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GISELLE:

UM CONTO GÓTICO NO BALÉ

Verônica Valadares (UnB)1

Resumo: Inspirado no poema “Fantômes” em Les Orientales (1829), de Victor Hugo, e na


descrição da lenda das Willis feita por Henrich Heine em uma passagem de De l’Allemagne
(1855), Giselle é considerado a epítome do balé romântico. Em Giselle, são salientados temas
como a fuga para a natureza, representada pela idealização da vida no campo, a dicotomia entre
o real e o sobrenatural e a idealização da figura feminina como ser etéreo e inalcançável.
Embasado na obra de Cyril W. Beaumont (1944) e Marian Smith (2010) sobre a concepção e
repercussão do balé Giselle e à luz da definição do gênero gótico, partindo da Literatura, como
visto em Fred Botting (1996) e levando em conta a subdivisão do gênero no chamado Gótico
Feminino, como proposto por Ellen Moers (1976), este artigo tem como intenção propor uma
nova interpretação de Giselle. Não mais um conto trágico, serão explorados os elementos que
tornam o balé Giselle uma narrativa gótica que expõe as tensões sociais surgidas após a
Revolução Francesa, e que permeiam todo o século XIX, e a latente influência de uma
sociedade fortemente patriarcal no destino de Giselle.

Palavras-chave: Ficção gótica; Gótico feminino; Giselle; balé

1
Bacharel em Letras – Português (UnB), Mestre em Literatura (UnB), doutoranda em Literatura no
Programa de Pós-Graduação em Literatura (PósLit/UnB). E-mail: veronica.valadares@gmail.com

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Introdução
É possível que poucas histórias mexam tanto com nosso imaginário quanto as
chamadas “Cinderella stories”. São histórias que trazem como mote principal a ascensão
social, comumente de uma jovem, o que muitas vezes, considerando a época em que tais
histórias se popularizaram, dava-se por meio de casamentos vantajosos.
O balé Giselle (1841), no entanto, não é uma “Cinderela story”, apesar de dar
todas as pistas de que poderia ser. Giselle é enganada por aquele que parecia ser seu
Príncipe Encantado, ainda que disfarçado de plebeu. Assim, a jovem camponesa, que
antes tinha a dança como seu maior prazer, morre e passa a fazer parte de uma horda de
espectros vingativos que usa a dança como sua arma mais letal.
No lugar de um conto de fadas tradicional, nos deparamos com uma narrativa
com contornos góticos, que encontra no sobrenatural uma maneira de transgredir
convenções e hierarquias sociais; convenções e hierarquias estas diretamente
responsáveis pela tragédia de Giselle.
A ficção gótica veio ganhando novas facetas desde seu surgimento no final
século XVIII, e o ensaio de Ellen Moers na obra Literary Women (1976), em que a
estudiosa estabelece o termo “Female Gothic” — daqui em diante traduzido como
“gótico feminino” —, colocou o gótico em um campo essencialmente feminino. A
influência feminina na ficção gótica se dá tanto pelo amplo número de autoras que se
dedicaram particularmente a esse tipo de literatura, a começar por Ann Radcliffe,
considerada a mão do romance gótico, quanto pelos temas que lhe são intrínsecos.
Jovens presas em castelos em ruínas, ambientação que, com o passar dos anos foi se
modernizando e ficando mais doméstica, ameaçadas pelo sempre presente Vilão Gótico,
que busca satisfação material ou sexual.
Giselle, no entanto, apresenta um problema interpretativo por não seguir esse
padrão narrativo à risca, não existindo nem espaço físico de aprisionamento, tampouco
um vilão definitivo; afinal, quem poderia preencher esse papel? Albrecht, o duque, com
sua enganação? Hilarion com sua possessividade? Ou Myrtha, a Rainha das Willis, com
sua fúria insaciável?
No entanto, a forma gótica está logo ali, abaixo da superfície, com sua crítica
social disfarçada de história de terror, expondo um conflito gerado por privilégio social
e de gênero que acaba levando Giselle à morte.

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Bem me quer... mal me quer...
Giselle, ou Les Willis — Balé fantastique en deux actes estreou na Opéra de
Paris em 1841 e desde então é considerado, nas palavras de Cyril Beaumont, a
“realização suprema”, a epítome do balé romântico, período que vai da estreia de La
Sylphide, em 1827, até a estreia de Coppelia, em 1870.
O escritor francês Théophile Gautier foi responsável pelo libreto e, contando
com seu profundo apreço pelo chamado conte fantastique — daí o subtítulo “balé
fantastique”, aquele com narrativa focada no mundo espiritual e sobrenatural —, teve
sua imaginação aguçada ao encontrar em De l’Allemagne (1855), conjunto de ensaios
nostálgicos de Henrich Heine sobre a nação germânica, uma passagem descrevendo a
lenda das willis.

Em uma parte de l’Autriche, há uma lenda que oferece certas


semelhanças com as anteriores, mesmo que ela seja de origem eslava.
É a lenda das dançarinas noturnas, conhecidas nos países eslavos com
o nome de “willi”. As willis são as noivas que morreram antes das
núpcias, pobres jovens que não podem descansar tranquilas na tumba.
Em seus corações extintos, em seus pés mortos ainda resta o amor
pela dança que elas não puderam satisfazer em vida; à meia-noite, elas
se levantam, se reúnem em grupos em uma grande estrada; e
desafortunado o jovem rapaz que as encontre! Ele deve dançar com
elas, elas o enlaçam com um desejo desenfreado, e ele dança com elas
até que caia morto. Vestidas com suas roupas de casamento, com
grinaldas na cabeça, anéis brilhantes em seus dedos, as willis dançam
à luz do luar como os elfos. Sua figura, embora branca como a neve, é
de beleza jovial; elas riem com uma alegria terrível, elas vos chamam
com sedução, com ar de doces promessas! Essas bacantes mortas são
irresistíveis! (HEINE, 1981, p. 309, tradução nossa)

À moda da época, Giselle foi concebido como um balé em dois atos, um terreno
e o outro sobrenatural. Esse primeiro contraste já mostra o embate Romântico “entre dia
e noite, civilização e caos, terra e ar, e os mundos físico e espititual” (Audience
Production Guide for Pittsburgh Balé Theatre’s Giselle, 2012, p. 4)
O primeiro ato apresenta a protagonista, Giselle, uma jovem camponesa que ama
dançar, apesar de sua saúde frágil e das preocupadas recomendações de sua mãe. Com
uma narrativa in media res, não se sabe ao certo como eles se conheceram, mas Giselle
está enamorada de Loys; Loys, no entanto, é um duque disfarçado, cujo nome
verdadeiro é Albrecht, e está noivo da duquesa Bathilde. Surge, então, Hilarion, caçador
habitante do vilarejo e também apaixonado por Giselle; a moça, no entanto, recusa suas

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investidas, o que o deixa ainda mais empenhado em descobrir se suas suspeitas de que
Loys não seja quem diz ser estão certas.
O primeiro ato culmina no momento em que Hilarion monta uma armadilha e
faz com que a corte, que saíra para caçar nos arredores, incluindo a noiva de Albrecht, e
o duque disfarçado se encontrem, e assim mostra a espada ornamenta de Albrecht para
toda a vila, expondo sua verdadeira identidade. O choque é grande para todos, porém
para ninguém é maior do que para Giselle. Tem-se lugar, então, a chamada ‘Cena da
Loucura’, em que Giselle, cega pela traição, não suporta o peso de tal revelação e
morre.
A cena de abertura de Giselle já é indicativo de um dos temas centrais do balé;
nela se entrevê o castelo de Albrecht/Loys ao fundo e a humilde casa de Giselle na
lateral do palco. “O castelo é, ao mesmo tempo, um lembrete do nascimento nobre de
Loys e da dificuldade de transpor esse espaço entre castelo e chalé” (BERNKOPF,
2011, p. 31). Tal hierarquia social tão bem demarcada e engessada revela mais sobre a
natureza da enganação de Albrecht do que sobre a possibilidade de galgar barreiras
sociais para alcançar um clássico final feliz.
Quatro personagens são bem delineados no Ato I do balé. Do lado da corte,
Albrecht, que se apresenta como o camponês Loys, e Bathilde, sua noiva. Do lado da
vila, Hilarion, o guarda da caça, e a mãe de Giselle. Cada um deles se relaciona com
Giselle de uma forma particular e serve a uma função na história.
A mãe de Giselle cumpre a função da senhora sábia que prenuncia o que irá
acontecer. É ela que fala a Giselle — e ao público, por consequência — da existência
das willis, as jovens que morreram antes do casamento, e alerta a filha, já de saúde
frágil, de que ela não quer se tornar uma. Essa espécie de alerta é costumaz na ficção, o
que foi prenunciado irá ocorrer.
Bathilde, a outra personagem feminina de relevância no Ato I, age como a
perfeita contraparte de Giselle. Aristocrata, enquanto Giselle é plebeia; de postura
senhorial, contrabalanceando a liberdade campesina jovial dos movimentos de Giselle.
Em uma nota mais técnica, é válido notar que Bathilde não possui variação própria
(como são chamados as coreografias solo no balé clássico), assim como não faz uso das
características sapatilhas de ponta, acentuando a diferença entre ela e Giselle e
tornando-a visualmente distinta do ambiente do vilarejo.
No entanto, são os dois personagens masculinos que agem de forma mais efetiva
na trama de Giselle. O libreto não deixa clara a verdadeira natureza dos sentimentos de

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Albrecht por Giselle, ficando a cargo do bailarino e do diretor do espetáculo
trabalharem as nuances de interpretação. No entanto, o enredo, assim como a própria
mis-en-scène, dá indícios que possibilitam a interpretação da relação de Albrecht com
Giselle como um “passatempo” que foi longe demais.
Não se sabe quando ou há quanto tempo eles se conhecem, mas Albrecht se
mostra bastante empenhado em fazer Giselle acreditar ser o único alvo de sua afeição,
como é visto na cena do “bem me quer... mal me quer”.

O jogo é essencial, ele simboliza a enganação de Albrecht. Giselle


interrompe o jogo quando receia que a última pétala indique “mal me
quer”. Albrecht pega flor, arranca uma pétala e faz Giselle acreditar
que a previsão do jogo seria “bem me quer”. (Audience production
guide for Pittsburgh Balé Theatre’s Giselle, 2012, p. 7)

O que está implícito, porém, na decisão de Albrecht de levar uma vida dupla é
que ele assim o faz porque assim o pode. A narrativa de Giselle expõe o privilégio que
Albrecht possui tanto por seu status social, quanto por ser homem.
A exploração desse tipo de privilégio é um dos focos da literatura gótica, em
especial no chamado gótico feminino. O termo “Female Gothic” foi cunhado por Ellen
Moers para classificar obras da tradição gótica, desde o século XVIII, que foram
escritas por mulheres (MOERS, 1977, p. 90); para ela, a escrita feminina gótica era uma
expressão codificada do medo de aprisionamento, tanto físico quanto psicológico, que
as mulheres tinham em meio a uma sociedade essencialmente patriarcal.
O gótico feminino tende a apresentar uma narrativa em que a protagonista está
literalmente presa em um ambiente sob a ameaça de uma figura masculina, a origem
desse enredo pode ser traçada desde o conto do Barba Azul. No entanto, como Suzanne
Becker argumenta em Gothic Forms of Feminine Fiction (1999), o texto gótico não
necessariamente precisa ter sido escrito por uma mulher para ser classificado como
gótico feminino (p. 16). Com essa abordagem, é possível perceber como Giselle expõe
as mesmas questões apresentadas pelo gótico feminino mais tradicional, mesmo que o
libreto não tenha sido assinado por uma mulher. Também é verdade que o
aparentemente essencial ambiente físico de aprisionamento, uma casa ou castelo, não
está presente na narrativa de Giselle, esta prisão é mais sutil, é uma prisão psicológica e
social da qual nem mesmo ela se dá conta.

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Giselle se encontra presa a um triângulo amoroso entre Albrecht e Hilarion,
dinâmica que coloca Giselle a sofrer as consequências de uma briga de egos e interesses
entre os dois personagens masculinos.
O papel de Hilarion também abre espaço para interpretações diversas. A
depender de bailarino e diretor, seu grau de preocupação com o bem-estar e segurança
de Giselle varia de genuíno a uma tentativa de acabar com o romance entre a jovem e
Albrecht para que ele pudesse ter Giselle para si. Não obstante, sua função como parte
do triângulo amoroso permanece, assim como o fato de ser ele a desmascarar Albrecht.
Não contava ele que o choque da revelação levaria à morte prematura de Giselle.
Ainda não há consenso de como se deu a morte de Giselle. No libreto de
Gautier, a jovem tem um ataque do coração, ironia poética que cumpre a dupla função
de salientar uma enfermidade tanto física quanto psicológica, Giselle teve seu coração
“partido”. No entanto, em carta a Heine, Gautier diz que Giselle, em seu frenesi, se
matou usando a espada de Albrecht (WAINWRIGHT, S.P.; WILLIAMS, C., 2004, p.
80). Ainda que a versão do suicídio tenha sido suavizada, um resquício permanece: o
túmulo de Giselle, que se encontra no meio da floresta, em solo não consagrado, como
era a prática da época em casos de morte autoinfligida.
A ideia de alguém se matar por amor, enredo já perpetuado por Shakespeare,
está na base do Romantismo, como se pode ver em Os sofrimentos do jovem Werther
(1774), mas a associação de loucura com a figura feminina é algo que passou a ser
atrelado à ficção gótica. Com Jane Eyre (1847), Charlotte Brontë inauguraria a imagem
da chamada “louca do sótão”; posteriormente, outros escritores também dariam forma a
essa ideia (mesmo que sem o ambiente físico do sótão), como é o caso do vívido relato
de Charlotte Perkins Gilman de uma mulher com depressão, em O papel de parede
amarelo (1892), e da novela de Henry James, A volta do parafuso (1898), que, a
despeito das afirmações do próprio autor, ainda suscita interpretações diversas quanto à
confiabilidade do depoimento de sua narradora.
Na época em que tais obras foram escritas, os estudos sobre saúde mental ainda
eram insipientes, e variadas formas de enfermidade e mal-estar em mulheres eram todas
caracterizadas como histeria, palavra que tem origem no próprio fato de se ser mulher2,
criando uma doença particular ao sexo feminino e reforçando a ideia de que mulheres
são propensas à loucura.

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A palavra “histeria” vem do grego hystera e quer dizer “útero”. Até o final do século XIX, acreditava-se
ser um transtorno particular às mulheres causado por algum distúrbio no útero ou disfunção sexual.

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Para Dawn Urista, em sua tese sobre os métodos de encenação da Cena da
Loucura em Giselle (2011), “representações de loucura no palco também podem ter sido
uma forma dos artistas definirem ou revelarem as fortes e terríveis emoções humanas
que comumente estão por trás do amor passional” (p. 15). No teatro, Shakespeare
tornou icônica a figura de Hamlet; no balé, há o exemplo de Giselle; na ópera, podemos
encontrar uma contraparte em Lucia di Lammermoor (1835), de Gaetano Donizetti, obra
inspirada no romance histórico de Walter Scott, The Bride of Lammermoor (1819). O
romance de Scott possui claros contornos góticos, especialmente a imagem do quarto
nupcial de Lucy manchado de sangue (HOLLINGWORHT, 1984, p. 11).
Em Lucia di Lammermoor, a protagonista chega ao auge da loucura quando
mata seu noivo, Arturo, na noite de núpcias. Lucia estava apaixonada por Edgardo,
membro de uma família inimiga, e não se conformava com o fato de seu irmão tê-la
obrigado a casar-se com Arturo para conseguir uma aliança política vantajosa.
Tanto em Lucia di Lammermoor (e por extensão o romance no qual a ópera foi
inspirada), quanto em Giselle, o domínio masculino se faz presente, apesar do nome de
ambas as obras fazerem referência às protagonistas femininas, domínio este atrelado a
uma bem-delimitada estratificação social.
A Cena da Loucura em Giselle marca o fim do idílio e começo de algo muito
mais sombrio.

Danse Macabre
Poderíamos dizer que a literatura gótica possui duas frentes: uma real e uma
sobrenatural. Suas barreiras, no entanto, são difusas, sendo o sobrenatural amplamente
usado para exemplificar e expressar situações reais. “Espectros, monstros, demônios,
cadáveres, esqueletos, aristocratas malignos, monges e freiras, heroínas desmaiando e
bandidos povoam a paisagem gótica como figuras que sugerem ameaças imaginárias e
realistas” (BOTTING, 1996, p. 2).
O balé Giselle apresenta essa ambivalência em sua estrutura. Nove anos antes,
em 1832, a estreia do balé La Sylphide marcou o início da Era Romântica no balé. Foi
La Sylphide que estabeleceu a exploração de “o conflito entre o dia a dia mundano e o
fascinante e misterioso reino do sobrenatural” (SMITH, 2009, p. 257) que
posteriormente apareceria em Giselle. Gautier deixou-se influenciar enormemente por
La Sylphide para a concepção não só temática como estrutural de Giselle. Assim como

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La Sylphide, Giselle também trava este conflito entre o real e o sobrenatural, que é
apresentado na divisão em dois atos, prevalecendo o mundano no primeiro e o
fantasioso no segundo.
O Ato II de Giselle abre de forma misteriosa, em contraste com a jovialidade do
vilarejo no primeiro ato. Com o túmulo de Giselle sempre à vista em um canto do palco,
é mostrado um grupo de caçadores assustados, prontos para saírem da floresta porque já
anoitecia e logo começaria o domínio das willis. Não tarda muito para seres espectrais,
com vestidos brancos, cruzarem o palco.
Surgem, então, a Rainha das Willis, chamada de Myrtha por conta do raminho
de murta3 que traz consigo e usa para invocar as outras willis, grupo ao qual o espírito
de Giselle passa a fazer parte e cujo único propósito no além-vida é perseguir e matar
homens desavisados que se aventurem pela floresta após o anoitecer.
Na narrativa gótica, o uso do ambiente medieval ou castelos e abadias em ruínas
levava a uma volta ao passado, associada ao medo e às superstições (BOTTING, 1996,
p. 2). Em Giselle, é o ambiente campestre que dá vazão à superstição e ao sobrenatural.
Tal é a ambivalência Romântica, dividida entre o progresso da cidade grande e o
resquício árcade de uma idílica vida no campo. Em Giselle, porém, esse idílio campestre
ganha contornos de pesadelo. “Aproveitando os mitos, lendas e folclore dos romances
medievais, o gótico evoca mundos mágicos, [...] associados com selvageria, [...] uma
superabundância de frenesi imaginativo” (BOTTING, 1996, p. 2).
Assim se abre espaço para a lenda das willis, que surgem no sugestivo ambiente
da floresta, cuja tradição dos contos de fadas já alertava ser um lugar que seria sábio
evitar.
É válido notar que não existe um consenso de por que exatamente Giselle
precisou tornar-se uma willi além da explicação pragmática da já citada influência de
Henrich Heine. No entanto, pistas foram deixadas, sobre as quais nos debruçaremos
para tentar conectá-las. A questão do possível suicídio já foi abordada, o que explicaria
essa espécie de aprisionamento entre o mundo dos vivos e dos mortos. A palavra-chave
aqui, porém, seria “jilted”, termo utilizado por Cyril Beaumont em The Balé Called
Giselle, e que significa ser abandonado pela pessoa amada. As willis foram abandonadas
em um malfadado romance, o que “não apenas indica a morte prematura dessas

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É costume na Europa usar flores de murta nos buquês de noiva. Na Grécia Antiga, a murta era associada à Afrodite,
a deusa do amor e da fertilidade, e usada pelas mulheres em rituais em sua homenagem.

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donzelas, como provê uma explicação razoável para sua vingança amarga contra o sexo
oposto” (1969, p. 20).
Fred Botting explica que

gótico significa uma escrita de excesso. Ele aparece na terrível


obscuridade que assombrava a racionalidade e moralidade do século
XVIII. Ele sombreia os êxtases desesperados do idealismo e
individualismo romântico e a estranha dualidade do realismo e
decadência vitorianos. (BOTTING, 1996, p.1, grifo nosso)

A palavra usada por Botting, originalmente, é uncanny, que por sua vez é a
tradução do termo alemão Unheimlich. O Unheimlich foi definido por Sigmund Freud
como algo que não é propriamente desconhecido, mas estranhamente familiar,
disparidade de sensações que gera terror e angústia e, ao mesmo tempo, exerce um
poderoso magnetismo. É essa particularidade do Unheimlich — comumente traduzido
para o português como “o Estranho” — que atrai tanto os leitores, os receptores da obra,
quanto os próprios personagens para a ficção gótica, que se veem às voltas com algo
que não compreendem e nem por isso conseguem se afastar.
No Ato II, Giselle torna-se para Albrecht a própria personificação do Estranho,
do Unheimlich. Jody Bruner demarca que as willis são, “ao mesmo tempo mulheres
sedutoras e cadáveres repulsivos. [...] Elas prometem prazer, mas, ao mesmo tempo,
ameaçam de morte” (1997, s.p., livro digital), e Albrecht está preso nessa teia de
opostos, adentrando um universo novo, porém estranhamente familiar.
Em uma análise mais próxima da cena, se o gótico é a literatura do excesso e da
transgressão, não há transgressão maior que a dança com o espírito de Giselle. Na
narrativa, esse é o momento de Giselle professar seu amor, ou ao menos mostrar que
não guarda rancor, a despeito das ordens de Myrtha para que Albrecht dance até a
morte, como tantos outros homens antes dele.
Bruner realça o fato de que essa é a primeira vez que Albrecht e Giselle dançam
realmente juntos, pois, no Ato I, um apenas seguia os passos do outros, não havendo um
pas de deux4. A cena representa transgressão tanto social quanto sexual. Por um lado, é
apenas após a morte que a barreira do status social de Albrecht é transposta, por outro, o
que se dá dessa união é de uma semelhança tétrica com a paixão de Solfieri por
4
Termo originário do balé clássico e significa “passo de dois”, usualmente dançado por um homem e uma
mulher. Em um balé de repertório, o grand pas de deux é o ápice narrativo, constituído por cinco partes:
entrada, adágio, duas variações (um solo masculino e um solo feminino) e coda. O pas de deux do Ato II
de Giselle se configura dessa forma.

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Messalina, no conto de Álvares de Azevedo, para só então descobrir que a jovem já
estava morta.
Este é o já citado caráter do gótico: o excesso. “O fascínio com a transgressão e
a ansiedade sobre limites e fronteiras culturais, [que] continuam a produzir emoções e
significados ambivalentes em seus contos de escuridão, desejo e poder.” (BOTTING,
1996, p. 1)

Conclusão
No contexto em que o libreto de Giselle foi escrito e quando da estreia do balé,
não teria havido a intenção de revelar uma crítica aos mecanismos sociais da época. A
aparente história trágica de amor foi um tema muito mais à mostra e que se manteve em
descrições posteriores de Giselle.
No entanto, considerar Giselle apenas como uma representação do movimento
Romântico limita a visão dos elementos sobrenaturais como algo além do escapismo e
mantém a mulher como figura idealizada, etérea e inalcançável.
O caráter subversivo do gótico cria uma espécie de espelho que reflete de volta
características com as quais a sociedade não gostaria de ser confrontada, no entanto, o
distanciamento gerado pela forma ficcional não só faz tais características serem
apreciadas como até desejadas, vide o gosto pelo horror e as influências da literatura
gótica que prevalecem até os dias de hoje.
Ao enquadrar Giselle na ficção gótica, não só seria possível ressaltar os
elementos de horror dentro da narrativa, como revelar um subtexto crítico na relação
entre diferentes posições sociais e de gênero.
Não fosse Albrecht um príncipe, não haveria empecilho em seu relacionamento
com Giselle. Ao mesmo tempo, tanto ele quanto Hilarion são endossados por uma
sociedade inerentemente patriarcal que lhes dá o privilégio da ação e retira a autonomia
de Giselle, que nesse discurso é apenas o alvo do afeto e acaba morrendo por ele.
Essa é a sensação de aprisionamento que o gótico feminino expõe, subvertendo a
narrativa para dar voz às suas personagens femininas. Não é à toa, considerando o papel
transgressor do sobrenatural na ficção gótica, que Giselle encontre sua voz e exponha
sua vontade — ainda que em defesa de Albrecht — no Ato II, em que se encontram os
elementos puramente sobrenaturais na figura da willis. Tal é a ambivalência de Giselle,
que ao utilizar a concepção da figura da mulher como ser misterioso e perigoso, mas
ainda frágil e passível de dominação, cria o efeito contrário, pois a expressão abafada é

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a dos personagens masculinos. A vontade de Hilarion não prevalece contra as ordens de
Myrtha, e Albrecht só continua vivo porque Giselle assim quis intervir.
Uma última faceta de Giselle diz respeito à sobrevivência desse balé até a época
atual. Não parece existir apenas apreciação do virtuosismo técnico do balé, somos
levados a considerar que a imagem criada no espelho narrativo de Giselle ainda
encontre reflexos narrativos na sociedade contemporânea.

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