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Mente e Cérebro Ed 305 Junho 2018
Mente e Cérebro Ed 305 Junho 2018
O código cerebral
para recuperar
movimentos físicos
Como a capacidade
intelectual pode
contribuir para aumentar
o tempo de vida
Não é só o sabor
dos alimentos que
atrai mas também
seu valor energético
Para entender
e combater a
ÃO
capaz de remover
sintomas que atormentam milhões de pessoas; no entanto,
o quadro é complexo e não há um tratamento
~QLFR2PDLVH¼FLHQWHpFRPELQDUWHUDSLDV
carta da editora
especial
32 A ciência
do timismo
Pesquisas sobre um fenômeno
denominado “erros de revisão” revelam
a inclinação de nosso cérebro para
superestimar as probabilidades de que
ocorram eventos positivos
08 Não tem nenhuma graça
Ser alvo de piadas costuma ser desconfortável
para qualquer pessoa. Mas para pessoas que
sofrem de gelotofobia o sofrimento é quase
insuportável www.mentecerebro.com.br
MENTE E CÉREBRO ON-LINE
Presidente: Edimilson Cardial Visite nosso site e participe de
E
m Praça Paris (2017), a psicóloga portuguesa Camila (Joana de Verona) vem ao
Brasil para fazer uma pós-graduação na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj) e conduz o tratamento de Glória (Grace Passô), que trabalha como as-
censorista na universidade. Esse é o cenário proposto pela diretora Lúcia Murat para
demonstrar os efeitos da violência urbana e questionar o perigo das boas intenções
sem o devido embasamento. Glória é uma mulher negra e pobre, nascida e criada no
Morro da Providência, favela onde ainda reside. Vítima de abusos e abandono na in-
fância, mantém um vínculo de dependência com Jonas (Alex Brasil), seu irmão preso
por tráfico. Ao longo das sessões, Glória conta à psicóloga sobre sua vida e passa a
confiar na proposta terapêutica. Contudo, a profissional parece não ter suporte interno
para absorver o impacto da realidade nem espaço
de supervisão adequado – o que fica claro pelas vo-
zes confusas e sobrepostas que Camila ouve em sua
cabeça enquanto anda pelos corredores da univer-
sidade. É então que da postura inicial de Camila –
cálida e simpática, aparentemente uma escuta com-
preensiva e generosa – emerge uma atitude reativa e
marcada por preconceitos.
A ingenuidade (ou o despreparo) de Camila para
reconhecer as diferenças de mundos é o disparador
do medo que faz a personagem atuar a contratrans-
ferência. Enquanto espectadores, somos levados a
testemunhar o problema decorrente do desejo simplista de fazer o bem e das boas
intenções em ajudar alguém. Mas, acima de tudo, é o problema relativo à empatia que
chama atenção. Não é raro ouvir, hoje em dia, tanto de profissionais como de possíveis
pacientes, sobre o desejo por uma relação terapêutica em que seja possível compreen-
der com profundidade o sentimento alheio. Presume-se que seja necessário alguém
com as mesmas características ou experiências para que tal efeito seja alcançado.
Ao falar sobre o filme no Festival do Rio (disponível no YouTube), Murat expôs sua
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cinema
história pessoal de tortura durante a ditadura militar. A diretora comentou que, ao
sair da prisão, buscou tratamento supondo ser fundamental fazê-lo com alguém
que soubesse, de antemão, como é essa experiência. O resultado foi, nas palavras
da própria diretora, um desastre – o que é previsível para todas as terapêuticas
baseadas em identificação. Temos aqui mais um exemplo do problema contem-
porâneo da confusão a respeito da empatia: se Murat afirma não desacreditar que
uma psicóloga branca possa desenvolver empatia por alguém como Glória, no
filme somos levados a ver como a pretensão de neutralidade clínica produz uma
atuação contratransferencial. Nenhum analista é apenas um espelho.
Apostar que um elemento em comum com o analista é o que garante a em-
patia dessa relação é confundir tanto o que é a empatia na psicanálise como os
seus usos. Quando um sujeito procura um analista que tenha alguma semelhança
consigo (seja a cor da pele, o gênero ou alguma experiência em comum), a lógica
por trás dessa atitude é tentar garantir, por meio da imagem, que se está falando
com alguém capaz de uma compreensão absoluta.
A sensação de empatia é um efeito útil ao processo terapêutico, podendo ser
notada desde o primeiro contato ou surgir como uma surpresa no decorrer do aten-
dimento, como resultado de uma construção conjunta. Saber escutar com empatia
é saber esvaziar-se de si, mesmo que por um breve momento, tornando-se uma
estrutura tanto sólida e resistente como côncava e oca, capaz de produzir eco das
vozes de um outro que procura alguém para, paradoxalmente, escutar a sua voz. Ser
empático não é saber exatamente o que o outro sente ou pensa porque se é pareci-
do com o outro na superfície da pele, no gênero ou na sexualidade; ser empático é
deixar-se habitar justamente pela radical diferença que é o estrangeiro.
Com uma ideia genérica de empatia, algo da experiência pessoal de outra pes-
soa é anulado. Se Camila, irrefletidamente, aposta que pode compreender Glória,
pois assim o deseja, falta-lhe o poder de apostar no não saber. Afinal, em sua
forma mais honesta, a empatia é consequência de um trabalho do analista, e não
efeito de sua imaginação perigosamente bem-intencionada.
Praça Paris fala sobre as consequências da distância social, sobre violência e
O AUTOR
medo, mas também abre caminho para pensarmos sobre a expectativa de em-
patia e os riscos da identificação narcísica. Se desejamos trabalhar com a noção BARTHOLOMEU
DE AGUIAR VIEIRA é
de empatia, não podemos correr o risco de silenciar a experiência singular de um psicólogo e psicanalista,
sujeito com nossos próprios sentimentos. Não é possível tomar a vida ou a ima- membro do PsiA –
Laboratório de Pesquisas
gem do analista como um espelho para o paciente. Isso seria o mesmo que supor e Intervenções
que somente um analista negro é capaz de atender negros ou que ser homosse- em Psicanálise da
Universidade de São
xual é condição para atender homossexuais. Tal aposta supõe o analista como um Paulo (USP), mestre em
especialista moral que detém um saber pronto sobre o outro; mais ainda, fala da psicologia clínica pela
mesma instituição e
gigantesca fragilidade de um Eu que não suporta o contato com a diferença radical especialista em psicologia
que está no âmago de todo contato humano. clínica com crianças.
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saúde mental
Não tem
nenhuma
graça!
OS AUTORES
ZANE B. ANDREWS é neurocientista, doutor em endocrinologia, pesquisador-chefe
da Universidade Monash De Melbourne, Austrália. TAMAS L. HORVARTH é doutor em
medicina e neurobiologia, diretor do curso de medicina comparativa da Universidade Yale.
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saúde mental
O
humor equilibrado tem sido apontado em inúme-
ras pesquisas como um fator fundamental para a
saúde não apenas física, mas também mental, já
que, além de ajudar a fortalecer o sistema imu-
nológico, favorece as interações afetivas e sociais. Partindo da
ideia de que para a maioria das pessoas as risadas são sinal de
alegria, alguns especialistas defendem, aliás, que sorrir tem efei-
tos terapêuticos. (veja quadro na página 10). De fato, a argumen-
tação se embasa cientiicamente – mas nem sempre é assim.
Quem sofre de gelotofobia – o medo de ser motivo de piada
(gelos, de origem grega, signiica risada) – teme até os gracejos
mais inocentes, sem intenção de expor ou ridicularizar o outro.
“Em geral, são pessoas bastante inseguras; para elas, qual-
quer sorriso é visto como negativo”, diz o psicólogo Willibald
Ruch, professor da Universidade de Zurique, pioneiro nas pes-
quisas sobre essa rara condição, inicia-
Pessoas com das há cerca de uma década. “Elas não
gelotofobia se acreditam que alguém esteja apenas
incomodam se divertindo, sem o propósito de feri-
profundamente -las”, observa. Ruch relembra um caso
que acompanhou em seu laboratório:
com sorrisos que
“O rapaz preferia esperar o próximo
julgam maliciosos; o
ônibus até encontrar um assento livre
transtorno costuma na última ileira, pois não suportava a
estar associado a ideia de que alguém pudesse se sen-
ansiedade e traumas tar no banco de trás e rir dele”.
ocasionados por Para avaliar a extensão do problema,
punição excessiva na os cientistas solicitam a esses indivíduos
infância e bullying que apresentam essa queixa que clas-
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saúde mental
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saúde mental
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capa
A
maioria das pessoas vive por mais tempo e com
melhor saúde do que em qualquer outro momento
de nossa espécie. Mas nem por isso somos mais
felizes. Apesar das inúmeras opções de diversão,
maior poder de compra e, aparentemente, de escolha, esta-
mos cada vez mais insatisfeitos: a depressão será o problema
de saúde pública mais comum em menos de 20 anos; 350
milhões de pessoas de todas as idades sofrem com o trans-
torno no mundo, segundo a Orga-
nização Mundial da Saúde (OMS)
– 17 milhões só no Brasil. Nas pró-
ximas duas décadas, a patologia
deverá afetar mais pessoas que
o câncer ou as doenças cardíacas
e se constituir na maior causa de
afastamentos do trabalho.
Atualmente, a depressão é vis-
ta como resultado da combina-
ção de fatores endógenos (como
hereditariedade) e fatores de ris-
co ambientais, como valores cul-
turais e experiências emocionais.
Os sintomas se coniguram de maneira diferente em cada
paciente, de forma que não há tratamento deinitivo. “Seria
muito simples pensar a depressão apenas como resultado da
maior ou menor oferta de neurotransmissores. É mais correto
relacioná-la à interação desses agentes químicos – serotoni-
na, dopamina, glutamato e tantos outros. São vários caminhos
neurais diferentes que, juntos, determinam cognição, interes-
se, vontade”, explica o psiquiatra Ricardo Moreno, diretor do
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O hábito de sofrer
Cada vez mais estudos comprovam o impacto positivo da me-
ditação sobre o humor. Uma pesquisa brasileira publicada na
Neuroimage mostra que a técnica melhora o desempenho ce-
rebral, especialmente em tarefas que exigem concentração. “O
cérebro de pessoas que meditam recruta menos áreas cere-
brais para realizar uma determinada tarefa, como se izesse uma
maior ‘economia’, o que se traduz em mais foco e concentração;
um desaio no mundo cheio de estímulos em que vivemos”, diz
a psicobióloga Elisa Koza-
O tratamento mais comum sa, do Instituto do Cérebro
ainda é o farmacológico, do Hospital Israelita Albert
mas nem sempre é o mais Einstein, autora do trabalho.
eficiente; em depressões leves, O cérebro de pessoas
a combinação de psicoterapia com depressão está “ha-
com outros cuidados costuma bituado” a processos men-
tais que desencadeiam o
trazer melhores resultados
problema, como pensa-
mentos depreciativos sobre si mesmo. A meditação ajuda o
paciente a se conscientizar de emoções, fantasias, lembranças
e situações que passam por sua mente consciente. Atualmen-
te, cientistas estão comprovando os benefícios da terapia ba-
seada na atenção plena (mindfulness), isto é, o uso de técnicas
de meditação para potencializar os efeitos do tratamento. Tra-
ta-se de um programa de oito semanas que ajuda o paciente
a perceber os velhos hábitos de pensar que atiram sua mente
em uma espiral descendente de pensamentos negativos. “A
proposta é que a pessoa aprenda a ser mais gentil consigo
mesma e atente para os aspectos positivos de seu cotidiano,
exercitando o julgamento baseado na autocompaixão”, explica
Kozasa, citando o dalai-lama Tenzin Gyatso: “A mente é como
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ssa
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A
lgumas pesquisas estimam que entre 30% e 50%
das pessoas já preencheram, em algum momento
da vida, os critérios diagnósticos do transtorno de-
pressivo maior. Outros estudos sugerem que uma
em dez pessoas tem um episódio de depressão pelo menos
uma vez na vida – em geral desencadeado por uma situação
infeliz, por uma perda importante, pelo estresse constante ou,
em alguns casos, por uma doença grave. Quando a causa não
está em um agente externo, falamos em depressão endógena.
De acordo com os neurobiólogos, o distúrbio seria consequên-
cia da falta de certos neurotransmissores (monoaminas) no cé-
rebro: dopamina, noradrenalina e, principalmente, a serotonina,
que são hormônios reguladores de emoções.
Sabemos atualmente que a depressão não traz apenas des-
conforto, mas pode ter repercussões ainda mais graves, como
a diminuição de regiões especíicas do cérebro. Um estudo
realizado com tupaias (pequenos mamíferos herbívoros, se-
melhantes a esquilos), coordenado por Eberhard Fuchs, do
Centro de Primatas de Göttingen, Alemanha, foi o primeiro a
apontar nessa direção. Ele mostrou que em animais “deprimi-
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Muito além
da tristeza
A depressão se distingue do sentimento de
tristeza pela duração de seus sinais e pelo
contexto em que ocorre. Por exemplo, é
natural sentir-se triste e sem perspectivas
após a morte de um ente querido, perda do
emprego ou término de um relacionamento.
Períodos de luto, de elaboração de
experiências desagradáveis, acontecem na
vida de qualquer pessoa e, normalmente,
são superados – apesar de, atualmente,
termos cada vez menos tempo e espaço
para vivenciar a tristeza. Na depressão,
porém, essa sensação é duradoura. Humor
depressivo por mais de duas semanas,
incapacidade de sentir qualquer prazer,
tendência a sobrevalorizar eventos negativos
são alguns dos sinais emocionais. Também
há sintomas físicos, como problemas de
sono, falta de apetite e dores difusas.
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Movimento
capa
O
fato de que exercitar o corpo melhora a saúde fí-
sica – diminuindo o risco de doenças cardíacas,
obesidade, diabetes, câncer – já é tão conhecido
que se tornou lugar-comum falar sobre isso. Po-
rém os benefícios para a saúde mental não são tão óbvios ou
divulgados. No caso da depressão, um conjunto de evidências
recentes demonstra os efeitos benéicos da atividade física.
Além de promover autoestima, a prática fortalece a resiliência
neuroquímica ao estresse e o crescimento de novas células
cerebrais, e há indícios de que ajuda a compensar riscos as-
sociados à doença mental. Para a maioria das pessoas com
depressão leve a moderada, o exercício constitui um dos trata-
mentos disponíveis mais eicientes, seguros, práticos, baratos
– e agradáveis.
Somente uma fração dos milhões de pessoas acometidas
pela depressão busca assistência, e desse contingente apenas
um terço responde ao tratamento-padrão com medicamentos.
Os antidepressivos costumam ser caros e podem ter sérios efei-
tos colaterais, levando muitos pacientes a ansiar por soluções
mais baratas, seguras e naturais. Em uma pesquisa de mais de 2
mil adultos americanos com diagnóstico de depressão, mais da
metade relatava já ter recorrido a algum tipo de tratamento não
farmacológico, como ioga, itoterapia e acupuntura.
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tes
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A
contece com todo mundo: de repente e inexplicavel-
mente nos sentimos alegres ou tristes, embora ainda
há pouco nosso humor estivesse bem diferente. Ge-
ralmente a culpa é de uma pista subliminar ou “estí-
mulo precedente” (priming). Mas não precisamos icar presos a
essas pistas subconscientes. Pesquisas recentes sugerem que
simplesmente reconhecer o fenômeno já é meio caminho an-
dado para assumir o controle novamente – ainal, não é porque
sentimos algo que isso necessariamente se justiica.
Os pesquisadores geralmente estudam os efeitos do estí-
mulo precedente induzindo os par-
ticipantes a acreditar que estão en-
volvidos no teste de outra variável
qualquer. Num estudo realizado na
Universidade de Toronto, pessoas
expostas a imagens de logotipos
de fast-food, sem se darem conta
disso conscientemente, tornavam-
-se mais impacientes e dispostas
a gastar. Outro estudo, publicado
no periódico cientíico Journal of
Psychosomatic Research, mostrou
que, quando os participantes evo-
cavam lembranças relacionadas a
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Pensamentos
felizes em ação
Em busca das causas da funeral de um ente querido ocorrido Essa descoberta dá respaldo aos
depressão, recentemente nos últimos cinco anos. Em outra estudos anteriores que sugerem
pesquisadores americanos fase da experiência, eles tiveram de que, em muitos casos, o mau
localizaram duas regiões do imaginar como seria se envolver funcionamento da amígdala e
cérebro ligadas ao otimismo. em um grave acidente de carro do córtex cingulado anterior está
Participaram do estudo em um futuro próximo. Em outros relacionado ao aparecimento
15 pessoas que não só se momentos, as pessoas tinham de sintomas de transtornos
reconheciam como alegres e de pensar em acontecimentos do humor. Segundo o cientista
bem-humoradas, mas também positivos, como ter feito uma Wayne Drevets, do Instituto
foram avaliadas dessa forma maravilhosa viagem no passado Nacional de Saúde Mental,
pelos especialistas ao serem ou receber uma grande soma de em Bethesda, Estados Unidos,
submetidas a um questionário- dinheiro no futuro. durante autópsias realizadas
padrão. A pesquisadora A análise dos dados obtidos em pacientes severamente
Elizabeth Phelps e seus colegas no exame de imageamento deprimidos foram encontradas
da Universidade de Nova York cerebral revelou que refletir sobre menos células do que o normal
pediram aos voluntários que os acontecimentos passados nessas áreas. Ele acredita que
imaginassem diversos cenários e futuros ativa a amígdala e o as novas descobertas do estudo
possíveis enquanto passavam córtex cingulado anterior. No de Elizabeth Phelps podem
por exame de ressonância entanto, os eventos positivos – e ajudar a esclarecer, da ótica
magnética funcional (fMRI). particularmente os projetados neurocientífica, por que pessoas
Em dado momento, os no futuro – provocaram resposta com depressão têm dificuldade
participantes seguiram instruções significativamente mais intensa do de produzir pensamentos alegres
para se lembrar de um evento que refletir sobre acontecimentos ou se mostrar confiantes. (Da
negativo do passado, como o negativos. redação)
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comportamento
A ciência do
otimismo
Pesquisas sobre um fenômeno denominado “erros
de previsão” revelam a inclinação
de nosso cérebro para superestimar as
probabilidades de que ocorram eventos positivos
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comportamento
E
xperimente perguntar a um casal que planeja se casar
quais são suas possibilidades de separação no futuro.
Provavelmente a maioria das pessoas responderá “ne-
nhuma!”. Tente, então, informar aos pombinhos que o
Brasil tem registrado, ano a ano, queda no número de casamen-
tos e aumento de divórcios, segundo dados da pesquisa Esta-
tísticas do Registro Civil do Instituto Brasileiro de Geograia e Es-
tatística (IBGE). De acordo com os dados mais recentes, de 2016,
foram concedidos 344.526 divórcios, um aumento de quase 5%
em relação a 2015 (o que pode parecer pouco, mas vale lem-
brar que estamos falando de quase 16 mil separações). Depois
de apresentar esses dados, repita a pergunta aos noivos. Eles
mudarão de opinião?
Questões culturais, valores Improvável. Até as pes-
familiares, sistemas de crenças soas que por motivos
e até desequilíbrios da proissionais têm na
capacidade neurológica de lidar memória cada detalhe
com erros influem em nossa dos aspectos legais do
forma de avaliar perspectivas divórcio, inclusive sua
elevada incidência, no
calor dos últimos preparativos para a cerimônia tendem a decla-
rar que o risco de que eles próprios se divorciem é praticamente
inexistente. Como se explica isso?
Psicólogos vêm reunindo testemunhos do otimismo há déca-
das e já constataram que em geral as pessoas superestimam as
chances de que lhes ocorram eventos positivos, como ganhar
na loteria. Ao mesmo tempo, subestimam a probabilidade de
ocorrência de eventos negativos, como se envolver em um aci-
dente de carro ou desenvolver câncer. Informar as pessoas das
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comportamento
NOIVOS CONFIANTES:
o conhecimento dos
dados estatísticos sobre a
média de casamentos que
terminam em divórcio não
abala a convicção de uma
noiva de que isso nunca
acontecerá com ela
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comportamento
Dinheiro da vovó
Para explicarmos melhor a capacidade
cerebral de fazer avaliações e previsões,
podemos recorrer a um exemplo
prático. Imagine que uma tia muito
querida lhe dê uma quantia de dinheiro
cada vez que você for visitá-la. Faça
uma estimativa de quanto ela lhe
dará com base no quanto ela dispõe
de recursos financeiros e em sua
generosidade. Assim, quando ela lhe
der o dinheiro concretamente, não
ficará apenas contente com o presente,
mas poderá verificar também quanto
a realidade pode divergir daquilo
que imaginou. Em outras palavras:
prever o que acontecerá no considere margens de erro em suas
estimativas, assim você aumentará
futuro. O conceito foi usado
suas chances de prever corretamente
pela primeira vez em pesqui- quanto sua tia lhe dará na próxima
sas sobre inteligência artiicial. vez que for visitá-la. Esse processo
exemplifica um modelo essencial da
Sucessivamente, a ideia foi aprendizagem, usado constantemente
aplicada a diversos âmbitos pelo cérebro.
de pesquisa, dando origem
a vários modos de descrever os erros por meio de equações
matemáticas (veja quadro acima).
Um bom conselho
Psicólogos e neurocientistas dedicaram dezenas de estudos à
identiicação das regiões do cérebro envolvidas no cálculo dos
erros de previsão. A questão foi analisada de vários modos, mas
o experimento mais típico consistiu em pedir que voluntários jo-
gassem – apostando dinheiro – em versões computadorizadas
de um caça-níquel enquanto seu cérebro era analisado durante
um exame de ressonância magnética funcional (fMRI).
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comportamento
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comportamento
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longevidade
Mais
inteligência,
mais
tempo
M
uitos cientistas acreditam que o processo de en-
velhecimento resulta do acúmulo gradual de um
enorme número de pequenas “falhas” isoladas.
É uma espécie de somatório degenerativo que
regula nosso tempo de vida por meio de um delicado equilí-
brio entre a rapidez com que novos danos atingem as células
e a eiciência com que os problemas são corrigidos. Recente-
mente, especialistas de áreas que nem sempre estiveram pró-
ximas têm se unido em busca de pistas que possam prever
quais aspectos de fato inluenciam o bem-estar e as doenças
e antecipam (ou retardam) a morte. É o caso dos doutores em
psicologia Alexander Weiss e Ian J. Deary e do especialista em
epidemiologia David Batty.
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longevidade
42
longevidade
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alimentação
Sedutoras
caloriasO valor energético dos alimentos ativa
o sistema cerebral da recompensa tanto
quanto o sabor, desencadeando o desejo
por determinadas comidas; descobertas
devem ajudar no combate a transtornos
alimentares e obesidade
OS AUTORES
ZANE B. ANDREWS é neurocientista, doutor em endocrinologia, pesquisador-chefe
da Universidade Monash de Melbourne, Austrália. TAMAS L. HORVARTH é doutor em
medicina e neurobiologia, diretor do curso de medicina comparativa da Universidade Yale.
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alimentação
S
e há algo que nos iguala é a
fome. Mas que mecanismo
biológico é esse que nos diz
quando comer e quando pa-
rar? Há muito tempo se considera que,
em grande parte, dois processos neu-
robiológicos inluenciam a ingestão de
comida: um, que controla a necessida-
de de comer, e outro, que rege o desejo por determinados ali-
mentos. No cérebro, o hipotálamo regula o controle homeostá-
tico da dieta, recebendo, coordenando e reagindo aos indícios
e sinais metabólicos enviados pelo sistema digestivo. Essa área
cerebral integra as informações e nos “diz” quando precisamos
comer para manter o peso corporal em um nível preestabe-
lecido, como se fosse um termostato programado para avisar
quando o ambiente atingisse uma temperatura especíica.
No entanto, é evidente que os centros neurais superiores que
controlam o apetite também tenham inluência sobre nossos
hábitos alimentares. Um desses centros é o sistema de grati-
icação e recompensa da dopamina. É fácil identiicar a ação
desse sistema: por exemplo, quando temos vontade de uma
taça de sorvete de chocolate depois do jantar, ou seja, de uma
comida em um momento em que não estamos sentindo fome,
mas sim porque a desejamos.
Em muitas situações, este anseio por certos pratos prevalece
sobre a necessidade, levando-nos a consumir produtos saboro-
sos, mesmo quando não precisamos suprir nosso organismo. De
forma geral, nossa incapacidade de renunciar a esses alimentos
que tanto nos recompensam derrota o controle homeostático,
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alimentação
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alimentação
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alimentação
DE OLHO NO
PRATO:
a percepção do
valor metabólico
pode influenciar
a ingestão
de alimentos
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alimentação
Além da satisfação
Esse estudo traz à tona novas perguntas. Como o sistema de re-
compensa da dopamina reconhece a quantidade calórica? Exis-
tem açúcares (a frutose, por exemplo) que inluenciam o sistema
cerebral de maneira diferente? E o fenômeno se veriica também
quando as calorias provêm de ti-
pos variados de comida? São
perguntas a responder, para
que seja possível compreen-
der as verdadeiras causas da
obesidade. Entender a capaci-
dade que determinados alimentos
têm de estimular o sistema de recom-
pensa nos ajudará a elaborar métodos ei-
cazes para reduzir o desejo por comida uma vez
que a necessidade tenha sido satisfeita.
A pesquisa acrescenta informações a estudos que indicam
que processos metabólicos não são de domínio exclusivo do
hipotálamo. Entre os sinais captados por essa área cerebral e
os centros superiores neurais que determinam o desejo por co-
mida existe uma relação muito mais complexa do que durante
muito tempo se acreditou. Classiicar a alimentação como práti-
ca hedonista ou homeostática pode ser não apenas redundan-
te, mas levar a um caminho errado. Ainal, quando se trata de ali-
mentação, necessidade e desejo não são assim tão separados.
neurociência
Um código para
recuperar
movimentos
Cientistas recorrem à criptografia
para traduzir e compreender a
atividade cerebral; a proposta é
desvendar padrões neuroquímicos
para ajudar pacientes que hoje
sofrem de paralisias
D
urante a Segunda Guerra Mundial, os criptógrafos
decifraram o código que icou conhecido como
Enigma da Alemanha, explorando padrões de lin-
guagem conhecidos nas mensagens criptografa-
das. Usando as frequências e distribuições esperadas de certas
letras e palavras, o matemático britânico Alan Turing, precursor
da ciência da computação, e seus colegas encontraram a cha-
ve para traduzir rabiscos em linguagem simples. Estima-se que
aproximadamente 50 milhões de pessoas tenham morrido no
conlito. E esse quadro poderia ser ainda mais trágico não fosse
50
neurociência
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neurociência
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livro | lançamentos
Patologias do social:
arqueologias do sofrimento
psíquico. Vladimir Safatle, Nelson
da Silva Jr., Christian Dunker (orgs.).
Autêntica, 2018. 352 págs. R$ 54,90.
Faces do sofrimento
Sob várias perspectivas teóricas, 52 autores questionam
o que leva algumas formas de sofrer a serem vistas como patológicas,
enquanto outras sequer são reconhecidas como legítimas
O
livro Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico é resultado
de dez anos de pesquisas realizadas pelo Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise, da Universidade de São Paulo (USP). Os 11
textos produzidos por 52 autores têm o sofrimento psíquico como tema central,
abordado de forma transversal, fazendo jus ao caráter interdisciplinar do labora-
tório. A obra, organizada pelos acadêmicos Vladimir Safatle, Nelson da Silva Jr.,
Christian Dunker, apresenta diferentes eixos teóricos nos campos da filosofia, psi-
quiatria, sociologia, psicanálise, bem como conceitos de alguns de seus principais
expoentes da intelectualidade, como os psicanalistas Sigmund Freud, Jacques La-
can e Melanie Klein, além dos filósofos Theodor Adorno e Michel Foucault.
Tamanho esforço de composição se deve à magnitude do problema proposto:
abordar o sofrimento psíquico não como campo restrito à psicologia e à psiquiatria,
mas sua articulação com as configurações sociais. Os autores parecem se pergun-
tar, cada um a seu modo, de que maneiras as transformações na esfera de valores
e normas sociais, organização familiar e do trabalho facultam o aparecimento de
novas formas de subjetivação e de desejo, além de possibilidades de lidar com a dor.
Afinal, o que possibilita que algumas formas de sofrimento sejam atestadas como
patológicas e outras não sejam sequer reconhecidas como legítimas?
Algumas definições fundamentais dos autores a respeito da relação entre os
termos do problema – sofrimento, patologia e social – são apresentadas ao leitor.
“Uma época histórica pode ser descrita a partir das patologias que ela faz circular
e das patologias que ela invalida”, escreve Safatle. Mais adiante, Dunker afirma:
“O aqui ‘patológico’ deve ser entendido desde o social, ou seja, como bloqueio,
interrupção ou contradição não reconhecida nos laços sociais”. Os autores sub-
linham que essas contradições se apresentam não apenas no âmbito normativo
de uma sociedade, mas também na esfera dos afetos em trânsito – esta sim a
verdadeira base normativa da vida social.
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livro | lançamentos
Ainda que apresente aspectos heterogêneos, esse tipo de abordagem do sofri-
mento se insere na tradição de pensamento sobre as patologias sociais. Essa tra-
dição tem recebido interesse crescente nos últimos anos, principalmente a partir
de 1994, com a publicação do ensaio Patologias do social, de Axel Honneth, que re-
sultou na renovação de uma discussão bastante frutífera na sociologia e na teoria
crítica. Também na psicanálise o debate é atual, principalmente com a circulação
das teses de Jacques-Alain Miller, Charles Melman e Gérard Lebrun, publicadas na
virada do milênio, que tentam entrelaçar diagnóstico de época com o surgimento
de uma nova subjetividade.
As discussões sobre as formas atuais desses debates na filosofia e na psicaná-
lise aparecem nos capítulos de introdução e de encerramento do livro. O primeiro
apresenta algumas das principais teorias dentro da filosofia e das ciências sociais
sobre as patologias do social. Nesse capítulo, figuram também as críticas às pro-
postas contemporâneas de renovação do conceito de patologias sociais e as pro-
postas para expansão de seu potencial transformativo. Na parte final, a retomada
das principais questões sobre o tema aparece no campo da psicanálise.
Ao assumir a matriz social das patologias e recusar qualquer visão essencialista
de doença mental, o campo da psicopatologia é interpelado em efeito cascata ao
longo dos capítulos seguintes. Neles, são colocados em questão as classificações
psiquiátricas, os debates sobre etiologia, a formação das categorias clínicas, a con-
cepção de sintoma, sempre tendo como ponto de referência a história.
Em nenhum momento, porém, se considera que as patologias do social sejam
índice de uma sociedade patológica ou em declínio, tese bastante usual quan-
do a questão é aludida. Esse é um dos aspectos principais debatidos no capítulo
“Anomia e declínio da autoridade paterna”, no qual o diagnóstico da contempo-
raneidade marcada pela queda dos ideais e pelo declínio da autoridade paterna
é analisado em articulação com a anomia e o sofrimento de indeterminação. Aí
talvez esteja uma das teses mais ousadas do livro: a indeterminação não necessa-
riamente levaria a estados de sofrimento, podendo representar ora a invenção de
nova forma de vida, ora uma nova maneira de constituição não orientada por um
ponto de amarração central.
Sem propor soluções fáceis a essa interface e com o cuidado de não reduzir a
A AUTORA
psicologia à sociologia, o livro sabe tirar proveito dos conceitos que fazem frontei-
ra entre as disciplinas, como a alienação e o fetichismo. RENATA BAZZO é mestre
Acima de tudo, a obra oferece ao leitor reflexões sobre a desnaturalização do em psicologia social e
doutoranda em psicologia
sofrimento. Cabe lembrar que no cenário atual, em que discussões sobre saúde clínica pela Universidade
mental estão cada vez mais marcadas pelas concepções de patologia referidas à de São Paulo (USP).É
bolsista da Coordenação de
fisiologia e ao estudo do cérebro, pode-se afirmar que Patologias do social oferece Aperfeiçoamento de Pessoal
críticas ao conceito de sofrimento que fogem do óbvio. de Nível Superior (CAPES)
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