HH 727, por 2.535 Reichsmark. Que venham
outros, mais tarde!
20.XI.1940
Foi vítima de um ataque de aviões britânicos a um bairro residencial de Hamburgo a companheira
Elfriede Festersen [17 anos]
Ela também morreu pela Alemanha!
NSDAP Distrito Hamburgo 1
Rümker, p/chefe de distrito11
Por se tratar de um texto fragmentado e lacunar, como é a estrutura do diário, cresce,
contudo, sua importância como documento do escritor/diplomata que vivenciou um
período marcado por grandes conflitos internacionais. A prática do arquivista se
manifesta no contato real com a cultura europeia, ameaçada pela barbárie da guerra e
da distorção dos princípios de cidadania e liberdade. O avanço tecnológico resultante da
modernização se desviava para o aprimoramento dos instrumentos bélicos, para a
exclusão étnica e para o extermínio das cidades. Como reagiria o Guimarães Rosa
poliglota, recém-chegado ao continente para cumprir missão diplomática, com os
originais de Sagarana na mala e ainda interessado em aprimorar seu espírito
cosmopolita? Como conciliar os alarmes de bomba, as notícias transmitidas pelo rádio
sobre ataques aéreos e mortes, com o trabalho no Consulado, com a revisão dos contos,
com a curiosidade do escritor por tudo que se referia à língua e à cultura alemã, e por
extensão, à europeia?
O pacto de Rosa com a linguagem se pontua nesse intervalo, na pausa entre textos e
vivências construídas em contraponto, em que o diplomata divide com o escritor a
missão de desconfiar do apelo da racionalidade moderna, contaminada pela destruição
e ruína dos valores. Silenciar este texto e censurar o diálogo futuro com os leitores
concede ao Diário de guerra o destino de textos relegados ao esquecimento e
convertidos em falsa mitologia.
(Artigo publicado na Revista Alea – Estudos Neolatinos, v. 10, p. 121-129, 2008.)
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Biografar é metaforizar o real
Santiago1
Santiago é um homem que fantasiou sua vida inteira – à sombra dos lustres e arranjos florais de
uma aristocracia (ou altíssima burguesia) à qual sonhara pertencer. Para Santiago, a “casa da
Gávea” era o Palazzo Pitti de Florença. Ele, “senhor dos salões” por 30 anos, simulava seu reino
entre acordes de Beethoven, áreas de Puccini e lembranças das cores de Giotto. Sua obra mestra,
contudo, o aproximava dos copistas da Idade Média. Por mais de meio século aquele homem
solitário e peixotiano frequentou bibliotecas de vários países, muitas vezes durante as viagens com
o patrão, Walther Moreira Salles (1912-2001). Ao morrer, deixou para “Joãozinho” um conjunto de
30.000 fichas, enfeixadas em maços com fitas vermelhas, contendo anotações sobre todas as
dinastias da nobreza de todas as épocas e regiões do mundo, acrescidas das vidas dos papas, de
estrelas de cinema e de tribos indígenas. Uma cornucópia borgiana, que acabou se transformando
no grande comentário paralelo do filme.
Carlos Alberto Mattos2
De quais subjetividades esse documentário de João Moreira Salles irá tratar? Como
penetrar no universo de Santiago Badariotti Merlo – mordomo de nacionalidade
argentina e de ascendência italiana, embora tenha vivido a maior parte de sua vida no
Brasil – cuja história se mescla à da infância do cineasta, por ter servido à sua família,
durante 30 anos, na casa onde hoje está alocada a sede carioca do Instituto Moreira
Salles? Qual o tratamento conferido à montagem desse filme-documentário que coloca
frente a frente o antigo patrão e seu empregado, por meio de uma voz em off, na
primeira pessoa, que narra os anseios e as falsificações da filmagem realizada em 1992,
apenas concluída 13 anos depois?
Em entrevista à revista Bravo, o diretor confessa ter realizado o filme para se curar:
Fiz Santiago pensando sobretudo em sanar as aflições que me rondavam a alma e que, de certo
modo, ainda me atormentam. Trata-se de um filme essencialmente terapêutico. Quando decidi
rever o material que rodei em 1992, tinha 43 anos e atravessava uma intensa crise. Estava
adquirindo a consciência muito profunda de que as coisas realmente passam e de que não
conseguimos recuperá-las.
O teor autobiográfico do documentário enriquece a figura do mordomo, tornando-o
protagonista de uma das narrativas cinematográficas mais fascinantes e bem realizadas
dos últimos anos. Graças à mescla de fato e ficção, além do procedimento
metalinguístico do filme, tem lugar a construção simbiótica de cenas que envolvem a
família, o mordomo e o diretor, tendo como cenário a casa da Gávea e o apartamento de
Santiago.
Uma das funções exercidas pelo procedimento metalinguístico reside no registro das
impressões manifestadas pelo diretor durante a retomada do documentário, o que
descarta qualquer acusação de poder aí exercido sobre a personagem. Nesse sentido, a
figuração dos bastidores, o caráter obsessivo da repetição das cenas, a partir das ordens
emitidas por João Moreira Salles na condução dos trabalhos, confirma o clima despojado
e experimental do filme. Este se compõe de imagens que metaforizam as tomadas de
cena, como o passar do tempo, ilustrado tanto pela recorrência do movimento do
elevador do prédio de residência do mordomo quanto pela inserção do vídeo colorido –
revelador do momento de descontração da família na piscina e de uma possível
evocação de felicidade ligada à infância do cineasta e dos irmãos.
Uma das possíveis indagações do espectador a respeito do enredo do filme seria a de
tomar conhecimento das histórias vividas na residência burguesa, cujo proprietário
acumulou cargos de embaixador, de banqueiro e empresário dos trópicos,
protagonizadas pelo mordomo e montadas pelo filho/diretor do documentário. Nada
disso acontece. A casa é encenada de modo fantasmagórico, desprovida de traços
identitários, pela ausência de móveis e de pessoas, como se estivesse à espera do
trabalho de memória a ser efetuado pela lembrança de seus personagens. O que se
narra, de forma bastante discreta, é a passagem do tempo, a impossibilidade de
preencher, com imagens, o que as palavras de Santiago dizem e as que são transmitidas
pelo narrador, interpretado pela voz do irmão Fernando, e não por João, o autor do
roteiro familiar. Portas abertas, cortinas esvoaçantes, folha caindo na piscina vazia,
corredores também vazios simbolizam o tempo passado/perdido. O documentário não
pretende preencher esse vazio dos salões nem restaurar, de modo falso, a casa
moderna/antiga, a família, pela exposição de fotos, vídeos, imagens ou outro tipo de
registro.
O vazio da memória responde pela crueza do décor do interior da casa e das
recordações emitidas pelos discursos do narrador e de Santiago. A amplitude e o
silêncio desse espaço contrastam com o apartamento do ex-mordomo, onde são
tomadas as cenas, espaço minúsculo que a câmera reproduz em perspectiva, o que
permite torná-lo ainda mais reduzido pelo efeito de enquadramento. A técnica
cinematográfica utilizada para a entrevista com o mordomo se apropria daquela
exercida pelo diretor japonês Yasujiro Ozu, pela ausência de close na reprodução da
imagem do protagonista, abolindo-se a utilização de grandes planos. Constata-se apenas
o enquadramento de Santiago na altura da câmera, ao ser filmado ora sentado num
canto da cozinha, ora na beirada da banheira ou da cama, ora entre duas paredes, o que
resulta na ausência de movimentos largos e no aproveitamento do espaço aberto.
Retrata uma personagem que se enclausura no interior do apartamento, decorado com
reproduções de quadros e cheio de estantes, onde são colocadas as páginas e páginas de
textos datilografados e empilhados. Representam o resultado de sua escrita, do
exercício lento e obsessivo de quem se dispõe a copiar listas de reis, de chefes indígenas,
de artistas de TV, de Hollywood e de aristocratas.
Uma das tomadas do filme focaliza Santiago ao fundo, na cozinha, apenas a parte
superior do corpo em destaque, tendo como primeiro plano, em vertical, a maçaneta da
porta, a chave e, à esquerda, a parte visível do fogão. Sobre ele, panelas dependuradas. À
direita da cena, uma máquina de escrever sobre a mesa, uma folha de papel sob os
óculos e um porta-lápis. Seria na cozinha o ambiente de trabalho de Santiago, o espaço
escolhido para o prazer de sua escrita? Captado pela câmera por meio do
enquadramento, Santiago representa, responde às perguntas do diretor, atende às suas
ordens, repete o script, quando este não se realiza conforme a vontade do
patrão/diretor, reclama, declama em latim orações que decorou na infância e repete
frases de várias personalidades, como de cineastas, entre outras. Sua figura atinge
incrível plasticidade e um movimento que revitaliza a imagem desse mínimo espaço que
lhe é reservado para atuar, o que produz, ao longo do documentário, o crescimento da
personagem e seu desligamento do roteiro preestabelecido pelo diretor, além de criar
empatia com o espectador. Mas o que escapa a essa ordem do documentário é a criação
do pathos, da simpatia e do desvendamento gigantesco e atordoado de uma pessoa que
mantém referências com outras personagens da literatura e do próprio cinema.
A movimentação mínima em cena é esteticamente dirigida pela dança das mãos, na
verdade um dos mais belos momentos do filme, em que se presencia a sensibilidade
artística de Santiago por meio de seu instrumento mais precioso. São essas mãos que
exercem a coreografia de uma vida fantasiosa, seja através de sua função de copista das
histórias das dinastias e da nobreza do mundo, do manuseio dos arranjos de flores, do
cuidado com a casa e sua ordem, seja pela dança em que toca castanholas, ritmo em
descompasso com a música que o acompanha (estratégia usada para referir-se ao
deslocamento de função e de lugar desse mordomo). Na evocação do narrador se
presentifica ainda o ritual assumido por Santiago ao se vestir a rigor (de fraque),
quando toca piano numa noite em que os patrões estão ausentes. Ao ser indagado sobre
a razão de tal indumentária, justifica-se pela escolha de Beethoven, o compositor a ser
interpretado. A falta de audiência (e dos patrões) se preenchia pelo cultivo da música
como forma interiorizada de realização pessoal, de satisfação solitária do desejo.
Roland Barthes, em entrevista concedida à revista Magazine Littéraire, n. 108, em
janeiro de 1976, discorre sobre a prática dos copistas Bouvard e Pécuchet, de Flaubert,
ao considerá-la como pura conservação do gesto manual, sem nenhum sentido, apenas
reforçando a inutilidade de se conseguir um saber enciclopédico e sem valor. Segundo
Barthes, este gesto representaria o momento histórico de crise da verdade, de crise da
modernidade que começava a abrir suas portas. Em Santiago, embora o ato de copiar
não se restringisse à mera reprodução flaubertiana, persiste, contudo, o desejo de
conservar verdades já inoperantes e desaparecidas, ao lado do fervor de preservar, pelo
registro escrito, um mundo em crise, a burguesia em extinção, o tempo dos bailes e
recepções que pertenciam, agora, ao tempo passado. O filme expõe o ritual de denúncia
dessa situação de decadência, de resto e de fim. É esta a imagem que permanece do
apartamento de Santiago, povoado de lembranças e de resíduos de uma época em que,
curiosamente, o país vivia um momento de extrema euforia desenvolvimentista. Se na
casa da Gávea não se preservaram os vestígios de um interior opulento e nobre, o
apartamento do mordomo reproduz, em miniatura, as ruínas que remeteriam para o fim
desse tempo.
O cuidado em arquivar, pela cópia, a vida e dinastias dos nobres, o desejo de
revitalizá-los e torná-los companheiros e amigos, de ficcionalizar sua existência e
superar a solidão com a ajuda desse trabalho de criação/cópia de livros escritos em
línguas diversas, transformam Santiago em personagem borgiano, em “Funes, o
memorioso”. Como Funes, ele não se esquecia de nada, sofria de insônia e no lugar de
selecionar, acumulava registros, transformando-se num depósito infinito de objetos, em
réplica naturalista do universo. Nesta implacável memória, nada se perde, nada se
destrói, em razão de ser ela regida pelo princípio de conservação acumulativa, no qual o
ato de pensar não passa de reprodução do percebido. A predileção do escritor argentino
por personagens consideradas simples e comuns, como Bouvard e Pécuchet, como
Bartleby, o escriturário de Melville, ou pelos criadores de textos, como os copistas das
Mil e uma noites, os tradutores que sempre traíam os textos originais, justifica seu oficio
de escritor, assumido como compilador e tradutor de textos alheios. Essa predileção por
essas figuras literárias comprova, portanto, o fato de ser Santiago uma das inúmeras
personagens de Borges.
O arquivo de Santiago assume feição enciclopédica, por ser ele acometido pela febre
de tudo registrar, principalmente quando se trata de histórias de reis e de dinastias. À
feição dos copistas antigos, faz anotações e acrescenta dados ao texto, tornando-se
coautor de uma escrita retirada de livros alheios, além de inserir sua assinatura entre as
páginas reproduzidas. O resultado desse trabalho de esteta e de copista carece de
objetivo prático, pois na luta para que suas personagens não fossem esquecidas, o
escriba torna-se proprietário dos textos utilizados de segunda mão e registra aí sua
marca. Essa prática de escrita o impede de ser dominado pela solidão, pela sensação de
inutilidade e pela ausência de desejo diante da vida. Por um processo de transferência,
vive sempre a experiência do outro, torna-se o guardião da memória da casa, dos
nobres, da família Moreira Salles e de si próprio. Como os copistas flaubertianos,
Bouvard e Pécuchet, Santiago cultua a repetição na certeza de que tudo já foi dito e
escrito, o que resta é inscrever novamente seu nome sobre os de outros escribas. A
cópia é a forma de escrita que remete ao palimpsesto, ao texto da vida que se produz
por camadas, por remissões, por ecos, por espelhismos. O desejo de alcançar o ideal de
nobreza dos patrões, a paixão pelo cinema americano e suas atrizes, contribuíram para
que Santiago se transformasse também na réplica de personagens cinematográficas,
como o criado, protagonista do filme homônimo de Losey, ou o mordomo de Vestígios do
dia, de James Ivory. As diferenças entre eles são, sem dúvida, substanciais, por se tratar
de situações sociais distintas de subserviência e de poder.
Como esteta, Santiago apreciava sua coleção de madonas, de pratos de porcelana, de
estatuetas. O colecionador se conjuga ao espírito enciclopédico, na ânsia de tudo
conservar e abarcar. À feição dos hábitos e costumes dos patrões, por meio de um
processo de reduplicação, é vítima de espelhismo e de plágio, uma vez que a função do
mordomo é a de servir ao outro e de se entregar totalmente ao ofício de cuidar, com
elegância e estética, do bom andamento da casa. Os arranjos de flores recebiam formas e
sentidos conforme a imaginação de Santiago, o modo de valorizar o que poderia
engrandecer e enobrecer o ambiente. Pequenos cuidados que alcançavam significados
além de seu valor real, em virtude da imaginação e dos sonhos desse mordomo
exemplar.
O mea-culpa do diretor se configura em contraponto à fala de Santiago, pela
necessidade de se posicionar de forma transparente no documentário, rascunho
guardado por muito tempo na gaveta. A decisão pessoal do diretor de registrar seu
comportamento na filmagem de 1992 motivou a retomada do documentário.
Autoritário, João Moreira Salles mapeia as falas, orienta os gestos da personagem e o
impede de confessar verdades íntimas. A confissão fugiria das intenções do script. Na
retomada da filmagem, com Santiago já morto e ausente, o diretor conserva
intencionalmente a relação de poder entre ele e a personagem, na qual são
problematizados os impasses advindos da diferença social entre eles, por revelar agora
muito mais a reflexão sobre os bastidores deste longa, como a relação de poder e o fato
de o diretor também aí se colocar como protagonista.
Como reflexão final, gostaria de mencionar duas cenas de filmes estrangeiros
apresentadas no documentário, cada uma revelando, em particular, o perfil de ambos
protagonistas: primeiramente, a cena de Viagem a Tóquio, de Ozu, remetendo à técnica
utilizada no filme, pela ausência de close e sem grandes planos. Mas o que se percebe,
como uma espécie de mote para a compreensão do documentário, é a pergunta feita por
uma das personagens femininas: “a vida é uma decepção?”, e respondida pelo cineasta
com um sim e um sorriso, ou na própria interpretação de João Moreira Salles em
entrevista: “O júbilo de um sorriso diante do que não se pode evitar.” A segunda refere-
se à dança de Fred Astaire e Cyd Charisse, no filme A roda da fortuna (1943), dirigido
por Vincent Minelli, um dos filmes preferidos de Santiago. No documentário, a razão que
motiva a reprodução, a cores, da cena, são a beleza e a gratuidade do entrosamento
entre os bailarinos, antes descompassados e incapazes de se entender durante os
ensaios realizados no próprio filme. O acaso propicia o encontro, pela dança, dos
bailarinos, assim como remete para a sensação de medo diante da finitude das coisas,
segundo declaração do cineasta, ao conjugar a preferência pelo filme hollywoodiano de
Santiago com a necessidade de preservar a imagem leve, nostálgica e feliz dos tempos
passados, do ambiente da casa da Gávea. A música, “Dancing in the dark”, ilumina os
passos dos atores no Central Park de Nova York e se contrapõe à possível amargura da
pergunta presente no filme de Ozu, “A vida é uma decepção?” e a resposta de João
Moreira Salles, “Talvez a arte e a fantasia contribuam para que isso reverta em algo mais
feliz”.
(Texto apresentado no Fórum Virtual de Literatura e Teatro. Programa Avançado de Cultura
Contemporânea. Rio de Janeiro, 20 set. 2008.)
Freud explica
Blanchot diz que o escritor “morre” a partir da existência da escrita. Entra-se no espaço literário, e
tudo é branco, tudo é possível. Se você quiser, eu escrevo como em todos meus livros,
autobiografias de outrem.
Antonio Tabucchi
No campo fértil da crítica biográfica, na qual se incluem as escritas autoficcionais,
biográficas e literárias, Fernando Pessoa ocupa, sem dúvida, um dos lugares mais
destacados. Sua autobiografia literária, composta da invenção de inúmeros
heterônimos, atualiza os princípios da poética moderna ocidental, calcada na
disseminação do sujeito, na descoberta da alteridade e no elo indissociável entre escrita
e morte. O deslocamento intencional da figura única do poeta em múltiplos avatares e
espectros instaura a sombra e o reflexo como imagens distorcidas do modelo, operação
capaz de nomear tanto a literatura quanto a vida como domínios da representação e do
artifício. Uma vez firmado o pacto ficcional, a vida do escritor se reverte
necessariamente em grafia, e a biografia se traduz em literatura.
Quais seriam, portanto, as mortes imaginárias de Pessoa? O escritor francês Marcel
Schwob, autor de Vidas imaginárias, texto publicado em 1896, é um dos singulares
biógrafos da literatura, festejado por muitos e atualmente esquecido, mas que se vê
revitalizado pela crítica, em virtude da reedição dessa obra pela Editora 34, com
tradução de Duda Machado e prefácio original de Jorge Luis Borges.1 A peculiaridade de
seu texto reside na criação de biografias de pessoas desconhecidas e no exercício livre
da escrita, ao narrar ações fabulosas atribuídas a personagens reais. Borges, ao
apresentar o livro na Colección “Jorge Luis Borges, Biblioteca Personal, em 1985”,
considera o autor uma de suas fontes literárias, pelo interesse por personagens julgadas
“infames”, e pelo método utilizado na escrita, ao misturar realidade e ficção: “O sabor
peculiar deste volume está neste vaivém.”2 Acrescenta ainda que, à semelhança de suas
personagens, Schwob “não buscou a fama; escreveu deliberadamente para os happy few,
para poucos”. A história universal da infâmia, primeiro livro de contos de Borges, de
1935, ao se apropriar do tema da fama através de atos praticados por personagens
infames e sem importância, é uma das evidências quanto ao mérito de Schwob para a
compreensão da poética borgiana.
Uma constatação relevante para o tema desta minha reflexão é a analogia entre a obra
e a vida de Schwob, por ambas se pautarem pelo signo do imaginário. Nos últimos dias
em que viveu, a imagem do escritor Robert Louis Stevenson lhe serviu de modelo,
estimulando-o a partir para a ilha Samoa, aventura que reduplicava a vida e pastichava a
literatura do escritor escocês. Schwob viaja com o objetivo de encontrar o túmulo de
Stevenson, mas não o acha, desilusão igualmente sentida pela filósofa Hannah Arendt,
ao chegar a Port-Bou à procura do túmulo do amigo Walter Benjamin, seis meses após
seu suicídio. O desejo de comprovar a morte pela visita ao túmulo do escritor traduz o
gesto de homenagem e a consolidação de um lugar de pouso e assinatura. No entanto,
diante da ausência do túmulo, a morte deixa de ser verossimilhante e se converte em
morte imaginária, lida em consonância com a vida nômade e inquieta de seus
protagonistas. Torna-se ainda componente básico para a estreita ligação entre obra e
vida.
Túmulos imaginários se revertem em manuscritos enigmáticos, em obra póstuma a
ser decifrada pelos futuros leitores da vida e da produção literária dos escritores.
Marcel Schwob, ao morrer, em Paris, de pneumonia, se une finalmente ao seu duplo,
após ter vivido à sombra de Robert Louis Stevenson morto. A morte imaginária de
Schwob é marcada pela projeção do outro na cena final, em que é reiterado o desejo de
conjunção entre modelo e cópia. Projetar-se na imagem fantasmática do outro consiste
na escolha da literatura como destino e da vida como ficção. O texto autobiográfico
corresponde à escrita da vida como autoficção. Os mundos paralelos se explicam pela
conversão da letra em experiência copiada da letra de outrem.
Essas reflexões foram motivadas pelo livro de Michel Schneider, Morts imaginaires, no
qual são reescritos os últimos momentos e as possíveis frases pronunciadas por alguns
escritores, assim como a situação e o lugar de sua morte. São ainda relevantes os
documentos e objetos pessoais pertencentes ao cotidiano da vida do sujeito, dotados de
valor significativo para a melhor compreensão da obra dos autores, como os
manuscritos, os livros ou pastas cheias de papéis, deixados como obras inacabadas, à
espera de uma publicação póstuma.3 A mitificação do lugar onde se escolhe para morrer,
seja a morada familiar, o quarto de hotel, o hospital ou o local mais propício à cena do
suicídio, se associa também à visita de amigos e admiradores ao túmulo, com vistas a
render culto e a ver ali representada a morte como o livro fechado de uma vida.
Sigmund Freud, Stefan Zweig, Immanuel Kant, Truman Capote, Marcel Schwob, Walter
Benjamin, entre outros, compõem a galeria dos mortos imaginários analisados por
Schneider e são interpretados conforme a feição e o ritual assumidos na hora da morte:
ora como morte plagiária, ora como morte paralela, mort d’occasion, ou “morte usada”.
Esta se explica pela analogia mantida com a expressão livros usados, antigos, vendidos
no sebo, os quais, após terem sido lidos, relidos e manuseados pelos leitores, serão
novamente compartilhados por aqueles que lhes sucedem.
A expressão “morte usada” refere-se também aos escritores que, nos últimos
momentos, se comportam de forma semelhante a outras situações, por meio de frases
pedidas de empréstimo e de clichês, metaforizando a imagem da morte como edição
repetida e de segunda mão e convertendo a experiência própria em cópia da experiência
alheia. A projeção e a realização imaginária por meio do exemplo literário constroem o
enredo dessas narrativas de vida. Stefan Zweig, ao decidir se suicidar com a mulher em
Petrópolis, em 1942, e após ter escrito, obsessivamente, um número considerável de
biografias, repete e plagia, segundo Schneider, o escritor Heirich von Kleist: “A mesma
morte voluntária, cheia da alegria de desaparecer; a mesma partilha com a mulher
amada, conduzida a um final apaixonado; a mesma febre de escrever até os últimos
instantes.” E mais abaixo: “Stefan Zweig quis situar sua morte na estante das mortes
heroicas de escritores.”4
Em 1986, doente e na iminência da morte, Borges decide voltar à Genebra de sua
juventude, optando pela eleição de um espaço que talvez mantivesse algum laço com o
sentimento de pátria, lugar este que será emblematicamente seu eterno exílio. Enquanto
procuravam um imóvel para se instalar na cidade velha, que lhe concederia maior
proximidade com o passado, hospeda-se com María Kodama em um hotel nessa região,
chamado “L’Arbalète”. Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 19 de maio de 1996,
Kodama relata a associação feita pelo escritor entre o hotel em Genebra e o “L’Hôtel” de
Paris, onde morreu Oscar Wilde, em 1900, no início de um século que irá desconsiderar
a personalidade artística, relegada a segundo plano pela obra. A referência a esse lugar
simbólico permitiu a Borges convencer o proprietário da casa de que sua morte poderia
proporcionar-lhe benefícios materiais, por se tratar de um escritor que se transformara,
ao longo do tempo, em “uma velha superstição”. Ao escolher um quarto de hotel para
reencenar o gesto de seu precursor Oscar Wilde, estaria cumprindo, ao pé da letra, esse
destino literário. De forma irônica, interpreta a morte como ato literário que se repete,
assim como o caráter ficcional da própria vida:
Sabe, eu, para os argentinos, sou como uma velha superstição. E o senhor sabe que em Paris há um
hotel, que se chama “L’Hôtel”, onde morreu Oscar Wilde. Hoje todo mundo quer dormir no quarto
em que Wilde morreu. Então isso vai acontecer comigo, de modo que o sr. pode passar a cobrar
mais.5
Outra cena relativa à citação literária, como forma de tornar mais nobre a existência
pela historicização da doença, encontra-se registrada no discurso de entronização de
Roland Barthes no Collège de France, publicado com o título de Aula. No final do texto, o
encontro do escritor com a literatura se processa pela mediação da doença sofrida no
passado, a tuberculose, o que lhe permite ser contemporâneo e parceiro do corpo
doente de Hans Castorp, o herói de A montanha mágica de Thomas Mann.
Reconhecendo ser o seu corpo histórico, por ter a dimensão que ultrapassa o presente e
reconstrói o passado, Barthes, no momento da aula inaugural, confessa: “Portanto, se
quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que
sou contemporâneo dos jovens corpos presentes, e não do meu próprio corpo, passado.
Em síntese: periodicamente, devo renascer, fazer-me mais jovem do que sou.”6 O
renascer para a vida nova implica a concepção do tempo simultâneo dos encontros e
não a cronologia marcada pelo calendário. A entronização de Barthes no Collège de
France elege a desconstrução como método, ao se nutrir da literatura como mediação
para seu discurso de posse. Além de Thomas Mann, responsável pela sua inserção na
história literária, cita Dante, da Vita nuova, ao optar pela revitalização do corpo
institucional, reduplicando e se colocando como vida paralela à dos seus modelos.
Nesse espaço ocupado pelo tema literário da morte, Fernando Pessoa inaugurou uma
poética original, elegendo a morte do autor como princípio básico, multiplicando-se em
heterônimos, e reiterando a perda do sujeito no meio de outras vozes, por meio da
criação de diversas instâncias discursivas. Esse artifício articula paradoxalmente o
exilar-se e o habitar a linguagem pelo sujeito, ao se tornar tanto seu hóspede como seu
anfitrião, deslocar o sentido de propriedade para o de expropriação, pela mobilidade
significativa atingida pelo trânsito intersubjetivo entre morte e vida. Na invenção genial
dos heterônimos, com biografias e horóscopos próprios, Pessoa adquire liberdade para
“matar” Alberto Caeiro, o mestre de todos, que, em 1915, é vitimado pela tuberculose,
moléstia fatal para a época e também dotada de conotação literária.
Antonio Tabucchi, em Os três últimos dias de Fernando Pessoa, utilizando-se de licença
poética, registra a morte de Álvaro de Campos no mesmo dia e ano da morte do poeta,
conforme a lista de personagens anexada no final do livro. O escritor italiano, ao narrar
os três últimos dias de Pessoa, reencena, livremente, o encontro dos pseudoautores com
seu criador, escrita que evoca outra morte imaginária, em que se dramatiza o diálogo
entre eles: segredos são revelados, confissões apresentadas, registro de últimos
pedidos, em resumo, uma prestação de contas que marca os momentos de
desnudamento e fingida exposição de verdades.
O subtítulo do livro recebe a denominação de “um delírio” e funciona sob a forma de
um procedimento ficcional, por eleger a fantasia e o sonho como procedimentos
literários a serviço da narração dos últimos dias de um poeta, pelo menos reconhecido e
atestado pelos documentos de identidade. Os fatos narrados, as personagens que aí se
instalam, participam, contudo, da autobiografia literária de autoria pessoana, o que
permite diminuir o valor do delírio e considerá-lo verossimilhante à poética dos
heterônimos, logo, dispensável como recurso ficcional. Os nomes se transformam em
personagens, saem das páginas dos livros e dramatizam o encontro com Pessoa, ao ser
hospitalizado. Atuam como parceiros e fantasmas da escrita de Tabucchi e recebem
sobrevida ficcional ao serem convocados para se despedirem do autor-moribundo.
A morte imaginária de Pessoa, encenada por Tabucchi, representa a conciliação
ilusória do poeta com os heterônimos, o reconhecimento da morte como reencarnação
do sujeito na natureza, uma saída para a entrega do poeta no cosmos. Morte e vida são
interpretadas como peças da mesma moeda, desde que o sonho é a mola da vida, a luz,
parceira das trevas e a ficção, o espelho da existência. O sentimento da precariedade da
vida e a fuga pela ficção, a mentira e o sonho compõem o universo poético de Pessoa e
são reproduzidos por Tabucchi na criação de sua personagem. O tema da morte – e sua
misteriosa presença – constitui o traço peculiar do poeta melancólico, dominado pelo
medo e pela insatisfação. No poema o “Primeiro Fausto; passagem das horas”, de Pessoa,
esse pensamento se expressa de modo forte e esclarecedor:
– Me toma a gorja, com horror de negro / O pensamento da hora inevitável, / E a verdade da morte
me confrange. / Pudesse eu, sim, pudesse eternamente / Alheio ao verdadeiro ser do mundo, /
Viver sempre esse sonho que é a vida! / Expulso embora da divina essência, / Ficção fingindo, vã
mentira eterna, / Alma-sonho, que eu nunca despertasse! /Suave me é o sonho, e a vida (…) é
sonho.7
Na conversa do poeta com o heterônimo e filósofo António Mora, Tabucchi coloca
Pessoa se despedindo da vida e recitando fragmentos de versos de “Primeiro Fausto;
passagem das horas”, de Álvaro de Campos, texto que retoma a crença numa existência
fabulosa, na qual o sujeito se sente capaz de alcançar a visão total do universo e de se
corporificar em vários seres e objetos, mas que resulta inevitavelmente na
fragmentação e no desvio desse sujeito: “Multipliquei-me, para me sentir, / Para me
sentir, precisei sentir tudo, / Transbordei, não fiz senão extravasar-me, / Despi-me,
entreguei-me, / E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.”8 No
texto de Tabucchi, o discurso de Pessoa se cruza com esses versos e também remete
para a apropriação do procedimento criativo de Borges, a visão do aleph. Descreve, com
minúcia, a capacidade visionária do poeta, alcançada pela concepção enciclopédica e
alucinante do universo, imagem proporcionada pela experiência da visão do aleph,
presente no conto homônimo de Borges. Reproduz, de forma imaginária e sob o signo
do pastiche, a plenitude, o excesso e a ilusão da totalidade experimentada pelo poeta-
moribundo. Na repetição, por Tabucchi, da cena borgiana, os últimos momentos de
Pessoa atualizam a figuração do aleph, esfera luminosa cujo centro está em todas as
partes e a circunferência em nenhuma, por se tratar de uma visão que simboliza o
encontro imaginário, eterno e fugaz do infinito. Através desse processo redutor e
minimalista, esse momento representa a cifra da vida de Pessoa. A aproximação entre
Pessoa e Borges por Tabucchi – e agora por mim – entra em consonância com o delírio
borgiano, por apresentarem ambos poéticas semelhantes e traduzirem o que se entende
pelo “cogito melancólico da modernidade”.9 O trecho final de Os três últimos dias de
Fernando Pessoa encena a exaustão como experiência vital e como contraparte da
imaginação poética, delírio que condensa os versos do poeta português com a imagem
borgiana do aleph:
Está na hora de partir, é hora de deixar este teatro de imagens que chamamos de nossa vida. Se
soubesse as coisas que vi com os óculos da alma, vi os contrafortes de Órion, lá no alto no espaço
infinito, andei com esses pés terrenos pelo Cruzeiro do Sul, atravessei noites infinitas como um
cometa reluzente, os espaços interestelares da imaginação, a volúpia e o medo, e fui homem,
mulher, velho, menina, fui a multidão dos grandes bulevares das capitais do Ocidente, fui o plácido
Buda do Oriente, do qual invejamos a calma e a sabedoria, fui eu mesmo e os outros, todos os outros
que podia ser, (…) e tudo porque a vida não basta. (…) Mas agora basta, meu caro António Mora,
viver a minha vida foi viver mil vidas, estou cansado, minha vela consumiu-se, peço-lhe, me dê os
meus óculos.10
Pessoa se declara entediado com a experiência de ter vivido mil vidas e de ter se
fragmentado nas múltiplas imagens da alteridade. Morre pelo cansaço na busca da
plenitude que se reveste de contradição, esvaziando-se pelo excesso de luz que cega o
conhecimento, dimensão paradoxal referente ao sentimento de totalidade e de vazio.
Integrando-se à plenitude cósmica, perde o sentido alegre da vida, o que resulta no
próprio tédio, no spleen, na melancolia e na morte por crise hepática. Morre em
consequência de sua autobiografia, do alimento e do vício melancólicos da
modernidade. No texto citado, Pessoa pede a António Mora, na forma do último desejo,
que lhe passe os óculos, gesto que mimetiza e desconstrói a frase de Goethe,
pronunciada no leito de morte, “Mais luz”. Na interpretação de Leyla Perrone-Moisés, no
ensaio sobre Pessoa “Pensar é estar doente dos olhos”, “nesse confronto, o pedido de
Pessoa toma ares de paródia involuntária. No século XX, o poeta já não ocupa aquele
lugar reconhecido de vidente que lhe coube no Romantismo; perdeu a auréola
(Baudelaire), a supervisão, e só tem acesso à visão parcial dos fenômenos.”11
A morte datada de Pessoa, em 30 de novembro de 1935, no Hospital São Luis dos
Franceses, causada por crise hepática, permite não só a associação do alcoolismo e da
boemia com a figura do poeta maldito, mas ainda com o sentimento de melancolia
explicada, etimologicamente, pelo vocábulo grego “melancolia”, o qual remete para o
sentido de “humor negro” e de “bile negra”. Atormentado pelo mal-du-siècle, Pessoa se
refugia na criação de personagens, na transformação da escrita em espaço ficcional dos
encontros e na metáfora da própria vida. Morre daquilo que construiu como verdade
estética e programa existencial, quais sejam o deslocamento constante do sujeito, a
perda da aura e a experiência do sonho e do delírio como formas de prazer e realização
poética e existencial. A sensibilidade exacerbada do artista, a multiplicação e ruína da
subjetividade em tempos sombrios motivam Tabucchi a recriar os últimos três dias de
Pessoa, captando o momento da morte como simulacro de uma vida levada às últimas
consequências. Morre-se com o mesmo estilo com que se viveu, não havendo
contradição entre a grafia, a vida e o fim. A literatura antecipa e constrói o destino do
escritor, inscrevendo-o no cânone dos artistas representativos da alta modernidade.
Se a melancolia é considerada a doença do pensamento, é ela que ainda assinala a
necessidade de reconhecer a presença do corpo como alteridade e registro,
determinando o comportamento do sujeito e não se opondo à razão. Instauram-se,
portanto, novas modalidades subjetivas. A teoria filosófica de Nietzsche, desenvolvida
na Gaia ciência, elege o “saber alegre” como saída para se transformar a dor em
conceito, pela ação afirmativa em dizer sim ao sofrimento e por considerar o ato de
pensar com uma das possibilidades de cura. A prática da escrita desempenha
igualmente a transfiguração da doença, gesto paradoxal que reúne dor e alegria, humor
e tragédia, além de comprovar que a criação poética atua como letra que sobrevive à
efemeridade da vida e do tempo. Álvaro de Campos, heterônimo de Pessoa e
personagem de Tabucchi, num misto de ironia e desdém, despede-se de Pessoa
conforme o estilo que o singularizou:
E depois dei de querer decifrar a realidade, como se a realidade fosse decifrável, e veio o desânimo.
E com o desânimo, o niilismo. Depois, nunca acreditei em nada, nem sequer em mim mesmo. E hoje
estou aqui, à sua cabeceira, como um trapo sem qualquer serventia, fiz as malas para lugar nenhum,
e o meu coração é um balde esvaziado. (…) Campos colocou a capa sobre os ombros, pôs o
monóculo no olho direito, fez um rápido gesto de despedida com a mão, abriu a porta, deteve-se por
um instante e repetiu: Adeus, Fernando. E depois sussurrou: Talvez nem todas as cartas de amor
sejam ridículas.12
Uma vez compactuado com a alteridade e a fantasia, o poeta Fernando Pessoa passa a
ter prerrogativas de personagem, recebendo, conforme o momento e a intenção de
outros fabulistas, tratamento literário e vida própria. José Saramago, em 1984, escreve
O ano da morte de Ricardo Reis, romance que estabelece o diálogo com as tradições
nacionais, literárias e históricas, tendo como protagonista um dos mais conhecidos
heterônimos de Pessoa. Ricardo Reis, agora personagem de Saramago, volta do Brasil
após a morte do poeta, ocorrida em 1935, permanece em Lisboa durante o ano de 1936,
visita o túmulo do poeta, conversa com o espectro e a aparição de Pessoa durante todo o
tempo, até ir ao seu encontro graças à sua morte ficcional criada por Saramago. De
feição distinta do livro de Tabucchi, O ano da morte de Ricardo Reis reforça o aspecto
histórico e político do país, ressaltando o alheamento da personagem diante da
presença assustadora da ditadura de Salazar, a ascensão de Hitler e de Mussolini, além
da iminência da Guerra Civil espanhola. Na defesa de um Portugal mais esperançoso e
mobilizado, Pessoa e Ricardo Reis, na cena final do romance e no encontro na morte,
acreditam na mudança e na libertação políticas do presente, condensadas na imagem de
Adamastor:
Saíram de casa, Fernando Pessoa ainda observou, Você não trouxe chapéu, Melhor do que eu sabe
que não se usa lá. Estavam no passeio do jardim, olhavam as luzes pálidas do rio, a sombra
ameaçadora dos montes. Então vamos, disse Fernando Pessoa. Vamos, disse Ricardo Reis. O
Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui
onde o mar se acabou e a terra espera.13
Sem o chapéu, que não mais terá sua serventia, Ricardo Reis é também uma fantasia
literária de Saramago, o que nos permite concluir que, decorridos mais de 70 anos da
morte de Pessoa, o que permanece são a imortalidade de uma obra e a transfiguração
imaginária do poeta, que se multiplica em personagem na pele de outros autores e de
textos distintos. Com óculos e sem chapéu para enfrentar a morte, essas personagens
continuarão a povoar o universo espectral da literatura enquanto houver leitores que
lhes proporcionem uma sobrevida literária transtemporal, sobrevida que sempre irá se
nutrir da imaginação e do vir a ser.
(Ensaio publicado em: MARQUES, Reinaldo; SOUZA, Eneida Maria de (Org.). Modernidades
alternativas na América Latina. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. p. 407-417.)
Bibliografia
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, [s.d.].
BORGES, Jorge Luis. A história universal da infâmia. Tradução de Flávio J. Cardoso. Porto
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KODAMA, María. Entrevista. Folha de S. Paulo, 19 maio 1996. Ilustrada.
MONEGAL, Emir Rodriguez. Borges, auteur de Fernando Pessoa. Magazine Littéraire,
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NIETZSCHE, F. Gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PERRONE-MOISÉS Leyla. Pensar é estar doente dos olhos. In: NOVAES, Adauto (Org.). O
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PESSOA, Fernando. Primeiro Fausto; passagem das horas. In: ____. Obra poética. Rio de
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SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras,
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SCHWOB, Marcel. Vidas imaginárias. Tradução de Duda Machado. Rio de Janeiro: Editora
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TABUCCHI, Antonio. Os três últimos dias de Fernando Pessoa. Um delírio. Tradução de
Roberta Barni. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
A memória de Borges
Talvez no futuro alguém, uma mulher que ainda não nasceu, sonhe receber a memória de Borges tal
como Borges sonhou que recebia a memória de Shakespeare.
Ricardo Piglia
Na década de 1980, Octave Mannoni, psicanalista francês, escreveu Ficções freudianas,
inspirado na poética de Borges e tendo Freud como objeto. O livro se compõe de uma
série de contos envolvendo Freud, seus amigos e clientes, com o objetivo de
desconstruir os limites rígidos entre ciência e ficção, ao apontar a potencialidade
enganosa e fugidia do ato de linguagem, praticada tanto pela literatura quanto pela
psicanálise. Nesse espaço baldio da escrita, a alteridade se impõe como constituinte do
sujeito e a dessubjetivação autoral celebra o gesto de apropriação do outro. A literatura
borgiana já se consolidava mundialmente em vários campos do saber como produtora
de artifícios capazes de desbancar racionalidades e de penetrar sem escrúpulos no jogo
indomável da ficção.
O escritor catalão Enrique Vila-Matas – assim como boa parte da literatura global –
tem reativado a invenção ficcional borgiana, pautada pelo desaparecimento (também
ficcional) do sujeito/autor e do surgimento do fantasma da alteridade e do duplo.
Estamos agora no reino da literatura e não apenas na sua relação com os demais
saberes disciplinares. Ela se alimenta de si própria, visita lugares literários, inventa
encontros entre escritores, imagina diálogos entre personagens retirados de livros,
brinca com as citações alheias e reforça o fascínio de leitores pela aura literária.
“A memória de Shakespeare”, conto de Borges que narra como a memória do autor
inglês foi presenteada ao narrador/escritor por um desconhecido, não estaria sendo
reconfigurada, na literatura contemporânea, pela memória de Borges? A metáfora da
memória alheia permitiria definir a tradição poética e a herança cultural da literatura
contemporânea? Estaria a profecia de Ricardo Piglia, segundo a qual a memória de um
escritor latino-americano poderia ser enxertada, no futuro, na memória de um europeu?
E acrescentaria: na memória de tantos outros escritores do planeta? O legado literário
do cânone ocidental, no qual o norte sempre se impôs como exportador de modelos
estaria sendo ocupado pelo sul, ou pela literatura dita periférica? Ou ainda, a escolha
dos precursores literários, realizada contra a passividade da influência, não poderia ser
lida como prisão, mais do que como presente recebido, por sua vez, como herança
nefasta?
Essas reflexões foram motivadas pela leitura de Doutor Pasavento, último romance de
Vila-Matas, traduzido no Brasil pela Cosac Naify,1 pelo romance do marroquino Ben
Jelloun, L’ enfant de sable,2 assim como pelo olhar frente à atual configuração estética da
literatura. Não se pretende aqui apontar a permanência de Borges na cultura europeia
do século 20 e na primeira década do século 21, o que não constitui novidade e nada
acrescentaria à proposta deste texto. De Calvino a Vila-Matas, de formas diferentes e
com soluções literárias distintas, a poética de Borges se confunde com a própria
literatura, e a ultrapassa. O consagrado valor atribuído à sua obra se resumiria no
desejo deliberado de se apropriar da cultura alheia como contraponto à afirmação de
autoria e originalidade, valendo-se da “política da modéstia”, como assim a nomeia
Nicolás Helft e Alan Pauls.3 Essa política consiste na formação da imagem de escritor
clássico, por meio de protocolos enunciativos visando ao reconhecimento público. A
impessoalidade como estilo e a criação de personagens dotadas de um “saber menor” e
da gratuidade de existir concorrem para a consagração ilimitada de Borges, por ter-se
convertido em escritor mundialmente citado e eleito como precursor da estética pós-
moderna. A extrema visibilidade que a assinatura Borges adquire ao longo do tempo se
pulveriza no gesto contrário, o da invisibilidade. O autor como sujeito pleno no ato
criador se dilui, revertendo-se na figura do escritor clássico, anônimo, despersonalizado,
embora o ato responsável pelo desaparecimento seja, ironicamente, o momento de
maior fulguração póstuma. Segundo o escritor, um de seus maiores desejos seria a
transformação da humanidade em ideal de construção coletiva dos saberes, em que
cada indivíduo fosse capaz de se considerar artista e criador. O anonimato significaria a
recusa do sentido de propriedade autoral, uma vez que se postula o gesto democrático
de recepção e produção do conhecimento.
Ao leitor familiarizado com a obra de Vila-Matas, não causa nenhuma surpresa a
repetição de temas sobre criação e vida literárias, já exploradas em textos anteriores,
como Bartleby e companhia, Paris não acaba nunca, Mal de Montano e Suicídios
exemplares. O desaparecimento do escritor e o desejo de anonimato se associam à
estética vital da negatividade e da literatura como doença, mal que atinge as
personagens de Mal de Montano. Escritores destinados à reclusão e à interrupção de sua
carreira são os preferidos de Vila-Matas, no endosso do desaparecimento como
realização às avessas do ofício de escritor. O autor suíço Robert Walser, os americanos
Jerome David Salinger e Thomas Pynchon constituem os melhores exemplos do
comportamento herdado pelo Doutor Pasavento. Peripécias literárias são urdidas no
romance, de natureza híbrida, misto de ensaio e ficção, metaficção e autoficção, termos
que correspondem a uma das feições literárias que delineiam a literatura do presente.
Convidado a proferir uma palestra em Sevilha sobre os limites entre ficção e
realidade, o narrador se esconde na figura de um sósia encontrado num trem e foge do
compromisso, assumindo a personalidade do psiquiatra fictício, Doutor Pasavento. Os
fatos são relatados a partir do hotel da rua Vaneau, em Paris, famosa por ter sido
domicílio de escritores, como Marx, Gide e outros. O tema do desaparecimento se
concentra na imagem de Robert Walser, internado nos últimos 23 anos de vida no
manicômio e encontrado morto na neve, no Natal de 1956. A mitologia do escritor que
diz não ao sucesso e se fecha na solidão da escrita e do anonimato é a resposta desse
livro para a exposição espetacular imposta pela mídia ao mundo das celebridades.
No entanto, nunca se escreveu com tanto entusiasmo sobre a vida literária, sobre a
curiosidade do leitor/escritor em tentar penetrar na ficção e na vida dos escritores e
nunca a biografia mereceu lugar maior do que a obra, mesmo quando era exercida de
forma precária e causalista. A literatura de Vila-Matas, no empenho de transformar
figuras históricas em personagens, e criações ficcionais em verbetes, não necessita de
decifradores das redes intertextuais aí apresentadas à exaustão. O valor enciclopédico
de Doutor Pasavento não é apenas fictício, mas documental, precário e permanente, de
força vital e de valor textual, ingredientes que combinam com a natureza fugidia e
citacional da cultura contemporânea. Essa memória livresca, obsessivamente voltada
para os escritores e os caprichos da criação literária, como para o destino marginal e
gauche de seus intérpretes estaria, por certo, preconizando, como Maurice Blanchot,
citado por Vila-Matas, de ser o desaparecimento o que marca o destino da literatura:
“Para onde vai a literatura?”, perguntaram. “Vai em direção a si mesma, em direção à
sua essência, que é o desaparecimento.”4 O enxerto da memória de Borges em escritores
pertencentes às culturas antes consideradas hegemônicas e colonialistas representaria
uma sobrevida para a literatura que sempre se nutriu do apagamento do outro. Esta
seria a resposta positiva em face da proposta literária de Vila-Matas, ao se colocar como
mediador de escritas e de memórias alheias, estratégia escolhida para se reconhecer
integrado no quadro da literatura contemporânea globalizada. Mas essa posição pode se
converter em algo negativo ao insistir na reduplicação de modelos que já atingiram a
exaustão e o fastio, esquecendo-se o escritor de buscar um caminho diferente, ainda que
nem sempre original para a criação. A metaficção, quando reduzida ao parasitismo e ao
mimetismo de fórmulas consagradas, corre o risco de se transformar em ficção para
escritores fascinados pela mitologia criada em torno de si próprios. Nesse sentido, no
lugar de se pregar o desaparecimento da literatura, como queria Blanchot, ou o
desaparecimento do escritor, como assim Vila-Matas preconiza, teríamos a volta triunfal
daquilo que, ironicamente, estaria fadado a desaparecer.
Esse discurso reforça ainda um dos pontos da poética borgiana responsável por sua
consagração mundial, o da autonomia literária, ao conferir à literariedade valor
indiscutível para a obra. A presença/ausência da imagem do escritor/autor se
transforma em tema literário, intriga que se enreda/desenreda como espelho
reduplicador da vida literária e da literatura. A comunidade letrada do século 21 se
refestela na fruição infinita dos jogos de linguagem e do teor indecidível das questões
estéticas, e a academia encontra na literatura de escritores material permanente para as
lições de crítica literária. Não seria mais rentável receber a memória de Borges pelo viés
de outras investidas, em contraponto com a cultura letrada, como a cultura popular e a
cultura de massa? Nesse sentido, a literatura contemporânea – e por extensão, a crítica –
poderia se valer também de suas lições sobre a cultura resumida e condensada que se
extrai da leitura desconstrutora das enciclopédias, retirando das mesmas os
estereótipos de um saber pautado pela racionalidade, o tédio e a erudição. Em estreita
oposição ao saber capitalista, pautado pela aquisição, acumulação de informação e
conhecimento, o autor articula, de modo irônico, a alta literatura e o projeto divulgador
de saberes menores. Por essa razão, é considerado defensor do conceito Reader’s Digest
de cultura, por exercer duas maneiras de fazer literatura: “Uma culta, hermética,
‘intelectual’, dirigida a um grupo de amigos e iniciados; a outra popular, acessível, leve,
atenta aos apetites de um público de massa e anônimo.”5 Mas, é seguindo a lógica
capitalista da publicidade que Borges redige o texto para Seleções do Reader’s Digest, em
1967, inscrevendo, à maneira de sua poética, a relação estreita entre cultura erudita e
popular. O toque de humor arremata a condensação entre culturas, obtida pelo olhar
oblíquo do escritor, o que converte a escrita na prática divergente e dupla, com vistas a
criar o curto-circuito entre as Mil e uma noites e os textos resumidos das Seleções do
Reader’s Digest.6 A arte do resumo e da concisão, traço da moderna literatura e da
publicidade, agrada ao escritor, não só pelo abandono do excesso e do palavrório, mas
também pelo prazer da leitura. A cultura letrada, portanto, cede lugar às manifestações
artísticas transnacionais e à presença de comunidades periféricas, produtoras de novas
sensibilidades e múltiplas subjetividades. Mudanças que acentuam a fragmentação do
espaço urbano e a produção de redes comunicativas virtuais, como efeito das novas
tecnologias e da transformação das experiências estéticas.
A segunda reflexão para o debate de hoje se dá por intermédio da apropriação da
imagem de Borges como trovador cego, inserido no romance do marroquino Ben
Jelloun, L’ enfant de sable, de 1985. A intenção de inseri-lo como herdeiro da poética
borgiana responde, inicialmente, pela recepção também periférica do escritor – e da
literatura latino-americana –, assim como pela retomada do imaginário oriental na arte
de contar histórias. Em segundo lugar, pela relação entre literatura e valor de mercado,
realizada pelo diálogo entre escritores pertencentes a diferentes culturas. Marrocos e
Argentina se interagem pela apropriação da moeda literária lançada no comércio global:
ou para aquilatá-la como objeto de valor real e simbólico, ou para trocá-la pela prática
do gesto ancestral dos nômades contadores de histórias. Borges torna-se personagem
de Ben Jelloun, ao ver-se encarnado no trovador cego saído de um bairro de Buenos
Aires e enxertado numa medina árabe, para narrar histórias que repetem, em abismo, a
trama que envolve as personagens do romance. Marrakech e Buenos Aires se encontram
pela voz do rapsodo da praça pública, assim como o escritor cego e sua poética plagiária
são condensados na mesma figura do rapsodo:
Quando leio um livro, me instalo no seu interior. É o meu defeito. Acabei de lhe dizer que eu era um
falsificador. Sou biógrafo do erro e da mentira. Não sei quais mãos me impeliram até você. Creio
que são as de seu contador, que deve ser um contrabandista, um traficante de palavras.7
Pelas mãos do contador contrabandista, a literatura argentina, sob a imagem de
Borges é enxertada na literatura marroquina, pela mediação das Mil e uma noites árabes,
texto de referência da poética narrativa borgiana e fonte quase natural do livro de Ben
Jelloun. A falsificação de histórias coloca o comércio literário nas mãos de trovadores da
praça pública, para quem a questão da identidade pessoal do protagonista – nascido
mulher e sendo obrigado a se comportar como homem – é o enigma da trama. Essa
questão de ordem pessoal se desdobra na troca intersubjetiva dos narradores e da
moeda que será passada adiante, no espaço aberto e heterogêneo da cidade. Não há
nenhuma dívida a ser paga ao escritor argentino, visto ser ele próprio inspirador do
tráfico de palavras e de culturas. Os ecos no deserto árabe da literatura que não mais
pertence a um só território convidam o leitor a refletir sobre o domínio inesgotável da
ficção que não conhece fronteiras. Se antes a literatura latino-americana e, em especial,
Borges, teve que se construir através do cruzamento da cultura europeia com a nativa,
será que neste princípio de século, repito, seria possível pensar na inversão desses
lugares? A resposta é menos utópica e se pauta pela força que literaturas de países
periféricos podem representar na bolsa de valores global, mesmo que seja através de
manifestações que se situam fora do contexto literário. A predominância da poética do
mais pobre, da poética do menos, tem conseguido driblar a ostentação e a epicidade da
indústria cultural dos defensores da poética calcada no acúmulo e na riqueza.
Ficaremos, portanto, à mercê do valor imposto pelas transações fiduciárias, as quais
revertem em lucro os resíduos culturais deixados pelas narrativas das margens, das
intrigas familiares e das complexas redefinições de identidades nacionais? O endosso da
lentidão e do ócio como reação à poética do acúmulo e da rapidez não se imporia, ao
lado da expressão da oralidade, em praça pública, entre as inúmeras saídas para o
impasse entre a visão globalizante e a releitura das demais manifestações artísticas fora
de eixos culturais hegemônicos? Buenos Aires, Marrakech, seriam esses velhos/novos
espaços os inventores de fábulas que retomam tradições, intercambiam vozes, negociam
parcerias e superam os limites territoriais de cada região?
No ensaio de Josefina Ludmer, “Comment sortir de Borges?”, a posição ocupada pelo
escritor no mapa literário do século 20 é assim por ela interpretada:
Podemos ler Borges a partir da nação e a partir do exterior (numa posição interna/externa em
relação à Argentina), porque para nós, os argentinos, ele encarna hoje o símbolo da exportação
literária do século 20: é o escritor que se globalizou. (…) Se estivesse nos Estados Unidos ou na
Inglaterra, poderia me perguntar: de que tipo de produto literário latino-americano se trata? Quais
são as condições literárias e também culturais, históricas e sociais para que um escritor latino-
americano como Borges possa participar da literatura universal, ou de um cânone ocidental que
abraça todo um século?8
Uma das possíveis respostas a essa questão reside, segundo Ludmer, na tentativa de
desagregar as unidades da autonomia textual, a estrutura do cânone, deslocando a
tradição literária e cultural na sua íntegra e assumindo a instabilidade do texto e a
volatização da autoridade do autor. Na perspectiva da ensaísta, a leitura de Borges
poderá se situar entre a nação e além dela, entre a ilusão da cultura letrada que sua
literatura oferece e a cultura do presente, situada entre a autonomia e a perda da
autonomia, entre passado e presente, entre seu nome e sua dispersão em tradições:
“Porque para mim, sair de Borges, retirar de Borges seu nome e sua autoridade não
significa não nomeá-lo, mas desagregar a unidade orgânica de sua obra, retirar-lhe seu
caráter imutável e monumental.” E conclui: “Gostaria de ler Borges enquanto tradição, e
ler o presente com a tradição Borges, que será, aliás, a da apropriação crítica (aquela de
uma contra-Escrita) de suas próprias tradições literárias e culturais.”9 Nas lições de
Borges para a literatura do presente – contaminada pela metaficção, pelo convívio
estreito entre documento e ficção, teoria e ficção, verdades e mentiras, bartlebys e
companhias – o que se propõe é a prática da irreverência diante de sua obra, da mesma
forma que ele assim entendia a leitura da tradição. O mimetismo e a subserviência aos
modelos não constroem boa literatura, pois a leitura dos clássicos e das tradições exige
rupturas e clama por um diálogo impertinente com os precursores. A desconfiança
demonstrada pelo narrador pelos espelhos e pelas cópulas, no conto “Tlon, Uqbar, Orbis
Tertius” atua como reforço ao horror de Borges pela repetição, a reprodução e a
paternidade. Destituir a função paterna de sua obra, herança nefasta da memória que
paralisa no lugar de revitalizar, constituiria, de um ponto de vista positivo, uma das
múltiplas entradas no imaginário borgiano, resguardando-se os limites e abrindo-se
para o diálogo. A herança negativa se configuraria no espectro do escritor atuando na
composição das novas gerações e de uma literatura que apenas se alimenta do artifício
criativo como sinal de erudição e conversa entre escritores/críticos. Nada impede que o
amor pela literatura e sua atração atávica sirvam de tema para grandes ou menores
romances, ou que os acidentes comuns do cotidiano se metaforizem em cenas da mais
fina literatura. Ou o que se questiona, nas obras representativas dessa herança negativa,
é a prisão a fórmulas estéticas e a consequente exaustão dos procedimentos.
A crítica acadêmica – entre a retomada de princípios de crítica textual e autônoma,
fiel à consagração canônica e ao beletrismo, e a abertura para fluxos e redes
comunicativos, que vão além da cultura letrada e do universo sagrado da literatura – se
apresenta, no momento, como herdeira da memória de Borges. Por um lado, assumindo
atitude conservadora, própria de momentos considerados de crise, nos quais são
refutados critérios de valor deste ou daquele discurso; por outro, a herança borgiana
ressoa no ensaio crítico pautado pela atenção dedicada à construção de um discurso
situado entre a teoria e a ficção e pelo exercício de saberes menores, avessos ao apelo à
totalidade. O ensaio literário praticado por grande parte da produção brasileira
acadêmica retoma a posição do escritor/crítico borgiano, ao se desvencilhar da dicção
hermética e fechada dos tratados e se valer de critérios que se aproximam da critica de
natureza imagética e “religiosa” de Borges. Os conceitos tradicionais da crítica são
transformados em imagens ao atuarem como operadores de leitura: aleph, biblioteca de
babel, Funes, o mapa do império e assim por diante. Do ponto de vista religioso,
expressões como “superstição”, “sacrilégio”, “destino”, “ateísmo”, “sacerdócio” envolvem
o vocabulário crítico borgiano e com diferenças apenas no modo de expressão, ganham
terreno, ressoam no discurso crítico contemporâneo. A literatura como destino, as
imagens de escritores, a preferência por lugares simbólicos por onde passaram os
escritores, como Oscar Wilde no hotel em Paris, “L’Hôtel”, são algumas das heranças de
leitura legadas por Borges. Vila-Matas, como foi aqui demonstrado, seguiu os passos do
escritor argentino e construiu uma poética que leva ao extremo essas obsessões.
Nos anos 1970, a ensaística brasileira recebeu do escritor/crítico brasileiro Silviano
Santiago uma reflexão sobre o lugar do discurso latino-americano, de onde surgiu o
conceito de “entre-lugar”.10 Tributário da teoria da desconstrução de Jacques Derrida, o
conceito consiste no “lugar de observação, de análise, de interpretação que não é nem cá
nem lá, é um determinado ‘entre’ que tem que ser inventado pelo leitor”.11 Mas a
definição do conceito de “entre-lugar” se alimenta ainda da lição de Borges, legítimo
representante de um escritor das margens. Ao adotar esse espaço intermediário de
reflexão, Silviano descarta “o lugar-comum dos nacionalismos brabos” e o “lugar-fetiche
do aristocrata saber europeu”. Desconsidera ainda o rancor próprio da teoria marxista
da dependência, por meio da qual se evidencia o descompasso temporal e a consciência
trágica do atraso dos países periféricos em relação à cultura metropolitana.
Com a definição de Silviano Santiago do conceito de “entre-lugar”, finalizo minhas
palavras dedicadas a este encontro com Borges:
Borges me deu a coragem do pensamento paradoxal quando estava preparado (ou estavam me
preparando) para os caminhos da racionalidade francesa numa terra onde os lugares-comuns nos
impelem para o irracional. Nunca fui vítima da lucidez racional da Europa como um novo Joaquim
Nabuco, nem me deixei seduzir pelo espocar dos fogos de artifício ou pelas cores do carnaval nos
trópicos. Fiquei com os dois e com a condição de viver e pensar os dois. Paradoxalmente. Nem o
lugar-comum dos nacionalismos brabos, nem o lugar-fetiche do aristocrata saber europeu. Lugar-
comum e lugar-fetiche imaginei o entre-lugar e a solidariedade latino-americana. Inventei o entre-
lugar do discurso latino-americano que já tinha sido inaugurado pelos nossos melhores escritores.12
(Artigo publicado no Jornal de Resenhas, Discurso Editorial, v. 10, p.18-19, 2010. A versão ampliada
deste texto foi divulgada na revista Aletria, v. 20, p. 27-35, 2011.)
Referências
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1967 apud HELFT, Nicolás; PAULS, Alan (Org.). El factor Borges. Nueve ensaios
ilustrados. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2000.
BORGES, Jorge Luis. Tlon, Uqbar, Orbis Tertius. In: ____. Ficciones. Obras completas.
Buenos Aires: Emecé, 1990. p. 431-443.
BORGES, Jorge Luis. A memória de Shakespeare. In: ____. Obras completas. São Paulo:
Globo, 1999. p. 444-451.
HELFT, Nicolás; PAULS, Alan (Org.). El factor Borges. Nueve ensaios ilustrados. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2000.
JELLOUN, Tahar Ben. L’enfant de sable. Paris: Seuil, 1985.
LUDMER, Josefina. Comment sortir de Borges? Disponível em: <http://www.vox-
poetica.com/t/ludmer.html> Acesso em: 14 jul. 2010.
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1983.
SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: ____. Uma literatura
nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 11-28.
SANTIAGO, Silviano. Borges. In: SCHWARTZ, Jorge (Coord.). Borges no Brasil. São Paulo:
UNESP/Imprensa Oficial/Fapesp, 2001. p. 433-434.
SANTIAGO, Silviano. Literatura é paradoxo. Entrevista concedida a Carlos Eduardo
Ortolan Miranda. Disponível em:
<http://Pphp;uol.com.br/tropico/HTML/textos/2375> Acesso em: 1 nov. 2010.
VILA-MATAS, Enrique. Doutor Pasavento. Tradução de José Geraldo Couto. São Paulo:
Cosac Naify, 2010.
Cyro dos anjos: a verdade está na Rua Erê
Em 2003, ano do centenário do memorialista Pedro Nava, Baticum, de Sonia Lins,1 foi
reeditado. Trata-se do relato bem-humorado da vida provinciana de Belo Horizonte no
início do século 20. As coincidências com a obra de Nava se revelam curiosas, pois a data
de publicação de Beira-mar/memórias 4 (1978) é o ano da primeira publicação de
Baticum pela editora Pedra Q Ronca, em coedição com a Funarte. A diferença entre as
obras reside no modo pelo qual a narrativa memorialista é construída, priorizando-se o
relato tradicional em Nava e optando-se pelo registro fragmentado e humorístico em
Sonia Lins.
Entende-se, com a pouca divulgação de Baticum em sua primeira edição, como a
memória oficial se mantém pela restrição a obras fora do mercado e pela valorização de
uma bibliografia consolidada e legitimada pelo cânone. Com a reedição do livro de Sonia
Lins, falecida há poucos anos, mineira de Belo Horizonte e artista plástica, a imagem da
cidade recebe traços finos, nebulosos e caricatos, desfazendo-se o contorno bem-
comportado dos textos memorialistas. Embora a dicção narrativa seja caracterizada por
um estranhamento poético singular que lembra os desenhos distorcidos dos adultos
feitos pelas crianças, consegue-se ampliar essa visão irônica e se referir ao cenário
cultural e político da cidade. Os leitores contemporâneos dessa metrópole, entre alegres
e espantados, percebem, ainda que de modo tardio, as batidas fortes de Baticum, cientes
de que outras formas de narrar irão enriquecer e deslocar as tradicionais.
A reconstrução da cidade se converte, em Beira-mar/memórias 4, em referência para
os estudos da geração modernista, do cotidiano da rua da Bahia e da classe letrada,
formada pelos estudantes universitários, intelectuais e políticos. Nava desenha, com
detalhes, o mapa sentimental de Belo Horizonte, recolhendo dados e pesquisando cada
esquina, cada prédio e cada rua, com vistas à captação, mesmo que ilusória, de uma
época, um grupo e uma maneira de viver. Narrativa que acredita na eficácia política dos
grandes relatos, ao sistematizar as genealogias familiares e inseri-las na formação
cultural do Brasil republicano e moderno.
Em Baticum, a fragmentação, o recorte jornalístico, o pastiche de notícias da coluna
social ou das páginas políticas, a plasticidade das letras e do espaço em branco
formando poemas concretos, a leitura aleatória dos minicapítulos, a ausência de ordem
cronológica do relato e os jogos poéticos com as palavras respondem pelo endosso de
procedimentos artísticos já consagrados pela vanguarda artística. Diferentemente de
Nava, a narrativa se detém na observação de pequenas cenas do cotidiano urbano e na
composição metonímica das experiências vividas pela narradora (“o braço grosso da
mãe”, “voz de bigode”, “o pai, que baixo assobiava”, “as irmãs Renault, que apoiavam
cotovelos em almofadas”). Não seria, pois, anacrônico, elogiar esse livro que, apesar de
ter sido publicado na década de 1970, retoma muito da poética vanguardista já presente
em Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade?
Onde residiria, portanto, a originalidade de Sonia Lins? No fato de ser uma escrita que
se sobressai por sua dicção feminina, ao reunir plasticidade poética com agilidade e
sedução da linguagem? Ou por retomar uma estética inusitada entre os escritores
contemporâneos, qual seja a de romper com os modelos da escrita memorialista,
centrados no desejo de completude biográfica e integridade autoral? Como resposta a
essas indagações, pode-se afirmar que Baticum inova na linguagem, não repetindo
fórmulas poéticas, e aguçando, com humor, a visão infantil e fragmentada do universo
familiar e urbano. Reacende, ainda, o brilho de uma linguagem que, ao contrário de
algumas tendências atuais, não se banaliza pela repetição uniforme de clichês literários.
O processo de modernização da cidade que crescia com o século se faz sentir, por
exemplo, nas colagens de textos jornalísticos, nas novidades do primeiro curso de
ginástica criado na chácara do dr. Estevão Pinto, ou na cena composta pela presença da
paraquedista Anésia Pinheiro Machado, cujo salto do aeroplano é descrito de forma
singular: “Do seu ventre foi parida / Anésia Pinheiro Machado que / no espaço saltou
como 1 biscoito.” O ritmo da narrativa, entremeado de pequenos anúncios, de notícias
sucintas, se constrói através de imagens que lembram o movimento rápido e nervoso de
uma câmara fotográfica, recurso plástico que ilustra, de forma brilhante, uma
modernidade nascente na linguagem.
Muitas das personagens evocadas por Nava em Beira-mar/memórias 4 reaparecem
em Baticum, dotadas igualmente do vigor plástico do memorialista, mas desprovidas de
qualquer referência a uma dimensão interior. Essa técnica caricatural reforça a
construção residual da memória, o movimento intermitente das cenas guiadas pelo ir e
vir, o apagar e o aparecer, o lembrar e o esquecer. Um olhar que se fixa na superfície, no
rés do chão, na exterioridade descritiva dos tipos, como se esses fossem bonecos
animados pela escrita. O trabalho de memória não assume a solenidade das origens nem
investe na legitimação do passado como forma de preservar o patrimônio familiar. Lá
estão o presidente Antônio Carlos, descrito na sua aparência física de forma semelhante
à do avô da narradora, por serem ambos “altos, cabeças roçando o pé direito onde o azul
terminava, magros como se estivessem guardados durante séculos dentro de livros”; o
dr. Estevão Pinto, que “passou a andar de preto com fumo no braço. Era uma
semicolcheia correndo pelas ruas de Belorizonte”; ou a chegada na cidade do expresso
de Diamantina, cujo som reproduzia, plasticamente, o nome de Juscelino Kubitschek,
ressoando na página sob a forma de um poema concreto.
A reedição luxuosa de Baticum pelo Museu Histórico Abílio Barreto, com reproduções
de fotos das famílias Lins e Mendes Pimentel, presta ainda uma homenagem à cidade, ao
enriquecer o seu acervo e torná-lo acessível ao público. Nesse sentido, houve a
preocupação de transformar o livro num álbum de família nos moldes tradicionais, o
que estaria em contradição com a sua proposta estética e ideológica. Sonia Lins
decompõe o quadro familiar pela utilização do risco ágil e irônico da escrita, pelo
traçado caricatural das personagens e pelo deslocamento das hierarquias sustentadas
pela moral burguesa. Não estariam essas fotos reeditando uma pose oficial da estrutura
familiar? Ou suplementando o que fora negado pela força de uma escrita rebelde e
desmitificadora? Estas são as indagações para as futuras edições dos livros de memórias
imperfeitas, escritos na contramão das bem-comportadas histórias familiares.
(Artigo publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 jan. 2004. Suplemento Ideias, p. 2.)
Bibliografia
NAVA, Pedro. Beira-mar/memórias 4. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
LINS, Sonia. Baticum. 2. ed. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2003
Macunaíma: quem é você?
A biografia literária, uma das fortes vertentes da crítica atual, recebe maior impulso
com a publicação, no Brasil, da correspondência de escritores modernistas, incentivada
por Mário de Andrade, um de seus maiores representantes. A separação operada pela
crítica textual entre autor e obra, biografia e literatura, história e escrita considerava
como critério valorativo a autonomia do texto frente ao contexto de sua produção,
excluindo-se aí os documentos pessoais do escritor, como a troca de correspondência
mantida com seus pares. No início da década de 1980, com a abertura política e a
proliferação de uma escrita autobiográfica dos exilados, a crítica literária brasileira –
tendo Silviano Santiago como um de seus titulares – volta-se para o enfoque particular
do Modernismo, a epistolografia e o memorialismo, indo além de sua produção literária
e ensaística. Configura-se, em definitivo, a aliança entre obra e autor, escrita e política,
processando-se, contudo, o deslocamento do lugar reservado ao autor para o do
intelectual, o que revela o avanço da crítica para a revisão da historiografia literária
brasileira. Na apresentação ao volume, Santiago esclarece a importância de se estudar a
correspondência entre escritores para a abertura do próprio conceito de crítica
biográfica:
A leitura de cartas escritas aos companheiros de letras e familiares, bem como a de diários íntimos
e entrevistas, tem pelo menos dois objetivos no campo duma nova teoria literária. Visa a
enriquecer, pelo estabelecimento de jogos intertextuais, a compreensão da obra artística (poema,
conto, romance…), ajudando a melhor decodificar certos temas que ali estão dramatizados, ou
expostos de maneira relativamente hermética (como a questão da felicidade, em Mário de Andrade,
ou a questão do nacionalismo, no primeiro Carlos Drummond. Visa a aprofundar o conhecimento
que temos da história do Modernismo, em particular do período consecutivo à Semana de Arte
Moderna.1
Passados mais de 50 anos da morte de Mário de Andrade, seu baú de cartas pôde ser
aberto, propiciando ao leitor a reunião das partes desse diálogo iniciado com o início e
expansão do Modernismo. Carlos Drummond de Andrade é um dos mais notáveis
parceiros dessa correspondência, tanto pela sua posição como poeta quanto pela sua
imagem de intelectual, entre atuante e reservado, avesso à exposição pública, embora
tenha exercido cargo político durante o governo Vargas, como chefe de gabinete de
Gustavo Capanema, então ministro de Educação e Saúde. A publicação recente dessas
cartas rompe o silêncio da voz de Drummond, saciando a curiosidade da crítica, além de
entregar ao público um rigoroso e excelente trabalho editorial.2
A vida estampada nas cartas revela-se de forma distinta para os interlocutores. Se em
Mário prevalece a exuberância vital, unida à exuberância criativa, em Drummond, o
“pouco de vida tímida e inconformada”, o menos que se traduz no mais de uma obra,
confirma ser a vida nada mais do que um segredo impenetrável. E esse segredo se
explica pelo comportamento contido do poeta mineiro, em oposta atitude assumida pelo
amigo paulista. Mário, em carta datada de 1944, ao revelar sua insatisfação diante da
resolução dos médicos em não operá-lo, define seu estilo de vida inclinado muito mais
para o gasto do que para a usura:
Eles partem do princípio profissional talvez lógico mas antimário de que viver é conservar a vida.
Pra mim, viver é gastar a vida. (…) Mas se vê pelas minhas cartas de todos os tempos que se eu
quero me gastar e não conservar a vida, não se trata de nenhuma desistência, de nenhuma covardia
atual, de nenhum suicídio. É questão de temperamento, de realidade instintiva do meu ser.3
O excesso, como assim o nomeia Silviano Santiago, à luz da teorização de Georges
Bataille,4 seria o traço peculiar do escritor, que “não fala por alusões, símbolos ou
metáforas. É direto e certeiro. (…) Mário tem um único estilo: na carta excessiva, ele se
automodela pelo excesso. Tudo que nele sobra, falta ao jovem mineiro. (…). Comunica-se
com o interlocutor pelo desperdício do que lhe sobra.”5 Essa exuberância se contrapõe
ao comportamento retraído do poeta mineiro, contrário à exposição subjetiva e, por
essa razão, autor de uma obra cujas qualidades encaminham para o apagamento do
sujeito de forma quase absoluta. Esse apagamento se traduz tanto na vida quanto na
arte, uma forma esquiva de participar de momentos significativos da vida pública
nacional, ao mesmo tempo que construía sua poética em desacordo e em sentido
contrário à ideologia autoritária da política do momento: “Me sinto capaz de viver. Não
uma grande vida, nem uma vida cheia, mas o meu pouco de vida tímida e inconformada,
com desejo de fazer alguma coisa que não sei o que seja, mas que seja bom para os
outros, isso eu vivo.”6
As confissões pessoais expressas na correspondência não se restringem a revelar
segredos ou a apontar desavenças e dissabores entre os missivistas/personagens. Ao
serem lidas no seu estatuto de texto, as cartas se integram ao domínio da ficção, sendo,
portanto, motivo de interpretações contraditórias. Vozes dissonantes são colocadas em
cena, por meio do diálogo que aponta não só a troca de experiências entre dois poetas –
o jovem Drummond recebe lições de poesia e de vida, discute sobre nacionalismo e
política –, mas o silêncio e o não dito como sinais invisíveis de uma complexa relação de
amizade.
Em virtude da diferença de temperamento e de trajetória intelectual e literária
assumida pelos poetas, a correspondência evidencia certa irregularidade, por deixar
lacunas e silêncios ao longo do diálogo entre amigos de 20 anos. Não é difícil perceber
possíveis desentendimentos entre eles, marcados pelo tom distanciado e frio das cartas
trocadas no final da década de 1930 em diante. Desavenças da idade, desencontros de
ordem política? O certo é que essa situação se apresenta por meio de comentários de
ambas as partes sobre a perda de uma comunicação antes exercida de modo mais
contundente e vigoroso. Descompassos e reconciliações vão sendo aos poucos
negociados pelos missivistas, à medida que a conversa entre eles, pelo menos no papel,
carecia de alimento e justificativa para se sustentar. Em 1942, quando Mário publica a
reunião de sua obra poética, com o título Poesias, o reencontro entre os amigos-poetas
se manifesta a lembrança contida nos versos relidos por Drummond, pelo lugar da
literatura como traço fiel de um antigo sentimento de camaradagem. Drummond
reencontra e revê o longínquo Mário das cartas por meio da releitura de sua produção
poética, gesto capaz de dar sobrevida à memória:
…ao lado dos motivos grandes de satisfação poética, a mim oferecidos por seu livro, motivo de pura
voluptuosidade de espírito, houve um que me tocou mais de perto, foi o de reencontrar nele o
Mário dos anos 1920-30, o das cartas torrenciais, dos conselhos, das advertências sábias e
afetuosas, indivíduo que tive a sorte de achar em momento de angustiosa procura e formação
intelectual. Ele está inteiro nas poesias. E como permaneceu grande depois desse tempo todo! Sei
que compreenderá a minha emoção encontrando esse velho companheiro.7
A desilusão de Mário diante do movimento modernista é ainda motivo para
Drummond perceber o grau de distanciamento entre o atual e o antigo companheiro, o
qual não mais se comportava como bravo defensor de uma determinada causa literária
e nacional. A desilusão demonstrada pelo intelectual que havia, no passado, se
notabilizado como um dos responsáveis pela revolução da historiografia literária
brasileira não representava, para Drummond, apenas o acerto de contas de Mário com
sua geração, mas também o fim do sonho moderno entre amigos. O bilhete endereçado a
Mário pelo poeta, após receber o texto da conferência proferida no Itamaraty em 1942,
sintetiza todo o desencanto do intelectual ao assumir o mea-culpa: “Recebi o Movimento
modernista. Obrigado, mas que melancolia!.”8 O tempo das “grandes cartas paulistanas,
escritas com amor e verdade implacável”, já se impõe como marca do entusiasmo que os
uniu e que muito concorreu para a legitimação do programa moderno de criação da
literatura nacional. A formação literária e profissional de Drummond, adquirida em
parte com a ajuda do amigo paulista, se encontrava, no momento, em situação
privilegiada, pelo reconhecimento público de sua obra. O balanço existencial será
tributário da lição de poesia legada pelo amigo, consequência inevitável no destino de
sua obra: “Eu era então um sujeito muito desgraçado, pelo menos me supunha tal, mas
agora reconheço que tudo foi ótimo e valeu a pena. E em grande parte valeu por causa
de você.”9
Carlos & Mário, além de ser um dos documentos e registros mais valiosos para a
compreensão do programa modernista no Brasil, coloca à disposição do leitor um livro-
objeto de luxo, contendo grande parte da vida passada a limpo de uma geração literária
do início do século 20. As notas explicativas revelam-se de grande utilidade para a
pesquisa, demonstrando fidelidade na recomposição dos fatos, cuidado presente tanto
no trabalho anteriormente realizado por Drummond na edição das cartas de Mário,
quanto na editoração das cartas de Drummond por Silviano Santiago. As reproduções
das imagens de esquinas, de cidades históricas de Minas, de fragmentos de cartas
manuscritas, de fotos dos protagonistas e companheiros da época se mesclam às
primeiras edições de livros, periódicos e pinturas de artistas. O projeto gráfico, da
autoria de Victor Burton, transforma a edição das cartas num álbum modernista, misto
de imagem e texto, a ser folheado e lido com certo toque de nostalgia. Mas os resíduos
de uma modernidade em ebulição, de uma vida literária construída através de
encontros e sonhos de mudança se perpetuam e se revitalizam neste desenho composto
pelas cartas e suas notáveis personagens.
(Artigo publicado na Revista Margens/Márgenes, Belo Horizonte, UFMG, p. 84-85, 1 jul. 2003.)
Bibliografia
BATAILLE, Georges. A noção de despesa. In: ____. A parte maldita. Rio de Janeiro: Imago,
1975. p. 27-45.
SANTIAGO, Silviano; FROTA, Lélia Coelho (Org.). Carlos & Mário. Rio de Janeiro: Bem-te-
vi, 2002.
“Márioswald” pós-moderno
[Ficha 18]
Escutando distraído o rádio, de repente sou tomado pela mais vasta das emoções. Avassaladora.
Descobri a pólvora. Inventada por Herivelto Martins e Grande Otelo. A pólvora tem rótulo, versos e
notável conteúdo lírico. Chama-se “Praça Onze”. “Vão acabar com a Praça Onze”, diz o verso que me
nocateou de vez, levando-me à lona. Meio grogue, levantei, dei dois passos, cumprimentei o
vencedor e disse de alto e bom som: Vamos acabar com o Modernismo. Vou acabar com o
Modernismo, ecoei, enquanto tomava o café da manhã.
Silviano Santiago
A literatura se alimenta da tradição cultural, seja para legitimá-la ou contrariá-la.
Silviano Santiago, escritor e ensaísta, se comporta diante dessa tradição de modo
paradoxal, por entender que só o gesto de traição/fidelidade quanto aos modelos
literários instaura a descontínua linhagem da literatura. A relação do escritor com o
Modernismo, tendo Mário e Oswald de Andrade como protagonistas, permite revisar
conceitos da crítica literária tradicional, como os de influência, herança, filiação,
propriedade autoral, em sintonia com os critérios de semelhança e continuidade,
diferença e repetição, sujeição e dívida, modelo e cópia. Revisitar a tradição moderna
latino-americana é uma das metas buscadas pela sua obra, no sentido de processar
desdobramentos conceituais e apontar limites e rasuras teóricas nos textos em diálogo.
No fragmento em epígrafe, retirado do conto “Caíram as fichas”,1 o escritor se mascara
em narrador ao se apropriar da voz do outro para expressar pontos de vista que
contrariam ou reiteram os seus, articulação enunciativa pautada pelo deslocamento e
pelo desvio. Narra, através de recurso ficcional – as fichas de trabalho –, o conflito vivido
por Mário, quando preparava a conferência proferida no Itamaraty, em 1942, durante a
comemoração dos 20 anos de Modernismo. Ao tomar para si fragmentos de cartas do
escritor aos amigos, Silviano constrói um dos perfis de Mário, captado no momento de
grande desencanto com os rumos do país e com sua contraditória adesão ao programa
cultural do governo Vargas.
A crítica ao Modernismo já estava sendo feita desde os anos de 1930, referência
encontrada em Silviano no artigo “Fechado para balanço”, onde se afirma que a
contestação tinha por base o Rio de Janeiro e o movimento literário que ali se
desenvolvia. Nova época se descortinava para os colaboradores da revista Lanterna
Verde, destacando-se, dentre eles, Tristão de Ataíde, Octávio de Faria e Jorge Amado.
Partidários de ideologias diferentes, esses intelectuais se uniam contra o liberalismo
clássico e o niilismo de 1922, em defesa de um período esperançoso para a cultura,
constituindo uma força política que reunia catolicismo com integralismo e comunismo
com stalinismo.2
A opção por se apropriar da experiência alheia para falar de si é um dos recursos
usados por Silviano para apagar a assinatura autoral, o que confere ao seu texto alto
grau de ficção e tendência a embaralhar afirmações, inseridas tanto no texto-modelo
quanto na cópia. Marcada pela ambiguidade, a escrita se inscreve no registro factual e
no fabular, no autobiográfico e no biográfico, estratégia escolhida na composição de
perfis identitários. A contaminação de vozes narrativas impede associações que levem à
indistinção entre narrador e personagem, convidando, antes, ao deslocamento entre
eles. A autocrítica do movimento realizada pela personagem Mário é motivada pela
necessidade modernizadora do presente em acabar com a “Praça Onze”, reduto do
samba e da concentração popular, da mesma forma que o elogio à modernização
operada pelos modernistas em nada contribuiu para o “amilhoramento (sic) político-
social do homem”. Mas o que o narrador insinua é justamente a coincidência entre o
esvaziamento das manifestações populares – o início da modernização política com o
crescimento e controle das massas pelo Estado – e a feição elitista assumida pelo
movimento, em defasagem com o desejo popular.
Por intermédio da canção popular, do apelo emocional que atinge o ouvinte, Mário
encontra o fio da meada e a mensagem a ser legada à jovem geração: a desconfiança em
relação ao passado. Se na “Praça Onze” lamenta-se o fim de uma época e os efeitos da
modernização urbana para a marginalização da cultura – a construção da avenida
Presidente Vargas –, no texto de 1942 são apontados os equívocos do movimento, ao
repetir o gesto destruidor do ensaio “Mestres do passado”, quando a poética inovadora
exigia a ruptura com a poesia parnasiana.3 O deslocamento do tema sério da conferência
para o âmbito lúdico e sensorial da música popular se processa de modo a ressaltar o
valor da sensibilidade e do inesperado na composição de saberes. Por um processo de
montagem, Silviano retira a passagem da canção contida na carta de Mário a Moacir
Werneck de Castro e a enxerta no meio das fichas de trabalho, produzindo o efeito
irônico e a condensação da dor com a alegria. Dramatiza ainda o momento de satisfação
do escritor ao criar a analogia aqui explicitada como desforra pelo mal-estar vivido
durante os anos passados no Rio. Ao evocar, através de Mário de Andrade, a sabença
popular como via necessária para a construção de saberes considerados eruditos,
Silviano reúne a experiência de Mário com a sua concepção de literatura. Se a negra que
dançava na avenida durante o carnaval passado no Rio, em 1923, ensinou a Mário o que
é a felicidade, a canção ouvida no rádio, em 1942, lhe permite “descobrir a pólvora”, ter
o insight sobre o tema da conferência. É no “sentimento religioso da vida”, no
aprendizado de emoções motivadas pela experiência e não apenas pela inteligência e
pela erudição que reside uma das lições de Mário para a obra de Silviano.4 O apelo ao
popular como motivo de desvio do erudito é igualmente incorporado pelo escritor nas
suas considerações sobre a cultura de massa, um dos desdobramentos atuais do sentido
de popular.
Mas é sobre a escrita bem-humorada, substituta da “ironia corrosiva”, que o escritor
se apoia para criar o perfil de Mário, quando este encontra a saída para a conferência.
Na desconstrução do conceito clássico de felicidade, o escritor a associa à dor, revelando
a proximidade com a lição dionisíaca e nietzschiana: “A própria dor é uma felicidade.”5
Em “Caíram as fichas”, o sofrimento e o conflito vividos pelo modernista ao fazer o
balanço do movimento recebe tratamento ficcional resgatando-se o bom humor
expositivo, a transfiguração do sentimento em atividade criadora. A recuperação da
antiga imaginação poética da mocidade – a vontade “que transformava a dor em luz que
os faróis projetavam para iluminar a estrada” – se dá pela rememoração causada pela
música, revertendo na revitalização do corpo atormentado pelo reumatismo, pelos
movimentos tolhidos e pela fragilidade de um andar de chinelos de velho:
E ontem, eu que me queixava do andar de chinelos da minha imaginação crítica. Guardei-os no
armário. Tranquei-os. Calcei meias e chuteiras de jogador de futebol. Peguei a bola no fundo do baú
da memória e estou disposto a entrar em campo minado, chutando para todos os lados, que nem
uma metralhadora giratória. Cuidem-se das canelas, quarentões – rapazes no passado e figurões do
presente.6
Ainda que Mário tenha modestamente se esquivado de deixar herança literária para a
nova geração, é com base no corte de uma sequência evolutiva que se legitima a
linhagem: descontínua, fragmentária e paradoxal. Na vasta correspondência trocada
com os amigos, o modernista distribuiu lições e lições de poesia e vida, sem ter a
intenção de exercer papel catalisador e autoritário frente aos amigos. Alguns títulos dos
volumes de correspondência confirmam, contudo, o seu lado professoral, como A lição
do amigo, A lição do guru, reafirmando ser notório o seu poder de formar jovens
escritores. A conferência de 1942 desfaz, contudo, o mito do Modernismo como
movimento imune a críticas e instaura a necessidade de se romper com a ideia de
passado como herança recebida de olhos fechados.
Como ensaísta, a posição de Silviano no debate literário e cultural se manifesta de
forma desconstrutora e distanciada frente aos objetos de análise, reiterando opiniões já
registradas na ficção. O ensaio se desvincula do estudo acadêmico, por adquirir
liberdade criativa e optar por uma dicção mais dramatizada e em diálogo com o leitor.
Distingue-se da ficção, por ainda respeitar protocolos e pactos da escrita ensaística,
embora se perceba de que se trata de um discurso intervalar, híbrido e em simetria com
o universo fabular do escritor. A reflexão sobre manifestações culturais do presente ou
do passado requer a escolha de uma estratégia comparativa capaz de problematizar
certezas e apontar contradições. Leituras bem-comportadas tendem a repetir o que o
conceito de tradição guarda de mais conservador e intocável, como muito bem assinala
Mário de Andrade. Leituras desconstrutoras têm o mérito de deslocar saberes
consolidados, de se entregar à prática do jogo ambivalente dos conceitos e de optar pelo
excesso produzido pelo olhar suplementar do ficcionista ou do ensaísta.
Essa leitura exercitada por Silviano ao longo de sua trajetória intelectual é tributária
da teoria da desconstrução de Jacques Derrida, que consiste no duplo gesto de
denunciar, em determinado texto, tanto o que ele diz, assim como o que, sob o olhar do
presente, foi dissimulado e recalcado. Transgredir é o gesto herdado por excelência,
invenção, o esforço do leitor na criação do texto que desconfia das origens e acredita na
repetição como sinal de diferença e resistência. Cabe ao leitor de cada época reinventar
tradições, romper com a cômoda atitude do senso comum, reprodutora fiel do discurso
alheio.
Privilegia-se a descrição da obra em perspectiva, no lugar da análise do quadro, do
texto isolado, considerando que toda obra se inscreve a partir de determinados modelos
que ampliam os espaços particulares em que foi gerada. Nenhum texto se impõe como
produto singular e autônomo por manter compromissos com outros que lhe serviram
de suporte e com os futuros leitores. Desses lugares de enunciação, canônicos ou não, é
de onde parte Silviano no seu trabalho de desconstrução, por meio da utilização do
conceito de “entre-lugar”7 segundo o qual “o lugar de observação, de análise, de
interpretação não é nem cá nem lá, é um determinado ‘entre’ que tem que ser inventado
pelo leitor”.8 A criação desse espaço teórico relacional se aproxima da dobra leibniziana,
desprovida de avesso e direito, de interior e de exterior, tendo o deslocamento como
movimento instaurador da categoria nômade da escrita. A definição do conceito de
“entre-lugar” se alimenta ainda da lição de Borges, legítimo representante de um
escritor das margens. Ao adotar esse espaço intermediário de reflexão, Silviano descarta
“o lugar-comum dos nacionalismos brabos” e o “lugar-fetiche do aristocrata saber
europeu”. Desconsidera ainda o rancor próprio da teoria marxista da dependência, por
meio da qual se evidencia o descompasso temporal e a consciência trágica do atraso dos
países periféricos em relação à cultura metropolitana.9
A posição de Silviano diante da estética modernista brasileira se caracteriza também
por essa leitura intervalar, perspectiva analítica voltada para o balanço do movimento
de modo a respeitar o que ainda possui rendimento para a compreensão do momento
presente, ou o que não mais se sustenta em termos literários e teóricos. Sem apelar para
critérios binários, pautados pela exclusão de termos em favor de outros, o ensaísta
assinala, em artigo referente às comemorações dos 60 anos do Modernismo, a
necessidade de realizar o balanço do movimento de forma a não só legitimar conquistas,
mas apontar equívocos, fechar o círculo e cortar o cordão umbilical com o passado.10
O que sustenta essa avaliação é a perspectiva do presente, estratégia capaz de
entender o passado por meio da lógica do suplemento, ou seja, o “acrescentar algo ao
que já é um todo”. Não se trata de considerar o texto anterior como incompleto e tentar
complementá-lo, um exercício repetitivo e parasitário, mas de partir de situações
consolidadas a fim de gerar formas transgressoras. Nesse sentido, as personagens que
compõem o quadro do Modernismo brasileiro – Mário e Oswald de Andrade, Murilo
Mendes, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, entre outros – não se
apresentam para o ensaísta de modo intocável e inseridos tranquilamente nesse cânone.
Recebem tratamento crítico sem a adoção de um raciocínio binário, de princípios
excludentes, mas são interpretados segundo a lógica do diálogo, do contraste e do
paradoxo. Procede-se ao descentramento da estética modernista, confrontada à dos
autores pré-modernistas, como Euclides da Cunha ou Lima Barreto, cuja obra rompe
com os princípios modernizadores e os ideais de progresso. Rever o que foi recalcado
pela crítica ou o que sofreu o processo de exclusão por força de critérios de
universalização do cânone oficial é uma das propostas acrescidas à leitura
desconstrutora do Modernismo realizada por Silviano: “O que se pode aprender nos
textos de Lima Barreto e Euclides da Cunha, que nos deixam para fora dos padrões
estéticos e ideológicos estabelecidos pela estética modernista?”11
O argumento usado para a leitura do balanço modernista se concentra nos modelos
universais de análise, instaurados na década de 1950 pela publicação de obras de
história literária, como Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, A
literatura no Brasil, coordenada por Afrânio Coutinho e História concisa da literatura
brasileira, de Alfredo Bosi, responsáveis pela institucionalização e transformação do
cânone estético do ideário modernista. Esses modelos ou são fielmente fortalecidos pela
vertente crítica ligada à Universidade de São Paulo, voltada para a consolidação do
cânone modernista, ou são questionados pela nova geração. A mudança desse olhar
crítico é tributária da posição de Silviano e reelaborada por seus seguidores,
concorrendo para a redução de uma visão única assumida pela geração formada na USP.
Em razão de transformações culturais e políticas, as demais vertentes se desvinculam de
interpretações associadas ao modelo de fundamento econômico e de seus cânones,
partindo para uma análise do Modernismo segundo uma visão antropológica e
desconstrutora. Célia Pedrosa, em artigo intitulado “Crítica e grouxismo”, desenvolve
pontos essenciais da posição de Antonio Candido na crítica nacional e destaca a
diferença assumida por Silviano diante desse quadro, em que são deslocados pontos de
referência e apontados novos critérios de interpretação.12
É incisivo o apelo do crítico pela revisão desses modelos, tendo em vista as
transformações de ordem política e cultural causadas por eventos mundiais, além da
luta pelos direitos de cidadania das minorias e organismos afins. Nesse sentido, os
paradigmas da modernidade serão revisitados pela crítica contemporânea, com o
objetivo de alargar o horizonte interpretativo, não se restringindo apenas à abordagem
literária, mas se impondo como crítica cultural. Reside aí uma das maiores reações ao
aprisionamento teórico a que se submete grande parcela da crítica. Em artigo de 1995,
(“Atração do mundo”) Silviano sinaliza o impasse das culturas periféricas diante do
então nascente processo de globalização, alertando para a mudança de posicionamento
crítico e teórico, a revisão dos conceitos frente às transformações sofridas pela “rápida
globalização do capitalismo periférico”.13
Para além do moderno
Na elaboração de reflexões vinculadas à crítica cultural – atividade da qual é um dos
expoentes –, Silviano também se vale da leitura da tradição da cultura brasileira como
argumento capaz de concorrer com teorias estrangeiras. É por acreditar na construção
de um pensamento crítico no Brasil como produto da conjunção entre conceitos locais já
consolidados e aqueles resultantes dos processos de globalização, que se apropria do
cânone moderno, sem deixar de apontar diferenças causadas por imposições de ordem
espacial e temporal. O trabalho de valorização e divulgação dos “intérpretes do Brasil”
moderno não se restringe, para o crítico, na produção literária, mas se dirige também
para a produção ensaística existente nas demais áreas. Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado, entre outros, compõem, ao lado de Oswald e
Mário de Andrade, um dos desenhos possíveis da identidade cultural brasileira.14
Na posição de crítico cultural, irá proceder à análise da produção modernista,
segundo parâmetros que ultrapassam o valor imanente das obras, ao problematizar a
complexa relação mantida entre os escritores e o Estado Novo. A leitura, motivada pelo
polêmico livro de Sérgio Miceli, Intelectuais e classe dirigente no Brasil, contribui para a
revisão dos autores modernistas sob o prisma da vinculação obra/público,
intelectual/atuação política, debate também facilitado pelo clima de pré-abertura
política no Brasil. No entender de Silviano, o novo enfoque permitiu que se chegasse a
conclusões menos unilaterais sobre o movimento, apesar das limitações do enfoque
sociológico de Miceli, que desconsidera a produção literária dos escritores envolvidos.15
A desconstrução dos princípios universalistas erigidos pela civilização europeia, com
forte impacto nos estudos contemporâneos, é vista por Silviano como herança do
Modernismo, pois, embora se pensasse na consolidação de uma nacionalidade artística,
Mário e Oswald de Andrade lutaram pelo reconhecimento da civilização indígena e pela
abertura a outras civilizações. Na percepção da América Latina, como cultura híbrida,
isenta de radicalismos relativos aos sentidos de pureza e unidade, e, por essa razão,
capaz de transgredir modelos e inventar respostas próprias, o ensaísta remete à lição de
Oswald sobre o tema, introduzindo-o como um dos seus precursores teóricos no artigo
“O entre-lugar do discurso latino-americano”. O argumento encontrado é a mistura de
raças, a “mulatização”, que, comparado às novas formas do multiculturalismo, não se
vincularia à posição defendida por Gilberto Freyre: “A Alemanha racista, purista e
recordista precisa ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado
do Peru e do México, pelo africano do Sudão. E precisa ser misturada de uma vez para
sempre. Precisa ser desfeita no melting-pot do futuro. Precisa mulatizar-se.”16
Mário de Andrade fornece também ingredientes para o sustento do pensamento
multicultural contemporâneo, ao ser citado em ensaio dedicado à tolerância racial em
Oswald de Andrade. Neste texto, salienta a lucidez do escritor paulista que, em 1924,
ainda que defendesse o nacionalismo como primeira preocupação, se abre para a
compreensão da existência de várias etnias. O emprego do plural para o termo
civilização serve como abertura para a multiplicidade cultural e funciona como previsão
para o debate atual do tema: “Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas
nossas casas de Belo Horizonte e São Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização.
Há civilizações.”17
O multiculturalismo dos dias atuais recebe do crítico (em “O cosmopolitismo do
pobre”) tratamento diferenciado daquele anunciado na obra de Gilberto Freyre, por este
se associar à fórmula do Estado-nação. Não resta dúvida de que se apoia na lição legada
pelos modernistas para “ir mais além”, com o cuidado de não reproduzir noções criadas
em tempo diferente e segundo intenções que se distanciam das atuais. Nesse sentido,
torna-se evidente o comportamento analítico de Silviano diante do texto dos
modernistas, ao acatar e ao mesmo tempo avançar na reformulação do nosso repertório
teórico e cultural. No ensaio “Atração do mundo”, essa contribuição é ressaltada:
Com olhos livres, o modernista rechaça a idealização e o recalque do passado nacional, acima
referidos, para adotar como estratégia estética e economia política a inversão dos valores
hierárquicos estabelecidos pelo cânone eurocêntrico. Essa estratégia e economia de pensamento,
necessariamente periféricas, ambivalentes e precárias, tanto aponta para o resgate da
multiplicidade étnica e cultural da formação nacional quanto para o vínculo que esta mantém com o
pensamento universal não eurocêntrico.18
A convivência sistemática do escritor com o Modernismo, além de ser distinta da
vertente canonizadora de grande parte da crítica, contribui tanto para o aproveitamento
de conceitos operatórios fornecidos pela obra de Mário e de Oswald de Andrade quanto
para o exercício da escrita ficcional. Sem se entregar a critérios binários de exclusão de
um autor por outro, vale-se da posição de Mário sobre a questão da dependência
cultural, a “traição da memória”, assim como do conceito de antropofagia de Oswald. Em
artigo de 1981, “Apesar de dependente, universal”, amplia o conceito de “entre-lugar”
com a apropriação das teorias modernistas, uma vez que estas iniciaram o diálogo
transcultural, ao transformarem o atraso e o subdesenvolvimento das nações periféricas
em resposta eufórica e positiva às questões da dependência. Considera ainda o
concretismo como o terceiro antídoto proposto para se repensar a cultura nacional,
segundo critérios que reforçam o conceito de defasagem temporal entre o produto da
cultura dominante e a da dominada, resultado do descompasso entre modernidade e
modernização.19 Dos textos de Mário de Andrade, Silviano irá se valer na sua totalidade,
mas de forma mais rentável no que se refere à quebra de barreiras entre a cultura
erudita e popular, aos temas referentes à criação literária, à relação entre arte e vida, à
linhagem fraterna como substituição da paterna e ao papel do intelectual moderno.
O ensaio de 1985, “A permanência do discurso da tradição no Modernismo”
representa, na crítica brasileira, uma das reflexões mais agudas sobre a poética
modernista, à luz de uma leitura pós-moderna. Considera que na tradição da própria
crítica foi prioritário o endosso da estética da ruptura, responsável pela exclusão de
vários escritores que não seguiam esses parâmetros, como Murilo Mendes, ou os textos
filosóficos de Oswald de Andrade. A defesa de poéticas vanguardistas pela crítica e pelos
escritores-críticos também motivou o estreitamento de padrões estéticos, a escolha de
determinados nomes para compor o cânone modernista, além do desprezo da produção
que não fosse literária, como a correspondência, memórias, ensaios e outros textos. A
abertura para o enfoque de feição cultural e política, ao colocar entre parêntese a
valorização do estético em si e do imanentismo textual, é motivada, na obra de Silviano,
pelo exercício da crítica memorialista e pela atenção voltada para a correspondência de
Mário de Andrade, assim como para a atenção dedicada à cultura de massa. Se, na
década de 1970, uma parcela da crítica ainda se pautava pelo endosso das estéticas da
ruptura, tendo a poética oswaldiana como emblema, na década de 1980, a obra de Mário
e o seu papel como intelectual são reconsiderados, pioneiramente por Silviano, como
assinala Italo Moriconi:
Nos anos 1980, a figura de Mário voltou a predominar como tópico de interesse não só dos estudos
literários, mas também da criação, através de montagens teatrais etc. O espírito tropicalista e o
realce da figura de Oswald entraram em declínio, embora os anos 80 e 90 tenham sido pródigos em
publicações dele e sobre ele, Oswald. Na PUC do Rio de Janeiro, Silviano Santiago passou a
desenvolver uma linha de pesquisas centrada em estudos da correspondência de Mário,
praticamente pondo em prática uma proposta que, como se vê, era de Candido.20
Mas a mudança que ocorre na crítica acadêmica na década de 1980, principalmente
relacionada à preferência dos autores modernistas, recebe do ensaísta autoanálise, por
ter também incorporado, nos anos de 1970, a vertente elitista da arte da qual Oswald de
Andrade foi um de seus expoentes (e que Mário já havia denunciado na conferência de
1942). Em “O teorema de Walnice e a sua recíproca”, reacende-se o debate sobre a
complexa relação entre escritor e Estado e entre obra literária e público leitor, com o
objetivo de, entre outras considerações, ponderar sobre arte e mercado. A conhecida
frase de Oswald, “a massa ainda comerá do biscoito fino que fabrico”, é um dos
argumentos reveladores da atitude hierarquizante de Oswald e do Modernismo quanto
ao diálogo entre obra e público. Elitista, por deslocar a atenção para o público, na
confiança de que algum dia ele pudesse comer o biscoito fino, alcançando o valor e a
qualidade da verdadeira obra de arte. Não se cogitava ainda de repensar se a qualidade
e o hermetismo do texto poderiam ser revistos pelo escritor ou que a exigência de
aprimoramento por parte do público respondia, no meio literário, a um desejo que
reportava ao saber iluminista da classe letrada.
Nesse sentido, Silviano se distancia da premissa de Oswald, por acreditar que o
pensamento do modernista se definiria pela “estetização do popular”, cuja função seria
a de conservar o saber erudito. Não deixa ainda de reconhecer que, no ano de 1972, por
ocasião do cinquentenário da Semana de Arte Moderna, “reinstala-se o projeto
modernista” e “redefine-se a arte brasileira como arte elitista”, o que irá perpassar toda
a década.21
As aproximações entre Silviano e Oswald se verificam no âmbito literário, ao ser
incorporada a poética oswaldiana em várias obras. Os contos de O banquete (1970), de
temática antropofágica, se pautam pela revitalização da paródia oswaldiana e pela
exploração de ingredientes da cultura pop e tropicalista. O livro de poemas de 1978,
Crescendo durante a guerra numa província ultramarinha,22 se apropria dessa poética
pela utilização de colagens textuais, de ready-made linguísticos, numa clara alusão à
herança do modernista e ao momento político da década de 1940. A referência a esse
período contém tanto a relação das experiências familiares do jovem que crescia
durante a guerra, quanto ao momento presente da ditadura militar brasileira. Nessa
mesma linha de criação-apropriação de textos alheios, reescreve a crônica de Mário
sobre a viagem da caravana paulista a Minas, valendo-se, antropofagicamente, da dicção
oswaldiana, mas empregando o pastiche como recurso poético.23 Nesse poema,
intitulado “O dentro do dentro do dentro,24 por meio da montagem de citações,
reverencia ao mesmo tempo Oswald e Mário, transgredindo, de forma lúdica e alegre, os
textos originais. Como suplemento à viagem modernista, Silviano ressalta o que sobra
dessa poética, indo além da proposta, sem pensar em completá-la. O trabalho de
restauração do texto-modelo joga com o sentido de incompletude e de exposição das
várias vozes ali inscritas. Reveste-se em exercício poético que dialoga com o ensaio “A
permanência do discurso da tradição no Modernismo”, no sentido de presentificar os
ecos e ruínas do moderno e trazê-los à superfície da escrita contemporânea.
O poema reveste-se ainda da alegria modernista relativa à descoberta, à viagem ao
interior de Minas, colonial e barroca, através do gesto criativo e desconstrutor que
evidencia a natureza da leitura pós-moderna como um saber alegre: a “gaia ciência”
nietzschiana, via Jean-François Lyotard (“o saber alegre da pós-modernidade”) e a
poética moderna de Mário de Andrade (“a própria dor é uma felicidade”) se contrapõem
à leitura sociológica de Roberto Schwarz (“as ideias fora do lugar”), caracterizada pelo
sentimento de “mal-estar da dependência”, do descompasso temporal entre metrópole e
colônia.25
Com a abertura política e a proliferação de uma escrita autobiográfica dos exilados,
Silviano se concentra no estudo do Modernismo a partir da produção epistolar e dos
livros de memórias. Configura-se a aliança entre obra e autor, entre escrita e política, ao
ampliar o estatuto de autor para o de intelectual e revestir a escrita de distinto sentido
político daquele assumido pela obra dos ex-exilados. No cruzamento da experiência
ficcional com a ensaística, retoma a tradição da crítica biográfica e memorialista, no
momento em que escreve Em liberdade, diário fictício do Graciliano Ramos recém-saído
da prisão.26
Se no artigo “Fechado para balanço” Silviano registra o ano de 1936 como a
proclamação da morte do Modernismo de 1922, corporificada na crítica feita pelos
colaboradores da revista Verde, a data remete tanto para o nascimento do escritor
quanto para a prisão de Graciliano pela repressão do governo Vargas. A utilização do
artifício autobiográfico cumpre função metafórica, ao serem aproximadas referências
documentais que respondem tanto pela ambiguidade e transfiguração do ficcional,
quanto pela contextualização da escrita de Silviano como intelectual. Procede-se à dupla
releitura do Modernismo seja através da figura de Graciliano, seja através de Em
liberdade, uma das primeiras manifestações da literatura pós-moderna entre nós.
Diferentes procedimentos narrativos se constroem nesta obra – a estilização e o
pastiche, gestos paradoxais de celebração e distanciamento quanto ao modelo – por
meio dos quais se afasta do artifício parodístico exercido pelos modernistas. Embora se
atualize textualmente o diálogo transgressor com a tradição literária brasileira, o livro
rompe com o projeto radical de ruptura dos modelos fundadores.
No âmbito político-existencial, Em liberdade nasce simbolicamente do útero cerebral
de Graciliano/Silviano, criação especular que evoca o processo de simbiose e
afastamento do narrador, na escolha da difícil tarefa de falar de si através do outro, com
vistas a refletir sobre um dos perfis do intelectual brasileiro. Ao invés de se valer da
experiência carcerária do passado, produtora de discursos do ressentimento, o
intelectual deveria se concentrar no compromisso livre e positivo com o presente. Nas
palavras de Wander Melo Miranda, em Corpos escritos, ensaio pioneiro sobre a escrita
memorialista de Silviano, a obra é a tradução de Memórias do cárcere, pastiche e
reverência ao texto de Graciliano, traço de uma leitura que atualiza o conceito de
suplemento derridiano: “A ficção de Silviano, ao propor-se como ‘acréscimo’ ou
suplemento às memórias de Graciliano – no sentido de multiplicar seus significantes e
não de reduplicá-los –, não visa, à semelhança do texto primeiro, a atingir um
significado último ou definitivo.”27
Lições de Sabença
Como ativista no campo da construção de uma nova sociedade, Mário de Andrade abdica
passageiramente da cultura de elite e se entrega ao exercício da solidariedade. (…) A forma mais
absoluta do conhecimento pela solidariedade do outro étnico e cultural, pela solidariedade, é a
conversa, cujo exercício extrapola agora o campo limitado da correspondência literária e do
privado, para ter a abrangência de uma indistinção fraterna e pública que se confunde com o amor
à humanidade.
Silviano Santiago
Rasurar a primeira pessoa, escolhendo a terceira como álibi e mediação, se esquivar
do sentido pleno de identidade autoral ou existencial compõem o fazer literário de
Silviano, o traçado de um estilo errante e travestido, no qual se elege o outro como
parceiro fiel/infiel de seus escritos. No caminho tortuoso da autoficção – a fabulação
autobiográfica – o escritor embaralha as pessoas do discurso, finge falar do outro para
falar de si, ou mesmo que se coloque especularmente no texto, se comporta de modo
distanciado, irônico e oblíquo. Como escritor-crítico, um dos temas explorados na sua
obra incide na elaboração metafórica do conceito de criação literária, desdobrado em
vários livros e a partir de afirmações emitidas por Mário em cartas e depoimentos.
Inúmeras são as cenas em que o tema é dramatizado, comportando associações com
filósofos como Nietzsche, Georges Bataille e Jacques Derrida para o redimensionamento
dos empréstimos. A atuação diferenciada da dança da negra eleita por Mário no
“Carnaval carioca” e em carta a Drummond, funciona como leitmotiv inscrito em alguns
de seus textos e se associa à noção de arte como excesso, dispêndio improdutivo e
energia vital desprovida de utilidade imediata.
A entrega religiosa à vida se confunde com charitas, o amor à humanidade, o dom que
não envolve troca nem retorno, conforme assinala Mário em carta a Oneyda Alvarenga.
Considerada no sentido mais abrangente, a doação significa entregar-se com paixão em
tudo o que se faz, desdobrando-se o propósito em gesto artístico e prática existencial.
Em carta de 1944 dirigida a Drummond, o autor se diz insatisfeito com a decisão dos
médicos em não operá-lo, cautela que não combina com seu estilo de vida, dotado de
mais propensão para o gasto do que para a usura. O excesso, como assim se refere
Silviano na apresentação da correspondência de Mário e Drummond, à luz da teorização
de Bataille, seria o traço peculiar do escritor.
Essa atitude remete à concepção de arte como energia que excede como transgressão
ao interdito e que foge às regras impostas pela racionalidade, dando origem à festa e ao
ritual dionisíaco. A noção de dispêndio improdutivo, de desperdício, está relacionada às
manifestações que contêm fim em si mesmo, como o luxo, as guerras, os cultos, as artes,
distinguindo-se daquelas que se prestam a reproduzir e a conservar a vida, a acumular
bens e a se guiar pela necessidade e não pelo prazer.28 No entender do filósofo, é na
transgressão e na violência que o homem potencialmente se revela. Essa atitude,
denominada soberana, refere-se a situações em que a submissão ao sacrifício se
apresenta de modo excessivo, comportando o sujeito de forma destemida diante da
iminência da morte. O êxtase erótico ou sacrificial é uma experiência que nasce no
sujeito por obra da arte, “mas que o consome em seu movimento, através de um
processo de pura perda do sujeito”.29 É ainda contra o clássico pensamento econômico
do sistema capitalista, pela ênfase na necessidade de utilizar os recursos de maneira
eficiente que Bataille recorre ao antropólogo Marcel Mauss e se vale de sua teoria sobre
o dom. Essa teoria surge como alternativa para o cálculo racionalista da troca
capitalista. A influência exercida no pensamento de Bataille o leva a enfatizar o
irracional no lugar do racional, o erótico contra a moral burguesa, a celebração do
excesso em oposição à economia capitalista e a transgressão contra a conformidade.
Mary Douglas tece também considerações sobre o ensaio de Mauss, acrescentando que a
noção de dom remete à teoria política contemporânea, por ela denominada de “teoria da
solidariedade social”.30
Como motivo recorrente nos seus escritos, Silviano recria a cena da performance da
negra fisgada por Mário no “Carnaval carioca” nos romances Stella Manhattan e Viagem
ao México, imprimindo-lhe significados conforme o contexto em que se encontra. É
importante ressaltar que a apropriação feita por Silviano da lição de solidariedade
representada pelos escritos de Mário recupera o conceito de doação como força ativa do
projeto existencial. Na substituição do sentido cristão inerente ao termo charitas pela
teoria pagã do dispêndio, da alteridade e da falta como categorias formadoras do
sujeito, Silviano entende, com Bataille, ser o gesto criativo composto paradoxalmente de
ganho e perda. No ensaio “Atração do mundo” e na “Apresentação” ao volume de
correspondência entre Mário e Drummond, Silviano retoma a cena, desta vez para
destacar o papel de Mário como intelectual moderno, pelo “exercício da solidariedade”
conseguido através da conversa, do encontro com o outro étnico e cultural, o que irá
concorrer para a legitimação do sentimento de “amor à humanidade”. O artista
brasileiro deveria se comportar, segundo Mário, como ator e não espectador na vida,
não se dividindo entre o intelecto e o sentimento, e procurando aprimorar cada vez
mais o conhecimento que se produz na rua, no meio de gente sem instrução:
O literato 24 horas de plantão cede lugar ao etnólogo amador: o coração do homem não bate lá na
biblioteca, bate cá no espetáculo das ruas. “Puxar conversa” não é diferente de trocar cartas. Puxar
conversa na rua é o modo de se aproximar agressiva e despudoradamente, sensual e
fraternalmente, do outro, para que o outro, ao passar de objeto a sujeito, transforme o sujeito que
puxara a conversa em objeto.31
O narrador de Stella Manhattan estabelece com a cena dos músicos no metrô
parisiense o elo entre a performance da negra no “Carnaval carioca”, assumindo a dívida
teórica para com Bataille e retomando o conceito de “fazer milhor” de Mário. O melhor
dos músicos, um mulato “retraído e gordo” no meio de brancos esfuziantes, “era todo
equilíbrio” e “explodia nele um acúmulo de energia que fugia da norma que satisfaz a
necessidade”. Percebe-se, na passagem, a metáfora do desperdício, retirada da cena
doméstica de encher o leite numa xícara e deixá-lo transbordar até ensopar toda a
toalha, assim como a interpretação musical do mulato no metrô. Introduz, com a ajuda
de fragmentos de Bataille, a definição sobre a criação artística, ao considerar que “arte
não é e não pode ser norma, é energia desperdiçada mesmo”.32 A recriação do cenário
musical no metrô parisiense, tendo como destaque a interpretação do mulato,
redimensiona o significado da cena original, ao ressaltar a presença diferenciada da
cultura periférica na metrópole. O excesso que a distingue diz respeito tanto à sua
exclusão social como imigrante na comunidade, quanto à criatividade e energia
existencial que extrapolam a ordem e o bem-estar público.
Viagem ao México narra, no Capítulo VII, sobre Cuba, situação oposta à cena original e
à de Stella Manhattan, ao ser contemplado um grupo musical, apático e sem energia,
comportando-se como se estivesse realizando um rito operário. A falta de engajamento
dos intérpretes os coloca na situação de espectador e não de ator do espetáculo
promovido e dirigido pelo governo autoritário. A recorrência da cena funciona como
ilustração do cenário do regime socialista, de um espetáculo que nada motiva a quem o
observa. Destituída de vitalidade e de entusiasmo, a execução musical obedece ao ritual
de trabalho e se apaga enquanto manifestação artística coletiva. O povo se contenta em
ser o espectador de uma festa que não lhe reserva mais o direito de exercer o papel de
ator na sociedade:
A maioria dos cubanos tira a graça e a alegria da vida sendo espectador. Não consegue mais
participar como ator dos eventos públicos e dos espetáculos, das coisas do dia a dia. Foi um direito
que lhes foi pouco a pouco dado e pouco a pouco roubado, talvez pela excessiva especialização
profissional, talvez pela rotina do trabalho setorizado, talvez…33
Tio Mário
Os seres sem vontade como Bartleby ou Billy Bud aniquilam, por meio de um excesso simétrico, a
figura da obediência filial. Eles a petrificam identificando-a a uma não preferência radical. A
tragédia dos originais libera assim, em uma dialética bem hegeliana e em uma dramaturgia
wagneriana, a possibilidade do homem sem qualidades. Ao destruir esse retrato do pai que é o
centro do sistema representativo, ela abre o porvir de uma humanidade fraternal.
Jacques Rancière
Mário entende ser a criação artística semelhante ao orgasmo e não ao parto, como
assim reformularam Rilke e Nietzsche, por simbolizar o estado de prazer que arrebata o
criador, que se encarregará de retomar o trabalho e revisar o que fora escrito de forma
intempestiva.34 O culto da preguiça, presente na economia textual do escritor, se estende
ao gesto de meditação do intelecto, modos de filosofar e de exercitar o saber paciente,
lento e desprovido de utilidade imediata. A consideração da preguiça como valor e a sua
transformação em metáfora da criação e em ganho cultural teve em Mário um de seus
maiores defensores, ao se referir aos países periféricos, marcados por males de origem
e pela perda natural dos bens. Oswald de Andrade, nos manifestos “Pau-Brasil e
“Antropófago”, este mais tarde retomado em Crise da filosofia messiânica, ao eleger a
preguiça “mãe da fantasia, da invenção e do amor”, reacende o diálogo intercultural,
abolindo traumas e ressentimentos relativos à condição de culturas dependentes da
metropolitana. Contribui de forma efetiva para a configuração do desenho lúdico e
carnavalizado das manifestações culturais.35
O diálogo com Mário de Andrade permite a Silviano desenvolver conceitos que foram
se depurando ao longo de sua trajetória ficcional, fazendo do imaginário andradino um
dos textos-referência para a elucidação de sua escrita. Além da retomada das noções de
criação artística e de preguiça, o escritor escolhe a alegria como mote para a sua
concepção de literatura, recado positivo enviado aos leitores de hoje e de amanhã. Na
carta ficcional a ele endereçada, “Conversei ontem à tardinha com o nosso querido
Carlos”, publicada por ocasião do centenário de Mário de Andrade, discute-se sobre a
relação entre Drummond e o poeta paulista, entre a poética do sofrimento em Manuel
Bandeira, ocasião criada pelo narrador para a elucidação de seu labor literário. A tônica
da correspondência é o sentido do verso andradino – “a própria dor é uma felicidade” –
relido com a mediação do conceito de paradoxo em Deleuze e acrescido da inversão da
noção de criação artística como parto, de elaboração nietzschiana.
As personagens transitam no interior da carta de modo familiar, como pertencentes à
categoria de tios intelectuais do autor, tendo tio Mário como principal interlocutor.
Jacques, Giles, Alexandre Eulálio, Nietzsche compõem a estrutura familiar fraterna,
suplemento da figura do pai, submetido ao apagamento e ao silêncio. A comunidade
formada pelo gesto que transgride a genealogia paterna instaura o corte com a
procriação, com a concepção de arte que visa à conservação e à reprodução de linhagens
verticais de família. A amizade entre homens, a rede de empréstimos passada de tio
para sobrinho, inventa famílias literárias, cria laços de parentesco a partir de afinidades
eletivas e pela força da ficção. Em permanente conflito com seus pares, o diálogo entre
eles constitui o fazer e o desfazer de perfis identitários, pelo deslocamento aí
processado. Na cumplicidade fraterna não se aspira à obediência ou ao exemplo, mas à
convivência sempre marcada pela vontade de suplementar o outro. Tio Mário é a
personagem de Uma história de família, declaração efetuada pelo narrador da carta na
última versão impressa, confirmando o que fora sugerido na primeira versão. A escolha
do escritor como personagem não se vincula a semelhanças de ordem biográfica, mas se
presta a extrair da loucura da personagem da novela a lição de alegria transmitida pela
obra de Mário, conjugada à força vital que o sobrinho, moribundo, recebe do tio:
O narrador/personagem quer saber o que é a loucura (do tio e/ou a sua), o que é a alegria (ausência
de dor) diante da iminência da morte, e para isso busca o significado da imagem representada no
fotograma. Quer saber ainda por que esse rosto sorridente não coincide com a imagem de sofredor
que a família passa, ao manifestar a vontade de que morresse o mais depressa possível.36
O símbolo materno, ao contrário do paterno, é o protagonista da ficção de Silviano,
marcada pela sua perda e pelo “mistério da dor inútil”. Como contraponto à teoria da
criação como parto, regida por critérios próprios ao feminino – o dizer duplamente sim
à alegria e à dor –, a morte da mãe ao dar à luz ao filho se distancia também da metáfora
do orgasmo, defendida por Mário, e se inscreve como dor inútil: a mãe diz sim à vida do
filho e não à sua. Paradoxalmente, a “dor inútil” se aproxima da lição poética e vital de
Mário, do excesso atingido pelo êxtase criativo e sacrificial, da afirmação da morte como
contrapartida da vida. Para Silviano, é para entender o enigma da criação pela perda da
figura materna que se dedica à literatura, uma forma de suplementar o vazio da origem:
O enigma maior que tentei dramatizar nos meus livros é o mistério da dor inútil. A dor que advém
no momento em que a mulher grávida morre das “dores do parto”, para retomar a expressão de
Nietzsche, ou seja, no momento em que ela só pode dizer sim à vida através do filho que nasce.37
Em “Poder e alegria – a literatura brasileira pós-64 – reflexões”,38 ao proceder ao
balanço dessa época, Silviano se exclui da vertente pessimista de certa produção
artística brasileira e se declara adepto da escrita que, à maneira de Mário de Andrade e
Caetano Veloso, se impõe de modo afirmativo. O prazer e o sofrimento tornam-se faces
da mesma moeda, considerando ser o discurso literário o espaço por excelência da
ambiguidade e do paradoxo. O prazer do texto resulta da cristalização da dor,
transformada em positividade e alegria criadora, uma resposta bem-humorada que
transgride e liberta. No ensaio de 1996, “O tempo não para”, o crítico lembra que o
exemplo da obra/vida de Cazuza o coloca em lugar semelhante ao de Caetano e Mário,
pela lição de vida transmitida na iminência da morte. Lembra ter sido o grito público do
cantor na década de 1980 a continuidade dos discursos poéticos de Caetano em 1967,
com “Alegria, alegria”, e de Mário, nos anos 1920, com o verso “A própria dor é uma
felicidade”. Embora sejam distintos os momentos e as situações pessoais vividas por
eles, o tom dos discursos se iguala, pela transformação do sofrimento em força vital e
pela “capacidade que teria o jovem moderno, como um avestruz do asfalto, de digerir o
mal que lhe fere, saindo fortalecido da experiência”.39
Em entrevista concedida à revista Imagem, Silviano Santiago declara, de forma
eloquente, que o século 20 terminou “desastrosamente nos anos 30”. Para ele, a
imobilidade registrada dessa época até os dias de hoje, dominada pelos nacionalismos
econômicos, pela inutilidade da Segunda Grande Guerra e dos campos de concentração
nazistas, coincide com a década de seu nascimento, em 1936. Em razão dessa
coincidência temporal, o escritor procura, através de sua obra, interpretar “a inutilidade
da vida vivida por mim (e da vida vivida pela minha geração)”, reescrevendo o momento
de experiência limite dos escritores-personagens: o de Graciliano Ramos, preso em
1936, em Maceió, e o de Artaud, ao deixar a Europa em direção ao México. A experiência
alheia a ser narrada supre o vazio da experiência pessoal, permitindo o nascimento do
escritor pós-moderno a partir da morte do século moderno e do Modernismo em 1936.
A sobrevida do filho após a morte da mãe se vale da contingência de ter nascido da dor,
com a responsabilidade de transformar a perda em alegria criativa.
O conto “Hello, Dolly!”, concebido em forma de carta a Walter Benjamin, narra a
aflição da personagem em busca da identidade perdida, uma vez que se comemorava a
primeira clonagem animal, o início da reprodução técnica não apenas da obra de arte,
mas de seres. O texto remete, mais uma vez, para a coincidência irônica do nascimento
do autor, pois o ensaio de Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica” é de 1936. Fadado a repetir experiências do outro, a viver a ficção como
filtragem e suplemento de obras alheias, o escritor se inscreve no texto, na figura do
narrador, como produto clonado, exigindo carteira de identidade e a recuperação da
aura perdida. Rebela-se por se transformar em “antepassado e prole de si próprio”,
rompendo com a linhagem familiar tradicional e se perdendo no anonimato. O texto
dialoga também com o ensaio de 1986 “O narrador pós-moderno”, no qual se constata o
afastamento do narrador diante do material narrado, além de excluir o paternalismo
como conexão entre gerações. O narrador de “Hello, Dolly!”, ao contrário, se afasta da
concepção pós-moderna, exigindo identidade e aproximação com o objeto narrado.
Situa-se, portanto, entre o narrador benjaminiano – testemunha da própria experiência
– e o narrador pós-moderno: “A história não é mais vislumbrada como tecendo uma
continuidade entre a vivência do mais experiente e a do menos, visto que o
paternalismo é excluído como processo conectivo entre gerações.”40
De modo irônico, simula-se o nascimento do escritor Silviano Santiago, declarando-se
contra o seu destino vaticinado por Benjamin, no artigo de 1936, rejeitando sua
condição de clone e se colocando numa situação paradoxal, entre o moderno e o pós-
moderno:
Pergunto-lhe, meu caro Walter: Sou homem depois desse falimento? Não é a minha própria
identidade que está sendo manuseada por profissionais incompetentes? Será que outro que não eu
conseguirá me representar tão bem quanto eu me represento nas minhas crises e angústia, na
montanha-russa da minha depressão e nos meus piques de euforia? Espero uma resposta honesta
sua, e não me chame de retrógrado, por favor. Sou benjaminiano e pós-moderno, graças a Deus.41
(Ensaio publicado em: CUNHA, Eneida Leal (Org.). Leituras críticas de Silviano Santiago. Belo
Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Perseu Abramo, 2008. p. 23-50.)
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Carmen Miranda do kitsch ao cult
Carmen morreu como deveria morrer sempre os cantores, os poetas e os passarinhos: ainda jovens,
ainda fortes. Antes que o tempo e a velhice os tornem simples e melancólicos fantasmas vivos de
um passado glorioso, antes que o público os esqueça.1
João Martins
Em 20 de agosto de 1955, João Martins, repórter de O Cruzeiro, enviado a Hollywood
para cobrir a morte de Carmen Miranda, registra essa opinião que lhe foi comunicada
por um americano. Trata-se de um dos componentes ritualísticos de consagração da
artista vítima de morte prematura, uma forma de congelar o sucesso e de eternizar o
presente glorioso. A juventude, aliada ao vigor e ao reconhecimento público, permite a
entrada do sujeito no espaço sagrado do mito, além de promover a construção de
biografias, motivadas pela proliferação de textos compostos pela mídia. Morrer cedo, e
em plena atividade profissional, condensa os ingredientes da tragédia com o
melodrama, do sacrifício pelo outro com a catarse provocada no público.
A morte de Carmen Miranda, nas palavras de Henrique Pongetti, em texto publicado
na época, significaria “a morte em glória, polianteia e biográfica”. O cronista se referia à
recomposição de uma vida a partir da miscelânea de homenagens, de opiniões
apaixonadas ou equivocadas, versões da opinião pública que sempre são preservadas
como verdadeiras. Diante dessa variada gama de informações e de depoimentos sobre
Carmen, confirma-se, no entanto, a impossibilidade de os biógrafos construirem um
perfil unívoco, considerando-se que os textos escritos sobre ela já se inscrevem como
interpretações. Biografias prematuras são igualmente causadas pelas mortes
prematuras.
Outro componente que interfere no processo de consolidação do mito cultural é a
maneira repentina de morrer, no caso, por ataque cardíaco. Nessa circunstância, o corpo
não sofre mutilação, o coração apenas para de bater. Em pleno vigor e uso de sua
vitalidade, esse corpo que serviu de mediação para a transposição de fronteiras e a
consagração internacional, é o cadáver que deverá ser repatriado ao lugar de origem.
Participa desse relato de imortalização o fato de ser a artista incorporada ao panteão
dos ilustres da nação, graças ao ritual de repatriamento do corpo como expressão da
política de sobrevivência simbólica. O imaginário sentimento de posse vivido pela
população se manifesta no momento em que o corpo inerte regressa definitivamente ao
solo natal e aos braços do povo, significando um ganho adquirido pela morte: “Mágoas e
ciúmes desfeitos – a cidade reconquista sua grande intérprete”, diz uma das manchetes
de a Última Hora.2
No calor da emoção, a memória de Carmen Miranda é lentamente construída, através
de vários gestos cívicos que contribuem para tal: discursos de despedida, músicas
cantadas durante o cortejo, promessa de realização de um busto, de criação de um
museu, de nome de rua, e assim por diante. Mas a presença de um número considerável
de pessoas aos funerais, as filas intermináveis para se aproximar do corpo exposto à
visitação, os desmaios e a expressão de dor que contaminava a todos constituem uma
das maiores provas da popularidade e consagração póstuma da artista. É nesse
momento de intensa aglomeração popular que se revelam, provisoriamente,
comunidades imaginadas em torno de um objetivo comum, graças à mediação dos
meios de comunicação de massa, como o rádio e a imprensa. Nessa época, esses meios
de comunicação se responsabilizavam por uma grande parcela do processo de
integração popular e de vivência de um sentimento cotidiano de nação. Carmen
Miranda, como “Embaixatriz do Samba” nos Estados Unidos, cumpria a função de
mediadora da América Latina junto à Política da Boa Vizinhança desenvolvida durante a
ditadura de Vargas e o governo americano.
Com a sua morte, representava-se o sacrifício de quem, aos olhos da opinião pública,
se perdeu em termos de identidade e se deixou levar pela sedução de uma vida em que
mais se valorizava a entrega a um capitalismo devorador e ao consumismo da imagem.
Segundo depoimentos prestados por pessoas da classe artística, Carmen Miranda pagou
um preço alto pelo sucesso no exterior, pela agenda de compromissos que lhe exigia
total dedicação ao trabalho. O que se verificou foi o desfalecimento gradativo de um
corpo, cujo objetivo era o de se expor através do bamboleio latino e da estereotipada
“força telúrica” dos trópicos.
“Carmen não sairá mais daqui”
Ela foi o símbolo popular do coração carioca e o corpo de mais alma que jamais se viu em terra
brasileira.
Aníbal Machado
A trajetória artística de Carmen se forjou em torno da exploração estética e
profissional de uma voz que se expressava através do corpo e de sua fantasia. Corpo que
era ainda símbolo de um país, de um continente, à medida que representava a
proliferação de símbolos referentes à América Latina. A sedução da mulher-continente,
com seu olhar malicioso, o movimento inusitado dos braços, simulava o ritual
carnavalesco, com sua ótica invertida, o descentramento e o embaralhamento dos
valores. A alegria dos trópicos se estampava como promessa de felicidade, evocando-se
a terra paradisíaca, onde “plantando tudo dá”. O corpo, naturalizado pelo apelo às
riquezas naturais do país – a banana, o abacaxi –, vendia um produto exótico bem ao
gosto da Política da Boa Vizinhança, que não media esforços para angariar simpatia e
apoio dos amigos do Sul.
Interpretada ainda como corpo político, Carmen Miranda era também a expressão de
um corpo público, cuja autonomia autoral desaparecia em favor do signo vazio,
preenchido pelos inúmeros significados a ele atribuídos. Representava o corpo
simulado, o estereótipo a ser preservado e conservado como suporte à imagem criada e
alimentada pela mídia. O corpo da artista foi se transformando em simulacro que se
afastava do original, em cópia de si mesma e em caricatura. A exaustão da imagem
repetida em série imitava um modelo de forma congelada e eterna, segundo as regras de
produção midiática. A vitalidade da fantasia de baiana durou enquanto o corpo exibia,
em superfície, os signos de uma identidade que se perdia no meio dos turbantes de
vários tipos, dotados de uma estética kitsch. Uma das causas do apagamento gradativo
de sua figura residiria no artifício repetitivo, na perpetuação de uma grife, em
detrimento da criatividade. Reduplicada em torno de uma sombra, Carmen Miranda não
conseguia manter o padrão de sucesso que gozava durante a década de 1940.
A recomposição do corpo da artista se processa por ocasião de sua morte, por meio
dos depoimentos de amigos, de jornalistas e de intelectuais. A Carmen Miranda que
volta ao Rio de Janeiro, em 12 de agosto de 1955, é um corpo “mudo e paralisado”,
“cerrados aqueles olhos, muda aquela boca, sem movimento aquelas mãos”, como assim
escreve o escritor Marques Rebelo. A imobilidade da morte resgata o corpo que havia se
afastado do lugar de origem, promovendo sua posse imaginária. O retorno ao país, “sem
voz e sem bata rendada”, integra Carmen simbolicamente ao corpo da nação, ao
descanso em terra brasileira. Antropofagicamente, a cidade a recebe, a acolhe e a
devora, pois só a morte propicia o congelamento do corpo ao mesmo tempo próximo e
distante.
Nas inúmeras manchetes estampadas nos jornais, a tônica é a de um regresso da
artista aos braços do povo, como se a morte a restituísse inteira e sem máscaras, ao
lugar de onde, para muitos, nunca deveria ter saído: “Carmen não sairá mais daqui,”
“Agora Carmen Miranda voltou para ficar”, “A morte trouxe Carmen de volta”,
“Descansará hoje em terra brasileira o corpo de Carmen Miranda”, “Carmen ficará no
Brasil para sempre”.3
O processo de bricolagem desse corpo que recebe o estatuto de mito se realiza pelo
olhar do outro e se conjuga à glorificação do samba, símbolo de integração popular, do
nacionalismo e da figura lendária de Carmen Miranda. Na alegria motivada por sua
interpretação da música brasileira, o samba se confunde com a artista, pois, se aos olhos
do povo, o samba nasce do coração, também “Carmen nasceu ao bater compassado de
um pandeiro como uma canção de ninar”. A generosidade do bom coração produz a boa
mediação, a positividade capaz de provocar alegria e bem-estar aos ouvintes, além do
eficaz papel desempenhado pela “Embaixatriz do Samba” em projetar o nome do Brasil
lá fora. Em reportagem do jornalista Alberto Conrado para O Mundo Ilustrado, de 17 de
agosto de 1956, intitulada à maneira de Hollywood, “Nunca houve uma mulher como
Carmen”, registra-se a índole natural atribuída à artista. À feição do samba, prescindia
de intermediários e tampouco se desvirtuava pelo endosso da técnica estilizada e
artificial, própria da publicidade. A permanência do traço fortemente nacional é
defendida pelo cronista como sendo a maior qualidade de Carmen Miranda:
Nunca houve uma mulher como Carmen. Nunca haverá sambista como Carmen. Mulher
extraordinária de personalidade e talento no mais puro e amplo sentido da palavra, pois nasceu
com a inquietação natural dos que fazem arte, extraindo do âmago do povo a essência de sua raça;
Carmen nunca deixou de ser brasileira, pouco importa um título de naturalização, pois a “pequena
notável” sentia nossos anseios como filha natural da terra. (…) Assim como o samba nasce do
coração, Carmen nasceu ao bater compassado de um pandeiro como uma canção de ninar.4
O coração, órgão vital para o ser humano, define metonimicamente todo o corpo, por
se identificar como lugar do sentimento, confundido com a natureza feminina, em
contraste com o cérebro, ideologicamente associado ao masculino. Interpretações de
ordem sentimental dominam os depoimentos de amigos, o que motiva a construção do
relato folhetinesco em torno da vida e da morte de Carmen Miranda. Utilizando-se de
recursos retóricos com vistas a exaltar as qualidades da artista, esses depoimentos
reduplicam o modelo biográfico ao gosto da cultura de massa, quando se presta a
exaltar seus ídolos. A humanização da artista é essencial para que seu papel
desempenhado no meio social receba o estatuto do mito que se consolida com a morte.
Pretende-se, com isso, reforçar a função do público diante de Carmen, por não se
interessar com o que ocorreu na vida da artista, mas com o que se esconde, o que estaria
no nível da invisibilidade. Nas palavras de Nina Gerassi-Navarro, um dos processos de
despolitização da figura política de Evita Perón se encontra no filme homônimo de
Parker, em que é percebida como mulher comum, sendo destronada, de certa forma, de
seu lugar excepcional: “É justamente no seu desejo de humanizá-la, mostrando-a
humilhada, vingativa, egocêntrica, dedicada e vaidosa, que Parker a despolitiza.”5
Como mediadora mítica, sua função desaparece, depois de cumprida a missão de ser a
ponte entre a América Latina e os Estados Unidos, entre o povo e o samba. Torna-se,
portanto, vítima de sua disponibilidade para se doar aos outros, do coração que se
entregou ao mundo de forma apaixonada. Paschoal Carlos Magno interpreta a morte por
ataque cardíaco de Carmen Miranda em perfeita consonância com a natureza
desprendida de sua pessoa e de sua profissão. A vida pública não se distingue da
privada, explicando-se a vida pelo viés da arte, a morte como resultado de um estilo de
vida. Constitui uma das formas de explicar a morte pela vida, a de assumir a
interpretação de ordem fatalista, em que tudo se justifica pelo viés do destino e da
predestinação: “Agora Carmen morreu como podia morrer, de um ataque do coração,
desse coração que bateu por milhares e que se deu todo inteiro a amigos, parentes,
desconhecidos.”6
Elsie Lessa, em artigo publicado em O Globo, traça uma linha a mais na criação do
retrato de Carmen Miranda, empregando recurso discursivo que acentua a função de
mediadora mítica. Ao revelar a face oculta e sofredora, o lado avesso de sua vida a
cronista lembra os últimos anos da artista como “mulher insone, de nervos tensos,
devorada pela própria chama, com que aquecia e iluminava os outros”. Seu depoimento
reforça a carga de sacrifício religioso imputada à artista, acrescentando à sua biografia
traços de santidade e de imortalidade. Carmen Miranda é valorizada como se fosse uma
pessoa próxima dos outros, graças à interpretação de natureza personalista. Nesse
sentido, artista e público se assemelham, pela intensidade de experiências comuns,
como o sofrimento, que confere à personalização da grandeza artística o perfil de uma
santa, próprio da hagiografia. A valorização do grande homem, no entender de Nathalie
Heinich, em Être écrivain,7 reúne indissociavelmente a exemplaridade de sua vida à
grandeza de sua obra. Valoriza-se o sofrimento como resultado da junção naturalista
entre arte e vida. A morte prematura da artista é interpretada por Elsie Lessa por meio
da metáfora da chama que cedo se apaga, em virtude da luz intensa mantida sempre
acesa para os outros: “Chama pura e viva que se devorou a si mesma, para iluminar aos
outros, era natural que cedo se apagasse. Mas, enquanto durou, como foi bela, alegre e
viva a sua luz! Por ela, muito obrigada, Carmen!”8
Adeus batucada
Na preparação do ritual funerário de Carmen Miranda, seu corpo é igualmente
exibido como exótico diante do público brasileiro, tendo causado um efeito de
estranhamento. Segundo os costumes norte-americanos, após a morte, o corpo é
embalsamado, maquiado e penteado, para que os sinais de morte sejam disfarçados e se
produza a impressão de uma pessoa dormindo. Trajando tailleur vermelho de sua
predileção – o mesmo com o qual havia desembarcado na última vinda ao Brasil, em
1955 –, Carmen se destacava ainda pela pintura dos lábios, aparência mortuária até
então inusitada para os hábitos brasileiros. Estaria fantasiada para o ritual da morte,
expondo-se no último espetáculo dirigido a uma multidão que contemplava agora o
corpo inerte e convivia com o silêncio. Povo e cidade compõem o cenário representativo
da máxima consagração da artista, através da manifestação sentimental e espontânea de
um acontecimento que marca a passagem da fama à posteridade.
O ritual de imortalização se completa, quando a pessoa é vítima de morte prematura,
remetendo ao tema da “bela morte”, conceito originário da civilização grega. Por
sucumbir em combate no auge da vida, o herói grego, segundo pesquisa de Maria
Cláudia Coelho, em A experiência da fama,9 realiza nesse momento duplo movimento: ao
furtar-se, à velhice, pela morte prematura, salva-se também do esquecimento. Pela
natureza dessa morte, atinge-se a dimensão do ritual coletivo, uma vez que o herói se
liberta da função particularizada e inscreve sua biografia na memória coletiva. “A
Embaixatriz do Samba”, repetindo a simbologia traçada pelo ritual da cultura ocidental,
recebe as honras dos funerais da “bela morte”, com direito à imortalidade. É consagrada
estrela da canção popular e ídolo da cultura de massa, lugar a ser ocupado pelo mito
Carmen Miranda ao longo de todo o século 20.
O espaço público legitima a consagração da artista durante o funeral, ao ser velado o
corpo no salão da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, integrando-o ao corpo oficial da
cidade. O ritual se amplia ao tornar visível a consagração de Carmen Miranda como
alegoria da nação, quando o esquife é coberto com a bandeira brasileira. Se, antes, ao
cantar para um público insatisfeito com sua condição de americanizada, a artista se viu
obrigada a exaltar as cores nacionais como resposta a um apelo populista (“Eu sou
brasileira / Meu it revela que a minha bandeira é verde-amarela”10); com a morte, seu
corpo se torna o da nação. Samba e mulher representam, ironicamente, a glorificação e o
fim do pensamento estadonovista, através do qual a Política da Boa Vizinhança
representou um de seus maiores exemplos.
O jornalista João Martins termina sua crônica revestindo o corpo da artista com as
cores verde e amarela e manifestando o direito de posse do mito como consolidação do
símbolo nacional: “Mesmo porque a nossa Carmen não morreu. Gente como ela não
morre. A nossa Carmen continuará viva para sempre. Apenas o seu corpo é que estava
descansando naquele caixão coberto de flores verdes e amarelas, amigos.”11 A afirmação
tende a desvincular o valor real do corpo do sentido de imortalidade, inscrito na força
da imagem da artista. Cria-se outra dimensão para a perda do corpo, a da memória,
mecanismo capaz de substituir o objeto pelo jogo ambivalente de perdas e ganhos. O
devir-Carmen anuncia a sobrevivência do mito, que, amparado pelo nome, transcende a
materialidade corporal.
A década de 1950 será marcada por mortes de figuras públicas que desempenharam
importantes papéis no panorama artístico e político do país. Em 1952, morre Francisco
Alves, “O rei da voz”, num desastre de automóvel na Via Dutra; em 1954, Getúlio Vargas,
no dia 24 de agosto, comete suicídio. O Brasil, livre da ditadura de Vargas, o reelege
presidente em 1950, mas o mandato é interrompido, provocando tumultos de toda
sorte. 1955 será ainda o ano da eleição de Juscelino Kubitschek para presidente,
comprometendo-se o país com um programa político desenvolvimentista e a abertura
para a internacionalização. Nesse clima de país novo, constrói-se Brasília, a cidade
moderna, ao lado de movimentos culturais de vanguarda, com a estética concreta
voltada para o futuro e com desprezo pelos valores da tradição.
No campo musical, abole-se a dicção eloquente e ornamental, presente, entre outras,
na interpretação de Carmen Miranda, substituindo-se o samba tradicional, a marchinha
e os boleros por novo gênero, a bossa-nova. Com o fechamento dos cassinos pelo
presidente Dutra, em 1947, os teatros de revista sofrem também grande abalo,
acarretando o fim dos shows com as grandes orquestras, espetáculos frequentados pela
classe média nos fins de semana. A bossa-nova nasce em ambiente distinto do samba da
Lapa, dos morros, da periferia das cidades, para se concentrar na zona sul, junto a um
grupo de universitários e intelectuais. O cotidiano é interpretado de forma intimista, em
voz baixa, no pequeno espaço das casas noturnas, e tendo como palco apenas uma voz e
um violão. De natureza mais subjetiva e minimalista, descartando qualquer tipo de
artificialidade na interpretação, a bossa-nova seguia os caminhos abertos pelo jazz
americano e se impunha como ritmo moderno.
A televisão, por seu turno, entra nos lares brasileiros por volta dos anos 1950,
consolidando-se como veículo de massa na década de 1960. A morte de Carmen
Miranda se dá no momento de passagem do cinema para a televisão, da diminuição da
força do rádio, no Brasil, como meio de integração nacional. Mas o cinema nacional
ainda será devedor de sua imagem, com o advento das chanchadas, um gênero popular
que viria atingir o grande público. Sintomaticamente, será no filme a ser transmitido
pela televisão americana, no programa de Jimmy Durante, que o corpo de Carmen
Miranda ensaia sua morte. Cai dos braços do ator, consegue se levantar e sair,
sorrateiramente, de cena. Mais tarde, já em casa, preparando-se para dormir e sem ter
tempo para tirar a maquiagem, fecha a cortina. A imagem estereotipada e desgastada de
Carmen Miranda como baiana coincide com a imagem de um corpo igualmente
desgastado pelo trabalho e cansado de repetir as mesmas cenas.
A figura de Carmen Miranda é interpretada, atualmente, como representante das
transformações que as noções de mito e de identidade sofreram ao longo do tempo. Em
depoimentos recentes, distinta leitura ilumina o mito, conferindo-lhe uma dimensão
utópica e reveladora de nossa cultura contemporânea. Arnaldo Jabor, com irônica
sensibilidade, constrói diferente perfil de Carmen, ao qual se distancia das opiniões
expressas pelos amigos e colegas que, no calor da hora, não conseguiram se isentar de
um discurso sentimental e apaixonado. Por ocasião do lançamento do documentário
Carmen Miranda – banana is my business, de 1994, o cineasta se refere à artista por meio
da metáfora da luz, também utilizada por Elsie Lessa em seu depoimento. Amplia,
contudo, seu sentido, ao considerar a atriz dotada de extraordinária inteligência e de
visão avançada para a época. Segundo Jabor, consciente de seu papel no cenário
hollywoodiano, Carmen soube conviver com o travestimento identitário como saída
para a convivência com a alteridade. O teor avançado de sua performance se nutria de
intenções parodísticas e de deboche à cultura americana a qual servia. A luz que aí se
propaga serviria, certamente, para iluminar tempos futuros, ao funcionar como sustento
de políticas de dependência cultural, assim como de resistência à imposição de modelos
hegemônicos de cultura:
Aí surgiu Carmen Miranda com seu riso, seu jeito. Ela era um futuro. Seus gestos já eram uma
paródia do mundo em volta que ninguém percebia. Ela era mais inteligente que todos. Acho que ela
intuiu a cultura de massas, como diria o Caetano muitos anos depois, ela, que já apontava na direção
do que seria o tropicalismo. Carmen ilumina seu tempo e, com sua luz, podemos ver também as
pistas de algo de nosso destino que se perdeu depois, podemos ver as pegadas dos passos que ainda
iríamos dar. (…) Carmen chega à Broadway triunfante, na beleza de seus gestos perfeitos, sua voz
desenhando uma alegria matematicamente exata. Carmen usava o corpo como se ela fosse uma
“outra” que cantasse. Carmen teve a ideia do travestimento, a ideia de ser uma fantasia de si
mesma, de ser uma “outra”, um “eu” sem centro. Carmen inventa a alegoria moderna viva e isto dá a
ela a Semana de 22 e prefigura a indeterminação de hoje. Daí o seu imenso fascínio atualíssimo. Daí,
os travestis adorarem-na.12
A cantora consegue passar de uma imagem kitsch, pela naturalização da
nacionalidade inscrita na roupa, nos adereços e no remelexo, para uma imagem cult,
penetrando numa facção do mercado gay, além de outras compostas pela mídia e pelos
intelectuais. Daí a sua relação com o fenômeno camp, conceito criado por por Susan
Sontag em seu artigo “Notas sobre camp”. A atualidade da imagem cada vez mais
artificializada da artista foi gradativamente reconstruída politicamente pelo movimento
queer nos Estados Unidos e, mais recentemente, no Brasil. A transformação do
estereótipo kitsch por meio da leitura do aspecto performático do camp confere à
mitologia de Carmen Miranda penetração muito mais politizada na sociedade
contemporânea, contribuindo para a revisão contínua de sua imagem.
O mito de Carmen Miranda sobrevive ao tempo e continua se expondo como uma das
mais representativas e complexas marcas identitárias.
Carmen Miranda volta à América
No século 21, constata-se que o hibridismo latino-americano, considerado do ponto
de vista musical, étnico e político, agrega-se a outras manifestações periféricas e se
impõe como resistência cultural aos países hegemônicos. Na comemoração, em 2009, do
centenário de Carmen Miranda, torna-se evidente a força com que a herança de sua
imagem persiste com toda força. Híbrida e integradora, ela se converte em símbolo
cultural capaz de reunir, em diferença, o ritmo migratório e diaspórico da latinidade
com o som nem tão dissonante da música asiática, africana e pós-colonial.
O artigo de Denílson Lopes, “Música ambiente e bossa-nova”,13 nos ajuda a refletir
sobre a situação da música contemporânea, discorrendo sobre a junção da bossa-nova
com a música eletrônica, com o intuito de
construir mais do que um objeto de uma cultura nacional, mas processos socioculturais híbridos
que interligam o local e o global, e em que as estruturas ou práticas, que existiam antes em forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas, opondo-se a qualquer
discurso essencialista de identidade, autenticidade e pureza culturais…14
Seu raciocínio, seguindo o de Néstor Canclini, se pauta por uma perspectiva pop e
transcultural, rejeita discursos fundamentalistas, os quais se reportam à tradição do
nacional popular. A tendência ao hibridismo na cultura contemporânea merece ainda a
atenção de especialistas em música, ao se constatar a inevitável, saudável e libertadora
confluência de estilos, raças, origens, aliada aos bons resultados daí surgidos. Na atual
configuração do discurso musical transnacional, prevalece tanto o adjetivo “latino”,
quanto o world music, de registro não recomendável pelos intérpretes, o que contribui
para a indefinição e globalização das manifestações musicais. No entanto, é possível
admitir a influência da música negra e asiática nas práticas musicais não só da
atualidade, como das cinco últimas décadas, revestidas da mistura de ritmos vinculados
ao jazz, à bossa-nova, ao blues, ao be-bop, ao pop rock, cool, free jazz, salsa, samba, entre
outros. A primazia do heterogêneo e a presença irreversível de múltiplas modalidades
temporais na constituição das modernidades contemporâneas, no campo específico da
música e na cultura em geral, desconstroem qualquer pensamento centrado na
identidade musical de um determinado país. No entanto, é preciso desconfiar das fusões
rítmicas e musicais como traço de fraternidade sonora entre intérpretes do Terceiro
Mundo, instalados ou não nos centros hegemônicos.
As críticas endereçadas a Carmen Miranda nas décadas de 1940 e 1950, centradas no
mito da identidade nacional e na isenção de empréstimos estrangeiros para a
construção da imagem pura da intérprete, não teriam hoje a repercussão esperada.
Tanto a sua imagem quanto a mescla heterogênea de ritmos, fantasias e trejeitos
encontram ressonâncias e retomada crítica nos palcos daqui e do exterior. O caráter
migratório e diaspórico das sociedades periféricas contemporâneas se reproduz na
presença maciça do aspecto sonoro na vida cotidiana, considerando ser o fenômeno
musical uma das mais contundentes e revolucionárias manifestações da multidão. A
mudança de posicionamento diante das variadas formas de se conceber a modernidade,
até então hegemônica e excludente, instaura o jogo entre tradição e modernidade,
abolindo-se as hierarquias presentes na ideologia da alta modernidade.
A modernidade eurocêntrica, ao servir de modelo para justificar o descompasso e o
atraso da recepção artística nos países periféricos, encontra-se hoje enfraquecida por
manifestações culturais que deslocam o compasso entre centro e periferia. Renovam-se
as relações no campo musical da América Latina, contribuindo para a integração
diferenciada entre variadas concepções musicais; ou entre músicos das Américas,
congregando tendências ditas primitivas e locais com a abertura trazida pelas
modernidades eletrônicas e revolucionárias da música contemporânea. Sob o signo da
tensão entre categorias vistas como opostas, o discurso musical se configura de modo
heterogêneo, disposto a negociar as contradições e não aderir às oposições. As
mudanças tecnológicas e a inauguração da era digital neste início de século não só
desfazem propostas identitárias como revelam ser o discurso musical capaz de
dispersar os sons dos lugares de origem, o que resulta na condição de “esquizofonia”
dos nossos tempos, como assim entende Ana Maria Ochoa Gautier.15
(Artigo publicado na revista Palavra (PUCRJ), Rio de Janeiro, v. 9, p. 174-183, 2002.)
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Pan-Américas de Áfricas utópicas
Naqueles primeiros dias de março de 1951, não sabia que as aulas do curso primário
iriam começar. Mamãe me alertou, aflita, que já estava na hora de me aprontar para ir à
escola. Foi uma correria e, nessa aflição, até a cozinheira trocou o sal pelo açúcar, o
arroz ficou adocicado e foi impossível almoçar. A lembrança desse dia sempre me
evocou a ideia de inversão, de deslocamento, uma coisa pela outra, momento que
marcaria minha atitude diante da vida para sempre. Tinha sete anos e pela primeira vez
começava a aprender a escrever e a ter noção do espaço branco da página. A única
leitura que praticava – não sei como explicar – era a das partituras musicais, pois aos
seis anos e meio iniciara o estudo de piano com a professora Nise Silva.
As primeiras letras no Curso Primário da Escola Normal Oficial de Manhuaçu – hoje
Escola Estadual Maria de Lucca Pinto Coelho – foram marcadas pelo entusiasmo e pela
alegria da descoberta, pelo contato, visto hoje como transparente e cordial com os
colegas, funcionários e professores. De saia azul-marinho pregueada, blusa branca e um
pequeno distintivo preso ao bolso da blusa, além de uma gravata fininha e da mesma cor
da saia – sempre perdida e alvo de reprimendas por parte do sr. João, o porteiro –,
começávamos a lidar com a ordem e a disciplina, com a obrigação de obedecer às filas,
aos lugares fixos na sala, além das regras e dos exercícios de escrita, de leitura e do
desenho.
Da primeira experiência com a escrita e com a leitura, indo da cópia enviesada de meu
nome no caderno de exercícios, da falta de controle do lápis sobre o papel, do lento
aprendizado das frases aprendidas por inteiro – o método conhecido como global –, da
visualização das sílabas, do fragmento que se completava no todo da frase, me é difícil
lembrar, com clareza, das lições de alfabetização. Não se tratava do Livro de Lili, tenho
certeza, pois o único resquício de frase que retenho, “Olhem o Paulinho, ele tem um
cachorrinho”, estampada no cartaz colado ao quadro negro, parece não dizer muita
coisa sobre os manuais da escola primária. Ou esta lição eu a ouvi durante o
aprendizado de meu irmão, um ano e meio mais novo do que eu?
“Ivo viu a uva”, que soa hoje como um verso, talvez tenha sido uma das práticas
utilizadas no processo de alfabetização, mas será que não foi ela incorporada às
experiências de leitura dos outros? O esquecimento não se explicaria pela recusa em
arquivar o que veio primeiro, se o Ivo ou a uva, se a escrita ou a leitura, se a voz do outro
no lugar da minha, a inverter a ordem das coisas, a embaralhar as lembranças, a comer
arroz com açúcar? Pela seleção subjetiva da memória, que conserva alguns momentos
ou mentaliza passagens que mais tenham marcado a criança, fica difícil separar o que de
fato se passou entre quatro paredes de uma remota sala de aula da década de 1950. No
frigir dos ovos, essa seleção rememorativa tende a reforçar o gosto da criança pela
literatura, ao compor, de forma ingênua, poemas e dramatizações sobre temas
patrióticos, já na quarta série primária. Ou ainda de ter sido escolhida a oradora da
turma, discurso redigido numa sentada, embora contendo uma página e meia, mas lido
diante de um auditório repleto. A foto desse momento estampa um vestido rodado, de
cor rosa, sapato preto e meia soquete, penteado preso em pequeno coque e papel em
punho, remetendo, sem dúvida, para a carreira a ser abraçada pela jovem formanda, a
de professora universitária, com atuação na vida acadêmica e pública.
A ousadia se mesclava à timidez, componentes de minha personalidade que ainda se
integram à versão adulta. A escrita da iniciante nas letras, por força da facilidade de
expressão e de certa ingenuidade, não era produto de muito esforço, assim como o
hábito de leitura, que passou de hábito a vício, de vício a obsessão. As composições –
termo utilizado no primário – eram redigidas com rigor e imaginação, mas sem a
vivacidade e criatividade que eram a marca registrada de uma colega do primário,
Cristina Leite, dotada de capacidade invejável na arte de narrar, principalmente quando
se expressava oralmente. Na interpretação que fazia na época, Cristina assim se
comportava por morar na fazenda, onde o cotidiano era bem mais animado do que o
nosso. Contava histórias que a gente custava a acreditar, misturando ficção e realidade,
reunindo peripécias infantis com fatos inacreditáveis. As professoras responsáveis pelas
horas de leitura se encantavam com a sua proeza. De feição distinta, minha tendência
era para o texto escrito, o que servia de escudo para a timidez, muitas vezes detectada
na performance oral. E se antes a redação fluía de modo a não revelar as dificuldades de
confecção, à escrita a que hoje me entrego, elaborada e sofrida, é produto desse
entusiasmo próprio das primeiras letras.
Na infância, o que mais me marcou como iniciação à leitora que hoje sou, foi o
presente dado pela minha mãe de um abajur de cabeceira, em cristal e com pingentes
brancos. Esse objeto mágico iluminava, em close, as letras pretas das páginas dos livros
de Monteiro Lobato, que devorava noite adentro. A leitura sempre foi, para mim, um
gesto solitário. Conviver com os livros é uma forma deliberada de encontrar prazer no
mundo imaginário trazido pela linguagem escrita. Os rituais de leitura complementam a
criação desse ambiente fascinante, particular e subjetivo do leitor. Os livros e a noite
guardam o mistério da ficção, do ato solitário se deslocar em direção à experiência do
outro, ao espaço que ultrapassa nosso tão prosaico cotidiano.
A escola sempre foi para mim o prolongamento do ambiente familiar, pois minha
mãe, Lilita Carvalho, lecionava português nos cursos ginasial e normal e minha
madrinha, Ilza Campos, era a diretora. Embora não gozasse de regalias, no íntimo me
sentia protegida, certa de que aquele novo espaço de convivência não me afastava dos
amigos próximos, nem da rede de relações sociais de meus pais. Acostumada a
manusear os livros das estantes de casa, e de perceber, desde cedo, minha vocação para
as letras, o tempo de leitura na escola não correspondia à liberdade sentida em casa.
Câmara Cascudo, Malba Tahan, Monteiro Lobato, entre outros escritores e divulgadores
do folclore e dos contos infantis, compunham, sem dúvida, a biblioteca de toda criança
desse período. Mas o que incentivava a comunicação mais vital entre as colegas eram as
brincadeiras realizadas nos recreios, as cantigas aprendidas nos períodos de lazer, entre
as quais o “Atirei o pau no gato”, “São Francisco entrou na roda” ou “Terezinha de Jesus”.
A descontração e a alegria iam ao lado da responsabilidade em cumprir os deveres de
casa, incluindo poemas a serem decorados, para serem recitados em sala de aula (quem
não se lembra, de cor, de “O vaga-lume”, de Fagundes Varela, de “A pátria”, de Olavo
Bilac?), além dos hinos cantados nos dias de hasteamento da bandeira ou de festas
cívicas. A “Parada” de sete de setembro – e não o “Desfile” – consistia na mais
importante festa do calendário escolar, dia no qual todos desfilavam sem pudor e se
sentiam engrandecidos pela oportunidade de render um culto à pátria. Tudo hoje ressoa
de forma mágica, pois fazíamos parte da elite da cidade e, embora vivêssemos
modestamente, o limite de nosso mundo não se fechava nas montanhas.
A primeira professora deixou marcas nesta história inventada de meu curso primário.
Dona Beatriz Pacini, viúva jovem e bonita, nos encantava com sua maneira especial de
ensinar, reunia outro atrativo aos olhos dos alunos do primário: não repetia nenhuma
blusa durante os cinco dias de aula na semana, sendo todas de muito bom gosto.
Compunha sua figura o sorriso largo, o batom vivo e o corpo bem feito. A grande
variedade de blusas de seu guarda-roupa ganhava mais brilho com o uso do cinto largo
de elástico, arrematando a beleza de seu traje. Ficamos tristes quando ela foi embora da
cidade para se casar de novo. (Professora que se preze não devia nunca abandonar os
alunos dessa forma.) As outras que se seguiram, Dona Nair Leite, Carmelita Leitão, não
preencheram o vazio da primeira. Ainda mais que as matérias iam se tornando mais
complexas, ou menos atraentes para mim, como matemática, trabalhos manuais,
desenho.
É forçoso lembrar que as experiências feitas nas aulas de ciência contribuíam para o
contato mais sistematizado com a natureza, as plantas, as árvores, os animais. O dever
de casa relativo ao estudo da fotossíntese, por exemplo, teve a ajuda de um colega,
Etelvino Bechara, uma vez que sua inteligência e trato com a matéria me aliviavam nos
trabalhos. Ele se tornou um dos grandes pesquisadores da USP, na área de química. O
que me atraía, contudo, no momento, era o aprendizado da música, por meio do estudo
do piano, e o convívio constante com a literatura. As partituras serviam para a leitura do
repertório clássico, o ouvido, para criar arranjos de música popular. O gosto adocicado
do arroz mostrava ainda a força da inversão dos objetos e das intenções sempre fora do
lugar.
As dramatizações realizadas no âmbito da escola – a história de dona Baratinha e
Dom Ratão, por exemplo – completavam o aprendizado oficial, as provas orais de final
de ano, os prêmios aos melhores alunos, o respeito aos mestres e funcionários.
Aprendíamos a ser atores mirins, decorando poemas, repetindo cenas da história
brasileira, copiando lições nos cadernos de caligrafia para melhorar a letra, gravando
datas e acontecimentos significativos da história, saberes que são muitas vezes
questionados pelos métodos modernos de ensino. Com as falhas e vazios presentes na
estrutura curricular da escola primária ao longo desses 50 anos, poderia afirmar que
resta ainda um saldo positivo.
Nossa geração que vivenciou, de forma simultânea, o contato com as primeiras letras
e o restabelecimento da democracia no país, foi também espectadora do clima de
euforia do governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, do suicídio de Getúlio
Vargas, em 1954, dos acordes do samba-canção e do início da bossa-nova. Cantamos o
“Peixe vivo” por ocasião da visita de JK à escola e aplaudimos a chegada, na cidade, de
Milton Campos e Abgar Renault, respectivamente governador e secretário de Estado de
Minas Gerais, em sua recepção pelos professores da Escola Normal. Tornamo-nos
cúmplices da entrada da coca-cola nos lares brasileiros e da importação da calça
americana, hoje calça jeans, que iria substituir mais tarde os uniformes comportados da
escola e revolucionar os costumes do mundo inteiro. A morte de Getúlio, lembrada de
modo anedótico, não nos impressionou como devia. Aos olhos da infância, o que contava
era a suspensão das aulas. Voltamos alegres para casa com a notícia e fomos jogar
peteca na rua. O mesmo se deu com a morte de Evita Perón, em 1952, e a de Carmen
Miranda, em 1955. As notícias vinham pelo rádio, eram lidas nos jornais e, finalmente,
estampadas nas páginas coloridas de O Cruzeiro. Tomamos conhecimento da morte de
Evita pelas páginas da revista: os boatos sobre as armadilhas existentes no Palácio do
Governo, seu guarda-roupa luxuoso e sua rica coleção de sapatos. A lembrança está
vinculada ao fato de mamãe ter quebrado a perna na escada da escola e de meu pai ter
comprado revistas para ela se distrair enquanto estava impedida de se mover.
De Carmen Miranda, a impressão até hoje viva de sua foto mortuária, em que aparecia
maquiada e trajando um tailleur vermelho. A leitura de revistas ou de revistas em
quadrinhos em casa não era um hábito, assim como a compra de frutas estrangeiras,
dentre elas a maçã argentina, pois além de custar caro, eram de difícil acesso.
Curiosamente, a década de 1950 iria ser objeto de minhas atuais pesquisas acadêmicas,
ao reunir os estudos de literatura e crítica cultural à política, às artes e à própria
biografia. Compor fragmentariamente este período continua sendo para mim uma
forma de discorrer também sobre minha geração, de esclarecer pontos obscuros da
história individual e de contribuir para a transmissão de um recado aos futuros leitores
do país.
(Ensaio publicado em: NUNES, Maria Therezinha; TEIXEIRA, Maria das Graças; GARCIA, Maria
Mello; ANDRADE, Therezinha (Org.). Ecos do passado – memórias da infância e da escola no século
XX. Belo Horizonte: O Lutador, 2010. p. 44-48.)
Notas
Apresentação
1.
Cf. PIGLIA. Respiração artificial; PIGLIA. El último lector; RAMOS. Saber do outro.
Escritura e oralidade no Facundo de Domingos Faustino Sarmiento, p. 31-45; MIGNOLO.
Histórias locais, projetos globais; MOLLOY. Vale o escrito – a escrita autobiográfica na
América Hispânica.
↩
2.
SOUZA. Correspondência – Mário de Andrade & Henriqueta Lisboa.
↩
3.
SOUZA. Pedro Nava – o risco da memória; SOUZA. Pedro Nava.
↩
4.
RANCIÈRE. A partilha do sensível. Estética e política, p. 53-59.
↩
5.
SOUZA. O século de Borges.
↩
6.
SOUZA. Tempo de pós-crítica.
↩
7.
SOUZA. A crítica em palimpsesto – reflexões sobre a obra de Luiz Costa Lima.
↩
8.
MIRANDA, SOUZA (Org.). Navegar é preciso, viver. Escritos para Silviano Santiago;
SOUZA. Márioswald pós-moderno, p. 23-50.
↩
9.
BEAUJOUR. Miroirs d’encre.
↩
10.
BORGES. O espelho de tinta.
↩
A crítica biográfica
1.
SCHNEIDER. Morts imaginaires.
↩
2.
Cf. SONTAG. A doença e suas metáforas; SONTAG. A Aids e suas metáforas.
↩
3.
BARTHES. Roland Barthes por Roland Barthes, p. 35.
↩
4.
SANTIAGO. Em liberdade; SANTIAGO. Viagem ao México.
↩
5.
Cf. meu livro Pedro Nava – o risco da memória, especialmente o capítulo inicial sobre
sua morte. Sem me preocupar com a razão do suicídio do escritor, analiso o
acontecimento segundo critérios ligados à elucidação da modernização urbana do final
do século 20, do lugar deslocado do sujeito diante das mudanças operadas pelo tempo.
De flâneur o escritor passa a voyeur, além de se integrar ao patrimônio da cidade do Rio
de Janeiro, no momento em que comete suicídio em pleno espaço público, lugar que
soube tão bem lutar por sua preservação. SOUZA. Pedro Nava – o risco da memória.
↩
6.
JEANNELLE. Où en est la réflexion sur l’autofiction?, p. 17.
↩
7.
DOUBROVSKY. Les points sur les “i”, p. 63-64. (Tradução da autora).
↩
8.
AGAMBEN. Ce qui reste d’Auschwitz, p. 164.
↩
9.
O artigo de Maryse Vassevière, “Autofiction et mentir-vrai chez Aragon: les aveux de la
génétique”, define com clareza esta proposta teórico/poética do escritor: “Porque em
Aragon, o discurso autobiográfico tem sempre anseio do necessário desvio pela ficção. É
o que ele teorizou sob o nome de mentir-verdadeiramente e que se pode considerar seja
como uma pura teoria do romance se o acento é colocado sobre o mentir, seja como um
território no vasto continente da autoficção se se coloca o acento sobre o verdadeiro.”
(Tradução da autora). VASSEVIÈRE. Autofiction et mentir-vrai chez Aragon: les aveux de
la génétique, p. 90.
↩
10.
SANTIAGO. Revista Aletria, n. 18, p. 178.
↩
Janelas indiscretas
1.
DEBORD. A sociedade do espetáculo, p. 14.
↩
2.
ARFUCH. O espaço biográfico – dilemas da subjetividade contemporânea, p. 96.
↩
3.
CAUQUELIN. L’exposition de soi – du journal intime aux webcams, p. 88.
↩
4.
DOUBROVSKY. Fils.
↩
5.
LIPOVETSKY. Les temps hypermodernes.
↩
6.
AUGÉ, Marc. Pour quoi vivons-nous?, p. 144.
↩
7.
BUCI-GLUCKSMANN. Esthétique de l’éphémère, p. 84.
↩
A biografia: um bem de arquivo
1.
HAY. A literatura dos escritores. Questões de crítica genética, p. 17.
↩
2.
Jacques Derrida, em entrevista concedida em 1995 sobre o tema do arquivo, já estava
sensível à mudança de suporte dos manuscritos: “Ainda no século 19, havia escritores
que recopiavam os manuscritos para vendê-los. Agora, pode-se imaginar que por razões
de autoridade, de legitimidade, os escritores vão multiplicar os rascunhos nos disquetes
para confiá-los às instituições de legitimação, porque ter seu “troço” no IMEC valoriza
alguém; há cada vez mais pessoas que têm vontade de depositar seu trabalho. E ser
aceito no IMEC, é como já ser publicado na Gallimard. Então, permanecem lutas
terríveis, e lutas que acontecem também no interior da universidade. (Tradução da
autora) DERRIDA. Archive et brouillon. Table ronde du 17 juin 1995, p. 207-208.
↩
3.
A bibliografia sobre este tema é vasta. Tomo a liberdade de citar alguns títulos de minha
predileção. Entre os autores escolhidos, estão: a) para a crítica biográfica: Nathalie
Heinich, Être écrivain. Création et identité; e La gloire de Van Gogh. Essais de
l’anthropologie de l’admiration; Michel Schneider, Mortes imaginárias; e Marilyn,
últimas sessões; Roland Barthes, Roland Barthes por Roland Barthes; Georges Perec,
Penser/classer; Les choses; e Espèces d’espaces; Maria Helena Werneck, O homem
encadernado, Machado de Assis na escrita das biografias. b) para a crítica textual e
genética: Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda (Org.). Arquivos literários;
Michel Contat e Daniel Ferrer, Pourquoi la critique génétique?; Almuth Grésillon,
Elementos de crítica genética; Louis Hay, A literatura dos escritores. Questões de crítica
genética.
↩
4.
Cf. artigo de minha autoria, “Notas sobre a crítica biográfica”, p. 105-113.
↩
5.
Cf. SOUZA. Pedro Nava – o risco da memória, p. 113.
↩
6.
PEREC. Penser/classer, p. 22-23. (Tradução da autora).
↩
7.
SÁNCHEZ. Coleccionismo y literatura, p. 118. (Tradução da autora).
↩
8.
BENJAMIN. Desempacotando minha biblioteca, p. 234.
↩
9.
Os originais foram transcritos, anotados e editados por Reinaldo Marques, Georg Otte e
por mim, na condição de pesquisadores do Acervo de Escritores Mineiros do Centro de
Estudos Literários da UFMG.
↩
10.
GALVÃO. Rapsodo do sertão: da lexicogenêse à mitopoese, p. 149.
↩
11.
Trata-se de recortes de anúncios de jornal, em alemão, recortados e colados; as datas
foram manuscritas nas margens. Tradução de Georg Otte.
↩
Biografar é metaforizar o real
1.
Santiago. 2007. Direção de João Moreira Salles; fotografia de Walter Carvalho; produção
de Maurício Andrade Ramos; trilha sonora de João Saldanha.
↩
2.
MATTOS, Carlos Alberto. O senhor dos salões. Disponível em:
<http://eglobo.com/blogs/docblog/posts/2007/03/23> Acesso em: 23 jan. 2011.
↩
Freud explica
1.
SVEVO. A consciência de Zeno.
↩
A traição autobiográfica
1.
LÉVI. O século de Sartre, p. 246.
↩
2.
SARTRE. As palavras.
↩
3.
COHEN-SOLAL. Sartre.
↩
As mortes imaginárias de Pessoa
1.
SCHWOB. Vidas imaginárias.
↩
2.
SCHWOB. Vidas imaginárias, p. 10.
↩
3.
SCHNEIDER. Morts imaginaires.
↩
4.
SCHNEIDER. Morts imaginaires, p. 278-279.
↩
5.
KODAMA. Entrevista, p. 1. Nas palavras de Luis Bilbao, Borges, “como o Tenente Henry
de Adeus às armas, foi viver com sua amada num hotel da Suíça”. A ficção e seus modelos
sempre acompanhando os atos do escritor.
↩
6.
BARTHES. Aula, p. 46.
↩
7.
PESSOA. Primeiro Fausto; passagem das horas, p. 454-455.
↩
8.
PESSOA. Primeiro Fausto; passagem das horas, p. 345.
↩
9.
O encontro entre Pessoa e Borges já fora imaginado pelo crítico uruguaio, Emir
Rodriguez Monegal, no artigo “Borges, auteur de Fernando Pessoa”, em Magazine
Littéraire, de 1988.
↩
10.
TABUCCHI. Os três últimos dias de Fernando Pessoa, p. 61.
↩
11.
PERRONE-MOISÉS. Pensar é estar doente dos olhos, p. 344.
↩
12.
TABUCCHI. Os três últimos dias de Fernando Pessoa, p. 23.
↩
13.
SARAMAGO. O ano da morte de Ricardo Reis, p. 427-428.
↩
A memória de Borges
1.
VILA-MATAS. Doutor Pasavento.
↩
2.
JELLOUN. L’enfant de sable.
↩
3.
HELFT; PAULS. El factor Borges. Nueve ensaios ilustrados.
↩
4.
VILA-MATAS. Doutor Pasavento, p. 20.
↩
5.
HELFT; PAULS. El factor Borges. Nueve ensaios ilustrados, p. 134-135.
↩
6.
BORGES. Une lo útil a lo agradable, p. 143.
↩
7.
JELLOU. L’enfant de sable, p. 173.
↩
8.
LUDMER. Comment sortir de Borges?. (Trdução da autora).
↩
9.
LUDMER. Comment sortir de Borges?, p. 10. (Trdução da autora).
↩
10.
SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latino-americano.
↩
11.
SANTIAGO. Literatura é paradoxo.
↩
12.
SANTIAGO. Borges, p. 434.
↩
Cyro dos Anjos: a verdade está na Rua Erê
1.
VILA-MATAS. Bartleby e companhia, p. 10.
↩
2.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 227.
↩
3.
“Um efêmero sem melancolia, que retrabalharia, no precário e no frágil, os estratos do
tempo, suas paisagens e seus imaginários, a ponto de se entregar a este ‘espaço
vibrante’ onde sonhava Matisse. Como dizia Edgar Poe: ‘Nosso futuro está no ar’.” BUCI-
GLUCKSMANN. Esthétique de l’éphémère, p. 73. (Tradução da autora).
↩
4.
BUCI-GLUCKSMANN. Esthétique de l’éphémère, p. 84. (Tradução da autora).
↩
5.
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 11-13.
↩
6.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 95.
↩
7.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 41.
↩
8.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 27.
↩
9.
DELEUZE. Crítica e clínica, p. 91.
↩
10.
ANJOS. Política da amizade, p. 186.
↩
11.
ANJOS. A menina do sobrado, p. 274.
↩
12.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 30.
↩
13.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 31.
↩
14.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 205.
↩
15.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 99.
↩
16.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 227.
↩
17.
ANJOS. O amanuense Belmiro, p. 395-396.
↩
18.
ALPHONSUS. O discurso de João Alphonsus. Folha de Minas, p. 181.
↩
19.
ALPHONSUS. O discurso de João Alphonsus Folha de Minas, p. 180.
↩
20.
ALPHONSUS. O romancista e seus personagens.
↩
O avesso da escrita: intelectuais a serviço de JK
1.
WERNECK. O desatino da rapaziada, p. 134.
↩
2.
DOURADO. Gaiola aberta, p. 167.
↩
3.
Projeto desenvolvido como bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq de março de
2005 a março de 2008.
↩
4.
BOJUNGA. JK – o artista do impossível, p. 506.
↩
5.
Discurso de Juscelino Kubitschek na inauguração da Exposição de Arte Moderna de
1944. Folha de Minas, Belo Horizonte, 7 maio 1944.
↩
6.
LODI. Avaliação do quadro Retrato do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, de
Alberto da Veiga Guignard.
↩
7.
LAGES. Proposta de restauração da pintura Retrato de J. K. – Alberto da Veiga Guignard.
↩
8.
FRIEIRO. Novo diário, p. 161.
↩
9.
RUBIÃO. O edifício.
↩
10.
GOMES. Modernização e controle social – planejamento, muro e controle espacial, p.
201.
↩
11.
ARRIGUCCI. Folha de S.Paulo, 11 abr. 1998.
↩
12.
Os componentes da revista, quase todos pertencentes ao partido comunista, são os
seguintes: Wilson Figueiredo (secretário), Valdomiro Autran Dourado (redator-chefe);
redatores (Sábato Magaldi, Francisco Iglésias, Pedro Paulo Ernesto, Edmur Fonseca e
Walter Andrade). Outros contistas, poetas e ensaístas são igualmente representativos
dessa geração: Jacques do Prado Brandão, Marco Antonio Tavares Coelho, Octavio
Alvarenga e Pontes de Paula Lima.
↩
13.
LAFETÁ. Revista de Teoria Literária e Literatura Comparada, p. 30.
↩
14.
DOURADO. Gaiola aberta. Tempo de JK e de Schmidt.
↩
Memórias imperfeitas
1.
ANDRADE. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter.
↩
Macunaíma: quem é você?
1.
ANDRADE. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter.
↩
Macunaíma de Daibert
1.
ANDRADE. Querida Henriqueta. Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa, p. 57.
↩
2.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo.
↩
3.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo, p. 25-26.
↩
4.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo, p. 21.
↩
5.
Carta de Arlindo Daibert a Pedro Nava, de 2 de junho de 1981.
↩
6.
Carta de Pedro Nava a Arlindo Daibert, cuja cópia foi cedida pelo artista durante a
exposição “Mário de Andrade – Carta aos Mineiros”, de 1993, realizada em Belo
Horizonte, sob a curadoria de Eneida Maria de Souza e Paulo Schmidt. A carta foi
reproduzida em SOUZA; SCHMIDT (Org.). Mário de Andrade – carta aos mineiros, p. 155-
156.
↩
7.
NAVA. Beira-mar/memórias 4, p. 190.
↩
8.
BARTHES. A câmara clara.
↩
9.
NAVA. Beira-mar/memórias 4, p. 191.
↩
10.
DAIBERT. Macunaíma de Andrade – diário de bordo, p. 16.
↩
11.
ANDRADE. A visita. O Banco de Boston fez uma edição fac-similar. O poema foi incluído,
mais tarde, nos livros Reunião e A paixão medida (Rio de Janeiro: Record, 1996).
↩
12.
DOURADO. Tempo de Mário e outros tempos, p. 115.
↩
13.
SOUZA. A pedra mágica do discurso.
↩
Amizade modernista
1.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 10.
↩
2.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário.
↩
3.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 504.
↩
4.
BATAILLE. A noção de despesa.
↩
5.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 13.
↩
6.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 523.
↩
7.
SANTIAGO; FROTA (Org.). Carlos & Mário, p. 478.
↩
8.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 475.
↩
9.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 497.
↩
“Márioswald” pós-moderno
1.
SANTIAGO. Caíram as fichas.
↩
2.
“…o Modernismo de 22 é enterrado em 1936 ao repicar dos sinos maniqueus (nitidez na
oposição de luz e sombra, de Deus e Diabo, de catolicismo e comunismo). As vozes dos
sinos guerreiros traçam o perfil do intelectual intolerante, de feição totalitária e bem
pouco democrático nas suas intenções revolucionárias, pois deseja modernizar o Brasil
e atualizar a sua arte pela destruição do seu oposto.” SANTIAGO. Fechado para balanço,
p. 78.
↩
3.
Cf. a dissertação de Roniere Menezes, Notas de um turista canibal, p. 173., Ao discorrer
sobre a relação entre Mário de Andrade e a música popular urbana, enfoca o trecho
sobre as canções “Amélia” e “Praça Onze”, contida em carta enviada a Moacir Werneck
de Castro, em 19 fev. 1942: “Os sambas trazem para Mário de Andrade aquele aspecto
artístico do inesperado, aquela comoção que põe de pé o ouvinte, pela riqueza de vida
pulsante, cotidiana, simples, irônica e dramática.”
↩
4.
“O artista brasileiro, dublê de intelectual, deve ser ator e não mais espectador, ensina
Mário. Por isso, a vida é mais importante do que a literatura; o trato do corpo é tão
importante quanto o trato da cabeça. Caminhar a pé e escutar uma tocata de Bach, o
gozo do corpo e o gozo do livro – essas atividades não se excluem, elas se
complementam.” SANTIAGO. Atração do mundo, p. 28.
↩
5.
Cf. SANTIAGO. Poder e alegria – a literatura brasileira pós-64 – reflexões, p. 20-22.
↩
6.
SANTIAGO. Caíram as fichas, p. 192.
↩
7.
SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latino-americano.
↩
8.
SANTIAGO. Literatura é paradoxo, p. 4.
↩
9.
SANTIAGO. Borges, p. 43.
↩
10.
“A questão é a seguinte: de que maneira a estética do romance modernista gera hoje,
para o jovem escritor brasileiro, armadilhas artísticas e ideológicas de que ele deve se
liberar, para que corte de uma vez por todas o cordão umbilical que ainda o prenderia a
esses ‘mestres do passado’, para usar a gloriosa expressão de Mário de Andrade em
contexto passado e semelhante. Pensamos assim porque o projeto básico do
Modernismo – que era o da atualização da nossa arte através de uma escrita de
vanguarda e o da modernização da nossa sociedade através de um governo
revolucionário e autoritário – já foi executado, ainda que discordemos da maneira como
a modernização foi implantada entre nós.” SANTIAGO. Fechado para balanço, p.76.
↩
11.
SANTIAGO. Fechado para balanço, p. 88.
↩
12.
“Ao fazê-lo, configura questões que nortearão, ao longo das décadas de 80 e 90, as
discussões sobre o pós-modernismo, em que a compreensão da pluralidade e da
desierarquização vai implicar, além da relativização dos valores estéticos modernos, a
reativação de uma visada antropológica, igualmente atenta à função estética e política
de diferentes níveis de manifestação cultural. As instigantes polêmicas provocadas por
essa orientação apontam, entre outras motivações, para a polarização entre duas formas
de definição de nosso pensamento acadêmico a partir da metade do século 20, que
repõem em termos específicos uma tradicional luta pela hegemonia cultural no interior
do eixo Rio-São Paulo.” PEDROSA. Crítica e grouxismo, p. 238.
↩
13.
SANTIAGO. Atração do mundo, p. 38-39.
↩
14.
Cf. SANTIAGO. Intérpretes do Brasil.
↩
15.
“Só de posse destes e de outros dados sobre a atuação política dos modernistas é que se
poderá ter uma visão menos adocicada, menos unilateral, ou menos maniqueísta
daquele movimento artístico e dos seus participantes, podendo o espírito crítico de hoje
problematizar situações, aliando à segurança da leitura rigorosa do texto o pleno
conhecimento de dados empíricos.” SANTIAGO. O teorema de Walnice e sua recíproca, p.
83.
↩
16.
ANDRADE. Sol da meia-noite, p. 63 apud SANTIAGO. O entre-lugar do discurso latino-
americano, p. 18.
↩
17.
SANTIAGO. Oswald de Andrade ou: elogio da tolerância étnica, p. 77.
↩
18.
SANTIAGO. Atração do mundo, p. 27.
↩
19.
SANTIAGO. Apesar de dependente, universal. Cf. ainda meus artigos: “Estéticas da
ruptura” e “O discurso crítico brasileiro”, contidos em SOUZA. Crítica cult.
↩
20.
MORICONI. Conflito e integração. A pedagogia e a pedagogia do poema em Antonio
Candido – notas de trabalho, p. 267.
↩
21.
“O Oswald de Andrade, que eu costumo citar com alguma frequência, é o ópio: ‘a massa
ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico’; em outras palavras, acredito mais na
educação do que no saber da massa. Quer dizer, esse saber da massa não pode ser
trabalhado pela cultura, ele não pode consumir a cultura que eu fabrico, porém, se
houver educação, se esse pessoal for preparado, eles vão consumir. (…) É, deslocam o
Mário porque ele inegavelmente tem mais abertura para o saber popular. E Oswald de
Andrade não tem essa abertura; ele tem abertura para uma estetização do popular, mas
não para o saber popular.” SANTIAGO. Um intelectual entre a vanguarda e o consumo, p.
213-214.
↩
22.
SANTIAGO. Crescendo durante a guerra numa província ultramarinha.
↩
23.
Mais próximo da proposta de cinema de David Lynch, O falso mentiroso descarta
qualquer tentativa de definição do sentido de autobiografia, autoficção, ao jogar com a
mentira como ponto de partida do ficcional. O romance, pelo tom picaresco das
aventuras e a natureza grotesca das situações, remete para as Memórias sentimentais de
João Miramar. Distancia-se, contudo, da estrutura fragmentada da poética oswaldiana.
SANTIAGO. O falso mentiroso.
↩
24.
SANTIAGO. O dentro do dentro do dentro.
↩
25.
Cf. artigos de SCHWARZ. Cultura e política: 1964-1969; Nacional por subtração. Cf.
também os artigos de CUNHA. Leituras de dependência cultural; SOUZA. Estéticas da
ruptura; O discurso crítico brasileiro.
↩
26.
SANTIAGO. Em liberdade. Uma ficção de Silviano Santiago.
↩
27.
MIRANDA. Corpos escritos, p.118.
↩
28.
BATAILLE. A noção de despesa, p. 30.
↩
29.
Cf. BORGES. Georges Bataille: imagens do êxtase.
↩
30.
KOSALKA. Georges Bataille and the notion of gift.
↩
31.
SANTIAGO. Atração do mundo, p. 28; SANTIAGO. Apresentação, p. 15.
↩
32.
SANTIAGO. Stella Manhatan, p. 68-71.
↩
33.
SANTIAGO. Viagem ao México, p. 212.
↩
34.
Em várias de suas cartas endereçadas aos amigos, Mário de Andrade expõe sua teoria
sobre criação poética, associando-a ao orgasmo e ao prazer. Para Fernando Sabino,
assim se expressa: “Não: a arte não é um sofrimento, exatamente, nem é só o sofrimento
que a pode legitimamente proporcionar. O momento da criação é um prazer sublime, e
estou completamente em desacordo com os que o consideram um parto. Nem posso
compreender mesmo essa assimilação da criação artística com o parto. Deriva
certamente da semelhança objetiva, entre o filho e a obra de arte. O momento de criação
é gostosíssimo, verdadeiramente aquela sublimidade de integração e de dadivosidade
do ser, em que a gente fica na ejaculação sexual.” ANDRADE. Cartas a um jovem escritor:
de Mário de Andrade a Fernando Sabino. Carta de 16 fev. 1942.
↩
35.
Em 1973, a formulação do conceito de escrita como prazer será sistematizada por
Roland Barthes, no livro O prazer do texto, o que provocou muita polêmica por parte da
crítica literária da época. Ao considerar a literatura como mediadora da dimensão
hedonística entre o escritor e o leitor, em que o prazer atua como força criadora e
catártica, Barthes reúne os princípios nietzschianos à psicanálise lacaniana,
recuperando a relação entre o trabalho literário, o ócio e a alegria.
↩
36.
SANTIAGO. Entrevista: Viagem ao México. Concedida por Silviano Santiago à revista
Imagem.
↩
37.
SANTIAGO. Conversei ontem à tardinha com o nosso querido Carlos, p. 170.
↩
38.
SANTIAGO. Poder e alegria – a literatura brasileira pós-64 – reflexões.
↩
39.
SANTIAGO. O tempo não para.
↩
40.
SANTIAGO. O narrador pós-moderno, p. 46-47.
↩
41.
SANTIAGO. Hello, Dolly!, p. 156.
↩