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| ESPECIAL |

POSITIVIDADE PODE CAUSAR ERROS DE PREVISÃO


ANO XIII
No 305

O código cerebral
para recuperar
movimentos físicos

Como a capacidade
intelectual pode
contribuir para aumentar
o tempo de vida

Não é só o sabor
dos alimentos que
atrai mas também
seu valor energético

Para entender
e combater a
ÃO
capaz de remover
sintomas que atormentam milhões de pessoas; no entanto,
o quadro é complexo e não há um tratamento
~QLFR2PDLVH¼FLHQWHpFRPELQDUWHUDSLDV
carta da editora

Você já se deprimiu hoje?


“A
cordo deprimido toda segunda-feira”, comenta o rapaz durante o almoço com
um colega de trabalho. “Ai, que depressão!”, exclama a adolescente quando a
amiga lhe conta sobre a última briga com o namorado. “Acho que meu cachorro
se deprimiu depois que troquei a marca da ração”, preocupa-se a dona de um simpático
cãozinho sem raça definida. De fato, parece que a palavra “depressão” passou a integrar
conversas como se fosse sinônimo de tristeza ou desânimo. Em um mundo em que
a alegria é cultuada e os momentos de quietude e angústia (muitas vezes necessárias
para elaborações psíquicas), vistos como reações nefastas a serem medicadas –, e de
preferência extirpadas – é compreensível que a tristeza seja confundida com patologia.
Enquanto, não raro, a depressão de fato (que necessita de tratamento) seja mascarada e
negligenciada.
Há momentos em que é possível enfrentar situações dolorosas e se reinventar. Mas,
quando o golpe é forte demais (ou engancha em dores antigas que se reeditam de forma
assustadora), “a sombra do objeto (perdido) recai sobre o eu”, escreve Freud em Luto e
melancolia, de 1915. Ao contrário do que muitos imaginam, porém, depressão não é um
quadro único, com manifestações claras e uniformes para todas as pessoas. Os sinto-
mas nem sempre são óbvios e vão muito além da tristeza. Podem surgir como acessos
repentinos de raiva, irritação frequente, dores físicas, alteração de sono e apetite – e, sim,
também como a sensação difusa de tristeza e desânimo.
É o “apesar de” tudo que temos ou reconhecemos como positivo, que se impõe como
se sugasse a energia vital, a vontade de se levantar da cama, estar com aqueles que que-
remos bem, fazer projetos, realizar desejos. Estes, aliás, parecem se esvair de repente. E
assim como as manifestações não são únicas, os tratamentos também não são – e, na
maioria dos casos, não se limitam aos antidepressivos comprados em farmácia (embora
em determinadas situações os fármacos possam ser bastante úteis).
Nesta edição de Mente e Cérebro quatro artigos apresentam uma visão ampla e apro-
fundada do tema no intuito de ajudar profissionais e leigos a compreender variados as-
pectos do fenômeno que se alastra de maneira avassaladora, atingindo milhões de pes-
soas em todo o planeta.

GLÁUCIA LEAL, editora-chefe


glaucialeal@editorasegmento.com.br
sumário | junho 2018

Para entender e 18 A dor que não passa


combater a depressão
Um único medicamento ou tratamento 24 Movimento em
capa dificilmente é suficiente para controlar os sintomas
no caso de manifestações mais graves da doença.
O caminho mais eficiente resulta da combinação
direção à cura

de múltiplas ações, como psicoterapia, exercícios 28 O poder das emoções


físicos, meditação, estimulação cerebral e, em inconscientes
muitos casos, também antidepressivos

especial

32 A ciência
do timismo
Pesquisas sobre um fenômeno
denominado “erros de revisão” revelam
a inclinação de nosso cérebro para
superestimar as probabilidades de que
ocorram eventos positivos
08 Não tem nenhuma graça
Ser alvo de piadas costuma ser desconfortável
para qualquer pessoa. Mas para pessoas que
sofrem de gelotofobia o sofrimento é quase
insuportável www.mentecerebro.com.br
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Elenco: Grace Passô,
Joana de Verona, Allefe
Santos, Rafael d’Ávila.

Ser empático é deixar-se


habitar pela diferença
Filme trata do risco de confundir um atendimento terapêutico com desejo
simplista de ajudar alguém; na trama, a pretensão de neutralidade clínica
produz uma atuação contratransferencial

E
m Praça Paris (2017), a psicóloga portuguesa Camila (Joana de Verona) vem ao
Brasil para fazer uma pós-graduação na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj) e conduz o tratamento de Glória (Grace Passô), que trabalha como as-
censorista na universidade. Esse é o cenário proposto pela diretora Lúcia Murat para
demonstrar os efeitos da violência urbana e questionar o perigo das boas intenções
sem o devido embasamento. Glória é uma mulher negra e pobre, nascida e criada no
Morro da Providência, favela onde ainda reside. Vítima de abusos e abandono na in-
fância, mantém um vínculo de dependência com Jonas (Alex Brasil), seu irmão preso
por tráfico. Ao longo das sessões, Glória conta à psicóloga sobre sua vida e passa a
confiar na proposta terapêutica. Contudo, a profissional parece não ter suporte interno
para absorver o impacto da realidade nem espaço
de supervisão adequado – o que fica claro pelas vo-
zes confusas e sobrepostas que Camila ouve em sua
cabeça enquanto anda pelos corredores da univer-
sidade. É então que da postura inicial de Camila –
cálida e simpática, aparentemente uma escuta com-
preensiva e generosa – emerge uma atitude reativa e
marcada por preconceitos.
A ingenuidade (ou o despreparo) de Camila para
reconhecer as diferenças de mundos é o disparador
do medo que faz a personagem atuar a contratrans-
ferência. Enquanto espectadores, somos levados a
testemunhar o problema decorrente do desejo simplista de fazer o bem e das boas
intenções em ajudar alguém. Mas, acima de tudo, é o problema relativo à empatia que
chama atenção. Não é raro ouvir, hoje em dia, tanto de profissionais como de possíveis
pacientes, sobre o desejo por uma relação terapêutica em que seja possível compreen-
der com profundidade o sentimento alheio. Presume-se que seja necessário alguém
com as mesmas características ou experiências para que tal efeito seja alcançado.
Ao falar sobre o filme no Festival do Rio (disponível no YouTube), Murat expôs sua

6
cinema
história pessoal de tortura durante a ditadura militar. A diretora comentou que, ao
sair da prisão, buscou tratamento supondo ser fundamental fazê-lo com alguém
que soubesse, de antemão, como é essa experiência. O resultado foi, nas palavras
da própria diretora, um desastre – o que é previsível para todas as terapêuticas
baseadas em identificação. Temos aqui mais um exemplo do problema contem-
porâneo da confusão a respeito da empatia: se Murat afirma não desacreditar que
uma psicóloga branca possa desenvolver empatia por alguém como Glória, no
filme somos levados a ver como a pretensão de neutralidade clínica produz uma
atuação contratransferencial. Nenhum analista é apenas um espelho.
Apostar que um elemento em comum com o analista é o que garante a em-
patia dessa relação é confundir tanto o que é a empatia na psicanálise como os
seus usos. Quando um sujeito procura um analista que tenha alguma semelhança
consigo (seja a cor da pele, o gênero ou alguma experiência em comum), a lógica
por trás dessa atitude é tentar garantir, por meio da imagem, que se está falando
com alguém capaz de uma compreensão absoluta.
A sensação de empatia é um efeito útil ao processo terapêutico, podendo ser
notada desde o primeiro contato ou surgir como uma surpresa no decorrer do aten-
dimento, como resultado de uma construção conjunta. Saber escutar com empatia
é saber esvaziar-se de si, mesmo que por um breve momento, tornando-se uma
estrutura tanto sólida e resistente como côncava e oca, capaz de produzir eco das
vozes de um outro que procura alguém para, paradoxalmente, escutar a sua voz. Ser
empático não é saber exatamente o que o outro sente ou pensa porque se é pareci-
do com o outro na superfície da pele, no gênero ou na sexualidade; ser empático é
deixar-se habitar justamente pela radical diferença que é o estrangeiro.
Com uma ideia genérica de empatia, algo da experiência pessoal de outra pes-
soa é anulado. Se Camila, irrefletidamente, aposta que pode compreender Glória,
pois assim o deseja, falta-lhe o poder de apostar no não saber. Afinal, em sua
forma mais honesta, a empatia é consequência de um trabalho do analista, e não
efeito de sua imaginação perigosamente bem-intencionada.
Praça Paris fala sobre as consequências da distância social, sobre violência e
O AUTOR
medo, mas também abre caminho para pensarmos sobre a expectativa de em-
patia e os riscos da identificação narcísica. Se desejamos trabalhar com a noção BARTHOLOMEU
DE AGUIAR VIEIRA é
de empatia, não podemos correr o risco de silenciar a experiência singular de um psicólogo e psicanalista,
sujeito com nossos próprios sentimentos. Não é possível tomar a vida ou a ima- membro do PsiA –
Laboratório de Pesquisas
gem do analista como um espelho para o paciente. Isso seria o mesmo que supor e Intervenções
que somente um analista negro é capaz de atender negros ou que ser homosse- em Psicanálise da
Universidade de São
xual é condição para atender homossexuais. Tal aposta supõe o analista como um Paulo (USP), mestre em
especialista moral que detém um saber pronto sobre o outro; mais ainda, fala da psicologia clínica pela
mesma instituição e
gigantesca fragilidade de um Eu que não suporta o contato com a diferença radical especialista em psicologia
que está no âmago de todo contato humano. clínica com crianças.

7
saúde mental

Não tem
nenhuma
graça!

É compreensível que ser alvo de chacota provoque sentimentos


de rejeição e mágoa. Existe, porém, pessoas que sofrem de
uma patologia específica, relacionada a esse tipo de situação: a
gelotofobia, o medo exacerbado de ser motivo de riso

OS AUTORES
ZANE B. ANDREWS é neurocientista, doutor em endocrinologia, pesquisador-chefe
da Universidade Monash De Melbourne, Austrália. TAMAS L. HORVARTH é doutor em
medicina e neurobiologia, diretor do curso de medicina comparativa da Universidade Yale.
8
saúde mental

O
humor equilibrado tem sido apontado em inúme-
ras pesquisas como um fator fundamental para a
saúde não apenas física, mas também mental, já
que, além de ajudar a fortalecer o sistema imu-
nológico, favorece as interações afetivas e sociais. Partindo da
ideia de que para a maioria das pessoas as risadas são sinal de
alegria, alguns especialistas defendem, aliás, que sorrir tem efei-
tos terapêuticos. (veja quadro na página 10). De fato, a argumen-
tação se embasa cientiicamente – mas nem sempre é assim.
Quem sofre de gelotofobia – o medo de ser motivo de piada
(gelos, de origem grega, signiica risada) – teme até os gracejos
mais inocentes, sem intenção de expor ou ridicularizar o outro.
“Em geral, são pessoas bastante inseguras; para elas, qual-
quer sorriso é visto como negativo”, diz o psicólogo Willibald
Ruch, professor da Universidade de Zurique, pioneiro nas pes-
quisas sobre essa rara condição, inicia-
Pessoas com das há cerca de uma década. “Elas não
gelotofobia se acreditam que alguém esteja apenas
incomodam se divertindo, sem o propósito de feri-
profundamente -las”, observa. Ruch relembra um caso
que acompanhou em seu laboratório:
com sorrisos que
“O rapaz preferia esperar o próximo
julgam maliciosos; o
ônibus até encontrar um assento livre
transtorno costuma na última ileira, pois não suportava a
estar associado a ideia de que alguém pudesse se sen-
ansiedade e traumas tar no banco de trás e rir dele”.
ocasionados por Para avaliar a extensão do problema,
punição excessiva na os cientistas solicitam a esses indivíduos
infância e bullying que apresentam essa queixa que clas-

9
saúde mental

siiquem o quanto se identiicam com


Sorrir para declarações como “Levo bastante tem-
facilitar a vida po para me recuperar de uma rejeição”
Um estudo divulgado pela Escola de ou “Desconio quando outros riem perto
Medicina da Universidade Loma Linda, de mim”. Estudos feitos em vários luga-
na Califórnia, aponta que o riso aumenta
res do mundo sugerem que aproxima-
a produção e a atividade no organismo
das células NK (do inglês, natural damente 10% das pessoas apresentam
killers), responsáveis por destruir vírus sinais de gelotofobia, em algum grau.
e até tumores presentes no organismo.
Justamente por isso, o sorriso vem “Mas observamos polarizações, com
sendo utilizado como recurso de números mais baixos nos países em que
humanização no cuidado de pacientes
há maior igualdade social, como Holan-
em hospitais do mundo todo. Em
grande parte dos hospitais, a equipe de da e Dinamarca, com menos de 2% de
enfermagem já é orientada a entrar nos incidência, e pontuações bem altas em
quartos dos pacientes e se apresentar
(ou cumprimentar as pessoas quando já lugares onde a honra é considerada im-
as conhece) com um sorrido. portante e a vergonha é usada para o
Em um experimento realizado por
controle social, como em alguns países
cientistas da Universidade de Purdue,
nos Estados Unidos, foi solicitado a asiáticos, onde os percentuais podem
239 voluntários para passearem por chegar a 13%”, diz Ruch.
um trecho movimentado do campus.
Pelo caminho, uma das pesquisadoras Os pesquisadores começam a
(desconhecida pelos participantes) compreender como a gelotofobia se
sorria aleatoriamente para alguns
desenvolve. Além da cultura, as expe-
deles, olhava para os olhos de outros
ou simplesmente lançava olhares riências vividas na infância têm papel
distantes, ignorando a presença fundamental. Em um estudo com 100
dos participantes. Em seguida,
os voluntários preenchiam um famílias, cientistas notaram que os pais
questionário. Ao examinar as respostas, com maior tendência a punir e con-
os pesquisadores constataram que
trolar tinham maior probabilidade de
aqueles que tinham recebido o sorriso
da desconhecida se sentiam mais ter ilhos que temiam que alguém ca-
conectados aos outros e menos çoasse deles. Vários estudos demons-
apreensivos, ainda que não percebessem
conscientemente a influência do sorriso tram que muitos gelotofóbicos foram
recebido em seu trajeto. vítimas de bullying. Além disso, uma

10
saúde mental

pesquisa de 2012 sugere sobreposição com ansiedade social,


apontando que em torno de 40% das pessoas que sofrem de
crises ansiosas atendem aos critérios para o transtorno.
Estudos com imagens cerebrais mostram que esses pa-
cientes processam o humor de forma peculiar. Um estudo ele-
troencefalográico de 2016 revela que, quando ouvem sons de
gargalhadas ou gritos, essas pessoas mostram maior ativida-
de nas vias que conectam o córtex pré-frontal e o posterior.
A principal autora do estudo, a psicóloga Ilona Papoušek, da
Universidade de Graz, na Áustria, acredita que a ligação mostra
que essas pessoas são mais sensíveis aos aspectos maliciosos
(supostos ou reais) do riso.
Outro experimento publicado em 2016 mostra que, em com-
paração com um grupo de controle, quem sofre com o proble-
ma tem menor ativação nos circuitos de recompensa do cére-
bro ao ouvir piadas. Mas ainda não está claro o que vem primei-
ro: a gelotofobia ou o processamento neural atípico do riso. A
boa notícia é que o problema pode ser tratado com psicotera-
pia, segundo Ruch. O desaio talvez seja conseguir convencer o
paciente a visitar um psicólogo que, para que seus pacientes se
sintam à vontade, costuma recebê-los com um sorriso no rosto.

11
capa

Muitos sonham com um comprimido capaz de remover os


sentimentos de tristeza sem motivo, desânimo e irritação e
dores frequentes. No entanto, o quadro é complexo – com
sintomas que variam de um paciente para outro – e não
tem um único tratamento; o caminho mais eficiente resulta
da combinação de múltiplas ações, como psicoterapia,
exercícios físicos, meditação, estimulação cerebral e, em
muitos casos, também medicamentos
capa

A
maioria das pessoas vive por mais tempo e com
melhor saúde do que em qualquer outro momento
de nossa espécie. Mas nem por isso somos mais
felizes. Apesar das inúmeras opções de diversão,
maior poder de compra e, aparentemente, de escolha, esta-
mos cada vez mais insatisfeitos: a depressão será o problema
de saúde pública mais comum em menos de 20 anos; 350
milhões de pessoas de todas as idades sofrem com o trans-
torno no mundo, segundo a Orga-
nização Mundial da Saúde (OMS)
– 17 milhões só no Brasil. Nas pró-
ximas duas décadas, a patologia
deverá afetar mais pessoas que
o câncer ou as doenças cardíacas
e se constituir na maior causa de
afastamentos do trabalho.
Atualmente, a depressão é vis-
ta como resultado da combina-
ção de fatores endógenos (como
hereditariedade) e fatores de ris-
co ambientais, como valores cul-
turais e experiências emocionais.
Os sintomas se coniguram de maneira diferente em cada
paciente, de forma que não há tratamento deinitivo. “Seria
muito simples pensar a depressão apenas como resultado da
maior ou menor oferta de neurotransmissores. É mais correto
relacioná-la à interação desses agentes químicos – serotoni-
na, dopamina, glutamato e tantos outros. São vários caminhos
neurais diferentes que, juntos, determinam cognição, interes-
se, vontade”, explica o psiquiatra Ricardo Moreno, diretor do

13
capa

Grupo de Estudo de Doenças Afetivas (Gruda) do Instituto de


Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP).
Dor e depressão têm uma via neuroquímica comum. Em mé-
dia, pessoas com sintomas depressivos procuram atendimen-
to médico sete vezes mais do que
quem não tem o distúrbio, segun-
do a OMS. Menos da metade de-
las é diagnosticada corretamente
e recebe tratamento adequado.
“Queixas de dor crônica não raro
estão no centro de um círculo vi-
cioso de depressão, ansiedade,
estresse e insônia”, explica o psi-
quiatra Kalil Duailibi, coordenador
de psiquiatria da Universidade de
Santo Amaro (Unisa). A literatura
médica sugere que a noradrenalina, neurotransmissor envolvi-
do na regulação do humor, do ciclo de sono e na resposta de
estresse, desencadeia eventos em cascata, que se manifes-
tam em ansiedade, no início e, depois, em depressão.
Mais de 60% dos episódios depressivos são precedidos por
quadros de ansiedade, e a insônia crônica aumenta quatro
vezes o risco de depressão. Já o estresse crônico leva à dimi-
nuição do fator de proteção neuronal, afetando a ramiicação
dendrítica dos neurônios. Consequentemente, há morte de
células e redução do volume de regiões cerebrais (leia mais
sobre isso em artigo na pág. 18).
Estudos que usam técnicas de neuroimagem mostram
que, na depressão, há redução de atividade em áreas cor-
ticais, como córtex cingulado anterior, área associada a fun-

14
capa

ções como modulação de respostas emocionais, motivação


e atenção. Em contrapartida, há maior metabolismo de regi-
ões mais “primitivas” do cérebro, como a ínsula, relacionada
à sensação de repulsa, e do sistema límbico como um todo,
com amplo papel no processamento de emoções negativas.
De fato, um dos principais traços da depressão é uma manei-
ra “acinzentada” de interpretar o mundo, que prioriza as pers-
pectivas negativas. Duailibi cita o “fenômeno Kindling” na de-
pressão: um evento estressor signiicativo provoca o primeiro
episódio. Progressivamen-
O “fenômeno Kindling” é te, os quadros passam a
um evento estressor que ser desencadeados por
provoca o primeiro episódio eventos menos intensos
depressivo; progressivamente, ou mesmo sem motivo; é
os quadros passam a uma espécie de suscetibi-
ser desencadeados por lidade crônica, que envolve
ocorrências menos intensas alterações cerebrais, mui-
ou até sem motivo tas ainda não elucidadas, e
estímulos ambientais.
O tratamento mais comum, e de mais fácil acesso, ainda
é o farmacológico. Os medicamentos costumam trazer alívio
para pacientes com sintomas mais graves, que geralmente
apresentam prejuízos no trabalho e na vida pessoal. Em de-
pressões leves, a eiciência dos antidepressivos é menos níti-
da: eles têm desempenho equivalente ao placebo (substância
neutra, mas que pode desencadear efeitos psicológicos). “Se
os medicamentos ajudam a superar um episódio depressivo,
a psicoterapia ajuda a evitar outros”, salienta Duailibi.
Psicoterapia, terapias complementares e hábitos saudáveis,
como exercícios físicos (veja artigo na pág. 24), ajudam a pre-
venir a volta dos sintomas. Acupuntura, massagem, alimenta-

15
capa

ção rica em nutrientes e pobre em gordura animal combatem


o estresse e favorecem o bem-estar. Recentemente, o Con-
selho Federal de Medicina aprovou a técnica de estimula-
ção magnética transcraniana (EMT) supericial. O tratamento
consiste em aplicar ondas eletromagnéticas sobre o cérebro,
com o objetivo de modular o funcionamento de regiões (de-
terminadas por exames de neuroimageamento) que operam
de forma alterada em pessoas com transtornos neuropsiqui-
átricos. As ondas eletromagnéticas aumentam o luxo sanguí-
neo na área e, consequentemente, sua atividade cerebral.
“A área do cérebro a ser trabalhada é marcada numa touca
e o médico direciona os estímulos para o local correto. A EMT
pode ajudar pacientes que não respondem ao tratamento me-
dicamentoso, acelerar a resposta a ele ou mesmo ser uma al-
ternativa”, explica Marco Marcolin, coordenador do Serviço de
Estimulação Magnética Transcraniana do Hospital das Clínicas
da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
O tratamento é indolor, pois é não invasivo, não há corte nem
anestesia. Um estudo observacional publicado no periódico
cientíico Depression and Anxiety, que acompanhou 307 pa-
cientes com depressão grave que não estavam sendo tratados
com antidepressivos, revela que a EMT é eicaz para pacientes
que não respondem aos medicamentos: em média, 58% apre-
sentaram redução dos sintomas e 37%, ausência deles.
capa

O hábito de sofrer
Cada vez mais estudos comprovam o impacto positivo da me-
ditação sobre o humor. Uma pesquisa brasileira publicada na
Neuroimage mostra que a técnica melhora o desempenho ce-
rebral, especialmente em tarefas que exigem concentração. “O
cérebro de pessoas que meditam recruta menos áreas cere-
brais para realizar uma determinada tarefa, como se izesse uma
maior ‘economia’, o que se traduz em mais foco e concentração;
um desaio no mundo cheio de estímulos em que vivemos”, diz
a psicobióloga Elisa Koza-
O tratamento mais comum sa, do Instituto do Cérebro
ainda é o farmacológico, do Hospital Israelita Albert
mas nem sempre é o mais Einstein, autora do trabalho.
eficiente; em depressões leves, O cérebro de pessoas
a combinação de psicoterapia com depressão está “ha-
com outros cuidados costuma bituado” a processos men-
tais que desencadeiam o
trazer melhores resultados
problema, como pensa-
mentos depreciativos sobre si mesmo. A meditação ajuda o
paciente a se conscientizar de emoções, fantasias, lembranças
e situações que passam por sua mente consciente. Atualmen-
te, cientistas estão comprovando os benefícios da terapia ba-
seada na atenção plena (mindfulness), isto é, o uso de técnicas
de meditação para potencializar os efeitos do tratamento. Tra-
ta-se de um programa de oito semanas que ajuda o paciente
a perceber os velhos hábitos de pensar que atiram sua mente
em uma espiral descendente de pensamentos negativos. “A
proposta é que a pessoa aprenda a ser mais gentil consigo
mesma e atente para os aspectos positivos de seu cotidiano,
exercitando o julgamento baseado na autocompaixão”, explica
Kozasa, citando o dalai-lama Tenzin Gyatso: “A mente é como

17
capa

ssa
capa

A depressão não causa apenas sintomas


profundamente desconfortáveis que afetam
todas as áreas da vida do paciente; também
tem efeitos sobre a anatomia do cérebro, e pode
ser revertida com tratamento adequado

A
lgumas pesquisas estimam que entre 30% e 50%
das pessoas já preencheram, em algum momento
da vida, os critérios diagnósticos do transtorno de-
pressivo maior. Outros estudos sugerem que uma
em dez pessoas tem um episódio de depressão pelo menos
uma vez na vida – em geral desencadeado por uma situação
infeliz, por uma perda importante, pelo estresse constante ou,
em alguns casos, por uma doença grave. Quando a causa não
está em um agente externo, falamos em depressão endógena.
De acordo com os neurobiólogos, o distúrbio seria consequên-
cia da falta de certos neurotransmissores (monoaminas) no cé-
rebro: dopamina, noradrenalina e, principalmente, a serotonina,
que são hormônios reguladores de emoções.
Sabemos atualmente que a depressão não traz apenas des-
conforto, mas pode ter repercussões ainda mais graves, como
a diminuição de regiões especíicas do cérebro. Um estudo
realizado com tupaias (pequenos mamíferos herbívoros, se-
melhantes a esquilos), coordenado por Eberhard Fuchs, do
Centro de Primatas de Göttingen, Alemanha, foi o primeiro a
apontar nessa direção. Ele mostrou que em animais “deprimi-

19
capa

dos” – sem iniciativa, passivos e que pouco se alimentavam


– o hipocampo, que funciona como uma espécie de centro
de controle dos processos de aprendizagem e memória, apre-
sentava tamanho reduzido. Contudo, esse processo podia ser
detido com o tratamento da depressão. Algo semelhante foi
observado em seres humanos pela psiquiatra Yvette Sheline,
da Universidade de Washington. Ela analisou o hipocampo de
38 mulheres com depressão crônica e descobriu que, assim
como acontecia com os bichinhos estudados pelos alemães,
os efeitos neuroanatômicos existiam e também podiam ser re-
vertidos com tratamento adequado. Uma das formas de com-
bater esse efeito é manter o hábito de fazer exercícios físicos.

Muito além
da tristeza
A depressão se distingue do sentimento de
tristeza pela duração de seus sinais e pelo
contexto em que ocorre. Por exemplo, é
natural sentir-se triste e sem perspectivas
após a morte de um ente querido, perda do
emprego ou término de um relacionamento.
Períodos de luto, de elaboração de
experiências desagradáveis, acontecem na
vida de qualquer pessoa e, normalmente,
são superados – apesar de, atualmente,
termos cada vez menos tempo e espaço
para vivenciar a tristeza. Na depressão,
porém, essa sensação é duradoura. Humor
depressivo por mais de duas semanas,
incapacidade de sentir qualquer prazer,
tendência a sobrevalorizar eventos negativos
são alguns dos sinais emocionais. Também
há sintomas físicos, como problemas de
sono, falta de apetite e dores difusas.
capa

Não raro, pacientes se referem aos sintomas


depressivos recorrendo à metáfora de uma
espessa camada de névoa que os envolve
e potencializa as dores da existência

Vida muito tranquila


Mas algo chama atenção tanto de leigos quanto de especia-
listas: por que os casos de depressão têm aumentado tanto?
As estatísticas cresceram quando as pessoas passaram a des-
frutar de comodidades que poupam tempo. Paradoxalmente,
gerações anteriores, cuja vida se caracterizava por maiores es-
forços para a simples sobrevivência, eram mentalmente mais
sadias, o que faz pensar que o excesso de facilidades, de al-
guma forma, nos torna mais vulneráveis à depressão. Nossos
ancestrais evoluíram em condições nas quais era necessário
trabalho físico duro para prosperar, e esse empenho físico

21
capa

acionava áreas cerebrais, proporcionando sensações de bem-


-estar. A rede accumbens-estriado-cortical (sistema responsá-
vel pela conexão entre movimento, emoção e pensamento),
chamada pela autora de “circuito de recompensas impulsio-
nadas pelo esforço”, está na base dos sintomas associados à
depressão, como perda de prazer, respostas motoras lentas e
baixa concentração.
Quando a “economia doméstica” dos neurotransmissores sai
dos eixos, antidepressivos como luoxetina e sertralina podem
intervir de forma controlada e melhorar o humor. Com certeza,
os medicamentos trazem alívio, mas infelizmente não ofere-
cem a cura mágica que
Pesquisadores e leigos se gostaríamos de obter
perguntam por que razão no balcão da farmácia.
os casos de depressão têm Antidepressivos atuais
podem levar semanas
aumentado; uma das causas
para aliviar a depres-
pode ser o excesso de
são. Para certas pessoas
facilidades e conforto que a nem chegam a funcio-
vida moderna oferece nar, e, se funcionam hoje,
isso pode não acontecer
amanhã. Agentes de ação mais rápida e com novos mecanis-
mos são necessários, mas a fonte dessas drogas na grande
indústria farmacêutica é limitada.
Talvez um dos avanços mais signiicativos dos últimos anos
em relação à depressão seja que a percepção de que um úni-
co caminho pode não ser suiciente para toda e qualquer pes-
soa que apresente o quadro. Psicoterapias são fundamentais –
e não apenas como tratamentos coadjuvantes, mas em muitos
casos como principal estratégia terapêutica.

22
capa

Movimento
capa

O exercício é um dos tratamentos mais efetivos


para casos leves e moderados da doença, pois
fortalece a resiliência bioquímica ao estresse,
encoraja o crescimento de novas células cerebrais,
estimula a autoestima e pode até neutralizar um
risco genético de adoecimento

O
fato de que exercitar o corpo melhora a saúde fí-
sica – diminuindo o risco de doenças cardíacas,
obesidade, diabetes, câncer – já é tão conhecido
que se tornou lugar-comum falar sobre isso. Po-
rém os benefícios para a saúde mental não são tão óbvios ou
divulgados. No caso da depressão, um conjunto de evidências
recentes demonstra os efeitos benéicos da atividade física.
Além de promover autoestima, a prática fortalece a resiliência
neuroquímica ao estresse e o crescimento de novas células
cerebrais, e há indícios de que ajuda a compensar riscos as-
sociados à doença mental. Para a maioria das pessoas com
depressão leve a moderada, o exercício constitui um dos trata-
mentos disponíveis mais eicientes, seguros, práticos, baratos
– e agradáveis.
Somente uma fração dos milhões de pessoas acometidas
pela depressão busca assistência, e desse contingente apenas
um terço responde ao tratamento-padrão com medicamentos.
Os antidepressivos costumam ser caros e podem ter sérios efei-
tos colaterais, levando muitos pacientes a ansiar por soluções
mais baratas, seguras e naturais. Em uma pesquisa de mais de 2
mil adultos americanos com diagnóstico de depressão, mais da
metade relatava já ter recorrido a algum tipo de tratamento não
farmacológico, como ioga, itoterapia e acupuntura.

25
capa

Antidepressivos que aumentam os níveis de serotonina e


outros neurotransmissores podem funcionar ao revigorar a
proliferação neural, um processo que depende em parte de
uma molécula chamada fator neurotróico derivado do cére-
bro (BDNF). Em estudos tanto com animais quanto com pes-
soas, o exercício intensiica a produção de BNDF. Em 2015, o
médico Helmuth Haslacher e seus colegas na Universidade de
Medicina de Viena, na Áustria, compararam a saúde mental e
os genomas de 55 corredores de maratona e ciclistas de resis-
tência com os de 58 não atletas. Os pesquisadores concluíram
que o exercício aeróbico vigoroso no longo prazo pode de fato
neutralizar uma susceptibilidade genética à depressão, graças
à estimulação do BDNF.

26
capa

A neurobiologia pode também explicar por que, além do


fato de o exercício prevenir a depressão, o inverso parece ser
verdadeiro: correlações em pesquisas epidemiológicas suge-
rem que a inatividade física, embora algumas vezes resultante
da depressão, pode também constituir um risco maior para de-
senvolvê-la subsequentemente. Em um estudo de 2014 com
mais de 6 mil cidadãos idosos do Reino Unido, quanto mais
tempo despendiam assistindo à televisão, mais propensos
eram a relatar sintomas de depressão (embora isso não vales-
se para outras atividades
A inatividade aumenta sedentárias, como a lei-
os riscos: pessoas ativas tura). Aqueles que partici-
são em média 45% menos pavam de algum tipo de
atividade física vigorosa
propensas a se tornarem
pelo menos uma vez por
deprimidas em comparação
semana vivenciavam me-
às sedentárias nos depressão.
Da mesma forma, uma
pesquisa recente com 5 mil universitários chineses constatou
que, quanto mais tempo o jovem passava em frente à televi-
são ou tela de computador, mais propenso era a apresentar
sintomas depressivos. Em contraste, o risco de depressão caía
quanto mais isicamente ativo o aluno se mostrava, indepen-
dentemente da idade, gênero ou histórico familiar. Uma meta-
-análise de 24 estudos, envolvendo cerca de 200 mil partici-
pantes, chegou à mesma conclusão: o comportamento seden-
tário está associado a um risco aumentado de depressão. Na
média, as pessoas ativas são 45% menos propensas a serem
deprimidas do que as inativas, segundo o Departamento Ame-
ricano de Prevenção de Doença e Promoção da Saúde.

27
capa

tes
capa

Quando começamos a perceber que nos sentimos


angustiados ou com medo, pode ser útil nos lembrarmos
do que vimos, ouvimos ou pensamos nos últimos
minutos – e, assim, identificar o gatilho emocional

A
contece com todo mundo: de repente e inexplicavel-
mente nos sentimos alegres ou tristes, embora ainda
há pouco nosso humor estivesse bem diferente. Ge-
ralmente a culpa é de uma pista subliminar ou “estí-
mulo precedente” (priming). Mas não precisamos icar presos a
essas pistas subconscientes. Pesquisas recentes sugerem que
simplesmente reconhecer o fenômeno já é meio caminho an-
dado para assumir o controle novamente – ainal, não é porque
sentimos algo que isso necessariamente se justiica.
Os pesquisadores geralmente estudam os efeitos do estí-
mulo precedente induzindo os par-
ticipantes a acreditar que estão en-
volvidos no teste de outra variável
qualquer. Num estudo realizado na
Universidade de Toronto, pessoas
expostas a imagens de logotipos
de fast-food, sem se darem conta
disso conscientemente, tornavam-
-se mais impacientes e dispostas
a gastar. Outro estudo, publicado
no periódico cientíico Journal of
Psychosomatic Research, mostrou
que, quando os participantes evo-
cavam lembranças relacionadas a

29
capa

doenças, sua tolerância à dor di-


minuía, como se icassem mais
sensíveis diante da lembrança da
fragilidade física.
Um artigo publicado no perió-
dico Social Cognition revela como
metas das quais não temos cons-
ciência clara (aquelas que se tor-
naram tão automáticas que nem

Pensamentos
felizes em ação
Em busca das causas da funeral de um ente querido ocorrido Essa descoberta dá respaldo aos
depressão, recentemente nos últimos cinco anos. Em outra estudos anteriores que sugerem
pesquisadores americanos fase da experiência, eles tiveram de que, em muitos casos, o mau
localizaram duas regiões do imaginar como seria se envolver funcionamento da amígdala e
cérebro ligadas ao otimismo. em um grave acidente de carro do córtex cingulado anterior está
Participaram do estudo em um futuro próximo. Em outros relacionado ao aparecimento
15 pessoas que não só se momentos, as pessoas tinham de sintomas de transtornos
reconheciam como alegres e de pensar em acontecimentos do humor. Segundo o cientista
bem-humoradas, mas também positivos, como ter feito uma Wayne Drevets, do Instituto
foram avaliadas dessa forma maravilhosa viagem no passado Nacional de Saúde Mental,
pelos especialistas ao serem ou receber uma grande soma de em Bethesda, Estados Unidos,
submetidas a um questionário- dinheiro no futuro. durante autópsias realizadas
padrão. A pesquisadora A análise dos dados obtidos em pacientes severamente
Elizabeth Phelps e seus colegas no exame de imageamento deprimidos foram encontradas
da Universidade de Nova York cerebral revelou que refletir sobre menos células do que o normal
pediram aos voluntários que os acontecimentos passados nessas áreas. Ele acredita que
imaginassem diversos cenários e futuros ativa a amígdala e o as novas descobertas do estudo
possíveis enquanto passavam córtex cingulado anterior. No de Elizabeth Phelps podem
por exame de ressonância entanto, os eventos positivos – e ajudar a esclarecer, da ótica
magnética funcional (fMRI). particularmente os projetados neurocientífica, por que pessoas
Em dado momento, os no futuro – provocaram resposta com depressão têm dificuldade
participantes seguiram instruções significativamente mais intensa do de produzir pensamentos alegres
para se lembrar de um evento que refletir sobre acontecimentos ou se mostrar confiantes. (Da
negativo do passado, como o negativos. redação)

30
capa

percebemos que ainda as estamos perseguindo, como ema-


grecer, impressionar o chefe ou tirar férias do Facebook) podem
nos deixar com um humor “misterioso” – positivo ou negativo.
No estudo tratado no artigo, alguns participantes que de-
veriam perseguir certo objetivo foram previamente estimu-
lados com uma tarefa de leitura que incluía palavras como
“sucesso” e “realização”. Os voluntários, entretanto, não ti-
nham consciência dessa preparação, acreditavam que a lei-
tura não estava relacionada com o experimento. Quando se
saíram mal numa tarefa subsequente de desaio mental, seu
estado de ânimo se mostrou mais
Somos influenciados por negativo que o daqueles que não
foram submetidos antes ao exer-
estímulos que sequer
cício com palavras orientadas para
percebemos de forma
o cumprimento de uma meta.
consciente; felizmente A chave para superar os efeitos
é possível a controlar da preparação pode ser bastan-
essas interferências te simples: exercitar a autocons-
ciência. Ou seja: prestar atenção
em nossas reações sem se deixar levar pelo “automatismo”
no qual costumamos viver. Um fato a ser destacado é que o
ânimo dos participantes melhorou quando os pesquisadores
mostraram por que razão eles começaram a se sentir tristes.
O que isso signiica na prática? Talvez, que, quando começa-
mos a perceber que nos sentimos angustiados, depressivos
ou com medo, pode ser útil nos lembrarmos do que vimos,
ouvimos ou pensamos nos últimos minutos – e, assim, identii-
car o gatilho emocional. Essa atitude, pautada por uma escolha
racional, costuma ser bastante útil para superar crises de mau
humor repentinas e, aparentemente, misteriosas.

31
comportamento

A ciência do
otimismo
Pesquisas sobre um fenômeno denominado “erros
de previsão” revelam a inclinação
de nosso cérebro para superestimar as
probabilidades de que ocorram eventos positivos
32
comportamento

E
xperimente perguntar a um casal que planeja se casar
quais são suas possibilidades de separação no futuro.
Provavelmente a maioria das pessoas responderá “ne-
nhuma!”. Tente, então, informar aos pombinhos que o
Brasil tem registrado, ano a ano, queda no número de casamen-
tos e aumento de divórcios, segundo dados da pesquisa Esta-
tísticas do Registro Civil do Instituto Brasileiro de Geograia e Es-
tatística (IBGE). De acordo com os dados mais recentes, de 2016,
foram concedidos 344.526 divórcios, um aumento de quase 5%
em relação a 2015 (o que pode parecer pouco, mas vale lem-
brar que estamos falando de quase 16 mil separações). Depois
de apresentar esses dados, repita a pergunta aos noivos. Eles
mudarão de opinião?
Questões culturais, valores Improvável. Até as pes-
familiares, sistemas de crenças soas que por motivos
e até desequilíbrios da proissionais têm na
capacidade neurológica de lidar memória cada detalhe
com erros influem em nossa dos aspectos legais do
forma de avaliar perspectivas divórcio, inclusive sua
elevada incidência, no
calor dos últimos preparativos para a cerimônia tendem a decla-
rar que o risco de que eles próprios se divorciem é praticamente
inexistente. Como se explica isso?
Psicólogos vêm reunindo testemunhos do otimismo há déca-
das e já constataram que em geral as pessoas superestimam as
chances de que lhes ocorram eventos positivos, como ganhar
na loteria. Ao mesmo tempo, subestimam a probabilidade de
ocorrência de eventos negativos, como se envolver em um aci-
dente de carro ou desenvolver câncer. Informar as pessoas das

33
comportamento

NOIVOS CONFIANTES:
o conhecimento dos
dados estatísticos sobre a
média de casamentos que
terminam em divórcio não
abala a convicção de uma
noiva de que isso nunca
acontecerá com ela

probabilidades estatísticas de viver eventos negativos, como o


divórcio, parece ser surpreendentemente ineicaz se o propósi-
to for alterar as previsões otimistas; do mesmo modo, ressaltar
fatores de risco de doenças que ainda não se manifestaram não
é suiciente para suscitar percepções realísticas a respeito da
própria vulnerabilidade. Ou seja, saber não basta.
Intrigados com essa constatação, os especialistas têm se per-
guntado como funciona o processo psíquico que faz com que
as pessoas mantenham uma visão cor-de-rosa do futuro mes-
mo diante de fatos da realidade que se contrapõem às expecta-
tivas positivas. Ainal, quais são os processos neurais envolvidos
nas expectativas otimistas?
Para encontrarmos uma resposta, estudamos o otimismo
usando uma abordagem neurocientíica introduzida recente-
mente e hoje em pleno desenvolvimento: a descrição da ati-
vidade neurológica associada a comportamentos complexos
com base em um conceito simples de erros de previsão.
Trata-se de utilizar e avaliar a capacidade do cérebro de

34
comportamento

Dinheiro da vovó
Para explicarmos melhor a capacidade
cerebral de fazer avaliações e previsões,
podemos recorrer a um exemplo
prático. Imagine que uma tia muito
querida lhe dê uma quantia de dinheiro
cada vez que você for visitá-la. Faça
uma estimativa de quanto ela lhe
dará com base no quanto ela dispõe
de recursos financeiros e em sua
generosidade. Assim, quando ela lhe
der o dinheiro concretamente, não
ficará apenas contente com o presente,
mas poderá verificar também quanto
a realidade pode divergir daquilo
que imaginou. Em outras palavras:
prever o que acontecerá no considere margens de erro em suas
estimativas, assim você aumentará
futuro. O conceito foi usado
suas chances de prever corretamente
pela primeira vez em pesqui- quanto sua tia lhe dará na próxima
sas sobre inteligência artiicial. vez que for visitá-la. Esse processo
exemplifica um modelo essencial da
Sucessivamente, a ideia foi aprendizagem, usado constantemente
aplicada a diversos âmbitos pelo cérebro.
de pesquisa, dando origem
a vários modos de descrever os erros por meio de equações
matemáticas (veja quadro acima).

Um bom conselho
Psicólogos e neurocientistas dedicaram dezenas de estudos à
identiicação das regiões do cérebro envolvidas no cálculo dos
erros de previsão. A questão foi analisada de vários modos, mas
o experimento mais típico consistiu em pedir que voluntários jo-
gassem – apostando dinheiro – em versões computadorizadas
de um caça-níquel enquanto seu cérebro era analisado durante
um exame de ressonância magnética funcional (fMRI).

35
comportamento

Um resultado desses estudos foi particularmente interes-


sante. Foram observados esquemas de atividade neurológica
similares tanto quando os voluntários jogavam a dinheiro como
em ocasiões nas quais estavam empenhados em manter inte-
rações sociais complexas, em que constatavam, por exemplo,
que havia pertinência e sabedoria em algum conselho recebido
da pessoa com quem conversavam ou numa frase que o inter-
locutor dizia.
O pesquisador Timothy Behrens e seus colegas da Universi-
dade de Oxford usaram os erros de previsão para desenvolver
um modelo de como os seres humanos incorporam os conse-
lhos dos parceiros sociais em suas decisões. Os participantes do
experimento deviam escolher repetidamente uma dentre três
opções para que recebessem a maior recompensa.
Antes de escolherem, entretanto, viam qual opção a outra
pessoa havia aconselhado. Os indivíduos deviam então calcular
os erros de previsão relativos a dois tipos de informação: não so-
cial (qual recompensa davam as duas opções) e social (quanto
o conselho recebido parecia bom). Os resultados demonstra-
ram que os dois tipos de equívocos eram elaborados de modo
análogo, sugerindo a existência de correlações conceituais na
elaboração das informações sociais e não sociais.

Quem gosta de você?


Os erros de previsão parecem ser inluenciados também por
outro aspecto muito comum do comportamento humano: a
descoberta de que outra pessoa tem estima (ou indiferença) por
nós. Em uma pesquisa recente realizada pela neurocientista Re-
becca Jones e seus colegas da Universidade Cornell, os parti-
cipantes do estudo avaliavam com que frequência desconheci-

36
comportamento

NÃO BASTA SABER:


ressaltar fatores de
risco de doenças
que ainda não se
manifestaram não
é suficiente para
suscitar percepções
realísticas a
respeito da própria
vulnerabilidade

dos da mesma idade demonstravam interesse em interagir com


eles por meio de mensagens no Facebook.
Os erros de previsão captavam a diferença entre as expecta-
tivas de receberem mensagens e o que acontecia de fato. Ana-
logamente ao que foi veriicado no estudo de Timothy Behrens,
os sinais relativos ao erro de previsão estão ligados à atividade
cerebral comumente ativada quando aprendemos a frequência
com que podemos esperar obter recompensas não sociais –
como o dinheiro.
Apesar dessas constatações, muitos cientistas continuavam
se perguntando de que modo os erros de previsão nos ajudam
a compreender o otimismo. Para entendermos melhor essa
questão, realizamos um estudo na Universidade College Lon-
don. Continuávamos querendo saber como as pessoas fazem
para conservar suas previsões otimistas.
Em nosso experimento, os voluntários estimavam sua proba-
bilidade de viver 80 eventos negativos, entre os quais sofrer de
diversas doenças e cometer atos delituosos. Em um segundo
comportamento

momento, eles eram informados das probabilidades estatísticas


de aqueles eventos se concretizarem no decorrer da existên-
cia de uma pessoa. Enim, avaliamos até que ponto os voluntá-
rios alteravam suas previsões ao solicitarmos que izessem uma
nova avaliação. O mesmo pedido foi feito em relação a aconte-
cimentos positivos.
Curiosamente, se as notícias eram boas – por exemplo, quando
um evento negativo resultava estatisticamente menos provável
do que pensavam –, as pessoas facilmente reviam suas opiniões,
mostrando-se mais otimistas. Mas, se as informações eram ruins,
tendiam a mudar bem
Se as notícias são boas, ainda pouco os prognósticos.
que pouco prováveis, as pessoas Além disso, os erros
tendem a rever suas opiniões, de previsão para as
mostrando-se mais esperançosas, notícias boas e as de-
mas, se as informações são ruins, sagradáveis apareciam
fazem poucas alterações em seus ligados a regiões ce-
prognósticos positivos rebrais distintas. Aliás,
quanto mais otimista
era o participante, menos eiciente parecia ser a região respon-
sável pela codiicação das informações desagradáveis. Isso nos
leva a considerar que a responsabilidade pela tendência a ter-
mos (ou não) uma visão positiva do futuro pode estar relacio-
nada a um desequilíbrio na elaboração cerebral dos erros. Sa-
bemos, porém, que há questões a serem consideradas, ligadas
ao sistema de crenças das pessoas e aos seus valores culturais.
Por mais que a neurociência esteja avançada, é preciso reco-
nhecer que não é possível dizer com certeza tudo que se passa
na mente de uma noiva diante do altar ou de uma mãe que olha
amorosamente para seu bebê.

38
longevidade

Mais
inteligência,
mais
tempo

Embora o bom nível intelectual não seja suficiente para


garantir que teremos uma vida mais longa, muitos cientistas
acreditam que, quanto mais baixa a capacidade cognitiva
de uma pessoa, maior seu risco de desenvolver doenças
físicas e mentais e morrer prematuramente
40
longevidade

M
uitos cientistas acreditam que o processo de en-
velhecimento resulta do acúmulo gradual de um
enorme número de pequenas “falhas” isoladas.
É uma espécie de somatório degenerativo que
regula nosso tempo de vida por meio de um delicado equilí-
brio entre a rapidez com que novos danos atingem as células
e a eiciência com que os problemas são corrigidos. Recente-
mente, especialistas de áreas que nem sempre estiveram pró-
ximas têm se unido em busca de pistas que possam prever
quais aspectos de fato inluenciam o bem-estar e as doenças
e antecipam (ou retardam) a morte. É o caso dos doutores em
psicologia Alexander Weiss e Ian J. Deary e do especialista em
epidemiologia David Batty.

Os pesquisadores utilizam séries históricas de estudos em


saúde, que abrangem várias décadas. Nesses projetos, cen-
tenas, milhares ou às vezes até 1 milhão de pessoas são sis-
tematicamente avaliadas e acompanhadas ao longo de vários
anos. Analisando cuidadosamente esses dados, eles e outros
pesquisadores descobriram uma nova forma de prever a lon-
gevidade das pessoas: os resultados obtidos em testes de in-
teligência quando jovens.

41
longevidade

“Os resultados são inequívocos, embora poucos proissio-


nais da saúde os conheçam: quanto mais baixo o nível de inte-
ligência de uma pessoa, maior o risco de ela ter uma vida mais
curta, desenvolver doenças físicas e mentais com o passar dos
anos e morrer de patologias cardiovasculares, suicídio ou aci-
dente”, airma Deary. Obviamente não é possível fazer genera-
lizações, mas é surpreendente que baixo nível de inteligência
ofereça prognóstico tão forte de fatores de risco bem conhe-
cidos para doenças e morte, como obesidade e hipertensão.
Mas simplesmente ter boa capa-
Psicólogos argumentam cidade intelectual não basta para
que a inteligência garantir a longevidade: é preciso
emocional é ainda mais agir e decidir como pessoas inte-
ligentes. E, muitas vezes, funcio-
importante, pois pode
namentos psíquicos e aspectos
atenuar possibilidades
emocionais não permitem que
de doenças as pessoas usem o potencial que
cardiovasculares, têm a seu próprio favor.
suicídio ou acidente Psicólogos e neurocientistas
alertam para a importância da re-
siliência, uma palavra “emprestada” da área da física que es-
tuda a resistência dos materiais. O termo passou a ser usado
em psicologia para falar da habilidade psíquica de enfrentar
frustrações e dos recursos de que a pessoa dispõe para re-
gular sentimentos como tristeza, raiva e medo. “A forma como
lidamos com desaios e situações que nos aligem inluencia o
nível de estresse e, consequentemente, a saúde mental e físi-
ca”, observa o psiquiatra Steven M. Southwick, especialista em
transtorno de estresse pós-traumático e em resiliência e pro-
fessor da Escola de Medicina da Universidade Yale. É possível

42
longevidade

aprimorar a resiliência, em especial por meio da psicoterapia,


que oferece à pessoa a oportunidade de rever, elaborar e rein-
terpretar as próprias experiências.
O psicólogo Kevin Ochsner e seus colegas da Universidade
Columbia comprovaram que, quando uma pessoa passa a re-
interpretar o signiicado de um evento adverso e a enxergá-lo
de forma mais amena, diminui suas reações isiológicas rela-
cionadas a situações traumáticas. A descoberta mais interes-
sante da equipe de Ochsner é que ganhos emocionais vêm
acompanhados de mudanças cerebrais especíicas, como
o aumento da atividade no córtex pré-frontal, área envolvida
no planejamento e decisões, além de diminuição da ação da
amígdala, região relacionada ao processamento de emoções
primitivas, como o medo. Ou seja: ampliar a capacidade de re-
siliência tende a nos tornar emocionalmente mais seguros e
com maior clareza mental para nos direcionar aos cuidados
que realmente são necessários e, possivelmente, nos ajuda a
permanecer vivos por mais tempo.

43
alimentação

Sedutoras
caloriasO valor energético dos alimentos ativa
o sistema cerebral da recompensa tanto
quanto o sabor, desencadeando o desejo
por determinadas comidas; descobertas
devem ajudar no combate a transtornos
alimentares e obesidade

OS AUTORES
ZANE B. ANDREWS é neurocientista, doutor em endocrinologia, pesquisador-chefe
da Universidade Monash de Melbourne, Austrália. TAMAS L. HORVARTH é doutor em
medicina e neurobiologia, diretor do curso de medicina comparativa da Universidade Yale.

44
alimentação

S
e há algo que nos iguala é a
fome. Mas que mecanismo
biológico é esse que nos diz
quando comer e quando pa-
rar? Há muito tempo se considera que,
em grande parte, dois processos neu-
robiológicos inluenciam a ingestão de
comida: um, que controla a necessida-
de de comer, e outro, que rege o desejo por determinados ali-
mentos. No cérebro, o hipotálamo regula o controle homeostá-
tico da dieta, recebendo, coordenando e reagindo aos indícios
e sinais metabólicos enviados pelo sistema digestivo. Essa área
cerebral integra as informações e nos “diz” quando precisamos
comer para manter o peso corporal em um nível preestabe-
lecido, como se fosse um termostato programado para avisar
quando o ambiente atingisse uma temperatura especíica.
No entanto, é evidente que os centros neurais superiores que
controlam o apetite também tenham inluência sobre nossos
hábitos alimentares. Um desses centros é o sistema de grati-
icação e recompensa da dopamina. É fácil identiicar a ação
desse sistema: por exemplo, quando temos vontade de uma
taça de sorvete de chocolate depois do jantar, ou seja, de uma
comida em um momento em que não estamos sentindo fome,
mas sim porque a desejamos.
Em muitas situações, este anseio por certos pratos prevalece
sobre a necessidade, levando-nos a consumir produtos saboro-
sos, mesmo quando não precisamos suprir nosso organismo. De
forma geral, nossa incapacidade de renunciar a esses alimentos
que tanto nos recompensam derrota o controle homeostático,

45
alimentação

contribuindo para o surgimento da obesidade.


Sabemos que o hipotálamo regula a quan-
tidade do que consumimos com base
nos valores metabólicos (quando temos
fome, procuramos alimentos com mais
calorias); mas ainda falta entender se o
sistema de recompensa da dopamina
também é sensível ao valor energético
da comida. Em outras palavras, o siste-
ma de recompensa da dopamina se ocupa
COM SACAROSE:
em um estudo, também das calorias, ou somente do gosto e do
mesmo os ratos
geneticamente prazer, como durante muito tempo os cientistas acreditaram?
modificados
para não sentir Na Universidade Duke, o pesquisador brasileiro Ivan de
sabores mostraram
preferência por
água adoçada
Araujo e um grupo de colegas tentaram descobrir isso usan-
do uma linhagem de ratos geneticamente modiicados para
que não tivessem um receptor especíico, sem o qual não é
possível sentir sabores doces. Os resultados do trabalho, pu-
blicados em um artigo no periódico cientíico Neuron, mos-
traram que qualquer mudança no comportamento de recom-
pensa desses animais não poderia ser atribuída à percepção
do sabor. Se os roedores preferissem as comidas doces, não
seria por causa do gosto, mas porque esses alimentos têm
mais calorias, o que traria satisfação independentemente da
sensação despertada no paladar.
Na primeira fase de testes os pesquisadores demonstraram
que os ratos geneticamente modiicados eram insensíveis às
doces propriedades de recompensa da sacarose (o açúcar de
mesa) – e preferiam a água pura. Os animais sem a mutação,
ao contrário, mostravam uma forte preferência pela água em
que a sacarose tinha sido dissolvida.

46
alimentação

Posteriormente, foram oferecidas aos dois grupos de roedo-


res tanto água pura quanto adoçada. A ideia era descobrir se
os ratos geneticamente modiicados podiam associar as so-
luções adoçadas à contribuição calórica – porque alimentos
doces contêm mais calorias. O resultado foi que todos consu-
miram muito mais sacarose: embora não fossem capazes de
sentir o sabor doce, os espécimes geneticamente modiicados
haviam aprendido a preferir a água adoçada. Isso indica que os
animais sem os receptores para o doce conseguiram diferen-
ciar as propriedades calóricas da sacarose sem sentir seu sa-
bor – o que faz os cientistas supor que existe algo que, por sua
própria natureza,
Em animais modificados em é prazeroso na
laboratório, o aumento de dopamina ingestão de co-
surgia apenas com açúcar, e não com midas calóricas.
adoçante artificial, indicando que são Para tirar a pro-
as calorias, não o sabor doce, que va, os testes fo-
ativam o sistema de recompensa ram repetidos
usando-se um
adoçante artiicial, a sucralose, que tem sabor doce mas não
contém calorias. Os ratos normais continuaram preferindo o
sabor doce e consumiram mais água com sucralose, mas os
geneticamente modiicados, não. Esses resultados já indica-
vam que a percepção do valor metabólico pode inluenciar a
ingestão de comida. Porém, ainda faltava saber se o sistema
de recompensa da dopamina, do qual se conhece a ativação
em resposta ao sabor doce, também estava envolvido no con-
trole das calorias.
Araujo e seus colegas utilizaram uma técnica conhecida
como microdiálise nos ratos geneticamente modiicados e

47
alimentação

DE OLHO NO
PRATO:
a percepção do
valor metabólico
pode influenciar
a ingestão
de alimentos

constataram que a contribuição calórica aumenta os níveis de


dopamina em uma área especíica do cérebro, o núcleo ac-
cumbens, independentemente do gosto que tenha o alimento.
De fato, enquanto nos ratos normais tanto a sacarose como a
sucralose provocavam o aumento da dopamina além dos ní-
veis considerados padrão, nos modiicados o aumento de do-
pamina surgia apenas com o açúcar “de verdade”, indicando
assim que era a contribuição calórica (e não o sabor doce) que
ativava o sistema de recompensa.
Embora isso prove que as calorias inluenciam o sistema ce-
rebral nos ratos geneticamente modiicados qualquer que seja
o sabor dos alimentos ingeridos, nos normais a sacarose não
aumenta os níveis de dopamina mais que o adoçante artiicial.
Isso leva a pensar que as calorias não aumentam a sensação
de recompensa mais que a presença do sabor. E há ainda um
ponto a ser enfatizado: em todas as experiências conduzidas
por Araujo estava previsto que os animais passassem um pe-

48
alimentação

ríodo de privação de comida e água. A ativação do sistema de


recompensa da dopamina, por parte da contribuição calórica
descrita na pesquisa, poderia ter sido alterada pelas condições
de privação alimentar das cobaias.

Além da satisfação
Esse estudo traz à tona novas perguntas. Como o sistema de re-
compensa da dopamina reconhece a quantidade calórica? Exis-
tem açúcares (a frutose, por exemplo) que inluenciam o sistema
cerebral de maneira diferente? E o fenômeno se veriica também
quando as calorias provêm de ti-
pos variados de comida? São
perguntas a responder, para
que seja possível compreen-
der as verdadeiras causas da
obesidade. Entender a capaci-
dade que determinados alimentos
têm de estimular o sistema de recom-
pensa nos ajudará a elaborar métodos ei-
cazes para reduzir o desejo por comida uma vez
que a necessidade tenha sido satisfeita.
A pesquisa acrescenta informações a estudos que indicam
que processos metabólicos não são de domínio exclusivo do
hipotálamo. Entre os sinais captados por essa área cerebral e
os centros superiores neurais que determinam o desejo por co-
mida existe uma relação muito mais complexa do que durante
muito tempo se acreditou. Classiicar a alimentação como práti-
ca hedonista ou homeostática pode ser não apenas redundan-
te, mas levar a um caminho errado. Ainal, quando se trata de ali-
mentação, necessidade e desejo não são assim tão separados.
neurociência

Um código para
recuperar
movimentos
Cientistas recorrem à criptografia
para traduzir e compreender a
atividade cerebral; a proposta é
desvendar padrões neuroquímicos
para ajudar pacientes que hoje
sofrem de paralisias

D
urante a Segunda Guerra Mundial, os criptógrafos
decifraram o código que icou conhecido como
Enigma da Alemanha, explorando padrões de lin-
guagem conhecidos nas mensagens criptografa-
das. Usando as frequências e distribuições esperadas de certas
letras e palavras, o matemático britânico Alan Turing, precursor
da ciência da computação, e seus colegas encontraram a cha-
ve para traduzir rabiscos em linguagem simples. Estima-se que
aproximadamente 50 milhões de pessoas tenham morrido no
conlito. E esse quadro poderia ser ainda mais trágico não fosse

50
neurociência

a atuação da equipe de Turing. Agora, os pesquisadores estão


buscando no mundo da criptograia informações que os ajudem
a converter sinais cerebrais em movimentos dos membros.
Muitos movimentos humanos, como caminhar ou alcançar e
segurar um objeto, seguem padrões previsíveis. Com isso em
mente, a neurocientista Eva Dyer, pesquisadora do Instituto de
Tecnologia da Geórgia e da Universidade Emory, desenvolveu
uma estratégia inspirada em criptograia para decodiicação
neural.  Ela e seus colegas publicaram seus
resultados em dezembro no periódico cientí-
ico Nature Biomedical Engineering.
A área de estudo ainda é bastante recen-
te, e esse é um dos primeiros estudos sobre
o tema a serem publicados. As interfaces cé-
rebro-computador existentes, como aquelas
que controlam alguns membros protéticos,
geralmente usam algoritmos chamados de-
codiicadores supervisionados. Os dispositivos
O JOGO DA IMITAÇÃO, dependem do registro simultâneo da atividade
de 2014, sobre atuação do
criptoanalista britânico Alan Turing,
precursor dos computadores
neural e dos detalhes do movimento momen-
e da inteligência artificial;
a atuação do matemático foi
to a momento, incluindo a posição e a veloci-
decisiva para a derrota do nazismo
dade dos membros – um processo trabalhoso
e demorado. A informação é então usada para
“treinar” o decodiicador para traduzir padrões neurais em seus
movimentos correspondentes. Em termos de criptograia, isso
seria como comparar um número de mensagens já decodiica-
das com suas versões criptografadas para fazer uma espécie
de engenharia reversa.

51
neurociência

A equipe de Dyer, no entanto, usou outra estratégia: procu-


rou prever movimentos usando apenas as “mensagens crip-
tografadas” (atividade neural) e uma compreensão geral dos
padrões que surgem em certos movimentos. Os cientistas trei-
naram três macacos para usar movimentos de braço ou pulso
para guiar um cursor a vários alvos em uma tela.  Ao mesmo
tempo, os eletrodos implantados registraram sinais de cerca
de 100 neurônios no córtex motor de cada macaco - uma re-
gião do cérebro que controla o movimento. 
Em seguida, os cientistas testaram uma série de modelos
computacionais até encontrar o que melhor mapeou padrões
de atividade neural em sequências que eles tinham visto nos
movimentos dos animais. Quando os pesquisadores usaram
seu melhor modelo para desvendar a atividade neural a par-
tir de testes individuais, eles puderam prever os movimentos
reais dos macacos nesses ensaios, bem como alguns decodi-
icadores básicos supervisionados. “É um resultado muito pro-
missor”, comemora o neurocientista computacional Jonathan
Kao, pesquisador computacional da Universidade da Califórnia
em Los Angeles, que não esteve envolvido no estudo.
“Em comparação com os decodiicadores de última gera-
ção, esse ainda não é um método competitivo”, diz Dyer. Para
a cientista, o trabalho pode ser considerado uma evidência de
que ela e sua equipe estão no caminho certo, mas reconhecem
que ainda há muito a ser feito antes que a técnica possa ser
usada amplamente na recuperação de pessoas que sofreram
lesões e, por conta disso, têm seus movimentos prejudicados.
“Estamos animados, claro, mas temos consciência de que por
enquanto só arranhamos a superfície, muito mais ainda está
por vir.” (Por Helen Shen, jornalista cientíica)

52
livro | lançamentos

Patologias do social:
arqueologias do sofrimento
psíquico. Vladimir Safatle, Nelson
da Silva Jr., Christian Dunker (orgs.).
Autêntica, 2018. 352 págs. R$ 54,90.

Faces do sofrimento
Sob várias perspectivas teóricas, 52 autores questionam
o que leva algumas formas de sofrer a serem vistas como patológicas,
enquanto outras sequer são reconhecidas como legítimas

O
livro Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico é resultado
de dez anos de pesquisas realizadas pelo Laboratório de Teoria Social,
Filosofia e Psicanálise, da Universidade de São Paulo (USP). Os 11
textos produzidos por 52 autores têm o sofrimento psíquico como tema central,
abordado de forma transversal, fazendo jus ao caráter interdisciplinar do labora-
tório. A obra, organizada pelos acadêmicos Vladimir Safatle, Nelson da Silva Jr.,
Christian Dunker, apresenta diferentes eixos teóricos nos campos da filosofia, psi-
quiatria, sociologia, psicanálise, bem como conceitos de alguns de seus principais
expoentes da intelectualidade, como os psicanalistas Sigmund Freud, Jacques La-
can e Melanie Klein, além dos filósofos Theodor Adorno e Michel Foucault.
Tamanho esforço de composição se deve à magnitude do problema proposto:
abordar o sofrimento psíquico não como campo restrito à psicologia e à psiquiatria,
mas sua articulação com as configurações sociais. Os autores parecem se pergun-
tar, cada um a seu modo, de que maneiras as transformações na esfera de valores
e normas sociais, organização familiar e do trabalho facultam o aparecimento de
novas formas de subjetivação e de desejo, além de possibilidades de lidar com a dor.
Afinal, o que possibilita que algumas formas de sofrimento sejam atestadas como
patológicas e outras não sejam sequer reconhecidas como legítimas?
Algumas definições fundamentais dos autores a respeito da relação entre os
termos do problema – sofrimento, patologia e social – são apresentadas ao leitor.
“Uma época histórica pode ser descrita a partir das patologias que ela faz circular
e das patologias que ela invalida”, escreve Safatle. Mais adiante, Dunker afirma:
“O aqui ‘patológico’ deve ser entendido desde o social, ou seja, como bloqueio,
interrupção ou contradição não reconhecida nos laços sociais”. Os autores sub-
linham que essas contradições se apresentam não apenas no âmbito normativo
de uma sociedade, mas também na esfera dos afetos em trânsito – esta sim a
verdadeira base normativa da vida social.

54
livro | lançamentos
Ainda que apresente aspectos heterogêneos, esse tipo de abordagem do sofri-
mento se insere na tradição de pensamento sobre as patologias sociais. Essa tra-
dição tem recebido interesse crescente nos últimos anos, principalmente a partir
de 1994, com a publicação do ensaio Patologias do social, de Axel Honneth, que re-
sultou na renovação de uma discussão bastante frutífera na sociologia e na teoria
crítica. Também na psicanálise o debate é atual, principalmente com a circulação
das teses de Jacques-Alain Miller, Charles Melman e Gérard Lebrun, publicadas na
virada do milênio, que tentam entrelaçar diagnóstico de época com o surgimento
de uma nova subjetividade.
As discussões sobre as formas atuais desses debates na filosofia e na psicaná-
lise aparecem nos capítulos de introdução e de encerramento do livro. O primeiro
apresenta algumas das principais teorias dentro da filosofia e das ciências sociais
sobre as patologias do social. Nesse capítulo, figuram também as críticas às pro-
postas contemporâneas de renovação do conceito de patologias sociais e as pro-
postas para expansão de seu potencial transformativo. Na parte final, a retomada
das principais questões sobre o tema aparece no campo da psicanálise.
Ao assumir a matriz social das patologias e recusar qualquer visão essencialista
de doença mental, o campo da psicopatologia é interpelado em efeito cascata ao
longo dos capítulos seguintes. Neles, são colocados em questão as classificações
psiquiátricas, os debates sobre etiologia, a formação das categorias clínicas, a con-
cepção de sintoma, sempre tendo como ponto de referência a história.
Em nenhum momento, porém, se considera que as patologias do social sejam
índice de uma sociedade patológica ou em declínio, tese bastante usual quan-
do a questão é aludida. Esse é um dos aspectos principais debatidos no capítulo
“Anomia e declínio da autoridade paterna”, no qual o diagnóstico da contempo-
raneidade marcada pela queda dos ideais e pelo declínio da autoridade paterna
é analisado em articulação com a anomia e o sofrimento de indeterminação. Aí
talvez esteja uma das teses mais ousadas do livro: a indeterminação não necessa-
riamente levaria a estados de sofrimento, podendo representar ora a invenção de
nova forma de vida, ora uma nova maneira de constituição não orientada por um
ponto de amarração central.
Sem propor soluções fáceis a essa interface e com o cuidado de não reduzir a
A AUTORA
psicologia à sociologia, o livro sabe tirar proveito dos conceitos que fazem frontei-
ra entre as disciplinas, como a alienação e o fetichismo. RENATA BAZZO é mestre
Acima de tudo, a obra oferece ao leitor reflexões sobre a desnaturalização do em psicologia social e
doutoranda em psicologia
sofrimento. Cabe lembrar que no cenário atual, em que discussões sobre saúde clínica pela Universidade
mental estão cada vez mais marcadas pelas concepções de patologia referidas à de São Paulo (USP).É
bolsista da Coordenação de
fisiologia e ao estudo do cérebro, pode-se afirmar que Patologias do social oferece Aperfeiçoamento de Pessoal
críticas ao conceito de sofrimento que fogem do óbvio. de Nível Superior (CAPES)

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