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ANA MARGARIDA APARÍCIO DO VALE

MODALIDADES DE PRODUÇÃO DE ESPAÇOS NO CONTEXTO


DE UMA COLINA MONUMENTALIZADA: O SÍTIO PRÉ-HISTÓRICO
DE CASTANHEIRO DO VENTO, EM VILA NOVA DE FOZ CÔA.

Dissertação apresentada

à Faculdade de Letras da Universidade do Porto

para obtenção do grau de Doutor em Arqueologia,

sob orientação do Professor Doutor Vítor Oliveira Jorge

PORTO

DEZEMBRO de 2011
2
Índice

Índice 3

Agradecimentos 7

Resumo da Dissertação (Abstract) 9

Bases Fundacionais: definição e contexto da investigação 17

1. Abertura 21

2. sítio arqueológico de Castanheiro do Vento.

Condições de emergência do projecto de investigação 31

3. Metodologia: paradigma e singularidade. 61

II

O passado em imagens: os discursos explicativos dos recintos murados peninsulares do


IIIº milénio a.C. 69

4. Sobre os Recintos Murados “Calcolíticos” Peninsulares. Breve incursão 73

5. Imagens do Calcolítico Peninsular:

O caso de “Los Millares”, Leceia e Zambujal 87

5.1. Imagens fixas, passados petrificados 90

Los Millares: reconstrução de um sítio através de imagens 91

Leceia: imagens enquanto validação de uma narrativa 96

Zambujal: desenhos de campo e fotografias 100

5.2. Imagens do passado: muralhas e bastiões 103

5.3. Questionando imagens: o caso de Castelo Velho de Freixo de Numão e Castanheiro do


Vento 105

6. A tradução de materiais em actividades e actividades em pessoas. Preconceitos de


género e imagens estereotipadas na explicação dos recintos murados peninsulares

115

3
6.1. Arqueologia, Feminismo e Estudos de Género em Portugal 120

6.2. O passado familiar e categorias universais 123

6.3. Performatividade de género e as políticas dos discursos sobre o passado 125

7. Imagens familiares/Imagens estranhas: a emergência de um outro discurso 129

III

Arquitectura e organização do espaço em Castanheiro do Vento 137

8. A Arquitectura vista pela Arqueologia 141

Construções do passado enquanto espelhos de comunidades pretéritas 142

Construir e habitar 144

Planeamento funcional ou ausência de plano? 153

Percursos e movimento 156

Labirinto e imersão 159

“Sentir-se em casa” 161

9. Arquitectura como prática construtiva 163

9.1. Que espaços constroem os “bastiões”? 163

9.2. Construindo espaços circulares 179

Estruturas circulares como arquitectura doméstica? Casas e cabanas na Pré-história


Recente 194

De que falamos quando nos referimos a “casas”? 197

Da forma e da organização do espaço 201

Arquitectura como prática e tradições de práticas construtivas 205

10. Arquitectura como relação de materiais 217

10.1. Estudos de Fragmentação em Arqueologia 217

Fragmentação como Metáfora da Modernidade 219

Fragmentos Cerâmicos e o Estudo da Formação de Depósitos 223

4
Fragmentação Intencional de Recipientes Cerâmicos – o Todo e a Parte 229

O Tempo do Fragmento Cerâmico 240

10.2. Fragmentos da Grande Estrutura Circular 247

Definições e outros fragmentos de análise 247

Estudo de fragmentação cerâmica – o método 265

Genealogia da intervenção arqueológica 270

Estudo da fragmentação por contextos 282

Estudo da fragmentação por níveis 301

Entrelaçando fragmentos 308

10.3. Aporias arquitectónicas e impasses interpretativos 313

IV

11. Arquitectando espaços em Castanheiro do Vento 319

Planta, Alçado e Projecto 331

Arquitectura monumental / Arquitectura doméstica 343

Função /Forma 348

Arquitectura e Construção 352

Sombra e Claridade 357

“…isto já estava aqui antes de ti.” 361

Bibliografia 365

Anexos 383

5
6
Agradecimentos
Começo por agradecer ao meu orientador, Professor Doutor Vítor Oliveira Jorge. Todo o meu
percurso pelos corredores da faculdade ou pelas encruzilhadas da arqueologia de campo tem sido
inspirado por Vítor Oliveira Jorge. Aqui expresso a minha admiração pelo seu trabalho, pela sua
capacidade de resistência e persistência e a minha gratidão por ter aceite orientar este projecto de
investigação. Agradeço também por me relembrar a cada passo que a investigação não é apenas a
observação do imediato e que pensar a Arqueologia extravasa os limites que a própria disciplina
impõe. Obrigada por me ter ensinado.

Agradeço ao Professor Doutor Julian Thomas que sempre assumiu o papel de co-orientador
deste projecto. O trabalho que desenvolvi na Universidade de Manchester foi essencial para a
concretização do texto que em seguida se apresenta. Queria agradecer a sua disponibilidade, o apoio e
incentivo que sempre demonstrou pelos temas que me propus desenvolver.

Gostaria também de agradecer à Professora Doutora Susana Oliveira Jorge pelo apoio, pelo
incentivo, pela motivação. Mas acima de tudo agradeço a inspiração. Como professora, como
arqueóloga, como investigadora. Os seus trabalhos em Castelo Velho de Freixo de Numão, os artigos
publicados, as comunicações apresentadas, as suas aulas na FLUP, as inúmeras conversas em Freixo
de Numão são indissociáveis do texto que se segue.

Agradeço também à Professora Doutora Maria de Jesus Sanches pelo incentivo, pela palavra
amiga que tem sempre tempo para dar. Agradeço também ao Professor Doutor Sérgio Monteiro
Rodrigues que desde 1996 marcou o meu percurso académico. Obrigada pela sua amizade e incentivo.

E a Lesley McFadyen pela presença contínua ao longo deste trabalho, pela inspiração, pela
“orientação”, pela amizade, por todos os momentos partilhados e pela sua disponibilidade total.
Agradeço as inúmeras conversas na varanda, os inúmeros cafés partilhados. A influência de Lesley
McFadyen percorre as linhas deste trabalho.

Também expresso o meu agradecimento à Fundação para a Ciência e Tecnologia que permitiu
a minha total dedicação a este projecto durante quatro anos. A bolsa de doutoramento que me foi
concedida possibilitou a execução deste trabalho. Ao Centro de Estudos das Universidades de
Coimbra e Porto, à Professora Doutora Conceição Lopes por todo o apoio sempre disponibilizado. À
Faculdade de Letras da Universidade do Porto e a todos os elementos do Departamento de Ciências e
Técnicas do Património.

Ao Sérgio Gomes, companheiro de percurso, impossível colocar por palavras a minha imensa
gratidão.

Ao João Muralha Cardoso, pelo apoio, pelas inúmeras conversas em Castanheiro do Vento.
Este trabalho apenas foi possível porque o projecto de doutoramento de João Muralha Cardoso
estabeleceu as bases, e realizou um estudo notável acerca do sítio que me propus (mais tarde) estudar.

A toda a equipa de Castanheiro do Vento. Sem o trabalho de equipa, sem as discussões em


grupo, sem os atritos e ideias que durante estes anos foram surgindo, a minha pesquisa não teria,
possivelmente esta configuração. Assim a todos os elementos: Vítor Oliveira Jorge, Susana Oliveira
Jorge, João Muralha Cardoso, Leonor Sousa Pereira, Gonçalo Leite Velho, Bárbara Carvalho e Sérgio
Gomes o meu profundo agradecimento.

7
Agradeço também a todos os que participaram nas escavações em Castanheiro do Vento.
Grandes equipas, excelentes voluntários. A todos o meu obrigado por tornarem possível um projecto,
um sonho.

Ao Mestre António Sá Coixão expresso a minha gratidão pelo apoio prestado em todas as
campanhas de escavação em Castanheiro do Vento. Mas acima de tudo agradeço a sua amizade e a sua
disponibilidade em ajudar na concretização deste trabalho. À Associação Recreativa Desportiva e
Cultural de Freixo de Numão e a todos os seus elementos, muito obrigada. Ao Miguel, pelo
companheirismo, amizade e apoio.

À Lurdes Oliveira, à Alexandra Vieira, à Lídia Baptista, que desde sempre me acompanharam,
que me deram alento, inspiração e motivação. Um agradecimento especial à Lurdes pela paciência e
disponibilidade para me “ensinar” e trabalhar comigo na análise do conjunto artefactual. À Irene
Garcia Rovira agradeço os momentos que me proporcionou, a alegria, a motivação, o apoio. A todos
neste parágrafo enumerados, assim como à Bárbara Carvalho, Susana Mesquita, José Valera e Higino
Matos, agradeço o facto de me fazerem acreditar que era possível realizar este trabalho.

Ao André Tomás Santos, inspiração continua, amizade, compreensão, ajuda, disponibilidade,


atenção, incentivo, dedicação…impossível também elencar as razões do meu infinito agradecimento.
À Joana Alves Ferreira pela amizade, sinceridade, paz e compreensão. Ao André e à Joana agradeço
também a revisão deste trabalho.

A um conjunto de pessoas que em momentos distintos me acompanharam, incentivaram,


ajudaram das mais diversas formas: Mark Knight, Ian Heath, Colin Richards, Mark Edmonds, Lídia
Azevedo (a quem agradeço também a realização de grande parte dos desenhos de peças cerâmicas), e
à Cláudia Costa.

Ao Paúl, nomeadamente à Ana Cristina, ao Diogo, à Lúcia, à Guida, à Vera e ao Marco, ao


Gabriel, ao Rafael, ao Benjamin porque sempre e desde sempre acreditaram nos meus projectos.

Ao Externato Ribadouro e ao Externato Camões e a todos os meus alunos que me


acompanharam na fase final deste projecto.

Ao meu pai, à minha mãe, ao meu irmão e à minha avó, por serem os pilares desta e de todas
as construções. Ao meu pai, com quem discuti muitos dos temas aqui tratados, agradeço a inspiração,
o apoio incondicional, o acreditar sempre, agradeço por me ter ensinado a importância do rigor e da
rectidão. À minha mãe agradeço o carinho e afecto, agradeço por me ter ensinado a contar esta e
muitas outras histórias, pela capacidade de narrar com o “coração”. Aos dois agradeço o esforço e a
dedicação que depositaram neste trabalho e sem os quais a sua realização seria impossível. Ao meu
irmão, porque sempre sonhamos juntos, porque gémeos na vida partilhamos o percurso. À minha avó
porque me ensinou a caminhar, pela sua força e resistência.

À Patrícia, e a toda a minha família. Um obrigada especial ao Luís Miguel, ao João Carlos e à
Soninha.

Ao Andrew, por fazer os meus dias mais azuis.

Ao Daniel, a quem dedico este trabalho, pela força, resistência, pela luta de todos os dias.

8
Resumo
Este trabalho tem como objectivo o estudo do sítio arqueológico de Castanheiro do Vento
(localizado na freguesia de Horta do Douro, concelho de Vila Nova de Foz Côa e datado do IIIº/IIº
milénios AC), a partir de um conjunto de particularidades arquitectónicas. Pretendeu-se prestar
especial atenção às duas variáveis que se estabeleceram como interdependentes na análise da
arquitectura de Castanheiro do Vento: as unidades construídas e os materiais (fragmentos cerâmicos,
objectos líticos, pesos de tear, fragmentos de ossos de animais, etc.). Neste sentido, considerou-se o
espaço arquitectónico enquanto um espaço em permanente construção, na medida em que este não se
define apenas pela construção de um muro, mas pode ser alterado, construído, refeito pela colocação,
rearranjo, disposição, destruição, subtracção de pequenos materiais. Os dispositivos construídos não
são considerados apenas como cenários das actividades das comunidades agro-pecuárias de
Castanheiro do Vento, como paredes que serviram de palco e anteparo a um conjunto de acções, mas
como elementos que se alteram, que dialogam, que comunicam e influem directamente nas acções que
co-protagonizam. Assim, destacou-se a definição de arquitectura enquanto prática e gesto (que
constrói), como movimento (que faz espaço, por exemplo, pelo andar — os espaços que se percorrem
fazem-se à medida que o corpo se movimenta). Procurou-se também sublinhar o papel de outras
variáveis na construção dos espaços em Castanheiro do Vento como sejam a luz e a penumbra.

O estudo de um conjunto de unidades identificadas em escavação — bastiões, estruturas


circulares e grandes estruturas circulares — procurou analisar as dinâmicas de relação entre forma e
função, entre estruturas e actividades, entre construção e deposição, entre a construção do espaço
doméstico e a construção do “sentir-se em casa”. Sublinhou-se que espaços morfologicamente
semelhantes nem sempre indicam actividades similares, ou seja, dispositivos construídos que são
passíveis de se integrarem num mesmo tipo morfológico não encontram conotação directa com uma
“função” específica. Sugeriu-se que forma e função terão que desligar-se no estudo das arquitecturas
pré-históricas. O carácter especial de algumas associações de materiais tem sido interpretado em
Arqueologia como deposição. No entanto, apesar da atenção dada pela disciplina à deposição de
pequenos materiais, a deposição dos que “formam” espaços (pequenas estruturas circulares, por
exemplo) não foi problematizada. Procurou-se neste trabalho acentuar a potencialidade da deposição
enquanto criadora de espaços, assim como se sublinhou a possibilidade das unidades construídas
serem consideradas elas próprias deposições.

Por que é que as comunidades que habitavam o território nos inícios do III milénio AC
começaram a construção de Castanheiro do Vento, construção esta que se iria demorar durante cerca
de um milénio? Que ligações estabeleceram com o sítio? Viveriam no sítio? Servia este apenas de
reduto defensivo ou espaço ritual? Castanheiro do Vento seria espaço residencial de uma elite e
reservatório de bens especiais/ excedentes agrícolas? Descartaram-se as explicações imediatas e
evitou-se a associação de um nome a uma “função” (palavra aqui utilizada na sua acepção mais lata).
Isto porque as comunidades que habitariam o meio envolvente a Castanheiro do Vento e se
comprometeram na construção de um conjunto de espaços, sentir-se-iam em casa em Castanheiro do
Vento, ou seja, fizeram daquele espaço o seu espaço.

Esta dissertação encontra-se organizada em quatro partes, seguida da bibliografia e de anexos.


A Parte I, a que se chamou Bases Fundacionais é composta por três pontos. Nesta primeira parte
introdutória procurou explicar-se as bases teóricas sobre as quais assentam todos os outros pontos do
trabalho, assim como elaborar uma breve apresentação do sítio de Castanheiro do Vento. No ponto 1
esboçaram-se as três bases fundacionais deste trabalho (por negação do que vem sendo sublinhado
9
pela Arqueologia tradicional). Assim, sublinhou-se que a Arqueologia não escreve uma história
contínua que justifica o percurso humano desde a Pré-história até aos dias de hoje e, nesse sentido,
tentou-se sublinhar a importância do trabalho de M. Foucault acerca do conceito de genealogia; a
segunda base fundacional acentua que o objectivo da Arqueologia não é a busca das origens e este
ponto inspirou-se no filósofo italiano G. Agamben, quando refere que o passado é o que nunca deixou
de ser e a origem só pode ser estudada enquanto emergência de algo (na linha de W. Benjamin). Por
fim, a terceira base fundacional propõe que o registo arqueológico não pode ser traduzido num
discurso cópia do que realmente aconteceu. A tradução deverá ser entendida como um trabalho
interpretativo, de compreensão, na qual nunca se pode colocar um ponto final. O ponto 2 faz uma
incursão no sítio de Castanheiro do Vento, acentuando sobretudo os resultados das campanhas
arqueológicas de 2007, 2008, 2009 e 2010. Segue de perto todos os trabalhos já publicados sobre o
sítio e sublinha que o projecto de Castanheiro do Vento é feito por uma equipa da qual é impossível
desligar as observações que se tecem acerca da interpretação de Castanheiro do Vento. No ponto 3
propõe-se o estudo da arquitectura de Castanheiro do Vento enquanto paradigma (segundo a definição
de Agamben); ou seja, cada unidade arquitectónica (dispositivo construído e materiais associados) é
estudada enquanto particularidade e em relação com outras particularidades, o que pressupõe a não
existência de uma hierarquia (nenhum unidade é entendida como mais importante ou como exemplo
do conjunto).

A parte II debruçou-se sobre as tradições interpretativas relativas aos “recintos murados” do


III/II milénios AC localizados na Península Ibérica. Neste sentido, no ponto 4 é chamado ao texto um
conjunto de citações referentes à explicação de sítios arqueológicos como “povoados fortificados”.
Segundo estas narrativas o sítio de Castanheiro do Vento integraria este modelo explicativo, visto que
é rodeado por três linhas de murete interceptadas por “bastiões”. Sem querer fazer um estado da arte, o
ponto 4 tentou sublinhar as principais bases que sustentam as narrativas dos “povoados fortificados” e
procurou apresentar novas linhas de pesquisa que se têm vindo a consolidar no panorama da
Arqueologia peninsular. No ponto 5 perguntou-se pelas imagens (icónicas e textuais) que surgem
anexadas aos sítios de Leceia, Zambujal e Los Millares, de forma a problematizar as bases em que se
sustenta a narrativa dos povoados fortificados. O ponto 6 procurou denunciar os preconceitos de
género associados à narrativa dos povoados fortificados e sublinhou-se o carácter androcêntrico do
discurso. A fechar esta segunda parte, no ponto 7, questionou-se a familiaridade do passado
representada pelas imagens dos povoados fortificados e perguntou-se se o discurso arqueológico se
poderia abrir à estranheza do que não é igual a nós (ao que não é o outro de mim, o familiar, nem o
totalmente diferente de mim, o exótico)

A parte I e a parte II estabeleceram as bases para que a parte III pudesse emergir. E nesse
sentido regressou-se a Castanheiro do Vento com o intuito de estudar as unidades arquitectónicas
segundo os pressupostos enunciados na parte I. O ponto 8 tentou traçar em linhas gerais a forma como
a Arqueologia estuda a Arquitectura. Como definir Arquitectura em Arqueologia? A Arquitectura foi
pensada como “gesto construtivo”, como expressão de formas de habitar (segundo T. Ingold). Habitar
é construir. No entanto, a construção do espaço não se faz apenas pela feitura de um muro, nem
implica apenas a fase que antecede a ocupação (segundo L. McFadyen). Sublinhou-se que o estudo da
arquitectura em Castanheiro do Vento não poderia ser pensado segundo um projecto, segundo normas
de planeamento funcional (ideia muito recente que rege as modernas cidades ocidentais). E acentuou-
se que Castanheiro do Vento enquanto espaço labiríntico (segundo V. O. Jorge) era mais um espaço de
imersão do que de contemplação. Sem desvalorizar a importância dos possíveis contactos visuais que
se poderiam estabelecer desde o sítio, o espaço delineado por três muretes de tendência concêntrica,

10
pontuados por “bastiões”, e as várias estruturas circulares de diversos diâmetros, potenciavam
caminhos sinuosos.

O ponto 9, intitulado “Arquitectura como prática construtiva”, desdobra-se em dois subpontos


que se debruçam sobre dois tipos de conjuntos arquitectónicos de Castanheiro do Vento: “bastiões” e
“estruturas circulares”. Assim, no ponto 9.1 prestou-se especial atenção a quatro unidades de tipo
“bastião”. Procurou-se, na linha do trabalho desenvolvido na parte II, problematizar a associação
directa entre as unidades semicirculares (“bastiões) que interrompem os muretes (“muralhas”) e
sistemas defensivos. O estudo das quatro unidades mostrou a especificidade de cada uma delas. E cada
exemplo paradigmático, cada bastião, permitiu abordar outros problemas, outros paradigmas à escala
do sítio (deposições; movimento; tempos construtivos) e à escala peninsular (tema das fortificações
calcolíticas; relação entre forma e função). Se por um lado, o ponto 9.1. questionou a associação entre
as estruturas semicirculares (apelidadas de bastiões) e sistemas defensivos, o ponto 9.2. reflectiu
acerca da palavra “povoado” de “povoado fortificado”. Assim, neste ponto, procedeu-se ao estudo das
estruturas circulares identificadas até 2010 em Castanheiro do Vento e problematizou-se o conceito de
casa utilizado na explicação de estruturas pré-históricas assim como se introduziu o conceito de
“tradições de práticas” (seguindo J. Thomas).

Ao longo do trabalho acentuou-se a importância do estudo dos pequenos materiais na


interpretação da arquitectura de Castanheiro do Vento. No ponto 10 introduz-se outra variável: o
estudo do fragmento cerâmico e o estudo de processos de fragmentação. Assim, o ponto 10.1 teceu o
estado actual da investigação que se preocupa com o fragmento cerâmico como unidade de estudo
ainda que, segundo múltiplas formas de ver o fragmento; demonstra-se ainda como o jogo de
perguntas e respostas difere segundo diferentes “escolas de pensamento arqueológico”. Tentou-se
também contextualizar a valorização dada ao fragmento pela Arqueologia no discurso da
Modernidade. No ponto 10.2. elaborou-se o estudo da grande estrutura circular 1 e procedeu-se à
análise dos fragmentos cerâmicos segundo o estudo de fragmentação elaborado por L. McFadyen.
Procurou salientar-se a quer a importância do fragmento na construção de espaços, quer a
multiplicidade de acções em que poderá ter sido manipulado, contornado, ignorado, descartado,
integrado em outros conjuntos, trabalhado (afeiçoado, talhado); a esta multiplicidade de acções
corresponde uma multiplicidade de relações em que se inserem os fragmentos ou que por eles são
promovidas através da sua articulação com diferentes materiais e construções. Os espaços são também
feitos com fragmentos, no meio de fragmentos.

Por último, problematizou-se na IV parte um conjunto de conceitos que nos acompanhavam


desde o início e que são essenciais para se pensar a arquitectura de Castanheiro do Vento. Assim, no
ponto 11, foram agrupadas palavras como: planta; alçado; projecto; programa; monumental;
doméstico; função; forma; construção; sombra; claridade. Castanheiro do Vento como uma
arquitectura em que as comunidades se sentiam em casa, tecida ao longo de gerações, seguindo um
programa não pré-programado, foi espaço construído, mas também construtor de espaços, espaços de
negociação e de coesão social, como ainda hoje o é, no seio dos seus mais recentes habitantes, nós,
arqueólogos (que fazemos de Castanheiro do Vento nossa casa).

Ao ponto IV segue-se a Bibliografia e os Anexos onde se resume a análise dos fragmentos


cerâmicos da GEC1 e se apresentam desenhos e fotografias de contextos tratados em texto.

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12
Abstract
This work is a study of the archaeological site of Castanheiro do Vento (which is located in
Horta do Douro, Vila Nova de Foz Côa and it dates from the 3rd, to the first half of the 2nd millennia
BC). The research is essentially based upon the question of how to understand prehistoric architecture.
It pays special attention to two variables which are interconnected in the analysis of the site: built units
and materials (fragments of ceramics, lithics, loom weights, animal bone, etc) Architectural space is
considered as a space in permanent construction. It cannot be defined only by its structural objects e.g.
the building of a wall, but also should be understood from a fuller sense of practice e.g. the rebuilding,
remaking, placing, rearranging, disposal, destruction, and removal of small materials. The built
devices are not understood as scenarios in which the activities of farmers and shepherds took place, or
as walls that were used as a stage set for a certain repertoire of actions. Instead, they are seen as
elements which could be altered, were in a continuous dialogue, and which had a direct influence upon
the actions that were co-performed. In this way I foreground the definition of architecture as practice
after (L. McFadyen), as gestures (that build), and as movement (through walking, space transforms as
the body moves). I emphasize the role of other variables in the construction of space at Castanheiro do
Vento, for example, light and shadow.

From the study of the features identified during the excavation process, in particular ‘bastions’
and ‘circular structures’, I analyze the relationship between the form and function, of particular
structures and particular activities, between construction and deposition, between the making of the
domestic space and the making of the idea of “feeling at home”. I demonstrate that similar features do
not always point to similar activities, that is, built devices that could be integrated into the same
morphological type do not need to have a linear correlation with a specific function. I suggest that
form and function have to be disconnected in order to take a new approach to prehistoric architecture.
The special character of some material associations have been interpreted in archaeology as
deposition. However, despite the attention given by the discipline to the deposition of small materials,
the deposition of those that “make” space has not been problematized. This study seeks to enhance the
creative potential of deposition in the making of spaces, and addresses the possibility that built units
could themselves be considered as deposits.

Why did the communities that dwelt in this territory in the beginning of the 3rd millennium
BC undertake the construction of Castanheiro do Vento, which took place over a thousand years? In
that time what links were established with the hill? Would they “use” the site in everyday life? Or was
it just a fortress or a ‘ritual space’? Was Castanheiro do Vento the residence of elites and a place of
storage? These questions are not present in this work. Immediate explanations such as these have been
discarded, and the link between a name and a function (the word function being used here in its
broadest sense) is avoided. This because the communities that dwelt in the “landscape” of Castanheiro
do Vento, and engaged themselves in the making of a space, would have felt at home at Castanheiro
do Vento, making the space their space. Keeping things open in their meaning allows me to
investagate more critically the full nature of the way in which things were constructed and what and
how we should use to think architecture.

This thesis is organized into four parts. Part I, entitled “Foundational Basis” consists of three
sections. In this introductory part of the work, the aim is the presentation of the theoretical basis of the
following points, and an introduction to the site of Castanheiro do Vento. In Section 1 the three
foundational bases of this study (by the denial of what has been highlighted by traditional
archaeology) are outlined. It is stressed that archaeology does not write a continuous history which
13
justifies the human journey from prehistory to the present day, and in that sense the concept of
genealogy explained by M. Foucault is emphasized. The second foundational base stresses that the aim
of archaeology is not the search for origins, and is inspired by the Italian philosopher G. Agamben.
Agamben says that the past is what “somehow has remained present”, and the origin can just be
studied as the moment of arising (following W. Benjamin). Finally, the third foundational base
suggests that the archaeological record cannot be translated as a copy from a supposed “original” and
reveal what really happened. The archaeological translation should be understood as an interpretative
work in which a full stop, cannot be added. Section 2 delves into the site of Castanheiro do Vento,
especially emphasizing the results of the excavations undertaken between 2007-2010. It follows
closely all the papers published about the site and stresses that the research on Castanheiro do Vento’s
is a team project from which it is impossible to disconnect the observations that are woven around the
interpretation of the site. In Section 3 the study of the architecture of Castanheiro do Vento as a
paradigm (as it was defined by Agamben) is proposed, ie, each architectural unit (built unit and
associated materials) is studied as a singularity and in relation with others, which presupposes the
absence of a hierarchy (no unit is seen as more important or as an example).

Part II focuses on the interpretative traditions relating to the “walled enclosures” dated from
the 3rd and 2nd millennia BC in the Iberian Peninsula. In this sense, in Section 4, a set of quotations
that in the past explained the Iberian walled enclosures as fortified settlements, were brought forward.
According to these narratives, Castanheiro do Vento would integrate with the other examples in this
explanatory model as it is surrounded by three concentric walls intercepted by the so called “bastions”.
Without aiming to do the state of art, Section 4 tries to highlight the main basis in which the discourse
on fortified settlements lies and seeks to introduce some other lines of research that have been
presented in Iberian archaeology. Section 5 questions the images presented and suggested in the
publications of three archaeological sites: Leceia (Oeiras, Portugal), Zambuzal (Torres Vedras,
Portugal) and Los Millares (Almeria, Spain) in order to expose the inconsistency of the foundation on
which the narratives about the fortified settlements are sustained. Section 6 seeks to point out the
gender preconceptions associated with the narrative of fortified settlements and stresses its
androcentric character. The last section of this part, Section 7, questions the familiarity of the past
presented by the images about the fortified settlements and asks if archaeology can open its
disciplinary space to the strangeness of the other (that is neither the same as me, nor the exotic and
opposite of me).

Part I and Part II lay the foundations for Part III. In this sense the text returns to Castanheiro
do Vento in order to study the architectural units according to the assumptions set out in Part I.
Section 8 tries to trace through general lines how archaeology studies architecture. How to define
architecture in archaeology? Here architecture is understood as “constructive gesture” as an expression
of dwelling (after T. Ingold). To dwell is to build. However, the construction of space is not made only
by building walls, and is not just the phase prior to occupation (after L. McFadyen). I emphasize that
the study of Castanheiro do Vento’s architecture cannot be the analyses of a project that would have
been done once. It is stressed that it is a labyrinthine space (after V.O.Jorge), a space of immersion
more than contemplation. Without devaluing the importance of the net of possible visual contacts that
could be established from the site, the space delineated by three concentric walls, with bastions, and
with several circular structures, tends to be more a space of winding paths.

Section 9, entitled “Architecture as building practices”, unfolds into two sub-sections that
focus on two sets of architectonic units of Castanheiro do Vento: bastions and circular structures. Thus
in sub-section 9.1, special attention is paid to four units of “bastion”-type and the direct association
14
between these structures (bastions) and their function as defensive systems is discussed. The study of
four units shows the specificity of each one and the analysis of each bastion, as a paradigmatic
example, which allows for other paradigms at the scale of the site (depositions, movement, building
times) and also at a peninsular scale (the theme of chalcolithic fortifications and the relationship
between form and function). If sub-section 9.1 questions the association between bastions and
defensive systems, sub-section 9.2. reflects on the word “settlement” of the expression “fortified
settlement”. In this way, the circular structures identified at Castanheiro do Vento until 2010’s season
are studied, the concept of house expressed, and explanations of prehistoric structures are
problematized. The concept of “traditions of practice” (after J. Thomas) is also introduced.

Throughout this work the importance of the study of small materials in the interpretation of
Castanheiro do Vento is emphasized. Section 10 introduces another variable: the study of the fragment
(ceramic) and the study of fragmentation processes. Therefore, sub-section 10.1 presents the current
state of research concerned with the ceramic fragment showing different perspectives and approaches
to the issue. It also shows the different inquiries of the different archaeological streams. This sub-
section also contextualizes the place of the fragment (as a metaphor and as an image) in discourses of
modernity. In sub-section 10.2 the study of a particular circular structure of Castanheiro do Vento is
presented and the ceramic fragments are analyzed according to the fragmentation study elaborated by
McFadyen. This sub-section seeks to highlight both the importance of the fragment in the construction
of space, and the multiplicity of actions in which they were involved. To this multiplicity of actions
corresponds a multiplicity of relationships in which they operate as fragments or promote by the
interaction with different materials and constructions. The spaces are made with fragments, and
surrounded by fragments.

Finally, part IV problematizes a set of concepts that were present throughout the other parts,
and are essential in the consideration of the architecture of Castanheiro do Vento. Thus, in Section 11,
words such as: plan; elevation; project; programme; monumental; domestic; function; form;
construction; shadow; light, were grouped. Castanheiro do Vento was an architecture in which
communities felt at home, woven throughout generations, following a programme that is not pre-
programmed. It was built space that also constructed other spaces, spaces of negotiation and social
cohesion, as it continues to be amongst the most recent dwellers, the archaeologist (who also makes
that space their home).

Part IV is followed by the Bibliography and an annexed chapter where is presented the
morphotecnic analysis of the ceramic fragments and also drawings and photos of the contexts studied.

15
16
I
Bases Fundacionais:
definição e contexto da investigação

17
18
© JoanaAlvesFerreira 2009

«Ao princípio era o Verbo!», é o que está escrito.

Quem me ajuda? Logo aqui hesito!

Tanto não vale o verbo. Não,

Outra vai ter de ser a tradução,

Se bem me inspira o Espírito. Atento

E leio: Ao princípio era o Pensamento.

Esta linha tem de ser bem pensada,

Para que a pena não corra apressada!

É o Pensamento que tudo move e cria?

Certo é: Ao princípio era a Energia!

Mas agora que esta versão escrevi,

Algo me avisa já para não parar aí.

Vale-me o Espírito, já vejo a solução,

E escrevo, confiante: Ao princípio era a Acção!


Goethe, Fausto (tradução de João Barrento, 1999: 84)

19
20
1. Abertura

Na abertura espera-se encontrar o enquadramento, os limites da pesquisa e os caminhos de


investigação. Atentos a esse apelo, ao nosso apelo, delineamos os contextos e as opções
metodológicas que foram enquadrando este texto. Este ponto, primeiro no trabalho, não segue
a enganadora linha cronológica que se pode pressentir na numeração sequencial das páginas.
Foi sendo elaborado à medida que permitia também a elaboração do texto que se espraia pelos
pontos seguintes. O contexto deste trabalho poderia ser definido pelas três linhas de murete de
Castanheiro do Vento. Na verdade, o que nos ocupa, preocupa e, consequentemente, o centro
das nossas atenções, é o sítio arqueológico de Castanheiro do Vento (Horta do Douro, V.N. de
Foz Côa). Todo o trabalho procura entrar no sítio através da sua Arquitectura. A Arquitectura
de Castanheiro do Vento é assim o tema. Mas a palavra “arquitectura” não é unidireccional e
unívoca. Assim, as páginas seguintes tentam esboçar definições e métodos de estudo. Este
texto pretende sobretudo ser uma convocação de vozes e particularidades construídas, de
figuras e de coisas por vezes pequenas, do detalhe não raras vezes descurado. Este trabalho
move-se no curioso labirinto das arquitecturas da ausência.

Abrimos este trabalho com as palavras de W. Benjamin:

“Escavar e Recordar

A linguagem fez-nos perceber, de forma inconfundível, como a memória (Gedachtnis) não é


um instrumento, mas um meio, para a exploração do passado. É o meio através do qual
chegamos ao vivido (das Erlebte), do mesmo modo que a terra é o meio no qual estão
soterradas as cidades antigas. Quem procura aproximar-se do seu próprio passado soterrado
tem que se comportar como um homem que escava. Fundamental é que ele não receie
regressar repetidas vezes à mesma matéria (Sachverhalt) – espalhá-la, tal como se espalha
terra, revolvê-la, tal como se revolve o solo. Porque essas “matérias” mais não são do que
estratos dos quais só a mais cuidadosa investigação consegue extrair aquelas coisas que
justificam o esforço da escavação. Falo das imagens que, arrancadas a todos os seus
contextos anteriores, estão agora expostas, como preciosidades, nos aposentos sóbrios da
nossa visão posterior – como torsos na galeria do coleccionador. E não há dúvida de que
aquele que escava deve fazê-lo guiando-se por mapas do lugar. Mas igualmente
imprescindível é saber enterrar a pá de forma cuidadosa e tacteante no escuro leito da terra.

21
E engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados, e não for
capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que guarda as coisas do
passado. Assim, o trabalho da verdadeira recordação (Erinnerung) deve ser menos o de um
relatório, e mais o da indicação exacta do lugar onde o investigador se apoderou dessas
investigações. Por isso, a verdadeira recordação é rigorosamente épica e rapsódica, deve dar
ao mesmo tempo uma imagem daquele que se recorda, do mesmo modo que um bom relatório
arqueológico não tem apenas de mencionar os estratos em que foram encontrados os
achados, mas sobretudo os outros, aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes.”
(Benjamin, 2004a: 219-220)

Pensemo-s estas linhas nos corredores da Arqueologia, como inspiração, como


momento contemplativo mas crítico da disciplina. Benjamin diz-nos que “imprescindível é
saber enterrar a pá de forma cuidadosa e tacteante no escuro leito da terra”. Nesta frase está
implícita a necessidade do domínio da técnica de escavação, o “saber enterrar”, assim como a
definição das ferramentas de trabalho (de reflexão) concretizada na pá. Também percebemos
a necessidade do domínio do método de escavação (ou da forma de abordagem do problema)
– “de forma cuidadosa e tacteante” –, reconhecendo o autor a vastidão do não conhecido, da
cegueira perante “o escuro leito da terra”. Mas na frase seguinte Benjamin adverte: “E
engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados, e não for
capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que guarda as coisas do
passado”. Ou seja, o catálogo não é suficiente, a enumeração não é o objectivo, mas essencial
é pensar sobre as condições que enquadram a pesquisa, é preciso saber marcar o ponto no qual
o investigador se situa e olha as coisas do passado, ou melhor – as transforma em coisas do
passado. Benjamin termina dizendo “um bom relatório arqueológico não tem apenas de
mencionar os estratos em que foram encontrados os achados, mas sobretudo os outros,
aqueles pelos quais o trabalho teve de passar antes”. Neste sentido, antes de nos
concentrarmos nos estratos de Castanheiro do Vento começamos por pensar os outros, os
estratos nos quais se desenvolveu e se posiciona este trabalho.

Começamos por enunciar o que apelidaremos de bases fundacionais, plasmadas nos três
pontos seguintes:

• A Arqueologia não produz uma narrativa linear que ilumina o percurso humano desde
a pré-história até aos dias de hoje;

• O objectivo da Arqueologia não é a busca das origens;

22
• O registo arqueológico não pode ser traduzido num discurso cópia do que realmente
aconteceu.

A primeira base fundacional enunciada prende-se com o problema do tempo contínuo,


da articulação entre passado e presente de forma linear elaborada por acontecimentos
sequenciais, anotados na barra do tempo cronológico. A genealogia proposta por M. Foucault
(2004), seguindo os trilhos de F. Nietzsche (2008 [1877]) e posteriormente recontada por G.
Agamben (2009), inspira o primeiro ponto basilar deste trabalho e os seguintes na medida em
que estes não são entidades delimitadas mas em relação. Assim, a reflexão de um exige a
problematização dos seguintes e abre-se a outros pontos reflexivos que aparecem ao longo do
texto. A genealogia não busca a história linear e descritiva que explica o percurso que resultou
no presente. A genealogia não procura as origens. Não procura revelar a essência primeira das
coisas, o seu significado primeiro e autêntico (Foucault, 2004: 17 1). A genealogia demora-se
“nas meticulosidades e nos acasos dos começos” (ibid: 19), na emergência de algo quando
começa a ser e não no seu ponto de origem; na emergência que se cria nos interstícios, no
não-lugar da origem (Agamben, 2009:84), sem responsáveis que se possam auto-glorificar
(Foucault, 2004:24 2). A genealogia não permite o nosso reencontro, o reconhecimento do
outro no passado, como o outro igual a mim, ou o outro exótico que contrasta comigo. Não
permite o reconforto da familiaridade do passado. Nada é estável, nem o nosso próprio corpo,
para que se possam dar reconhecimentos passivos nas narrativas sobre o passado (Ibid:27 3).

1
“Por que Nietzsche genealogista recusa, pelo menos em certas ocasiões, a pesquisa da origem (Ursprung)?
Porque, primeiramente, a pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela a essência exacta da coisa, sua
mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a
tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reencontrar “o que era
imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exactamente adequada a si; é tomar por acidental todas as
peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para
desvelar enfim uma identidade primeira”. (Foucault, 2004: 17)
2
“Ninguém é portanto responsável por uma emergência; ninguém pode se autoglorificar por ela; ela sempre se
produz no interstício.” (Foucault, 2004: 24)
3
“A história “efectiva” se distingue daquela dos historiadores pelo facto de que ela não se apoia em nenhuma
constância: nada no homem – nem mesmo o seu corpo – é bastante fixo para compreender outros homens e se
reconhecer neles. Tudo em que o homem se apoia para se voltar em direcção à história e apreendê-la em sua
totalidade, tudo o que permite retraçá-la como um paciente movimento contínuo: trata-se de destruir
sistematicamente tudo isto. É preciso despedaçar o que permitia o jogo constante dos reconhecimentos. Saber,
mesmo na ordem histórica não significa “reencontrar” e sobretudo não significa “reencontrar-nos”. A história
será “efectiva” na medida em que ela reintroduziu o descontínuo em nosso próprio ser.” (Foucault, 2004: 27)

23
“Do pensar faz parte não apenas o movimento dos pensamentos, mas também a sua
paragem. Quando o pensar se suspende subitamente, numa constelação carregada de tensões,
provoca nela um choque através do qual ela cristaliza e se transforma numa mónada”
(Benjamin, 2010:19). É aquela concentração de tensões que conduz o nosso trabalho, é a
cristalização de energias (de ideias contraditórias) que pretendemos aprofundar. Este rasgão
no discurso tradicional permite que outras vozes sejam convocadas e que se multipliquem as
histórias, versões, interpretações de um “passado arqueológico”. Permite a criação
construtiva, a destruição da fixidez explicativa dos sítios arqueológicos. “A genealogia é
cinza” (Foucault, 2004: 15), é o interstício, o choque, a incerteza. A genealogia é o percurso e
o processo da investigação questionado porque expõe dúvidas e acidentes. A genealogia é
paciente, descritiva, acumula informações, procura o detalhe.

A segunda base fundacional reconhece que a Arqueologia não pode pretender a


elaboração de um discurso que busque as origens (do ser humano e de tudo o que o rodeia),
situando-as num ponto primeiro do qual parte uma linha passível de ser retraçada pelo
arqueólogo a partir do presente, aqui entendido como a outra extremidade da linha. Essa linha
ligaria assim o passado (a origem) ao presente, e desta forma ao longo da sua extensão
revelaria, por intermédio da História, as causas e efeitos que conduziram à construção do
nosso mundo. O problema nasce quando o investigador se apercebe que a deterioração da
linha não lhe permite mais identificar explicitamente causas e/ou efeitos.A linha de tempo
linear desmistifica-se e a construção da evolução, por exemplo das técnicas, não é mais
possível. Com a linha rasgada como retroceder então? E sem retrocesso como pode o passado
tal como entendido actualmente (aquilo que foi) ser acessível? O que passa então a ser o
Passado? Um contentor para onde se atiram as ideias, preconceitos e até banalidades do
Presente? Assim define Nietzsche a narrativa histórica produzida no século XIX (edição
portuguesa sem data, [1874]). Quão distante desta definição está a Arqueologia nos alvores do
século XXI? Importa, portanto, procurar um “Passado novo” (na linha de Nietzsche (ibid. 101-
122). Um passado “that will have been when the archaeologist’s gesture (or the power of the
imaginary) has cleared away ghosts of the unconscious and the tight-knit fabric of tradition
which block access to history. Only in the form of this “will have been” can historical
consciousness truly become possible.” (Agamben, 2009:106-107). Seguindo as palavras de
Agamben, o que identificamos hoje como passado é que o que nunca deixou de ser, o que
permaneceu presente, na ruína. Mas a ruína não é contentor de um passado acontecido, que o
arqueólogo pode desvelar, mas sim, o que terá sido agora no presente, ou nas palavras de

24
Benjamin, “Articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo “tal como ele
foi”(Benjamin, 2010:11)

V. O. Jorge referiu na sua lição de sapiência apresentada em 2010 na Faculdade de


Letras da Universidade do Porto 4 o desejo da Arqueologia Tradicional de perseguir o original,
o mais antigo, o fundamento. Este impulso lê-se na própria palavra “arqueologia”, construída
a partir da palavra grega arché, que designa o arcaico, a origem. Este desejo tem sido
concretizado através de uma narrativa histórica sequencial, baseada na sequência do tempo
cronológico. Jorge cita três autores que introduziram ruído nesta forma linear de contar o
passado: Aby Warbur, Walter Benjamin e Giorgio Agamben. Também nós aqui seguimos este
caminho crítico e por caminhos outros que perspectivam a escrita da história de forma não
sequencial.

É o arqueólogo que escolhe as “fontes” do passado, as ruínas que remetem para um


passado que ainda permanece, para o que poderíamos chamar de arquitecturas da ausência.
Castanheiro do Vento tornou-se numa dessas “fontes”, a sua antiguidade foi atestada pelos
arqueólogos, a sua autenticidade como sítio pré-histórico é-lhe conferida pelos investigadores.
É nesta arquitectura que trabalhamos, não para suprimir as suas ausências povoando-a com
caracteres familiares, mas antes explorarmos o “estranhamento” desse encontro com a
ausência. Ausência essa que, sublinhamos, é criada por nós hoje na medida em que validamos
a ruína (o passado que ainda é, ou seja o passado presente) como evidência agora de um
passado que terá sido. Julian Thomas assinala que o passado está à nossa volta, que o
“habitamos” (Thomas, 2004: 170), e segundo o autor, se esta imagem não está presente em
Arqueologia talvez seja porque a disciplina se concentrou em estudar o que estava enterrado
nas profundezas, o misterioso que o arqueólogo procura desvendar pela remoção de solo. O
passado caracteriza-se nesta linha pelo que é distante, o que se traz à luz do dia pela
escavação 5. De que forma a investigação arqueológica é condicionada por este paradigma
interpretativo? Será que é possível escapar ao espartilho do pensamento binário que divide o

4
A lição de sapiência de Vítor Oliveira Jorge encontra-se disponível em:
http://www.youtube.com/watch?v=ws_Y1sXvapE&feature=related
5
“It could be argued that this disciplinary orientation towards depth, concealment, mystery and revelation is
quite obstructive, for it enhances the belief that the past is entirely separate from the present: it is “somewhere
else” that has to be accessed in a particular way. This essentialist view of the past could be compared with the
post-Cartesian view of the mind, hidden away in the interior of the person. In the same way, it is unhelpful to
imagine that the past is a substance that is secreted in the dark places awaiting its recovery. The remains of the
past are all around us, and we inhabit the past in important ways.” (Thomas, 2004:170)

25
passado/presente; interior/exterior; profundidade/superfície e que permite o contar da história
numa barra cronológica? Será possível a articulação de um discurso que fuja ao tempo linear e
sequencial e potencie o encontro de tensões, o choque das contradições, elaborado no
interstício, na fissura de tempos desencontrados?

A nossa terceira base fundacional prende-se com o problema da “leitura” do “registo


arqueológico”. Os problemas inerentes à interpretação dos traços do passado são
essencialmente os problemas da tradução. A tradução do registo arqueológico para um
passado inteligível ao investigador e ao grande público parece derivar de uma relação estreita
entre forma e significado, onde um objecto é traduzido por uma palavra que o identifica e que
o substitui. A explicação de um traço do passado em texto revela-se enquanto tradução de um
texto original. Esta tradução afigura-se enquanto cópia, enquanto reprodução fiel de um
(con)texto primeiro. Benjamin, no seu texto “A tarefa do tradutor” (1999:70-82) considera
que a tradução não é a substituição de uma palavra por outra, a conversão de uma língua
numa outra. Neste texto, escrito como introdução a uma tradução feita pelo próprio Benjamin
da obra Tableaux Parisiens de Baudelaire, o autor recorre à imagem do vaso e dos
fragmentos. De acordo com Vilela (2010: 472) “a imagem do vaso aponta para a língua
original, a obra literária constitui um pedaço e a tradução é um pedaço desse pedaço.”.

A que diferentes tempos se processam as traduções em arqueologia? Em que suportes?


Quais as expressões, gramáticas e técnicas de tradução? A escavação, a criação de
contextos/unidades estratigráficas, a descrição de sedimentos e inclusões, a definição a lápis
do contorno das unidades, a identificação da proveniência do fragmento cerâmico, as listas de
materiais, a fotografia de campo e do objecto, o desenho do possível vaso, o relatório, o artigo
científico, o livro ou panfleto de divulgação. Diferentes códigos são empregues na tradução
de um sítio arqueológico. “Traduzir é compreender” segundo Steiner (2002). Seguimos esta
afirmação. Mas de que forma compreendemos? Que ferramentas e que expectativas? Que
passado imaginamos? É aqui que reside o centro do problema. A tradução, enquanto
conversão de um objecto ou de uma estrutura, por intermédio de palavras ou desenhos, numa
tipologia ou numa função, admite que o trabalho da tradução pode converter o passado em
estruturas familiares do presente. Admite a possibilidade de reconstituir, de aceder à língua
original, ao vaso inteiro, ao passado tal como aconteceu.

Seguindo de perto Ricoeur (2005), pensamos a tradução como a abertura ao estranho,


como possibilidade de estranharmos a nossa própria língua e de nos abrirmos à estranheza da

26
língua outra, o que é sempre inquietante. Somos compelidos a traduzir. O desejo e o prazer de
traduzir levam a uma compulsão para traduzir, para traduzir a tradução, para um contínuo
retraduzir. Poderíamos dizer que a segunda parte do nosso trabalho, reservada ao
questionamento do regime explicativo tradicional para recintos semelhantes ao sítio de
Castanheiro do Vento, pode ser entendido como uma retradução, na medida em que se trata
de uma releitura da tradição. Mas nessa segunda parte apontamos também a fragilidade das
bases desse discurso tradicional, que assentam precisamente no paradigma da tradução
enquanto cópia, enquanto reprodução do passado acontecido. O ponto III deste trabalho pode
ser definido como um exercício de tradução de Castanheiro do Vento. A tradução no terceiro
ponto será encarada enquanto possibilidade de interpretação. Castanheiro do Vento “tem”
latente a possibilidade de ser interpretado. Interpretação que se materializa em texto, mas que
não se fecha. O texto será porventura, por vezes, ambíguo. Convoca sobretudo para a nossa
“língua” a estranheza de uma outra que é, paradoxalmente, apenas falada por nós. E por isso
não deixa também de ser uma apropriação (ou, dado o paradoxo, uma socialização?). Um
desejo de transformar em discurso escrito um sítio, ou melhor, uma prática de investigação
num sítio arqueológico.

Derrida, no texto, Des Tours de Babel, refere que o tradutor quer tocar o intocável
(2007: 214). Talvez seja exactamente este o desejo do arqueólogo: tocar o intocável, chegar
perto do que foi, combinando a nostalgia do todo, do absoluto, do texto original, do passado
acontecido, com a surpresa do presente, a necessidade da descoberta, de desvelar o escondido,
de comunicar o que há muito se silenciou. No entanto, partindo dos princípios que o passado é
o que ainda resta no presente (o que permanece, o que ainda é agora) e que a tradução é
sempre uma criação do tradutor (em relação, claro, com outra(s) materialidade(s)), o discurso
arqueológico é interpretação mais talvez da língua para a qual traduzimos (com a qual
criamos), do que da suposta outra que pretendemos alcançar. Pois tal como Benjamin referiu,
a tradução não é recepção, comunicação ou representação. Não é imagem nem cópia. No
entanto, o arqueólogo/tradutor não se movimenta livre de constrangimentos no texto.
Seguimos Barrento (2002) numa aproximação entre a tradução e a arqueologia textual de
Hodder quando refere que o arqueólogo não colecciona apenas “peças e fragmentos
significantes” em museus mas pode dar aos materiais (arqueológicos) a sua “chama original”.
Barrento reescreve assim uma afirmação de Hodder: “Só podemos compreender o passado a
partir do presente [e de um sujeito hermenêutico nesse presente, J.B.], mas temos de fazer um
esforço enorme para perceber que o passado [o objecto do acto hermenêutico, incluindo a

27
tradução, J.B.] é diferente do presente. Se assim não for, estaremos apenas a impor o nosso
presente ao passado.” (Barrento 2002:99) Mas no entanto essa tradução que não é cópia nem
imitação também não pode ser egoísta e resultar numa versão livre.

Como Vilela sublinha: “Considerando a problemática da tradução como uma íntima


relação entre o texto original e o texto traduzido, Benjamin não perspectiva essa relação como
uma forma de reprodução. Para ele, nenhuma tradução seria possível se a sua aspiração fosse
a semelhança com o original. Essa relação entre o original e a tradução é nomeada, no
contexto da história, através de conceitos de pós-maturação e de sobrevivência. A relação
entre o texto original e o traduzido é a mesma que existe entre a maturação e a pós-maturação,
entre a vida e a sobre-vivência, sendo esta última entendida, por um lado, como uma
continuação da vida (Fortleben) e, por outro, como a vida que excede a vida, que vai mais
além da morte (Überleben). A tradução não afecta a vida do texto porque ele já está morto.
No entanto, a tradução implica a sobrevivência do texto na medida em que essa vida post-
mortem que excede a vida do texto, apenas revela e confirma a sua morte. Daí que, como nota
Derrida, o tradutor esteja «já em situação de herdeiro, inscrito como sobrevivente numa
genealogia, como sobrevivente ou agente de sobrevivência. A sobrevivência das obras, não a
dos autores. Talvez a sobrevivência dos nomes e das assinaturas, mas não a dos autores»
(Derrida, 1987a:214)” (Vilela, 2010: 473)

E nesse sentido, o sítio (o texto original), sobre-vive mediante a acção (tradução) dos
arqueólogos (tradutores, entendidos como agentes de sobrevivência). Esta acção não guarda,
no entanto, qualquer relação com os autores mas apenas com a obra. O arqueólogo escreve a
vida póstuma do sítio. Mas esta vida sobre a qual escreve não é a vida que já foi e que agora
está morta (é “agora”, lembramos, “a vida que teria sido”). Como herdeiros, como tradutores,
e continuando pela mão de Ricoeur (2005), a tradução faz-se pela construção, pela construção
de comparáveis, de equivalências (sem identidade) 6. A construção nasce, desde logo, da
impossibilidade de transposição de uma língua para outra. Mas também da própria praxis que
é o acto de traduzir. E na medida em que qualquer construção envolve opções, a tradução é
também um problema ético: “parece-me, de facto, que a tradução não coloca apenas um
problema intelectual, teórico ou prático, mas um problema ético. Conduzir o leitor ao autor,

6
“…uma boa tradução só pode visar uma equivalência pressuposta, não baseada numa identidade de sentido
demonstrável. Uma equivalência sem identidade. Essa equivalência só pode ser procurada, trabalhada,
pressuposta. É a única forma de criticar uma tradução – o que se pode sempre fazer – é propor uma outra,
pressuposta, pretensa, melhor ou diferente.” (Ricoeur, 2005:41)

28
conduzir o autor ao leitor, correndo o risco de servir e trair dois amos.” (Ricoeur, 2005: 43).
Em Arqueologia este problema é premente. Que discursos produzimos acerca do passado?
Como traduzimos a nossa própria prática? Como interpretamos um conjunto de
materialidades que revelamos segundo um conjunto de práticas e técnicas definidas no
contexto preciso da Modernidade (segundo Thomas, 2004)?

Introduzimos novamente uma longa citação:

“Todo o acto de traduzir remete para uma origem (…) mítica e metafórica, que tem sido vista,
a um tempo, como pressuposto e como estigma de toda a tradução: o mito de Babel, a torre
geradora de todas as diferenças entre as línguas e, com isso, da necessidade da tradução.
Acontece que a metáfora da Torre, que implica uma noção de tradução fundada na diferença,
não é a única. O caminho da tradução, tal como o entendem por exemplo Walter Benjamin ou
Derrida, pode ser um caminho de sentido inverso ao da Torre de Babel. Em cada tradução
escavamos «o poço de Babel» (a imagem vem de um aforismo de Kafka), e esse poço, uma
espécie de descida (sem fim) aos infernos turvos da significação na língua-outra, é o
caminho espiralado que teria como objectivo o reencontro com um estado pré-babélico e
com aquele substrato adâmico que aproxima todas as línguas. (…) A tradução nasce de um
sonho insensato (com o seu preço e o seu fascínio) e faz-se como um trabalho arqueológico.
Mais do que um prolongamento ou uma extensão do outro, cada tradução seria então (…) Em
ultima análise, um mergulho, uma morte que gera uma ressurreição, um acto de desejo
(impossível e sempre repetido).” (Barrento, 2002:123-124, ênfases nossas).

Depois de Babel somos compelidos a traduzir, mas como refere Barrento, através de
uma outra poderosa metáfora, essa tradução “faz-se como um trabalho arqueológico”,
escavando o “poço de Babel” com o intuito de perceber o momento em que as línguas se
desencontram ou o estrato comum que devem partilhar. Este exercício de escavação, de dirigir
a atenção ao que está enterrado, às profundezas, o indagar um tempo anterior e nesse sentido
sempre inferior em termos estratigráficos, foi também referido por V. O. Jorge na lição de
sapiência apresentada na FLUP em 2010.

Anteriormente referimos os suportes em que a tradução arqueológica se materializa.


No entanto, em Arqueologia a tradução também se processa ao nível da escavação. Desenhos,
fotografias e descrições registam momentos da prática arqueológica. São imagens. Flashes.
Transportam o código e a descodificação desta prática. A “torre de Babel” enquanto
construção, enquanto dispositivo arquitectónico que pretendia alcançar o céu, é a criação que

29
origina a divisão das línguas por vontade divina. O poço de Babel enquanto a escavação que
permite a tradução, é o momento pós-Babel, o que pretende alcançar os alicerces da grande
torre inacabada e a comunidade humana no seu estado mais puro (o momento pré-Babel),
revelada para lá da diversidade das línguas, atingível no seu estado mais puro porque revelada
à luz da linguagem original (o Verbo que o era no princípio). A imagem mítica de Babel e o
aforismo de Kafka não representarão as fundações da própria arqueologia tradicional?

No ponto 2 continuamos a estender este texto através da apresentação do sítio de


Castanheiro do Vento, objecto que nos ocupa neste trabalho. Esta apresentação não pretende
ser exaustiva mas tentaremos reunir um conjunto de particularidades que nos parecem
essenciais para pensar quer o sítio hoje quer as “arquitecturas pré-históricas”. O ponto 3
pretende abordar a metodologia geral, ou os pressupostos, em que se baseia o nosso estudo da
arquitectura do sítio de Castanheiro do Vento, as regras do jogo entre a arquitectura de Babel
e a escavação de Babel com vista à “compreensão” dessa arquitectura. Delineadas as bases
fundacionais deste trabalho prosseguiremos com a análise das bases fundacionais de outros
discursos. Apelidados de “tradicionais”, estes discursos outros, que poderiam-se definir como
herdeiros de uma tradição narrativa de explicação de sítios semelhantes a Castanheiro do
Vento – designados por “povoados fortificados” – que durante décadas caracterizou o
discurso arqueológico acerca do III milénio A. C. na Península Ibérica (ponto 4, 5, 6 e 7). A
terceira parte pretende regressar a Castanheiro do Vento (ponto 8, 9, 10 e 11), após a incursão
nestas outras explicações. Estas últimas começaram a ser revistas/criticadas muito antes deste
trabalho que agora iniciamos, pela dita escola do Porto, pela mão de Vítor Oliveira Jorge e
Susana Oliveira Jorge (aos quais se associa Maria de Jesus Sanches). Assim, estabelecendo as
bases de trabalho tentaremos estudar um conjunto de unidades, de singularidades que surgem
no sítio ou que o sítio invoca. O trabalho de escrita deu-se a par do trabalho de escavação, que
se faz em equipa, como salientaremos. Nesse sentido, diversas perspectivas podem aparecem
entrelaçadas, resultantes que são de um processo de tradução contínuo. A fechar este trabalho
(no ponto 12) regressamos à palavra “arquitectura” para a pensar em relação a Castanheiro do
Vento.

30
2. O sítio arqueológico de Castanheiro do Vento.
Condições de emergência do projecto de investigação

“The internal layout of the top of these hills was a sort


of “labyrinth”, composed by a series of concentric
walls.”

(Jorge [et al.], 2006:240)

Fig. 2.1 Croquis de Castanheiro do Vento, após campanha de escavação de 2009. Tratamento gráfico de André
Santos sobre desenhos de Bárbara Carvalho e João Muralha Cardoso.

Abrimos este ponto para apresentarmos uma overview do sítio de Castanheiro do


Vento. No entanto, ao longo dos capítulos subsequentes o sítio irá também ser abordado

31
mediante a análise de unidades arquitectónicas particulares ou especificidades que permitam
equacionar um conjunto de problemas que elencamos como fulcrais na criação de um
discurso interpretativo. Torna-se necessário neste ponto sistematizar e partilhar (ou relembrar)
as informações disponíveis para a análise global do sítio. Trata-se da apresentação de um dos
estratos, pelo qual, este trabalho teve de passar, antes de proceder à análise de um conjunto de
particularidades. Assim, a primeira parte segue de perto o trabalho de João Muralha Cardoso
(2007), na medida em que este autor sistematizou as informações disponíveis até 2006, sendo
portanto o responsável pelo primeiro trabalho à escala do sítio. Posteriormente
apresentaremos de forma sumária os resultados das campanhas de escavação empreendidas
em 2007, 2008, 2009 e 2010.

Fig. 2.2. Localização do sítio arqueológico de Castanheiro do Vento no mapa da Península Ibérica

O sítio arqueológico de Castanheiro do Vento localiza-se na freguesia de Horta do


Douro, concelho de Vila Nova de Foz Côa, Alto Douro, Nordeste de Portugal. As
coordenadas geográficas calculadas a partir de um ponto central do sítio arqueológico são: 41º
3’ 49’’ Latitude Norte e 7º 19’ 18’’ Longitude Oeste (Greenwich), segundo a “Carta Militar
de Portugal”, escala 1/25000, folha 140. Situa-se no topo de uma colina, à altitude absoluta de
730 metros 7. As escavações arqueológicas tiveram início em 1998 sob direcção de Vítor

7
Geomorfologicamente, situa-se nos níveis do Douro dos Planaltos Centrais (Ferreira, 1978: 124-129).
Integra-se no complexo xisto-grauváquico, constituído essencialmente por xistos e grauvaques, com inclusões
ocasionais de granitos (Ibid:16). Especificamente posiciona-se na Formação de Desejosa, Grupo do Douro,
essencialmente composta por filitos escuros, normalmente calcossilicatos com um aspecto listrado, conferido
pela alternância de níveis de xistos escuros com leitos estreitos de psamitos esbranquiçados (Silva & Ribeiro,
1991: 13). Para mais informações acerca da geomorfologia da região e sua relação com os sítios arqueológicos
de Castanheiro do Vento e Castelo Velho de Freixo de Numão veja-se Cardoso, 2007 e Velho, 2009.

32
Oliveira Jorge, João Muralha Cardoso e António Sá Coixão, aos quais se foram associando
Susana Oliveira Jorge, Leonor Sousa Pereira, Ana Vale, Gonçalo Leite Velho, Bárbara
Carvalho e Sérgio Gomes. As datas de radiocarbono permitem enquadrar o sítio entre 2875 e
1519 cal AC, intervalo em que recaem 81,5% do conjunto das datas disponíveis (Cardoso,
2007: 103). Como nos podemos mover num tempo lato de cerca de 1300 anos?

Gráfico 2.1. Gráfico de barras representando a totalidade de datas 14C disponíveis para Castanheiro do Vento

A serpente formada pela representação das datas de Castanheiro do Vento denuncia o


que poderíamos designar, e de forma paradoxal, uma “continuidade sincrónica” entre os finais
do primeiro quartel do III milénio calAC e o segundo quartel do II milénio calAC: trata-se de
uma imagem de continuidade, de processo, de acções encadeadas ao longo de um período de

33
tempo lato 8. Uma data muito antiga evidencia uma realidade prévia às arquitecturas até ao
momento detectadas e um conjunto de datas da Idade do Ferro denota um conjunto de práticas
aí realizadas que se caracterizam pela discrição.

Gráfico 2.2. Gráfico de barras das datas 14C disponíveis estruturas tipo bastião e estruturas circulares (sempre
que dispúnhamos de várias datas para a mesma unidade contextual foi realizada a média ponderada)

Poderíamos tentar “apertar” os intervalos temporais pela selecção de datas. O gráfico


2.2. refere-se apenas a carvões recolhidos em estruturas tipo bastião e em estruturas
circulares. Pretendeu-se reduzir os contextos exactamente tomando como critério as estruturas
cujos limites fossem mais evidentes. Para algumas das datas representadas no gráfico anterior,
e porque provenientes dos mesmos contextos e estatisticamente semelhantes, foram
calculadas as respectivas médias ponderadas que aqui se apresentam. Assim, poderíamos
sugerir um intervalo, igualmente lato, que se situaria genericamente entre 2700 e 1700 cal BC
(excluimos as duas datas mais recentes por colocarem problemas de possíveis
anomalias/contaminações, como será discutido no ponto 10.2, e a data obtida sob a linha basal
do Bastião D). Os gráficos por onde se distribuem os intervalos de datas absolutas
representam quer a diacronia, quer a sincronia de uma série de práticas decorridas no sítio.
Ilustram a sucessão e a contemporaneidade genérica de eventos, de construções, de dinâmicas

8
Os problemas inerentes às datas de 14C têm sido discutidos em trabalhos de Castanheiro do Vento e do sítio
arqueológico vizinho, Castelo Velho de Freixo de Numão. (Cardoso, 2007 e Velho, 2009).

34
que ocorreram e que resultaram no que o sítio é/foi, assim como o ilustram as relações
estratigráficas ou a articulação entre materiais. No entanto, o jogo entre estas duas variáveis, o
tempo sequencial ou diacronia e o tempo da simultaneidade ou sincronia não são entrelaçados
no discurso vigente. Nas narrativas arqueológicas actuais o que observamos é a
predominância de uma de duas abordagens ao nível do tempo: ou uma essencialmente
diacrónica (onde a dimensão crono-sequencial é relevada) ou uma essencialmente sincrónica
(onde a dimensão espacial é a mais pertinente). No entanto, como é possível pensar algo
quando nada é simplesmente puro evento (diacronia absoluta) nem pura estrutura (sincronia
absoluta) (segundo Agamben, 2007a: 85). Importa pensar as intersecções entre diacronia e
sincronia. É o jogo entre estes dois eixos que deveriam estruturar o discurso: tempo e espaço.

Como referiu Tim Ingold (2000), tudo está suspenso no movimento. Nos gestos da
construção, nos gestos da colocação de um fragmento cerâmico ou de um vaso num
determinado local, nos gestos de ida e de volta ao sítio, nos gestos das tarefas diárias (no
sentido de Ingold — como forma de habitar). A cronologia perde o gesto, a sincronia
petrifica-o. A temporalidade da acção raramente é equacionada. Mas não nos referimos à
acção intencional desempenhada por um ser humano com o intuito de transformar ou de dar
sentido ao mundo inerte que o rodeia. Como alerta Ingold: “In dwelling in the world, we do
not act upon it, or do things to it; rather we move along with it. Our actions do not transform
the world, they are part and parcel of the world’s transforming itself. And that is just another
way of saying that they belong to time.” (Ingold, 2000a: 200). É o entrelaçado de acções e de
gestos que, não se distinguindo pela sua assinatura mas pelo seu envolvimento colectivo —
pela partilha e pela prática — fazem arquitectura. A arquitectura cria-se na prática e na
(con)fusão de materiais e (re)arranjos ilimitados: é pelo fazer que os espaços são criados.

O tempo cronológico com que medimos os nossos dias, o hoje e agora, revela-se
incapaz de criar qualquer discurso para um sítio arqueológico. Enforma-o em barreiras
temporais, mas mesmo esta afirmação aparentemente simples, se contradiz nas “coisas” que
hoje identificamos como passado. As coisas carregam consigo outros tempos, ou tempos de
quem as carrega. O construir demora, leva tempo. Como datar um murete? A duração da
construção raramente é questionada. Os embasamentos pétreos destes muretes seriam
erguidos em terra crua. A construção em terra crua não pode ser realizada durante todo o ano
(Vale [et al.], 2006). Terá a construção assumido um carácter sazonal em Castanheiro do
Vento? Mas resumir-se-á a construção do sítio apenas à elaboração de muretes?

35
Admitindo que a construção dos muretes poderia ter um carácter sazonal, são formas
que se demoram no tempo. Formas essas que são “habitadas” continuamente,
permanentemente entrando no jogo da surpresa do encontro e na criação e recriação constante
de espaços. As pequenas estruturas circulares (às quais prestaremos mais atenção
subsequentemente) parecem, acima de tudo, encerrar tempo. A sua construção, mais ou
menos rápida e a colmatação pela colocação de lajes de xistos ou elementos em granito, de
“deposições” de fragmentos cerâmicos ou de fragmentos de ossos de animais, sugerem um
esconder de tempo. Como sublinharemos por diversas vezes, Castanheiro do Vento é um
emaranhado de construções e coisas, de acções e movimentos, de tempos e espaços, onde o
que é aparentemente diferente é colocado lado a lado, onde o familiar é desfamiliarizado e o
não familiar familiarizado. E é neste paradoxo que vamos construindo um texto e um sítio.

O retrato do sítio de Castanheiro do Vento apresenta-se como uma complexa teia de


relações impossíveis de fasear num tempo sequencial O sítio está em permanente construção e
reconstrução; foi (e é) permanentemente ocupado e habitado. Neste sentido, a sua integração
em fases de construção e ocupação é impossível. As alterações estruturais registadas
processaram-se a partir do nível basal, não se tendo detectado até ao momento nenhuma
sobreposição de unidades arquitectónicas 9. Isto indica-nos que, mesmo que a construção não
se efectue simultaneamente, as estruturas se encontram como que encadeadas numa rede;
deste modo, a contínua construção no sítio vai progressivamente alterando os espaços de
circulação e, consequentemente, os movimentos e práticas que ali se deram. Devido a esta
contínua (re)construção de estruturas, que são permanentemente integradas no todo que é o
sítio em si, é impossível continuarmos a defender a possibilidade de inferir uma periodização
linear num tempo sequencial para Castanheiro do Vento. Os elementos arquitectónicos
registados no sítio em estudo são analisados enquanto nódulos em que se relacionam
componentes construídos e a tradicionalmente chamada “cultura material”. É, precisamente
sobre esta relação que assenta o conceito de arquitectura sobre o qual trabalhamos. Foram, por
exemplo, detectados fragmentos cerâmicos talhados junto a muretes como se de cunhas se
tratassem (Cardoso, 2007: 248) e algumas deposições de materiais revelam a articulação entre
todos estes elementos na feitura de espaços, na sua transformação, na criação e recriação de
movimentos e percursos.

9
Com excepção da estrutura apelidada de “Torre Principal” e da área que se desenvolve para leste desta, cujo
estudo ainda se encontra em curso.

36
Este ponto permite-nos relacionar a investigação levada a cabo no sítio de Castanheiro
do Vento com a que tem sido desenvolvida no sítio de Castelo Velho de Freixo de Numão
(Jorge, S. O., 2005 10). Neste último sítio arqueológico foram identificadas deposições
intencionais de diversos materiais (por exemplo de sementes carbonizadas e fragmentos
cerâmicos) que têm sido olhadas como fazedoras de espaços, de práticas e movimentos que se
tentam questionar; e as estruturas que (também) as conformam têm sido interpretadas não
apenas como contentores desses mesmos materiais, como elementos passivos que apenas
servem de palco para que ocorra no seu interior um conjunto de actividades, mas sobretudo
enquanto elementos activos dessas mesmas práticas. Esta linha de pesquisa distancia a
interpretação destes sítios das narrativas que pressupõem que nos encontramos perante
“povoados fortificados”. A tradicional abordagem como “povoados fortificados” parece
favorecer explicações precisas e situados no tempo, na medida em que se baseia em fases
construtivas e de ocupação e tem como principal preocupação a explicação das estruturas
detectadas, semelhantes em todos os apelidados “povoados fortificados”. O ponto de partida
para a formulação de outras formas de pensar estes sítios tem sido identificado com o texto de
S. O. Jorge de 1994. 11 No entanto, esta procura de outras formas de pensar estes sítios é um
trabalho contínuo, na medida em que não se procura formular explicações outras mas a
promoção de um pensamento crítico em relação à Arqueologia.

Neste sentido, a própria nomenclatura destes sítios foi alterada, na medida em que esta
diz já das diferentes posições teóricas. Castelo Velho de Freixo de Numão e Castanheiro do
Vento têm vindo a ser entendidos enquanto “colinas monumentalizadas”. Esta expressão
pretende sublinhar a importância de estudar o sítio não apenas ao nível das cotas mais
elevadas onde decorrem os trabalhos arqueológicos de escavação, mas ao nível de toda a
colina. Para definir esta expressão, pedimos emprestadas as palavras de V. O. Jorge, quando
diz: “Colina monumentalizada – micro-mundo (cosmos, realidade organizada segundo certos
padrões gerados e alterados pela própria acção) construído como uma metonímia e, ao mesmo
tempo, metáfora do primeiro, mas sob uma forma “controlada” pelos seres humanos, e

10
Remeteremos, por vezes, ao longo do texto para a compilação de textos de Susana Oliveira Jorge publicada
em 2005, O Passado é Redondo, pois muitas das ideias veiculadas pela autora estão presentes em diversos textos
que, dispersos por várias publicações anteriores, foram pela autora reunidos nesta edição.
11
“Colónias, Fortificações, Lugares Monumentalizados. Trajectória das concepções sobre um tema do
Calcolítico Peninsular” – Lição dada no âmbito das provas de Agregação em Pré – História e Arqueologia, na
Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em Março de 1994. Publicado na Revista da Faculdade de Letras,
IIª série, vol. XI.

37
portanto correspondendo a uma concentração enorme de sentidos, de energia, de
transformações (transmutações) de elementos do primeiro em elementos do segundo. É a este
nível que podemos dizer que estamos perante um “espaço de transformações” em que a(s)
comunidade(s) manipulava(m) uma série de elementos provenientes do local e de fora do
local, por forma a integrá-los num todo novo e ordenado.” (Jorge, V. O. [et al.], 2006-2007:
257). Neste sentido, diversos trabalhos têm sido desenvolvidos que partem da premissa que
Castanheiro do Vento corresponde a toda a colina (como a investigação levada a cabo por J.
Cardoso acerca da região, ou, por exemplo, estudos de visibilidade de e para o sítio (Jorge, V.
O. [et al.], 2006; Jorge, V. O. [et al.], 2006-2007) 12

As 13 campanhas arqueológicas (1998-2010) empreendidas no sítio permitiram a


identificação de um recinto delimitado por três linhas de murete tendencialmente
concêntricas, interceptadas por unidades subcirculares — que tradicionalmente se designam
por “bastiões” 13 — e cortadas por passagens ou entradas. A este recinto denominamo-lo como
“Recinto Principal”. Os muretes e bastiões encontram-se reforçados no seu lado externo por
sistemas de contrafortagem — dispositivos elaborados com recurso a lajes de xisto dispostas
de forma paralela e perpendicular entre si de forma a criar um jogo de forças. No Recinto
Principal e nas áreas entre os muretes foram detectadas estruturas circulares [cuja área interna
nunca excede os 9m2 (Cardoso, 2007: 211-216)] e grandes estruturas circulares (definidas na
sua totalidade ou apenas sugeridas por semicírculos). Há ainda a registar pequenas estruturas
ou micro-estruturas de tendência circular e elaboradas essencialmente com elementos de
moinhos manuais em granito. Adossado ao Murete 1 detectou-se o que se apelidou de
“Recinto Anexo”, delimitado por um murete interceptado por dois “bastiões” e duas
“passagens”. O sítio encontra-se ladeado a norte e a oeste (áreas onde o terreno apresenta um
declive mais acentuado) por um dispositivo de tipo talude definido por alinhamentos
constituídos por lajes de xisto colocadas de forma perpendicular e paralela entre si de forma a
contrariar a pendente do terreno.

12
No ponto 11 regressaremos a esta questão.
13
Ao longo deste texto a palavra “bastião” é utilizada para designar estruturas subcirculares. A escolha deste
termo não reflecte uma interpretação de cariz militarista para este tipo de estruturas. A equipa de Castanheiro do
Vento tem mantido a designação “bastião” ao longo das publicações por pensar que esta facilita a comunicação
no seio da comunidade arqueológica.

38
As estruturas aqui enumeradas apresentam-se como “um autêntico "bordado de pedra".
Este "bordado", que podia ter uma espécie de organização por módulos, desenhava no solo, ao
nível da planta, a estrutura a três dimensões que se ia erguer” (Jorge, V. O., 2009). Os
embasamentos a que V. O. Jorge se refere seriam sobretudo moldados com recurso a lajes de
xisto, com inclusões de quartzo e granito 14 e as paredes erguer-se-iam em terra crua
utilizando, ao que tudo indica, diferentes técnicas e modos de fazer. Na verdade, se
atendermos à diversidade de “tipos” de embasamentos pétreos, as paredes dos muretes que
definem o Recinto Principal (longos troços de tendência curvilínea e outros quase rectos)
deveriam ser de grande espessura e dimensões, enquanto que as estruturas circulares deveriam
erguer-se em altura com recurso a um entrelaçado de ramos revestido com terra crua.

J.M. Cardoso (2007) caracterizou este complexo de forma precisa. A primeira linha de
murete (M1) — a mais excêntrica do sítio — perfaz 75,7 m (incluindo a curvatura dos
muretes) e a largura do murete oscila entre os 0,70 m e 1,40 m. É constituído por 4 unidades
tipo “bastião” (A, B, C e D), 2 passagens (1 e 2) e uma estrutura pétrea maciça, de forma
circular, a qual foi designada por “torre”. Cardoso sugere que a linha do M1, a norte, termina
na estrutura de tipo “talude”. Esta é formada por um conjunto de lajes de xisto dispostas em
alinhamentos de tendência curva e paralelos às curvas de nível do terreno, sendo os intervalos
entre estes alinhamentos preenchidos por lajes de xisto dispostos perpendicularmente
relativamente a estes últimos. A sul, o M1 entronca no murete que define o Recinto Anexo.
Este anel pétreo apresenta um perímetro de 88,8 m e a largura do murete situa-se entre 1, 10m
e 1, 60m. É interceptado por 2 passagens (3 e 4) e caracteriza-se pela presença de duas
unidades de tipo “bastião” (E e F). O Murete 2 (M2) perfaz uma forma oval. As duas
extremidades deste murete não distam muito entre si, e encontram-se localizadas a sul. O
terminus mais meridional encosta à estrutura circular número 5. O M2 caracteriza-se por
287,70 m de perímetro. A largura do murete situa-se entre 1,10 e 1,70 m. A sua linha pétrea
integra 11 unidades tipo “bastião” (G, H, J, K, L, Q, R, S, T e U) e 6 passagens (6, 7, 10, 11,
12 e 13). A terceira linha da murete (M3) — a mais interna do sítio — define o chamado
Recinto Principal e apresenta 132,6m lineares . A largura desta unidade situa-se entre 1,00 e
1,80 m É caracterizado por 6 estruturas de tipo “bastião” (M, N, O, P, V e W) e 4 passagens
(8, 9, 14 e 15). Provavelmente num primeiro momento integrada no M3, a Torre Principal, é
um dos dispositivos arquitectónicos que rompe com o ritmo criado pela sequência de rectas e

14
ver trabalho de J.M.Cardoso (2007) acerca das técnicas e materiais construtivos em Castanheiro do Vento.

39
curvas definidas pelo design do muro. Esta estrutura ainda em fase de escavação parece
resultar de um intenso processo de construção e reconstrução. A sua designação como “Torre
Principal” é justificada pela sua aparência original: estrutura subcircular com face e
contrafortagem externas, sendo o interior colmatado por lajes de xisto. No entanto, a
escavação permitiu a identificação de uma unidade tipo “bastião” que poderia corresponder a
um primeiro momento da estrutura, quando esta se encontrava ainda integrada no M3. A este
murete curvilíneo acresce-se posteriormente segmentos de murete curvos que transformam a
estrutura num espaço fechado, apenas interrompido por uma passagem, de morfologia
subcircular. No interior a estrutura revela um conjunto de outros muros rectilíneos,
construídos a partir de diferentes técnicas de fazer.

Fig. 2.3. Desenho da “Torre Principal” após escavação de 2006. Tintagem de Leonor Sousa Pereira
sobre desenho de Bárbara Carvalho e João Muralha, reproduzida em Cardoso, 2007:116.

40
Fig. 2.4.Escavação da Torre Principal durante a campanha de 2010.

Este complexo formado por três linhas de murete concêntricas, é pontuado por
estruturas tipo “bastião”. A maioria destas unidades define-se por uma forma semicircular,
excepto os Bastiões A e B. Estes caracterizam-se pela sua forma quase circular, apenas
interrompida pela continuidade da face que os delimita por uma passagem de vão estreito para
o seu interior. Ou seja, é a própria configuração do murete delimitador da estrutura que cria
um espaço físico condicionado por onde se entra para o “bastião”. No ponto 9.1, aquando da
análise de quatro unidades de tipo “bastião”, abordaremos este detalhe. As estruturas tipo
“bastião” carecem ainda de um estudo relacional devido à própria metodologia adoptada, em
que apenas alguns contextos foram escavados. Contudo algumas questões estão a ser
equacionadas. Por exemplo, estudos na área da zooarqueologia, realizados por Cláudia Costa
(2007), revelam que os ossos de animais recolhidos em diferentes estruturas tipo “bastião” (e
apesar destas estruturas não terem sido alvo do mesmo tipo de intervenção arqueológica, pois
algumas delas foram apenas decapadas) apresentam diferenças interessantes: os ossos animais
em Castanheiro do Vento encontram-se maioritariamente calcinados, à excepção dos
recolhidos sobretudo no “Bastião” J (onde 40% da amostra não se encontra calcinada) e no
“Bastião” L (onde 64% não foi submetido a calor intenso e onde os restos faunísticos
exumados numa bolsa de terra escura apresentam 84% de ossos não queimados). Também a

41
variedade de espécies e tamanho dos fragmentos parecem diferir, consoante nos encontramos
em bastiões de M1 ou de M2. Refira-se que, por exemplo, a espécie Equus caballus/Equus sp.
Está ausente nos Bastiões integrados no M1 (Costa, 2007:105)

Bos Equus Cf Otis


O. Sus Ovis/ Cervus
Estrutura taurus caballus tarda
cunniculus sp. Capra elaphus
Bos sp. Equus sp. elaphus
Bastião A X X
Bastião B x
Bastião C x X X
Bastião D X x X x
Bastião E X x x X x
Bastião H x x X x X
Bastião I x x
Bastião J x x X
Bastião K X
Bastião L x x x

Quadro 2.1. Estudo dos fragmentos osteológicos a partir de C. Costa (2007:106). Distribuição por
espécie nas estruturas tipo bastião

Crânio e Esqueleto Esqueleto Extremidades


Esqueleto
Estrutura restos apendicular apendicular dos
axial
dentários superior inferior membros

Bastião A x X
Bastião B X
Bastião C x x X
Bastião D x X x X
Bastião E x X X
Bastião F x
Bastião H x X
Bastião I x
Bastião J x X X X
Bastião K X
Bastião L x X X

Quadro 2.2. Estudo dos fragmentos osteológicos a partir de C. Costa (2007:107). Distribuição dos
fragmentos por proveniência anatómica nas estruturas tipo bastião.

O objectivo de J. M. Cardoso (2007) passava sobretudo por tentar “perceber se


existiria algum gesto técnico delimitativo quer na construção do murete, quer na dos
bastiões.” (Ibid. 117). Neste sentido o autor fragmentou o dispositivo construído em “troços
de muretes”, “bastiões”, “passagens” e “Torre Principal”. A análise deste complexo assentou
sobretudo na aplicação de métodos estatísticos na caracterização das unidades construídas,

42
recaindo o estudo nos materiais utilizados na elaboração destes embasamentos pétreos, no
comprimento das lajes (medida modal) e no acabamento (lajes facetadas ou não). O autor
procurava definir um padrão construtivo mas constata que a aparente homogeneidade
construtiva mascara uma grande diversidade nas formas de “fazer”. J. M. Cardoso continua a
sua análise do complexo arquitectónico de Castanheiro do Vento com o estudo das estruturas
circulares e estruturas circulares geminadas (que serão apresentadas neste trabalho no ponto
10. 2). Estas unidades caracterizam-se essencialmente pela sua forma subcircular, diâmetros
médios compreendidos entre os 3 e 4 metros, e delimitação por lajes de xisto colocadas na
vertical ou dispostas na oblíqua. O autor preocupa-se também com as estruturas de
contrafortagem, e estuda o que se designa por “marcadores espaciais” ou seja, “pedras
“fincadas”, lajes de xisto colocadas ao alto, ou grandes blocos de quartzo (…) quer isolados,
quer inseridos em estruturas ou troços de murete (…) que durante as diversas fases de
elaboração, reformulação e/ou alteração do conjunto da estrutura arquitectónica que é o sítio
arqueológico, foram colocados/depositados/inseridos em determinados locais específicos da
estação arqueológica. “ (Ibid.:168-169).

A fragmentação do dispositivo de Castanheiro do Vento conduz à proposta de uma


tipologia das várias estruturas/unidades elencadas. Assim, os muretes, os bastiões, as
passagens, as estruturas circulares e estruturas circulares geminadas, as estruturas de
colmatação/oclusão são divididas em tipos atendendo mais uma vez aos materiais utilizados
na sua elaboração, às dimensões dos elementos e ao tipo de acabamento. O autor está
sobretudo preocupado com as técnicas de configuração do sítio, com a habilidade técnica e
com o gesto construtivo. Realça que Castanheiro do Vento poderá ser entendido enquanto
uma trama que foi tecida continuamente, e não apenas como um conjunto de construções
passíveis de serem integradas em fases construtivas. Avança com a hipótese da construção
dos muretes (que definem a morfologia do sítio de Castanheiro do Vento) se ter dado por
módulos, ou seja, pela adição sucessiva de trocos de murete mais ou menos rectilíneos e
troços de murete curvilíneos (o que não exclui um regressar constante às estruturas, um
refazer, reconstruir, reconfigurar, como o autor sublinha por diversas vezes). Consciente que o
sítio não se encontra isolado e que o estudo apenas concentrado no interior dos espaços
definidos pelos três muretes carecia de contextualização à escala da região, o autor empreende
um trabalho de prospecção e de identificação de sítios, procurando questionar problemas
relacionados com a visibilidade (entre sítios arqueológicos, em relação a relevos naturais…) e
percursos/movimentos entre as várias unidades registadas na paisagem.

43
As campanhas de 2007, 2008, 2009 e 2010 permitiram sublinhar algumas das
considerações tecidas por Cardoso assim como vieram adicionar mais elementos à “planta” de
Castanheiro do Vento. Entre os elementos mais pertinentes identificados, refiram-se as
grandes estruturas circulares. As campanhas de escavação realizaram-se na plataforma central
do sítio, área que corresponde, genericamente, ao que se apelidou de Recinto Central. Não se
enquadra no presente trabalho a inclusão dos relatórios de escavação referentes a estas quatro
campanhas, uma vez que versões dos que foram submetidos à tutela encontram-se publicadas
na revista Côavisão (Jorge, V.O. [et al.], 2008; Cardoso [et al.], 2009; Cardoso [et al.], 2010;
Cardoso [et al.], no prelo) e em pequenas notícias entretanto divulgadas (Vale [et al.], 2007;
Vale [et al.] 2008).

Detenhamo-nos nas grandes estruturas circulares, intervencionadas em 2008, 2009 e


2010. Localizam-se na área do chamado Recinto Principal e num espaço compreendido entre
a linha de Murete 2 e a linha de Murete 3 (ainda que esta última se encontre
ausente/”destruída” num troço). Definem-se por uma morfologia subcircular, apesar de em
apenas uma destas unidades ser possível marcar os limites da extensão completa do círculo.
As restantes unidades são apenas caracterizadas pela presença de uma estrutura em arco. A
forma é desenhada por lajes de xisto fincadas na vertical ou dispostas de forma oblíqua
podendo ainda ocorrer a presença de lajes de xisto colocadas na horizontal.

Fig. 2.5. Desenho de área a oeste do sítio de Castanheiro do Vento. Desenhos e tintagens de Bárbara Carvalho.

44
A Grande Estrutura Circular 1 foi identificada em 2008 e integralmente escavada em
2010. Este dispositivo irá ser alvo de uma análise pormenorizada, pelo que remetemos a
descrição da estrutura para o ponto 9.2. A Grande Estrutura Circular 2, identificada em 2008 e
é definida por um conjunto de lajes de xisto fincadas dispostas em arco (com uma abertura de
boca de 5m). Na área interna delimitada pelo arco pétreo o espaço caracteriza-se pela
existência de três buracos de poste e pela sua organização em torno de um conjunto de
pequenas estruturas de tendência curvilínea. O limite a oeste situa-se muito próximo do
Murete 2 o que denota os constrangimentos físicos ao andar que a profusa construção em
Castanheiro do Vento estabelece.

Fig. 2.6. Fotografia da Grande Estrutura Circular 2. Pormenor do conjunto de pequenas estruturas de tendência
curvilínea no espaço interno da GEC2

O espaço representado na fig. 2.6. aponta para uma profusa rede construtiva. O Murete
2 ampara um conjunto de estruturas, de tendência circular, de diversos tamanhos, cujos
limites foram possíveis registar de forma contínua ou intermitente. O M2 neste espaço é
cortado pela passagem 12. Esta abertura depara-se a oeste com as estruturas 23 e 24 e a leste
com GEC1. Os Bastiões U e T encontram-se em íntima associação com um conjunto de
estruturas circulares de diversos diâmetros. O Bastião T é ainda pontuado por um conjunto de
buracos de poste que acompanham a curvatura interior (estariam estas unidades conectadas
com a construção da própria parede do bastião ou indicam a presença de uma outra
estrutura?). O “bordado” pétreo que hoje desenhamos num mesmo nível sugere uma
elaboração contínua mas poderia ter adquirido diferentes ritmos.. Traduz-se em jogos de

45
sombras, em caminhos estreitos e espaços amplos entre paredes curvilíneas e paredes de
tendência recta, e onde caminhos e cruzamentos são criados constantemente:

“A path which does not have to be discovered but to be created. And this creation of
path is not at all alien to architecture. Each architectural place, each habitation has one
precondition: that the building should be located on a path. There is no building without
streets leading towards it or away from it; nor is there one without paths inside, without
corridors, staircases, passage, doors.” (J. Derrida, citado por Leach, N., 1997: 319-320)

E é na multiplicidade de caminhos que prosseguimos este texto.

Fig. 2.7. Fotografias de pormenor das Grandes Estruturas Circulares 4 e 3. Em cima visualiza-se o alinhamento
que define a GEC4 e em baixo a dupla linha definidora da GEC3.

A Grande Estrutura Circular 3 e a Grande Estrutura Circular 4 encontram-se em


conexão e a sua descrição terá obrigatoriamente que se dar em simultâneo. Localizadas no
Recinto Principal (delineado pelo Murete 3), são definidas por lajes de xistos colocadas na
vertical ou de forma oblíqua e perfazem grandes arcos de círculo (a GEC3 com 7 m de
diâmetro e a GEC4 com 6,5 m). A abertura da GEC3 encontra-se virada a nascente enquanto
que o vão da GEC4 se volta a norte. Admitindo que se tratam de embasamentos de estruturas
de perímetro originalmente maior (e assumindo que, por razões diversas, apenas é possível

46
hoje registar parte das mesmas) sugerimos que a GEC4 perfazia uma forma subcircular
articulada com a GEC3. Esta última, amparada pela parede interna do Bastião W “encaixava-
se” na GEC4 sem fechar o círculo. Neste sentido, poderia ser equacionada uma passagem para
a GEC3 delimitada pela extremidade do “bastião” e pela própria parede da GEC4. No entanto,
as hipóteses de construção em altura podem ser distintas para as duas unidades, na medida em
que a GEC4 registou 125 fragmentos de barro de revestimento (num total de 3546 gr) ao
contrário da GEC3 na qual não foi registado nenhum fragmento de barro de revestimento. A
GEC3 apresenta também uma técnica construtiva da base diferente da outra unidade. Num
troço dos limites da GEC3 a linha é duplicada por um outro alinhamento definido por lajes de
xisto de média dimensão e preenchido por pequenas lajes de xistos inseridas num sedimento
argiloso compacto. As duas linhas que definem a estrutura distam entre si cerca de 60 cm.

Fig. 2.8. Pormenor da concentração de elementos em quartzo e do conjunto de unidades em granito. Estes
materiais encontram-se conectados com a GEC3 e a GEC4

No espaço interno destas unidades, e como que conectando as duas estruturas, foi
identificada uma depressão no afloramento rochoso preenchida por blocos de quartzo de filão,
de configuração irregulares. Após uma análise preliminar, verificou-se tratarem-se, na sua
maioria, de termoclastos. Estes elementos em quartzo encontravam-se em relação com um
sedimento cinzento-escuro. Em conexão com a concentração de elementos em quartzo foi
registado um agrupamento de 20 unidades em granito (dormentes) e um grande seixo rolado
de cor alaranjada.

47
Fig. 2.9. Representação dos níveis de escavação do contexto caracterizado pela presença de elementos
de quartzos. Note-se no limite oeste da GEC4 a concentração de blocos de quartzo é seguida de um conjunto de
elementos em granito assinalados a pontilhado.

Esta concentração não foi intervencionada mas a sua localização, imediatamente a


oeste da concentração dos elementos de quartzo, pressupõe uma conexão estrutural entre estes
elementos. Junto à face da GEC4 foi realizada uma intervenção em profundidade numa área
de aproximadamente 4 m2. A escavação permitiu identificar uma pequena fossa, de contorno
subcircular, aberta num sedimento pouco compacto de cor amarela, e, no seu interior, uma
outra depressão interpretada como buraco de poste (esta leitura atendeu ao diâmetro do seu
contorno). Ambas as estruturas, em negativo, são preenchidas por um depósito de escassa
expressão estratigráfica (cerca de 10 cm) constituído por um sedimento cinzento-escuro,
pouco compacto. A identificação da estrutura de tipo “buraco de poste” em negativo 15 vem
abrir as possibilidades construtivas dos níveis basais e alerta para a multiplicidade de soluções
de construção que poderiam ter sido manuseadas em Castanheiro do Vento.

15
A expressão “em negativo” serve para distinguir este tipo preciso de estruturas de outras também interpretadas
como buracos de poste mas definidas por lajes fincadas que, no decorrer da escavação, nos aparecem “em
positivo”.

48
Fig. 2.10. Grande Estrutura Circular 4 e Grande Estrutura Circular 5. Tintagem sobre desenhos de Bárbara
Carvalho e João Muralha Cardoso.

Durante a campanha de 2009 foram também identificadas a Grande Estrutura Circular


5 e a Grande Estrutura Circular 6, ambas definidas por alinhamento em semicírculo
constituídos por lajes de xisto fincadas. A GEC6, à semelhança da GEC3, apresenta uma
dupla linha definidora dos seus limites. O espaço compreendido entre ambas as linhas dista 40
cm e é preenchido por um depósito caracterizado pela presença abundante de pequenas lajes
de xisto inclusas num sedimento argilosos, compacto, de cor amarela. A GEC5, assim como
GEC1 e a GEC3, encontra-se amparada pela linha do Murete 3, como que encostando-se a
esta. Esta particularidade construtiva poderá ser justificada pela necessidade de proteger a
estrutura e assegurar a sua estabilidade. Mas levanta também questões em relação à
construção de espaços, à reconstrução de caminhos, à reconfiguração de movimentos. As
Grandes Estruturas Circulares materializam-se em espaços que poderiam ter sido abertos,
amplos e com poucos constrangimentos ao andar. A sua elaboração pressupõe a criação de
espaços dentro deste espaço. Como veremos seguidamente, dentro das grandes estruturas,
novos ou outros espaços são também desenhados.

49
Fig. 2.11. Representação do Bastião W, da Grande Estrutura Circular 3 e da Grande Estrutura Circular 4.
Tintagem sobre desenhos de Bárbara Carvalho, 2009.

A GEC3 encontra-se “encaixada” no espaço interno do Bastião W. Esta unidade tipo


“bastião” foi identificada durante a campanha de escavação de 2007. A intervenção na
intersecção entre o M3 e o Bastião W sugeriu que estas estruturas teriam sido alvo de
reestruturações profundas feitas desde o nível basal, na medida em que a face interna do
murete que perfaz o Bastião W assentava num depósito caracterizado por um sedimento
argiloso compacto como podemos visualizar no conjunto de fotografias reunidas na fig. 2.10.

50
Fig. 2.12. Intersecção do M3 com Bastião W. Pormenor de quatro fases de escavação onde é possível visualizar
o depósito constituído por sedimento argiloso, de cor amarela, com algumas inclusões de pequenas lajes de xisto,
possivelmente em relação com uma reestruturação dos espaços.

Pensamos que este volume de sedimento argiloso, com fragmentos cerâmicos e uma
enxó em anfibolito incorporados, pode ter sido resultado da intersecção da GEC3 com a face
interna do bastião. Assim, a reestruturação do Bastião W teria ocorrido aquando da elaboração
da GEC3. Também poderíamos equacionar a possibilidade de as duas estruturas não se
encontrarem apartadas por um período temporal (mais ou menos curto). Neste caso, a feitura
da parede do bastião poderia já prever a construção da grande estrutura circular. Estas
hipóteses de construção não pretendem estabelecer sequências construtivas ou equacionar a
existência de um projecto prévio à elaboração das estruturas. Pretende apenas colocar em
texto as múltiplas hipóteses que a construção, vista como algo contínuo e em permanência,
sugere. Pensamos espaços constantemente reconfigurados baseados em traços, em vestígios
do que foi e do que ainda é. Não são traços que permitem a continuação do desenho na folha
de papel de forma a revelar o edifício original. São traços de negociação, traços de habitação-
construção, traços de movimentos e circuitos, traços escolhidos para que possamos contar
acerca da escavação em Castanheiro do Vento.As campanhas arqueológicas de 2007, 2008,
2009 e 2010 permitiram assim a identificação do já mencionado Bastião W e do Bastião V.
Integram-se no Murete 3 e localizam-se genericamente a sudoeste no sítio arqueológico. Após

51
o terminus sul do Bastião W o Murete 3 é passível de ser registado ao longo de cerca de 5
metros, após os quais se interrompe. O M3 volta apenas a ser identificado na área da Torre
Principal, registando-se assim cerca de 10 metros da sua interrupção. Note-se que neste local
o afloramento rochoso é detectado logo após a remoção de antigos solos agrícolas. O terminus
do Murete 3 em ambas as situações não parece estruturado, o que permite questionar
processos de destruição/ruína. Durante as quatro campanhas em questão também se
intervencionaram os Bastiões U e T. O Bastião U, apenas decapado, revelou pequenas
estruturas circulares no seu espaço interno e o Bastião T, como já foi referido, um conjunto de
buracos de poste que acompanham a curvatura da face interna do bastião. O croquis de
Castanheiro do Vento ficou ainda pontuado por outras três “estruturas circulares” 26, 27 e 28.
A Ec26, identificada em 2007 e escavada em 2010, localiza-se entre os Muretes 2 e 3. Como
as outras unidades morfologicamente semelhantes é delimitada por um alinhamento
constituído por lajes de xisto fincadas, e apresenta cerca de 2 m de diâmetro. No seu interior
foi identificado um nível caracterizado por pequenas lajes de xisto de pequena dimensão
associadas a um sedimento argiloso compacto. Em 2009, foram detectadas as estruturas
circulares 27 e 28 (com cerca de 3 m de diâmetro), localizadas num local central no Recinto
Principal. De morfologia subcircular são também delimitadas por lajes de xisto que, contudo,
na sua maioria estão dispostas na horizontal.

Fig. 2.13. Fotografias das Estruturas Circulares 22 e 25 em quatro fases de escavação. Optou-se pela escavação
em secção.

52
As estruturas circulares 22 e 25, também intervencionadas em 2010, revelaram um
enchimento de pequenos elementos pétreos inseridos num sedimento argiloso, compacto, de
cor amarela. Apesar de a estrutura 22 revelar blocos de xisto de maior calibre, o “enchimento”
destas unidades é muito semelhante e consistente ao longo dos três níveis artificiais de
escavação.

As escavações no Recinto Principal registaram também um murete, apelidado de M4,


que se desenvolve no interior do Recinto, de forma perpendicular ao Murete 3, ao qual se
adossa. Contrariando a tendência de desenvolvimento dos muretes já identificados, que
correm de forma genericamente paralela entre si, respeitando a curvatura geral de cada um, o
Murete 4 interrompe este ritmo construtivo. Contudo é semelhante aos restante atendendo à
técnica construtiva. É interrompido pela passagem 16 e estende-se por 15 m ao longo de um
eixo este/oeste. A oeste o troço de murete encosta a M3, junto do arranque sul do Bastião M,
contudo; a leste termina de forma não estruturada. Poderá este facto dever-se a factores pós-
deposicionais ou terá sido intencionalmente destruído?

As últimas campanhas de escavação colocaram a descoberto um conjunto de lajes de


xisto que se distinguiam pela presença das chamadas “covinhas” ou “fossettes” — ou seja,
pequenas depressões de contorno circular (J.M.Cardoso apelidou-as de “lajes insculturadas”
(Cardoso, 2007: 559). Não existe um padrão de associação destes elementos a determinadas
estruturas ou a determinados materiais. Aparecem-nos como que fragmentos de uma outra
peça, mas para a qual já não remetem. São citações, mas sem frase ou contexto original. A
meia encosta, também foram detectados dois grandes blocos de xisto alongados contento um
grande número de covinhas. Encontram-se virados ao vale da Ribeira da Teja e muito
provavelmente estariam em posição vertical (Cardoso, 2007: 231).

53
Fig. 2.14. Laje com covinhas detectada no espaço interno do Bastião U. Fotografia de João Muralha Cardoso,
2008

Este conjunto de lajes pode ser associado à laje de xisto presente na passagem 2, na
qual se registou um conjunto de “fusiformes”. Esta laje, integra o aparelho que define a
passagem.Foram também detectadas duas pequenas lajes de xisto afeiçoadas, umas das quais
com traços incisos dispostos em dois grupos na diagonal e convergindo para o centro 16 (ver
Anexo)

Fig. 2.15. Placas de xisto gravadas com incisões. Levantamento de André T. Santos. Placa identificada na
imagem a): CSTVNT/09/91.37/3/1; Placa identificada na imagem b) CSTVNT/08/95.26/3/2

16
Placas de xisto gravadas são como se sabe comuns em vários contextos do III e II milénio peninsulares (v. g.
Almagro, 1973) sobretudo no sul, sendo habitual a sua interpretação como ídolos. No Noroeste, as referências a
este tipo de peças são escassas. Refira-se, no entanto, que peças interpretadas como “ídolos” (muito diferentes,
no entanto das nossas), foram exumadas na Beira Alta em sepulcros megalíticos (v. g. Corgas da Matança em
Aguiar da Beira – Cruz, Cunha & Gomes, 1988-1989; Dólmen 1 da Lameira de Cima em Penedono – Gomes,
1996).

54
Fig. 2.16. Laje com fusiformes detestada na face lateral note da Passagem 2 (integrada no Murete 1). Fotografia
de Vítor Oliveira Jorge e levantamento de André T. Santos.

Fig. 2.17. Desenho (realizado por Bárbara Carvalho) e fotografia (de João Muralha Cardos) de um dos grandes
blocos de xisto com covinhas localizados na encosta leste do sitio de Castanheiro do Vento (voltada à Ribeira da
Teja)

O espaço em Castanheiro do Vento é também pontuado por estruturas de contorno


circular, de pequenas dimensões (nunca ultrapassam o metro de diâmetro). São delineadas

55
sobretudo por elementos de granito, essencialmente dormentes, inteiros ou fragmentados,
podendo ainda aparecer algumas esparsas lajes de xisto. Os elementos pétreos encontram-se
dispostos na vertical, fincados. Algumas destas unidades foram intervencionadas, enquanto
que em outras apenas se definiram os limites. A localização varia. Não se encontram
associadas a um outro elemento construído particular. Em 2010 foi realizada a escavação de
uma estrutura localizada no Recinto Central, na zona norte.

Fig. 2.18. Estrutura de moinhos manuais localizada no Recinto Principal. As fotografias representam quatro
fases de escavação.

Esta estrutura encontra-se delimitada por oito elementos de dormentes, inteiros ou


fragmentados com a superfície (outrora) activa voltada para o interior da estrutura que
definem. Encontrava-se colmatada por um conjunto de pequenas lajes de xisto e uma laje de
xisto azul, afeiçoada (fig. 2.17, imagens 1 e 2). Após a remoção destes elementos pétreos
foram detectadas duas concentrações de fragmentos cerâmicos (fig. 2.17, imagem 3). Este
nível é caracterizado por um depósito constituído por um sedimento de cor castanha clara,
pouco compacto. Após a remoção deste depósito foi registado um outro caracterizado por um
sedimento de cor cinzento, pouco compacto, com inclusões de fragmentos cerâmicos de
pequenas dimensões, ossos de animais muito fragmentados e pequenos carvões (fig. 2.17,
imagem 4).

Os fragmentos cerâmicos recolhidos nas duas concentrações detectadas representam


entre metade e 1/3 do vaso. As arestas não se encontram erodidas. Encontram-se em relação
com outros fragmentos cerâmicos. Alguns podem ser do mesmo recipiente mas não colam
entre si (fig. 2.18). Na concentração 1 verificou-se um fragmento cerâmico que está

56
imediatamente por debaixo do grande fragmento (fragmentado). Não é do mesmo recipiente
mas a sua colocação deveria ter sido simultânea. Na concentração 2, um conjunto de
fragmentos cerâmicos de pequenas dimensões dispostos em posição vertical encontram-se
imediatamente ao lado do grande fragmento (fragmentado). Não colam e não são do mesmo
recipiente. A maioria dos materiais nesta estrutura encontra-se fragmentada. Os elementos em
granito e os fragmentos cerâmicos foram dispostos segundo uma sequência de gestos e
movimentos, criando um dentro e um fora, um espaço reservado à colocação e à sua posterior
oclusão.

Fig. 2.19. Representação dos dois conjuntos cerâmicos identificados no interior da estrutura de moinhos manuais
em granito.

A figura seguinte (2.20) posiciona dois fragmentos cerâmicos e sua colagem. O


próximo parágrafo, exactamente acerca destes dois fragmentos, poderia estar ausente neste
texto. No entanto, a sua apresentação pretende equacionar, mais que processos de
fragmentação no sítio, o estudo destes mesmos fragmentos. Falamos de dois fragmentos
cerâmicos recolhidos em duas campanhas distintas em duas áreas apartadas por quase 40
metros. São do mesmo vaso e é possível colá-los. O fragmento de pança, registada em 2006 e
o fragmento de bordo identificado em 2009 foram arquivados no mesmo grupo, reunidos por

57
apresentarem a mesma técnica decorativa: a impressão de cana. Em gabinete, realizámos o
estudo destes fragmentos. Quando efectuámos a colagem não nos apercebemos
imediatamente da distância que separava estes fragmentos. As superfícies estão preservadas
assim como as arestas. Ambos os fragmentos foram recolhidos no interior do Recinto
Principal, junto à face interna do Murete 2 (a noroeste) e junto à face interna do Murete 3 (a
sudeste). Esta relação apenas foi possível estabelecer porque, descontextualizados, estes
fragmentos foram agrupados por outro critério que não a sua associação aos materiais
provenientes do mesmo contexto. Foram reunidos num mesmo lote por apresentarem
características distintas daquelas identificadas na maioria dos fragmentos cerâmicos
decorados em Castanheiro do Vento (maioritariamente através da técnica de impressão
penteada). Se estes dois fragmentos nos permitem pensar acerca do arquivo dos materiais
podem também introduzir uma outra escala de relação neste texto. Relações não imediatas,
não evidentes, não familiares. Relações de contextos ou a-contextuais.

Fig. 2.20. Localização dos fragmentos cerâmicos e sua representação individual e depois de remontados.

Retém-se a imagem de uma trança, uma trança de relações, de múltiplos e inúmeros


eventos, acções, coisas. É neste entrançado que o texto se cria. Num entrançado de situações

58
de escavações, de fotografias, de desenhos, de fragmentos cerâmicos nas mesas do gabinete.
Num entrançado de estruturas e de materiais. Na arquitectura que é este entrançado. Na
miríade de particularidades do que hoje reunimos sob o nome de “Castanheiro do Vento” que
permanecem ainda mas que também foram o que já não são mais. Como diria Ricoeur, “Em
outras palavras, trata-se de cruzar espaço e tempo através do construir e do contar” (Ricoeur,
1998: 44)

Antes de prosseguirmos, reservamos algumas palavras para referir outros textos que
delimitaram as condições que permitiram a emergência deste trabalho. O projecto de
investigação levado a cabo em Castanheiro do Vento plasma-se em diversos artigos e
contributos assinados pela equipa responsável pelas escavações arqueológicas no sítio ou a
título individual. Não é este o lugar nem o tempo para realizar uma discussão da bibliografia
publicada (aliás, João Muralha Cardoso ensaiou já uma discussão sobre os diversos textos
publicados até 2007 na sua dissertação de doutoramento). Retenhamos agora que as análises
descritivas, as discussões interpretativas e o questionamento teórico das linhas basilares da
Arqueologia presentes nos diversos trabalhos sobre Castanheiro do Vento possibilitaram a
criação de uma plataforma sólida para o desenvolvimento deste projecto de investigação. Isto
não quer dizer no entanto que este texto esteja em total concordância com as linhas já escritas
sobre o sítio ou que envolva a total concordância de todos os investigadores que integram o
projecto. No entanto, é inseparável o trabalho em equipa em Castanheiro do Vento (da qual
fazemos parte desde 2003) e o nosso trabalho, entre este e os textos, discussão e orientações
de Vítor Oliveira Jorge. A ténue linha que divide a autoria das reflexões confunde-se em
alguns parágrafos. A tese de doutoramento de João Muralha Cardoso (2007), já referida por
diversas vezes, surge-nos como uma base de trabalho à escala do sítio e da região, o que nos
permite avançar por outros caminhos. É com certeza mais fácil o estabelecimento de pontos
de tensão reflexivos quando outros já foram desenhados e quando a malha interpretativa já
começou a ser tecida. Neste sentido, este trabalho pretende também ser uma obra em aberto,
procura o estabelecimento de conexões de forma a promover a criação de outras mais. Assim,
atentos ao legado, procura-se desenhar outras plataformas de discussão.

A investigação arqueológica em Castanheiro do Vento não se desliga dos trabalhos


efectuados na região, sobretudo os de Susana Oliveira Jorge em Castelo Velho de Freixo de
Numão. Como referimos, o sítio, intervencionado de 1989 a 2003, inspirou a autora a escrever
logo em 1994 um trabalho, inspirador de tantos outros que se lhe seguiram e ainda presente
nas mesas da investigação. Nesse trabalho Susana Oliveira Jorge problematiza a explicação

59
consensual e homogénea de sítios como Castelo Velho enquanto povoados fortificados.
Também o trabalho da investigadora escocesa Lesley McFadyen acerca das histórias da
fragmentação e das histórias da arquitectura no sítio de Castelo Velho foi essencial para o
abrir de outras problemáticas e para uma reflexão acerca das arquitecturas pré-históricas de
forma criativa.

Não podemos também deixar de referir neste espaço o conjunto de teses de mestrado e
doutoramento produzidas no âmbito da investigação em Castelo Velho e Castanheiro do
Vento (Baptista, 2003; Botelho, 1996; Cardoso, 2007; Coixão, 1999; Costa, 2007; Cruz,
1993; Gomes, 2003; Muralha, 1996; Oliveira, 2003; Pereira, L.S. 2000; Pereira, M. 2010;
Vale, 2003; Varela, 2000; Velho, 2009). Gostaríamos de salientar que apesar das diferenças
óbvias entre alguns trabalhos, a análise das materialidades identificadas em ambos os sítios (já
que em todas as dissertações está presente a análise de materiais) permitiram que trabalhos
outros pudessem surgir e colocar essas mesmas materialidades em relação com um inquérito
diferente. Vários quadros, gráficos, mapas de dispersão de materiais, hipóteses de pesquisa
delinearam e rejeitaram linhas interpretativas. Coleccionamos todos estes trabalhos não para
os catalogar e elencar nas nossas prateleiras do conhecimento, mas atentos à sua
especificidade fomo-los agrupando de formas diversas, multiplicando as linhas pelas quais se
podem articular. Alguns destes trabalhos irão ser referidos nas linhas seguintes, outros apenas
podem comparecer neste espaço. Reconhecendo a sua importância, não foram criadas redes
que permitissem a sua chamada aos parágrafos seguintes.

60
3. Metodologia: paradigma e singularidade

Dado que nem no conhecimento nem na reflexão nos

é possível chegar à totalidade, porque àquele falta a

dimensão interior e a esta a exterior, temos

necessariamente de pensar a ciência como arte, se

esperarmos encontrar nela alguma espécie de

totalidade. Essa totalidade não deve ser procurada no

universal, no excessivo; pelo contrário, do mesmo

modo que a arte se manifesta sempre como um todo

em cada obra de arte em particular, assim também a

ciência deveria poder ser demonstrada em cada um

dos objectos de que nos ocupa.

(JOHANN WOLFGANG VON GOETHE, Materialien zur

Geschichte der Farbenlehre [Materiais para a história

da teoria das cores]) 17

(citado em Benjamin, 2004:13)

Giorgio Agamben (2009) considera o estudo do panóptico de Michel Foucault como um


paradigma na medida em quepermite questionar e dar inteligibilidade a um conjunto alargado
de problemáticas interrelacionadas. O estabelecimento de um paradigma não pretende
alcançar generalizações (ou inversamente partir do universal para o particular) mas tão só
questionar singularidades, relacionando particularidades entre si (o particular com o
particular, como enunciou Aristóteles (Ibid:27-28). Neste sentido, o exemplo paradigmático
permite neutralizar um pensamento dicotómico (universal/singular; geral/particular) e investe
na relação entre estes pólos, no processo de tensões entre opostos, que por não apresentarem
limites bem definidos, interconectam-se, criando áreas de indefinição.

Michel Foucault (1997 [1975]) estudou os dispositivos arquitectónicos panópticos (como


prisões e hospitais), o que lhe permitiu questionar um conjunto de outros problemas que se

17
Excerto escolhido por Walter Benjamin para abrir o seu trabalho “Origem do Drama Trágico Alemão”

61
interligam, como: disciplina, vigilância, observação, punição, poder, sujeito. Agamben refere
que o paradigma é mesmo a característica mais marcante do método foucauldiano. Para além
do panóptico, Agamben enuncia também: a confissão, a investigação, a examinação, o
cuidado do eu, como paradimas estudados por Foucault (Agamben, 2009: 17). Poderíamos
também referir o projecto de Walter Benjamin, Passegen-Werk (obra inacabada, da qual
existem apenas fragmentos), como um estudo paradigmático. O autor dispunha-se a analisar
um dispositivo arquitectónico particular: as arcadas parisienses (precursoras das modernas
galerias comerciais) – em decadência já na década de vinte do séc. XX – juntamente com
outros materiais como os manequins, e de figuras como o flanêur. Pretendia problematizar um
conjunto de elementos do mundo burguês ocidental do séc. XIX, procurando na descrição
atenta e detalhada dos objectos do quotidiano inspiração filosófica, tentado estabelecer a
ponte entre a vida de todos os dias e os corredores da academia, o que certamente rompia com
os modelos vigentes da estrutura académica. (Buck-Morss, 1989).

Propomos, seguindo V. O. Jorge (2009b) o estudo da arquitectura como um paradigma


[(tal como definido por Agamben (2002)]. Neste sentido, a arquitectura enquanto paradigma
não pretende estabelecer-se como um universal, não pretende a explicação, mas sim a
compreensão de casos particulares que podem ser interconectados uns com os outros. E estes
“casos” não são troços de muro ou qualquer outra unidade estática. São as práticas e as teias
de actividades que hoje intuímos na nossa relação com as ausências pressentidas ao longo do
diálogo com os materiais e com os outros (em trabalho de campo).

Agamben define o conceito de paradigma em seis pontos que optamos por traduzir 18:

18
At this point, let us try to put in the form of theses some of the features that, according to our analysis, define a
paradigm:

1. A paradigm is a form of knowledge that is neither inductive nor deductive but analogical. It moves from
singularity to singularity.

2. By neutralizing the dichotomy between the general and the particular, it replaces a dichotomous logic
with a bipolar analogical model.

3. The paradigmatic case becomes such by suspending and, at the same time, exposing its belonging to the
group, so that it is never possible to separate its exemplarity from its singularity.

4. The paradigmatic group is never presupposed by the paradigms; rather, it is immanent in them.

5. In the paradigm, there is no origin or arché; every phenomenon is the origin, every image archaic.

6. The historicity of the paradigm lies neither in diachrony nor in synchrony but in a crossing of the two.
(Agamben, 2009:31)

62
1. O paradigma não é uma forma de conhecimento indutivo nem dedutivo mas analógico.
Move-se de singularidade para singularidade.

2. Ao neutralizar a dicotomia entre o geral e o particular, substitui a lógica dicotómica


pelo modelo analógico bipolar.

3. O caso paradigmático revela-se como tal ao suspender e, ao mesmo tempo, ao expor a


sua pertença ao grupo, de forma que nunca é possível separar a sua exemplaridade da
sua singularidade.

4. O grupo paradigmático nunca é pressuposto pelos paradigmas, é-lhe antes imanente.

5. No paradigma não há nenhuma origem ou arché; todo o fenómeno é a origem, toda a


imagem é arcaica

6. A historicidade do paradigma não assenta na diacronia nem na sincronia mas no


cruzamento das duas.

A analogia coloca par a par singularidades determinadas. Traduz-se no estudo da relação


entre duas ou mais relações, por exemplo, entre um bastião – enquanto nódulo de relações – e
outro; entre os bastiões e as estruturas circulares, etc. Não pretende a obtenção de linhas
explicativas gerais para o sítio (nem para a região nem sequer para o IIIº milénio a.C.
peninsular), por indução, partindo do particular para o universal, nem pretende a explicação
das unidades contextuais presentes nos bastiões e estruturas circulares por dedução, partindo
do universal para o particular. Em Arqueologia o método analógico tem sido questionado
geralmente em relação ao “uso” de exemplos etnográficos ou de estudos antropológicos na
construção das narrativas sobre o passado (Thomas 2004: 238-241). Segundo Thomas
(Ibid.:239) os trabalhos realizados na esfera da etnografia devem sobretudo contribuir para
desfamiliarizar os discursos sobre o passado ao trazerem para a discussão formas outras de
estar no mundo com as quais nós (ocidentais nascidos no século XX) não estamos
familiarizados. A crítica fundamental no uso da analogia prende-se com a procura de uma
explicação para as materialidades de comunidades passadas pela comparação destas com
comunidades presentes, como foi elaborado (e é) pelo histórico-culturalismo. Contudo, pelas
razões apontadas por Thomas não podemos, de igual modo, rejeitar liminarmente a analogia
tal como proposto pelos processualistas. No entanto, o método analógico pode ser pensado em
Arqueologia como o que permite a reflexão entre uma singularidade e outra, entre uma

63
particularidade e outra, libertando-se da relação comparativa entre estudos etnológicos e
“realidades” arqueológicas.

Agamben (1993) refere que:

“A singularidade liberta-se assim do falso dilema que obriga o conhecimento a escolher


entre o carácter inefável do indivíduo e a inteligibilidade do universal. Já que o inteligível,
segundo a bela expressão de Gersonide, não é um universal nem um individuo enquanto
incluído numa série, mas a “singularidade enquanto singularidade qualquer”. Nesta, o ser-
qual é tomado independentemente das suas propriedades, que identificam a sua inclusão
em determinado conjunto, em determinada classe (os vermelhos, os franceses, os
muçulmanos) – e considera-se que ele não remete para uma outra classe ou para a simples
ausência genérica de pertença, seja ela qual for, mas para o seu ser-tal, para a própria
pertença. Assim, o ser-tal, que fica constantemente escondido na condição de pertença
(“há um x tal que pertence a y”) e que não é de modo nenhum um predicado real, revela-
se claramente: a singularidade exposta como tal é qual-quer, isto é, amável.” (Agamben,
1993:11-12)

É necessário tratar cada singularidade enquanto tal e por momentos não atender ao grupo
tipo a que pertence. No entanto, não propomos a eliminação da elaboração de tipologias e da
reflexão acerca da construção das mesmas. As tipologias em Arqueologia devem ser
entendidas enquanto poderosas formas de comunicação (de partilha de dados entre
investigadores que familiares com a gramática das imagens apreendem imediatamente a
informação contida em tabelas tipológicas) e como formas de organização da informação
(perante milhares de fragmentos cerâmicos e dada a impossibilidade de estudo (de descrição)
de cada unidade (cada fragmento) e seu contexto (de registo) é inevitável a criação de tipos
que representem o conjunto e tornem a diversidade passível de ser estudada. No entanto, as
tabelas tipológicas não podem ser criadas e manipuladas como testemunhos do que foi
encontrado num sítio e consequentemente como indicadores que permitem a explicação de
comunidades pré-históricas, mas antes como instrumentos de trabalho dirigidos para
objectivos muito específicos. Atipologia anula dois vectores essenciais: o estudo do
fragmento cerâmico enquanto fragmento (e não como mera parte de um todo que é o
recipiente) e o estudo das unidades registadas enquanto singularidades, enquanto exemplos,
enquanto nódulos de tensão que permitem a conexão e a abordagem de outras
particularidades.

64
Cada caso paradigmático revela-se enquanto singularidade que pode ser trabalhada na
sua particularidade mas revela-se também enquanto exemplo do conjunto de particularidades
das quais emerge e com as quais se relaciona. Não um exemplo enquanto tipo que pode ser
encontrado numa tabela tipológica porque o caso paradigmático rompe com a relação do
exemplo/modelo e a amostra. Não se trata do exemplo modelo de um tipo que encerra em si
grande parte das características de todas as unidades a partir das quais é definido o tipo (ainda
que o tipo não seja abstracto, é apresentado enquanto modelo). Gostaríamos de apresentar
aqui o trabalho de Aby Warburg pela mão de Agamben. Este autor salienta uma obra
específica deste historiador de arte, o painel 46 19, chamado de Pathosformel “Nymph”,
exactamente para questionar a relação entre exemplaridade e singularidade de um caso
paradigmático. Trata-se de um painel constituído por 27 imagens relacionadas com o tema da
mulher em movimento. Agamben (2009) pergunta: “What is the relation that holds together
the individual images? In other words, where is the nymph?” (Ibid: 28). Segundo o autor
nenhuma das imagens pode ser identificada como a primeira imagem que sustem e inicia a
sequência de imagens que lhe são adicionadas posteriormente, ou seja, nenhuma das imagens
é a original e nenhuma é apenas cópia ou repetição. Também nenhuma declara o inicio da
construção do painel, nenhuma é posterior. A diacronia e a sincronia das imagens são
indecidíveis. A ninfa é o caso paradigmático das imagens e cada imagem o exemplo da ninfa,
ou seja, a ninfa é o paradigma de cada imagem, e cada imagem é o paradigma da ninfa. No
estudo das estruturas tipo “bastião” o movimento pode ser entendido enquanto o paradigma e
cada bastião um exemplo. No entanto, cada bastião constitui-se também enquanto paradigma,
na sua singularidade, na sua especificidade, chamando cada um a si a sua importância no
estudo dos movimentos que potenciam.

Retomamos aqui o problema da procura das origens, esboçado no ponto anterior, e que
em Arqueologia, ainda que não explicito em muitas narrativas, está implícito nas explicações
que se tecem acerca do passado baseado numa suposta “realidade arqueológica” que é
passível de tradução linear. Ora, como foi dito anteriormente, cada paradigma não é a origem
dos seus exemplos nem é a origem de um fenómeno qualquer, porque todo o fenómeno é a
origem. Por outras palavras, a origem pode ser entendida como um ponto fixo no tempo e
determinado no espaço de onde irradiam as imagens que a partir deste ponto se criam, mas
também como emergência, como quando algo começa a ser. Ora a emergência é fluida, não

19
Aby Warburg colecionou entre 1924 e 1929 (ano da sua morte) um conjunto de imagens (reproduções de
quadros, manuscritos, fotografias…) que distribuiu por 63 painéis, aos quais deu o nome de Mnemosyme.

65
especificada, não determinada, está em acontecimento. Assim todas as imagens no painel de
Aby Warburg são a origem, todas são arcaicas, assim como todas são contemporâneas. Todos
os bastiões são a origem, todos são arcaicos. Tratados enquanto paradigmas a sua diacronia e
sincronia não são enunciadas separadamente (em Castanheiro do Vento quase todas as
estruturas não apresentam relações estratigráficas imediatas, ou seja, não existem
sobreposições ou cortes entre elas). Assim, em Castanheiro do Vento, sincronia e diacronia
cruzam-se no bordado de embasamentos que hoje identificamos e registamos. Este trabalho
não pretende assim problematizar a construção de Castanheiro do Vento enquanto algo
inserido numa barra cronológica. Não se pretende averiguar fases construtivas ou momentos
de ocupação. Ainda que como referimos não existam relações estratigráficas entre os
embasamentos pétreos que nos permitissem avançar com relações de
posterioridade/anterioridade imediatas, o estudo de fases construtivas poderia ser esmiuçado.
Contudo, optamos por nos referir a cada estrutura ou a conceitos chave que nos permitem
operacionalizar um conjunto de ideias como paradigmas. Estes permitem-nos questionar o
sítio sem que se pretenda ao estudar uma estrutura estender o conjunto de observações obtidas
para o conjunto do sítio. Cada estrutura será sempre encarada como uma particularidade,
como um nódulo de tensões que na sua abordagem multiplica as relações possíveis. Através
do método analógico proposto por Agamben (2009) encadeiam-se em relações, colocadas
lado a lado, sem hierarquias de matérias ou estruturas (não existe o mais importante para a
compreensão do sítio) e sem hipótese de generalizar observações.

Segundo Agamben (2002), Foucault libertou a História do contexto metonímico, ou


seja, do enquadramento geográfico e cronológico que era (e é) inerente a qualquer pesquisa
histórica. Assim, o título provável de “A França no século XVIII”, dá lugar à criação
metafórica de “Panóptico”. Agamben sublinha também que “The apparent seriousness of
metonymical contexts, like the chronological and geographical, have no epistemological basis
at all.” (Ibid.). Por exemplo, a organização da pesquisa histórica por séculos apenas entra em
voga após a Revolução Francesa.

Como começamos por referir na abertura deste trabalho, a genealogia de Nietzsche


pela mão de Foucault reclama a demora nas pequenas coisas, nas “meticulosidades e acasos
do começo” (Foucault 2004:19); Agamben propõe o método analógico de casos
paradigmáticos atento ao detalhe, ao que é particular, na medida em que o estudo de
singularidades exige o estudo demorado, tal como a genealogia, “exige a minúcia do saber,
um grande número de materiais acumulados, exige paciência” (Ibid: 15). Mas não se trata da

66
acumulação de dados, da inventariação exaustiva de objectos, de citações, ou de situações.
Não é um trabalho de catálogo, mas sim um pensar com (o) detalhe. É o estudo atento, que
necessariamente requer descrição, para que cada particularidade possa ser enunciada e
partilhada, e que cada particularidade possa entrar em relação com outra. O estudo generalista
que abarca por exemplo os objectos como um todo perde toda a espessura destes. Contudo o
método descritivo não é apenas atento às qualidades físicas de cada coisa, mas antes atento
aos detalhes de relação. Ou seja, em Arqueologia não se trata apenas de descrever um
artefacto arqueológico ou uma estrutura mas também exactamente onde e como o arqueólogo
os identificou e como os registou. É a atenção ao pormenor, não só no trabalho de gabinete,
em relação às peças, fotografias e desenhos, mas também em escavação a demora da atenção
ao detalhe, a identificação e observação atenta das meticulosidades das relações encadeadas.

67
68
II
O passado em imagens:

Os discursos explicativos dos


recintos murados peninsulares do IIIº
milénio a.C.

69
70
© JoanaAlvesFerreira 2009

Sem pressa de chegar aos detalhes de Castanheiro do Vento, é necessário agora demorarmo-nos nos
detalhes do discurso arqueológico vigente. Este explica sítios semelhantes morfologicamente e
genericamente contemporâneos a Castanheiro do Vento como “povoados fortificados”. A demora em
alguns textos e autores justifica-se pela necessidade de questionar as bases em que assenta essa mesma
narrativa. Ficou claro na primeira parte quer o nosso distanciamento em relação a esta(s) escola(s),
quer a nossa integração num outro quadro interpretativo. Mas como questionar o discurso sem apenas
acrescentar mais peças à contra-argumentação? Optamos pela análise de dois detalhes no discurso: as
imagens e os preconceitos de género. Através destes dois detalhes procuraremos tecer um conjunto de
observações que se irão abrir e criar as condições necessárias para a emergência do ponto III deste
trabalho. Procurar-se-á assim questionar uma tradição interpretativa, ou seja, a estrutura do inquérito
normativo. Importa aqui procurar o que nos foi transmitido como “evidente” e começar a introduzir as
problemáticas associadas aos sítios de Castanheiro do Vento e Castelo Velho de Freixo de Numão.

71
72
4. Sobre os Recintos Murados “Calcolíticos”
Peninsulares. Breve incursão

O estudo de recintos delimitados por uma ou várias linhas de murete, tradicionalmente


designados “povoados fortificados”, datados genericamente do III/IIº milénios a.C., está longe
de reunir pontos de vista consensuais no seio da comunidade arqueológica peninsular.
Diversos autores propõem diferentes interpretações ou enfatizam variáveis distintas, assentes
em crenças (consideradas por muitos) discordantes. As narrativas construídas acerca de um
sítio em particular ou tecidas a uma escala mais ampla (seja de âmbito regional ou peninsular)
trazem consigo a forma como cada arqueólogo perspectiva e representa o passado.
Vários pré-historiadores peninsulares acreditam na capacidade da Arqueologia,
enquanto ciência, de reconstruir quadros de vida passada. Entendem a Arquitectura como
cenários onde se deram determinadas actividades impulsionadas por pessoas e vontades,
desenhando o que poderia ter acontecido num determinado momento num determinado
espaço. Esta forma de perspectivar o Passado propõe para cada artefacto uma função (e em
algumas vezes especifica o género de quem desempenharia essa mesma função) e dota os
objectos de significado bem preciso, o que por sua vez concede significado ao contexto onde
foram identificados. Procura assim entender os materiais registados numa determinada
escavação arqueológica em função das técnicas por trás dos mesmos, dos fins e actividades
específicas a que se destinariam, e dos protagonistas que os utilizariam. Recorre, para tal, à
aplicação dos métodos inerentes às questões que a Modernidade (Bauman, 2007) queria (e
quer) ver esclarecidas. Neste sentido, ensaia tentativas de compreensão pela inventariação,
pela aplicação de métodos estatísticos, pela separação de todas as unidades possíveis de serem
criadas pelo investigador e a sua consequente ordenação.
O estudo de fragmentos cerâmicos é bem revelador deste anseio da Modernidade.
Depois de uma primeira organização em contentores adequados – com respectiva localização,
contexto e demais informações – os fragmentos cerâmicos exumados numa escavação são
inventariados e classificados. O caco é inserido numa forma (num vaso), numa função e num
tempo. O caos (centenas ou milhares de fragmentos cerâmicos recolhidos durante uma
escavação arqueológica) transforma-se numa “realidade” ordenada e inteligível ao olhar do
cientista da Modernidade. Posteriormente os fragmentos são novamente integrados nas
estruturas onde foram exumados. No entanto, ao serem cosidos ao seu contexto deixam de ser
questionados enquanto cacos e passam a ser entendidos como vasos (de aprovisionamento,

73
simbólicos, ligados à alimentação diária…). Um caco é traduzido em categorias, depois num
vaso (ou seja, integrado numa tipologia) e posteriormente é traduzido em hábitos alimentares,
técnicas de fabrico, em elementos identitários (especialmente conectado com a decoração do
recipiente), na tentativa de explicar o que realmente se passou no Passado.
No entanto, a perplexidade da Pós-Modernidade (ainda na esteira de Bauman, 2007)
condena-nos a olhar com suspeita as tabelas e tipologias, as histórias e explicações sobre um
passado acontecido e a questionar se será possível continuar a desenhar imagens bem
definidas do Passado, se será plausível construir um texto sobre um sítio arqueológico onde
cada peça tem uma explicação única, cada artefacto indica uma actividade, cada objecto se
liga a estruturas socio-económicas, políticas e religiosas bem definidas na narrativa
arqueológica.
Os recintos delimitados por muretes do III/IIº milénios a.C. na Península Ibérica são
interpretados pela maioria dos autores como povoados fortificados. Como a própria expressão
indica tratar-se-iam de locais habitacionais, protegidos por uma ou várias linhas de muralha.
Esta explicação encontra-se ligada a um conjunto de pontos que caracterizam, definem,
individualizam este determinado momento. O aparecimento dos chamados povoados
fortificados está para diversos autores conectado com o surgimento de conflitos entre
comunidades (sejam entre autóctones ou entre autóctones e “estrangeiros”) despoletado pela
exploração/comercialização do cobre, ou como resultado de inovações tecnológicas que
permitiram a prática de uma agricultura intensiva, e a consequente produção de excedentes
agrícolas que teriam que ser protegidos. Neste caso os povoados fortificados ocupar-se-iam de
defender não só bens e pessoas mas também territórios agrícolas. É sugerido que estes sítios
estariam integrados numa hierarquia de povoamento, correspondendo a “povoados centrais”
de um território. Certas narrativas de matriz marxista defendem que se poderia observar por
esta altura as primeiras apropriações dos meios de produção – designadamente da terra – por
parte de um grupo. As “fortificações” seriam entendidas como uma estratégia de protecção
desse grupo (ou “proto-classe”) frente ao resto da população. É também defendida a formação
de elites que detinham a gestão dos bens de consumo assim como a manutenção dos povoados
ou se responsabilizariam pelas trocas trans-regionais….
Esta abordagem pressupõe que o arqueólogo se encontra apto para reconstruir o
passado através de um conjunto de métodos e técnicas que lhe permitem responder a questões
de forma precisa, dividindo, categorizando, dotando os artefactos de significados unívocos,
considerando-os como matéria inerte e como passivos na construção de sentidos. E acreditam
que existe um conjunto de variáveis que se estendem a todos os sítios designados como

74
povoados fortificados que justificam o seu aparecimento, manutenção e abandono. A sua
construção é indicadora de organizações socio-económicas semelhantes, assim como se
subentende a partilha de um mundo mágico-religioso similar.
As linhas anteriormente escritas têm como base e são ilustradas com as, por vezes
longas, citações que introduziremos em seguida. Começamos com o primeiro “povoado
fortificado” a ser intervencionado em contexto português, de forma sistemática a partir dos
anos 30 do século XX: o sítio de Vila Nova de S. Pedro (Azambuja). Estes trabalhos, levados
a cabo por Afonso do Paço em colaboração muito próxima com Eugénio Jalhay tiveram um
enorme impacto na historiografia da Península Ibérica. Na verdade, os sítios de Vila Nova de
São Pedro (Azambuja, Portugal) e de Los Millares (Almeria, Espanha) estabelecem as bases
para a definição do que ficou conhecido como a “cultura Vilanovense” e a “cultura
Millarense” que definiam os caracteres com que se escrevia a Idade do Cobre Peninsular.
Os trabalhos no sítio arqueológico de Vila Nova de S. Pedro, realizados sobretudo por Afonso
do Paço, visavam a caracterização dos seus habitantes – inquérito de cariz racial, no
seguimento dos trabalhos de Mendes Corrêa (no entanto, Paço refere que “visto não termos
ainda descoberto a necrópole deste castro, nada podemos adiantar com certeza sobre a
constituição antropológica dos seus habitantes” (Paço, 1970 [1939]:267). Segundo o autor, a
vida no “castelo” decorreria em “modestas vivendas” (Paço, 1970 [1942]: 297); os seus
habitantes ocupar-se-iam da prática da agricultura; do trabalho do cobre e do silex;
“sabiam tecer e coser, o que faz supor o uso de vestes de pano” (Ibid: 299); e seriam
“dotados de sentimentos religiosos” (Ibid: 300). (ênfases nossas). Paço refere a existência de
contactos, migrações, ou seja, de “movimentos de populações que, a julgar pelos vestígios
culturais que nos deixaram, pertenceriam ao bloco sahariano-camita” (Ibid:329).
Victor Gonçalves em 1985 e 1986 realiza novas campanhas de escavação no sítio de
Vila Nova de São Pedro. O autor faz uma crítica violenta às escavações e interpretações de
Afonso do Paço 1. No entanto, a explicação que propõe para a definição dos contextos de
emergência e consolidação do “modelo” dos “povoados fortificados” não parece distanciar-se
completamente dos textos sobre Vila Nova de São Pedro escritos nos anos 30 do séc. XX.
Vítor Gonçalves acentua o estado de conflito permanente e valoriza a metalurgia do cobre e a
produção de excedentes agrícolas como peças que desencadearam a instabilidade social:
“As fortificações protegem certamente esta nova riqueza acumulada e cobiçável:
apreciáveis excedentes alimentares, cobre semipreparado ou já sob a forma de artefactos.

1
“Todos sabemos, mesmo passada já a idade das paixões, que Vila Nova de S. Pedro foi pessimamente escavada
e ainda pior (se é possível) interpretada.” (Gonçalves, 2003:306)

75
Protegem não apenas a riqueza acumulada por estas primeiras comunidades agro-
metalurgicas mas, naturalmente e sobretudo, os habitantes.
De quem, é certamente outra questão, mas de quem poderia ser senão daqueles que
estavam à margem deste novo modelo de sociedade, os pastores-agricultores, detentores de
uma economia móvel e de um território sem fronteiras rígidas?
As sucessivas reconstruções das muralhas e torres dos povoados calcolíticos
fortificados mostram bem a dureza destes embates, sendo impossível de atribuir a uma
simples degradação das construções” (Gonçalves, V. 2003: 194) (ênfases nossas)

Em 2005, o Museu do Carmo publica uma revisão do arquivo do sítio de Vila Nova de
S. Pedro. O texto de J. Arnaud (2005: 141-164) integrado nesta publicação, distancia-se das
explicações de carácter bélico na justificação do aparecimento deste tipo de sítios murados e
sublinha o dispositivo arquitectónico como espelho da complexificação económica e social
emergente no III milénio a.C. Neste sentido, as estruturas pétreas são integradas num discurso
de tradição evolucionista, que traça o percurso entre pequenos agrupamentos de unidades
domésticas e complexos urbanísticos com diversas estruturas específicas para um conjunto de
actividades. A especialização dos elementos construídos faz-se acompanhar, segundo esta
narrativa, pela especialização do trabalho, seja por género ou idade e pela emergência de
elites que controlam as dimensões política, social, económica e religiosa das comunidades:
“Conclui-se, assim, que o investimento considerável feito na construção e
reconstrução destas fortificações deveria reflectir não tanto um estado de guerra permanente
entre comunidades vizinhas, mas tão-só a existência de estruturas urbanísticas estáveis, e
de um elevado grau de competitividade entre aquelas, cada uma procurando investir os
excedentes de mão-de-obra na construção de estruturas defensivas que, além do seu efeito
prático, teriam também um efeito de dissuasão, e de afirmação de prestígio político, o que,
em conjunto com a existência de uma rede de troca de objectos de prestígio, só acessíveis às
elites político-militares, é característico de sociedades já com um certo grau de
complexificação económica e social.” (Arnaud, J.M. 2005: 164) (ênfases nossas).
Este parágrafo escrito por Arnaud aproxima-se bastante das narrativas que J. L.
Cardoso elaborou para o sítio de Leceia (Oeiras) e para o III milénio a.C. da Baixa
Estremadura Portuguesa. Cardoso enfatiza também a crescente complexidade social que estes
sítios parecem denunciar, o carácter proto-urbano dos mesmos, a emergência de
desigualdades sociais assentes na divisão do trabalho e no surgimento de elites que investem
na construção e manutenção de sítios imponentes que possam reflectir o seu poder e riqueza:

76
“ …ao longo de cerca de mil anos de ocupação da plataforma de Leceia, se assistiu à
construção de imponente fortificação, sucedendo-se depois, o seu declínio e total abandono.
Tal evolução acompanhou a própria transformação da sociedade calcolítica: a transição de
uma sociedade, de tipo igualitário, para uma sociedade crescentemente complexa, e já
estratificada socialmente, como a da Idade do Bronze, foi corporizada pela sociedade
calcolítica. Os indícios de proto-urbanismo observados em Leceia, a diferenciação intra-
comunitária ali vislumbrada, a franca abertura a contactos económicos, que viabilizaram a
introdução de novas tecnologias, como a do cobre, bem como a adopção de novas práticas
religiosas, de origem mediterrânea, comprovam a existência de uma comunidade
francamente aberta e permeável, quase que “cosmopolita”, a qual já não se coaduna
perfeitamente ao modelo tribal de marcado cunho familiar. Assim sendo, a Baixa
Estremadura, pela sua posição geográfica, e pela aptidão à ocupação sedentária de
numerosa população que então habitava, viabilizada pela fertilidade das suas terras,
propícias ao franco desenvolvimento de uma economia agro-pastoril intensiva, desde o
Neolítico final, como região privilegiada, onde se podem acompanhar as trasnformações
internas de uma sociedade em rápida evolução” (Cardoso, J.L. 2003: 45) (ênfases nossas)
A influência do Mediterrâneo sublinhada por J.L. Cardoso foi e é ponto essencial na
explicação de um outro sítio emblemático na investigação arqueológica Peninsular: Zambujal
(Torres Vedras). H. Schubart (1994) entende o sítio como intimamente conectado com a
exploração e comercialização do cobre e explica as suas características como resultado de
fortes influências do Mediterrâneo oriental:
“…estas semelhanças não provam a hipótese de terem sido navegantes do
Mediterrâneo oriental que construíram estas fortificações, com o fim de as usar como
feitorias, para assim dominarem as áreas adjacentes e controlarem a prospecção,
produção e comércio do cobre, assumindo o poder. Também poderia ter acontecido que
relações comerciais marítimas (directas ou indirectas) fizessem com que uma população
indígena iniciasse a extracção do cobre, acumulando assim uma riqueza, que a levasse a
construir fortificações e a evoluir para novas formas de vida urbana e social. Ambas as
soluções são possíveis, a partir de idênticas fontes tal como a possibilidade de terem existido
outras formas intermediárias, diferentes de lugar para lugar.” (Schubart, H. 1994: 20) (ênfases
nossas)
Apesar da existência de algumas nuances nos parágrafos anteriores, os discursos
explicativos para sítios genericamente datados do III/1ª metade do IIº milénios a.C.,
delimitados por muros de base pétrea interceptados por estruturas subcirculares – designadas

77
de bastiões – parecem assentar nas mesmas linhas interpretativas 2. Existe um conjunto de
imagens mais ou menos consensuais que emergem destes sítios:
- Sítios habitacionais protegidos por um sistema defensivo;
- Estado de guerra (ou conflito) permanente (ou um regime de competitividade e
coerção, pelas elites, onde os dispositivos arquitectónicos funcionariam sobretudo como
elementos dissuasores e de prestígio)
- Consolidação dos efeitos da Revolução dos Produtos Secundários (segundo Sherrat,
1981), o que implica um investimento tecnológico na produção e consequente criação de
excedentes agrícolas.
- Aumento demográfico
- Emergência de elites
- Domínio territorial
- Sociedades hierarquizadas
- Metalurgia do cobre
- Dimensão ritual conectada com objectos específicos
- Influências orientais
A origem dos “povoados fortificados” conecta-se com a origem de:
- Sociedades hierarquizadas
- Desigualdades sociais 3
- Proto-urbanismo
- Controlo territorial
- Guerra (grupo de guerreiros organizados) 4
- Metalurgia
- Pensamento matemático 5

2
Poderíamos somar a estes exemplos interpretativos muitos outros. Veja-se, por exemplo, Helena Moran
Hernandez, que muito recentemente acentuou o papel das elites que emergem na transição do IV para o IIIº
milénios AC no sudoeste peninsular. Desvaloriza o carácter bélico destas sociedades mas sublinha o carácter
repressivo das elites que controlavam indivíduos, territórios e produtos: “As funções desempenhadas pelas elites,
nomeadamente, a gestão do território e dos recursos, o controlo da produção para a rede de trocas e para a
redistribuição intercomunitária, foram exercidas sem recurso à violência, uma vez que as elites surgiam como os
garantes da estabilidade comunitária, como intermediários entre os homens e as divindades, ou garantindo a
continuidade dos cultivos e o sustento das comunidades. O poder exercido com meios de coerção ideológica ou
política, sempre aplicada pelo bem da comunidade, razão pela qual as elites viram o seu poder reforçado e o
aparelho de Estado, na sua forma prístina, consolidado.” (Moran Hernandez, 2008: 140)
3
Chapman (2003) chama a atenção para a ausência de problematização do conceito de “desigualdade” assim
como da noção de “complexidade” usados pela maioria dos autores peninsulares na explicação do surgimento
dos povoados fortificados.
4
Kunst (2000)
5
Esquivel & Navas (2007)

78
O Calcolítico Peninsular define-se em linhas gerais, na bibliografia atenta aos
“povoados fortificados”, pelos pontos elencados anteriormente. Hernando Gonzalo traça a
historiografia do termo Calcolítico, adoptado de forma generalizada apenas em 1959 no I
Symposium de Prehistoria Peninsular (2001: 230). Aponta que a solidificação enquanto
período delimitado se faz pelos textos de processualistas de língua inglesa como A. Gilman,
R. Chapman e C. Mathers (Ibid: 231). Estes autores, atraídos pela Arqueologia do sudeste
peninsular, decidem escrever obras explicativas gerais que influenciaram profundamente os
arqueólogos peninsulares. Assim, “por primera vez se contemplaba el Calcolítico como una
etapa cultural que debía ser explicada como una totalidad coherente y estructurada de rasgos y
donde la relación con el medio en el que se situaba tenía que formar parte de la explicación.”
Os autores de língua inglesa mencionados debruçam-se sobretudo sobre temas conectados
com a complexificação social – emergência de elites, desigualdade social, especialização do
trabalho, criação de redes de prestígio – prosseguindo uma linha funcionalista – caso de R.
Chapman – ou marxista – caso de A. Gilman (Lillios, 1995:16).
Na maioria dos casos, as teorias explicativas para o Calcolítico peninsular assentavam
em “dados” que provinham da escavação dos chamados “povoados fortificados”, sendo estes,
a par da metalurgia do cobre, os elemento característicos do IIIº milénio peninsular 6.
Trabalhos arqueológicos em áreas como a Meseta Norte Espanhola e o Alto Douro Português
assim como intervenções em grandes áreas na planície alentejana portuguesa e Extremadura
espanhola proporcionaram um conjunto de novos dados e suscitaram a problematização de
uma série de outros temas. Já Valera (2008) 7 e Diaz del Rio (2008) 8 assinalaram este facto
num volume da Revista Era dedicada à revisão/problematização dos recintos do IIIº milénio
a.C. Peninsular.

6
Referimos aqui, a título de exemplo, um artigo acerca da investigação arqueológica na Meseta Norte
Espanhola: “Although this area has not traditionally received as much attention as the Iberian Southeast and
Southwest, our research, much of it previously unpublished, reveals the existence of many of the same features
of the “cosmopolitan” Southeast and Southwest, such as large fortified settlements, specialized craft production,
and long distance exchange of goods, such as copper.” (Delibes et all, 1995: 44).
7
“Como não me canso de sublinhar, a arqueologia da Pré-História Recente Peninsular tem vivido numa
verdadeira revolução empírica, nos últimos anos, sendo raras as regiões que não têm surpreendido. Este ritmo
acelerado de descoberta ocorre num contexto curioso, que tem a virtude de o tornar bem mais interessante: o de
uma progressiva maior diversidade teórica nas abordagens à Pré-História Peninsular. As “descobertas empíricas”
são, agora, acompanhadas de “pluralidades interpretativas”, que alimentam debates mais ou menos
apaixonados.” (Valera, 2008:112)
8
“Desde que en 1990 se celebrase en Sevilla la conocida “Reunión de Calcolítico de la Península Ibérica”
(Hurtado [Dir.], 1995) se han multiplicado las noticias de nuevos yacimientos de este periodo distribuidos a lo
largo y ancho de la Península Ibérica. Sin duda la primera y evidente consecuencia de ello ha sido la pérdida de
centralidad de las “culturas” de Los Millares y Vila Nova de San Pedro en las posibles interpretaciones de las
dinámicas políticas, sociales y económicas del III milenio AC.” (Diáz Del Río, 2008: 129)

79
Valera (2006; 2008), no contexto português, assumindo uma nova orientação teórica –
designada Arqueologia Cognitiva – problematiza os recintos (murados e de fossos) através de
uma perspectiva não funcionalista, abordando as categorias espaço e tempo segundo um
prisma distinto das que até aqui temos vindo a apresentar. O autor preocupa-se sobretudo com
o “porquê” destas construções. Segundo Valera, o tempo não teria sido entendido pelas
comunidades pré-históricas como algo abstracto e independente, mas como ritmado pela Lua,
pelo Sol, pelas colheitas, pelas coisas. O espaço é entendido como finito, descontínuo e
heterogéneo, hierarquizado, sendo certos locais tidos como lugares centrais em torno dos
quais se organiza o restante espaço (Valera, 2008: 116). Assim, o autor propõe eixos que
organizariam os sítios, como o definido pelo movimento aparente do sol, que segundo Valera
organizava não só a estruturação de sítios específicos (como o recinto dos Perdigões e Porto
Torrão) mas também a de territórios (como a rede de povoamento de Fornos de Algodres). O
autor defende a estruturação mental do espaço mediante a construção de espaços. Estes não só
representam a cosmologia global mas são a própria cosmologia global (expressa através de
uma cosmologia local):
“A estrutura mental finalista apresenta as características cognitivas que possibilitam o
progressivo controlo simbólico do cosmos através da arquitectura e das homologias que lhe
estão associadas. Percorrer quotidianamente ou num ritual periódico um destes “mapas do
cosmos” é percorrer o próprio cosmos e os seus mundos compartimentados.” (Valera, 2008:
126).
Valera acentua, no entanto, que não pretende uma generalização interpretativa mas
antes fazer emergir outras possibilidades interpretativas. Aliás, no mesmo artigo datado de
2008, salienta que “um dos aspectos mais interessantes, a discutir no futuro, [é] o da inclusão
ou não dos recintos murados numa mesma categoria genérica dos recintos de fossos”. Ainda
que a diversidade presente num e noutro conjunto tenha já sido salientada (para os recintos
murados por S. O. Jorge, 1994; para os recintos de fossos por Valera e Filipe, 2004) a
articulação entre recintos delimitados por estruturas em altura (geralmente de base pétrea) e
recintos delimitados por estruturas escavadas, começou já a ser ensaiada, por exemplo, por
Mataloto, Estela e Alves (2007). Estes autores colocam em relação plantas que revelam uma
grande semelhança formal, quer de recintos murados com bastiões, delimitados por uma ou
várias linhas grosseiramente concêntricas, quer de recintos delimitados por fossos sinuosos
organizados de forma concêntrica, também delimitando um espaço central. Os autores
admitem que os sítios de fossos sinuosos – datados genericamente do IV milénio a.C. –
antecederam os sítios murados. Contudo, apesar de em texto colocarmos lado a lado Valera e

80
os autores dos trabalhos no sítio de São Pedro (Redondo, Alentejo), os últimos, distanciam-se
de Valera e posicionam-se de forma muito próxima do primeiro núcleo de investigadores
abordados que explicam estes sítios como “povoados fortificados”. Nesse sentido, será de
destacar que os autores assumem “uma linha de análise estratégico-militar para estas
realidades estruturais sem, contudo, as despojarmos de um elevado significado simbólico-
identitário, enquanto suporte cenográfico das actividades quotidianas e da imagética de
grupo.” (Mataloto [et al.], 2007:117).
A escavação de novos sítios ou a revisão de intervenções arqueológicas já realizadas
tem vindo a permitir desenhar novos contornos na discussão dos chamados “povoados
fortificados”. Díaz-del-Río (2004) acerca do sítio de Marroquíes Bajos (Jaén, Espanha) e da
rede de povoamento do território em que se insere (estudo realizado em relação estreita com
as datas de 14C) sugere um modelo interpretativo para os povoados calcolíticos peninsulares
baseado na existência de facções, com líderes internos que viabilizariam a concretização de
grandes trabalhos colectivos. Segundo o autor, a organização em facções pode conduzir a
fissuras assim como a fusões de grupos, originando abandonos ou ocupações distintas dos
sítios. Esta linha de investigação concretiza-se num outro artigo (2008) onde Díaz-del-Río
apresenta o sítio arqueológico de Boussargues (Montpellier), o sítio de Los Millares
(Almeria) e o sítio de Castanheiro do Vento (Norte de Portugal, V. N. de Foz Côa). A análise
das plantas destes três sítios arqueológicos conduziu Dáz-del-Río a interpretá-los como
resultado de um planeamento, de um desenho predeterminado, mas conclui que foram
construídos por segmentos, o que espelharia a organização social vigente. Por outras palavras,
as construções foram realizadas por grupos de carácter segmentário, espaçadas no tempo,
onde a mobilização para a realização de um trabalho colectivo ocorreu de forma sequencial 9.
Refere que “Los múltiples segmentos que constituyen las fortificaciones de Los Millares, los
de Boussargues o los del yacimiento portugués de Castanheiro do Vento (Jorge [et al.], 2006)

9
Na análise do sítio de Boussargues, o autor sugere que os bastiões teriam sido construídos numa primeira fase
seguindo-se-lhe a construção dos segmentos de murete que unem estas unidades subcirculares, criando assim um
espaço delimitado por uma linha concêntrica. Para o caso de Boussargues, Díaz-del-Río afirma que “el poblado
es el resultado de la organización de un grupo de carácter segmentario, en el que las partes constituyentes se
vinculan para la creación de un espacio tanto privado como colectivo, y en el que la toma de decisiones se realiza
de una forma cooperativa.” (Díaz-del-Río, 2008:134). Na análise da planta do sítio de Los Millares avança que a
Linha 1 não foi realizada de uma só vez mas é resultado de várias construções, de vários segmentos de muretes.
Afirma que os 11 bastiões registados nesta linha de muralha e os segmentos de muralha que os ligam não foram
desenhados ao mesmo tempo nem funcionaram ao mesmo tempo. Assim refere para o caso de Los Millares que
“cualquiera que fuese la institución social detrás de este trabajo carecía de los medios para reclutar, organizar y
movilizarlo con la finalidad de construir un proyecto monumental unificado. Como resultado, la imagen es la de
una agregación de segmentos de proyectos constructivos que de alguna forma reflejan una idea similar de cómo
debería resultar el producto final” (Ibid: 134?)

81
no son sólo una buena metáfora, sino el mismísimo resultado de la estructura social que las
construyó.” (Díaz-del-Río, 2008:134).
Los Millares (Almeria), cujo estudo se inicia em 1892 pela mão do engenheiro belga
Louis Siret, continua a apaixonar a comunidade científica. Se é certo que a referência à
cultura de Los Millares caiu um desuso, diversos artigos continuam a apresentar o sítio de Los
Millares como exemplo ou como inspiração. Nos dois textos assinados por Díaz-del-Río
(2004, 2008) aos quais acabamos de fazer referência, o sítio de Los Millares é, como
referimos, também trazido à colação. A sua construção, periodização e interpretação são
revistas. Vimos já que o autor defende que o povoado de Los Millares teria sido resultado de
sucessivas construções e não de um único projecto de trabalho. Mas o autor equaciona
também a relação dos treze fortins (localizados em redor do povoado em locais proeminente
na paisagem) com o próprio povoado, sugerindo que por volta de meados do IIIº milénio
ocorreu um processo de desagregação que originou o abandono de grande parte do povoado e
a consequente ocupação dos fortins (Díaz-del-Río, 2004: 95). Esta proposta interpretativa é
contrária à narrativa vigente relativamente ao complexo, a qual assume o povoado e os fortins
como unidades coevas (Molina e Câmara, 2005) 10. Por último referimos um trabalho (Costa
Caramé [et al.], 2010) de revisão do sítio arqueológico de Valencina de la Concepción
(Sevilha, Espanha). Os autores procuram outras conexões para o sítio, comparando-o com
Avebury (Reino Unido). Criticam os modelos estabelecidos que pressupõem sociedades
hierarquizadas, delimitação de áreas funcionais ou de áreas com funções específicas;
acentuam diferenças com outros sítios morfologicamente semelhantes ou considerados como
do mesmo “tipo” como Los Millares; sugerem a inexistência de elites militares e seguem de
perto as novas abordagens de estruturas em negativo propostas pelos investigadores espanhóis
J. Jiménez e M. Romero (2008)
Estas novas abordagens parecem não assentar na necessidade de explicar o sítio ou de
atribuir funções específicas a contextos ou objectos determinados. A recorrência a conflitos
bélicos ou a competitividade é por vezes inexistente. Novas perspectivas acerca da dinâmica

10
A este assunto, voltaremos no ponto seguinte, quando outros estudos sobre Los Millares serão também
analisados. Por agora, citemos apenas mais dois. Esquivel e Navas (2007) procuraram traduzir as estruturas
construídas do povoado de Los Millares em números, com o objectivo de demonstrar o elevado grau de
planeamento e de organização do espaço, chegando mesmo a admitir o surgimento do pensamento matemático
entre as comunidades que o construíram (Esquivel & Navas, 2007). Um outro procurou problematizar o conceito
de família presente nos discursos acerca do passado, partindo da (re)análise das unidades habitacionais do
povoado de Los Millares (Castro-Martínez [et al.], 2010). Os autores desenham uma linha evolutiva entre a
unidade doméstica de morfologia circular – a mais antiga – e a unidade doméstica rectangular – a mais recente.
A esta linha evolutiva corresponderia outra linha: a que vai da família nuclear e monogâmica à alargada e
poligâmica (Ibid: 149).

82
social são introduzidas, por exemplo por Valera e Díaz-del-Río. No entanto, nestes textos
transparece sempre a pergunta: como é que viveram estas comunidades? Os autores
apresentados parecem procurar definir as estruturas sócio-económicas, políticas ou mentais de
organização do espaço. Ou seja, anseiam responder à pergunta: o que é que esteve na base
destas construções ou das suas modificações? As construções pré-históricas são encaradas
como fazendo parte de uma estrutura sequencial cimentada por causas e efeitos.
O ponto de ruptura com o regime interpretativo tradicional e consequente inicio de
uma nova “escola” de investigação pode ser datado de 1994. Neste ano, Susana Oliveira Jorge
publica um estudo em que põe em causa o paradigma do povoado fortificado. Neste trabalho,
que teve como base a comparação entre os 69 sítios peninsulares entendidos como tal, a
autora sublinhou a heterogeneidade do universo em causa e optou pela designação de lugares
monumentalizados. Assinalou que estes sítios devem ser entendidos como elementos de
excepção, como unidades de comunicação privilegiadas, como “marcadores” espaciais e
locais comunitários que em situações excepcionais poderiam albergar pessoas e bens.

O trabalho da autora no sítio de Castelo Velho de Freixo de Numão teve início em


1989. Até 1993, o sítio é interpretado como povoado fortificado. Na altura estava enraizada
na comunidade arqueológica peninsular a ideia de que um sítio rodeado por muros e bastiões,
datado do III milénio AC., seria um povoado fortificado – um núcleo habitacional protegido
por muralhas. Contudo, os resultados das escavações em Castelo Velho não pareciam
enquadrar-se sem discussão neste modelo interpretativo, como era o caso da área a norte – a
de mais fácil acesso e a “menos protegida” por dispositivos defensivos. Além disso a
bibliografia publicada principalmente no mundo anglo-saxónico alertou a autora para uma
série de problemáticas que permaneciam inquestionáveis na Península Ibérica [Jorge, S.O.,
(2005 [2002] a:156)]. Em artigos posteriores a 1994 a autora realça repetidamente a
necessidade de estudar cada sítio na sua unicidade e especificidade como única forma de
“olhar” para estes recintos. Em 1998 publica um texto em que resume o seu “percurso
interpretativo” sobre Castelo Velho de Freixo de Numão e refere que depois do que
apresentou em 1994 “era preciso criar novos “dados” com um novo olhar” (Jorge, S.O., 2005
[1998]: 95). E esta nova posição permitiu-lhe olhar com especial atenção para outras
características de Castelo Velho que o distanciavam cada vez mais de “povoado fortificado”:
a identificação de uma estrutura tipo rampa/talude que veio acentuar o carácter monumental
do sítio, a estrutura com ossos humanos em posição secundária, a estrutura com sementes
carbonizadas articuladas com fragmentos cerâmicos e micro-estruturas em xisto, a deposição

83
de 27 pesos de tear num espaço localizado. Todos estes aspectos vieram sublinhar o carácter
polissémico do sítio. Também passa a olhar para o território, já não enquanto um conjunto de
locais potenciais de exploração (social e económica), mas como uma rede de inter-
visibilidades do e para o sítio. Nesta perspectiva, o Castelo Velho insere-se num território
definido por relações visuais em que é importante o “o que se vê” e o “de onde se vê”.

Paralelamente e em articulação com a investigação levada a cabo em Castelo Velho


iniciam-se em 1998, como já foi referido, as escavações em Castanheiro do Vento, que
inspiram este mesmo trabalho. Diversos trabalhos assinados por Vítor Oliveira Jorge ou pela
equipa responsável dos trabalhos de escavação em Castanheiro do Vento têm reflectido a
precariedade dos argumentos que sustentam o paradigma dos povoados fortificados assim
como têm despertado a atenção para um conjunto de tópicos interligados que podem conduzir
ou promover diferentes caminhos interpretativos. Também J. M. Cardoso (2007) na sua
dissertação de doutoramento – onde desenvolve o “estudo sistemático da região” – designa os
sítios identificados de uma forma que espelha a consolidação de uma outra abordagem em
relação não só a este tipo de sítios mas sobretudo em relação aos sistemas de classificação e
categorização tradicionais em Arqueologia. O autor dedicou-se ao estudo relacional de:
recintos, especificidades geomorfológicas, locais com provável ocupação mais permanente e
locais com provável ocupação menos permanente.

Maria de Jesus Sanches, na mesma linha interpretativa considera o sítio de Crasto de


Palheiros (Murça) como uma “colina monumentalizada/transformada pela acção humana”
(Sanches, 2008: 23) 11. Numa tentativa de sistematização da informação e das reflexões acerca
do sítio, a autora procura a representação gráfica de um conjunto de momentos do sítio ainda
que ressalve por diversas vezes que se tratam de hipóteses interpretativas e que os desenhos
(efectuados por Dulcineia Pinto) não representam a temporalidade do sítio, ou seja, o
entrelaçado de tempos que se pode inferir na estruturas e materiais presentes no sítio. M. J.
Sanches retrata o sítio do Crato de Palheiros no IIIº mílenio a.C. como um dispositivo
monumentalizado por um talude de grandes dimensões associado, em determinado momento,
a duas linhas de muralha. A mais interior destas terá sido intencionalmente destruída e os

11
Numa primeira tentativa de definição do sítio a autora escreve: “Uma primeira análise, ainda que deficiente, da
extensão quantitativa que as actividades conotadas com o foro doméstico parecem ter tido no momento inicial da
ocupação calcolítica, sugere-nos um povoado já provavelmente demarcado por arquitecturas periféricas, mas
paulatinamente engrandecido no decurso da sua utilização. Podemos assumir então tratar-se de um povoado
monumentalizado, independentemente do carácter excepcional que terão assumido certas actividades sociais,
realizadas em determinados períodos ou épocas específicas, e que terão envolvido todo o espaço considerado ou
somente parte dele.” (Sanches, 2000-2001:8). No mesmo artigo a autora utiliza também a expressão “povoado-
monumento” para designar o sítio de Crasto de Palheiros durante a “fase” Calcolítica.

84
taludes pétreos terão ganho expressão ao longo do tempo até ao seu abandono, quando uma
carapaça pétrea parece cobrir grande parte do sítio). A autora nunca perde de vista outros
sítios localizados na “paisagem” do Crasto de Palheiro, sejam as mamoas/dólmenes que
recordam os “antepassados” dos construtores do sítio (na medida em que as técnicas
empregues na construção da couraça pétrea dos monumentos megalíticos não parecem ter
sido esquecidos na construção do talude de Crasto de Palheiros), ou outros sítios
genericamente contemporâneos como o Buraco da Pala (Mirandela) que evidencia outras
formas de construção/organização do espaço assim como denuncia um conjunto de acções
diversas (neste sítio – um abrigo rochoso – verifica-se a presença de grandes quantidades de
sementes carbonizadas).

M.J.Sanches salienta também um conjunto de contextos que podem ser interpretados


enquanto deposições intencionais de materiais em locais específicos. Estas deposições
ocorrem tanto aquando das primeiras construções como em fases posteriores. No entanto,
sublinha a autora que:

“Em sociedades onde por certo não existia a dialogia sagrado/profano, neste local parecem
ter-se desenvolvido actividades e acções colectivas que, na nossa concepção actual,
poderíamos considerar como “rituais” ou político/cerimoniais, sendo que tais actividades
poderiam somente ter lugar em certas épocas do ano, marcando, deste modo o tempo, os
espaços e reavivando, ou alterando, através da acção construtiva comunitária, as tradições
comunitárias.” (Ibid:23.)

As especificidades geomorfológicas do local onde se processaram as diversas


construções são também relevadas no texto sobre Crasto de Palheiro como elementos
fundamentais do destaque que tanto hoje como no passado o sítio exercia sobre quem o
olhasse da “paisagem” em redor. “A colina/escarpa, pejada de afloramentos rochosos em
quartzito e xisto” foi construída ao longo de um grande período temporal, tendo já tido sido
significante para as comunidades anteriores à monumentalização da colina e continua ainda a
ser um ponto referencial para a comunidade local. Além disso a “construção do sítio (...) não
consiste somente na adição de materiais mas antes na congregação de
adição/subtracção/moldagem.” (Ibid: 24-25)

Apesar da relevância dos estudos atrás apenas enunciados, as linhas explicativas


tradicionais dos “povoados fortificados” continuam a marcar a pesquisa levada a cabo para
este tipo de sítios (veja-se a título de exemplo o trabalho recente de A. Sousa (2010) para o

85
Penedo de Lexim). Neste sentido, parece-nos importante demorarmo-nos na interrogação das
“bases fundacionais” da(s) narrativa(s) dos povoados fortificados, numa linha de pesquisa
iniciada por Susana Oliveira Jorge e desenvolvida por Vítor Oliveira Jorge e suas equipas de
investigadores. Não pretendemos contra-argumentar a explicação destes sítios como povoados
fortificados, elencando contextos, materiais, resistência dos materiais, espessura das paredes,
localização geográfica. Iremos, antes, questionar as imagens que são sugeridas pelo discurso
dos povoados fortificados assim como aquelas que sustentam essas narrativas (ponto 6). No
ponto 7 tentaremos equacionar um conjunto de preconceitos que subjazem a estes mesmos
discursos, evidenciando os que se prendem com o género. Por fim tentaremos abrir
novamente o texto (ponto 8) para a introdução da III parte deste trabalho, aquela que mais
concretamente estuda o sítio de Castanheiro do Vento.

Partilhamos o que Vítor Oliveira Jorge escreveu em 2006: “Conventions and dogmas
were finally blocking the progress of interpretation, i.e., the development of science. This one
is more about doubt, than certitude – doubt opens to more acute thinking, certitude closes its
possibility. Nothing in this world is definitively obvious, “nothing is written about” the past in
any kind of “holy book”. “Too coherent” explanations are probably wrong, or useless.”
(Jorge, V.O. [et al.], 2006: 233).

86
5. Imagens do Calcolítico Peninsular:
o caso de “Los Millares”, Leceia e Zambujal 1

“A picture may tell a thousand words, but it will never reproduce a past in
its lived “immediacy”. A picture, like archives, tells a story. It is an
interpretation and will always be selective and incomplete.” (Dooley &
Kavanag 2007:100)

“…the imaging of archaeology can been seen as of much greater interest,


encouraging self-reflexivity in the discipline insofar as the
representation ultimately says more about its own cultural situation than
it does about the subject it purports to depict.” (Moser 2005:6)

Poderíamos abrir este ponto com a pergunta recentemente formulada por McFadyen
(2010): “What is that see we when we see building?” e tentar colocá-la em relação com as
duas citações que inauguram esta reflexão acerca das imagens dos “povoados fortificados”. A
questão de McFadyen pretende expor os preconceitos arquitectónicos subjacentes ao estudo
das arquitecturas pré-históricas. A influência da arquitectura clássica, traduzida nos dez livros
de arquitectura de Vitrúvio (Maciel, 2009), plasma-se nas interpretações dos “edifícios” do
passado. À imagem clássica de arquitectura associa-se a imagem do projecto, da planta e do
alçado desenhados em papel por traços precisos, a imagem de ordem, de proporções
equacionadas e relacionais. O edifício é depois construído em pedra, material nobre e perene.
A construção tem assim a montante uma ideia inicial que é representada em desenho no
projecto que depois é executada obedecendo a um planeamento prévio. Neste sentido, a obra é
reflexo do projecto e o projecto a representação da intenção do arquitecto. Esta sequência
permite inferir acerca da intenção do arquitecto através do edifício. Ora aqui reside um dos
pressupostos da arqueologia tradicional: ler nas arquitecturas pré-históricas intenções
passadas.

As recriações dos edifícios pré-históricos fazem-se acompanhar do registo de funções,


actividades, intenções que estiveram na base da construção do edifício ou que ocorreram no
cenário criado pela construção do edifício. No entanto a relação entre a construção e sua
representação, entre o objecto de estudo e as imagens que se produzem para o apresentar não

1
Uma versão deste texto encontra-se publicada em “Archaeology and the Politics of the Vision in a Post-Modern
Context” (2008) editado por Julian Thomas e Vítor Oliveira Jorge, Cambridge Scholars Publishing, com o título
“Images from the Iberian Copper Age: the case of the so called “fortified settlements.” (p.186-208)

87
é linear. A primeira citação, referente ao pensamento de Derrida, propõe uma reflexão acerca
do carácter da imagem: não traduz um passado mas conta uma história, é interpretação. O
projecto e a obra na dinâmica da arquitectura clássica poderão também ser considerados como
diversos patamares de tradução, de desdobramento de imagens, de desdobramento de
interpretações. As representações dos edifícios passados, entendidas como interpretações,
parecem assim dizer mais de quem as desenha hoje do que acerca de um possível passado, tal
como assinala S. Moser na segunda interpretação que abre este ponto.

Existem múltiplos tipos de imagem em arqueologia, em diferentes contextos e com


diversos objectivos, com diferentes escalas e múltiplas abordagens. Neste sentido, podemos
manusear desenhos de artefactos, tabelas tipológicas, fotografias de campo, fotografias aéreas,
plantas, ilustrações, mapas, etc. Muitos autores denunciaram já o carácter não neutral das
imagens utilizadas em diferentes publicações arqueológicas (Thomas, 1993 e 2004; Shanks,
1997; Jones, 2001; Moser, 2001 e 2005; van Dyke, 2006; Edmonds, 2006, entre outros) e
sugeriram abordagens críticas aquando da leitura/interpretação de representações visuais. A
grande maioria dos arqueólogos utiliza linguagem visual nas suas publicações (apesar de nem
sempre estar consciente do impacto e das mensagens das imagens utilizadas) e o trabalho
conjunto de arqueólogos e “artistas” tem adquirido um papel activo na percepção de espaços e
materiais e na própria problematização da prática arqueológica em diferentes ensaios de
representação visual (Edmonds & Seaborne, 2001; Renfrew, 2003; o projecto “Artists in
Residence” integrado em “Stonehenge Riverside Project” (2003-2008); Cochrane & Russell,
2007). Estes exemplos podem proporcionar outras formas de ver e pensar os materiais e as
relações entre arqueólogos e sítios arqueológicos.

“[R]epresentation in archaeology can be defined as the production of meaning


through a visual language of communicating the past.”(Moser, 2001:266). Contudo, e
atendendo a esta afirmação, duas questões podem ser levantadas: o que é que os arqueólogos
desejam comunicar? Que imagens escolhem para construir uma linguagem visual acerca do
passado? Estas questões têm um grande impacto se essa linguagem visual se relacionar com
publicações de divulgação (a pensar no grande público), e neste caso, os arqueólogos devem
estar atentos à importância das imagens que outras audiências que não a comunidade
arqueológica “escolhem” (do conjunto das divulgadas pelo “discurso arqueológico”)na
construção da ideia de passado, e da sobrevivência destas mesmas representações pictóricas
no imaginário colectivo, muitas vezes mais duradouras que as próprias teorias que as

88
suportavam (Moser, 2005:6). Neste sentido, as imagens são um poderoso meio de
comunicação, enquanto um veículo de acesso ao grande público, mas também um importante
(para alguns indispensável) meio de comunicação entre especialistas (neste caso, através da
ilustração científica). A imagem estandardizada (resultado de convenções e escalas)
possibilita a comparação de diferentes materiais provenientes de diferentes locais e possibilita
a comunicação entre aqueles familiarizados com a gramática dessas imagens (Jones,
2001:337). Contudo, os estudos comparativos de imagens de diferentes contextos
(arqueológicos, teóricos e políticos) podem levar à criação de falsas unidades de estudo.

A imagem pode ser considerada enquanto memória da própria prática arqueológica,


como registo do que o arqueólogo viu, dos traços do passado que foram possíveis identificar.
Contudo, não podem ser considerados como uma prova do que existe ou existiu num
determinado sítio arqueológico, mas como o resultado de uma interpretação, apesar de que
"Só vemos aquilo que estamos preparados para ver e o fragmento de cerâmica só é um
documento se assim o decidirmos" (Sicard, 2006 [1998]: 247).

Podemos também questionar a imagem enquanto experiência por parte do produtor –


em filmes e projectos de hipermédia como os que van Dyke (2006) analisou ou por exemplo,
nos projectos de Watson (2008) – e como experiência por parte da audiência que olha para a
imagem. Como Moser (2001, 280-281) referiu, “… visual images are an extremely powerful
means of explaining the past because they allow us to experience it.”.No regime de visão
moderno e ocidental, as imagens são tidas como a forma mais imediata e autêntica de
experienciar outras sensações, de sentir o mundo de uma forma diferente (ou nova), tendo
especialmente em consideração filmes e reconstruções 3D. Contudo, esta argumentação não
tem em linha de conta a experiência proporcionada pelo texto escrito. Poderá o texto escrito
sobre o passado ser suficientemente expressivo de forma a sobreviver sem imagens?

Como Thomas já referiu (1993), “…the modern West has developed a particular and
distinctive way of looking, (…) art history since the renaissance in the West has been
dominated by an imperative to depict the world as realistically as possible.” e as
representações arqueológicas tentaram desenhar sítios, actividades e indivíduos de forma
objectiva, muitas vezes, sem as questionar enquanto construção. Em determinadas
publicações arqueológicas, como referiremos na continuação do texto, as imagens icónicas
surgem como traduções dos materiais arqueológicos: os artefactos são representados em
classificações e tipologias, ou em práticas, organizações sociais e relações de poder. Neste

89
sentido, todos os aspectos mencionados são passíveis de ser traduzidos por imagens icónicas.
Bal (2002) conectou este conceito de tradução com o de representação enquanto imitação. O
que sustem a possibilidade de representar o passado como realmente aconteceu “is this
obsession with mirroring that underlies the idea of history as reconstruction, just as it
underlies the logocentric conception of translation, and of art. Such an obsession can only
remain locked up either in an illusionary projection or a tautological conflation” (Bal, 2002:
90).

Imagens fixas, passados petrificados

O regime interpretativo dos “povoados fortificados” envolve diferentes imagens


(desenhados durante o trabalho de campo ou para publicação) e envolve não apenas imagens
icónicas mas imagens mentais que o arqueólogo tem a priori (antes do trabalho de campo) ou
que constrói no decorrer da investigação. Durante a escavação arqueológica diversas imagens
são produzidas, como fotografias e desenhos, que procuram o registo o mais fiel possível da
“realidade arqueológica”. Em conjunto com a informação produzida durante o processo de
escavação, o arqueólogo constrói imagens mentais acerca do que poderia ter acontecido num
dado espaço, num determinado tempo (relacionado com as suas concepções prévias sobre o
passado e relacionado com as suas questões). Estas imagens mentais são depois traduzidas em
imagens icónicas (pelo arqueólogo ou por outros técnicos, como designers). Dois grandes
problemas surgem nesta sequência de produção de imagens pictóricas e mentais: o primeiro
consiste na crença que a realidade arqueológica (i.e. o registo arqueológico) pode ser
traduzida em passado arqueológico, e o segundo, consiste em admitir que o passado
arqueológico pode corresponder a um passado real, que pode ser ilustrado por imagens,
entendidas como fotografias do passado. No final, imagens mentais são convertidas em
palavras e imagens “desenhadas” que pretendem apresentar o passado tal como aconteceu.
Nesta linha, gostaríamos de argumentar que os três sítios que irão ser apresentados de seguida
foram ilustrados por imagens icónicas que pretendem trazer para o presente pessoas,
arquitecturas e actividades com 5 mil anos.

90
Los Millares: reconstrução de um sítio através de imagens

Molina & Câmara, 2005

Localizado no sul de Espanha, na Província de Almeria, foi dado a conhecer à


comunidade arqueológica em 1893 por Luís Siret. Os mais recentes projectos de investigação
em Los Millares têm sido desenvolvidos por elementos do Departamento de Pré-história da
Universidade de Granada. Paralelamente o sítio foi alvo de trabalhos de conservação e
restauro e encontra-se neste momento aberto ao grande público (a um centro interpretativo
junto do “povoado” acresce-se um “parque temático” construído na periferia do complexo de
“Los Millares”).
O complexo de Los Millares é formado por um povoado fortificado (com quatro linhas
de muralha, fossos no lado externo destas e uma cidadela na parte mais interna), 13 fortins
avançados que se localizam em redor do povoado e em locais elevados, e uma necrópole com
túmulos colectivos.
Três linhas de muralha do povoado terão sido construídas por volta de 3200/3100 AC.
e a quarta em cerca de 3000 AC. O sítio conheceu depois, segundo os arqueólogos, diferentes
fases de construção. As linhas de muralhas são interrompidas por bastiões e passagens
normalmente monumentais, flanqueadas por bastiões ou de estruturas de tipo barbacã. Os
espaços intramuros são preenchidos com estruturas de carácter doméstico: casas com lareira
interior, providas de lajeados e bancos laterais e onde se identificam áreas de apoio a

91
actividades domésticas ou especializadas, como armazéns ou espaços para animais
domésticos, espaços dedicados à metalurgia do cobre, cisternas, etc. No interior do espaço
definido pela muralha número três foi identificado uma estrutura de planta rectangular com
pátio central, para o qual Molina e Cámara remetem para interpretações de outros
arqueólogos, dizendo que por uns é interpretado como um templo-palácio, para outros como
um armazém (Molina & Cámara, 2005:47).
Segundo Molina e Cámara a população viveria essencialmente intramuros, mostrando
a ocupação do espaço a existência de desigualdades sociais: junto à última linha de muralha, e
portanto no sítio mais afastado do recinto central, viveriam os que trabalhariam os campos. A
elite viveria nos redutos mais internos em casas de maior dimensão. A organização social
reflectir-se-ia assim na organização urbana e, segundo os autores, na própria alimentação
destes diferentes grupos sociais: os que viveriam junto à muralha externa consumiriam os
bovídeos que já não eram rentáveis para a actividade agrícola, enquanto as elites da área mais
central do povoado consumiam essencialmente porcos e borregos (Ibid:88).
Alias, os processos que conduziram à criação de desigualdades dentro e entre
povoados e as suas consequências no sudeste da Península Ibérica são fulcrais para a
explicação de Los Millares. Segundo Molina e Cámara, a partir de 3300 a.C. a população
concentra-se em locais centrais, próximos de zonas com vários recursos naturais que possam
controlar, limitando assim as terras de cultivo, criando processos de acumulação de riqueza
pecuária e concentrando força de trabalho em alguns locais (depois utilizada em colheitas,
obras públicas…). Aparecem também por esta altura povoados agrícolas dependentes e
tributários de povoados centrais, que controlam a circulação de bens de prestígio. Assim
consolida-se a desigualdade social e o acesso restrito às elites de poder e riqueza. (Ibid:102).
A interpretação de Los Millares assenta firmemente no paradigma dos povoados
fortificados e propõe fases cronológicas bem definidas para o sítio, ilustradas por
reconstruções de parcelas das muralhas, e por quatro desenhos referentes às quatro grandes
fases construtivas. Estas ilustrações procuram uma representação “realista” dos dispositivos
arquitectónicos tendo em consideração as cores e texturas dos desenhos apresentados, e têm
geralmente como pano de fundo a paisagem tal como poderia ter sido à 5 mil anos atrás. Los
Millares é também interpretado como um sítio doméstico. Nesta linha, a reconstrução de
algumas cabanas são também apresentadas a par de uma vista geral do sítio com a sua
hipotética distribuição dentro das linhas de muralha. Também é apresentada uma ilustração
onde se observam dois indivíduos do sexo masculino a desempenhar actividades
metalúrgicas.

92
Fig. 5.1. Representação de espaço dedicado à metalurgia do cobre no sítio de Los Millares. Apresentação de
planta e fotografia do espaço identificado durante a escavação (Molina & Cámara, 2005:46).

A interpretação dos fortins e sua reconstituição sugere uma série de outras imagens
sobre as quais é importante lançar um rápido olhar. A função dos fortins seria a de controlar
um território dependente do grande povoado fortificado de Los Millares, servindo como um
dispositivo intimidativo e de vigilância, (a lembrar o olhar panóptico de Foucault). Mas
foquemos a nossa atenção no Fortim 1 (situado a 1 km do povoado e o mais amplamente
escavado e publicado)
Este é caracterizado por duas linhas de muralhas interrompidas por bastiões e dois
fossos externos. Este dispositivo arquitectónico não terá sido construído de uma só vez,
correspondendo o resultado final a uma série de reforços do sistema defensivo. Na segunda
fase de ocupação do fortim as estruturas adquirem um carácter doméstico e perdem a função
defensiva. Retenhamo-nos as informações acerca desta segunda fase: os bastiões passam a ser
utilizados como unidades domésticas. Num deles apenas se identificaram pontas de seta já
finalizadas ou por acabar e restos de talhe resultantes da produção daquele tipo de objecto;
uma área aberta onde se identificaram grandes moinhos; uma área de possível armazenamento
de cereal onde se detectaram grandes vasos fragmentados; e uma grande fossa revestida a
argila que funcionaria como cisterna.
Segundo os autores referidos, o Fortim 1 seria ocupado por adultos varões e alguns
jovens, já que faltam no registo arqueológico os elementos que permitem falar da presença de

93
mulheres, como seriam artefactos ligados à tecelagem 2. E sugerem diversas imagens: este
grupo, constituído por elementos do sexo masculino, dedicar-se-ia a actividades de moagem e
armazenamento de cereais que, segundo Molina e Cámara, ultrapassava em muito as
necessidades deste grupo. Processar-se-iam também no seu interior actividades de
aprendizagem dos mais novos no talhe de pontas de seta. Referem ainda que este fortim
apresenta um carácter simbólico pois apareceram ídolos antropomórficos oculados em osso e
pedra. A palavra ritual surge assim ligado a objectos de excepção e não se consegue entender
que contextos lhe subjazem e em que práticas se enquadrariam. Aliás o conceito de ritual
aparece no complexo de Los Millares ligado exclusivamente ao mundo dos mortos, à
necrópole, ou a objectos de excepção que, identificados no povoado ou nos fortíns, não se
conseguem articular com as funcionalidades atribuídas aos outros espaços: domésticas e/ou
defensivas.
As imagens pictóricas desta publicação acerca do complexo de Los Millares (que
pretendem obviamente chegar a um grande público) assentam sobretudo em representações
muito realistas dos dispositivos arquitectónicos: sublinham a resistência de muralhas e
bastiões para fazer face ao inimigo, destacam a localização privilegiada do povoado e fortins
em pontos de vigilância sobre um território, contêm desenhos de casas e de indivíduos
desempenhando actividades do dia-a-dia.
Los Millares surge assim aos nossos olhos como um sítio limpo de ruídos, com as
arestas do processo interpretativo já limadas, sem tensão, sem pontos de fricção. Os autores
propõem imagens de um passado acontecido, organizado por gavetas, com todos os aspectos
da vida humana devidamente compartimentados, definidos, e que podem ser facilmente
entendidos pelo “grande público” Um Passado desvelado pelo Arqueólogo.
Como foi já referido, as imagens presente em livros de divulgação são poderosos
veículos de comunicação e podem ter um grande impacto nas ideias que o grande público
possa ter acerca do passado (Moser, 2005). Quando é pedido aos arqueólogos para apresentar
uma publicação de divulgação são obrigados a fazer escolhas. O que é que deve ser
apresentado e como? Devem as imagens, articuladas com o texto, promover a discussão
acerca das múltiplas imagens que se podem compor para o passado, ou devem cristalizar, e
neste sentido, explicar um ponto de vista particular? Este processo pode também conduzir os

2
“Es muy posible que los grupos de personas que ocuparon el fortín fuesen segmentos de población – no
necesariamente unidades familiares – procedentes del poblado, integrados fundamentalmente por varones
adultos junto con algunos jóvenes. Este carácter no familiar podría deducirse de la ausencia de actividades
típicamente domésticas ejecutadas por mujeres, según nos consta en los registros antropológicos contrastados,
como serían los trabajos textiles.” (Molina & Cámara, 2005:74)

94
arqueólogos a problematizar a sua própria relação com as imagens e com a sua produção.
Servem estas para provar uma ideia ou dão origem a novas questões? Por exemplo, as
reconstruções 3D são feitas para ilustrar uma interpretação em particular ou apontam para
questões de visibilidade, de percursos possíveis, de experiências de luz e sombra, de
constrangimentos espaciais?
As imagens apresentadas num livro de divulgação científica procuram alcançar um
público que não se encontra familiarizado com o discurso arqueológico e pretendem desta
forma comunicar de uma forma clara o trabalho arqueológico. Estes objectivos estão
presentes na publicação acerca de Los Millares. Neste sentido, os autores apresentaram o sítio
recorrendo a reconstruções de muralhas, bastiões e unidades domésticas. Atendendo à
totalidade das imagens, cerca de 20% referem-se a reconstruções, grande parte articulada com
desenhos de campo. Parece que os autores quiseram de certa forma traduzir o discurso
arqueológico num discurso para não especialistas, traduzindo desenhos de campo em
desenhos de reconstruções. Como já foi referido, os arqueólogos parecem acreditar que é
possível traduzir em imagens os materiais que são registados durante o trabalho de campo,
como cópias do que realmente aconteceu, tentando apresentar um passado familiar,
domesticado onde somos capazes de nos reconhecer.
O que é que o público espera da comunidade arqueológica? Que tipo de discurso
deveria ser usado em livros de divulgação? Devem os arqueólogos dar uma narrativa linear –
paralela a imagens bem definidas e a ícones de uma memoria colectiva – que seja possível
recontar? Ou devem dar a oportunidade ao público de as questionar?

95
Leceia: imagens enquanto validação de uma narrativa

(Cardoso, 1994:48)

O sítio arqueológico de Leceia, conhecido em Portugal desde 1878, foi


sistematicamente estudado pelo arqueólogo João Luís Cardoso desde 1983 a 2002 (foi
intervencionada uma área total de 11000 m2). Localiza-se na Estremadura Portuguesa,
concelho de Oeiras.
Os trabalhos de investigação em Leceia permitiram identificar 3 fases de ocupação
conectadas com 5 fases construtivas. As três linhas de muralhas, e outras estruturas
interpretadas como defensivas, terão sido construídas por volta de 2900/2800 AC. (durante a
segunda fase de ocupação e correspondendo à segunda fase de construção), e segundo
J.L.Cardoso de uma só vez, o que implicava a existência de um plano previamente concebido
que num curto espaço de tempo se concretizou (Cardoso, 1994: 32). A terceira e quarta fase
de construção dizem respeito a reforços e adossamentos às muralhas e por último a quinta
fase construtiva, integrada já na terceira fase de ocupação, relaciona-se com o que se designa
de Calcolítico Pleno e terá ocorrido entre 2600 e 2200 a.C. Relacionar-se-ia essencialmente
com funções de carácter doméstico (Cardoso, 1994).
Leceia caracteriza-se assim pela existência de três linhas de muralhas interrompidas
por bastiões que “protegem” uma série de outras estruturas: casas, lareiras, eiras, lajeados
colectivos (possíveis espaços de reunião), caminhos e zonas de circulação, construídos por
volta do inicio do III milénio a.C. J.L. Cardoso interpreta o sítio como um povoado fortificado
e explica o aparecimento destes sítios de habitat protegidos por um forte dispositivo defensivo
pela designada “Revolução dos Produtos Secundários”. Pressupõe que o aumento da produção

96
agrícola levou à acumulação de excedentes que necessitavam de ser protegidos. Como
consequência e de forma paralela ao acréscimo de excedentes agrícolas, assiste-se também, no
entender do autor, a um acréscimo demográfico, o que originou o surgimento de
diferenciações no seio das comunidades. Ao contrário de Los Millares, a maioria da
população viveria extramuros, ou seja, os que se situavam na base da hierarquia social não
tinham direito a viver permanentemente no interior do recinto (Cardoso, 1994: 34, 97).
A partir de 2600 AC assiste-se a uma mudança funcional no sítio. Perde a sua função
defensiva e ganha um carácter doméstico. Identificaram-se cabanas e estruturas ligadas à vida
do quotidiano. É nesta fase que se encontra documentado o trabalho do cobre, que já não
carece de protecção, pois aparentemente, o estado de guerra quase endémico que levou à
construção do imponente sistema defensivo, já se encontrava resolvido por esta altura.
J.L. Cardoso apresenta assim um faseamento cronológico passível de se ligar a fases
construtivas, bem delimitadas, caracterizadas por construções (técnicas e tipologia de
estruturas), materiais (principalmente conectado com a decoração cerâmica), e funções
diversas atribuídas ao sítio. A proposta interpretativa para Leceia permite acompanhar as
transformações do e no sitio através de uma cronologia linear das diversas construções
identificadas. Assim, ao ler as numerosas publicações acerca do sítio arqueológico de Leceia
as imagens acerca do passado são sempre bem definidas, espacialmente e cronologicamente.
Independentemente das fases identificadas, o sítio reveste-se de duas funções:
doméstica e defensiva. A palavra ritual e/ou simbólico apenas aparece ligada a pequenos
ídolos antropomórficos, objectos de adorno e/ou amuletos, etc. Em nenhum dos casos é
utilizada em ligação com o sítio, seja em termos contextuais, seja ao nível interpretativo. J.L.
Cardoso fala apenas de “altares domésticos” sem que aprofunde esta ideia, que aparece
desconectada de todas as explicações acerca de Leceia. Sabemos que este tipo de artefactos
existem mas não sabemos em que contextos foram exumados nem como se relacionam com
as propostas interpretativas do sítio (Cardoso, 1994: 59). Cardoso refere ainda que peças com
“uma carga simbólica tão marcada” (Ibid:133) se encontram feitas em calcário, ou seja, com
recurso ao substrato geológico da região. Considera este facto um “nonsense” na medida em
que estas peças excepcionais deveriam ser feitas também com recurso a matérias-primas
excepcionais (Ibid: 133).
A interpretação de Leceia como um sítio fortificado é ilustrada pela reconstrução de
muralhas e bastiões assim como por diversas fotografias dessas mesmas estruturas. O carácter
doméstico é representado por fotografias de estruturas interpretadas como casas e por duas
ilustrações que mostram actividades diárias: recolha de cereais e metalurgia. Contudo, estes

97
desenhos, a par com a narrativa acerca das diversas actividades que tiveram lugar em Leceia,
reflectem preconceitos de género (este aspecto irá ser discutido no ponto seguinte): as
mulheres são retratadas a tecer, a fazer potes de barro 3 e a recolher cereais enquanto que os
homens são representados como protagonistas da metalurgia do cobre 4.
J.L. Cardoso reconhece a escassez de utensílios em cobre e sublinha o seu carácter
excepcional no registo arqueológico. Contudo, uma imagem curiosa é desenhada na narrativa
ao interpretar a presença de um anzol em cobre numa lareira como resultado da preparação do
peixe que o engoliu (ao anzol). O anzol teria sido deixado in situ, depois de encontrado “entre
cinzas de uma lareira, onde o peixe que o engoliu foi cozinhado.” (Cardoso, 1994: 61).
As representações visuais utilizadas nas monografias atrás mencionadas privilegiaram
sobretudo fotografias tiradas durante a escavação. Apenas são apresentados alguns desenhos
de estruturas, plantas e secções. Cada unidade arquitectónica é assim apresentada tal como
aparecia ao olhar do escavador. A fotografia enquanto prova daquilo que realmente existe e
existiu na estação arqueológica. Contudo, os artefactos são representados por fotografias
assim como por desenhos. Em algumas publicações, o número de representações pelo
desenho é superior ao número de fotografias das peças. Será possível questionar se o autor
considera os desenhos de campo mais susceptíveis de interpretações erróneas do que as
fotografias de campo? No entanto, será que o autor olha para os desenhos de artefactos como
registos que transcrevem o que o sujeito vê, que pela sua precisão dos traços não são passíveis
de manipulações interpretativas como os desenho de campo, ocupando um território neutro?
Os desenhos de estruturas são sobretudo apresentados através de plantas gerais, algumas
utilizadas para representar diferentes momentos de construção como se tratassem de
instantâneos de tempo.
J.L. Cardoso oferece uma sequência cronológica onde três momentos de ocupação são
intercalados por cinco fases construtivas. De forma a ilustrar esta ideia o autor apresenta uma
planta geral com os diferentes momentos assinalados por cores diferentes (Cardoso, 1989 &
2003). Esta imagem concede uma explicação temporal linear e sequencial, na qual as
diferentes fases podem ser rapidamente apreendidas através de uma abordagem visual.
Contudo, esta imagem fornece também uma interpretação do passado petrificada, e nega a

3
“Se se aceitar a produção cerâmica como uma tarefa específica de cada povoado (Paço, 1957; Coelho &
Cardoso, 1992) e essencialmente feminina, a aludida constância poderá explicar-se por virilocalidade, ou seja, as
mulheres tomariam a morada do marido, assegurando assim a difusão de tais cerâmicas, através de múltiplos
casamentos, no interior da área cultural da Baixa Estremadura.” (Cardoso, 1997:53)
4
A reconstituição da metalurgia do cobre publicada por J.L.Cardoso apenas representa dois elementos do sexo
masculino (Cardoso, 1997:94)

98
possibilidade de uma contínua transformação do sítio durante, pelo menos, 600 anos de
“ocupação”, na medida em que o autor privilegiou a datação cronológica da construção e
abandono do povoado.

O carácter monográfico das publicações analisadas tem objectivos diferentes dos de


Los Millares, por exemplo. J.L. Cardoso pretende fornecer a explicação do sítio de Leceia e
parece que as imagens são utilizadas como ilustrações das interpretações, como documentos
que podem atestar a validade dos argumentos propostos e não como uma forma de comunicar
uma ideia como em Los Millares. Neste sentido, Cardoso privilegiou certas características do
sítio e da escavação, como as construções monumentais (muralhas e bastiões), enquanto que
outras observações foram remetidas para nota de rodapé, ou mesmo votadas à invisibilidade.
Por exemplo, J.L. Cardoso identificou no sítio (no exterior da terceira linha de muralha) uma
estrutura datada da segunda metade do III milénio a.C. de forma subcircular que continha
inúmeros fragmentos cerâmicos, ossos de animais e ossos humanos sem aparente conexão
anatómica. A interpretação desta estrutura é a de lixeira. O estudo desta estrutura permitiu a
Cardoso desenhar duas imagens sobre o passado: seriam comunidades preocupadas com a
salubridade do recinto interno; e deitariam literalmente ao lixo os atacantes de Leceia que
apareceriam junto às suas muralhas 5 (Cardoso, 1994 & 1997). No entanto, o autor por
diversas vezes sugere que o sistema defensivo de sítio de Leceia está em declínio no
Calcolítico Pleno, altura onde se terá sublinhado o carácter doméstico do povoado (por
exemplo em Cardoso, 1997: 101) Esta estrutura é representada apenas por um desenho final e
uma fotografia já que a interpretação deste contexto não justifica a apresentação de múltiplos
registos gráficos. O autor manteve invisível o processo de escavação que poderia permitir
uma outra leitura por outro arqueólogo. Nunca foi questionado se os ossos humanos tinham
sido manipulados como fragmentos de um esqueleto humano a par de fragmentos de ossos
animais e fragmentos cerâmicos, como depósitos intencionais. A narrativa não exigia o apoio
de outras imagens. Na mesma linha, o autor, refere, numa nota de rodapé, que os bastiões da
primeira linha de muralha apresentam entradas voltadas directamente para o espaço
extramuros, o que segundo o autor contraria as nossa ideias actuais de defesa. (Cardoso, 1994:
35-36). Contudo o autor nunca concedeu visibilidade a este aspecto e não o enfatizou através
de recursos visuais. Permaneceu invisível, não porque não existisse ou porque nunca foi visto
5
“…ao longo dos cerca de duzentos anos de funcionamento efectivo da fortificação, terão acontecido diversas
situações de conflito, comprovadas arqueologicamente: em estrutura de acumulação de detritos domésticos, já do
Calcolítico pleno, recolheram-se restos de, pelo menos, três indivíduos, insepultos, adultos e todos do sexo
masculino, o que faz pensar em uma horda atacante dizimada pelos defensores do povoado.” (Cardoso,1994: 90-
91)

99
mas porque não existe nenhuma imagem que o torne visível. Estarão os aspectos que
permanecem invisíveis correlacionados com a dúvida.

Zambujal: desenhos de campo e fotografias

(Sangmeister & Schubart, 1967)

O sítio arqueológico de Zambujal (Torres Vedras) foi identificado por Leonel


Trindade em 1938 (Paço et al, 1964:3), que ali realizou 4 campanhas de escavação. Em 1964
iniciaram-se as escavações dirigidas por Hermanfrid Schubart e Edward Sangmeister numa
parceria entre o Instituto Arqueológico Alemão de Madrid e a Universidade de Freiburg até
1973. Já na década de 90 do século XX, Michael Kunst, do Instituto Arqueológico Alemão de
Madrid, retoma as escavações no sítio. Zambujal caracteriza-se pela existência de três linhas
de muralhas interrompidas por bastiões e entradas, sendo a mais monumental – localizada na
linha de muralha mais interna – de tipo barbacã.
As primeiras interpretações, assinadas por Schubart e Sangmeister (por vezes em co-
autoria com Leonel Trindade), advogam a vinda de colonos do Mediterrâneo Oriental para a
Península Ibérica a fim de procurarem, explorarem e comercializarem o cobre (Sangmeister
[et al.], 1969a; 1969b; 1971; Sangmeister & Schubart, 1970; Schubart, 1971). Estes colonos
teriam construído feitorias principalmente junto à costa para beneficiarem dos contactos por
mar. Implantavam-se em locais elevados como fortes dispositivos militares com o intuito de

100
controlar visualmente uma vasta área e defender um bem precioso: o cobre. Esta explicação
assentava na comparação de plantas com sítios localizados no Próximo Oriente, e na presença
de artefactos de feição orientalizante como por exemplo os objectos em marfim. A construção
destes sítios estaria então ligada à “indústria do cobre”.
Na década de 80 do século XX, Schubart (1994), e Kunst, seu sucessor na
investigação de Zambujal, abraçam um posição neo-difusionista, propondo que o surgimento
de sítios como Zambujal poderia não estar relacionado com a vinda de colonos do
Mediterrâneo Oriental mas que sem dúvida se ligava a uma grande influência do Oriente que
chegaria à Península Ibérica através de contactos vários, principalmente através de trocas
comerciais marítimas que levariam os indígenas a assumir a exploração, transformação e
comercialização do cobre, o que obrigaria estas comunidades a construírem povoados
fortificados a fim não só de controlarem as regiões em que operavam mas também para
defenderem as suas riquezas (designadamente, o cobre).
Ao longo das escavações no sítio de Zambujal ensaiou-se o estabelecimento de fases
construtivas dos dispositivos defensivos ligadas a bem definidas fases de ocupação. Contudo
a complexidade construtiva de Zambujal parecia não permitir tal correlação directa. Aliás, em
1969, Sangmeister, Schubart e Trindade alertam para a importância do estudo dos vários
elementos estruturais em detrimento de se saber a que fases pertencem 6.
É de realçar a descrição detalhada das escavações, das estruturas identificadas, da
relação entre as diversas estruturas e a estratigrafia que Schubart e Sangmeister publicaram
assiduamente em publicações em português, sempre acompanhadas por rigorosos desenhos de
campo, ilustrados com fotografias, o que para a época, entre 1964 e 1973, em Portugal era
raro. Ainda no artigo publicado em 1969 (Sangmeister, E., Schubart, H., Trindade, L., 1969) os
autores referidos sugerem 7 fases construtivas para uma área específica do sítio e apresentam
a sua possível reconstrução, ressalvando, no entanto, que se trata de um trabalho importante
mas hipotético.
Em 1968 tinham já publicado um ensaio sobre os ângulos de tiro das seteiras
identificadas na barbacã da linha de muralha mais interna e a sua relação com as entradas da
segunda linha de muralha. Em 1970 propõe imagens para o percurso dos atacantes que são
6
“Do grande número, quase confuso, de troços de muros existentes, e da diversidade de direcção das suas frentes
– trata-se exclusivamente de revestimentos de muros reconhecíveis – deve concluir-se, em resumo, que o núcleo
foi edificado em diversas e sucessivas fases de construção. Por enquanto, não se pode ter a certeza se um troço
que toca noutro, para seu reforço, ou se encontra em frente dele pertence à mesma fase de construção ou se foi
construído mais tarde. Certamente que será mais moderno, mas não se pode reconhecer imediatamente se são
dias, semanas, anos ou décadas que os separam. Quer dizer, a análise da história da edificação dá-nos uma
cronologia relativa das construções sem que no entanto, saibamos o espaço de tempo existente entre umas e
outras.” (Sangmeister, Schubart & Trindade, 1969:96)

101
definidos como “um agressor forte e numeroso”; conseguem mesmo “visualizar” o momento
em que os atacantes ultrapassavam a primeira linha de muralha, obrigando os defensores de
Zambujal a refugiarem-se por detrás da fortificação interior onde as seteiras presentes na
barbacã permitiriam abater o atacante ao entrar pelas portas da segunda linha de defesa.
Nos dois mais recentes relatórios publicados e assinados por Kunst (2002 & 2007) a
interpretação geral do sítio do Zambujal não é discutida. Apesar do autor apenas se referir ao
sítio como “povoado fortificado”, estão a ser desenvolvidos trabalhos que podem fornecer
novos dados para a reequação da explicação do sítio. Entre estes trabalhos, refiram-se as
escavações nas encostas do morro onde se localiza a estação arqueológica (Kunst, 2002:70).
Resumindo, as interpretações sugeridas pelos arqueólogos que levaram a cabo as
investigações no sítio de Zambujal transmitem-nos imagens de uma Península Ibérica no III
milénio a.C. profundamente sob a influência do Mediterrâneo Oriental (a nível arquitectónico
e mesmo ao nível da organização económica e social), e preocupada com a exploração e
comercialização do cobre. Este aspecto originou um clima de instabilidade permanente, o que
conduziu à fortificação de povoados em locais elevados. Mais uma vez a palavra ritual e/ou
simbólico aparece unicamente ligada a certos artefactos sem que seja efectuada a sua
contextualização no sítio e a sua problematização no entrelaçado das linhas explicativas do
sitio do Zambujal.
Nos diversos relatórios publicados, os autores apresentaram uma descrição detalhada
das estruturas e das suas relações, sempre suportado por detalhados desenhos de campo e
fotografias. Em algumas destas publicações (Sangmeister [et al.], 1971; Kunst, 2002), a
linguagem visual é essencial para a compreensão do texto, aparecendo não apenas como
ilustração mas acima de tudo como o principal elemento que sustenta a complexidade do sítio.
O texto é usado para traduzir em palavras as múltiplas conexões e rearranjos das muralhas,
por exemplo. Os desenhos de campo parecem ser entendidos como dispositivos informativos.

102
Imagens do passado: muralhas e bastiões

“Mas foi inutilmente que parti em viagem para visitar a cidade: obrigada a
permanecer imóvel e igual a si própria para melhor ser recordada, Zora
estagnou, desfez-se e desapareceu.” (Calvino, 2002:20)

As imagens apresentadas nas diversas publicações analisadas permitiram levantar


questões acerca da forma como os autores vêem o passado, já que, nas palavras de Berger
(1972: 10), “[i]mages were first made to conjure up the appearances of something that was
absent. Gradually it became evident that an image could outlast what it represented; it then
showed how something or somebody had once looked – and thus by implication how the
subject had once been seen by other people. Later still the specific vision of image-maker was
also recognized as part of the record. An image became a record of how X had seen Y”.
Neste sentido, as imagens possibilitam o questionamento do regime interpretativo dos
“povoados fortificados” na Península Ibérica. Os três exemplos discutidos atrás apresentam
múltiplas imagens que no final transmitem a ideia de que é possível visualizar o passado. A
abordagem a Los Millares, através de desenhos de reconstrução, tentou recriar os cenários
onde as actividades passadas tiveram lugar e baseia-se na crença de que essas mesmas
actividades podem ser cartografadas pelo arqueólogo como momentos estáticos. Em Leceia,
através das fotografias de escavação, a investigação sugeriu que as imagens criadas durante o
trabalho de campo podem ser vistas como documentos que permitem a validação do discurso
arqueológico. Finalmente os close-up de características específicas e desenhos detalhados na
investigação do Zambujal, têm subjacente a capacidade das imagens como meio de
comunicação mas que sem crítica perpetuam uma explicação em particular.
Sintetizando, as imagens acerca do Passado criadas por estes autores baseiam-se nas
seguintes premissas:
1. Crença na capacidade do arqueólogo de construir imagens fixas acerca do
Passado;
2. As imagens permitem validar diversas dicotomias: homem/mulher;
paz/guerra; doméstico/ritual; dentro/fora; público/privado;
natureza/cultura;
3. As imagens legitimam anacronismos na explicação destes sítios, como por
exemplo a utilização de conceitos como: cidade (Los Millares); sítio
proto-urbano (Leceia); feitoria (Zambujal); cerâmicas industriais (Leceia)

103
4. Os dispositivos arquitectónicos são interpretados enquanto sistemas
defensivos e a sua classificação deriva do vocabulário utilizado na
descrição dos castelos medievais, como Vítor Oliveira Jorge já assinalou
(Jorge, V.O.,2006: 230) ou seguindo uma linha militarista (como Whittle
sublinhou em 1996: 336). No caso de Zambujal os paralelos são
efectuados com as aldeias do Próximo Oriente (paralelismo que Renfrew
põe em causa nos anos 60 (v. g. 1967);
5. O território envolvente é estudado enquanto um espaço fornecedor de
matérias-primas, enquanto uma área necessária à subsistência destas
comunidades (campos agrícolas, áreas de captação de água e de recursos
alimentares), e enquanto áreas de comércio. O estudo do território tem
também implícito a existência de áreas de controlo e áreas controladas e
pode revelar desigualdades sociais. A importância da visão centra-se na
capacidade de controlar, intimidar e dominar áreas de exploração.
6. Destaque privilegiado dado aos artefactos de excepção nas publicações.
Ainda que em minoria no conjunto artefactual, muitas vezes encontram-se
representadas em maior número.
7. Realce do carácter doméstico destes recintos através de fotografias,
desenhos e reconstruções de cabanas, associadas a um conjunto artefactual
que se crê doméstico: vasos cerâmicos, ossos de animais, moinhos
manuais…
8. Valorização das muralhas pela apresentação de plantas gerais do sítio que
apenas mostram as principais unidades arquitectónicas, ou seja: muralhas,
bastiões e torres;

Será possível admitir que a interpretação destes sítios se efectuou porque os


arqueólogos já tinham visto algo semelhante? (segundo Bradley, 1997 & 2003).
Como nos dizem Schubart e Sangmeister “Estes estabelecimentos comerciais eram
protegidos por meio de sólidas fortificações, cujas concepções estruturais (…) somente no
Egipto, Ásia Menor e em Syrios encontram paralelos. As casas de planta circular ou oval dão
a estas feitorias quase que o aspecto das cidades mediterrâneas” (Schubart & Sangmeister,
1970:4)

104
Ou para o caso de Los Millares e Leceia podemos advogar a influência do castelo
medieval na interpretação das principais linhas arquitecturais dos sítios?
Será que na Península Ibérica os sítios rodeados por muralhas e bastiões são
automaticamente interpretados como povoados fortificados?
Tomamos como exemplo o caso do sítio de Castelo Velho de Freixo de Numão e
Castanheiro do Vento para aprofundar esta questão.

Questionando imagens: o caso de Castelo Velho e Castanheiro do


Vento

“Actually, even very accurate and well chose, any recordings are always
“incomplete”, partial, vis-à-vis the total experience that an excavation
is. This is obviously the accepted order and discipline of any science.

And yet…what do we mean by “incomplete” and “total”? What kind of nostalgia


inhabits us that makes us feel the gaps more important than the rest? Or
the remain, the record, more important than the act itself? (Jorge,V.O.
2008: 94)

Como foi já referido, a escavação do sítio arqueológico de Castelo Velho de Freixo de


Numão inicia-se em 1989 e prolonga-se até 2003, sempre coordenada por Susana Oliveira
Jorge. A plataforma superior do sítio encontra-se integralmente escavada. Em 1994 Susana
Oliveira Jorge rompe com as explicações tradicionais e propõe a interpretação do sítio como
um lugar monumentalizado. Esta alteração do regime interpretativo faz-se acompanhar por
uma mudança na representação pictórica de Castelo Velho. A autora passa a privilegiar nas
publicações a fotografia aérea e plantas gerais do sítio para enfatizar a necessidade de olhar o
sítio como um todo. Paralelamente, publica fotografias de estruturas específicas e de alguns
materiais. Pretende olhar Castelo Velho na sua unicidade e especificidade. A autora parece
jogar com estas duas escalas de representação do sítio: ao nível geral, da planta, representada
intensamente por fotografias aéreas e por representações gráficas de diversos momentos
construtivos do sítio e fotografias ou desenhos de detalhe, sobretudo acerca da estrutura com
ossos humanos. Também certas peças são ilustradas com fotografia – como um fragmento
cerâmico campaniforme cordado e uma fita enrolada em ouro, com decoração (Jorge, S.O.,
2005 [2002]:130).
A autora utiliza também diversas fotografias que “mostram” o que se vê do sítio e
como o sítio é visto de diferentes pontos na paisagem. Estas ilustrações acompanham o
destaque dado às relações de intervisibilidades que começam a ser acentuadas na

105
interpretação do sítio, detalhadamente apresentadas num texto publicado em 2002 7. O estudo
das relações do sítio com outros (não necessariamente registados enquanto locais de
ocupação) acompanha a mudança de regime interpretativo protagonizado pela autora. S. O.
Jorge, em 1998 8, afirma que a crítica do paradigma vigente e a equação de outros discursos
interpretativos exigiam “erguer o olhar”. Literalmente a autora começa a olhar (e diríamos nós
a ser olhada, influenciada, pelo que a rodeia) para a paisagem. Destacamos a importância dada
ao monte de São Gabriel que o sítio olha de forma impressiva. As fotografias com a presença
desta elevação são publicadas, sendo de apontar a do fotógrafo Danilo Pavone , que expressa
a imponência e a presença do Monte de São Gabriel para quem se encontra em Castelo Velho
de Freixo de Numão. O sítio é também representado por mapas que mostram as curvas de
nível. Parece que a autora pretendia realçar o facto de Castelo Velho se situar num remate de
esporão e se encontrar entornado sobre a paisagem, mas não com uma perspectiva de 360º,
pois para Norte e Este o sítio encontra-se ladeado por outras elevações.

5.2. Castelo Velho de Freixo de Numão. Fotografia de Danilo Pavone (Jorge, S.O., 2005 [2003])

Como já foi referido, em articulação com o trabalho de investigação desenvolvido em


Castelo Velho, as escavações arqueológicas em Castanheiro do Vento, realizadas desde 1998,
têm privilegiado o estudo da arquitectura do sítio, não entendida como o conjunto de
estruturas edificadas, mas como parte do diálogo contínuo das comunidades com o sítio de
7
Jorge, S.O. 2005 [2002] Castelo Velho de Freixo de Numão: um recinto monumental pré-histórico do Norte de
Portugal. In O Passado é Redondo. Dialogando com os Sentidos dos Primeiros Recintos Monumentais, pp.121-
153.
8
Jorge, S.O. 2005 [1998]. Castelo Velho de Freixo de Numão (Vila Nova de Foz Côa, Portugal): breve
genealogia de uma interpretação. In O Passado é Redondo. Dialogando com os Sentidos dos Primeiros Recintos
Monumentais, pp.90-110.

106
Castanheiro do Vento e com todo o meio. Neste sentido, Castanheiro do Vento nunca foi
entendido como circunscrito ao topo do morro onde se efectuam as escavações mas antes
como um sítio que se espraia por todo o monte – daí a designação de Castanheiro do Vento
como colina monumentalizada. O lugar abre-se a um espaço cada vez maior, resultado da
consciência que o sítio não existe per se mas integrado numa rede de relações com um
território, sem o qual não faz qualquer sentido. Qual a relação desta linha de pesquisa com as
imagens pictóricas produzidas?

É dito também que no sítio concorrem diversos tempos, impossíveis de fixar e


compartimentar em fases de ocupação e de construção. Não sabemos se os três anéis de
Castanheiro foram elaborados num curto espaço de tempo mas, contudo, pensamos que todos
os elementos presentes no sítio (hoje) estão em íntima relação e articulação uns com os
outros.

Fig. 5.3. Colina de Castanheiro do Vento vista de quatro pontos distintos na paisagem.

A própria colina também não surge como uma imagem fixa. Dependendo da nossa
posição no território envolvente, o monte desdobra-se em imagens, aparecendo como uma
fachada imponente ou diluindo-se completamente na paisagem. Claro que a objectiva de uma
máquina fotográfica pode captar diversas imagens que podem ilustrar a ideia que o sítio pode
ser apreendido sob diversas formas. Contudo falta-nos aqui um factor muito importante: a
mobilidade, como J. M. Cardoso (2007) bem sublinhou. É através de um corpo em
movimento que percepcionamos o meio, não conseguindo os olhos fixar-se permanentemente
num ponto como a objectiva de uma máquina fotográfica. E, como salientou Ingold (2005),

107
vemos no tempo (meteorológico), os horizonte de visão não são fixos, o que se vê dos sítios
em dias de boa visibilidade pode ter sido importante, mas também nos parece importante que
hoje o arqueólogo não fixe (apenas) imagens de horizontes de visão.

Nas publicações acerca dos trabalhos arqueológicos em Castanheiro do Vento temos


apresentado sobretudo fotografias tiradas durante o processo de escavação. Tal como todas as
outras imagens que tenho vindo a analisar não são neutras. As fotografias publicadas
pretendem ilustrar o complexo processo de escavação. Contudo caímos também nós sempre
na tentação de apresentar fotografias onde as estruturas apareçam já delineadas, limpas, sem
pessoas, com os saquinhos de material já devidamente identificados e recolhidos.
Apresentamos a nossa construção. E a tensão do processo interpretativo, onde está registado?
E a sujidade, misturada com dúvidas, o ruído, as contradições… [como Shanks (1997: 80)
aliás já problematizou].
O arqueólogo, assim como toda a equipa, está geralmente ausente nas representações
pictóricas dos sítios (nas publicações acerca de Castanheiro do Vento ou em muitas outras).
Para encontrar o arqueólogo na fotografia teríamos que recuar no tempo. Analisemos, por
exemplo, as fotografias de Vila Nova de S. Pedro, publicadas por Afonso do Paço. O
arqueólogo está presente nas fotografias assim como nas narrativas acerca do passado. Nestas
encontramos toda a dinâmica das escavações: conta episódios dos trabalhadores durante as
escavações e fornece o tempo e sequência cronológica dos “achados” 9. Os membros da
equipa são normalmente integrados nas fotografias, ao lado dos “achados”: muros ou outros
materiais.

9
O trabalhador que a desenterrou bateu com a enxada em pleno cabo [de uma faca ou punhal], partindo-o
infelizmente em múltiplos fragmentos” (Paço 1970:263)
“Passados dias depois deste achado, descobria-se novo silo…” (Ibid:279)
“Aos fundos de cabana chamam os nossos trabalhadores “cinzeiros”” (Ibid: 279)

108
5.4. Escavações em Vila Nova de S. Pedro (Paço (1970 [1939])

Este estilo narrativo desaparece em favor de um discurso pautado por normas e


convenções, onde o arqueólogo é remetido à invisibilidade no texto. A sua ausência é criada
num contexto de divisão entre sujeito/objecto, em que o sujeito adquire uma posição de
domínio em relação ao objecto. Estudamos os objectos maioritariamente através de meios
visuais: gráficos, mapas, desenhos, tipologias… como se os objectos fossem contentores de
realidade, de vidas passadas que o arqueólogo pudesse descobrir. Esta interpretação implica
que vejamos o mundo físico como inerte, preenchido por objectos que podem ser isolados e
que podem ser expressos em termos matemáticos. Através da visão procura-se a verdade, a
realidade, a objectividade, e a representação do objecto de estudo faz-se através de imagens
estáticas que perdem o tempo das práticas porque são independentes do movimento.
A apresentação aqui do exemplo dado pelas imagens escolhidas por Afonso do Paço
para ilustrar o sítio de Vila Nova de S. Pedro não pretendem invocar o que se perdeu: a
nostalgia da presença efectiva do arqueólogo no discurso. As fotografias onde Afonso do
Paço está presente denunciam uma vontade de sublinhar a autoridade da descoberta. O
arqueólogo como detentor dos direitos científicos sobre o sítio. A visibilidade do arqueólogo
parece sobretudo estar conectada com relações de poder que se tornam mais explícitas na
ilustração. Os responsáveis pela investigação, escavação, descoberta, são representados lado a
lado com o que se identificou, com o que as escavações revelaram, com o que se descobriu.
Assenta na autoria individual da produção de discursos para o(s) sítio(s).
Retomando a linha de discurso por onde estávamos a orientar este texto, regressemos a
Castanheiro do Vento. A equipa responsável pela investigação no sítio tem também publicado

109
sistematicamente o “croquis” da morfologia geral do sítio escavado. Não pretendemos
enfatizar muros ou bastiões, mas ilustrar ideias bem mais abstractas e por isso cada vez mais
difíceis de ilustrar: pretendemos com o “croquis” salientar a ideia de labirinto, dos múltiplos
percursos que poderiam ser trilhados, das possíveis passagens ao longo dos três muretes até
atingir o recinto central. Contudo, estas imagens não deixam de ser ilustrações de um texto.
Poderíamos dizer que são elemento essencial na discussão do sítio, na criação de discursos
inteligíveis para Castanheiro do Vento. No entanto, necessitam do texto para adquirirem
textura interpretativa.
Em Castanheiro do Vento, imagens outras têm vindo a ser criadas. Denunciando a
consciência da imagem enquanto interpretação, enquanto criação, Mark Anstee 10 (artista
residente em 2009) e Joana Alves Ferreira (arqueóloga) aderiram ao apelo de
construir/desconstruir imagens de Castanheiro do Vento. Apresentamos apenas fragmentos
destas imagens na ausência de texto dos autores. Castanheiro do Vento foi por Anstee
apropriado, o artista “conquistou” o sítio para os arqueólogos, usando uma iconografia própria
e compreensível aos que em Castanheiro do Vento habitam todos os meses de Julho. Alves
Ferreira questionou o “documento instantâneo” que a polaroid é. As diversas partes que
constituem o nosso trabalho vêm precedidas por uma Polaroid de Alves Ferreira. Como muito
recentemente (2011) a autora referiu: “A polaroid, na sua iconicidade, constitui uma resposta
estética para o estudo da experiência subjectiva daquele que vê, da sua memória, ou, da sua
mais que completa ausência”.

Fig. 5.5. Representação de Castanheiro do Vento. Mark Anstee, 2009 (giz de cera sobre cartão)

10
Sobre o artista: http://www.markanstee.com/

110
Fig. 5.6. Performance de Mark Anstee, Castanheiro do Vento, 2009 (fotografia de Joana Alves Ferreira)

Os dois quadros seguintes pretendem sistematizar a informação contida neste ponto.


Elenca os sítios referidos em texto assim como a sua interpretação (condicionada pela “escola
teórica” em que se posicionam) e a relação com as imagens sugeridas ou expressas nas
publicações acerca dos mesmos.

111
Estação Arqueólogo(s) Teoria Arqueológica em Explicação geral Imagens mais fortes O que enfatizam as
Arqueológica responsável (eis) que assentam para o sítio imagens?
arqueológico
Los Millares Fernando Molina Marxismo/Processualismo Povoado fortificado Ilustração / Imagens Carácter defensivo e
de divulgação para o doméstico do sítio
grande público
Leceia João Luís Cardoso Processualismo Povoado fortificado Fotografia Carácter defensivo e
doméstico do sítio
Zambujal Schubart, Histórico-cultural/ Feitoria/Povoado Desenho de campo Carácter defensivo
Sangmeister, neodifusinismo fortificado
Michael Kunst
Castelo Velho Susana Oliveira Pós-processualismo Lugar Fotografia aérea/ A especificidade e
Jorge monumentalizado fotografia de unicidade de cada
estruturas/fotografia sítio arqueológico; o
de materiais carácter
monumental e
polissémico de
Castelo Velho
Castanheiro do Vítor Oliveira Pós-processualismo Colina Fotografia/croquis da A complexidade das
Vento Jorge, João monumentalizada planta geral do sítio relações que se
Muralha, Ana Vale, estabelecem com o
Gonçalo Leite sitio; o carácter
Velho, Bárbara labiríntico e a
Carvalho, Sérgio diversidade de
Gomes, Susana contextos.
Oliveira Jorge
Quadro 1: Relação entre a interpretação fornecida para cada sítio e as imagens que apresentam nas publicações acerca dos sítios.

112
Los Millares; Leceia; Zambujal Castelo Velho e Castanheiro do Vento
Recurso à fotografia enquanto registo neutro do que se vê Entrelaçado de perspectivas ou de Passados
Utilização de ilustrações de carácter realístico Necessidade de criar imagens abstractas
Desenhos ditos científicos Posição critica relativamente às imagens que se produzem,
(que obedecem a uma série de normas e convenções estipuladas) como se produzem e por quem
Recurso a dicotomias Recurso à arte e a outras formas de discurso para representar
Olhar contemplativo (sobretudo em relação à paisagem) os sítios
As imagens criadas centram-se no objecto (arqueológico) Necessidade de inserir pessoas nas representações
Privilegio concedido à grande escala das plantas gerais Centrado nas práticas/ no processo

Quadro 2: Relação entre as interpretações e imagens sugeridas pelo grupo de investigadores que trabalham nos sítios arqueológicos de Los Millares, Leceia e Zambujal e
aquelas apresentadas pelo grupo de investigadores que se debruçam sobre os sítios arqueológicos de Castelo Velho de Freixo de Numão e Castanheiro do Vento.

113
O primeiro quadro diz respeito às diferentes relações que se estabeleceram entre
os sítios arqueológicos e os investigadores, tentando relacionar a explicação geral dada
por cada arqueólogo responsável ao sítio arqueológico e as principais linhas que as
imagens pictóricas presentes nas publicações sublinham. O segundo tenta esquematizar
as diferentes características das imagens presentes nas publicações acerca dos sítios
referidos pelos autores apontados.

A análise das imagens pictóricas apresentadas na publicação de cinco sítios distintos


permitiu-nos colocar em relevo alguns dos problemas que subjazem ao modelo
explicativo dos povoados fortificados e apresentar de que forma se foi construindo um
outro discurso acerca destes sítios, uma outra forma de olhar para o chamado “registo
arqueológico” pela incursão nos sítios de Castelo Velho e Castanheiro do Vento. As
imagens constituem o ponto de partida da nossa análise acerca das narrativas acerca de
sítios integrados pela arqueologia tradicional como povoados fortificados. O segundo
passo pretende agora uma incursão pelos preconceitos de género presentes nessas
mesmas narrativas e a problematização de um conjunto de outros preconceitos
reconhecidos que tecem uma rede familiar para as histórias do passado.

114
6. A tradução de materiais em actividades e
actividades em pessoas. Preconceitos de género e
imagens estereotipadas na explicação dos recintos
murados peninsulares.

Fig. 6.1. Graça Morais, untitle, 1996

“… we must be aware of exactly how present-day values, prejudices, norms,


and politics come to be embedded in our work, and how we, perhaps
unwittingly, participate in the process of imposing present on past” (GERO,
1985: 343).

Neste ponto procuraremos sublinhar um conjunto de preconceitos subjacentes às


narrativas explicativas do “povoados fortificados”. Acentuaremos sobretudo os preconceitos
de género presentes no regime interpretativo tradicional, construído este essencialmente por
imagens androcêntricas, onde “homem” e “mulher” aparecem como categorias bem definidas.
Os elementos masculinos ocuparam geralmente os lugares de destaque e poder na explicação
e definição dos recintos murados; a categoria “mulher” foi atirada para as margens do
discurso, adquirindo por vezes uma posição ambígua. As explicações dos “povoados
fortificados” peninsulares do IIIº milénio a.C. enfatizam as actividades masculinas e colocam-
nas como constitutivas da própria matriz que define o chamado “Calcolítico” peninsular 1.

1
Mais uma vez referimos que esta leitura crítica das explicações dos recintos murados se baseia na
literatura arqueológica acerca dos “povoados fortificados”. Fica por referir trabalhos outros como o de Maria de
Jesus Sanches ou as recentes informações dos trabalhos de arqueologia preventiva, como é o caso do Alqueva.
Os trabalhos escritos acerca de Castelo Velho de Freixo de Numão e Castanheiro do Vento ficam também em

115
Começamos por salientar que a explicação dos povoados fortificados foi (e é)
construída por vozes masculinas, na medida em que a causa e consequência da construção
destes sítios amuralhados no topo de colinas são atribuídas a estados de conflito (mais ou
menos permanente) e a guerra é tradicionalmente desempenhada pelos membros masculinos
de uma comunidade. Esta ligação leva inevitavelmente a um discurso androcêntrico, que num
ciclo vicioso realça o papel defensivo e atacante destes sítios e neste sentido promove um
certo tipo de masculinidade. Ao homem é atribuído as tarefas de carácter activo que se
traduzem nas actividades que caracterizam este período: guerra, metalurgia, a própria
construção dos recintos amuralhados. As mulheres são remetidas ao espaço doméstico
providenciando a preparação de comida e vestuário e assegurando a procriação. Este ponto foi
discutido intensamente por arqueólogo(a)s espanhóis(las) que têm apontado o carácter
essencial e decisivo das “actividades de manutenção” nas comunidades, realçando o papel
activo do espaço doméstico, na medida em que este é considerado como estruturante dos
grupos e assim promotor de mudança (nas diversas esferas: social, económica e política). Esta
linha destaca a importância das mais diversas actividades no feminino em comunidades pré-
históricas (ver por exemplo, Sánchez Romero, 2007b e González Marcén [et al.], 2007). No
entanto, apesar de esta abordagem ter alertado para um conjunto de silêncios e potenciado a
discussão acerca do discurso androcêntrico acerca do passado, baseia-se em definições mais
ou menos consensuais acerca da definição de homem/mulher, problema que desenvolveremos
mais à frente neste capítulo. E amarra com nó mais apertado a ligação da mulher ao espaço
doméstico, ao interior, à penumbra.
O paradigma explicativo dos povoados fortificados reserva o espaço doméstico para as
personagens femininas. São subentendidas na bibliografia como categorias não problemáticas,
como elementos passivos, quase neutros num contexto bélico. Neste cenário, a mulher está
sobretudo conectada com a maternidade e reprodução e nesta linha com a casa e a vida
doméstica. No entanto, apesar da ligação da mulher ao espaço doméstico, a dimensão
religiosa parece estar conectada sobretudo com figuras femininas, relacionadas com o culto da
fertilidade e tradicionalmente apelidadas de “Deusas Mãe”. O corpo feminino alberga o
sagrado e o profano, ambivalente na representação, mas sempre como Mãe, ligada

suspenso neste texto. No entanto, esta abordagem poderia ser pertinente, na medida em que os problemas
relacionados com a projecção de preconceitos e preceitos da contemporaneidade (do mundo ocidental) não são
alheios à narrativa. No entanto, a questão do género nunca é levantada apesar de os autores (Vítor Oliveira Jorge
e Susana Oliveira Jorge) participarem neste debate noutras esferas de discussão (ambos apresentaram uma
comunicação na conferência Theoretical Archaeology Group, Durham, Reino Unido), já em 1993.

116
inevitavelmente à terra, ao ventre, à fertilidade 2. Mas no silêncio de quem espera. A mulher
não é retratada enquanto sujeito activo mas como objecto de representações passivas.
A arqueologia tradicional sempre atribuiu as tarefas essenciais e determinantes de uma
comunidade aos elementos masculinos e as tarefas auxiliares às mulheres (seguindo Díaz-
Andreu, 2005: 25). Como Gero sublinhou “males perform "activities" while females engage
in "tasks," and descriptions of male activities "are more detailed, and are portrayed more
actively and more frequently than female-associated activities. There is asymmetry in the
visibility, energy levels, accomplishments, and contributions of the sexes" (Conkey &
Spector, 1984: 10, citado em Gero, 1985: 344). As origens da divisão do trabalho baseadas
em diferenças de género são normalmente atribuídas ao Neolítico, e normalmente
acompanhadas de outras divisões no grupo, pensadas como “naturais”, como as classificações
etárias definindo adultos, jovens, crianças ou idosos. Assim, duas categorias modernas, sexo e
idade, são manipuladas pela arqueologia tradicional sem uma reflexão aprofundada. As
intervenções feministas redireccionaram a atenção para o silêncio a que foram remetidas as
mulheres no passado (não só relativamente aos papéis que desempenharam mas também
relativamente à sua intervenção na construção de discursos sobre o passado), mas tendem a
esquecer a discussão da aparente estabilidade e universalidade de categorias como “homem” e
“mulher” que são perpetuadas na duas linhas de pesquisa (tradicional e feminista) 3. Pegamos
novamente na obra de Molina&Cámara (2005), um livro de divulgação (que é acompanhado
por um DVD) dirigido ao grande público em que se explica o Fortim 1 de Los Millares como
um povoado fortificado. Como foi já referido, o complexo de Los Millares é constituído por
13 fortins localizados no topo de proeminentes elevações que circundam o povoado e a área
de túmulos colectivos de Los Millares. Mais uma vez referimos as características do Fortim,
construído durante duas fases construtivas. O carácter defensivo caracteriza a primeira fase,
enquanto que na segunda fase a função doméstica das estruturas se evidencia e o fortim perde
as suas características militares. Nesta segunda fase, os bastiões são utilizados como unidades
domésticas e num bastião foram identificadas diversas pontas de seta em diferentes fases de
produção juntamente com resto de talhe. Esta fase é dita pelos autores como protagonizada

2
Veja-se por exemplo esta afirmação “A deusa-mãe oferecia infindável potencial regenerador, conforme revela a
iconografia de anatomia desproporcional, onde preponderam os olhos solares, radiados ou, mais comummente,
rodeados por enormes pinturas ou “tatuagens”, os longos cabelos ziguezagueantes, como as torrentes de água
purificadora, a nudez que deixa observar os seios que alimentava os seus “filhos” e o ventre fértil, onde o sexo
surge, não raro, explicitamente representado, como divindade do amor e da maternidade.” (Gomes, 2005:178)
3
Butler chamou a este processo “the feminist we” que é sempre uma “phantasmatic construction (…) which
denies the internal complexity and indeterminacy of the term [feminist] and constitutes itself only through the
exclusion of some part of the constituency that simultaneously seeks to represent” (Butler, 1990: 194).

117
apenas por jovens adultos e adultos masculinos. Para justificar esta linha interpretativa os
autores denunciam a ausência no registo arqueológico de artefactos conectados
especificamente com actividades femininas, como por exemplo, pesos de tear. Também
consideram que o bastião onde foram identificadas as pontas de seta seria um local de
aprendizagem e iniciação de jovens adultos em actividades especificamente masculinas: a
caça e a guerra.
Preconceitos de género encontram-se também explícitos e por vezes ilustrados na
literatura acerca do sítio arqueológico de Leceia (Oeiras),. Durante a explicação do sítio de
Leceia, Cardoso apresenta imagens – icónicas e desenhadas em texto – de mulheres a tecer, a
fazer recipientes cerâmicos, no cultivo de cereais, e de homens a desempenhar actividades
metalúrgicas (v.g. Cardoso, 1997: 65, 94).

Fig. 6.2. Vida quotidiana extra muros e representação metalúrgica em Leceia. (Cardoso, 1997: 65 e 94).

Estas duas explicações – do Fortim 1 de Los Millares e de Leceia – traduzem os


objectos arqueológicos em actividades bem definidas e atribuem a cada uma destas um
protagonista, masculino ou feminino. Associam a mulher a tarefas passivas que podem e
devem ser desempenhadas no interior da casa ou no espaço exterior imediato. Por oposição, o
homem aparece a exercer actividades activas, perigosas, difíceis e inovadoras. A metalurgia
do cobre é uma das “inovações” que caracteriza o Calcolítico, e é protagonizada pelos
membros masculinos; também o estado de conflito e a produção de utensílios ligados à
guerra, característicos do Calcolitico, e a defesa e construção de muralhas está a cargo de
homens. Neste sentido, poderíamos afirmar que as inovações técnicas altamente valorizadas
pelos arqueólogos na definição do Calcolítico peninsular são protagonizadas pelos elementos
masculinos.

118
Na investigação pré-histórica portuguesa os estudo de género são muito escassos.
Durante a pesquisa que elaboramos apenas encontramos dois textos. O primeiro, escrito por
V. O. Jorge e S. O. Jorge (1996) 4, no qual os autores reflectem acerca da situação política
portuguesa para depois questionarem a invisibilidade da mulher no campo da arqueologia. O
segundo texto é apenas assinado por V. O. Jorge (1997). Neste artigo, o autor discute os
preconceitos de género e as interpretações anacrónicas que subjazem às explicações
tradicionais que relacionam artefactos específicos com os elementos femininos de
comunidades pretéritas. O autor explora alguns exemplos de arte paleolítica a fim de
denunciar a precariedade de certas interpretações que se referem explicitamente a
representações de mulheres e homens nas representações pré-históricas 5 (Jorge,V.O., 1997:
34-41). Apesar de apenas se registarem estes dois textos no contexto da arqueologia pré-
histórica portuguesa que problematizam este tópico, é notável a presença actual de mulheres
arqueólogas em Portugal assim como o seu empenho e ligação a inúmeros projectos de
investigação. Neste sentido, é curioso o silêncio dentro da disciplina acerca dos explícitos
discursos androcêntricos que permeiam a maioria dos textos em português acerca do passado.
Provavelmente este facto deve-se à ortodoxia disciplinar a que as mulheres são constrangidas
e à não existência deste tópico nos curricula de nenhum curso de Arqueologia em Portugal
(até 2010)
Contudo, este silêncio em Portugal encontra o seu reverso em Espanha, onde
numerosos textos se concentram na chamada arqueologia do género. Na literatura pré-
histórica produzida em Espanha é discutido o papel da mulher no processo interpretativo em
arqueologia assim como a agência dos elementos femininos nas sociedades do passado.
Diversos tópicos têm sido abordados e várias linhas de pesquisa adoptadas. Aqui salientamos
alguns autores que nos parecem ter delineado as linhas fundamentais da “arqueologia do
género” em Espanha: Díaz-Andreu (2005) teceu a historiografia do papel da mulher na

4
Este texto resultou de uma comunicação apresentada no TAG de Durham (Reino Unido) em 1993, na sessão
intitulada “Women in European Archaeology”.
5
O autor conclui da seguinte forma: “Basta pois uma visão um pouco mais documentada da arte do Paleolítico
superior para nos afastar de muitos «clichés» que continuam a ser-nos transmitidos pelos livros de divulgação ou
pelos textos preparados para o ensino, quando não estão, mesmo, subjacentes ao discurso de pré-historiadores
menos auto-críticos. Em numerosos aspectos, a arte e a sociedade do Paleolítico superior são-nos muito opacas.
Mas não permitem uma visão tradicional, androcêntrica, organizada em dois pólos, opostos e complementares: a
do homem caçador, artista, sujeito da acção, e a da mulher reprodutora, venerada nessa sua condição
predominantemente passiva, e assim representada na «arte». Esta é um complexo sistema de símbolos que, longe
de «reproduzir» o mundo, ajudou a construi-lo; e nesse mundo as relações entre géneros deveriam ser bem mais
diversificadas do que, à primeira vista, pareceria. Sem dúvida que pôr em causa uma explicação simples, não
significa substitui-la por outra; a evacuação de um sentido fácil, que antes pareceria óbvio, provoca sempre uma
sensação de despaisamento, de ignorância, de insegurança. Mas é sobre elas que se constrói a plataforma para
novos recursos da experiência e do conhecimento.” (Jorge, V.O., 1997:41)

119
arqueologia espanhola e nos estudos de género; Querol (2001) denunciou as narrativas que
“naturalizaram” os preconceitos de género, como bíblicas e evolucionistas; Hernando ensaiou
uma definição de conceitos como sexo e género e das suas relações (Hernando, 2007), assim
como questionou a questão do género em relação com as categorias espaço e tempo e das
possíveis experiências (distintas) que homens e mulheres perfomatizam (Hernando, 2000). A
mesma autora em parceria com Sánchez Romero (2007a) desenvolveu as implicações do
modelo patriarcal do mundo moderno ocidental; esta última autora problematizou também o
papel da mulher na produção de utensilagem lítica (especificamente no sítio arqueológico de
Los Castillejos, Espanha) (Sánchez Romero, 2000); Mónton Subías (2005), relevou a
importância da preparação de alimentos em comunidades pré-históricas; Aranda e
colaboradores (2009) abordaram o estudo da cultura argárica mediante a análise do espaço
doméstico e das actividades de manutenção.
Mas a pergunta permanece: porquê o silêncio acerca da arqueologia do género no
contexto português? Para começar a delinear pontos de resposta é necessário sair do interior
da disciplina e perguntar pela tradição (ou ausência desta) dos estudos de género em Portugal.

Arqueologia, Feminismo, e Estudos de Género em Portugal

Durante os anos 90 do século XX, sobretudo nos Estados Unidos da América e no


Reino Unido, a arqueologia do género foi (e tem sido) discutida por um número elevado de
arqueólogos; várias reuniões científicas foram realizadas, seguindo-se diferentes linhas de
pesquisa e onde se tem discutido a construção social do género, o género como performance,
como agência, como economia política ou ainda como estratégia sócio-biológica (a partir de
Conkey & Gero, 1997). Contudo, como Conkey e Gero assinalaram, esta discussão denunciou
a escassez de problematização teórica acerca do género em Arqueologia, na medida em que a
disciplina integrava sobretudo reflexões desenvolvidas em outros campos do conhecimento.
Apesar desta crítica, a discussão promovida pela chamada “arqueologia do género” permitiu a
reflexão acerca de diferentes aspectos da prática arqueológica, não apenas denunciando os
discursos androcêntricos que falam do passado mas também questionando o “status quo” da
disciplina, abrindo o campo disciplinar a vozes alternativas que desafiavam as políticas do
conhecimento (Conkey & Gero, 1997).
Sem querer confundir estudos de género e movimentos feministas, pensamos que a
ausência da arqueologia de género pode estar ligada à ausência de uma tradição crítica acerca

120
dos movimentos feministas tal como esta se desenvolveu em países anglo-saxónicos. De
acordo com Amâncio (1998), o movimento feminista em Portugal ganhou contornos mais
definidos durante os anos 80 do século XX, momento em que as vozes críticas a este
movimento (que relembravam os valores conservadores de família e relações sexuais) se
desenvolviam na Europa e entravam também em Portugal, sobretudo através dos meios de
comunicação social (Amâncio, 1998: 80). Este encontro dos dois movimentos no país, sem
que o primeiro tivesse tempo para se desenvolver, parece ter gerado na comunidade
portuguesa uma certa confusão entre “feminista” e “feminino”, o que criou alguma relutância
em “ser-se feminista” (na medida em que podia significar uma ausência de feminilidade). Esta
relutância, baseada na confusão, na falta de clareza e na ausência de discussão destes tópicos,
bloqueou a reflexão sobre as questões de género em Portugal, dificultou a crítica aos
discursos dominantes e a construção de discursos alternativos dentro da academia portuguesa
(Ibid: 81). Os debates acerca do feminismo ou dos movimentos contrários (backlash)
encontravam-se desprovidos de uma tradição de discussão, investigação ou activismo. A
alienação da sociedade portuguesa em relação aos movimentos feministas poderá explicar-se
pelos quarenta anos de ditadura que impôs por um lado um modelo de mulher passiva ligada à
família e por outro concentrou a luta (de mulheres e homens) pela liberdade, contra o regime
(Amâncio, 2003: 691), não abrindo espaço e esgotando as forças para o empenho noutras
lutas, como o seriam as “causas” feministas. A liberdade de todos sobrepunha-se à liberdade
das mulheres. No entanto, após a revolução de 1974, os espaços de discussão ficaram quase
exclusivamente conectadas com partidos políticos ou com organizações governamentais, o
que “torna muito ténue a fronteira entre o poder político estabelecido e a sociedade civil”
misturando-se as agendas políticas com as agendas de cada instituição comprometida por
exemplo com a luta pela igualdade entre géneros” (Amâncio, 1998: 79). Apenas nos anos 90
do século XX a reflexão sobre a construção de género chegou às universidades portuguesas e
começa a ser publicada alguma literatura acerca dos movimentos feministas em Portugal (ou
acerca da sua ausência). Amâncio salienta também que a falta de reflexão acerca do género
em Portugal poderá estar conectada com a curta existência das ciências sociais em Portugal,
interessadas sobretudo em discutir temas relacionados com desigualdades sociais (Amâncio,
1998: 81). Uma rápida pesquisa mostra todavia que na primeira década do século XXI este
cenário na investigação portuguesa está em mudança. Diversas teses de mestrado e
doutoramento foram ou estão a ser escritas acerca dos estudos de género, contrastando no
entanto com o persistente silêncio em Arqueologia.

121
S. Gomes (2008) relacionou recentemente o papel das mulheres arqueólogas durante a
ditadura salazarista com a ideologia women-at-home proposta por Gero (1985). O autor
assininala que “a link can be made between this ideology [woman-at-home] and Estado
Novo’s moral. . . . [T]his moral was based on a paternalistic model in which man was taken as
the head of the family and women as someone there to help the male with his decisions. These
women participated in the diggings, they were authors of the first detailed studies on Roman
artifacts in Portugal; they were authored archaeologists but they did not direct any excavation.
In fact, only during the 1980’s did Portugal start to have women systematically directing
excavations.” (Gomes, S., 2008). Como o autor refere, as arqueólogas em Portugal
personificavam a imagem ideal de mulher mesmo se ideologicamente lutassem contra o
regime ditatorial. Como já referimos, mesmo depois do fim da ditadura, a ausência de
discussão acerca de preconceitos de género continuou. Provavelmente, este facto poderá ficar
a dever-se à ideologia ocidental que “expect[s] to find the female archaeologist secluded in
the base-camp laboratory or museum, sorting and preparing archaeological materials, private,
protected, passively receptive, ordering and systematizing, but without recognized
contribution to the productive process. The woman-at-home archaeologist must fulfill her
stereotypical feminine role by specializing in the analysis of archaeological materials,
typologizing, seriating, studying wear or paste or iconographic motifs. She will have to do the
archaeological housework.”(Gero, 1985: 344, itálico nosso).
Tendo em consideração que a discussão acerca dos estudos de género em Portugal e
Espanha obedeceu a diferentes agendas e ritmos, a bibliografia arqueológica peninsular
continua a apresentar diversos exemplos que perpetuam um conjunto de preconceitos de
género, baseados num discurso dicotómico que discrimina, classifica e descreve homens e
mulheres pela atribuição a cada “categoria” de tarefas e funções específicas, numa
incompreensível falta de debate e reflexão. No inquérito tradicional da ciência moderna, a
arqueologia baseia-se em métodos classificatórios. Por exemplo, um fragmento cerâmico era
inserido numa tipologia de cerâmica, cada tipo associado a uma função, a uma actividade, que
por sua vez era atribuída a um protagonista: uma mulher, um homem, ou por exemplo, uma
criança. Este regime classificatório preocupado em ordenar o mundo, ordena os seres-
humanos, classifica-os e atribui-lhes categorias identitárias fixas (seguindo Foucault, [1976]
1994). Se é verdade que os discursos androcêntricos relegaram a mulher à invisibilidade ou a
conectaram com actividades passivas, também silenciou outras masculinidades ao pretender
falar com a voz de um tipo masculino particular (construído pelo mundo moderno ocidental),
pressupondo uma masculinidade hegemónica (seguindo Almeida, 2003: 12). As

122
características masculinas nunca são discutidas. Um homem é definido apenas como homem,
uma mulher é uma mulher por comparação com o homem 6.

O passado familiar e categorias universais

A narrativa construída acerca dos “povoados fortificados” parece assentar num conjunto
de preconceitos projectados num passado que se crê congelado em um número limitado de
imagens nítidas que definem longas diacronias. Partilha uma linha de análise evolucionista, e,
poderíamos dizer num tom jocoso, é escrita por homens brancos, burgueses e heterossexuais
(seguindo a crítica que Almeida (2003) tece para as narrativas evolucionistas em
Antropologia). As narrativas evolucionistas (apesar de impossíveis de agrupar num mesmo
tipo) procuram sobretudo o estudo da origem: a origem do casamento, da divisão sexual do
trabalho e do patriarcado e admitem a família burguesa como o modelo social: constituída por
casais monogâmicos, heterossexuais, com filhos legítimos, vivendo em conjunto numa
unidade doméstica (a cada família uma casa). Esta abordagem pressupõe a divisão entre o
natural e o social, associando sempre o sexo ao reino do natural, definindo-o enquanto
particularidade biológica do corpo que define a condição de ser-se mulher ou homem. Neste
sentido a definição de características femininas e masculinas é apenas discutido como
pretencentes à descrição de corpos. A biologia e a medicina são as disciplinas encarregues do
progresso de conhecimento científico nesta área e as responsáveis pela detecção de qualquer
anomalia que deveria e teria de ser corrigida (segundo Foucault, 1994 [1976]).
Nesta linha poderíamos dizer que as narrativas androcêntricas também albergam um
conjunto de outras categorias e definições sublinhadas pela burguesia europeia do século
XIX, como família, casa, casamento, casal e a classificação dos indivíduos em crianças,
jovens, jovens adultos, adultos e idosos. Estas classificações sustêm e são sustentadas por uma
forma de pensamento dicotómico, dividindo: activo/passivo; músculos/nervos;
acção/experiência; masculino/feminino; público/privado, doméstico; sujeito/objecto; ver/ser
visto; razão/paixão, desejo (Jordanova, 1989: 59). Tendo em consideração estas observações,
podemos perguntar: o que é que define uma unidade doméstica e uma família em pré-história?
(esta pergunta será desenvolvida na segunda parte deste trabalho no ponto 9.2). Poderemos

6
Como Simone de Beauvoir escreveu: “A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao homem e não este
em relação a ela; a fêmea é o não essencial perante o essencial. O homem é o ser, o Absoluto; ela é o Outro.”
(Beauvoir, 2008 [1949]:13)

123
continuar a falar de crianças na pré-história quando este conceito apenas surge na ideologia
burguesa ocidental durante o século XIX? A discussão em torno da projecção de estereótipos
contemporâneos não pode apenas concentrar-se em questões relacionadas com o género mas
deverá encarar outros preconceitos que estruturam as narrativas acerca do passado. A História
da Sexualidade de Foucault (1994 [1976]) é um bom exemplo da forma como as nossas
suposições são construídas sob um certo regime disciplinar. A discussão do género em pré-
história necessita de olhar para o conjunto de conceitos ao qual aquele está ligado. Os estudos
em Antropologia podem promover o questionamento de vários cenários que contrastam com a
rigidez e escassez de panos de fundo em Arqueologia. Contudo, também não poderemos cair
no erro de os projectar na pré-história, mas sim encará-los como pontos de reflexão.
As explicações para o caso especifico dos “povoados fortificados” parecem denunciar
uma necessidade de apresentar um passado que nos é familiar, atribuindo-lhe pessoas, funções
e histórias semelhantes às nossas, procurando unidades domésticas e famílias tais como hoje
as entendemos, sem atender à multiplicidade de vivências que os sítios escavados parecem
denunciar. As imagens desenhadas para representar o passado produzem, à primeira vista,
uma sensação de verosimilhança, baseada numa forma de realismo que, segundo a definição
de Jordanova (1989), é resultado de “an impulse towards forms of representation which insist
that the viewer be convinced that they have a referent beyond themselves, in a supposedly
objective world, and that closely resemble that referent” (Jordanova, 1989: 47). Esta ideia, de
que o passado pode ser lido e representado por imagens reais, implica, e cito mais uma vez
Jornadova, “a progressive move towards accuracy, which takes as a paradigm the supposedly
unmediated eye of the camera. This is built on the assumption that the camera, like the eye,
sees what is really there and that the goal of representation is the recreation of an original
perceptual act. Representation accordingly consists of recording or transcribing an objective,
natural world.” (Ibid: 46). Este ponto de vista pressupõe que cada artefacto está conectado
com um conjunto particular de actividades e cada actividade está imbuída de um significado
específico, associada a um dos géneros definidos. Neste sentido, certos contextos e seus
significados permitem o estabelecimento de um índex de género. Assim, a pesquisa
direcciona-se para a tradução de materiais arqueológicos em técnicas, funções, actividades e
agentes ou protagonistas.
A tradução de objectos, estruturas e sítios arqueológicos para um discurso inteligível
não pode ser baseado na crença de que é possível a concretização de uma cópia neutra do
original, do passado que realmente aconteceu, materializado no que convencionalmente se
designa de “registo arqueológico”, também produto de um conjunto de convenções. Seguindo

124
Benjamin pela mão de Bal (2002) a cópia é uma tarefa impossível na medida em que o
original, enquanto entidade estática, não existe. Como começamos por referir no primeiro
ponto deste trabalho a tarefa da tradução deverá ser encarada comouma tarefa criativa. O
arqueólogo é autor de texto ou de narrativa, tendo em consideração que o que produz é
construído sobre a multiplicidade de significados que podem ser discutidos em relação aos
materiais do passado que hoje identificamos. Esta narrativa é um discurso acerca da fluidez
das experiências relativas à materialidade do passado de forma a criar resistência a sínteses ou
explicações gerais. Os estudos de género devem ser sobretudo uma forma de questionamento.
É necessário abrir o questionário e multiplicar as variáveis, pois, como Benjamim sublinhou:
“Irrecuperável é, com efeito, toda a imagem do passado que corre o risco de desaparecer com
cada instante presente que nela não se reconheceu” (Benjamin 1992: 159).

Performatividade de género e as políticas dos discursos sobre


o passado

6.3. Helena Almeida, Desire

A discussão da arqueologia do género e dos indivíduos no passado está conectada com um


problema mais abrangente em arqueologia: a representação de vidas passadas ausentes, isto é,
a relação entre o arqueólogo e o registo arqueológico. Falar acerca de pessoas do passado

125
como falamos de nós próprios assenta na ilusão de podermos compreender totalmente o
passado e recuperar as suas personagens, as suas acções e as suas intenções. Este é um
discurso que pode ser integrado no que Thomas (2004: 238) chamou de “lógica totalizante”
que se arrisca a transformar o passado num “mesmo universal” através de um discurso
hegemónico. Os arqueólogos deverão assumir a responsabilidade pelas suas narrativas. O quê
e como queremos escrever acerca do passado? A associação permanente das mulheres a
tarefas domésticas perpetua um preconceito, universaliza e naturaliza uma identidade, que não
é estável ou permanente. Mas, pode a Arqueologia, enquanto disciplina, escapar a esta
abordagem positivista e evolucionista? (seguindo Hernando, 2006: 229).
Tendo em consideração o que foi referido anteriormente, os protagonistas do passado não
podem ser traduzidos em categorias simplificadoras de homem ou mulher, crianças ou
adultos, jovens ou velhos. É uma tarefa impossível a de colocar no interior dos muros que
definem estes recintos indivíduos cujo género é definido por parâmetros tradicionais,
seguindo os tipos ideais do nosso mundo ocidental contemporâneo. Como Butler (1990)
refere, o género é socialmente construído, e opera através de complexas relações que são
definidas pela interacção de cada um e de todos com o mundo em que habita. Não se trata
apenas das acções que cada um protagoniza mas a rede de relações em que cada um está
inserido, de forma consciente ou não, pelas expressões discursivas que enunciamos muitas
vezes como apenas descritivas mas que actuam como performativas na mediada em que nos
inscrevem (e aos outros) numa gramática discursiva, como citações, ou seja, expressões
retiradas do seu contexto original que são inseridas numa outra rede de relações. Assim, dizer-
se “eu sou uma mulher” não é apenas uma frase descritiva mas insere-me num mundo
discursivo e por outro lado “normaliza” a minha condição de mulher. A definição do sexo é
da esfera da norma, da regra. Pela repetição dos actos performativos que se constroem em
rede e em relação com o outro, ser-se mulher é naturalizado. No entanto, Butler refere que
existem actos performativos que podem colocar em causa esta repetição irreflectida que
naturaliza o ser-se do sexo feminino ou masculino. Contudo, e de acordo com Almeida (2003:
20), Butler nunca especifica os locais e instituições de poder onde género e sexualidade são
produzidos e reproduzidos.
Butler elaborou uma genealogia crítica da construção das seguintes categorias: sexo,
género, sexualidade, desejo e identidade corporal (Jagger, 2008: 17) e sublinhou que têm sido
entendidos como inevitáveis, como características naturais de cada corpo, de cada ser
humano. Contudo, como Jagger resumiu, seguindo Butler, “there is nothing given about
gender nor is there any pre-cultural or pre-discursive sex that provides the basis for its cultural

126
construction. Identity is rather an effect of signifying practices rooted in regimes of
power/knowledge characterized as compulsory heterosexuality and phallogocentrism. As
such, it is a matter of social and political regulation rather than any sort of innate property of
individuals, or source of agency in a traditional, liberal humanist sense.” (Jagger, 2008: 20). A
naturalização de certas categorias como sexo e género é dada pela repetição de gestos e
discursos semelhantes ao longo do tempo. Segundo Butler, os indivíduos constroem a sua
identidade de género através de “on-going process of repetition”, de “acts, gestures,
enactments” (Ibid: 27).
Seguindo o último parágrafo, ser-se homem ou mulher, ou nenhuma destas categorias,
é um processo em permanente construção. Ou sublinhado mais uma vez a repetida afirmação
de Simone de Beauvoir: “não se nasce mulher, mas antes torna-se uma” (Beauvoir, 2009).
Género é a relação entre pessoas, em vez de ser apenas um conjunto de pessoas específicas.
Neste sentido, a discussão acerca do género não pode apenas definir um problema, colocando
a mulher nos discursos sobre o passado mas deve promover uma outra discussão, baseada
noutro inquérito, que não procura definir actividades unívocas. Talvez devêssemos prestar
mais atenção aos próprios materiais, na sua singularidade e nas suas relações, e abrir essas
mesmas relações a outros questionamentos e entendimentos: um fragmento cerâmico não está
apenas conectado com outros fragmentos cerâmicos ou peças líticas, mas também com os
dispositivos construídos, com diversos movimentos e práticas.
Um fragmento cerâmico não é uma categoria estática, não invoca actividades estáticas.
Refere-se a uma rede de práticas interconectadas nas quais, obviamente, o ser humano fez
parte. Como Lazzari referiu “Beyond the issue of “who did what in the past”, artifacts are
above all indexes of agency in a relational field. They are part of a network (in the sense of a
craft) of people, other objects, animals, plants, memories and places; a series of related visible
and invisible presences, variants of the world.” (Lazzari, 2003: 200). Os indivíduos do
passado deveriam ser encarados provavelmente apenas como seres humanos. Yourcenar
respondeu da seguinte forma à questão “qu’est qui est une femme?”: “La première remarque
que on ferait est que une femme est un être humain” (Yourcenar, 1981). E como Thomas
referiu “rather than starting from the proposition that human beings are all unique in the same
way, a way that can be fully accounted by science, it may be more profitable to consider the
otherness of the other human being” e acrescenta, “they can never be reduced to our
conception of them” (Thomas, 2004: 236). Não podemos falar de homens ou de mulheres e
crianças, adultos e mais velhos, pois o estudo da relação entre materiais não pode estar
conectado neste caso a um índex de género. Butler referiu o carácter relacional da construção

127
da identidade de género, o seu carácter fluido e instável, e seguindo esta linha, talvez
devêssemos prestar mais atenção às relações entre materiais, também com significados fluidos
e instáveis, como uma permanente construção de sentido através das múltiplas práticas
levadas a cabo por múltiplos seres humanos.
Bauman (2005: 22) realçou que a fragilidade e a condição provisória da identidade não
podem mais ser ocultadas. Contudo, a Arqueologia ainda pede “clarity, objectivity, and
reduction to law-like or mathematical terms” (Thomas, 2004: 247). No mundo moderno, com
a sua obsessão de tudo classificar para tudo incluir (ver Foucault, 1994 [1976]), também as
comunidades pré-históricas são indexadas para que se tornem parte do arquivo moderno e este
cumpra a tarefa da modernidade: a ordem (Bauman, 2007: 16). Irigaray (2007: 22 – 30)
escreveu que o discurso nunca é neutro mas deve ser reflexivo em relação aos preconceitos
nos quais se baseia. O problema da tradução do registo arqueológico em imagens fixas é que
fecha a interpretação. E transportando para a pré-historia os modelos tradicionais do modelo
familiar ideal e estereótipos de homens e mulheres, corremos o risco de criar a ilusão de um
passado domesticado e familiar, preenchido por elementos reprimidos transmitidos
repetidamente em silêncio.

128
7. Imagens familiares/Imagens estranhas: a
emergência de um outro discurso

Fig. 7.1. Georges Segal, Man Looking Thru Window, 1980

Abrimos o texto com uma imagem criada por Georges Segal. As


esculturas de Segal habitam, como fantasmas, a reconstrução arqueológica de
uma “habitação standard”, de acordo com as construídas nas modernas
periferias de qualquer cidade europeia ou norte-americana. A ausência de
detalhe na imagem sobre o passado converte-a em imagem fantasmagórica, que
nos olha com estranheza, através do nosso próprio olhar que a (e nos)
estranha.

Mais uma vez regressamos às questões que guiam a segunda parte deste trabalho: como é
que os arqueólogos vêem o passado? E, como é que o representam? Estas duas perguntas
pretendem explorar a relação entre arqueólogo e sítio arqueológico, relação da qual emerge o
discurso sobre o passado. Mais uma vez sublinhamos que os modelos explicativos dos
povoados fortificados representam o passado em imagens fixas que se tornam estereótipos de
actividades e pessoas que na ausência reflexiva são empregues na interpretação destes
recintos defensivos. Estas imagens apresentadas como representações de vidas passadas
oferecem ao leitor um passado familiar, onde facilmente nos reconhecemos, onde
reconhecemos com nostalgia o outro que outrora fomos. A familiaridade que estas imagens
transmitem é conseguida com recurso ao desenho de famílias e casas segundo o modelo
129
tradicional (tipo) do mundo burguês ocidental, ou à contemporânea divisão sexual do trabalho
– como já referimos – colocando a mulher em tarefas como a tecelagem e o homem
responsável pela metalurgia. Este discurso relega ao silêncio todas as dúvidas inerentes ao
processo de investigação. Aparece como um conjunto de afirmações praticamente
“aproblemáticas”, apresentando o passado como uma realidade evidente. Carrega todo o peso
de uma narrativa confortável e familiar.
Neste ponto do trabalho gostaríamos de introduzir o conceito de estranheza de forma a
questionar a tradicional abordagem aos povoados fortificados, e a problematizar um passado
não familiar que parece resistir à classificação e à objectivação. Contudo, falar de estranheza
não se refere ao estudo do “outro exótico”, completamente misterioso e diferente, que
cativaria a curiosidade dos arqueólogos que tentariam desvendar acontecimentos passados.
Devemos ter presente as questões já colocadas por Hodder em 1999: “In producing the past as
“other” are we just producing inverse images of ourselves? Are we simply engaged in a play
of difference, of relevance only to our contemporary selves?” (Hodder, 1999: 156). Não falar
do exótico outro não implica abordar o outro extremo da linha, ou seja, o outro como nós, o
outro do passado com o qual me assemelho. Como Thomas referiu “The problem is one of
letting the difference of the past reveal itself as itself, rather than allowing it to dissipate into a
set of mere images which can be absorbed by the more general economy of signs that
dominates contemporary existence” (Thomas, 2004: 238). Fugindo destes extremos criados
por um pensamento dicotómico, deixemos o inquérito ser permeável à dúvida, à estranheza
dos sítios arqueológicos, escapar à rigidez da certeza que regula a política do conhecimento na
ciência moderna. Desfamiliarizar a narrativa permite-nos olhar outra vez e de outra forma
para os sítios arqueológicos.
Estranheza é o que não se encaixa numa tipologia. Está conectado com a dúvida e a
incerteza. É uma situação limite onde as nossas expectativas caem por terra. Estranheza é o
não familiar. É a tensão entre o mensurável e o imensurável. Como Guignon refere, seguindo
Heidegger, as coisas têm medidas e limites e nesse sentido são particularidades físicas,
permanecendo, contudo, indeterminadas, confusas, incontroláveis, ocultas (Guignon, 2001:
42). Estranheza é um conceito que permaneceu em silêncio na ciência moderna. Segundo
Adorno e Horkheimer “the regression of the masses today is their inability to hear the
unheard-of with their own ears, to touch the unapprehended with their own hands”
(Adorno&Horkheimer, 1992 [1944]: 36). Na obra Dialectic of Enlightenment, os mesmos
autores referem que a ciência moderna, mediante a objectivação, cálculo e classificação,
conduziu ao desencanto do mundo, transformando-o em algo matemático. Os autores

130
questionaram ainda o “empobrecimento do pensamento e da ciência”, assim como a
dominação da natureza pela ciência, ou a separação definitiva, ocorrida no Iluminismo, entre
o mito e a poesia. Num mundo habitado por máquinas e razão, “the cognition is restricted to
its repetition”, quando, segundo os autores, “the task of cognition should consist in the
determinate negation of each im-mediacy” (Adorno&Horkheimer, 1979: 27). Assim, poderá a
estranheza reaparecer no nosso trabalho se recuperarmos a dinâmica do encantamento?
De forma a aprofundar este tema, trazemos à análise um artigo sobre o sítio de Los
Millares, Almeria (Espanha). Nesse texto os autores propõem-se a “analyze the metric and
geometric features of the construction of Los Millares” (Esquivel & Navas, 2007: 894),
traduzindo muros, entradas e estruturas circulares em números e gráficos. Estes números e
gráficos são em última análise utilizados para validar a interpretação geral do sítio como
povoado fortificado. Contudo os autores assinalam que a segunda linha de “muralha” não tem
características defensivas bem marcadas mas que, por outro lado, todo o sistema defensivo do
sítio excede o que seria necessário na prática para proteger o povoado. Estes dois
apontamentos não foram enfatizados talvez porque nos poderiam levar a questionar a
interpretação dos muros como muralhas. De facto, nem o complexo analisado como um todo
faz sentido como dispositivo defensivo, nem a abordagem sectorial da segunda linha nos
permite inferir que esta possui todas as características necessárias para que se considere um
muro muralha. Estes dois apontamentos poderiam introduzir no discurso a não familiaridade
dos dispositivos arquitectónicos, valorizar a dificuldade em os inserir numa tipologia ou numa
tabela classificativa. Os autores propõem uma interpretação matemática para Los Millares no
mundo matemático dos nossos dias. E propõem a emergência do pensamento matemático no
sul da Península Ibérica entre o final do IV milénio e o IIº milénio a.C.(Ibid: 913). Assim, a
construção de Los Millares é traduzida em números: números de trabalho por dia, volumes e
medidas.
A sensação de estranheza surge do confronto entre visível e invisível, entre presença e
ausência. É a recusa de procura pelo original, pelo autêntico, uma recusa em contemplar
associada ao desejo de interagir com os materiais, ao desejo de recuperar o espanto. A
sensação de estranheza emerge no momento do encontro com um sítio arqueológico, da nossa
relação com o mesmo, como uma experiência aurática, seguindo Benjamin (Benjamin, 1999a;
1999b). Benjamin descreve a aura como “strange weave of space and time” [citado em Didi-
Huberman, 2005: 12 (SW2: 518)], como “unique phenomenon of a distance, however close it
may be” (1999b 216). Gostariamos de seguir a abordagem de Didi-Huberman ao conceito de
aura quando refere: “Benjaminian supposition of the aura and of the “origin” understood as a

131
reminiscent present where the past is neither to be rejected nor to be reborn, but quite simply
to be brought back as an anachronism.” (Didi-Huberman, 2005: 7). Neste sentido, a
experiência aurática pode ser relacionada com o encontro e com o que poderíamos chamar de
experiência anacrónica, demasiado distante mas contudo muito próxima no tempo, uma
experiência aurática é a experiência limiar de um encontro. Poderíamos também arriscar e
dizer que a aura é inerente a cada fragmento cerâmico, mas desaparece, ofusca-se quando este
é inserido num processo de inventariação, catalogação, e perde a sua unicidade, a sua
singularidade, para ser apenas mais um exemplo, mais um fragmento cerâmico “igual” a
tantos outros. Talvez o arqueólogo possa novamente recuperar a aura de cada coisa em si, e
entendê-la na sua singularidade. De facto, a incorporação em sistemas de inventariação
declara morte à aura, ou seja, à qualidade de único de cada coisa. Este é o caminho para a
valorização do estudo pormenorizado e atento ao detalhe que tentamos desenvolver na análise
de Castanheiro do Vento. No entanto, não se procura aqui elevar o objecto, o fragmento
cerâmico, a objecto de culto, enquanto revelador de algo que misticamente se encontra
codificado no seu interior. Recuperar a aura significa antes recuperar a unicidade de cada
fragmento cerâmico, de cada troço de muro, de cada sítio arqueológico. Unicidade essa que
emerge apenas nesta relação entre o imensamente próximo e o irremediavelmente distante em
que o encontro se dá.
Estranheza é o encontro com a falha, com o vazio, entre passado e presente, materializada
no que convencionalmente se designa registo arqueológico. Contudo esta disjuntura não está à
espera de ser encontrada ou preenchida com o que aconteceu mas já não está lá. É uma
criação. Esta lacuna é discrepante, Segundo Bal, “Discrepancy, to my mind, is a brilliant
word to indicate the gap between past and present, as well as to suggest the two – or more! –
sides of the gap, without prejudging the kind of cuts, joints, and erasures needed to make that
discrepancy something we can look at and learn from”. (Bal, 2002: 60). Derrida sublinha
também que do passado restam-nos “restos desarticulados”, que o arqueólogo tenta articular –
diríamos nós – a fim de lhes conferir coerência discursiva. Contudo, “On Derrida’s account,
history is not linear, developmental, logical or coherent. Due to the fact that it contains within
itself gaps and secrets, ghosts and holes, it can never tell us who we are” (Dooley & Kavanag,
2007: 4).

A segunda parte deste trabalho pretendeu sobretudo perguntar como é que os


arqueólogos entendiam o passado e como é que o representavam. Será que o passado é
encarado na disciplina como um processo criativo e contínuo, permeável a diferentes

132
abordagens e histórias, ou pretendem os arqueólogos alcançar uma interpretação estática,
baseada em imagens bem definidas, onde o arqueólogo é interveniente invisível na construção
do passado? Provavelmente a questão convoca apenas duas extremidades. Contudo, parece-
nos que a maioria das narrativas acerca dos chamados “povoados fortificados” aproxima-se da
segunda abordagem, ao apresentar um passado familiar, ao interpretar a lacuna entre passado
e presente como um vazio que pode ser preenchido com momentos de construção e momentos
de ocupação. Grande parte dos discursos explicativos dos povoados fortificados denuncia a
crença na Arqueologia como saber que providencia histórias sequenciais que possibilitam a
reconstrução da falha, como uma ponte, estendida entre as origens e o presente, e onde é
possível encontrar um significado autêntico para cada objecto, contexto, sítio ou paisagem.
A procura pela autenticidade, através da manipulação de algo real, da qual podemos
extrair um significado real, parece ser um dos principais problemas da pesquisa na Península
Ibérica acerca dos povoados fortificados. Esta abordagem é construída sobre a premissa de
que o significado está encapsulado no objecto, e que é possível revelar a autenticidade de um
argumento pela análise das materialidades. Os conjuntos artefactuais são estudados,
organizados em diferentes tipos, e a cada um é atribuída uma função. A sua presença ou
ausência pode determinar a função/explicação de um contexto, como por exemplo a presença
ou ausência de pesos de tear ou de pontas de seta (como já foi referido para Los Millares). Os
dispositivos construídos são normalmente considerados enquanto cenários, como unidades
estáticas que apenas albergam no seu espaço um conjunto de actividades. As actividades
construtivas, remodelações, manutenções, e outras diferentes interacções com os materiais e
as estruturas, raramente são equacionadas.
Esta abordagem carrega implicitamente o desejo de um passado autêntico,
representado por imagens estereotipadas, por imagens fixas, que só podem ser estáticas na
medida em que perderam a temporalidade das acções passadas. Numa imagem fixa “Time is
caught in a loop by constant repetition of the same action” (Biesenbach, K. 2001/2: 20, apud
Ross, C., 2006: xvi). Nas imagens sugeridas pelas explicações dos povoados fortificados, as
acções passadas parecem estar presas a estereótipos que representam várias gerações… o
problema surge quando a imagem se torna realidade e não interpretação. Torna-se uma
imagem petrificada, uma actividade congelada, que constitui uma forte barreira ao diálogo, na
medida em que bloqueia o discurso e cria condensações de significado que tendem a resistir a
uma reflexão crítica. Como Dovey referiu “The fundamental paradox emerges out of our very
attempts to find and recreate a lost authenticity, a lost world of meaning” (Dovey, 1986: 47).
Seguindo de perto o autor, autenticidade não é uma qualidade das coisas materiais mas é

133
gerado na nossa interacção com o mundo. Autenticidade “is only found and generated in the
dwelling practices of everyday life” (Ibid: 44) (seguindo uma perspectiva Heideggeriana).
Procurar a autenticidade implica muitas vezes a procura do original – problema a que
já aludimos na primeira parte deste trabalho – e parece estar implícita, segundo diferentes
prismas nas abordagens tradicionais que buscam o passado que realmente aconteceu. Procurar
a autenticidade é também uma tentativa de encontrar as nossas origens num passado original.
No caso da investigação levada a cabo acerca dos povoados fortificados, como ficou explicito
no ponto 4, existe o desejo de explicar as origens da metalurgia, das sociedades estratificadas,
das desigualdades sociais, do proto-urbanismo… neste sentido as explicações dos povoados
fortificados enfatizam o começo de uma nova ordem social, baseada na construção de um
novo tipo de sítios que representam a emergência de elites que detinham o poder e a riqueza,
controlavam os intercâmbios e a armazenagem de bens agrícolas, e estavam encarregues de
práticas rituais… os povoados fortificados reflectiriam o início das desigualdades sociais,
traduzido por exemplo, na distribuição e dimensão das unidades domésticas, como em Los
Millares onde a elite viveria no interior da cidadela (Molina & Cámara, 2005). Também Silva
e Soares (1976/77: 266), apontaram que estes sítios reflectiam divisão social do trabalho.
Kunst (2000) considerou o inicio da guerra, entendido como um grupo de guerreiros
organizado em exércitos, no Calcolítico. Contudo, como V. O. Jorge (2008) assinalou,
estamos sempre numa posição de espanto perante a radical estranheza e arbitrariedade do
mundo, o que inviabiliza a escrita de uma narrativa coerente acerca das nossas origens.
Os restos do passado não são neutros, não podem ser tratados como simples objectos
que albergam em si o passado que realmente aconteceu, mas aparecem como fantasmas, como
presenças ausentes do passado, que nos assombram na sua irredutível estranheza.
Continuando com Derrida, é apenas pelo trabalho de luto que nos podemosaproximar do
passado, não para o trazer para o presente, mas como um trabalho interminável que pode
prometer um futuro, que pode “determinar um futuro”. “If memory testifies to the fact that we
can never fully recollect the past, then mourning affirms that we are never finished with the
past: that the task of comprehending the past always lies ahead of us” (Dooley & Kavanag,
2007: 8). É um processo reflexivo sem fim que mantém em aberto a possibilidade de
múltiplos entendimentos.
Freud (2001 [1919]) explorou o conceito de uncanny 1 para traduzir a experiência do
encontro com algo “secretly familiar, which undergone repression and then returned from it”

1
Optamos por não traduzir este termo por em português não existir uma palavra que traduza a ideia de uncanny.
Uncanny será o que é estranho pela sua extrema familiaridade. Freud, no seu artigo, ensaia também uma

134
(Freud, op.cit.: 245). Uncanny é o que não se reconhece como novo mas ao mesmo tempo
provoca uma desconfortável experiência, assustadora pela sua extrema familiaridade. Pode ser
provocado por exemplo pela repetição de algo mas de forma inesperada como uma estranha
coincidência. Nesta linha poderemos sugerir que a familiaridade das representações sugeridas
pelos povoados fortificados nos desperta esta estranheza? As suas semelhanças provocam no
leitor um estranho sentimento de familiaridade e neste sentido as imagens familiares do
passado revelam-se como imagens uncanny, e são muitas vezes assustadoras e
desconfortáveis. É comum concordar que o conhecido e o desconhecido são duas esferas das
nossas vidas, uma familiar, a outra perigosa, escondida e na maior parte das vezes secreta.
Contudo, e se estas barreiras que sustentam um pensamento binário caíssem por terra? É neste
momento que a sensação de uncanny aparece. A experiência de estranheza dada pela extrema
familiaridade das imagens acerca do passado é promovida pelo encontro com as propostas
elaboradas por outros arqueólogos para a explicação do Calcolítico Peninsular, e por outro
lado emerge no encontro com Castanheiro do Vento. Foi este encontro que sugeriu este texto,
o encontro com a infinita proximidade e distância do passado. A reflexão sobre estes tópicos
procura sobretudo promover uma atitude irrequieta em relação ao nosso próprio trabalho
enquanto arqueólogos, em relação aos discursos que tecemos, e provocar desconforto no seio
das narrativas estabelecidas.

definição e tradução da palavra alemã unheimlich: “Indeed we get an impression that many languages are
without a Word for this particular shade of what is frightening. (…)
Latin: (K. E. Georges, Deutschlateinisches Worterbuch, 1898). An uncanny place: locus suspectus; at an
uncanny time of night: intempesta nocte.
Greek: (Rost’s and Schenkl’s Lexikons).ξένος (i.e. strange, foreign).
English: (from the dictionaries of Lucas, Bellows, Flügel and Muret-Sanders). Uncomfortable, uneasy, gloomy,
dismal, uncanny, ghastly; (of a house) haunted; (of a man) a repulsive fellow.
French: (Sachs-Villette). Inquiétant, sinistre, lugubre, mal a son aise.
Spanish : (Tollhausen, 1889). Sospechoso, de mal aguero, lúgubre, siniestro.
The Italian and Portuguese languages seem to content themselves with words which we should describe as
circumlocutions. In Arabic and Hebrew “uncanny” means the same as “daemonic”, “gruesome”.” (Freud,
2001[1919]: 221).
Optamos também por utilizar a palavra na sua tradução em inglês pois na ausência de ferramentas da língua
alemã é-nos impossível a aplicação em texto da palavra na língua em que Freud a pensou. A primeira leitura que
fizemos do texto de Freud foi na sua versão inglesa, e nesse sentido, trabalhamos o texto em inglês num primeiro
momento. Poderíamos talvez dizer agora que as traduções e a confusão das línguas são também um encontro
com a estranheza da própria palavra “uncanny”.

135
7.2. George Segal, Three Figures and Four Benches, 1979

Começamos este ponto por colocar questões acerca de como vemos e representamos o
passado, mas talvez, no fim deste texto, possamos reformular estas perguntas numa questão:
como vemos novamente aquilo que representamos? Sempre atentos aos sinais de advertência
das imagens estáticas do passado que foram apanhadas em estereótipos, e na tentativa de
representar estes sítios por processos dinâmicos, tentámos desconstruir as explicações
essencialistas de “pessoa” (homem, mulher ou criança) e os processos de identidade
vinculados a estas explicações. Talvez possamos agora recolocar o problema como a tensão
latente que existe no nosso trabalho. As tentativas de produção de imagens são geradas nessa
tensão. E estas imagens (tensionais) procuram fazer espaço para as comunidades na pré-
história nas complexas teias em que as categorias de “pessoa” se criam, na medida em que a
construção de identidades se faz pela constante concretização de uma miríade de conexões e
desconexões entre pessoas e coisas. Em vez de encarar isto como uma impossibilidade, talvez
este confronto ou tensão nos quais e pelos quais trabalhamos seja uma outra forma de pensar a
representação arqueológica de um passado.

136
III
Arquitectura e organização do espaço
em Castanheiro do Vento

137
138
© JoanaAlvesFerreira 2009

Nos pontos anteriores foram delineadas as condições de emergência deste trabalho. Começámos por
apresentar um conjunto de pressupostos teóricos, introduzimos o sítio que nos ocupa – Castanheiro do
Vento – e analisámos uma colecção de textos emblemáticos que enformam até ao momento as
narrativas acerca dos recintos murados (nas quais Castanheiro do Vento é mais um exemplo). A
terceira parte tentará entrar no sítio de Castanheiro do Vento e questionar um espaço que não é
objectivo nem homogéneo, mas sensível, prenhe de intensidades, diverso, heteróclito e heterogéneo. É
um espaço que tem pontos singulares – espaços, eles próprios, dentro de espaços (segundo J. Gil,
2010: 90).

Castanheiro do Vento será entendido como uma arquitectura de outrora que ainda é, subitamente
emergente pelo processo de escavação. A ruína de Castanheiro do Vento torna o que é agora no que
foi, no que foi sendo, provocando o choque com o tempo desagregado. Tentaremos a perscrutação de
um sítio pelo olhar atento aos pormenores, através de fragmentos visuais. Castanheiro do Vento
enquanto uma arquitectura da ausência não fala dos que outrora o sentiram. Não se trata de chamar
velhos fantasmas para a construção da sólida narrativa acerca de como foi, mas de deixar que o seu
vazio conduza à criação de outras formas de ocupação, na certeza que é impossível agarrar o tempo.

139
140
8. A Arquitectura vista pela Arqueologia 1

toda a paisagem é pré-histórica,


isto é, é anterior ao nosso entendimento
à nossa razão de pobres contemporâneos,
colados ao acontecimento.
está cheia de volumes,
e quem nela se perdesse poderia talvez encontrar
lânguidas tentativas de abraços,
formas do terreno se antropomorfizar,
de nos apelar de novo à con-fusão perdida.
(JORGE, V. O., 2003: 102)

“To paraphrase Orson Welles: “I don’t like architecture, I like making architecture.”
(Tschumi, 1999: 211)

A palavra “arquitectura” tem sido estudada em diversos trabalhos acerca de


Castanheiro do Vento e também de Castelo Velho de Freixo de Numão (v. g. Jorge, V. O. [et
al.], 2006; Vale, A. M. [et al.], 2006; Jorge, V. O., 2006, 2007b; Velho, G. L., 2006; Cardoso,
J. M., 2002). Em 2004 é construída uma página Web chamada “Prehistoric Architectures”,
impulsionada por Vítor Oliveira Jorge, e que reúne um conjunto de investigadores,
maioritariamente da Universidade do Porto. Paralelamente, a colaboração da investigadora L.
McFadyen conduziu ao aprofundamento do debate em torno do conceito de Arquitectura e
criou também novos percursos críticos não só do conceito “arquitectura”, mas sobretudo de
linhas de pesquisa de “arquitecturas pré-históricas”, tendo influenciado enormemente as
investigações em Castanheiro do Vento e Castelo Velho de Freixo de Numão.
Este texto, introdução à terceira parte deste trabalho não pretende sumariar todas as
linhas escritas em redor da palavra “arquitectura”, mas sim continuar esta linha de
investigação, com a consciência da amplitude do conceito e da multiplicidade de perspectivas
acerca do mesmo. Neste sentido proceder-se-á a uma muito breve revisão da forma como a
palavra “arquitectura” tem sido trabalhada por diversos autores 2. Nesta análise será, por um
lado sublinhada a impossibilidade de delinear um planeamento ordenado para a compreensão

1
Uma versão parcial deste texto foi publicada na Revista Portvgália, Nova Série, Volume XXXIX-XXX, 2008-
2009, 43-60, sob o título “Castanheiro do Vento (Horta do Douro, Vila Nova de Foz Côa). Alguns
Apontamentos acerca do Dispositivo Arquitectónico”.
2
A literatura arqueológica consultada para a elaboração deste texto debruça-se essencialmente sobre os
tradicionalmente designados “povoados fortificados”.

141
da organização do espaço em Castanheiro do Vento, e por outro enfatizadas duas palavras-
chave: movimento e imersão; o movimento enquanto criador de espaços e de múltiplas
conexões, e a ideia de imersão no contexto de uma construção que se pressupõe labiríntica.

Construções do passado enquanto espelhos de comunidades pretéritas

“We want to know who last sat on that chair? Who lay on this bed? What happened over
there? What happened down here? What really happened where? (But do we really want to
know?)” (Rendell, 2006: 88)

Susana Oliveira Jorge (2007) na “Introdução” do volume 8 das Actas do IV Congresso


de Arqueologia Peninsular, dedicado ao tema: “A concepção das paisagens e dos espaços na
Arqueologia da Península Ibérica”, enuncia um conjunto de características partilhadas pelos
os autores que participam na publicação, (à excepção de V. O. Jorge [et al.], S. O. Jorge [et
al.] e M. J. Sanches em alguns aspectos), como a crença na existência de um projecto
arquitectónico prévio à execução, e a interpretação do construído enquanto espelho do sistema
socioeconómico, político e simbólico das comunidades que edificaram e utilizaram essas
mesmas arquitecturas. Sublinha ainda que grande parte dos autores se concentra no estudo das
possíveis relações entre a “arquitectura” e o espaço (entendido enquanto paisagem
envolvente). (Jorge, S.O., 2007: 11).
Esta linha interpretativa, denunciada por S. O. Jorge, associa normalmente a palavra
“arquitectura” ao edificado, cujo estudo permite a integração do sítio arqueológico num
esquema interpretativo geral (por indução), e também a elaboração de explicações e
interpretações que se estendem a outros sítios e espaços (por um processo dedutivo). Neste
sentido, arquitectura, entendida enquanto construção, é interpretada como uma unidade
estática 3, passível de ser traduzida em funções e significados unívocos. A arquitectura permite
assim inferir, por exemplo, contextos de guerra, processos de complexificação social, de
formação de elites, de controlo de espaços de exploração agrícola, de linhas de comércio, etc.
Por outras palavras, é interpretada como uma imagem bem definida de quem ocupou, mais do
que quem construiu. A construção – o acto de fazer – raramente é enunciado, e quando o é, é
apenas equacionado enquanto evidência de fases de mudança no seio da comunidade, como
espelho dessa mesma mudança. Seguindo este esquema interpretativo, a existência de um

3
Segundo este modelo, as mudanças sociais estão ligadas a momentos de abandono, pela destruição intencional
do sítio, de algumas estruturas, ou pelo simples “deixar” o sítio.

142
plano prévio, de um projecto que depois se executa, normalmente num curto espaço de tempo,
compreende as construções e reformulações como acções bem definidas no tempo,
representadas de forma sequencial, ou seja, por fases construtivas (intervaladas por fases de
ocupação). É na longa duração da arquitectura que as narrativas acerca do passado se
constroem, na quase ausência de tempo, descrevendo e personificando actividades atemporais,
condenadas a repetir-se por centenas de anos. Desta forma, pretende-se a recuperação do
edifício original. Os textos acerca do passado arquitectam-se pela tradução dos materiais do
passado como cópia, o mais fiel possível do original, relatando o que realmente aconteceu,
apresentando o passado sem tempo, preso em molduras, em imagens fixas.
Este modelo de tradução pretende revelar um pretenso significado autêntico que
estaria encerrado nas estruturas e deveria ser desvelado pelos arqueólogos. Nesta linha, os
materiais, desde o fragmento cerâmico ao muro de base pétrea, são contentores de
significados originais (únicos, autênticos, fixos), e podem anunciar as intenções de quem os
fez, de quem os manuseou e descartou, arrumados em quadros de funcionalidades, sejam da
esfera do “doméstico”, do simbólico/religioso, de actividades guerreiras, comerciais ou
agrícolas…. Neste caso, será um muro de base pétrea sempre indicador imediato de
actividades guerreiras? Será uma estrutura semi ou subcircular – normalmente apelidada de
“bastião” – sempre denotativa de estratégias de defesa? As correlações imediatas muitas vezes
condicionam a interpretação. Num ciclo vicioso, as estruturas semelhantes são indicadores de
práticas semelhantes. A elaboração de explicações para unidades construídas, baseadas na
observação do imediato no presente, conduz à repetição do quadro explicativo definido, ao
reconhecimento do já visto e nunca se procede à negação do imediato (seguindo Adorno &
Horkheimer, 1992 [1944]: 27), à reflexão do que aparece perante os nossos olhos, à critica do
óbvio.
A representação do passado autêntico recorre a imagens realistas, que pressupõem a
existência de um referente externo existente num mundo objectivo (Jordanova, L., 1989: 47).
Neste sentido a construção de imagens realistas conduz a uma extrema familiaridade dos
intervenientes do presente com as personagens do passado, numa tentativa de alcançar as
origens, o nostálgico outro que um dia fomos. Contudo, se por um lado, fazer do passado um
lugar familiar é necessário para a própria inteligibilidade dos sítios arqueológicos, por outro,
remete para “nota de rodapé”, ou dilui na narrativa, os casos de estranheza relativos às
incongruências das estruturas registadas pelos arqueólogos, como são exemplo os “sistemas
defensivos” que pecam por excesso ou escassez de capacidade defensiva, seja porque o
complexo de vários muretes ultrapassa as necessidades práticas de defesa, seja porque a

143
volumetria das “muralhas” não permitiria uma defesa eficaz (ver a título de exemplo,
Esquivel, J.A. & Navas, E. (2007) acerca do sítio de Los Millares, trabalho já por nós referido
algumas linhas atrás).

Construir e habitar

“Arquitectura é a “arte” de transformar o espaço numa rede de lugares e de trajectos


significativos para as comunidades que os habitam ou neles circulam, através de
materializações (por acrescentamento e/ou ablação) mais ou menos intensas.” (Jorge, V.O.,
2006: 106)

Nos últimos anos tem-se assistido em Portugal a uma crescente reflexão acerca do
conceito de Arquitectura no âmbito da Arqueologia Pré-histórica, e dos limites e
possibilidades interpretativas em torno dos traços materiais do passado, registados pelo
arqueólogo. Esta reflexão dá-se sob influência da Antropologia [por exemplo de T. Ingold
(2000) e de L. Lefevbre (2000)], da literatura arqueológica anglo-saxónica (v. g. J. Thomas,
2004; 2006; M. Pearson & C. Richards, 1997) e da leitura de bibliografia portuguesa que
propõe uma reflexão crítica da arquitectura [por exemplo, F. Távora (1999)]. Neste sentido, a
arquitectura, passa a ser entendida, não apenas como o conjunto de estruturas identificadas
num determinado sítio arqueológico, mas enquanto relação de materiais, relação de
actividades e práticas, como parte e extensão de um espaço que não se restringe às áreas
intramuros das estações arqueológicas. Desta forma, multiplicam-se as definições do
conceito.
Segundo V. O. Jorge (2009a) a arquitectura deverá ser entendida enquanto criação,
enquanto movimento, enquanto relação (de actividades, de materiais, de estruturas). O autor
sugere “transplantes” como palavra-chave, transplantes de coisas de um lugar para o outro,
como a extracção de uma laje de xisto para a feitura de um muro, com toda a carga simbólica
que a laje, o sítio de onde foi extraída, o próprio afloramento rochosos e o murete
envolveriam. De acordo com a mesma linha interpretativa, S. O. Jorge (2007) alerta para o
facto de os elementos construídos não traduzirem as actividades que nelas se desenrolaram,
pois as “arquitecturas só expressam sentidos se articuladas com os cenários da acção que
nelas se operaram. As arquitecturas não espelham a “natureza” das sociedades, nem “falam”,
por si só, sobre o que no seu interior ou em redor foi ocorrendo. E “o-que-foi-ocorrendo” no

144
interior e à volta das arquitecturas não tem correspondência directa na forma dos espaços e
nas materialidades que deram vida aos cenários da acção.” (Jorge, S.O., 2007:12)
Apesar de para muitos autores, a arquitectura continuar a estar relacionada com as
unidades edificadas, a sua relação com outras variáveis (como possíveis actividades e tempos
de duração) é questionada (ver por exemplo, Sanches, 2008) Por outro lado, alguns
arqueólogos estendem o horizonte do conceito ao alargar a área de análise, como é visível no
trabalho de J. M. Cardoso (2007). O autor reflecte acerca da arquitectura à escala de um
território, enquanto movimento, vivência, enquanto organização de um território que
simultaneamente “estruturava” as comunidades que o habitavam (Cardoso, J.M., 2007: 442).
Cardoso explora também a importância das texturas (por exemplo, do xisto e do granito) e dos
sons (do vento e da água) na arquitectura do espaço (Ibid: 308). Na mesma linha A. C. Valera
(2006) entende a arquitectura como resultado da interacção das comunidades com o meio,
numa tentativa de superar a dicotomia entre Natureza e Homem, realçando que não existe
uma ruptura entre espaço construído e paisagem envolvente. O autor concebe a arquitectura
enquanto a materialização de formas de organização de espaço. Contudo, parece perseguir o
momento original em que o “espaço físico indiferenciado” se converte em espaço
categorizado, referenciado pelo Homem, ou seja, almeja ainda o princípio da organização do
espaço.
A equipa envolvida no projecto de escavação do sítio de Castanheiro do Vento (Horta do
Douro, Vila Nova de Foz Côa) tem enunciado palavras-chave como: fluidez, relação,
transformação; estas são vistas como essenciais para repensar, redefinir e recontextualizar o
conceito de arquitectura. Procurou (e procura) diluir, ou pelo menos denunciar, um
pensamento dicotómico, e a pergunta “para que serve?” sai definitivamente do inquérito. Tem
problematizado a ideia de projecto, sugerindo antes que o sítio está em construção, em
reformulação permanente e propõe a moldagem do sítio em terra crua, juntamente com a
pedra, materiais perecíveis e outros elementos como a água. E, como já sublinhamos por
diversas vezes, o sítio passa a ser entendido enquanto uma colina monumentalizada. (ver por
exemplo Jorge, V.O. [et al.], 2006).
Nos trabalhos da equipa de Castanheiro do Vento é patente a influência de Ingold,
principalmente das ideias desenvolvidas no texto “Building, dwelling, living: how animals
and people make themselves at home in the world” (2000b). Ingold, inspirado pela Biologia
(principalmente pela Biologia do desenvolvimento), Psicologia ecológica e Filosofia
fenomenológica (nomeadamente pelos trabalhos de Maurice Merleau-Ponty e Martin
Heidegger), perspectiva o indivíduo (ou qualquer organismo) como “ser no mundo”, onde a

145
vida não é a revelação de uma forma pré-existente, mas o próprio processo em que as formas
se geram e se desenvolvem. O mundo torna-se um todo significante porque é habitado –
preposição que está na base da “dwelling perspective” por oposição à convencional “building
perspective” na qual Ingold iniciou o seu percurso de investigação. Ingold introduz-nos no
percurso que fez do estudo do significado da Arquitectura e parece-nos importante resumir
aqui o caminho protagonizado pelo autor.
O autor começa por referir as perguntas que despoletaram a pesquisa: o que é que
distingue ambientes humanos de não humanos? O que é que difere entre a actividade humana
de construir espaços e o processo pelo qual os animais (não humanos) moldam os seus
ambientes? O que é que significa dizer que um ambiente é construído? E por que é as
construções empreendidas pelos humanos são convencionalmente identificadas como
artificiais?
O autor começa por dar o exemplo da concha de um molusco, da toca de um castor e
da casa construída pelo Homem. A concha poderia imediatamente ser descartada, na medida
em que nasce agarrada ao próprio molusco e para ser considerada um artefacto teria de estar
despegada do corpo. O molusco é um elemento passivo na elaboração da concha. O castor, ao
contrário, trabalha arduamente para construir a sua toca. No entanto, uma diferença imediata é
assinalada por Ingold nesta primeira fase de investigação: enquanto os castores sempre
construíram da mesma forma, as construções humanas, designadamente a casa, sofreram uma
mudança histórica significativa. A diferença entre a toca e a casa não reside na construção em
si mas na origem do design inerente ao processo construtivo. O ser humano tem a capacidade
de projectar e construir a casa, enquanto o castor é um mero executante de um design
incorporado no seu corpo (Ingold, 2000b:174-175).
Nesta fase do seu projecto de pesquisa, Ingold avança que a casa é feita (made) e não
apenas construída (constructed), porque o fazer implicava para Ingold, nesta etapa, uma
construção imaginada, consciente, prévia à sua concretização material. O fazer tinha
subjacente a “consciência da autoria do design”. Por exemplo, na ausência de um martelo,
uma pedra com certas características pode desempenhar o papel de martelo. A pedra é feita
martelo sem sofrer nenhuma modificação. A esta acção Ingold chama de co-opção(Ingold,
2000b:175) e propõe que a história das coisas, dos artefactos, da arquitectura e da paisagem
poderia ser entendida como uma sucessiva alternância entre co-opção e construção.

146
Para explorar estas questões, recorre ao trabalho do biólogo Jakob von Uexküll 4, que
escreve sobre uma árvore habitada por diversos inquilinos: a raposa que construiu o seu covil
entre as raízes, a coruja que se empoleira nos seus ramos, o esquilo que descobre labirintos de
escadas e trampolins na sua copa, a formiga que encontra alimento na casca, o bicho da
madeira que deposita os seus ovos entre centenas de outros animais. Cada um concede uma
qualidade específica à árvore mas para nenhum dos animais esta existe enquanto árvore. Ou
seja, cada um no mundo construído pela sua própria actividade (Umwelten) é incapaz de
percepcionar a árvore enquanto elemento neutro, porque está nela, interiorizada no seu modus
operandi. O ser humano, apesar de percepcionar a árvore de diversas formas (por exemplo,
um lenhador ou uma criança, apreendem a árvore de maneiras distintas) não se encontra
ligado a esta. E neste ponto residiria a diferença entre humanos e animais que Ingold
procurava: o animal estabelece relações entre ele e o objecto, relações essas que são activadas
pela sua própria imersão no mundo e pelas suas orientações corporais; o ser humano
estabelece as suas relações num plano de representações mentais, formando uma tapeçaria de
significados que cobre todo o mundo (Ingold, op.cit.: 177).
Neste momento, Ingold introduz a “building perspective”. Esta abordagem assenta nas
dicotomias Natureza/Cultura, ambiente pré-existente/ambiente construído, entre o mundo/o
que é apreendido pela mente, e envolve uma reconstrução desse mesmo mundo para em
seguida o dotar de sentido. Seguindo esta linha de pesquisa introduz a diferença entre
caçadores-recolectores e agricultores/construtores de cidades. Os primeiros seriam
considerados como criadores de um contexto arquitectural ténue, os segundos construtores de
formas duráveis. Os primeiros seriam basicamente sociedades sem arquitectura, os segundos,
sociedades com arquitectura, na linha de P. Wilson. 5 E aqui surge a pergunta – o que é que
permite afirmar que os caçadores-recolectores não possuíam arquitectura? E se
verdadeiramente não tinham, como é que se poderá compreender a sua actividade construtiva?
Na linha de Wilson, Ingold refere que a construção de abrigos pelos caçadores-
recolectores se integra na sua vida, e tal como a recolecção, o fabrico de utensílios, a
preparação de alimento, é parte e parcela da sua vivência num ambiente que já foi dado pela
Natureza e que não foi construído artificialmente. Já a arquitectura de um povoado implica a
transformação de um espaço natural e a vivência num ambiente construído pelos próprios
habitantes. Em ambos os casos o ambiente é dado antecipadamente como contentor passível

4
Uexküll, J. von (1957) A Stroll through the Worlds of Animals and Men: a pictures book of invisible worlds. In
Instinctive behavior: the development of a modern concept, ed. C. H. Schiller. New York: International
Universities Press.
5
Wilson, P. J. (1988). The domestication of the human species. New Haven: Yale University Press.

147
de ser ocupado. Mas, em que ponto da nossa história se tornaram os nossos antepassados
autores dos seus próprios projectos de construção? Joseph Rykwert 6 afirmou, como refere
Ingold, que a essência da arquitectura reside em pensar a construção, então, quando é que o
Homem começou a pensar sobre o que constrói?
Assim, assumindo que o macaco e o ser humano partilham os mesmos antepassados
tentou-se estabelecer um continuo evolutivo para os comportamentos construtivos, do ninho
dos macaco ao complexo residencial de grupos humanos. No entanto, o ninho do macaco não
marca um ponto fixo para o movimento do animal, não tem um carácter durável, cada animal
constrói o seu ninho todas as noites e usa-o com o único propósito de dormir, abandonando-o
no dia seguinte. Além disso, não é exigente na escolha do material para construir o seu ninho,
utilizando o que está à mão e dispondo os materiais à volta do corpo de maneira a encontrar
uma forma oval, uma cama côncava. O “ninho humano” marca um ponto no espaço, o qual
pressupõe um regresso regular e a ele estão associados sentimentos de segurança. A
construção da cabana exige um hábil entrelaçado de materiais previamente escolhidos que
podem ser de proveniências várias. Trata-se de uma estrutura convexa, que se suporta a si
própria e que depois de construída se entra nela. No entanto, a grande diferença reside na
capacidade humana de antever a cabana, de visualizar na imaginação a construção que se
deseja efectuar.
A procura da primeira cabana, do ponto de origem é também a procura das origens da
arquitectura e do ponto de transição para a “verdadeira humanidade”, cruzando as teorias
evolucionistas que traçam o percurso desde os primeiros hominídeos ao homem moderno e a
história que traça o caminho desde os primeiros caçadores - recolectores até ao mundo
industrial moderno. É esta dicotomia que suporta as tentativas de busca da cabana perdida, e
para desmascarar este mito, Ingold aponta como necessário dissolver a divisão entre
humanidades e ciências naturais, entre evolução natural e história ou entre os processos
temporais inerentes à cultura e à natureza (Ingold, 2000b:185). E aqui Ingold rompe com o
modelo vigente, corporizado na “building perspective” e introduz o que chamou de “dwelling
perspective”.
Para desenvolver esta perspectiva recorre a Martin Heidegger e ao seu ensaio
“Building, Dwelling, Thinking 7”, onde o pensador alemão se interroga sobre o significado de
construir, de habitar e da própria relação entre os dois. O discurso da modernidade ocidental

6
Rykwert, J. (1972). On Adam’s House in Paradise: the idea of the primitive hut in architectural history. New
York: Museum of Modern Art.
7
Heidegger, M. (1971) Building Dwelling Thinking. Poetry, language, thought. trans A. Hofstadter. New York:
Harper and Row, p.145-161

148
considera a construção e a habitação como duas actividades distintas, mas complementares,
relacionadas com meios e fins. Construímos para habitar. Primeiro ergue-se a casa para
depois a habitar, como um contentor onde se realizam as actividades da vida, ou mais
especificamente algumas actividades, já que existem tantas outras que se desenrolam no
exterior, ao ar livre. Mas se a casa é construída para ser habitada, o que é que garante –
pergunta Heidegger – que a habitação se processe nela? Ingold reformula a questão
colocando-a do seguinte modo – o que é preciso para a casa ser um lar? 8 Esta pergunta
pressupõe já uma diferença entre habitar e ocupar. Assim, o que significa habitar? Heidegger
responde através de um exercício de etimologia. A palavra alemã para designar o verbo
construir é bauen, que deriva do Inglês e do Alemão antigo buan, que significa habitar.
Segundo Heidegger este significado de habitação não se restringe a uma esfera especifica da
actividade humana, antes diz respeito a como cada um vive a sua vida na terra, e neste sentido
“eu habito, tu habitas…” é idêntico a “eu sou, tu és…” (Ingold, 2000b:185)
O termo alemão bauen refere-se ainda à actividade de preservar, de cuidar ou, mais
especificamente, de cultivar ou lavrar o solo. E depois o terceiro sentido – construir. Mas
bauen ficou reservado apenas à cultura e construção, esquecendo-se que estas actividades se
processam porque o homem habita. Heidegger pretende restaurar a perspectiva original, para
que possamos compreender que construímos porque habitamos, porque somos, porque
existimos. “Nós não habitamos porque construímos, mas construímos porque habitamos, por
isso somos habitantes…Construir é habitar…Apenas se formos capazes de habitar poderemos
construir” 9 (Heidegger, 1971: 148, 146, 160; itálico no original, apud Ingold, 2000b: 186,
tradução nossa) Ingold considera esta frase como a frase fundacional da “dwelling
perspective”.
A construção ocorre num mundo real e é projectada por pessoas reais, porque habitam
nesse mundo onde os seus pensamentos se desenrolam. Segundo Ingold, não podemos mais
aceitar o visionamento de formas por mentes sem corpo, num mundo subjectivo para o qual o
homem importa as suas ideias, planos ou representações. Pensamos porque existimos, ou seja,
habitamos o mundo. A forma e o design não existem como meio e fim, como processos
desligados.
A actividade construtiva do animal, segundo esta perspectiva, surge também como
resultado de um processo de desenvolvimento num dado ambiente. Recusa-se a inscrição nos

8
“What does it take for a house to be a home?” (Ingold, 2000b: 185)
9
“We do not dwell because we have built, but we built and have built because we dwell, that is because we are
dwellers…To built is in itself already to dwell… Only if we are capable of dwelling then can we build”. (Ingold,
2000b: 186)

149
genes das expressões construtivas protagonizadas pelo animal, mas assume-se a importância
do contexto que o animal habita. Por exemplo, o castor habita um ambiente modificado pelos
seus antecessores, e irá construir para moldar esse ambiente para os seus descendentes. É
neste ambiente modificado (e em permanente mudança) que as orientações corporais e os
padrões de actividade do castor se desenvolvem.
Tal acontece com os seres humanos. As crianças crescem em ambientes fornecidos
pelo trabalho das gerações anteriores e transportam nos seus corpos as formas da sua maneira
de habitar. Esta informação não está inscrita nos genes, nem é necessário recorrer a uma
explicação cultural como o veículo de transmissão, dada a diversidade de combinações
possíveis de vidas humanas. Neste sentido, a “dwelling perspective” admite o animal-no-seu-
ambiente, em vez de um ser isolado do mundo, dissolvendo as dicotomias entre evolução e
história e entre biologia e cultura. Assim, pondo de parte o conceito de evolução na sua
acepção ortodoxa, e propondo antes uma diferenciação ao longo do tempo nas capacidades e
formas dos organismos, considerando a implicação do ambiente em que se inserem nessa
diferenciação, deixa de ter sentido procurar em qualquer teoria de evolução biológica a
transição do ninho para a cabana.
E se entendermos as variações culturais não como traços de um substrato universal,
mas como conhecimentos diversos promovidos pelos desenvolvimentos diferenciados dos
contextos locais, essas variações passam a ser entendidas como parte e parcela das coisas
vivas em conexão com a rede de relações que as rodeiam. E neste sentido deixa de fazer
sentido a procura, na história cultural, da passagem da cabana ao arranha-céus.
A fechar, Ingold retoma a história da árvore contada por von Uexküll e propõe que a
imaginemos nas imediações de uma casa. Provavelmente à primeira vista não teríamos
qualquer dificuldade em distinguir a casa como um elemento construído e a árvore como um
elemento não construído que simplesmente cresceu ali. Mas relembremos os habitantes da
árvore: a raposa, a coruja, o esquilo, a formiga, o bicho da madeira, entre tantos outros, que
desempenharam o seu papel para que a árvore assumisse a sua forma e proporção. Assim
como os seres humanos que preservaram os limites da árvore (Ingold, 2000b:187).
Na casa existem também vários habitantes não humanos, uns com conhecimento e
consentimento dos humanos – como cães, gatos, pássaros, etc. – e outros que habitam nos
seus recantos e fendas. E todos, das mais variadas maneiras, contribuem para a sua forma
envolvente assim como os humanos, conservando-a, decorando-a, restaurando-a,
modificando-a. Casas e árvores têm as suas histórias de vida, protagonizadas pelas relações
entre humanos e não humanos. Se a impressão humana prevalecer, qualquer característica do

150
ambiente irá parecer-se com uma construção; à medida que essa impressão se vai esbatendo,
cada vez se parecerá menos. A construção não é assim um fim, mas está em constante
realização. E só porque habitamos, construímos.
Em 2005, Vítor Oliveira Jorge, João Muralha Cardoso e Gonçalo Leite Velho
organizaram uma sessão no congresso Theoretical Archaeology Group, em Sheffield
(Inglaterra) intitulada Approaching “Prehistoric Architectures” of Western Europe from a
“Dwelling Perspective”. A publicação dos textos surge em 2006, onde V. O. Jorge, assistido
pelos membros da equipa de coordenação das escavações em Castanheiro do Vento, escreve
um longo texto revelador da influência de Ingold na construção de um discurso acerca das
arquitecturas pré-histórias. Especificamente em relação a Castanheiro do Vento, o autor
dissolve a barreira entre características naturais de um sítio e dispositivos construídos pelo ser
humano. Ou seja, questiona a dicotomia entre Natureza/Cultura e defende que a
“arquitectura” de Castanheiro do Vento não pode ser entendida enquanto um contentor onde
actividades se processaram e materiais se depositaram. Antes acentua a importância da
construção em si (Jorge, V.O. [et al.], 2006: 240).
O texto de Heidegger atrás referido inspirou antropólogos e arqueólogos e foi
proferido no “Colóquio de Darmstadt” (Alemanha) em 1951. O filósofo Ortega y Gasset
também foi convidado e nota o entusiasmo dos jovens arquitectos alemães comprometidos
com a reconstrução da Alemanha. A comunicação de Heidegger, proferido na Alemanha do
pós-guerra destruída pelos bombardeamentos, parece traduzir-se em linhas de alento à
reconstrução de um país. Habitamos e por isso construímos, somos e por isso construímos. É
porque habitavam numa Alemanha despedaçada que a iriam reconstruir. A apresentação do
filósofo espanhol Ortega y Gasset construiu-se, aparentemente, sobre diferentes fundações:
“…no mesmo lugar, a poucas horas de distância e sobre o mesmo tema, Heidegger e eu
dissemos aproximadamente o contrário. Se detrás desta patente contraposição se esconde,
contudo, uma coincidência é coisa que um dia se verá. Mas para já temos que nos ater à
discrepância manifesta.” (Ortega y Gasset, 2009: 119). De facto, o autor espanhol defende que
o ser humano necessita de construir para habitar. Ao contrário dos outros animais que
simplesmente habitam (em condições muito especificas, o seu habitat) o ser humano, pela
técnica, constrói um mundo para viver, já que este na sua essência não é favorável à habitação
do ser humano. Assim, enquanto os animais habitam parcelas específicas do globo terrestre, o
ser humano pode habitar em todas elas. Ortega y Gasset sugere mesmo que um dia, graças à
“técnica”, o ser humano irá viver no mar ou no espaço aéreo. O habitar não é algo inerente à
condição humana, mas algo que no Homem é precedido pelo construir. É pela técnica que

151
aquele consegue habitar. É a criação de utensílios, edifícios, caminhos ou pontes que lhe
permite “humanizar” o espaço. “Daí que, no meu entender, nem o homem constrói porque já
habita, nem o modo de estar e de ser do homem na Terra é um habitar. Parece-me antes que é
totalmente o contrário – o seu ser na Terra é mal-estar e, por esta razão, um radical desejo de
bem-estar.” (Ortega y Gasset, 2009: 129).

Ortega y Gasset refere o estudo etimológico que Heidegger faz da palavra “bauen”.
Salienta que as palavras não valem por si e só inseridas numa frase ou em relação com outras
palavras podem fazer sentido. Sublinha ainda que a raiz da palavra significa algo tão vago
como “ser”. Transcrevemos aqui um parágrafo do texto de Ortega y Gasset pela sua beleza na
análise da também bela intervenção de Heidegger: “Heidegger toma uma palavra – neste caso
bauen (edificar) – e tira-lhe lascas. Pouco a pouco, do minúsculo ventre do vocábulo, vão
saindo “humanidades”, todas as dores e alegrias humanas e, finalmente, o Universo inteiro.
Heidegger, como todo o grande filósofo, deixa grávidas as palavras, e destas emergem depois
as mais maravilhosas paisagens com toda a sua flora e toda a sua fauna. Heidegger é sempre
profundo, e isto quer dizer que é um dos maiores filósofos que houve jamais.” (Ortega y
Gasset, 2009: 115)

Pressente-se também, em Ortega y Gasset, a vontade de reconstruir um mundo


destruído pela guerra, mas de forma colectiva. Para o autor a arquitectura é “uma arte
colectiva. O genuíno arquitecto é todo um povo.” (Ibid: 109). Hoje, a arquitectura não se
define pelas mesmas palavras. No entanto é sempre importante contextualizar as observações
ou as definições ou ainda a forma como se sente a arquitectura. Não é com certeza um
conceito que defina um mesmo edifício, transversal no tempo e no espaço. Ambos os
filósofos, Heidegger e Ortega y Gasset, participaram na discussão da (re)construção da
Alemanha. Tim Ingold, longe deste espaço/tempo, convoca o texto de Heidegger para pensar
também a multiplicidade de vivências e para pensar a ciência tradicional baseada em
dicotomias difíceis de ultrapassar – como Natureza/Cultura – ou na busca das origens, da
primeira cabana, da primeira construção que na história da humanidade marcava o ponto em
que o homem moderno se reconhecia. Esta miríade de questões é essencial para pensar
Castanheiro do Vento.

Pelo estudo de Castanheiro do Vento gostaríamos de propor que não há um antes e um


depois. Um antes habitado e um depois construído. Esta afirmação não encontra contradições
nos textos de Ingold ou de Heidegger. Habitar e construir parecem surgir, por vezes, como

152
duas “acções” passíveis de serem individualizadas. No entanto, o estudo de Castanheiro do
Vento parece chamar as duas premissas, que Ortega y Gasset intuiu já como uma
coincidência: constrói-se porque se habita e habita-se porque se constrói. Porque a construção
não é apenas a construção de casas e pontes. É a construção de um espaço pela própria
habitação. Habitar é construir.
Regressemos à imagem da casa proposta por Ingold para lhe adicionar uma outra
reflexão do filósofo português José Gil:
“Nós temos maneiras diferentes de habitar, porque toda a casa, se bem que marque um
território, vai agir como um corpo, uma espécie de íman sobre todo o território. Um corpo não
existe isoladamente. Há forças que se jogam entre a casa e o território e qualquer coisa no
exterior, que tem de ser comunicado, tem de ser atingido e tem de penetrar neste interior
através de linhas de fuga.” (Gil, 2010: 90)
Ingold tratou a casa como um organismo, Gil como um corpo. Em ambos, a casa é
usada como metonímia da arquitectura. Também Castanheiro do Vento é um organismo vivo,
habitado, construído, permanentemente, pelos arqueólogos, por outros de outrora, pelos seres
não humanos, alguns identificados por nós, outros não, uns consentidos, outros nem tanto.
Como habitantes de Castanheiro do Vento, construímos este espaço. Ou melhor, pela
construção deste espaço (um dos sinónimos da palavra construir em português é interpretar)
habitamos este espaço.

Planeamento funcional ou ausência de plano?

Eduard T. Hall [1986 (1966)] analisou diferentes organizações do espaço (no mundo
animal e humano), no sentido de realçar diferentes formas de estar (uns com os outros, e de
forma interligada no espaço, construído ou não). O caso do Japão surge como exemplo
paradigmático no estudo de outras particularidades do mundo ocidental (em relação aos
modelos de um antropólogo norte-americano), sublinhando os diferentes entendimentos que
fazemos dos espaços que habitamos. Assim, por exemplo, as casas japonesas não são
numeradas pela sua disposição numa rua, sendo os números atribuídos à medida que as casas
se vão construindo. A numeração relaciona-se, portanto, com a antiguidade da construção.
Também as ruas não possuem nomes, mas sim as intersecções entre estas. Neste sentido, E. T.
Hall sublinha que a percepção do espaço é dinâmica porque se liga à acção (Ibid: 135). Os
significados não são estáticos, as percepções sensoriais do espaço diferem de grupo para

153
grupo, de indivíduo para indivíduo. Na mesma linha, o autor refere, seguindo a análise de
Philippe Ariès, que até ao séc. XVIII as divisões das casas europeias não tinham funções
específicas. Não existia o conceito de privacidade como hoje o entendemos e as crianças eram
tratadas como pequenos adultos (Ibid: 123).
Podemos citar como outro exemplo as casas Dogon (Mali) (Oliver, P., 2003). Estas
organizavam-se segundo um modelo antropomórfico (as diversas divisões correspondiam a
partes do corpo humano). No entanto, apesar de este padrão se manifestar materialmente em
diversos espaços habitacionais, em outros existe apenas a memória, “it is the anthropomorphic
symbolism of the entities that matters and not their placement in figurative terms.” (Oliver,
2003:182).
Estes exemplos dados pela Antropologia, longe de nos concederem (aos arqueólogos)
linhas interpretativas para os sítios arqueológicos, revelam a diversidade de formas de
apreensão do espaço. Por outro lado, temos de estar conscientes que os discursos
antropológicos não são neutros nem apresentam uma realidade autêntica, mas apontam para a
interpretação do antropólogo. Contudo, atento a outras narrativas, às múltiplas formas de
estar/entender o mundo, o arqueólogo não pode mais fingir que a interpretação da organização
do espaço no passado pré-histórico se pode fazer por comparação com as representações das
antigas aldeias do mundo ocidental baseadas na agricultura e pastoreio. Neste modelo, temos
sempre representado um núcleo de casas que albergavam unidades familiares mais ou menos
alargadas (casais monogâmicos e heterossexuais, filhos, e avós), unidades destinadas ao
armazenamento de alfaias e bens agrícolas, espaços reservados aos animais domésticos, locais
de transformação (de olaria e de metalurgia) e uma construção reservada ao sagrado (ou, na
ausência de um espaço determinado, confere-se a certos artefactos o carácter de sagrado).
Os sítios arqueológicos como Castanheiro do Vento, agrupados pela escola tradicional
(historico-culturalista e processualista) da Península Ibérica como povoados fortificados,
incluem nas suas explicações, locais com funções bem definidas e permanentes ao longo do
tempo, como: casas, locais de armazenamento, eiras, locais de aprendizagem/iniciação... Esta
organização do espaço pressupõe por parte das comunidades pré-históricas que construíram e
habitaram estes locais um planeamento segundo a lógica moderna ocidental: espaços
organizados, ordenados, adstritos a funções definidas que não sofrem alterações com o tempo.
Segundo Michel Foucault (1991) apenas a partir do século XVIII se assiste (em França) a
uma reflexão por parte dos políticos em relação à Arquitectura. Esta reflexão era concernente
ao que uma cidade deveria ser e como deveriam estar organizados os seus espaços, com vista

154
a evitar epidemias, revoltas e permitir uma vida familiar decente, segundo a moral burguesa
(Foucault, 1991: 239).
Castanheiro do Vento parece exactamente denunciar a impossibilidade de atribuir uma
função a uma estrutura. A mesma estrutura poderá ter diversas apreensões segundo a
comunidade que a habitou, diferentes significados para quem a construiu, e para um mesmo
grupo pode ter sido entendida de diversas formas. Segundo McFadyen (2008), os sítios
arqueológicos aparecem-nos enquanto um processo contínuo e não como um palimpsesto
(onde uma actividade se sobrepõe a outra, eliminando os traços da primeira). Antes pelo
contrário, as diversas actividades misturam-se, entrelaçam-se, “So, as archaeologists, when
we study something we shall be attentive to the multiple relations that made that thing finally
“appear” as focus of our study, including our own methodology that made it occur as it is.”
(Jorge, V.O., 2007a).
A estrutura subcircular A (ou “Bastião” A), que se encontra integrada no Murete 1 (M1),
localizada genericamente no lado norte da estação arqueológica, permitiu a identificação de
microestruturas elaboradas no espaço que se encontra delimitado pelo murete, assim como
estruturas de oclusão. É um espaço que não se apresenta como a materialização de acções
bem definidas protagonizadas no passado, nem permite uma leitura sequencial das várias
actividades, como iremos aprofundar no ponto 9.1. Não é espelho nem representa por si só as
comunidades que o construíram e habitaram. Esta estrutura encontra-se colmatada (Jorge, V.
O. [et al.], 2005), ou seja, o espaço delimitado pelo murete, antes passível de circulação, foi
preenchido por um conjunto organizado de lajes de xisto 10. Muito provavelmente esta
fragmentação da estrutura fez-se acompanhar pela fragmentação intencional de vasos
cerâmicos (Vale, 2003: 143). De facto, num conjunto de fragmentos cerâmicos de recipientes
de grandes dimensões que se encontrava na área sul da estrutura identificaram-se colagens
com outros fragmentos de concentrações próximas, assim como com alguns fragmentos
localizados na área norte da estrutura (Ibid: 141) 11.

10
É de realçar que na literatura arqueológica acerca dos “povoados fortificados” muito se tem dito acerca de
deposições de fundação, mas pouco acerca do fecho das estruturas
11
Retomaremos a análise desta estrutura no ponto seguinte

155
Percursos e movimento

“Architecture will mean little if we only view it in terms of the allocation and the ordering of
space, of the activities which may have occupied those spaces. Inhabited architecture facilitates the
orientation of the body’s movement, it directs progress from one place to another, it enables activities
to be assigned to particular places, it orientates and focuses the attention of the practitioners.
Architecture is therefore used in the structuring of time-space, and the various settings and the
activities which they may contain represent the consumption of time, as does the path of movement
linking these settings.” (Barrett, 1997: 91)

Castanheiro do Vento, como foi desenvolvido no trabalho de J. M. Cardoso (2007), parece


denunciar uma constante reformulação e não permite construir uma narrativa coerente com
espaços, percursos e áreas “de possível ocupação” bem delimitadas. Existe um construir e
reconstruir do espaço, sendo este moldado constantemente. Tomemos como exemplo a
escavação do Bastião S, integrado na segunda linha de murete (M2). Trata-se de uma
estrutura tipo “bastião” de vão aberto onde, no espaço delimitado pelo murete que o define, se
detectou uma estrutura circular. Esta estrutura circular, moldada essencialmente por lajes de
xisto fincadas, “ocupa” grande parte do espaço interno do “bastião”. Parece ter uma entrada
que se encontra direccionada a N.NE, ou seja, voltada para a parede do “bastião”. Esta
situação permite reflectir acerca da mobilidade, percursos e constrangimentos que a relação
destas estruturas denunciam. Admitimos que são coetâneas pois a leitura das relações
estratigráficas e das datas de radiocarbono apontam para uma coerência, ou seja, não foram
detectadas sobreposições nem datas absolutas ou relativas que apontem para diferentes
períodos cronológicos. Parecem remeter para práticas inter-relacionadas, dadas quer durante a
construção ou moldagem, quer no âmbito de circuitos e movimentos que potenciam ou
interditam.

156
Fig. 8.1. Desenho de campo do Bastião S (cujas faces externa e interna aparecem pintadas a amarelo) e
Estrutura Circular 22 (cujas lajes definidoras estão a cor de laranja). Desenho de Bárbara Carvalho, 2006

Assim, podemos equacionar que para se aceder ao interior da estrutura circular era
necessário percorrer uma espécie de corredor estreito (formado pela parede do “bastião” e da
estrutura circular), o que não permitiria um acesso directo a um grande grupo. As barreiras
físicas poderão ser problematizadas aqui enquanto limites; contudo não podem ser
consideradas enquanto elementos fixos e definitivos. A moldagem em terra crua confere
plasticidade às elaborações e reelaborações. Além disso, estes limites (ainda que não
entendidos de forma permanente, pois poderiam estar sujeitos a modificações) não se limitam
às “coisas” físicas que hoje observamos. Os interditos, os percursos, os caminhos, estariam
relacionados com uma multiplicidade de factores que não se plasmam em barreiras físicas 12,
podendo-se ainda equacionar-se que “as barreiras físicas das paredes, uma vez pintadas
desmaterializam-se, funcionando como portais abertos à liberdade imaginária de múltiplos
mundos” (Pinto, 2007: 63).
Pelo andar, os espaços, os encontros entre pessoas e coisas, alteram-se constantemente
(Rendell, 2006: 152). Ir de um sítio para outro, por um percurso definido, permite por
exemplo relembrar espaços e tempos, num diálogo entre passado e presente, apela a memórias
e vivências e pode definir ou redefinir espaços. Neste sentido o sítio adquire significado pela
performance e não pela atribuição fixa de significados por entidades que protagonizaram a sua
12
Como A. T. Santos (2007) aponta para estações de arte rupestre coevas. No caso da estação do Fial (Tondela),
datada de finais do IV/ inícios do III milénio, os caminhos são definidos por um jogo entre a intervisibilidade dos
painéis gravados e um dos distintivos que Heidegger atribui à existência anónima do Dasein – a curiosidade –
sendo algo característico desta o “no limitarse al ver, antes expresar la tendencia a un peculiar permitir que haga
frente perceptivamente el mundo” (Heidegger, 1998: 190, apud Santos, 2007: x, nota 9). É aliás a inexistência de
barreiras físicas um dos aspectos que mais releva o autor na abordagem fenomenológica que faz à estação.

157
origem (o mito do início, o desejo de procurar o princípio de tudo). O acto de andar (o
movimento) transforma constantemente os percursos ainda que definidos, e conexões distintas
podem ser convocadas, pressentidas. Neste sentido, a fixidez a que temos vindo a aludir como
característica de muitas narrativas acerca do passado é novamente equacionada. Com esta
observação, não pretendemos fazer qualquer exercício acerca do que os indivíduos do passado
poderão ter sentido ou visto ao andar por um determinado caminho. Mas pretende-se
sublinhar que os diversos percursos que podem ser enunciados num exercício interpretativo
não são fixos, que o espaço se elabora pelo movimento, pela acção. Pretende enfatizar o
carácter relacional das variáveis plausíveis enunciadas pelo arqueólogo, sublinhar o diálogo,
que em última análise não é mais que o nosso com o sítio.
De forma a desenvolver esta linha de pesquisa é necessário um estudo microestratigráfico
em articulação com a interpretação da posição espacial relativa de cada elemento a fim de
equacionar problemas relacionados com tempos de elaboração e de analisar a relação entre
estruturas construídas, ainda que a cada uma destas não possa ser tomada como uma unidade
estática, que não sofreu remodelações ou que invoque um tempo único. O tempo de duração
não é linear e remete para múltiplos tempos. Como já foi referido, o conceito de transplante
de V. O. Jorge (2009a) é essencial para equacionar outros tempos e lugares dos materiais. Por
exemplo, um fragmento cerâmico faz alusão ao espaço e tempo da extracção, selecção (que
não deveria obedecer apenas aos nossos preconceitos funcionais modernos uma vez que a
escolha encontrar-se-ia ligada a uma rede de outros significados, como Ingold, em texto de
2007, já referiu), ao tempo e espaço da feitura, de cozedura, de múltiplas utilizações, da
fragmentação...
Segundo o filósofo Jacques Derrida (1997: 319), a Arquitectura não pode ficar reduzida
ao status da representação do pensamento. Neste sentido, a Arqueologia não poderá também
pensar a Arquitectura enquanto representação do pensamento do passado pois “o seu presente
nunca se lhes mostrava a eles mesmos como presente compreensível, tal como o nosso
presente que pensamos o presente deles, jamais se nos representa como compreensível,
totalmente abarcável por uma teoria. Há que ultrapassar uma filosofia da representação, que é
uma teologia, uma vontade de recuperar a unidade do sentido” (Jorge, V. O., 2009a).
Considerando ainda as reflexões de Derrida acerca da Arquitectura, as palavras fundação,
super-estrutura ou infra-estrutura são poderosas metáforas que se encontram presentes na
maioria dos discursos, assim como a Torre de Babel é a metáfora arquitectónica para a
explicação da multiplicidade de línguas existentes (Derrida, 1997: 322). A Arqueologia lida
com as fundações, as fundações conectam-se com as origens, com o princípio, e esse foi e

158
continua a ser o objectivo de muitos arqueólogos: enunciar esse princípio (neste caso, por
exemplo, da “aldeia”, da metalurgia, das sociedades hierarquizadas...). O mesmo autor refere
que a Arquitectura não pode ser reduzida a um conjunto de técnicas. É uma forma de escrita,
de inscrição, conectada com a memória, mas sempre de carácter incompleto e fragmentário.
Neste sentido, os traços do passado nunca podem revelar um passado tal como aconteceu,
pois estão incompletos e cortados pelo tempo, uma vez que a História não é linear, lógica ou
coerente, no sentido em que “contains within itself gaps and secrets, ghosts and holes, it can
never tell us who we are” (Dooley & Kavanag, 2007: 4).

Labirinto e imersão

Castanheiro do Vento tem sido entendido enquanto um labirinto, com diversos caminhos e
possíveis percursos interligados (Jorge, V. O. [et al.], 2006). Parece estabelecer um jogo de
aberturas e espaços fechados em que se negoceiam tensões entre espaços estreitos e espaços
amplos, em permanente articulação e tensão (também) com a paisagem envolvente. Segundo
C. Ross (2006), o labirinto é mais um mundo de imersão do que de visão 13 (Ross, 2006:xx).
Neste sentido, o privilégio concedido à visão no estudo destes sítios terá de ser equacionada.
Mas, mais uma vez, a equação deste problema não implica a adopção de uma atitude
fenomenológica inocente, procurando possíveis experiências e sensações, possíveis
percepções pressentidas pelas comunidades passadas. Queremos apenas realçar que
Castanheiro do Vento pode ser equacionado enquanto um dispositivo que absorvia, mais do
que permitia a contemplação de uma paisagem exterior. No entanto não negamos que o sítio
poderia ser considerado enquanto ponto de vigia ou como miradouro (não se pretende um
jogo de opostos, apresentando propostas por oposição a outras).
Walter Benjamin considerou que a Arquitectura absorve o observador, contrariamente
à obra de arte que é absorvida pelo olhar contemplativo do observador (Rendell, J., 2006: 78-
79). No entanto, pela contemplação o indivíduo pode também ser absorvido, por exemplo,
pela obra de arte. É importante realçar a relação dialéctica entre quem vê e quem é observado,
e o retorno do olhar daquele que consideramos apenas como objecto inerte, na con-fusão de
ambos. A imersão não surge como negação de contemplação. Na verdade, a contemplação

13
“The maze is more a world of immersion than one of vision.” (Ross, 2006: xx)

159
pode ser imersão. Segundo Benjamin, a Arquitectura conecta-se com distracção e não com a
concentração que, por exemplo, um quadro exige por parte de quem o vê.
A observação de Benjamin permite-nos pensar acerca quer da importância concedida à
visão pela ciência moderna, quer da necessidade de uma reflexão crítica acerca do
“ocularcentrismo” na representação e colocação de hipóteses acerca do passado. O mundo
moderno ocidental, assente no poder das imagens, parece conduzir à procura de imagens no
passado: a imagem do dia-a-dia, a imagem das cerimónias rituais, a imagem da
intervisibilidade entre sítios… A importância dada à visão na produção de conhecimento em
Arqueologia, insere-se num campo mais vasto (que domina a ciência tradicional moderna, e
que Merleau-Ponty apelidou de “filosofia da visão” (Presnell, M. & Deetz, S., 1996: 306).
Neste contexto, o sujeito (o observador) aparece distanciado do objecto (o observado) 14.
Maioritariamente estudamos os objectos arqueológicos (desde o fragmento cerâmico à
paisagem) através de meios visuais: gráficos, mapas, desenhos, tipologias, plantas, como já
foi mencionado. Destinam-se à percepção visual. Contudo, esta observação não implica
renunciar ou desvalorizar os métodos de registo assentes na visão (seria impossível); são
meios essenciais para pensar acerca de possíveis práticas passadas assim como para reflectir
acerca da interacção do arqueólogo com o sítio arqueológico. Por exemplo, a planta de
Castanheiro do Vento, enquanto dupla construção do arqueólogo (pela escavação e pelo
desenho) permite-nos equacionar possíveis movimentos e circuitos, assim como é a planta do
sítio que de forma mais clara nos transmite a ideia de labirinto.
Castanheiro do Vento como um labirinto e como espaço(s) de imersão, apela para a
reflexão acerca de jogos de luz, de entradas, de rasgões, do jogo entre a sombra, a penumbra e
a claridade. A intensidade e ângulo da luz, natural ou artificial, interfere na percepção de
texturas, materiais, cores. A existência de aberturas, entradas ou janelas rasgadas nas paredes
de terra crua de Castanheiro do Vento, impele-nos a pensar acerca da multiplicação de
contactos (por exemplo, visuais) ou de movimentos. Possibilita questionar os espaços limite,
pois a existência, por exemplo de uma abertura tipo janela, diluía um limite físico ou
acrescentaria um interdito. Os efeitos de luz permitem a transfiguração de espaços, a sua
própria dimensão e textura.
Foram identificadas 14 entradas em Castanheiro do Vento. Segundo J. M. Cardoso (2007),
dividem-se em cinco tipos tendo em consideração a sua elaboração (por exemplo, existência

14
É comum nas metáforas utilizadas em Arqueologia utilizar a visão referente ao papel do sujeito: “ver com
outros olhos” “ter uma visão diferente”. Contudo, quando se procura a interacção com o objecto, normalmente
registam-se expressões como “é necessário deixar o sítio falar” ou “é necessário ouvir o que o sítio tem para nos
dizer”.

160
ou não de patamares de acesso, estreitamento do vão de passagem, entre outros aspesctos).
Contudo, o autor nota grande variabilidade morfológica destas interrupções no murete e
destaca a possível relação existente entre 4 passagens (duas no M2 e outras duas no M3), que
se localizam a pouca distância e mostram uma certa simetria (Cardoso, J.M., op.cit.:200-211).
Contudo, a localização das entradas não sugere o acesso directo ao recinto mais interno do
sítio (Recinto Principal). As aberturas localizadas nos diferentes muretes parecem antes
sugerir percursos, mais longos e labirínticos, que condicionavam o acesso ao recinto
principal. No entanto, devemos ter em atenção que estas entradas poderiam não ser
contemporâneas e a possível existência de outras abertura alteraria os possíveis percursos e
movimentos, alteraria o jogo de tensões entre dentro e fora. S. O. Jorge discutiu já o “jogo
cénico implícito na presença/ausência de “entradas”” (Jorge, S.O., 2005: 131), apresentando
possíveis momentos de contemporaneidade entre estas estruturas, ressalvando, contudo, que
se tratava de um exercício teórico, pois o registo arqueológico é opaco (Ibid:132). No entanto,
esta discussão permite-nos reflectir sobre práticas construtivas do murete, de oclusão ou de
abertura, em articulação com outros materiais e outras estruturas de base pétrea. Permite-nos
pensar acerca da multiplicidade de movimentos e de acessos (sempre condicionados) a um
reduto que se encontrava delimitado por muretes de forma tendencialmente circular.

“Sentir-se em casa”

Como referimos logo na abertura deste trabalho, e na esteira de um conjunto de autores, a


origem não é o princípio. A origem é quando algo começa a ser, o que não se pode relacionar
com nenhum ponto fixo no tempo e no espaço nem representar por uma única imagem.
Castanheiro do Vento não é a origem nem resultou na origem de, mas é algo que começou a
ser. Provavelmente, várias comunidades começaram a reunir-se na e pela Arquitectura, que
hoje interpretamos. Nas palavras de W. Benjamin:
“It’s not what is past casts its light on what is present, or what is present its light on what
is past; rather; image is what wherein what has been comes together in a flash with the
now to form a constellation. In other words, image is dialectics at a standstill. For while
the relation of the present to the past is a purely temporal, continuous one, the relation of
what-has-been to the now is dialectical: is not progression but image, suddenly emergent.”
(Benjamin, 1999: 462)

161
Pensar a Arquitectura não se pode dar apenas através da análise das unidades
construídas, mas deve chamar ao discurso arqueológico as práticas, os movimentos, as
percepções, a multiplicidade de histórias, a acção contínua pela qual se garante ou se perturba
ou inverte a coesão social. Estes diversos grupos, ainda não completamente sedentários e que
poderiam viver nos vales (da Ribeira da Teja, por exemplo) poderiam encontrar em
Castanheiro do Vento um espaço de reunião, espaço em permanente elaboração onde se
empreendiam múltiplas acções. Claro que não seria um espaço apartado, mas fazia parte das
vivências destas comunidades. Seria um espaço onde os diversos grupos se sentiam em casa.
Não numa casa entendida como um espaço doméstico ocupado por uma família e da esfera do
privado, mas como um espaço com o qual se identificariam, no qual se reuniriam e sentiram
como seu. Castanheiro do Vento, como um conjunto de práticas que se materializaram num
espaço e que coloca em diálogo diversos tempos, é um sítio onde também nós nos sentimos
em casa, na sua irredutível estranheza... Pois emerge do diálogo com um passado que não nos
é familiar.

162
9. Arquitectura como prática construtiva

“É verdade, os livros ainda não estão nas prateleiras, não os envolve ainda
o tédio silencioso da ordem. (…) Peço-vos apenas que me acompanhem nesta
desordem de caixotes abertos.” (Benjamin, 2004: 207)

9.1. Que espaços constroem os “bastiões”? 1

“Writing the past is an endless task, but one in which each act of putting
pen to paper is recognized as a failure to fully articulate difference”
(Thomas, 1999: 6)

Neste texto apresentamos a análise de quatro unidades arquitectónicas


tradicionalmente apelidadas de “bastiões”, todas localizadas na primeira linha de murete
(M1). Estas estruturas foram alvo de estudos individuais (Vale, 2003; Borges, 2003; Barbosa,
2003 e Gaspar, 2004) e equacionados num trabalho de investigação à escala do sítio (Cardoso,
2007). O principal objectivo deste estudo prende-se com a análise integrada dos sistemas
construídos e do conjunto de materiais que foram exumados durante a escavação de cada
estrutura. Cada unidade é encarada não como contentor de materiais ou apenas como palco de
diversas actividades, mas enquanto possibilidade de questionar práticas de construção e de
vivências destas mesmas estruturas. Parece-nos que a divisão entre arquitectura e a designada
“cultura material” se arrisca a perder tempos de duração e interrompe a relação existente entre
os materiais arqueológicos — como fragmentos cerâmicos e peças líticas — e as lajes de xisto
que definem hoje as infra-estruturas destas estruturas. Permitirá a especificidade de cada
estrutura desmistificar a aparente homogeneidade do grupo “bastiões”? Ou, como alerta
Thomas na citação inaugural, a própria tentativa de colocar em palavras, a tentativa de
construir um discurso, é já o reconhecimento da impossibilidade de articular a diferença, ou
seja, é já a domesticação do passado.
As unidades subcirculares integradas nos muretes que delimitam os recintos do IIIº
milénio peninsular são convencionalmente interpretadas como “bastiões”. Segundo o
Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2002), bastião ou bestão, é uma “obra de

1
Uma versão deste estudo encontra-se publicada em Gallaecia 29, 2010, 45-62 com o título “O sítio
arqueológico de Castanheiro do Vento (V.N. de Foz Côa, Nordeste de Portugal). Estudo comparativo de um
conjunto particular de elementos arquitectónicos.”

163
fortificação constituída por um avançado para artilharia com dois flancos e duas faces ligadas
às cortinas da fortaleza ou praça por dois dos seus lados” (p. 533). Os bastiões integram assim
a caracterização dos aparelhos defensivos que definem estes sítios enquanto fortificações. No
ponto seguinte tentaremos problematizar a sua definição enquanto “povoados”, explicação
que tem por base a presença do que tradicionalmente se interpreta como “estruturas
domésticas” ou materiais conectados com a vida de todos os dias.
Recentemente, a propósito do estudo do sítio arqueológico de Penedo do Lexim, A.
Sousa (2010) desenvolve a problemática questão acerca do binómio fortificação/povoado,
explicação tradicional para os sítios murados calcolíticos peninsulares. Neste sentido,
apresenta a definição de bastião (começa por chamar a estas unidades “elementos
proeminentes”) e questiona a sua funcionalidade defensiva, tendo também em consideração
outros elementos do chamado “aparelho defensivo”: a delimitação externa (fossos e muros) e
as portas (ou elementos de controlo de acessos). A autora escreve: “Para Penedo do Lexim,
parece clara a função ofensiva / defensiva mas é evidente que estas estruturas [bastiões], que
se entrosavam na muralha seriam espaços “nobres” na área ocupada.” (Sousa, 2010: 541).
A argumentação conduz a autora a defender o modelo de “povoado fortificado” para a
explicação de Penedo de Lexim, na medida em que o aparelho defensivo/ofensivo poderia ser
utilizado para dissuadir, para ostentar, e os elementos proeminentes (bastiões) poderiam ter
sido usados enquanto unidades domésticas. A. Sousa reconhece que a explicação destes sítios
como fortificações reduz o leque interpretativo e parece acentuar o carácter residencial dos
mesmos. Neste sentido, sublinha que as áreas nobres do povoado, interpretadas como
estruturas defensivas/ofensivas são também e sobretudo espaços domésticos. Apesar de a
autora questionar a visão tripartida de fortificação/povoado/lugar ritual, segue este esquema
na análise dos recintos murados.
A interpretação das protuberâncias na parede (Jorge, V.O. [et al.], 2006) ou dos
elementos proeminentes (Sousa, 2010), ou apenas de estruturas subcircular ou bastiões, tem-
se dividido entre explicações de cariz militar ou de carácter doméstico. Como enunciamos,
estas duas funções são apontadas por alguns investigadores como coetâneas, ou seja, uma
unidade tipo bastião pode encerrar funções defensivas e domésticas num determinado
momento, ou segundo alguns autores, estas duas funções encontram-se conectadas com fases
de ocupação distintas no sítio. Veja-se por exemplo o caso de Leceia e do Fortim 1 de Los
Millares, nos quais as unidades tipo bastião são interpretadas numa primeira fase enquanto
dispositivos defensivos e posteriormente ocupadas como áreas residenciais (ou de iniciação
no caso do Fortim 1) quando a necessidade defensiva do sítio já não era necessária.

164
A análise de quatro unidades tipo bastião em Castanheiro do Vento procurará fugir à
dicotomia explicativa destes dispositivos (para defesa ou como unidades residenciais) assim
como problematizar a indexação de funções ou actividades específicas para estas unidades.
Antes de proceder ao estudo da componente construída e dos materiais identificados,
começamos por falar acerca da história da investigação de cada unidade.

Bastião A Bastião B

Bastião C Bastião D
Fig. 9.1.1: pormenores das quatro unidades tipo Bastião em estudo.

O “Bastião” A foi escavado em 1999 e 2000 e


o seu estudo foi apresentado numa tese de Mestrado
(Vale, 2003). Neste trabalho foram analisados quatro
momentos estratigráficos individualizados e
registados durante a sua escavação. Seguindo a
cronologia do processo de escavação, foram
identificados dois níveis pétreos de fecho da estrutura
(de colmatação). O primeiro nível era caracterizado
por um conjunto de lajes de xisto azul (matéria-
Fig. 9.1.2 Colmatação do “Bastião” A – 1.º
nível. prima não local) dispostas de forma tendencialmente
circular. Após o desmonte deste nível pétreo foram recolhidos fragmentos cerâmicos,

165
concentrados maioritariamente na área sul do interior da
estrutura, os quais, posteriormente se verificou, colavam
com fragmentos cerâmicos que se encontravam no seio
de outros conjuntos, nomeadamente os identificados na
parte oriental do espaço interno do “bastião”
O segundo momento pétreo era composto por
lajes e blocos de xisto local, e a sua disposição formava
um denso nível pétreo. O terceiro momento a ser
identificado era definido por um depósito caracterizado
Fig. 9.1.3: Colmatação do Bastião A – 2.º por um sedimento argiloso (camada 3) conectado com
nível.
um pequena estrutura delineada por elementos de
dormentes de moinhos manuais em granito e uma laje de xisto. Neste nível, as colagens
obtidas resultaram de fragmentos cerâmicos da mesma concentração e os materiais
coordenados registaram-se apenas no lado oriental do interior da estrutura. Por fim, foi
escavado um nível de sedimento argiloso compacto de
nivelamento do solo para assentamento da estrutura. O
“Bastião” A possui um vão de passagem estreito que
dá acesso a uma área interna de 6,38 m2 (Cardoso,
2007: 269). Na esteira das linhas interpretativas
sugeridas por S. O. Jorge (2005) para alguns contextos
do sítio de Castelo Velho de Freixo de Numão, a
interpretação avançada em 2003 (Vale, 2003) propunha
uma fragmentação intencional dos fragmentos
Fig. 9.1.4: Representação da pequena cerâmicos, manipulados num contexto social
estrutura circular situada no interior do complexo. Mais tarde, J.M. Cardoso através da análise
“Bastião” A
das datas de 14C, sugere que o interior do “Bastião” A
foi um “espaço utilizado e reutilizado constantemente e um espaço ordenado e reordenado
frequentemente.” (Cardoso, 2007: 272), ainda que não descarte por completo a ideia de
deposição intencional ou fractura intencional de vasos cerâmicos, práticas sugeridas por
outras interpretações efectuadas em diferentes contextos arqueológicos e etnográficos (Ibid:
273-274). Este ponto será desenvolvido mais à frente neste texto, discutindo-se aí a ideia de
deposição no contexto do conjunto de unidades que pretendemos aqui discutir.

166
O “Bastião” B foi
escavado em 2000 e 2001 e o
seu estudo apresentado em
2003 (Borges, 2003). A sua
forma oval resulta de uma
reestruturação desta unidade até
à linha basal. “ A sua parede
Norte parece ter sido
reconfigurada e espessada,

Fig.9.1.5: Vista do “Bastião” B. Fotografia de Leonor Sousa Pereira


desde a base, e a sua parede Sul
foi estreitada, detectando-se
uma pequena passagem, muito destruída por uma provável estrutura de combustão datada de
meados do 1º milénio Cal B. C.” (Cardoso, 2007: 274). O estreito vão de passagem dá acesso
a uma área de 6,09m2 (Ibid: 274). A sua escavação permitiu, tal como no Bastião A, detectar
um nível de colmatação ao qual se encontrava associado um conjunto de lajes de xisto
afeiçoadas (tipo “estela”) dispostas na vertical (tendo em consideração o seu eixo maior) e
viradas a leste. Após o desmonte deste nível pétreo foi detectado um depósito de sedimento
argiloso de cor amarela (camada 3), com fragmentos cerâmicos, peças líticas e barro de
revestimento. A linha basal assentava num depósito de matriz argilosa, também de cor
amarela, muito compacto. Neste nível foi identificado um buraco de poste e uma possível
14
fossa que perfuravam o substrato rochoso. Cardoso, analisando a datas de C disponíveis
para esta estrutura propõe que o espaço tenha sido “sistematicamente “limpo”, utilizado e
reutilizado” (Cardoso, 2007: 277).
O “Bastião” C foi escavado
durante as campanhas de escavação de
2001 e 2002. A escavação desta
estrutura não atingiu o substrato
geológico. No entanto, a estrutura foi
escavada até ao seu nível basal, tendo
os resultados da análise de materiais
sido apresentados em 2003 (Barbosa,
2003). Como já foi descrito nas
Fig. 9.1.6: Pormenor do “Bastião” C
estruturas tipo “bastião” anteriores,
também esta unidade se encontrava colmatada por um nível de lajes de xisto associadas,

167
muito provavelmente, a uma estrutura subtriangular e a uma laje de xisto afeiçoada (tipo
“estela”) colocada em posição vertical. O desmonte do nível de oclusão permitiu escavar um
depósito argiloso de cor amarela com abundantes fragmentos cerâmicos e peças líticas
(camada 3). Foram ainda detectados três depósitos estratigraficamente anteriores à estrutura
em si. Ao contrário das outras duas unidades atrás mencionadas, o “Bastião” D não apresenta
um vão de entrada definido, e caracteriza-se por uma forma subcircular.
O “Bastião” D foi escavado em 2002 e 2003, e o seu estudo apresentado em 2004
(Gaspar, 2004). À semelhança do anterior, possui uma
forma subcircular e encontrava-se colmatado por um
nível de lajes de xistos dispostas obliquamente.
Contudo, esta estrutura de oclusão não ocupava toda a
área interna do “bastião” tal como foi verificado nas
outras unidades. Após a remoção deste nível foi
detectado um depósito caracterizado por sedimentos de
matriz argilosa de cor amarela (camada 3), ao qual se
conectam estruturas de pequena dimensão: uma
estrutura subcircular delimitada exclusivamente por
cinco elementos de dormente em granito
(imediatamente ao lado encontravam-se sobrepostos

Fig. 9.1.7: Desenho de um dos momentos dois elementos de dormente em granito de grandes
do “Bastião” D dimensões), uma bolsa de terra escura assente numa
laje de xisto — interpretada como uma lareira — e dois pequenos arcos definidos por
pequenas lajes e blocos de xisto. No interior do murete que conforma o arco de círculo que
caracteriza a estrutura foram identificados restos faunísticos associados a um fragmento de
cerâmica e a um outro de granito. Segundo C. Gaspar, não foram registadas concentrações de
materiais (Gaspar, 2004: 58). Contudo, avança a possibilidade de que poderemos estar face a
um contexto onde se regista uma fragmentação intencional de recipientes cerâmicos e a sua
manipulação social, práticas não detectada ao nível das concentrações cerâmicas, mas ao nível
de uma possível “selecção” dos materiais (Ibid: 62). Sugere ainda a leitura da estrutura de
condenação como deposição (Ibid: 64), facto que também é assinalado ao longo do trabalho
de J.M. Cardoso (2007), quando este autor se refere, por exemplo, a estruturas de condenação
ou a marcadores espaciais.
Uma primeira tentativa de lançar um olhar de conjunto sobre estas estruturas recai
forçosamente na sua “forma arquitectónica”: estruturas subcirculares, interpretadas na

168
literatura arqueológica como “bastiões”. A uma escala de análise ampla — ou seja, referente à
do sítio arqueológico — J.M. Cardoso sublinha que “Uma primeira constatação relaciona-se
com a existência de um ritmo “padronizado” nos elementos constituintes da planta geral;
segmentos de murete, estruturas subcirculares, passagens, estruturas circulares, englobados
numa ideia de linhas curvilíneas” (Cardoso, 2007: 106). Seguindo o autor, a existência de um
“ritmo padronizado” não escamoteia a grande diversidade construtiva detectada na análise a
escalas mais pequenas, tanto ao nível de técnicas de fazer como de materiais empregues (e
conjugação dos mesmos). Na mesma linha pensamos que, a uma ampla escala de análise, os
“bastiões” em estudo poderão ser agrupados enquanto estruturas semelhantes. Contudo,
poderão indiciar práticas e movimentos diferenciados, apesar de estarem interconectados
como pontos nos circuitos que o sítio de Castanheiro do Vento promovia.
Ao reduzir a escala, focamos os materiais recolhidos (aqui tomaremos apenas em
conta os identificado na chamada camada 3 — ou seja, num depósito caracterizado por
sedimentos de matriz argilosa). O número total de fragmentos cerâmicos é
surpreendentemente semelhante nas quatro estruturas. “Bastião” A: 1536; “Bastião” B: 1112;
“Bastião” C: 1093 e “Bastião” D: 1229. Os fragmentos cerâmicos são na sua maioria
provenientes do bojo da peça (a percentagem relativa à presença de bordos situa-se entre os
4,2% e os 8,5%). A comparação percentual entre fragmentos lisos e decorados também não
apresenta diferenças significativas entre as quatro estruturas.

Gráfico 9.1. 1. Relação de fragmentos cerâmicos lisos/decorados nas quatro estruturas em números percentuais.

A decoração é predominantemente conseguida através da técnica de impressão


penteada (do total de fragmentos cerâmicos decorados, 93,2% têm presente a técnica de
impressão penteada no “Bastião” A, 91,2% no “Bastião” C e 89% no “Bastião” D).

169
Gráfico 9.1.2. Relação de fragmentos cerâmicos decorados com a técnica de impressão penteada em três das
estruturas estudadas em números percentuais.

Em relação à utensilagem lítica, a escavação de todas as unidades mostra a presença


de percutores em quartzo, elementos de moinho em granito (dormentes e moventes) e peças
talhadas em quartzo. Os únicos utensílios detectados são uma lamela (“Bastião” B) e oito
raspadeiras (3 no “Bastião” A, 2 no “Bastião” B, 1 no “Bastião” C e 2 no “Bastião” D). É de
referir que não foram encontradas pontas de seta ou qualquer objecto em metal. O estudo dos
fragmentos ósseos (Costa, 2007) revelou a grande fragmentação dos mesmos (o que dificulta
a identificação de espécies e, por isso mesmo, poucos exemplares permitiram a identificação
taxonómica), tendo a autora detectado que a grande maioria se encontrava calcinada.
Esta primeira abordagem comparativa realça as semelhanças presentes nestes
contextos. Os números atrás referidos parecem indicar uma certa homogeneidade e monotonia
do ponto de vista dos materiais que compõem e estruturam estas unidades. Contudo, uma
análise mais detalhada dos materiais parece indicar certas especificidades. Ao nível da
decoração cerâmica apenas o “Bastião” A apresenta decoração com pastilhas repuxadas; a
técnica de puncionamento apenas está presente nos “Bastiões” A e D; o “Bastião” C é o único
contexto que forneceu fragmentos cerâmicos decorados com linhas incisas e o espatulamento
surge melhor representado nos “Bastiões” A e B. A relação e número de dormentes e
moventes varia também de forma considerável em todas as unidades. O “Bastião” A e o D
apresentam grande contraste em relação à quantidade de dormentes/ moventes: no “Bastião”
A registaram-se 15 dormentes, inteiros ou fragmentados, e apenas 2 moventes; no “Bastião”
D identificaram-se 20 dormentes, inteiros ou fragmentados, e apenas 6 moventes. O “Bastião”
B e o C registam um número inferior de elementos em granito, apresentando o “Bastião” B

170
igual frequência de dormentes e moventes (número de 6) e o “Bastião” C a mesma tendência
identificada nas unidades A e D, ou seja, o número de elementos de dormente é superior ao de
movente, ainda que a sua presença não seja tão acentuada como nas outras duas estruturas (6
dormentes, inteiros ou fragmentados, e 3 moventes).

Gráfico 9.1.3. Relação entre elementos de moinhos manuais em granito — dormentes e moventes — nas quatro
estruturas, em números absolutos.

Também os líticos talhados se distribuem de forma diversa. Por exemplo, o “Bastião”


B é a unidade com mais lascas retocadas mas aquele que forneceu menos lascas sem retoque,
as quais marcam uma presença efectiva nas restantes unidades. O “Bastião” D destaca-se pela
presença elevada de núcleos (com números muito baixos nas restantes unidades).

Gráfico 9.1.4. Relação entre elementos de pedra lascada nas quatro estruturas em números absolutos.

Do conjunto da utensilagem lítica, os únicos exemplares de pedra polida foram


registados no “Bastião” A (uma enxó) e no “Bastião” C (um polidor). Atendendo ainda à
presença/ausência de materiais, o “Bastião” B e o C registam respectivamente 1 e 2 contas de

171
colar. O “Bastião” A regista ainda 6 pesos de tear, enquanto que, nos “Bastiões” C e D,
apenas se identificaram fragmentos de pesos de tear (2 em cada um). Lançando um outro
olhar aos restos faunísticos, detectamos espécies específicas em cada bastião, assim como
diferentes partes anatómicas (Quadros 1 e 2). Contudo, não podemos esquecer que “os
principais agentes responsáveis pelo padrão de representação anatómica no acervo são os
agentes diagenéticos e erosivos em geral.” (Costa 2007: 124).

Quadro 9.1.1. Distribuição das espécies animais nas 4 estruturas “tipo bastão”. A partir de Costa, C., 2007: 106.

Quadro 9.1.2. Distribuição das partes anatómicas nas 4 estruturas “tipo bastão”. A partir de Costa, C., 2007: 107.

Os últimos três parágrafos permitem-nos reflectir acerca dos parâmetros que usamos
para reflectir acerca das unidades que estudamos. Se é certo que o primeiro nos fala acerca da
homogeneidade das “materialidades” em estudo, os dois últimos denunciam as
especificidades detectadas em cada uma destas estruturas. Se o primeiro nos permite analisar
o conjunto dos “bastiões” como unidades construídas semelhantes, os restantes põem em
causa a elaboração de uma interpretação geral. Neste momento colocam-se um conjunto de
questões: Poderão os bastiões ser tratados como um grupo homogéneo? As especificidades
registadas poderão estar relacionadas com práticas distintas? Serão estas práticas geradoras de
diferentes espaços? Que espaços formam e/ou modificam? Com estas questões em mente, o
primeiro passo passa por indagar acerca das diversas relações entre materiais a diferentes
escalas. O “Bastião” A e o “Bastião” D apresentam um elevado número de dormentes em

172
relação às outras duas estruturas e em relação ao outro elemento que com o primeiro faz
conjunto para formar um moinho manual — o movente. Estes elementos de dormentes
presentes nas estruturas A e D fazem parte do que foram designadas como microestruturas.
Encontram-se na sua maioria numa posição vertical e com a superfície activa voltada para o
interior dessas mesmas estruturas. No caso do “Bastião” A, a microestrutura de elementos de
granitos localiza-se praticamente encostada à parede do canto sudeste, junto da entrada que dá
acesso ao seu interior. Na estrutura D, a microestrutura constituída por dormentes localiza-se
genericamente no centro; foram ainda registados junto à estrutura referida dois elementos de
dormente em granito de grandes dimensões. No caso do “Bastião” A, a microestrutura foi
relacionada com um conjunto de materiais, nomeadamente com fragmentos cerâmicos, uma
enxó depositada no centro do “bastião”, quatro pesos de tear, um movente e uma placa de
xisto afeiçoada. Estes materiais foram registados sensivelmente à mesma profundidade, e a
interpretação dada à dispersão de materiais verificada foi a de deposição intencional (Vale,
2003: 143-145). Em relação ao “Bastião” D, a estrutura de moinhos manuais não foi
relacionada com nenhum nível de deposição de materiais como fragmentos cerâmicos, mas é
sugerido que se interliga com a escolha deliberada de matérias que foram intencionalmente
colocados no interior do “bastião”, ainda que a sua distribuição aparentemente não reflicta a
sua deposição intencional em locais específicos. No entanto, a estrutura de moinhos está em
relação com outras unidades: uma possível lareira e estruturas em arco de difícil interpretação
(Gaspar, 2004).
As microestruturas, as estruturas de condenação, os materiais “mais pequenos”, os
muros, as passagens — estreitas ou abertas —, as lareiras e ossos de animais, potenciam e
invocam movimentos. Impõe-se que se questionem como possíveis limitações ao corpo ou
como rasgões na impossível enumeração de movimentos possíveis e plausíveis. Porque uma
parede é muito mais que uma barreira física, pode conectar o sítio com a “paisagem” pela
existência de uma “abertura”, pode remeter para outros espaços e tempos pela existência de
pinturas ou gravuras, pode invocar diferentes estados de espírito e apreensão do espaço pelos
jogos de luz. E os limites são muito mais que uma parede. Podem estabelecer-se em linhas
não materiais, podem apenas repousar no dito; mas não será devido a este facto que não são
tão presentes, ou tão visíveis, aos olhos de quem partilha essa informação. Contudo, nos
“Bastiões” A e D, em determinado momento, os moinhos manuais enformavam/deformavam
espaços e condicionavam os passos. A existência destas unidades em granito pressupõe
práticas distintas (em algum momento) das levadas a cabo nas outras duas unidades (contudo
não se pode excluir que estas possam ter tido também, em determinado momento, estruturas

173
semelhantes. De facto, como referimos atrás, o que chegou até nós não é uma fotografia do
passado onde apenas faltam os intervenientes). Também podemos chamar a atenção para o
caso das aberturas que dão acesso ao interior destas unidades: vão estreito nos “Bastiões” A e
B; e vão aberto nas unidades C e D. Que circuitos, que caminhos, que audiências, que gestos
podem estes diferentes acessos convocar? Qual a visibilidade do e para o interior de cada
unidade? Qual o número hipotético de pessoas que poderia entrar ou “assistir”, “ver” o espaço
delimitado pelas paredes do “Bastiões”? Estariam em relação com outras aberturas nas
paredes, como janelas? Parece-nos sobretudo um jogo de possíveis movimentos e práticas, um
jogo de luz e de visibilidades, um jogo labiríntico de múltiplos percursos e alternativas
interpretativas.
Estas microestruturas poderão ser consideradas enquanto deposições de materialidades que
condicionam movimentos e geram espaços?
Pollard sublinhou que “In the case of deposition we are looking at the knowledgeable
employment of material culture which drew upon culturally specific understandings of the
way world should be” (Pollard, 2001: 318) e destacou as características presentes nas
materialidades usadas nas deposições: cor, textura, forma e composição. Salientou ainda a
necessidade de pensar acerca da própria linguagem corporal, dos gestos, audiências e
intervenientes envolvidos na performance da colocação deliberada de certas materialidades
em espaços específicos. Consideramos como deposição a colocação deliberada de certas
materialidades em locais específicos. Contudo, realçamos que cada unidade deve ser estudada
na sua especificidade, na sua relação com o conjunto das outras unidades presentes. Também
não cremos que a palavra deposição esteja ligada apenas a “contextos especiais” e a objectos
especiais ou apenas a um conjunto específico de materiais. Neste sentido, as estruturas de
elementos de dormentes em granito podem ser consideradas enquanto deposições, que criam
espaços e condicionam os movimentos. Cremos que com este exemplo é possível, à escala do
sítio de Castanheiro do Vento, olhar para as estruturas enquanto deposições e, nesse sentido,
quebrar a barreira que parece existir entre deposições e elementos construídos. Na verdade,
esta dicotomia manter-se-á enquanto, como até aqui se tem sugerido, os elementos
construídos forem vistos como meros contentores de deposições de outras materialidades.
Esta abordagem permite equacionar as relações entre diferentes “estruturas” (ou diferentes
estruturações de materiais), ao mesmo tempo que tenta invocar num mesmo discurso um
conjunto diferenciado de práticas e movimentos ao longo da vida do próprio sítio
arqueológico. É um pensar na ambiguidade do discurso: a arquitectura não é percebida

174
enquanto um objecto mas o seu estudo em Arqueologia faz-se irremediavelmente pelos
objectos.
Diferentes tempos são convocados, mesmo pelas próprias características das
materialidades, fragmentos cerâmicos, ossos de animais, paredes em pedra e argila… Há um
contínuo processo de construção, de fazer e percepcionar espaços, do que poderíamos chamar
um processo contínuo de habitar. Na maioria dos casos estamos perante um complexo
conjunto de práticas que se misturam no tempo (não têm obrigatoriamente que ser
sequenciais) e se (con)fundem. Tal como V. O. Jorge salienta, “as archaeologists, when we
study something we shall be attentive to the multiple relations that made that thing finally
“appear” as focus of our study, including our own methodology that made it occur as it is.”
(Jorge, V.O., 2007:xxx). Poderíamos aqui questionar se alguns dos fragmentos cerâmicos
identificados durante o processo de escavação do interior das estruturas em análise não seriam
resultado da própria ruína das paredes elaboradas em terra crua, na medida em que esta
técnica obriga a que a terra utilizada na construção seja misturada com desengordurantes,
como fragmentos cerâmicos. Esta cerâmica apresentar-se-ia mais erodida e seria de pequenas
dimensões. No entanto, não foi possível sistematizar/cruzar esta informação através dos dados
apresentados pelos autores que estudaram as quatro estruturas em análise. Contudo, todas as
unidades registam barro de revestimento com negativos de ramos no seu interior. Mas,
atendendo ao facto que estas estruturas se encontravam colmatadas ao nível da infra-estrutura
em pedra, teriam os “bastiões” sido condenados já com as suas paredes em ruína? Ou a
oclusão do seu espaço interno pressupõe a destruição deliberada dessas mesmas paredes pelas
comunidades pré-históricas?
Deixando estas questões/hipóteses interpretativas em suspenso, a oclusão destas
estruturas parece remeter efectivamente para uma reestruturação da estrutura, não encarada
como um acto de abandono, mas como uma outra forma de habitar, de construir, de fazer e
refazer aquele espaço. Este(s) momento(s) podem ser entendidos como uma reconstrução da
estrutura, em relação com todos os momentos de construção/deposição das mesmas. Não nos
parece plausível o estudo da construção e oclusão da estrutura como dois momentos
sequenciais, situados no tempo cronológico, como momentos de “nascimento” e “morte” na
história biográfica da estrutura (aspectos que já tivemos oportunidade de desenvolver). A sua
condenação parece sugerir imagens ligadas à renovação e não ao seu abandono. Renovação
enquanto estrutura, enquanto palco, em que se convocam outros tempos e espaços, pois o
fazer e refazer destas estruturas aporta outras histórias, outras memórias, e outra escala. A
fragmentação e a reorganização de materiais invocam novas conexões. Como assinala

175
Barrett, “Individuals literally rediscovered or reworked the order of their own world through
the practices of their own lifes” (Barrett, 1999: 63). É pelo fazer e refazer que estas
comunidades trabalhavam identidades colectivas, coesão social, estabeleciam (ou quebravam)
regras e normas de vivência comunitária. Seriam práticas que funcionariam como ferramentas
mnemónicas das suas histórias, da sua identidade, do seu passado e se projectavam no futuro.
No entanto, ainda não questionámos um ponto fundamental: como se articulam estas
estruturas condenadas com o resto do sítio de Castanheiro do Vento? Apenas as estruturas
tipo “bastião” do Murete 1 e do Recinto Anexo se encontram colmatadas por níveis pétreos.
Que implicação tem este facto nos circuitos possíveis em Castanheiro do Vento? Que “novos”
movimentos/caminhos/práticas pressupõe? Terá a construção das unidades da primeira linha
de muretes envolvido já a sua colmatação e a destruição das suas paredes? Tal como o vaso
não é feito para se quebrar, diversas razões poderão estar na base do refazer destas unidades.
No entanto, em Castanheiro do Vento lidamos apenas com fragmentos — de vasos, de
muretes, de “bastiões” — e só um olhar atento a cada unidade poderá criar histórias sobre o
sítio a diversas escalas.
As estruturas integradas no M1 e Recinto Anexo foram intencionalmente fragmentadas e
o seu espaço transformado por oclusão. Terá esta acção destruído a sincronia que poderia
existir com as outras estruturas morfologicamente semelhantes? Possivelmente a oclusão das
estruturas tipo “bastião” do M1 alterou a relação estrutural entre muretes, modificando
percursos e actividades. Contudo, as acções empreendidas e possíveis percursos multiplicam-
se, atendendo à diversidade estrutural (estruturas com entrada estreita, estruturas de vão
aberto, presença de microestruturas no seu interior ou de estruturas circulares no espaço
interior das estruturas em “bastião”) e às possibilidades interpretativas, directamente
conectadas com a prática arqueológica e com a “leitura” das relações entre materiais,
plasmada no chamado “registo arqueológico” (por exemplo, distribuição e nível de
fragmentação de fragmentos cerâmicos).

É comum na bibliografia arqueológica acerca do III milénio a.C. na Península Ibérica


propor para unidades construídas semelhantes ou mesmo para objectos semelhantes,
explicações similares. Neste sentido, o que é semelhante funciona como indicador de práticas
idênticas e ajuda a sustentar uma explicação universal para sítios genericamente semelhantes.
O construído é tido como arquitectura e esta encontra-se ligada a uma função específica que
lhe é inerente, como se a função fosse uma qualidade intrínseca do objecto. No entanto, o
estudo das quatro estruturas põe em evidência que estruturas semelhantes num mesmo sítio

176
arqueológico parecem invocar práticas diversas. Não queremos com isto generalizar para
outros sítios uma teoria ou observação mas tão só acentuar a importância do estudo das
particularidades de cada sítio e de cada estrutura no seu detalhe e nas suas relações.
Optámos pela descrição das estruturas em estudo como ferramenta essencial para
pensar acerca das questões propostas. A descrição está geralmente associada à visão, à
ilustração de algo, à legenda de uma imagem, de um mapa, de um desenho, conectada com o
registo de memórias [ver a titulo de exemplo J. Kittay (1981) e P. Hamon & P. Baudoin
(1981)]. A descrição, aqui, pretendeu dar visibilidade a uma série de características, tornar
visível um conjunto de detalhes, seguindo a proposta lançada por V. O. Jorge, quando o autor
refere “Temos de construir uma ciência das pequenas coisas, das pequenas observações, da
minúcia dos detalhes, não tabelando-os logo de “indícios de”, mas considerando-os “per se”,
pacientemente. Abrindo o mais possível o feixe de relações possíveis entre um detalhe e
outro.” (Jorge, V. O. [et al.], 2006-2007: 243) Estes detalhes, obviamente, foram de certa
forma seleccionados, hierarquizados. Certas características foram enfatizadas a fim de
convocar para este texto outras relações e conexões. Outras relações foram desligadas. As
unidades subcirculares ou bastiões não podem ser entendidos enquanto dispositivos
arquitectónicos traduzíveis em explicações universais. A associação directa de uma estrutura a
uma função não resiste à análise de pormenor. A ligação existente entre bastiões e sistemas
defensivos ou unidades residenciais é posta em causa quando se estudam estruturas, materiais
ou contextos a diferentes escalas de relação. A crítica à explicação dos bastiões calcolíticos
não pode apenas ficar concentrada na definição de bastião, sistema defensivo, guerra ou quais
as implicações da construção de um sistema defensivo (tenha este um propósito dissuasor, de
prestigio ou defensivo/atacante). Porque, não saindo do ciclo vicioso das perguntas e repostas
inerentes ao “paradigma dos povoados fortificados”, as respostas serão sempre semelhantes.
Conscientes que neste momento seria importante a discussão da noção de conflito, tentamos
não desenhar aqui imagens de guerra permanente ou, por oposição, de paz absoluta. A
conflitualidade parece inerente às comunidades humanas; no entanto, expressa-se, representa-
se, materializa-se de diversas formas.
No ponto seguinte procuraremos discutir um outro conjunto de estruturas que
geralmente encontram explicação imediata na bibliografia acerca dos recintos murados
peninsulares. Iremos chamar ao texto as estruturas circulares de Castanheiro do Vento
reconhecidas normalmente pelos arqueólogos como casas, cabanas ou unidades domésticas.
Procuraremos discutir os problemas inerentes à definição dos recintos murados como
povoados (fortificados).

177
178
9.2. Construindo espaços circulares.

Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder

tão firme e silencioso como só houve

no tempo mais antigo.

Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,

sorrindo com ironia e doçura no fundo

de um alto segredo que os restitui à lama.

De doces mãos irreprimíveis.

- Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,

as casas encontram seu inocente jeito de durar contra

a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.

Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta

do gosto, o entusiasmo do mundo.

Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio

admirável das fontes –

pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste

como fogo exemplar.

Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas

um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores

tenebrosas, e temos a memória

e absorvente melancolia

e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos.

Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,

espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos

que não viram as torrentes infindáveis

das rosas, ou as águas permanentes,

ou um sinal de eternidade espalhado nos corações

rápidos.

- Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que vagabundearam

pelos muitos sentidos dos meses,


179
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra,

para que se faça uma ordem, uma duração,

uma beleza contra a força divina?

Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha.

Alguém viera do mar.

Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó.

Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos,

inspirações.

- Estas casas serão destruídas.

Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente

no seu casamento solar, assim

se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo,

vergando a demorada cabeça sobre os rios misteriosos

da terra

onde os próprios arquitectos se desfazem com as suas mãos

múltiplas, as caras ardendo nas velozes

iluminações.

Falemos de casas. É verão, outono,

nome profuso entre as paisagens inclinadas.

Traziam o sal, os construtores

da alma, comportavam entre si

restituidores deslumbramentos em presença da suspensão

de animais e estrelas,

imaginavam bem a pureza com homens e mulheres

ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente,

tocando uns nos outros –

comovidos, difíceis, dadivosos,

ardendo devagar.

Só um instante em cada primavera se encontravam

com o junquilho original,

arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres

180
da inspiração.

- E as casas levantavam-se

sobre as águas ao comprido do céu.

Mas as casas, arquitectos, encantadas trocas de carne

doce e obsessiva – tudo isto

está longe da canção que era preciso escrever.

- E de tudo os espelhos são a invenção mais impura.

Falemos de casas, da morte. Casas são rosas

para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança

nos abandona para sempre.

Casas são rios diuturnos, nocturnos rios

celestes que fulguram lentamente

até uma baía fria – que talvez não exista,

como uma secreta eternidade.

Falemos de casas como quem fala da sua alma,

entre um incêndio,

junto ao modelo das searas,

na aprendizagem da paciência de vê-las erguer

e morrer com um pouco, um pouco

de beleza.

(Herberto Helder, 1996: 9-11)

“O estupendo verso do Helberto Helder é, enquanto indício, altamente problemático e


ambivalente. Não é possível tomar uma posição simples sobre o problema da casa porque
ela, como metáfora e também como objecto, está no cruzamento de uma série de tendências
contraditórias e indecisas.” (Miranda J. B., 2010:94).

Pautados pela ambivalência do discurso, chamamos ao texto o que apelidamos de


estruturas circulares. A neutralidade do nome contrasta com a multiplicidade de abordagens, a
objectividade do nome contradiz a perplexidade da própria construção do texto. Falemos de
casas, como metáfora de espaço habitado continuamente e que nesse habitar contínuo
181
acumulou experiências e coisas. Na casa a que hoje chamamos Castanheiro do Vento
construiremos pequenos espaços dentro do discurso e tentaremos, na sua construção, a
desconstrução de velhos papéis de parede que revestem míticas paredes de barro.

“[A sub-circular structure is] any round structure with a certain size, of the kind that
archaeologist call often “hut” or even “house”, according to a very broad mythology of these
concepts as self-evident (the “domestic space”, the “domestic context” and so on). They are
defined by a more or less narrow “ring” of stones, which sometimes include grinding stones.
In any case, their periphery is very different (much narrow in size) from that of the main walls
or of the bastions. It would not be possible to settle a large wall on it; so, the superstructure
would be necessarily light, but roofed. Typically, they contain a more or less thick layer with
very small plaques of schist. Especially when the area around was more intensively excavated
by us, we notice that their base is made of a very compact yellow sediment (clay) contained
by a periphery of stones which tend to be disposed in an oblique situation forming a sort of
“basin” or “box”.” (Jorge, V. O. [et al.], 2006: 246)

Fig. 9.2.1: Estrutura Circular 26 de Castanheiro do Vento.

No sítio de Castanheiro do Vento foram, até à campanha de escavações de 2010


(inclusive), identificadas 28 estruturas circulares e um conjunto de pequenas estruturas
circulares com cerca de 0,50 metros de diâmetro e delimitadas sobretudo por elementos de
moinhos manuais em granito. As convencionalmente apelidadas “estruturas circulares” em
182
Castanheiro do Vento são elaboradas com lajes de xisto colocadas de forma vertical ou
oblíqua, ou ainda na horizontal em alguns casos. Os materiais utilizados, a sua distribuição
assim como a sua morfologia possibilitam a inserção destas 28 unidades na designação de
“estruturas circulares”. Contudo, as suas dimensões, localização no sítio, e a rede de relações
que estabelecem entre si (de forma agrupada ou isolada), implicam um olhar mais atento a
estes dispositivos arquitectónicos. J. M. Cardoso (2007), na sua tese de Doutoramento,
ensaiou uma tipologia de estruturas circulares (geminadas e não geminadas) que sintetizamos
neste quadro:

Estrutura Tipo Subtipo Características


Dimensão modal 1: 201mm - 600mm
Ec3, Ec10, Ec12 & Forma: circular - 40%
I Ia
Ec25 subcircular - 60%
Área: entre 1.92m² & 5,29m²
Dimensão modal: 201mm - 600mm
Forma: circular - 66%
Ec 4, Ec14 & Ec20 I Ib
subcircular - 33%
Área: entre 4.83m² & 5,29m²
Dimensão modal: 201mm - 600mm
Forma: circular - 66%
Ec 5, Ec15 & Ec21 I Ic
subcircular - 33%
Área: entre 6.37m² & 9,90m²
Dimensão modal entre 201mm & 401mm
Eg 11 & 13 II IIa
Área não excede os 3m²
Dimensão modal entre 401mm & 600mm
Eg 23 & 24 II IIb
Área entre os 4m² & 5,5m²
Eg 1, 2 & 6 / 17, 18 & Dimensão modal entre 401mm & 600mm
III IIIa
19 Área não excede os 4m² (excepto o 17 - 8,64m²)
Dimensão modal menor 201mm
Eg 7, 8 & 9 III IIIb
Área entre 5m² & 7m²
Quadro 9.2.1: Tipologia das estruturas circulares de Castanheiro do Vento (a partir de Cardoso, 2007)

1
A dimensão modal refere-se ao cálculo da medida modal (ou seja, do valor de uma variável que ocorre com
maior frequência numa série) do comprimento das lajes de xisto que integram a construção. (Cardoso, 2007:
120)

183
Os tipos criados por Cardoso obedecem essencialmente à organização e disposição
destas unidades – isoladas ou geminadas. As estruturas geminadas, cujas lajes que definem a
sua forma são partilhadas em determinado espaço, (Tipo II e Tipo III), apresentam
genericamente dimensões menores e preferencialmente assumem uma forma circular
(Cardoso, 2007: 213). O autor analisou as matérias-primas empregues na elaboração das
estruturas, assim como anotou se os constituintes definidores da unidade arquitectónica,
preferencialmente lajes de xisto, eram ou não facetados (Ibid: 148-151). Em relação à
distribuição destas estruturas no sítio de Castanheiro do Vento, o autor sublinha dois pontos:

a) A aparente distribuição aleatória deste tipo de estruturas. Não parece existir


qualquer padrão na sua localização. O facto de todas elas estarem associadas a troços
de muretes, “bastiões” ou muros apenas reflecte o facto de a escavação ter privilegiado
até ao momento as grandes linhas estruturais do sítio.
b) A não existência de qualquer estrutura deste tipo associada ao murete 1, no entanto
é importante referir que a área entre o murete 1 e o murete 2, não se encontra
completamente escavada. (Cardoso, 2007: 216).

A análise das 28 estruturas circulares identificadas em Castanheiro do Vento põe em


relevo a existência de uma grande diversidade, não só tipológica, mas também verificável
quando se atende à sua localização, à sua articulação com outras unidades arquitectónicas, à
estruturação do seu espaço interno, ao nível das super-estruturas (isto atendendo por exemplo
à identificação ou não de buracos de poste e ao reconhecimento ou não de entradas elaboradas
ao nível da base da estrutura). J.M. Cardoso realça as localizações distintas destas estruturas
em Castanheiro do Vento. Chama a atenção para a área escavada e neste sentido para os
constrangimentos de um estudo de distribuição destas unidades arquitectónicas pelo sítio. No
entanto parece-nos útil desdobrar este ponto e registar os diferentes locais onde foi possível
até ao momento identificar “estruturas circulares”:

1. Encostadas a muretes: Ecg6, 2 e 1; Ec12.

2. Terminus de murete: Ec5.

3. Associadas a passagens: Ecg23 e 24.

4. Associadas a “bastiões”: Ecg22 e 25; Ecg18, 17 e 19; Ec10.

5. Entre muretes: Ecg7, 8 e 9; Ec3; Ec4; Ec26.


184
6. No interior do Recinto Principal: Ecg11 e 13; Ec27; Ec28.

7. Em relação com o Recinto Anexo: Ec14; Ec15; Ec16.

Fig. 9.2.2: Localização das estruturas circulares e estruturas circulares geminadas em Castanheiro do Vento

Atendendo a esta localização geral das estruturas surgem alguns aspectos a reter.
Concentremo-nos nas estruturas associadas a bastiões. Estas unidades encontram-se no espaço
interno dos bastiões ocupando quase toda a área ou condicionando de forma evidente os
movimentos dentro destas estruturas. Pela sua elaboração os espaços foram modificados em
termos de percepção do local, alterando-se possíveis movimentos e práticas no interior do
“bastião”, tanto no momento da construção da estrutura circular como da sua “utilização”.
Posteriores à construção dos bastiões e em íntima associação com as suas paredes, as
185
estruturas circulares foram elaboradas num espaço que, mesmo que por um curto espaço de
tempo, era passível de “livre circulação”, ou seja, os espaços definidos pelas paredes dos
bastiões, aparentemente, antes da construção das estruturas circulares, não teriam barreiras
físicas efectivas à circulação no seu interior. Claro que esta observação levanta um conjunto
de problemas, pois os constrangimentos ao andar, como referimos já, não são apenas dados
por estruturas pétreas evidentes ao olhar do arqueólogo, mas podem encontrar-se sob a forma
de outros materiais ou em interditos não materializados.

O caso, por exemplo, das estruturas tipo “bastião” S, Q, K e W associadas a estruturas


circulares é revelador da construção e reconstrução de espaços onde as estruturas se parecem
emaranhar sem contudo se sobreporem. Estas encostam-se, são contíguas, em termos
estratigráficos foram construídas no mesmo depósito. Mas lançam hipóteses acerca da
alteração de movimentos e de práticas no sítio. O processo construtivo destes espaços parece
ser contínuo e nesse sentido, as estruturas registadas em Castanheiro do Vento não se
afiguram como um cenário onde um conjunto de actividades é desempenhado após a sua
construção. É pela construção e reconstrução permanente que o sítio é vivenciado 2 e nesse
sentido recusamos que as estruturas pétreas de hoje tenham sido pano de fundo permanente,
inalterável, para as mesmas actividades durante centenas de anos. No entanto, a diversidade
de práticas e de movimentos potenciados pela elaboração e reestruturação de espaços não
pode ser equacionada tendo em conta apenas as linhas mais visíveis, mais “estáveis”. Neste
sentido, ganha toda a pertinência o estudo de todos os outros materiais e problematizar a
constelação de possíveis relações.

Olhando de perto para estas estruturas circulares e colocando-as lado a lado na nossa mesa
de trabalho, emergem certas características que nos parecem importante realçar. Comecemos
pelos materiais empregues e sua distribuição na estrutura. A matéria-prima utilizada para
estruturar estas unidades é o xisto grauváquico. Trata-se de lajes de xisto extraídas muito
provavelmente do local onde se implanta o complexo arquitectónico identificado ou de áreas
próximas do mesmo. Em vários casos regista-se ainda a presença de xisto azul, granito,
quartzo e quartzito. Os dois últimos elementos registam-se com fraca frequência (o quartzo
em 3 e o quatzito em apenas uma unidade) (Cardoso, 2007). As lajes de xisto azul – matéria-
prima não proveniente do local – foram identificadas em algumas estruturas circulares e o

2
Ressalvamos no entanto que construção e reconstrução dos espaços não se materializa apenas na feitura de
muretes como sublinharemos na continuação deste texto.

186
granito está presente em praticamente metade das unidades registadas até ao momento
(Cardoso, op.cit.:120). Os elementos em granito são na sua totalidade peças de moinhos
manuais (dormentes); ou seja, todas as peças em granito utilizadas na delineação da estrutura
tinham sido já manipuladas em outros contextos. Algumas apresentam-se fragmentadas, mas
a maioria inteiras. Encontram-se também no “enchimento” das estruturas, como é o caso da
Ec5, onde fragmentos de dormentes e moventes, juntamente com pequenas lajes de xistos
(algumas rubefactas) e nódulos de quartzo ocupam o espaço interno da estrutura. Mais uma
vez chamamos ao texto a ideia de transplantes de V. O. Jorge (2009a), ou seja, do
entendimento do transporte de matérias-primas e outros objectos de um local para o outro
como citações, como transplantes de matéria, e consequentemente de significados (não
necessariamente estáticos) de um sítio para outro. Estas estruturas são também locais de
reunião de diferentes materiais, de diferentes objectos que provêm de diferentes locais e que
acarretam consigo diferentes tempos e memórias – a laje extraída da base do sítio, a laje que é
trazida para o sítio, o bloco em granito que é “re-utilizado”, incorporado num outro espaço e
tempo.

Estes materiais delinearam estruturas que podem ser iluminadas pelas suas
particularidades. Vimos a sua localização e as matérias-primas. Prestemos agora atenção à sua
organização interna. Algumas destas estruturas encontram-se conectadas com buracos de
poste. Estes elementos, que seriam bases de sustentação de troncos em madeira não se
dispõem no entanto de uma forma regular nem ocupam uma posição central. Por exemplo, nas
estruturas geminadas 17, 18 e 19 verificou-se a existência de buracos de poste no interior das
estruturas assim como no exterior destas mas em provável conexão com a elaboração das
super-estruturas destas unidades. No entanto, em algumas estruturas não foi identificado
nenhum buraco de poste no seu espaço interno ou em associação com estes dispositivos.
Poderá este aspecto remeter para diferentes formas construtivas da cobertura da estrutura?
Outro dado a registar é a existência em algumas estruturas circulares de uma passagem. O
alinhamento parece intencionalmente interrompido como é o caso da Ec 20. Contudo, em
alguns casos não é possível verificar a existência de uma entrada como é o caso das Ec 3, 4 e
5. Poderia, nestes casos, a entrada nas estruturas efectuar-se por uma espécie de degrau?
Parece que em algumas unidades a existência de uma abertura de acesso é pensada ao nível
basal da estrutura, materializando-se por uma interrupção no alinhamento que define a
estrutura enquanto em outras unidades a abertura é efectuada no processo de moldagem.

187
A estrutura circular 3 (Ec3), localizada na área sul do sítio de Castanheiro do Vento, entre
o murete 2 e o murete 3, foi intervencionada durante a campanha de 2005 e o estudo dos
resultados foi efectuado por A. Queirós (2006). A escavação desta unidade circular apenas
revelou 160 fragmentos cerâmicos, 17% dos quais decorados, maioritariamente com
impressão penteada. Esta estrutura não se encontrava conectada com outros elementos tipo
buracos de poste e apenas revelou um nível caracterizado por pequenas lajes de xisto
associadas a um sedimento muito compacto, argiloso, de cor amarela. Várias estruturas
semelhantes à Ec3 revelaram também a existência de um nível caracterizado por lajes de xisto
de pequeno tamanho (formando uma espécie de lajeado) como é o caso das estruturas Ec7 e
Ecg 22 e 25. Em algumas unidades registou-se um depósito semelhante; contudo, é efectiva a
presença de lajes de xisto de dimensão média colocadas na horizontal, como são exemplos os
casos de Ec4, Ec15, Ec20 e Ec21.

Ref. Cal BC 2
Contexto BP
Laboratório sigma

Ec3 Ua-32080 3895+/-40 2475-2211


Intersecção Bastião Q e
Ecg18 Ua-33631 3855+/-35 2462-2206

Periferia de Ecg1/2/6 Ua-32079 3820+/-40 2457-2141


Intersecção Bastião S e
Ec21 Ua-33632 3725+/-40 2278-1982

Ecg6 Ua-32087 3630+/-80 2204-1758

Ecg2 Ua-33980 3395+/-35 1868-1564

Ec15 Ua-33982 3170+/-35 1511-1391

Intersecção de Ecg11 e 13 Ua-32082 2350+/-35 702-367


Quadro 9.2.2: Conjunto de datações disponíveis para as estruturas circulares de Castanheiro do Vento
(calibração com o programa Calib Rev. 5.0).

Atendendo às datas de carbono 14 disponíveis para as estruturas que temos vindo a


apresentar (dados sistematizados no quadro 3) podemos posicionar a construção e

188
manutenção destas estruturas na segunda metade do IIIº milénio a.C 3. Neste grupo aparecem
três datas consideradas problemáticas, mas se tivermos em atenção o seu contexto os
resultados não parecerão tão anómalos. Assim, a Ec15 localiza-se numa área junto ao Recinto
Anexo que terá sido alvo de diversas transformações e alterações materializadas em dois
troços de murete difíceis de enquadrar na planta geral do sítio. Também as estruturas
geminadas 11 e 13 se situam numa área bastante complexa, junto da Torre Principal, estrutura
que terá sido alvo de remodelações constantes, algumas em períodos mais recentes 4. Fica
apenas por explicar a data referente à Ecg2 distinta daquela obtida para a periferia da estrutura
e para a estrutura que lhe é contígua, a Ecg6 5.

Até ao momento falámos apenas de unidades que têm como máximo de área interna
9,9 m2, nunca excedem em diâmetro 3,3 m e registam como diâmetro mínimo 1,6 m.
Contudo, em Castanheiro do Vento foram detectadas outras unidades de grande dimensão às
quais se resolveu chamar convencionalmente “grandes estruturas circulares”. Apenas uma
destas unidades se define por um círculo completo enquanto os outros elementos que
encaixamos neste grupo são apenas caracterizados por semicírculos. Caracterizam-se por um
diâmetro médio de 8 m. Foram registadas no interior do Recinto Principal e entre o murete 2 e
o murete 3 na área oeste do sítio de Castanheiro do Vento. Identificaram-se 6 unidades deste
tipo, intervencionadas em 2008, 2009 e 2010 (como foi já apresentado no ponto 2).

Tal como as estruturas circulares que definimos anteriormente, estas unidades são
delineadas por lajes de xisto fincadas obliquamente sobre o seu lado maior. Em algumas
destas estruturas é possível verificar a existência de um segundo alinhamento externo,
paralelo ao que define a estrutura, mas não registado de forma contínua, como é o caso da

3
Importa referir que a distribuição de probabilidades da data Ua-33632, após calibração a 2 sigma, nos diz que
existe 94% de hipóteses da amostra ser datada de 2210-2020, 0,03% de o ser de 2278-2251, 0,7% de o intervalo
corresponder a 2229-2221 e 1% para o período de 1994-1982.
4
O estudo desta estrutura encontra-se ainda em preparação. A campanha arqueológica de 2010 revelou a
existência de reformulações profundas desta estrutura materializadas de forma evidente em dois troços de murete
construídos no que se poderia chamar de espaço interno de um “bastião” na sua fase inicial. A presença de
materiais tradicionalmente conectados com o IIº milénio a.C. e os diferentes aparelhos construtivos identificados
pressupõem reformulações constantes e que ocorreram até períodos tardios.
5
No entanto, é importante sublinhar novamente que as datas de 14C datam apenas a amostra (neste caso carvões
de origem vegetal) e não a estrutura. Contudo os pontos no tempo cronológico que estes dados nos fornecem
ajudam a investigação a colocar balizas temporais, na medida em que ainda nos é impossível escapar a um modo
de fazer ciência de tradição cartesiana.

189
GEc3 e GEc 5. O espaço entre os dois alinhamentos (cerca de 60 cm) é preenchido por
pequenas lajes de xistos envolvidas por um sedimento argiloso, muito compacto, de cor
amarela. Poderão estas estruturas comportar paredes espessas (delimitadas pelos dois
alinhamentos)? Conectado com a estrutura GEc3 foi registado um agrupamento de moinhos
manuais em granito (num total de 18 unidades) e um grande bloco de quartzito alaranjado
organizados de forma tendencialmente circular. Imediatamente a sul desta estrutura foi
escavado um conjunto de blocos de quartzo de filão, de forma irregular e de pequeno e médio
tamanho, aparentemente termoclastos, dispostos também de forma tendencialmente circular.
Esta estrutura composta por elementos de quartzo parece também estar conectada com a GEc4
(é possível que ambas as estruturas estivessem conectadas por uma passagem no seu interior).
A estrutura GEc4 revelou bastantes fragmentos de barro de revestimento (um total de 125
fragmentos, que se traduzem em 3546 gr); aí se procedeu, numa pequena área, a uma
intervenção em profundidade que revelou uma pequena “fossa”, de contorno genericamente
circular, cujo enchimento era caracterizado por um sedimento cinzento-escuro; no seu interior
identificou-se ainda um buraco de poste, em negativo, de contorno genericamente
subquadrangular, também caracterizado por um sedimento de cor escura. Ambas as estruturas
apresentavam apenas uma profundidade de 10 cm.

Durante as campanhas de 2008 e 2010 foi também intervencionada a GEC1, tendo


sido escavada na sua totalidade. A análise dos materiais recolhidos neste espaço delimitado
será apresentado no ponto 10.2 e também em Anexo. No entanto, podemos sublinhar alguns
pontos de reflexão: a escavação do espaço interno da estrutura permitiu a identificação de
diversos contextos que indicam diferentes tempos, que poderão ser apenas construtivos; existe
uma sobreposição de estruturas e depósitos que conferem ”espessura temporal” à estrutura.
Foi também possível registar a existência de fragmentos cerâmicos que se encontram
conectados com a própria construção dos limites da grande estrutura circular. Este conjunto é
caracterizado por fragmentos geralmente com dimensões superiores a 7 cm. No lado noroeste
da estrutura registou-se uma concentração de fragmentos de barro de revestimento (num total
de 4038 unidades, o que se traduz em 37,064 g) distribuídos de forma tendencialmente
circular e a uma profundidade estratigráfica de 20 cm em média. O estudo desta unidade
arquitectónica destaca também a impossibilidade de articular os espaços e os materiais
registados com funções determinadas (articulação que teoricamente seria possível atendendo-
se à especificidade dos materiais e à sua distribuição).

190
Parece assim ficar patente a variabilidade formal das estruturas identificadas em
Castanheiro do Vento. As estruturas com diâmetros entre os 3 e 4 m são maioritárias em
relação às estruturas com áreas superiores a 8 m. Estas grandes estruturas circulares
encontram paralelos em sítios localizados em território espanhol, como é o caso de Los
Millares (Almeria, Espanha), onde foram identificadas estruturas circulares com um diâmetro
superior a 7 m, sendo estas, no entanto, delineadas por uma estrutura tipo murete (Castro-
Martinez [et al.], 2010: 148).

É importante, neste momento, demorarmo-nos nos sistemas construtivos da base das


estruturas. A aparente homogeneidade das “estruturas circulares”, dada sobretudo pela sua
semelhança formal genérica, é contestada quer pelo detalhe (umas são geminadas, outras
apresentam entradas, etc.) quer pelas diferentes técnicas de delineamento da base destas
unidades arquitectónicas. Neste sentido podemos desdobrar os modos de fazer em:

 Limite elaborado sobretudo com recurso a lajes de xisto fincadas

 Limite elaborado por dupla linha de lajes fincadas

 Limite elaborado sobretudo com lajes e blocos irregulares de xisto na horizontal

A delimitação da base destas estruturas remete para possíveis construções em altura. A


primeira hipótese que colocamos e que pensamos ser a mais provável na construção em altura
destas estruturas circulares pressupõe a existência de um entrançado de ramos revestida por
terra argilosa que poderia sofrer um processo de cozedura intencional. Esta “argamassa” que
revestiria o esqueleto em madeira teria de ser de matriz argilosa com inertes minerais e fibras
vegetais no sentido de consolidar e dar maior resistência à terra (Bruno, 2006: 72). Muitos dos
numerosos fragmentos de barro de revestimento detectados em Castanheiro do Vento
apresentam negativos de ramagens com orientações paralelas e perpendiculares entre si,
enquanto outros parecem apresentar uma superfície alisada (por vezes com marcas de dedos).
Esta superfície alisada podería corresponder à face interna ou externa da estrutura e os
negativos ao “interior” das paredes. Até ao momento não foram encontrados vestígios de
negativos de troncos de grande dimensão, apenas de pequenas ramagens. As estruturas que se
encontram delimitadas por lajes de xisto colocadas de forma fincada oblíqua ou verticalmente
poderiam ter sido utilizadas como amparo da parede. Segundo o estudo de P. Bruno (2006)
acerca de estruturas similares da Idade do Bronze Final do sítio Rocha do Vigio 2 (Reguengos

191
de Monsaraz), as lajes de xisto em cutelo teriam sido aplicadas para “protecção das bases dos
paramentos internos” (Ibid:72). No entanto, não é de excluir a hipótese de se tratar de
delimitações sem um carácter estritamente funcional, ou seja, poderiam apenas indicar os
limites da estrutura.

Outra técnica construtiva que podemos aqui assinalar é a terra modelada. Como refere
F. Gonzaléz (2006), esta técnica construtiva é atribuída a construções de carácter efémero e
“no seu resultado final, pouco se destrinça da olaria” (Gonzaléz, 2006: 92). A elaboração das
estruturas é conseguida pela moldagem de terra argilosa com as mãos que pela pressão
exercida vai criando face interna e externa. No entanto, até ao momento não foram
encontrados fragmentos de barro coincidentes com esta técnica construtiva. As Grandes
Estruturas Circulares 3 e 5 de Castanheiro do Vento (que registam um duplo alinhamento)
poderiam apresentar paredes de terra crua erguidas segundo a técnica de empilhamento – em
que porções de terra são empilhadas por fiadas (sempre em associação a outros materiais –
como poderia ser a palha – que tomam a função de desengordurantes).

Podemos ainda colocar a hipótese de estruturas elaboradas preferencialmente com


elementos vegetais. A construção da parede poderia ser efectuada com ramos entrelaçados e
revestida por fibras vegetais. No entanto, a presença de numerosos fragmentos de barro de
revestimento parece indicar que as construções destas estruturas circulares, ainda que
podendo privilegiar a madeira em certos casos, usariam uma argamassa argilosa que seria
colocada nos interstícios do entrelaçado em madeira e como revestimento.

O entrelaçado de materiais não se resume, no entanto, à madeira e à terra. Como temos


vindo a referir, a actividade construtiva é um processo relacional, na medida em que incorpora
diversos materiais (água, fragmentos cerâmicos, ossos de animais, lajes de xisto, percutores,
elementos talhados em quartzo…) e se conecta com um conjunto mais vasto de diversas
práticas. Dito por outras palavras, não é uma prática desligada de todas as outras, realizada em
determinado momento e tendo como objectivo apenas a construção do espaço; está também
em relação com as actividades perfomatizadas pelos grupos que construíram e reconstruíram
muretes e estruturas circulares em Castanheiro do Vento. Esse processo relacional está patente
na incorporação de materiais no aparelho construtivo como por exemplo, fragmentos
cerâmicos e fragmentos osteológicos. Tomando como exemplo paradigmático a Grande
Estrutura Circular 1 de Castanheiro do Vento para ilustrar este processo, referimos novamente

192
o conjunto de fragmentos cerâmicos de grandes dimensões (superiores a 7 cm) associados às
lajes de xisto que definem os limites da estrutura interpretado como pertencente ao dispositivo
arquitectónico. Os fragmentos cerâmicos estariam associados à construção da própria
estrutura. Também a concentração de barro de revestimento identificada nesta estrutura
revelou a inclusão de um “dente” num fragmento de barro de revestimento. Neste sentido,
tentamos neste texto que a actividade construtiva não fique apenas limitada à descrição de
possíveis técnicas construtivas, associadas à enumeração de materiais de construção como a
madeira ou a terra. A multiplicidade de práticas e materiais tem de ser revelada não só pelo
estudo detalhado das estruturas, como também pelo dos achados tidos normalmente como
alheios à construção (ossos, cerâmicas, líticos, etc.) e das suas relações, como fica bem
patente no trabalho desenvolvido por McFadyen para o sítio de Castelo Velho de Freixo de
Numão.

Os dispositivos arquitectónicos abordados têm sido neste texto intencionalmente


apelidados de “estruturas circulares”. Na bibliografia arqueológica este tipo de dispositivos
arquitectónicos é normalmente chamado de cabanas (ou fundo de) ou de estruturas
domésticas; casas; unidades de vivência de famílias nucleares. A designação destas unidades
diz já da função, ou seja, o nome é já a explicação da estrutura. Esta nomeação das estruturas
circulares carrega consigo um modelo interpretativo para os recintos murados do IIIº milénio
a.C. peninsulares, pois este modelo assenta na pressuposição de que a casa é produtora e
reprodutora de cosmovisões de determinados grupos. Este aspecto leva-nos à análise crítica
deste discurso explicativo.

193
Estruturas circulares como arquitectura doméstica? Casas e cabanas
na Pré-história Recente.

Fig. 9.2.3 Eugène Viollet-le-Duc, Cabana primitiva, gravura

“Many archaeologists speak of houses (and search for them) so eagerly and so easily as if
they were obvious universal objective realities corresponding to universal “needs”.” (Jorge,
V. O. [et al.], 2006: 222-223)

Neste texto gostaríamos de explorar dois artigos que acentuam o cariz doméstico dos
recintos murados peninsulares, criticando a sua função defensiva. Problematizam conceitos
como o de família, sem contudo questionar o carácter fixo da “casa”, que segundo os autores,
é passível de identificação no registo arqueológico, uma vez que partem do princípio que este
último conceito é universal, ou seja, é a resposta do ser humano a um conjunto de
necessidades biológicas como a alimentação e a procriação.

Ramos Millán (2007) define o regime explicativo dos “povoados fortificados” como
uma teoria legendária que narra acerca do sucesso das fortificações com grande âmbito
geográfico (abrange toda a Península Ibérica). O autor propõe a interpretação dos muros
pétreos deste tipo de sítios como cercas de unidades habitacionais, tipo aldeias. Neste sentido
integra os chamados “povoados fortificados” na linha de uma teoria urbanista que propõe o
estudo da origem e evolução das aldeias da Europa Ocidental. Afirma:

“…los bastiones o torres son las primeras expresiones históricas de las cabañas de
familias nucleares, a las que se sucederán las cabañas comúnmente reconocidas como
194
talles, y ello en relación a un rico proceso evolutivo formal de la residencia
domésticas, historia urbanística explicita del crecimiento político que inauguraron las
aldeas.” (Ramos Millán, 2007: 39)

O autor sugere um modelo evolutivo das aldeias ocidentais articulando duas variantes:
estruturas circulares e muretes. A associação e dimensão destas duas unidades arquitectónicas
permitiram a Milán sugerir plantas ideais de momentos chave na evolução do modo de vida
em aldeia. A organização do povoado diz também da organização sócio-politica da
comunidade, podendo revelar laços de parentesco mais ou menos apertados [também esta
variável surge como um modelo evolutivo em que os laços de parentesco bem definidos
característicos do Neolítico evoluem para uma fase (Calcolítico Final) onde se encontram
dissolvidos]. O autor começa por ilustrar a teoria evolucionista recorrendo ao Fortin 1 de Los
Millares, alarga depois a sua interpretação ao contexto Peninsular e Sul de França e termina
integrando toda a Europa Ocidental no modelo urbanista que apresenta ao longo do artigo.
Estende também a sua análise aos povoados com fossos do sul peninsular, caracterizando-os
como um “palimpsesto de materializaciones domésticas y rituales” (Ibid: 44). Milán neste
artigo crítica e expõe os problemas da interpretação dos povoados fortificados como
fortificações. Contudo, e como elabora um modelo colado às linhas evolucionistas e
positivistas das ciências sociais, apenas se concentra no outro lado da explicação destes sítios:
o que os interpreta como povoados. Povoados não fortificados, apenas delimitados por cercas.

Focando igualmente o “horizonte de Los Millares” um grupo de investigadores


espanhóis apresentou recentemente o estudo de unidades que caracterizam como espaços
domésticos (Castro-Martinez [et al.], 2010). Os autores, numa linha marcadamente marxista,
começam por tecer um conjunto de observações pertinentes acerca dos perigos da
universalização do conceito de família em Arqueologia, e denunciam a ligação preconceituosa
do espaço doméstico à mulher. Discutem igualmente a utilização consensual na arqueologia
tradicional do binómio público/privado e a conexão por vezes simplista entre
privado/íntimo/espaço doméstico. Neste texto os autores propoem identificar e analisar “…the
domestic units in the Millares Horizons, so as to attempt to build sociological hypotheses
about the organization of domestic groups.” (Castro-Martinez [et al], op.cit.: 147). Neste
sentido definem as actividades que estariam ligadas às estruturas domésticas do horizonte de
Los Millares e que as caracterizariam como tal – a preparação de alimentos (materializada na
lareira, que também poderia ser usada como fonte de luz e calor); o armazenamento [no
195
registo arqueológico toma a forma de silos (estruturas em negativo) e grandes vasos ou cestos
(como contentores), podendo encontrar-se muitas vezes no exterior das casas]; e a moagem
(indicado através da presença de moinhos manuais, normalmente situados junto à lareira).
Outras actividades – como o trabalho do sílex e do osso, a feitura de vasos cerâmicos, a
tecelagem ou a metalurgia – poderiam ocorrer em associação com actividades domésticas mas
parecem tratar-se, segundo os autores, de actividades excepcionais não incluídas na esfera das
práticas quotidianas (Ibid: 147).

As actividades domésticas vêm acompanhadas em texto por tipos arquitectónicos, do


mais simples ao mais complexo, de formas redondas a formas com ângulos rectos, do mais
antigo ao mais recente. Os autores tentam relacionar os tipos arquitectónicos com tipos de
sítios e períodos cronológicos. No entanto, se na abertura do artigo os autores começam por
enfatizar os perigos de descritores universais, parece-nos que aqueles que utilizaram para
identificar unidades domésticas são passíveis de ser atribuídos a qualquer sítio sem que o
leitor tenha acesso aos diferentes contextos (ainda que este seja o único artigo que
conheçamos da autoria desta equipa de investigadores). Também a hipótese explicativa
apresentada para o surgimento de unidades habitacionais de tamanho superior (acompanhadas
de uma morfologia distinta) no sítio de Los Millares nos parece incapaz de fugir aos
preconceitos denunciados no início do artigo, ao atribuírem à poligamia e à presença de
criados domésticos o crescimento do espaço habitacional.

Em ambos os textos subjaz a imagem de construções humanas que evoluem do


simples para o complexo. A pequena cabana redonda é a origem da aldeia ou a origem da
unidade doméstica. Os espaços domésticos são entendidos como espaços privados, por
oposição aos espaços públicos, e a unidade familiar (ainda que poligâmica) continua a
organizar o espaço interno da casa. Esta casa é definida pelos seus contornos e a sua função
permanece desde a sua construção até ao seu abandono. A crença nesta narrativa fecha-se em
si mesma e a sobrevivência deste discurso alimenta-se apenas de mais exemplos ou
curiosidades A desmistificação da narrativa contada acerca do modo de vida destas
comunidades e a generalização explicativa inerente ao discurso tradicional está já patente em
algumas publicações 6 e, por exemplo, M.J. Sanches (2000) sublinha a espessura temporal de

6
Veja-se, por exemplo, Valera (2006): “Tradicionalmente, a perspectiva funcionalista gerou uma concepção de
povoado que poderemos considerar redutora, no sentido em que se apenas lhe associa, de forma quase que
inconsciente, aspectos funcionais do quotidiano (como o processamento de alimentos, a produção de
196
sítios entendidos tradicionalmente como lugares domésticos, devendo estes ser encarados
sobretudo como sítios de memória geracional – de mudanças e de permanências – de diversas
comunidades com lembrança da ocupação pelos seus antepassados ou não. Contudo, o
desenvolvimento deste tema carece de uma outra escala de análise. A ideia de “casa”,
enraizada nos estudos pré-históricos, remonta ao século XIX e a sua utilização acrítica não se
restringe aos trabalhos sobre o IIIº milénio a.C. peninsular.

De que falamos quando nos referimos a “casas”?

“The house is among the features that are supposed to characterize early farming. Its
presence implies sedentism, while its absence suggests a mobile pattern of settlement. That
idea raises many problems.

What applies to individual houses applies to settlements too” (Bradley, 2007: 347)

R. Bradley (2007) alerta para as diferentes conotações do termo “casa” que são
geralmente ignoradas pelos arqueólogos. “Casa”, segundo o autor, aparece na bibliografia
arqueológica, quase sempre, como referente a “abrigo permanente”, em relação com o espaço
privado, o espaço familiar. Encontra-se ligado a comunidades sedentárias e a caracterização
da casa revela a estrutura económica dessa mesma comunidade, assim como deixa
transparecer as relações sociais entre membros do grupo e sua organização política. Mas o que
define as actividades domésticas? Parece consensual na bibliografia incluir na resposta:
preparação de alimentos, limpeza, moagem, tecelagem, cuidado dos filhos, actividades
protagonizadas por mulheres, responsáveis pelo cuidado da casa e bem-estar familiar.

Que critérios são utilizados em Arqueologia para definir um “abrigo permanente”


conectado com sociedades sedentárias? Tentamos aqui esboçar um resumo, por pontos, das

instrumentos, etc.). Mas o povoado é um sítio onde se vive a plenitude da vida. É um local onde se morre e se
desenvolvem todos os primeiros actos de ritualização da morte; é um sítio onde se nasce, onde se desenvolvem
as ritualizações do nascimento; é um sítio onde se cresce e onde também se realizam ritos de passagem; é o local
onde as pessoas se unem e consagram ritualmente essas uniões; é um sítio onde se observa o firmamento, onde
se contam histórias e se transmite o saber e as normas de vivência; onde as pessoas se sentem em segurança,
dominando totalmente o espaço interior face ao exterior mais “indisciplinado”; é local de festas, cerimónias,
consagrações; e, naturalmente, é um sítio onde se dorme, se come, se processam alimentos, se produzem
utensílios, se descartam objectos, se constroem estruturas, etc, sendo que muitas destas práticas mais
“funcionais” podem estar imbuídas de ritualidade, situação comum em sociedades em que a separação entre
sagrado e profano não é clara.” (Valera, 2006: 497)

197
características que definem uma estrutura interpretada como “casa”, segundo a linha
funcionalista tradicional:

• Existência de uma lareira (pode localizar-se na área central ou não);

• A morfologia circular durante o IIIº milénio a.C. (as construções rectangulares são
mais tardias) e o tamanho (normalmente entre os 2 e os 6 m de diâmetro; construções
com áreas superiores são descritas como lugares comunitários ou templos, e inferiores
como locais de armazenagem, lixeiras, áreas de combustão, etc.);

• Identificação de vestígios como peças de mobiliário (ou o local de implantação destes


mesmos elementos): bancos (los Millares), camas e armários (Orcades e Durrington
Walls;

• Presença de materiais conectados com actividades domésticas: moinhos. pesos de tear


e vasos;

• Proximidade de estruturas de “cariz doméstico” (que podem também estar incluídas na


própria “casa”): silos, áreas lajeadas, etc.

Nem sempre assistimos à utilização do termo “casa” ao longo dos textos sobre os
“povoados fortificados”, podendo aquele ser “substituído” pela palavra “cabana”. Este termo,
ainda que não estabeleça laços tão directos nem tão apertados com (pre)conceitos conectados
com a “casa”, como família e actividades domésticas, alberga em si, a mesma função da
“casa”, ou seja, de abrigo permanente (ainda que mais precário na sua definição). Parece-nos
que o termo “cabana” em Pré-história define-se sobretudo pelas dimensões da estrutura e pela
interpretação destas como unidades arquitectónicas simples, ou seja, desprovidas de técnicas
construtivas complexas.

O perigo da aplicação do conceito de casa em Pré-história, tal como alertou Bradley,


estende-se ao conceito de povoado que se poderia definir como a reunião de um conjunto de
estruturas domésticas, sejam casas, cabanas ou sítios de armazenagem, e como local de
vivência diária. Mas, poderá haver algo como uma “arquitectura de todos os dias”, semelhante
à noção de “vida de todos os dias”?

A vida doméstica tem sido largamente abordada nos estudos de Pré-História Recente.
Muitas vezes enfatizada ou relegada para segundo plano na interpretação dos sítios
198
arqueológicos, é estudada por oposição à esfera ritual ou no âmbito de tentativas de
conciliação do mundo mundano com o sagrado na vida de todos os dias das comunidades pré-
históricas. Num recente texto de J.Thomas (2010) a ideia de “casa” (house ou household) sai
dos limites das estruturas circulares para ser entendida enquanto “a new and overarching
metaphor for sociability” (Thomas, 2010:12) Os grandes círculos elaborados com postes de
madeira (woodhenges) da área de Stonehenge (Reino Unido) são interpretados como a
monumentalização da casa. Cada monumento simbolizava, provavelmente, um grupo, uma
história, uma identidade partilhada. Através do estudo de um tipo de cerâmica particular – a
Grooved Ware – o autor estabelece um conjunto de conexões entre sítios.

“The Grooved Ware assemblage dramatized the domestic as a means of establishing


an “imagined community” 7. Such a community may not have pre-existed its material
representation, but have been brought into being and sustained through the practices in
which artefacts and architecture were made, used, consumed and ultimately
remembered. In the process, commonalities with people living far away, and
continuities with past generations were stressed: the Grooved Ware “community”
extended across space and time” (Thomas, 2010: 12).

Os sítios em análise passam a ser entendidos como casas e a cerâmica Grooved Ware
dramatiza a ideia de doméstico. Ritual e vida mundana encontram-se neste discurso nascido
do continuum entre as duas esferas. O desejo de fundir o templo e a casa primitiva preocupou
não só arqueólogos mas também arquitectos como Le Corbusier (2009). A origem do espaço
projectado é encontrada por estes autores no momento em que a planta do templo se confunde
com a planta da casa, momento em que o ritual e o mundano ainda se unem pelo desenho de
um mesmo espaço.

J. Brück diz-nos que a “vida da casa” deverá ser equacionada em relação com a “vida dos
indivíduos”. A autora propõe que os momentos de construção, reconstrução e abandono das
unidades domésticas deveriam ser celebrados através de práticas rituais e estariam associados
a momentos da vida dos indivíduos como seriam o nascimento, o casamento e a morte. Esta
ideia é explorada por Brück no estudo de sítios da Idade do Bronze Médio e Final em
Inglaterra. A autora assinala a estreita ligação entre os ciclos de vida das habitações e dos seus
7
J. Thomas inicia este artigo por apresentar o conceito de “comunidades imaginadas” de Benedict Anderson
(1983), salientado que neste as comunidades políticas são mais imaginadas que reais, pois são compostas por
indivíduos que na maioria das vezes não se conhecem todos entre si. (Thomas, 2010: 1).

199
ocupantes, tanto ao nível físico como simbólico. A casa passa a ser entendida enquanto
“entidade viva”. V. O. Jorge (2007) criticou esta abordagem, denunciando a crença da autora
na existência de uma “realidade arqueológica” que pode ser estudada como “espelho” de um
passado que realmente aconteceu. Jorge assinala também o perigo de tratar como um bloco
um período temporal extenso (700 anos) e um vasto território (Inglaterra), que se reduzem
pela narrativa a uma pretensa unidade. Também alerta para o uso acrítico em Arqueologia das
“ideias” de “vida” e de “morte” como universais trans-históricos. Poderíamos acrescentar o
manuseamento da ideia de “casa” como um conceito universal e não problematizado por
Brück.

A ideia de “casa”, aplicada em Arqueologia Pré-histórica vezes sem conta, está viciada na
“casa” idealizada no século XIX. Como refere Teyssot:

“A casa sonhada e desenhada no século XIX faz parte de um novo simbolismo de


segurança, enunciado, por exemplo, no Prospectus (1822) de Auguste Comte: “O destino
da sociedade que alcançou o seu pleno desenvolvimento é (…) construir (…) o edifício
mais adequado às suas próprias necessidades e aos seus próprios prazeres”. A partir daí,
tal como a filosofia positivista se deverá erigir em casa para toda a sociedade, qual
habitação estável e segura (Heim), assim será necessário, em sentido absolutamente literal
e não metafísico, construir casas para o povo e instalar fogos (Heimstatte). No centro
desse duplo dispositivo é colocada a mulher e a mãe de família, que se torna garantia da
segurança do “edifício adequado” positivista, e simultaneamente do domicílio do
homem.” (Teyssot, 2010 99-100)

A ideia de segurança alia-se às preocupações higienistas a partir de 1900 (Ibid: 105). A


casa burguesa procura o ar puro, os lençóis brancos e os seus ocupantes devem andar de mãos
lavadas. E concentra a vida familiar no seu interior. O espaço privado é delimitado, protegido,
escondido do espaço público. A ordem da casa burguesa procura a articulação dos objectos
com os espaços, a organização das coisas, envolvidas por outros materiais, resguardadas, tal
como a família burguesa no interior da sua casa (seguindo Benjamin, citado em Teyssot,
2010: 124-125). Parker Pearson & Richards (1997) citam a obra de Amos Rapoport, “House
Form and Culture” (1969), para sublinharem as particularidades das “construções” e das
“experiências do espaço” ocidentais modernas que, por vezes, são assumidas como princípios
universais: “[Rapoport] explained how western notions of comfort, adequate lighting, heating,

200
pleasant smells, absence of smoke, privacy, bathroom hygiene and orientation to the view,
beach or Sun might not be shared by other cultures.” (Parker Pearson & Richards 1997: 7).

A casa ocidental actual, burguesa, repousa no tempo longo da sua ocupação. À sua
construção, mais ou menos rápida, segue-se a permanência do uso repetido dos espaços que,
mais ou menos alterados, não desvirtuam a sua permanência enquanto casa de
família 8.“Como é que o olhar de desconhecidos através das janelas encontra sempre uma
família a comer ou um homem solitário diante de uma mesa, sob uma luz de tecto, atarefado
com algo misterioso?” (Benjamin, citado em Teyssot, 2010: 141). Como é que o olhar do
arqueólogo quando espreita pela janela das arquitecturas pré-históricas relata sempre as
mesmas imagens do passado?

Da forma e da organização do espaço

For example, among the Suku of Zaire, among whom I worked, the life expectancy of a hut is
about ten years. The typical biography of a hut begins with its housing a couple or, in a
polygynous household, a wife with her children. As the hut ages, it is successively turned into
a guest house or a house for a widow, a teenagers’ hangout, kitchen, and, finally, goat or
chicken house – until at last the termites win and the structure collapses. (Kopytoff 1986: 67)

Kopytoff desenha diferentes usos e intervenientes de um determinado espaço durante


um curto espaço de tempo. Também em Parker Pearson & Richards (1997) variadíssimos
exemplos são apresentados a fim de abrir o leque interpretativo para as construções pré-
históricas. No entanto, raramente em Arqueologia a multiplicação de práticas num mesmo
local ou dispositivo arquitectónico é equacionada. Os espaços assinalados no registo
arqueológico encerram a mesma função durante o seu período de ocupação 9 e a enunciação da
sua função implica também a explicação da sua construção. Seguindo esta linha de
investigação, a função que se determina para uma unidade construtiva é passível de se

8
Claro que recorremos à imagem estereotipada da casa burguesa pois uma análise contextual iria com certeza
revelar nuances na forma como os espaços são ocupados. A alusão à casa-tipo pensada durante o século XIX é
evocada neste texto, pois pensamos que a interpretação de diversas unidades arquitectónicas pré-históricas são
elaboradas tendo como referência este modelo de vivência familiar: um espaço permanente e reservado, onde
cada compartimento tem a sua função específica desempenhada por personagens específicas.
9
Por vezes é apresentado mais do que uma fase de ocupação da estrutura. Nestes casos, cada função encontra-se,
segundo a perspectiva tradicional, cristalizada num nível arqueológico.

201
estender a todas as outras morfologicamente semelhantes. Segundo Thomas (2004a: 175) esta
tradição de pensamento é uma influência “forte e maligna” do histórico-culturalismo. O
problema reside em considerar as estruturas arquitectónicas como formas acabadas, como
produtos finais. Esta premissa possibilita a comparação com outras estruturas semelhantes ao
nível da planta. Ora, esta corresponde a um desenho que omite o processo construtivo da
estrutura em causa (como já foi salientado para o caso da comparação das plantas dos
chamados “povoados fortificados” em Jorge [et al.], 2006).

Espaços onde se pernoitava ou preparava e cozinhava alimentos não têm


obrigatoriamente de se espelhar numa geometria específica (e universal), e neste sentido, as
actividades hoje consideradas de “cariz doméstico” não têm necessariamente que se
desenvolver num mesmo tipo de espaço 10. A aplicação do termo “casa” na explicação de
estruturas arqueológicas arrasta para a narrativa um conjunto de preceitos e preconceitos não
enunciados e, nesse sentido, invisíveis no discurso arqueológico. O conceito “casa” diz já uma
história, marca os limites interpretativos e explica o passado. Nas bermas da história da vida
doméstica e familiar ficam por exemplo as actividades performatizadas nos espaços
“exteriores”, não contidos pelos limites pétreos que hoje encontramos; ou nos espaços que
poderiam não ter uma demarcação física, ou apenas disporiam de uma delimitação efémera,
elaborada, por exemplo, em madeira – ou seja, espaços definidos por arquitecturas perecíveis,
móveis, de construção rápida, de destruição fácil e que (também) adicionavam ao sítio
diferentes ritmos de construção. A própria análise dos fragmentos cerâmicos não confere
unidade “explicativa” às estruturas que pela sua morfologia são enquadradas no tipo “casa”. É
necessário entender estas estruturas num contexto mais vasto – o do sítio – e cada uma em
relação com as restantes e com os materiais que hoje registamos. De facto, estas estruturas
poderão ser entendidas como partes de percursos e estruturadoras de actividades que não se
podem ler apenas numa delas, pois são sempre performatizadas em relação com outras,
relacionando outros espaços, convocando diversos intervenientes e ritmos.

10
Thomas (1996) num texto acerca das chamadas “estruturas domésticas” em Inglaterra e Irlanda, datadas do
Neolítico, refere que o arqueólogo está preso à “ideia” de casa, à forma ideal das fundações e dos materiais
associados. Sempre que o arqueólogo se depara com o “modelo”, a interpretação é rápida e fácil. No entanto, as
excepções são maioritárias. Thomas acentua que as formas de habitação e co-residência podem ter sido diversas
e “não familiares”. Neste sentido, afirma que “concepts like «family» or «household» may be redundant in
dealing with Neolithic Britain and Ireland.”(Thomas, 1996:5)

202
Fig. 9.2.4: Le Corbusier, Apartamento de Charles de Beistegui, Paris, 1931. La chambre à ciel ouvert.

Na continuação do parágrafo anterior poderíamos também questionar se diferentes


actividades num mesmo espaço físico alteram esse mesmo espaço. Por outras palavras, o
espaço permanece indiferente às actividades que nele se desenrolam? Somos levados a pensar
que o diálogo entre práticas e espaço é de tal forma íntimo que só se desenvolve em
conformidade com ambas (ou seja, nem a prática nem o espaço se processam de forma isolada
ou indiferente; o espaço não é alheio à actividade assim como a actividade não é alheia ao
espaço). E a alteração de um dos elementos leva a alteração do outro. É claro que os limites
do espaço físico podem permanecer os mesmos; contudo a experiência do espaço modifica-se
com a alteração de actividades ou práticas nesse mesmo espaço.

Espaços com dimensões semelhantes e até com “vestígios” semelhantes poderão


indicar diversas práticas. Um conjunto artefactual não é indicador de uma actividade ou não
explica o espaço, por si só não o define, ou seja, não diz se é uma “casa”, um “espaço ritual”
ou um local “especializado na produção de um determinado item”. É a relação desses objectos
que deve ser estudada, o detalhe, uma vez que as particularidades de cada um podem indicar a
sua articulação com diferentes práticas ou usos do espaço. Por exemplo, os fragmentos
cerâmicos são indicadores da manipulação de recipientes cerâmicos naquele espaço ou apenas
da manipulação do fragmento cerâmico? Determinado fragmento cerâmico (ou conjunto de)
traz consigo marcas do seu percurso? Indica outros espaços? Foi acumulado em outros locais,
o que o conectaria com outras actividades? As particularidades salientadas no segundo ponto
deste texto não colocam cada unidade em uma função-tipo, mas chama cada uma para a rede
de práticas e movimentos que estruturam a percepção do espaço, no passado e hoje. A não

203
atenção ao detalhe, ao pormenor, faz cair a narrativa em resumos e as particularidades de cada
sítio surgem apenas como curiosidade.

O espaço não é apenas definido pelos seus limites. Perec aprofundou esta questão ao
formular a seguinte questão: When, in a given bedroom, you change the position of the bed,
can you say you are changing rooms, or else what? (cf. topological analysis).” (Perec G.,
1997: 24).

E continua:

A bedroom is a room in which there is a bed; a dining-room is a room in which there are a
table and chairs, and often a sideboard; a sitting-room is a room in which there are armchairs
and a couch; a kitchen is a room in which there is a cooker and a water inlet; a bathroom is a
room in which there is a water inlet above a bathtub (…) Apartments are built by architects
who have very precise ideas of what an entrance-hall, a sitting room (living room, reception
room), a parents’ bedroom, a child’s room, a maid’s room, a box-room, a kitchen, and a
bathroom ought to be like. (Perec, G., 1997: 27-28)

Como Perec salienta, um apartamento moderno tem um conjunto de divisões,


caracterizadas por peças de mobiliário específicas (que conferem identidade àquele espaço).
A organização e disposição dos elementos em cada divisão não são alheias ao arquitecto no
momento da projecção dos espaços de uma casa. A divisão destes espaços e a sua articulação
define a “casa”; esta obedece a um “programa” e a uma “aprovação” pelas instituições
competentes. A casa nasce pelo desenho e na repetição do modelo de casa (segundo um
programa) e necessita de parecer positivo para se proceder à sua execução. A cada divisão sua
função e, segundo Perec, num apartamento ideal, a cada divisão devem associar-se parcelas
de tempo associadas às actividades aí desenvolvidas. Estas são repetidas ao longo dos dias e,
em conjunto com as outras actividades (desenvolvidas nas divisões remanescentes)
constituem uma sequência diária. Estas linhas poderão entrar em contradição com afirmações
anteriores, quando referimos que o habitante habita a sua habitação mediante a continuação da
construção (através da manipulação de elementos – por exemplo de mobiliário) que por
outros foi iniciada. Ora, acrescentamos agora que mesmo essas peças de mobiliário não foram
alheias ao arquitecto que programou o espaço. Este foi desenhado para que o habitante
pudesse encaixar formas específicas na sua casa. Um quarto é um quarto porque contem uma
cama, uma sala de jantar é uma sala de jantar porque tem uma mesa e cadeiras… mas
204
contudo, voltamos à questão de Perec: se mudarmos a posição da cama num quarto mudamos
de quarto? A definição dos espaços é também a relação dos materiais que os interiores
revelam. Há uma tradição na construção dos espaços de residência. Uma tradição de ocupação
e de uso.

No entanto, os edifícios de habitação modernos – construídos por arquitectos, engenheiros


e técnicos de construção – podem transmitir a falsa ideia de que se tratam de espaços neutros,
não experienciados e de certa forma apáticos. Esta imagem desenha-se por oposição à
construção das residências domésticas no “passado”, onde o construtor desempenhava as
tarefas de “projectista” e de “habitante”, criando-se assim fortes experiências durante o
processo construtivo. A casa não era apenas encarada como um espaço disponível para habitar
mas acarretava consigo histórias de planeamento e de construção. No entanto, retomando a
imagem estereotipada da construção de espaços de habitação modernos, diversas personagens
interagem durante o processo de construção. Ainda que o habitante não seja imediatamente o
construtor ou o arquitecto, existem diversas experiências envolvidas, de diferentes indivíduos,
que varrem a suposta neutralidade dos sítios. Além disso, os espaços são desdobrados na
contemporaneidade em representações diversas. Diversos intervenientes interagem com
diferentes representações do espaço, ou seja, as experiências que constroem as histórias dos
locais não podem apenas ser pensadas no espaço em construção, mas desenvolvem-se em
diferentes “espaços”. A criação através do desenho, a construção através do cálculo, a
experiência corporal da obra, são igualmente formas de interacção com o mundo (seguindo
Thomas, 2006: 351). Cada espaço é resultado do trabalho colectivo de um grupo que o
habitante rapidamente toma como seu, familiarizando-o através da e pela construção das suas
divisórias interiores, do movimento e das práticas que aí se desenvolvem e se articulam. O
espaço nunca é neutro, mas adquire diferentes perspectivas ao longo do processo de feitura,
que em última análise nunca está finalizado.

205
Arquitectura como prática e tradições de práticas construtivas

Não pretendemos colocar em oposição a tradição de planeamento pelo arquitecto e a


tradição de construção pelas comunidades pré-históricas. Pensamos, no entanto, que, e para
concluir, é importante pensar acerca da “tradição”, ou melhor, acerca de “tradições de
práticas”. Partindo de um artigo de Thomas (2004a), gostaríamos de propor a designação
“tradições de práticas” como um conceito operatório que permite questionar a relação entre
seres humanos, materiais, plantas, animais, meio envolvente…, e a teia de relações para as
quais remetem os seus múltiplos significados. “Tradições de práticas” está ligado ao
transmitir de um “saber-fazer” espaços. Ora, essa transmissão dá-se pela prática – e não
apenas durante a escavação de um fosso ou a erecção de uma estrutura; os espaços estão em
permanente construção e transformação pela acção e vivência de diversos intervenientes
(seres humanos ou animais) ou pela própria vida da construção (por exemplo, processos de
declínio). Pelas tradições de práticas transmite-se e perpetuam-se histórias e memórias,
partilham-se experiências, fomenta-se a coesão social, desenvolve-se o sentido de grupo e de
pertença, fortalece-se o sentimento de herança. Os dispositivos arquitectónicos, estudados
segundo “tradições de práticas” não revelam funções mas constroem permanentemente as
suas histórias por um processo de repetição de práticas. Como referiu Derrida (1988) a
repetição nunca é a imitação do mesmo, sendo sempre diferente do que foi repetido
anteriormente. Neste sentido, as estruturas arqueológicas às quais tentamos conferir
inteligibilidade discursiva erguem-se num encontro do agora com o que foi, no cruzamento da
sequência com a simultaneidade, na estranheza do encontro aurático, no âmago da repetição
do diferente. Porque o que se repete é sempre diferente, a tradição é (também) criação; a
tradição é recriada e revisitada a cada momento pela prática, seja esta a da construção de
unidades circulares em Castanheiro do Vento – a da reunião atenta de lajes e fragmentos
cerâmicos, de terra e de água, de madeira e de pequenos ossos de animais, para que a estrutura
se insira numa rede de relações entre o passado e o presente – seja esta a da escavação com o
colherim das unidades circulares de Castanheiro do Vento.

Enunciámos neste texto os preconceitos e os riscos por trás da interpretação de


espaços como casas e das narrativas rígidas que se constroem no seio da explicação das
estruturas circulares como unidades domésticas. Tentámos explorar a diversidade de práticas
que podem ocorrer no seio de estruturas morfologicamente semelhantes, assim como a
possibilidade da sua permanente reelaboração através da (re)estruturação do seu espaço

206
interno. Poderíamos referir que as estruturas circulares identificadas não possuem uma lareira
central. Esta ausência poderia suscitar problemas no encaixe destas unidades nas tabelas
tipológicas de elementos construídos desenhada para sítios arqueológicos semelhantes. No
entanto, a nossa argumentação orientou-se por um outro caminho ao tentar equacionar as
relações entre materiais e estruturas e a relação destas mesmas unidades em Castanheiro do
Vento; a crítica ao discurso vigente não se efectuou neste texto pela não aceitação de certas
particularidades ou pela adição de outras características para a identificação de casas mas
tentou sublinhar a própria impossibilidade de criar “casas” no discurso acerca do passado. O
trabalho iniciado em Castelo Velho de Freixo de Numão em 1989 por Susana Oliveira Jorge
veio proporcionar a abertura de outros caminhos interpretativos. Este texto é uma
continuação.

O estudo destas estruturas através das “tradições de práticas” promove a sua análise
sem as encaixar em categorias específicas ou funções determinadas, na medida em que
possibilita o seu estudo através de práticas de fazer, práticas que se abrem à partilha de
experiências. “Tradições de práticas” são corporais e não estão conectadas com a criação
individual. Não perguntam: o que é que aconteceu aqui? Para que é que isto foi
feito/construído? Ou, porquê? Ao contrário permitem focar-nos nas histórias de fazer
arquitectura, em histórias que podem invocar outros espaços e tempos. E ao chamar outros
tempos, a tradição dá densidade temporal à construção de estruturas no sítio de Castanheiro
do Vento e coloca em questão o problema do conceito de origem e cronologia, por diversas
vezes abordado ao longo deste trabalho, e que, mais uma vez realçamos, enforma muitos
discursos sobre sítios arqueológicos e não possibilita a criação de outras formas
interpretativas. Para traçar este caminho, os trabalhos de Lesley McFadyen (2006) e de Julian
Thomas (2004a), são novamente convocados. Neste sentido, os conceitos de arquitectura
como prática e “tradições de práticas” irão estar interconectados no desenvolvimento deste
ponto.

Talvez seja útil começar por referir que quando nos referimos à palavra “tradição” não
estamos a pensar numa narrativa congelada, nem na(s) característica(s) que define(m) e se
reconhece(m) como símbolo identitário de uma comunidade. Também devemos realçar que
atentos ao trabalho de Hobsbawm acerca da invenção das tradições (do que se crê que os
antepassados sempre fizeram e, neste sentido, validam e identificam uma comunidade com
um conjunto de actividades, performances e materiais, mais ou menos ritualizados), não será,
207
contudo, esse o nosso caminho. Hobsbawm definiu a tradição inventada (“invented tradition”)
como algo que “is taken to mean a set of practices, normally governed by overtly or tacitly
accepted rules and of a ritual or symbolic nature, which seek to inculcate certain values and
norms of behavior by repetition which automatically implies continuity with the past”
(Hobsbawm, 2003:1). A espessura temporal que as estruturas de Castanheiro do Vento
adquirem ao longo do nosso estudo, não se traduz numa temporalidade homogénea e linear,
ou seja, não implica a conexão de um passado acontecido ao presente num friso cronológico –
“time is out of joint”. Tradição também não implica aqui, como atrás referimos, a repetição do
mesmo. Desta forma “tradição” não irá ser questionada enquanto um conjunto de regras e
normas que são impostas e repetidas pois, como Thomas referiu, “The traditions that human
communities hand down from generation to generation are sets of practices, rather than
abstract forms.” (Thomas, 2004a: 176). Este ponto irá assim debruçar-se num conjunto de
práticas repetidas e de formas de fazer que conseguimos reconhecer nas estruturas circulares
identificadas em Castanheiro do Vento.

A identificação do que podemos designar como um grupo partilhado de formas de


fazer estas estruturas assenta no reconhecimento de semelhanças; contudo, esta linha não
conduz à tradução de uma estrutura original, posteriormente reproduzida. E neste sentido, o
conceito de “iterabilidade” de Derrida pode ajudar a pensar acerca da repetição de formas de
fazer. Derrida introduziu o termo “iterabilidade” no texto “Assinatura Evento Contexto 11”,
definindo-o como uma palavra que agrega a palavra em latim iter (que significa, outra vez)
com a palavra itara do sânscrito (que significa, outro). Como os autores Dooley e Kavanagh
(2007) referiram, “normally we are used to seeing the word “iteration” as part of the word
“reiteration”. To reiterate something is to repeat it, and repetition is always repetition of the
same. Iterability also means repetition, but repetition with a difference (itara). It is not the
simple repetition of the same but a repetition that always has the potential to produce
something new.” (Dooley & Kavanagh, 2007:38). Também na língua portuguesa encontramos
o vocábulo “iterar”. No entanto, o Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora refere
que reiterar significa “repetir; fazer de novo; renovar”. Curiosa esta entrada, pois denuncia a
repetição como criação, a repetição como diferença, apesar do significado da palavra “iterar”
em nada fazer antever a possibilidade de criação na repetição já que se esclarece que iterar se

11
Derrida, J. “Signature, Event, Context”. In, Limited Inc. Evanston: Northwestern University Press, 1988, pp. 1-
23

208
traduz em “tornar a fazer, repetir”. No Dicionário “The Concise Oxford Dictionary”, a palavra
“reiteration” aparece definida como “say or do again or repeatedly”, mais uma vez, refere-se
apenas à repetição do mesmo.

Nas palavras de Derrida “Such iterability – (iter, again, probably comes from itara,
other in Sanskrit, and everything that follows can be read as the working out of the logic that
ties repetition to alterity) structures the mark of writing itself, no matter what particular type
of writing is involved (whether pictographical, hieroglyphic, ideographic, phonetic,
alphabetic, to cite the old categories). A writing that is not structurally readable – iterable –
beyond the death of the addressee would not be writing.” (Derrida, 1988: 7). Consideramos as
estruturas circulares de Castanheiro do Vento enquanto formas de inscrição que têm
subjacente a possibilidade de repetição, de iterabilidade, e de reinterpretação, na medida em
que se presentificam na ausência dos autores.

Assim, entendemos iterabilidade como a possibilidade de repetição que está


subjacente em cada estrutura; contudo, ao mesmo tempo, torna também visível a
impossibilidade de repetição na medida em que cada evento e cada estrutura são únicos. Cada
estrutura é passível de ser repetida mas em cada repetição altera-se. Repetição não é apenas
duplicação. Neste sentido a primeira estrutura a ser construída desaparece em cada repetição.
Nesta linha, nenhuma das estruturas é a original e nenhuma é a cópia. Neste processo, o
tempo diacrónico desaparece, não há sequência. As estruturas encontram-se entrelaçadas com
o sítio e entre elas. Nenhuma das estruturas pode ser entendida como a primeira que origina e
sustem a construção de estruturas circulares em Castanheiro do Vento.

Cada estrutura estudada enquanto singularidade que está em relação com outras
singularidades entendidas como pontos relacionais, permite o reconhecimento de tradições de
práticas sem, contudo, mascarar as suas particularidades. Nesta linha, a posição das lajes de
xisto, a matéria-prima empregue e a forma de cada estrutura anuncia a partilha de formas de
fazer, de formas de construir que uma comunidade ou várias comunidades repassaram ao
longo do tempo. Mas o estudo de tradições de práticas não é o mesmo que o estudo de
padrões construtivos; tradições de práticas permite o estudo da repetição como iterabilidade,
de formas de fazer e torna visível as diferenças de cada estrutura. Como repetição não é
repetição do mesmo, cada estrutura apresenta a sua especificidade.

209
Assim, regressemos ao estudo que elaborámos das estruturas circulares de Castanheiro
do Vento. Referimos que existem semelhanças ao nível da linha pétrea que delimita estas
estruturas, o que permite o reconhecimento de tradições de práticas no modo de fazer e
moldar estruturas circulares. No entanto, mesmo ao nível da definição pétrea, cada estrutura
parece apresentar soluções individuais para a feitura do seu limite. Neste sentido, apesar de
maioritariamente se verificar apenas uma linha pétrea na delimitação da forma, também se
registou a presença de uma segunda linha, não contínua, como uma espécie de arco exterior.
Neste caso, o espaço compreendido entre os dois alinhamentos encontrava-se preenchido por
um depósito caracterizado por um sedimento argiloso, compacto, de cor amarela e pela
inclusão de bastantes lajes de xisto de pequena dimensão. Também se verificou, em algumas
unidades, a existência de lajes não fincadas mas apenas colocadas na horizontal, segundo o
seu eixo maior, sem que este facto se possa dever a processos pós-deposicionais ou de ruína
da estrutura. Há também que realçar a combinação de matérias-primas. Ainda que o xisto seja
maioritário e muitas vezes o único elemento empregue na feitura da linha delimitadora,
aparece por vezes em conjugação com o granito, nomeadamente sob a forma de peças
fragmentadas ou inteiras de dormentes.

As estruturas circulares podem ainda, e resumindo o estudo já apresentado acerca


destas unidades, ser elaboradas de forma isolada ou geminada. Aparecem também em
diferentes redes relacionais: é possível assinalá-las entre muretes, no terminus de um murete,
no espaço interior das estruturas tipo “bastião”, encostadas a muretes, associadas a entradas,
no espaço interno do Recinto Principal. Neste sentido, parecem articular-se com diferentes
espaços e promover movimentos diversos. As estruturas circulares diferem ainda em relação
ao seu tamanho que varia entre 1,60 e 8 m de diâmetro. Em algumas estruturas foi possível
identificar buracos de poste no seu espaço interno ou no exterior da linha que a delimita (sem,
contudo, perder a relação com ela). Em outras nenhum buraco de poste foi detectado. Em
alguns casos foi possível detectar uma passagem. Em outros a linha pétrea parece fechar-se,
não se interrompendo a sua forma genericamente circular.

210
Fig. 9.2.5 Exemplos de “estruturas circulares”

A estrutura circular 3, escavada em 2005, revelou 160 fragmentos cerâmicos, na sua


maioria de pequeno tamanho e erosionados. A estrutura circular geminada 2, revelou um
recipiente cerâmico, não decorado, fragmentado genericamente em duas partes. Entre uma e
outra metade do vaso foi detectado um nível constituído por lajes de xisto conectadas com um
sedimento argiloso compacto. A estrutura número 3, com 3 m de diâmetro, não se encontra
aparentemente conectada com nenhum buraco de poste e não apresenta relações
estratigráficas imediatas com o murete. No espaço interno foi registado um nível de pequenas
lajes de xisto. A estrutura número 2, com 1,60 metros de diâmetro, é geminada com outras
duas estruturas e conectada com o murete. O espaço interno é organizado por uma deposição
intencional. Claro que as diferenças entre estas duas unidades são óbvias; contudo, a linha que
as delimita parece ter sido desenhada de forma similar. Podemos reconhecer tradições de
práticas nestas duas estruturas, o que não torna invisível, e desta forma ausente do discurso, as
suas próprias especificidades.

211
9.2.6. Localização da estrutura circular 3 e da estrutura circular geminada 2 em relação ao murete 3.

Intencionalmente referimos “podemos reconhecer”. O processo de escavação também


está embebido em tradições de práticas e de reconhecimento de “tradições de práticas”. A
escavação e a análise de algumas estruturas colocam-nos mais claramente perante a dúvida e
perante a dificuldade de interpretação. Será um encontro com a ausência de “tradições de
práticas”? Quando a primeira grande estrutura circular de 8 metros de diâmetro começou a ser
definida, não foi imediatamente reconhecida como uma estrutura circular. No início foi
registada como um alinhamento de tendência curvilínea. E isto porque a tradição das formas
de fazer estruturas circulares em Castanheiro do Vento não se aplicava a esta estrutura. O que
queremos sublinhar é que o estudo de “tradições de práticas” num sítio particular não implica
a elaboração de um manual de técnicas construtivas e de estruturas. É sempre um trabalho em
aberto que deve suscitar constantemente o questionar da construção de espaços, neste caso, de
Castanheiro do Vento.

Este ponto parece ter apenas focado até ao momento “tradições de práticas”
conectadas com a colocação de lajes de xisto no solo, deixando à margem as histórias de
fragmentos cerâmicos, objectos trabalhados em quartzo, que por transformação,
fragmentação, (re)uso, substituição, e reformulação, também carregam e criam histórias de
outros tempos, ou seja – carregam tradição. Estas histórias de construção adquirem densidade
temporal quando coisas antigas são rearranjadas, tornando-se novas, ou quando itens recém-
criados são adicionados, num processo de transformação mediante a criação de diferentes
relações. As “tradições de práticas” não envolvem a perpetuação de uma mesma história mas
a convocação de diferentes tempos; como refere McFadyen (2007), o passado é trazido para o

212
presente, não porque é materialidade passada, mas devido às possibilidades que abre 12. Neste
sentido, tradição não é apenas a comemoração de eventos passados mas a possibilidade de
outras construções, de um futuro. McFadyen também referiu que “the events [transformation,
transmutability, interruptions, disintegration, reconstitution] required people to remember, to
actively create memories of what had gone before”(McFadyen, 2007:352). E podemos
acrescentar que requeria que as comunidades interpretassem essas memórias (como Barrett
(1999) já referiu), que as reconhecessem, que as fizessem suas, que as reinterpretassem, e
sentissem vontade de as passar, de as repetir... de transformar “tradições de práticas”.

Talvez seja este o momento para sugerir que a tradição pode ser entendida como a
dimensão temporal das histórias do fazer. Histórias que falam acerca da forma como uma
estrutura circular é construída, acerca das lajes, da pedreira, da extracção, fragmentação e
incorporação em diferentes espaços, histórias acerca da terra e da água, da madeira e da
árvore, histórias acerca das mãos do passado e das mãos do presente, acerca de fragmentos e
de vasos, acerca da chuva que pode destruir uma construção em terra quando está ainda em
processo de feitura. Estas histórias não são informação, não necessitam de ser plausíveis.
Como W. Benjamin definiu de uma forma brilhante, uma história “Não pretende transmitir o
que há de puro “em si” nas coisas, como o fazem a informação ou o relato. A narrativa
mergulha as coisas na vida do narrador para depois as ir aí buscar de novo. Por isso a
narrativa tem gravadas as marcas do narrador, tal como o vaso de barro traz as marcas da mão
do oleiro que o modelou.” (Benjamin, 1992: 37). É importante sublinhar que a narrativa
também não é anónima e que o contador de histórias, ou o narrador, não está só. A história é
passada aos outros, aos ouvintes, aos que interagem na partilha das mesmas práticas, aos que
ouvem, vêem e fazem – passe a redundância – formas de fazer e que podem um dia ser
contadores de histórias também. É a transmissão de experiências, de “tradições de práticas”
mas como Benjamin (1992) referiu, com as marcas de cada narrador; ou como Derrida (1988)
acentuou, é a própria capacidade de repetição de uma história que faz com que de cada vez
que seja dita, ou performatizada num sentido mais lato, não seja mais a mesma, porque cada
repetição necessariamente altera.

12
“…the past is brought forward to the present, not for its past material, but for its possibilities. It was not just
that old and new items of material culture were being accumulated together, but that in that process these things
were transformed.” (McFadyen, 2007:352)

213
Intencionalmente não discutimos o conceito de intencionalidade, um dos pontos
principais na rede de relações que Derrida teceu para questionar o conceito de iterabilidade.
Encontram-se ausentes do texto questões como: “o que é que significa herdar ou receber uma
tradição?”; “será possível ter a certeza que herdamos as tradições da forma como os nossos
antepassados pretendiam?”. Parcialmente porque tentamos enfatizar a possibilidade da
diferença e da reinterpretação em cada estrutura, e admitimos que a história que é contada não
é apenas informação; se assim fosse não sobreviveria ao momento em que era contada. Estas
questões nostálgicas que apenas colocamos no final deste ponto aproximam-se das que
começamos por enunciar, e relembramos: o que é que aconteceu aqui? Para que é que isto foi
feito/construído? Ou, porquê? Estas questões foram mencionadas como aquelas que o
conceito de “tradições de práticas” coloca fora do inquérito. E neste sentido também não
fazem parte do nosso trabalho de investigação sobre Castanheiro do Vento.

É pelo construir e reconstruir em Castanheiro do Vento, pela reunião de coisas, pela


reorganização, transformação e destruição que “tradições de práticas” são criadas, recriadas e
reconhecidas por nós. Não se torna necessário a presença do indivíduo ou da comunidade que
criou um vaso em particular ou moldou uma estrutura específica. Cada marca traz consigo a
possibilidade de reinterpretação e neste sentido a história que é contada não se encontra
petrificada mas inscreve-se em formas de fazer. E é recreada no próprio processo de fazer.

“…quando falamos de casas ou de objectos, estamos a falar quase sempre de movimentos, ou


seja, uma casa é um conjunto de movimentos. Quando se constrói um espaço, estamos a dizer
que vou poder fazer estes movimentos e não vou poder fazer outros. (…) Uma coisa que me
agrada imenso é o cruzamento de tempos, esta ideia de que a casa pode não ter um tempo
uniforme. E o que acho interessante é sentir que a arquitectura não nos dá apenas indicações
do espaço, mas nos diz alguma coisa sobre o tempo.” (Tavares, G. M. 2010: 103).

O ponto anterior – em que discutimos a arquitectura dos bastiões – e este texto – onde
questionamos as estruturas circulares – pretenderam através do estudo pormenorizado de
muretes e disposições de lajes assim como das “coisas” que lhes foram associadas, falar
acerca de movimentos e tempos. Da multiplicidade dos seus cruzamentos e na miríade de
possibilidades interpretativas que sugerem. Cada ponto, cada estrutura, cada material poderá
ser entendido enquanto um nódulo do caminho, um ponto de ligação entre o lá e o cá ou entre
o outrora e o agora. Os pontos seguintes pretendem a redução da escala de análise. Reduzidos

214
ao fragmento, constrangemos o corpo a espaços apertados de análise, na esperança de no
detalhe se intuir uma outra panóplia de imagens (dialécticas).

215
216
10. Arquitectura como relação de materiais

10.1 Estudos de Fragmentação em Arqueologia

“Ao abrir-se, cada fragmento dá a ver uma evidência e esconde um deus


oculto. O clarão que rompe e se apaga num instante dá a ver a entrada do
paraíso, o outrora feito lugar (que aqui nada tem a ver com qualquer forma
de passado reencontrado).(…) Cada fragmento é o espelho oval onde nos
vemos. Que nos vê. E cabemos inteiros nessa moldura. Sem resto nem
remissão. Apesar do redondo, o fragmento é arestado. Há uma dureza agreste
no fragmento, que nos vem lembrar a nossa finitude humana.(…) O fragmento é
o nítido delineamento do mundo desfocado” (Barrento, 2010: 145-147)

Fig.10.1.1. Cornelia Parker, Cold Dark Matter: An Exploded View, 1991

Este ponto visa demonstrar a importância dos estudos sobre fragmentação em


Arqueologia. E o carácter fragmentado da amostra abre-se a outras perspectivas para além da
disciplina. A narrativa torna-se permeável a outros discursos, interpretações e olhares sobre a

217
fragmentação. E começamos este ponto com a ajuda de Linda Nochlin (1994). Depois
convocamos os arqueólogos. No entanto, este ponto não é de forma alguma exaustivo. Ficou
com certeza muito por dizer e nomes por citar. Temporalmente coetâneos, este ponto e o
seguinte – acerca da análise da Grande Estrutura Circular 1 – foram-se desenvolvendo
paralelamente. Pela clareza do discurso optou-se por compartimentar o trabalho desenvolvido.
A inspiração deste trabalho vem principalmente da leitura dos trabalhos de McFadyen, cuja
análise da cerâmica de Castelo Velho de Freixo de Numão tivemos oportunidade de
acompanhar.
Como caracterizar o fragmento? Como defini-lo? Pelas suas qualidades físicas? A
arqueologia tradicional não prestou grande atenção ao carácter fragmentado dos conjuntos
artefactuais que as escavações arqueológicas expunham. Tratavam normalmente os
fragmentos como “lixo”: objectos que tinham sido intencionalmente abandonados, e
deliberadamente deitados ao lixo pelas comunidades do passado (Thomas, 1999: 62).
Segundo J. Chapman este facto explica a quase total ausência de construções criativas
baseadas no fragmento (Chapman, 2009: 131). As interpretações acerca dos povoados
fortificados encontram-se ainda povoadas por esta fórmula explicativa: materiais
fragmentados são e eram lixo. No outro extremo da linha podemos encontrar o fragmento
inserido em deposições (rituais), considerado como relíquia. Dentro do panorama da
investigação dos recintos murados da Península Ibérica destacamos duas linhas de trabalho: as
levadas a cabo no sítio arqueológico de Castelo Velho de Freixo de Numão e as expostas num
trabalho recente de A. C. Valera (2010), que ao longo deste ponto tentaremos problematizar.
Também os trabalhos arqueológicos desenvolvidos no Sul de Portugal, dentro do projecto
Alqueva, parecem indicar outras formas de estudo e interpretação das estruturas em negativo.
Apesar dos resultados ainda não se encontrarem amplamente divulgados, pensamos que se
trata de um salto qualitativo e quantitativo na Arqueologia Portuguesa.
Peguemos então nos fragmentos como fragmentos. Prestemos atenção ao detalhe de
cada um.

218
Fragmentação como Metáfora da Modernidade

Figura 10.1.2. Henry Fuseli, The Artist Overwhelmed by the Grandeur of Antique Ruins, 1778-79.

“Modernity, in this memorable red chalk and sepia wash drawing, is figured as
irrevocable loss, poignant regret for lost totality, a vanished wholeness. So devastated is the
artist by this loss that he cannot even see; he is represented as self-blinded. With one hand
covering his eyes, he gently and lovingly extends his other arm to embrace, and at the same
time to palp, the extent, volume and texture of the giant foot at his side. Touch is the sense in
question here, suggested both by the gesture and by the formal qualities of the drawing
itself.” (Nochlin, 1994: 7).

Linda Nochlin abre o seu livro intitulado “The Body in Pieces. The Fragment as a
Metaphor of Modernity” com esta imagem desenhada por Henry Fuseli. O artista está de luto.
De luto por um passado irrecuperável, pela grandeza do fragmento. Luto pela impossibilidade
de recuperar a totalidade. O desejo pelo todo é necessariamente projectado no passado como

219
nostalgia e no futuro como Utopia. Nochlin sugere que a Modernidade assenta exactamente
nesta perda, na perda da totalidade. (Nochlin, op.cit.:8).
Segundo Tronzo (2009) os fragmentos representados por Fuseli são a herança do
passado. Fragmentos que devem ser conservados, preservados, para que não se perca a
memória, a memória de um passado colectivo. O medo do esquecimento atormenta a
Modernidade. Como resultado, elabora projectos de preservação e musealização de sítios
arqueológicos. O fragmento enquanto património exige a sua conservação. As arestas são
conservadas. Impede-se a continuação da destruição. S. O. Jorge refere dois clichés
associados à obsessão contemporânea de conservar: preservação de memórias e de
identidades. Voltamos a chamar estes dois clichés, porque a eles se ligam ideias e premissas
como: a memória do nosso passado comum, a nossa origem, ou a origem do modo de vida em
aldeias, da prática da agricultura, da família; o passado como justificação do presente, como o
tempo que foi e que agora é, sem hiatos, contínuo; a identidade de um local, de um país; as
raízes do que nos define; as pedras com que nos identificamos e que justificam a nossa
pertença a um sítio.
“Construir ruínas, fabricar monumentos emerge em contextos contemporâneos que
prestam culto ao esquecimento” (Jorge, S. O., 2005a: 60). Seguindo Marc Guillaume (2003),
a autora sublinha que conservar a ruína é ditar a sua própria morte. É o passado como obra
acabada, como produto que pode ser consumido pelo público, já decifrado e “arranjado” pelo
arqueólogo. “As narrativas tradicionais sustentam interpretações não apenas simples, mas
imutáveis e homogeneizantes. Referem-se a “passados acontecidos” que teriam como espaço
de acção os monumentos valorizados. Fazem passar a mensagem de que a “funcionalidade”
dos sítios foi decifrada através de um processo de descodificação linear, e não aceitam
(explícita ou implicitamente) a possibilidade de alteração global da teoria interpretativa
apresentada.” (Jorge, S.O., op.cit.:63).
A nostalgia do fragmento que é herdado do passado contrasta com a criatividade
promovida pelo fragmento que é criado, por exemplo, na Revolução Francesa onde a
fragmentação intencional é uma metáfora forte para a destruição do Antigo Regime (Tronzo,
2009: 1). A queda do Antigo Regime traz consigo a destruição. Fragmentação e mutilação são
desencadeadas como subversão relativamente às regras do passado. Estes fragmentos podem
posteriormente ser reunidos enquanto dispositivos artísticos que representam o Regime em
pedaços, fragmentado; os seus diversos ícones mutilados, subvertidos, são então exibidos,
como na exposição no Grand Palais em Paris, em 1989 (Nochlin, 1994: 9). E não é só o
“mundo material” que é fragmentado, o corpo humano é-o também. A decapitação das figuras

220
ligadas ao Antigo Regime sugere o desmembramento desse mesmo regime. A fragmentação é
personificada pela cabeça dos seus representantes. O topo encontra-se decapitado, é o regime
na guilhotina, fragmentado, destruído. Nochlin identificou estas práticas como “fragmentation
as destruction”. Outros exemplos podem ser acrescentados ao proposto por Nochlin. Após a
Revolução Francesa, o mundo continua a assistir a inúmeros momentos de fragmentação
como destruição.

Figura 10.1.3. Fragmentação da estátua de Saddam Hussein (Bagdad, Iraque)

A 9 de Abril de 2003 a estátua de Saddam Hussein é fragmentada na praça central de


Bagdad (erguida por altura das comemorações do 65º aniversário do então presidente do
Iraque, cerca de um ano antes da sua destruição). A imagem, símbolo do regime que os
Estados Unidos da América entenderam derrubar em nome da liberdade e paz mundial, foi
intencionalmente partida, fragmentada. Era o regime em pedaços. Saddam Hussein e o seu
regime eram finalmente destruídos, despedaçados em fragmentos. Momentos antes do derrube
da estátua por militares norte americanos, um grupo de iraquianos tentou a destruição da
figura do regime tentando fragmentar a coluna onde assentava a estátua. Um pouco por todo o
Iraque imagens de Saddam Hussein foram fragmentadas, retalhadas, destruídas.

221
Figura 10.1.4. Fragmentação de representações de Buda (Afeganistão)

Afeganistão, 1 de Março de 2001: um grupo Talibã destrói centenas de imagens por


considerá-las ofensivas ao preceito muçulmano que proíbe a adoração de imagens. A
representação de Buda na figura 10.1.4 é intencionalmente fragmentada. O fragmento, o que
resta, já não é uma ameaça ao cumprimento dos preceitos religiosos mas impõe-se como uma
ameaça a quem não obedecer à nova ordem. Fragmentação como destruição, fragmentação
como ameaça, como acção intimidatória, como a imposição da nova lei.
Retomando Nochlin (1994), o fragmento é também metáfora de outras imagens da
Modernidade. Fragmentação como sacrifício, resultado de uma devoção exacerbada – o
“herói” mutila-se, “dá”, por exemplo, o seu próprio braço numa guerra, pela nação (como
exemplo a autora apresenta uma pintura de c.1794, chamado “Devotion to One’s Country”, de
pintor anónimo). A autora relaciona esta imagem com a adoração das relíquias dos santos
(fragmentos sagrados) por contraponto às imagens seculares de Géricault (de fragmentos do
corpo humano) e os auto-retratos de Van Gogh. (Ibid: 14) Na obra de Géricault, as pinturas
exibem literalmente o corpo em pedaços, fragmentado, partido, segundo as regras frias e
exactas da medicina mas deixando transparer um certo romantismo dados pelo arranjo das
partes. Segundo Nochiln, a obra de Géricault só é possível num cenário pós-revolução
francesa em que está presente a memória da violência, da guilhotina, do anti-herói
napoleónico. Em contraponto, partindo de uma inspiração contrária à Revolução, surgem
pinturas sugerindo a fragmentação como obscenidade, ligada ao canibalismo, à bestialidade.
Estas metáforas: a fragmentação como destruição, a fragmentação como sacrifício, a
fragmentação como obscenidade e o corpo fragmentado remetem-nos para a perda da
totalidade – a marca que caracteriza a experiência moderna.

222
Nochlin prossegue a sua análise explorando a obra de Edouard Manet, Edgar Degas,
Vincent van Gogh e Paul Cézanne. Figuras “cortadas” nos limites da pintura. Fragmentos de
personagens no espaço pictórico. Ensaios de corpos incompletos. A mutilação do artista é
para Bataille a inspiração, não um empobrecimento da criatividade (Ibid: 51). Na arte
contemporânea “the fragment assumes new, and differently transgressive, forms. In the
sculpture of Louise Bourgeois, for instance, the part-object serves as the subverter of
modernist rationality and formalist abstraction and as the site of a triumphant reintroduction
of the abject in the form of infantile desire and gender-bending metamorphosis” (Ibid: 54).
Refira-se também a instalação de Hans Bellmer (1932) com pedaços de bonecas mutiladas.
Aqui, o corpo humano fragmentado aparece-nos como desafio às regras ditadas pela biologia
de corpos femininos e masculinos. O horrífico serve para questionar o que se tem como
estabelecido.

Fragmentos Cerâmicos e o Estudo da Formação de Depósitos

Em Arqueologia o fragmento tem sido estudado segundo diversos olhares. Aqui


começamos com o de M. Schiffer (1987). O olhar atento do arqueólogo a cada fragmento
cerâmico permitiria, segundo Schiffer, a compreensão da formação do registo arqueológico:
“Artifact types ordinarily go through predictable life cycles (Schiffer 1972, 1975b; Rathje and
Schiffer 1982), from procurement through manufacture and use to deposition in
archaeological context. Especially during use and subsequent stages, traces are formed that
furnish evidence on cultural formation processes. One of the simplest, most frequently
observed traces is whether the artifact is fragmentary or whole. Determining if an artifact
was usable at the time of cultural deposition helps to indicate the responsible processes (see
Rubertone 1982:130)” (Shiffer, 1987: 271; ênfase nossa).
Nesta linha, Schiffer realça um conjunto de características dos artefactos, que
poderiam revelar informações valiosas acerca da formação dos depósitos em que esses
mesmos artefactos se encontrariam inseridos. Esta abordagem é baseada na identificação dos
traços deixados nos artefactos. Por exemplo, sublinha que a análise do tamanho dos
fragmentos pode revelar actividades de limpeza, a movimentação de sedimentos causada por
actividades humanas, animais ou por máquinas (como no caso da agricultura), ou ainda
decorrentes da acção da água ou do agente eólico (o autor considera ainda a densidade, forma,

223
orientação e profundidade da peça, o grau de deterioração, a presença de concreções e os
tempos de uso dos artefactos).
Na medida em que Schiffer considera a fragmentação de recipientes cerâmicos um
indicador do processo de formação do depósito em que se encontrampropõe a averiguação do
“completeness index” (Ibid: 282), ou seja, da relação entre o número total de fragmentos
encontrados do mesmo vaso e o peso total (ideal) do vaso. Quanto mais próximo da sua
“forma original” estiver o recipiente cerâmico encontrado/reconstituído, menos perturbado se
encontra o depósito, podendo tratar-se neste caso de “some types of de facto refuse, grave
goods, caches, and certain kinds of secondary refuse (e.g., sanitary landfills).” (Ibid: 283) Este
cálculo não diz contudo acerca do tamanho dos fragmentos cerâmicos. Neste sentido, o autor
sugere a utilização do “fragmentation index” (Ibid: 283) com o intuito de verificar se o vaso
se encontra muito ou pouco fragmentado. Estes dois exercícios pressupõem, no entanto, que
os vasos estejam completos (por colagens) ou que existam referentes. O autor propõe também
o cálculo do número mínimo de vasos e acentua a importância das colagens, sobretudo para
averiguar processos de distúrbio ou a ausência destes. Realça ainda as remontagens (e
colagens) como uma técnica promissora em Arqueologia, na medida em podem indicar
actividades passadas que condicionaram a sua distribuição ou fractura, assim como processos
de formação de depósitos. No entanto sublinha apenas a importância deste exercício para
objectos líticos e artefactos em osso. (Ibid: 287)
Schiffer acrescenta ainda a noção de “fragmento órfão”, que corresponde a fragmentos
que não colam com outros. Surgem isolados, como únicos representantes de um recipiente
cerâmico. Segundo J. Chapman é “the most important concept that Schiffer introduced into
fragmentation studies.” (Chapman, 2007: 1000), pois como referiremos mais à frente neste
ponto, Chapman irá sublinhar que a grande percentagem de “fragmentos órfãos” na maioria
dos sítios arqueológicos pré-históricos não se ficará a dever tanto a processos tafonómicos
mas a práticas sociais que envolvem a fragmentação intencional de recipientes cerâmicos e
sua posterior manipulação.
Para Schiffer, os depósitos são eles próprios artefactos particulares. O estudo visa
apenas compreender a formação do depósito, e isto através do olhar das disciplinas que
enunciou: etnoarqueologia, arqueologia experimental, tafonomia e geoarqueologia. Assenta
no pressuposto que a leitura correcta do registo arqueológico, ou melhor, dos processos pelos
quais ele se formou, permitirá aos investigadores “appreciate the past agencies that were
responsible for the complex arrangements of cultural and environmental materials (deposits)
observed today.” (Schiffer, 1987:302).

224
Na linha de M. Schiffer, e no contexto das investigações de Castelo Velho de Freixo
de Numão, na sua tese de mestrado, Iva Botelho (1996) propõe-se a falar dos vasos e dos
cacos deste sítio arqueológico (exumados nas campanhas de 1991 e 1992). Em claro
desacordo com as ideias que vinham a ser desenvolvidas por Susana O. Jorge, interpreta o
sítio como um povoado e todos os materiais encontrados no decorrer da escavação como
resultantes de actividades domésticas. Assim, os vasos servem a finalidade básica de “conter
alimentos” (Botelho, 1996: 75). Esta explicação para os vasos e fragmentos cerâmicos de
Castelo Velho irá dirigir a sua pesquisa. Os fragmentos que possibilitam inferir a forma são
encaixados em tipologias e cada tipo é adstrito a uma função. A fragmentação é explicada
pela utilização dos vasos em contexto doméstico e o grau de fragmentação pelo uso (como o
andar pelo sítio) e abandono do sítio (durante o qual, ficam para trás um conjunto de
materiais), assim como por processos pós-deposicionais (muito valorizados neste trabalho).
A autora divide assim o seu estudo em duas partes: uma sobre recipientes, a outra
sobre os fragmentos cerâmicos. Neste sentido, na primeira parte estabelece, a partir da sua
função hipotética, sete categorias de vasos, a saber: para consumir alimentos e de uso
individual; para preparar alimentos e eventualmente destinados ao consumo colectivo;
recipientes para ir ao lume; para o provisionamento; vasilhame para conter, transportar e
armazenar líquidos; e, relacionados com a culinária, pequenos recipientes para servir ou
guardar um bem. (Botelho, op.cit.:77-78). Todos os recipientes se relacionam assim com
actividades de preparação, consumo e armazenagem de produtos alimentares e, neste sentido,
apoiam a interpretação do sítio enquanto um povoado. Por outro lado, a autora relaciona a
função de cada recipiente com a quantidade de fragmentos existentes no sítio de Castelo
Velho. Segundo esta abordagem, estava inerente aos vasos mais pequenos, ligados à
preparação e consumo de alimentos, um carácter móvel e um uso intenso. Devido a estes dois
factores, estes recipientes partiam-se mais e, consequentemente, haveria uma maior
necessidade de os fabricar. Já os vasos de grande dimensão, conectados com o
armazenamento, de carácter mais fixo, não seriam tão propensos a partir. No entanto refere
que a categoria cinco, a qual designa por “cântaros de ir à fonte”, pode dever a sua baixa
frequência exactamente à sua função: o transporte de água de fontes para o sítio, o que eleva o
risco de fractura na fonte ou ao longo do caminho. Também a decoração do vaso é explicada
segundo a sua função: as áreas lisas podem estar relacionadas com as áreas que iam ao lume;
a abundância de decoração poderia significar que esse mesmo vaso seria para ser visto – era
portador de mensagens codificadas.

225
Na segunda parte do trabalho, Botelho pretende, na linha de Schiffer, efectuar o estudo
da formação dos depósitos em Castelo Velho 1. Analisa o número de fragmentos cerâmicos, o
seu tamanho e a sua articulação com os contextos identificados. Através do estudo da
quantidade de fragmentos cerâmicos por camada, quadrícula e contexto, chega à conclusão
que são notórias as actividades de limpeza e descarte. Assume que a fraca frequência de
fragmentos que possibilitam colagem se encontra conectada com o “simples deambular
quotidiano dos habitantes de Castelo Velho” e resultado do “princípio da dissociação” 2
(Botelho, op.cit.: 100).
A análise do tamanho dos fragmentos por quadrícula, camada e contexto, permitiu à
autora detectar diferentes padrões de fragmentação. Justifica o índice mais elevado de
fragmentação por processos como, por exemplo, o andar (calcar os fragmentos) e interpreta as
áreas onde os fragmentos se revelam de maiores dimensões como tendo sido fechadas durante
o Calcolítico, o que explicaria a presença de grandes fragmentos cerâmicos, como é o caso
das entradas do murete principal. O estudo dos fragmentos, que atendeu essencialmente às
suas características morfotécnicas, permitiu ainda a caracterização das camadas arqueológicas
identificadas em Castelo Velho. A autora refere que a camada 3 se relaciona com a ocupação
Calcolítica e a camada 2 com a ocupação da Idade do Bronze, a qual se sucede à primeira
depois de um hiato temporal (ainda que curto). Nesta análise são valorizados os processos
pós-deposicionais (que explicam a presença de materiais conectados com um período
cronológico na camada formada num outro). A análise dos materiais permitiu ainda à autora
avançar a proposta de abandono do sítio durante o Calcolítico de uma forma não planeada. A
sustentar esta hipótese refere o contexto com 24 pesos de tear (inteiros) que, segundo a autora,
contraria os modelos de ocupação diária do sítio ou de um abandono planeado (os habitantes
de Castelo Velho não deixariam para trás os pesos de tear se a saída do povoado tivesse sido
projectada).
Esta linha interpretativa distancia-se drasticamente de todos os outros trabalhos
produzidos acerca de Castelo Velho de Freixo de Numão. Como exemplo, chamamos aqui o
estudo de Sérgio Gomes (2003) acerca do mesmo contexto caracterizado pela presença de 24
pesos de tear. Apesar da investigação no sítio ter já adquirido outros contornos e as áreas

1
“Pretendendo averiguar alguns aspectos dos fenómenos de formação dos depósitos de Castelo Velho, bem
como a possibilidade de ocorrência de perturbações, tais informações serão obtidas a partir da conjugação das
quantidades de fragmentos com os seus tamanhos e em articulação com a organização arquitectónica do espaço”
(Botelho, 1996: 90)
2
Proposto por Schiffer e Rathje, este princípio, chama a atenção para a possível separação no registo
arqueológico de objectos que estariam juntos numa determinada actividade assim como para a junção de
objectos que nunca teriam sido usados em conjunto (Schiffer, 1987:20)

226
escavadas e contextos identificados revelarem novas características aquando do trabalho de
Gomes, parece-nos importante referir esta abordagem mais recente. Nela, o autor, a partir da
análise da distribuição de pesos de tear, valoriza estes últimos como elementos estruturadores
de um espaço que condicionam movimentos e delimitam percursos. A análise contextual,
atendendo à sua relação com outros materiais e contextos/estruturas próximas, leva o autor a
propor a interpretação destes elementos enquanto mimetizações de tarefas.
O confronto destas duas análises permite realçar a atenção dada a diferentes variáveis,
e como a flexibilidade interpretativa interfere de forma directa na criação de discursos acerca
dos materiais e seus contextos. Gomes estudou os pesos de tear enquanto elementos
arquitectónicos. O autor refuta também a relação directa entre forma e função. A mesma
forma não tem necessariamente que desempenhar a mesma função. Neste sentido, valoriza o
estudo contextual. Botelho concentra-se nos materiais em si, nos papéis que teriam
desempenhado no passado, e perspectiva o registo arqueológico como condensador de
imagens do passado que o arqueólogo é capaz de descodificar. Os pesos de tear são, neste
contexto, considerados apenas como indicadores de actividades passadas, espelhando, neste
caso, o abandono apressado do sítio. De facto, a autora entende que o bom estado de
conservação dos materiais só poderia ser explicado por uma saída apressada do sítio que não
tenha permitido o planeamento do acondicionamento e transporte das peças. Os materiais não
interferem na produção de espaços e apenas dão leituras temporais sequenciais. Mas mesmo a
arqueologia cognitiva de Schiffer salientava que a presença de materiais com determinada
organização depende de vários factores, que só poderiam ser confrontados através de uma
análise contextual.
Botelho elaborou, sem dúvida, o primeiro trabalho acerca da fragmentação cerâmica
no contexto da investigação de Castelo Velho de Freixo de Numão. Inspirando-se em
Schiffer, elabora um estudo do conjunto cerâmico que tem em conta a densidade de
fragmentos por quadrícula, o seu tamanho e faz o estudo da articulação destas duas variáveis
em diversos contextos do sítio. Contudo, a sua pesquisa dirigida para a identificação de
unidades domésticas vicia irremediavelmente a interpretação dos dados. Claro que o
questionário é sempre dirigido, mas a falta de flexibilidade na interpretação dos contextos é
demasiado pesada neste estudo. Fica também por saber qual o estado de conservação dos
fragmentos cerâmicos analisados (superfícies e arestas) assim como a sua relação com outros

227
materiais (duas variáveis muito sublinhadas por Schiffer na análise da formação de
depósitos 3).
Dulcineia Pinto (2010), no estudo da cerâmica do sítio pré-histórico de Crasto de
Palheiros (Murça, Nordeste de Portugal), ensaiou um conjunto de análises que privilegiaram o
tipo de pasta e sua relação com o grau de fragmentação da cerâmica. A autora convocou ainda
a este estudo outras variáveis como: o grau de corrosão das arestas, a cor, o número de
colagens, o grau de conservação das superfícies. Ensaiou depois uma análise contextual,
tendo em atenção estes critérios. O objectivo deste estudo é essencialmente a avaliação da
formação dos depósitos no sítio arqueológico mencionado. Este estudo merece a nossa
atenção pelo pormenor com que está a ser desenvolvido, pela atenção prestada a cada detalhe
do fragmento cerâmico. Contudo, divergimos relativamente aos objectivos que perseguimos.
Esta linha de pesquisa parece ser seguida também por Márquez Romero e Jiménez
Jáimez (2008) no estudo dos recintos com fossos do Sul Peninsular, ainda que apenas como
um conjunto de intenções:
“Por último, debemos subrayar la importancia de examinar los materiales exhumados, para
evaluar ciertos parámetros que nos puedan orientar sobre los procesos de formación del
registro arqueológico, como el grado de abrasión o deterior de los fragmentos cerámicos,
entre otros muchos (Schiffer, 1983; 1987: cap. 10), que nos pueden informar sobre el tiempo
transcurrido y las situaciones por las que pasaron los objetos antes de ser depositados.”
(Márquez Romero & Jiménez Jáimez, 2008: 169)
Os autores parecem apenas interessados em compreender os processos de formação do
registo arqueológico por agentes tafonómicos e pós-deposicionais. Não se tratam das
possíveis histórias de fragmentação e do fragmento cerâmico, mas sim o que terá ocorrido
durante milénios aos depósitos que os contém e que características e traços deixou o tempo
nos artefactos.

3
Ver, a título de exemplo, Schiffer, M. 1985.

228
Fragmentação Intencional de Recipientes Cerâmicos – o Todo e a Parte

O ponto anterior destacou a influência de Schiffer no estudo da componente


artefactual. Ou autores referidos pretendem a análise dos traços que factores pós-
deposicionais e/ou culturais imprimiram no fragmento cerâmico. O objectivo principal
relaciona-se com o estudo da formação dos depósitos. A fragmentação de recipientes
cerâmicos nesta linha explicativa tem quase sempre um carácter acidental. O estudo dos
fragmentos cerâmicos visa a recuperação/reconstituição do recipiente cerâmico e/ou
explicação da formação de um depósito.
J. Chapman (2000; 2007) distancia-se do objectivo principal do inquérito delineado
por Schiffer e propõe o estudo da fragmentação em relação com as práticas sociais que lhe
deram origem. O autor considera que a elevada percentagem de fragmentos cerâmicos que
não possibilitam a reconstituição de formas ou que não geram nenhuma colagem é resultado
de práticas intencionais de fragmentação e manipulação de fragmentos de materiais (seja de
fragmentos cerâmicos ou figurinos em cerâmica). O seu estudo centra-se na região dos Balcãs
durante o Neolítico e Calcolítico (grosso modo do VII ao III milénios a.C.). Esta nova linha
de investigação, que define a fragmentação como “the often deliberate breakage of objects
before the end of their use-life and their deposition in structured contexts” (Chapman, 2000:
222), levantou outras questões e dirigiu a atenção para outros detalhes.
Uma pergunta constante de Chapman é “where are the missing pieces” ou “where are
the missing sherds” (Chapman, 2007, capítulo 5). O elevado número de “fragmentos orfãos”
presentes na maioria dos sítios arqueológicos pré-históricos (a uma escala europeia) não pode
apenas ser explicado, segundo Chapman, por processos pós-deposicionais, mas deverá ser
questionado no quadro das práticas sociais. Chapman acentua duas – “encadeamento” e
“acumulação” – que podem ter promovido a dispersão dos fragmentos cerâmicos que hoje
analisamos (Chapman, 2000:104). O autor sublinha particularmente o “encadeamento”, que
explica da seguinte forma:
“The two people who wish to establish some form of social relationship or conclude
some kind of transaction agree on a specific artefact appropriate to interaction in question and
break it in two or more parts each keeping one or more parts as a token of the relationship.
There may well be limits of size on how often a single object can be successively fragmented
to maintain the impetus of the enchained relationship. Thus, the part of the object may itself
be further broken and part passed on down the chain, to a third party. The fragments of the

229
object are then kept until reconstitution of the relationship is required, in which case the
part(s) may be deposited in a structured way” (Chapman, 2000:6).
Ainda nas palavras de Chapman:
“- The significance of enchainment can be summarized in four main points – the first three
global, the fourth local:
• Enchainment mobilizes the identity triad of persons, places and things through
presencing;

• Enchainment comprises the best, and sometimes the only, explanation for deliberate
fragmentation;

• Enchainment relations subsume concepts such as curation, tokens, ancestral


veneration, heirlooms and relics.

• But

• Enchainment remains at the general level of social practice – the challenge is to refine
the links between persons and things for each specific cultural context.” (Chapman,
2007:203).

O encadeamento enquanto prática social permite assim justificar a presença de grandes


percentagens de fragmentos únicos ou órfãos (que não colam) nos sítios da Pré-história
Recente dos Balcãs (e que Champan alarga a toda a Europa), assim como problematizar as
relações entre grupos, entre pessoas, entre sítios (a paisagem passa também a ser entendida
como um espaço de circulação de fragmentos cerâmicos e de deposição; ou seja, fragmentos
de um mesmo vaso podem estar distribuídos por diferentes locais na paisagem).
Na obra de 2007, Chapman demora-se nas diferentes hipóteses de “vida” de um fragmento
cerâmico. Chama ao texto diferentes autores maioritariamente da década de 70/80 do século
XX (Chapman, 2007: 75-77). O estudo da comunidade Hopi (Arizona, E.U.A.) por
Stanislawski é referido como exemplo dos diversos usos de fragmentos cerâmicos.
Fragmentos cerâmicos foram registados como modelos na feitura de vasos, colocados em
templos, nos caixilhos de janelas e portas, no resguardo de peças cerâmicas durante a
cozedura destas, moídos e utilizado como desengordurante, para alisar e finalizar o tratamento
das superfícies dos vasos, etc. (Chapman, 2007: 75). Destaca ainda o trabalho de Weigand,
revelador das diferentes histórias que um caco pode ter em um “rancho”. Weigand seguiu o

230
percurso dos fragmentos cerâmicos que resultaram da quebra de um recipiente e traçou uma
grande variedade de transformações pelas quais os fragmentos cerâmicos passaram:
- “part of the vessel was soon re-used as a water jar;

- Other parts were taken to the kitchen wall and kept (as de facto refuse)

- Children collected some of these sherds and threw them on an outside refuse dump;
some sherds ended up 100m away from the house;

- Some rim sherds remained on the outside wall of the house for 5 months,

- 1 of these sherds were re-used as an artifact;

- 38 small sherds were left outside the wall;

- After 3 more days, all 38 sherds were thrown onto a dump.” (Chapman, 2007: 76)

Optámos por transcrever aqui a lista elaborada por Weigand sobretudo para acentuar a
grande mobilidade dos materiais, não só a nível espacial, mas também a sua inserção em
diferentes actividades, a sua ligação distinta a espaços construídos, a sua capacidade de
estruturar um espaço, a sua manipulação por indivíduos distintos, em contextos distintos, com
objectivos distintos. É também importante notar que em nenhuma ocasião o fragmento
cerâmico (ou a totalidade dos fragmentos), reportou para o vaso ou foi tratado como “lixo” 4
de forma imediata. Neste sentido, Chapman aponta como o grande desafio da teoria da
fragmentação “the development of a methodology for discriminating between deliberate
fragment enchainment, fragment dispersal and deposition and the wide variety of other
practices, often involving children’s play, whose intended or unintended consequences
include the temporal and the spatial dispersal of objects fragments” (Chapman, 2007: 78).
Chapman chama também a atenção para as diferenças entre espaços ditos domésticos e
espaços funerários aquando dos estudos de fragmentação. O espaço doméstico, como espaço
não fechado, está sujeito a diversos processos que influem na distribuição espacial dos
materiais. Já o espaço funerário se caracteriza normalmente por contextos fechados e a
circulação dos materiais não é tão difícil de traçar como nos primeiros. Neste sentido,
Chapman propõe para os espaços domésticos uma escavação detalhada de cada contexto e o

4
O conceito de lixo leva Chapman, no mesmo capítulo, a reflectir acerca do que é o lixo, o descarte, as
actividades de limpeza, e acerca do que eliminamos no mundo ocidental (Europa e América); problematiza
também a forma como projectamos no passado estas práticas.

231
registo tridimensional de todos os fragmentos (Chapman, 2007: 95). Propõe também que a
metodologia a adoptar no estudo de fragmentos cerâmicos envolva “intensive studies of each
sherd for size, weight, abrasion and other traces of sherd’s life-history.” (Ibid:100).
Esta abordagem abre sem dúvida o estudo da fragmentação a perguntas novas,
problematiza outras relações e parece tentar sair do ciclo vicioso da explicação por quebra
acidental. Não se limita à constatação do óbvio, à facilidade da explicação imediata,
elaborando um esquema que parece adaptar-se a todas as realidades. Num artigo recente, de
2009, Chapman e Gaydarska mudam a escala de análise e propõem (cruzando o pensamento
do físico e filosofo inglês David Bohm e o modelo de evolução cognitiva do arqueólogo
Steven J. Mithen) a premissa de que a fragmentação intencional é universal, inerente à própria
condição humana: o homem sempre viveu entre fragmentos e a fragmentação intencional
sempre fez parte das práticas sociais de toda e qualquer comunidade. Neste sentido foca a sua
análise no Paleolítico. Recua às origens do Homem para falar acerca da origem da
fragmentação intencional.
Apesar de referirem que um dos desafios dos estudos de fragmentação passa pela
análise da natureza dessa mesma fragmentação, concentram-se na fragmentação intencional.
Como referiremos mais à frente neste ponto, os estudos de fragmentação de McFadyen (no
prelo) distanciam-se desta premissa. O trabalho de McFadyen não está direccionado para
responder à pergunta “como é que se fragmentou?” mas concentra-se nas histórias do
fragmento cerâmico após a quebra do recipiente. A análise proposta pela autora, que mais
tarde desenvolveremos, privilegia o fragmento cerâmico como unidade e não apenas como
referente do vaso cerâmico, ou seja, aquele não é interpretado como uma parte que diz, ou
pode dizer, do todo. Ao contrário, Chapman considera que o fragmento cerâmico está sempre
conectado com o recipiente.
Contextos como Castanheiro do Vento, que Chapman integraria nos contextos
domésticos, estão sujeitos a uma variedade enorme de factores que influem directamente na
organização espacial dos fragmentos cerâmicos (como aliás Chapman referiu). Efectivamente
só uma escavação detalhada e com uma atenção dirigida ao detalhe – segundo, por exemplo, o
enfoque de McFadyen para estudo dos fragmentos cerâmicos – permite questionar e sugerir
histórias de fragmentação e manipulação de fragmentos cerâmicos. Mas esta incursão nos
estudos da fragmentação leva-nos primeiro ao trabalho de A.C. Valera.
Num artigo recente, Valera (2010) elabora um estudo de fragmentação de lúnulas em
marfim provenientes de um sepulcro da necrópole dos Perdigões. O conjunto analisado é
caracterizado por uma peça inteira, seis metades e sete fragmentos menores. Os fragmentos

232
referem-se sempre, com uma excepção, à metade esquerda da peça. O autor refere-se a “um
padrão que traduz intencionalidade” (Valera, 2010: 32) na fragmentação das peças. Os
fragmentos foram registados no átrio e na câmara do monumento e relacionam-se com dois
momentos de deposição (Ibid: 34). O autor refere que as peças encontradas no átrio estão
separadas pela laje de encerramento do corredor que a determinada altura caiu. Os fragmentos
de lúnulas, separados pela laje do corredor, encontram-se também conectados com outros
materiais. Num primeiro momento estão em relação com “alguns fragmentos cerâmicos e de
lâminas e ídolos falange” (Ibid: 34). No segundo momento encontram-se associados a “outros
objectos em marfim, a ídolos falange decorados, dois fragmentos de Pecten maximus, uma
presa de javali, alguns recipientes cerâmicos inteiros, (…) várias dezenas de contas de colar,
alguns fragmentos de lâmina e ídolos em osso” (Ibid: 34). É curioso que num momento os
fragmentos de lúnula apareçam conectados com fragmentos cerâmicos e fragmentos de
lâminas e num segundo momento com vasos inteiros ainda que com fragmentos de lâminas.
Resta perguntar se a queda da laje de encerramento do corredor é responsável directa pela
fragmentação da cerâmica, ou se os fragmentos cerâmicos não possibilitam a reconstrução dos
recipientes (o que, pela leitura do texto, parece ser o caso). Considerando esta última hipótese
era importante estudar o estado de superfície das arestas dos fragmentos cerâmicos pois
apesar de permanecer o padrão de fragmentação das lúnulas, a relação entre fragmentos
cerâmicos, lúnulas fragmentadas e o espaço construído parece ser distinta nos dois contextos
descritos pelo autor.
Neste mesmo trabalho, Valera aponta Susana O. Jorge como a primeira investigadora
portuguesa a referir a fragmentação dos materiais como ponto fundamental na interpretação
de certos contextos escavados em Castelo Velho de Freixo de Numão. Contudo escolhe
apenas um desses contextos, o dos ossos humanos. Provavelmente Valera considera este
contexto como “especial” tal como aquele que apresenta para discussão: um sepulcro. E
prossegue afirmando que “o problema da fragmentação apareceu sempre como acessório” na
investigação em torno de Castelo Velho de Freixo de Numão. Discordamos. A interpretação,
por exemplo, da estrutura com sementes assenta exactamente na premissa de que estamos
perante o resultado de uma fragmentação intencional de vasos cerâmicos que são depositados,
organizados intencionalmente, juntamente com sementes de trigo. Nas palavras de S.O.Jorge:
“No primeiro caso somos confrontados com um conteúdo constituído por vasos
fragmentados, associados maioritariamente a milhares de sementes de cereal. Foram
identificados, pelo menos seis vasos. Contudo, a colocação dos fragmentos de vasos
cerâmicos e das sementes obedece a regras que inviabilizam a interpretação linear de “vasos

233
que continham sementes”. Pelo contrário, o que se denota é uma con(fusão) deliberada de
sementes carbonizadas e de fragmentos de recipientes cerâmicos, transformados estes,
isoladamente, em “artefactos”, que se manipulam segundo normas sociais de difícil
descodificação. No segundo caso (…) somos levados a destacar dois aspectos: a rígida
formalização da deposição, segundo regras estritas de colocação e de associação; o estatuto de
“artefacto” de todos os elementos que constituem esta deposição, nomeadamente a grande
maioria dos ossos humanos e a quase totalidade dos fragmentos dos recipientes cerâmicos. Na
verdade, tanto a maioria dos ossos, como dos fragmentos cerâmicos, é aqui depositada como
“relíquias” ritualmente manipuladas, independentemente de terem pertencido, em outros
contextos, a partes de esqueletos e de contentores cerâmicos.” (Jorge, S.O., 2002: 151-152).
No Preâmbulo do livro “O Passado é Redondo” a autora específica o que entende por
deposição: “ colocação organizada de uma infinita lista de “coisas”. E digo “coisas” porque o
acesso aos sentidos específicos dados a ossos humanos, fragmentos cerâmicos ou pesos de
tear, por exemplo, não está nos nossos planos alcançar” (Jorge, S. O., 2005: 11). No mesmo
texto a autora refere a impossibilidade de comparar deposições de um vaso inteiro ou de um
machado em cobre numa pequena depressão, com a deposição de ossos humanos associados a
fragmentos cerâmicos e pesos de tear ou a deposição de milhares de sementes de trigo e
fragmentos cerâmicos, sobretudo ao nível da “complexidade gestual” (Ibid: 12). Sublinha que
esta lista de “coisas” se encontraria já desvinculadas dos artefactos de que fizeram parte, por
exemplo de vasos ou teares. Refere ainda que estes contextos sugerem uma manipulação
anterior destes materiais fora dos contextos em que foram depositados, contextos estes que se
poderiam localizar fora do recinto de Castelo Velho.
Esta linha é seguida na nossa própria tese de mestrado acerca do sítio arqueológico de
Castanheiro do Vento 5, quando propomos que “A fragmentação intencional dos recipientes
parece-nos também ser a hipótese mais plausível para a realidade material encontrada na
estrutura subcircular A. Contudo a sua manipulação integrada num processo ritual, parece-nos
de difícil justificação.” (Vale, 2003: 143) e sublinhamos que “referimo-nos constantemente a
fragmentos cerâmicos, pois não se registou qualquer recipiente inteiro, ou mesmo apenas
metade, antes se encontrou centenas de fragmentos que remetiam para recipientes diferentes.
Poderemos então admitir que os fragmentos cerâmicos fossem manipulados, como peças
autónomas, que poderiam ou não remeter para o recipiente de que faziam parte? Sendo assim,
fará sentido a procura de formas ou de organizações decorativas a partir de fragmentos,

5
Este trabalho compreende a análise dos materiais provenientes das campanhas arqueológicas de 1998 a 2000.

234
quando estes podiam adquirir um qualquer significado enquanto fragmentos? Qual será então
a unidade de estudo? O que é que pretendemos atingir: o recipiente ou o fragmento
cerâmico?” (Ibid: 143).
Gomes (2003), aquando da análise dos pesos de tear de Castelo Velho de Freixo de
Numão, infere:
“Com efeito, num universo de artefactos cujo grau de integridade física é maioritariamente o
“fragmento”, os “pesos de tear” apresentam a particularidade de serem depositados
preferencialmente “inteiros”. Contudo a atribuição deste estatuto decorre de um ponto de vista
localizado no objecto, considerando-se os “pesos” enquanto elementos da série de uma ou
mais urdiduras, ainda que inteiros, os “pesos” podem ser interpretados como “fragmentos” de
um ou mais teares.” (Gomes, 2003: 123).
Lembramos também o trabalho de Lídia Baptista acerca do conjunto cerâmico do
interior do Recinto Principal de Castelo Velho de Freixo de Numão onde a autora destaca a
“heterogeneidade de espacialidades onde os fragmentos cerâmicos são manipulados em
associação com diferentes categorias de artefactos, que não permitem inferir uma
funcionalidade primária para os recipientes cerâmicos. São “cacos” depositados como
elementos independentes da realidade a pertenceram outrora, o vaso.” (Baptista, 2003: 154)
Também Lurdes Oliveira, no seu trabalho académico de 2003 acerca da arquitectura e
dos materiais da chamada “camada 4” de Castelo Velho de Freixo de Numão, destaca o
carácter fragmentário da amostra, não a encarando como resultado de processos pós-
deposicionais, mas tentando equacionar contextualmente a fragmentação, sobretudo, do
material cerâmico. Ensaia uma distribuição do número de fragmentos por quadrícula, analisa
o seu tamanho e espessura; contudo, apesar de detectar diferentes padrões de distribuição e de
fragmentação, não explora este aspecto. Pensamos que a autora intuiu um conjunto de
problemas relacionados com as histórias da fragmentação mas não se encontrava equipada na
altura com os instrumentos que lhe permitiriam testar as suas questões. Na análise da Área 7
de Castelo Velho de Freixo de Numão chega a afirmar:
“...é de colocar a hipótese dos artefactos fragmentados serem manuseados neste
contexto enquanto fragmentos” (Oliveira, 2003: 106)
E termina o seu trabalho desta forma:
“Todavia, de um ponto de vista interpretativo das tarefas que possam ser articuladas a
estas materialidades, é de referir que quase todos eles sugerem o manuseamento dos artefactos
(fragmentos ou inteiros) num processo de deposição associado à própria arquitectura.”
(Oliveira, 2003:110)

235
Esta afirmação aproxima-se já do trabalho que Lesley MacFadyen se encontra a
realizar, onde se conectam histórias da fragmentação com histórias da arquitectura.
Retomando a análise do artigo assinado por C. Valera (2010), sem dúvida inspirador
no panorama nacional da investigação em Pré-História Recente, o autor refere os textos de J.
Chapman como referências no estudo da fragmentação intencional das lúnulas do Sepulcro 2
da necrópole dos Perdigões. Valera recorre principalmente ao conceito de “encadeamento”,
desenvolvido por Chapman, que pressupõe – como referimos acima – a capacidade de um
objecto, inteiro ou fragmentado, de ligar pessoas através de relações de troca. Ou seja, refere-
se à biografia desses mesmos objectos que vai sendo construída através da manipulação e
troca desses mesmos materiais. Ainda seguindo esta perspectiva, Valera realça que o
fragmento pode representar ou ser o todo e que o percurso individual do fragmento, a
manipulação e troca entre indivíduos específicos, a sua ligação a acontecimentos particulares,
conferem ao fragmento a condição de pessoas (Valera, 2010:38). Assim, admite que as
lúnulas fragmentadas seriam como que um elo de ligação entre o indivíduo morto e os vivos
(ainda que a lúnula possa ter pertencido à pessoa falecida ou ao indivíduo vivo). A matéria-
prima das lúnulas – o marfim – permitiu ao autor questionar redes de ligação. A relação da
matéria-prima com o seu lugar de extracção fez-nos lembrar a ideia de “transplantes” sugerida
por V. O. Jorge e já por nós referida páginas atrás. Transplante de coisas, de pedra, de argila,
de água, de ramos, agarradas à origem mas em transformação durante o percurso. Citações de
um lugar outro, de outras memórias, características, propriedades… 6
Esta análise assinada por Valera destaca apenas a relação entre duas materialidades:
ossos humanos e lúnulas, ainda que não se entenda qual a articulação destes no Sepulcro. O
conceito de fragmentação é chamado à interpretação do contexto talvez pela existência de
objectos especiais que se encontravam fragmentados de uma forma especial e num contexto
que é especial. Note-se que a atenção dada a contextos funerários é sempre mais atenta aos
materiais e à relação entre eles: as possibilidades interpretativas parecem não seguir tão de

6
“Aqueles indivíduos manipulavam uma série de coisas que iam buscar/trabalhar aqui e ali, uma série de
materiais, como troncos, plantas em geral, sedimentos, afloramentos, animais, líquidos, enfim, todo o meio-
ambiente. E faziam nele, com esses elementos, uma série de TRANSPLANTES. É esta a palavra-chave. (…)
Certamente porque para além das suas propriedades "geológicas" (nossa visão) cada "pedra" tinha, conotadas,
propriedades outras que nós hoje também identificamos (mas são as nossas, de hoje): peso, textura, cor, forma
de se deixar talhar, etc, etc. (…) As pessoas manipulavam o mundo, transplantando partes dele de um lado para
outro, partindo, colando, unificando, demolindo, em suma, transformando, mas não para chegar a uma "obra
acabada" (a arquitectura pronta), mas pelo próprio acto de arquitectar. (…) Transplantes de água para com a terra
moldar a argila, misturada com desengordurantes, e "fabricá-la" em formas multivariadas. Transplantes de pedra.
Transplantes de ossos humanos ou de animais. Transplantes de artefactos de todo o tipo, incluindo muitos
intencionalmente transformados (lâminas de machados embotadas, moinhos manuais partidos, uma imensidão de
coisas "alteradas").” (Jorge, V. O., 2009a).

236
perto os constrangimentos que a explicação funcionalista requer para os sítios ditos
domésticos. Assim, não é referida, por exemplo, a fragmentação de peças líticas ou de
recipientes cerâmicos (intencionalmente ou não) e a sua associação com as lúnulas e com os
ossos humanos, assim como a sua distribuição espacial e ligação com a estrutura. Com certeza
este espaço esteve em constante modificação pela própria acção de deposição de
materialidades e, por consequência, muito provavelmente a teia de sentidos não seria estática.
Diferentes contextos podem sugerir diferentes interpretações para o carácter
fragmentado dos materiais. As lúnulas oferecidas como exemplo por Valera sugerem
efectivamente uma fragmentação intencional das mesmas e poderiam remeter para a
totalidade da peça e para as relações estabelecidas aquando da fractura da peça. Relações estas
que poderiam envolver os locais envolvidos e assim como os intervenientes. A metade
encontrada no sepulcro pode remeter para a outra parte. As partes funcionam em sistema
referindo-se à totalidade da peça apesar de cada fragmento poder ter adquirido outras histórias
e percursos. Contudo, outros materiais fragmentados, inseridos no mesmo espaço, parecem ter
entrado em outras dinâmicas e estarem articulados com práticas distintas: podem não remeter
para o todo, nem sequer ter origem numa fragmentação intencional da peça. Um determinado
fragmento pode não ter sido intencionalmente escolhido para desempenhar um qualquer papel
porque remete para um vaso, uma situação, um espaço, ou para um conjunto de relações
sociais específico, mas poderia ter sido manipulado apenas enquanto fragmento.
Neste estudo, Valera, na esteira de Chapman, considera a fragmentação sempre como
intencional. O fragmento remete sempre para a peça inteira. O fragmento parece referir-se
sempre ao “significado” da peça inteira que é partilhado no momento da fractura. Os
indivíduos que possuem o fragmento guardam a memória da peça original e dos outros com
que partilharam o mesmo significado. Faltam as possíveis histórias do fragmento como
fragmento, tal como Lesley McFadyen vai questionar para Castelo Velho e que
desenvolveremos no ponto seguinte. Antes, no entanto, é necessário questionar a ideia de
biografia, conceito essencial nos trabalhos de Chapman e Valera.
Influenciada pelos trabalhos de Appadurai e Kopytoff, a Arqueologia começou a
pensar acerca do carácter dos materiais e da sua relação com os seres humanos que os
elaboraram, usaram, manipularam, destruíram, encontraram, estudaram, etc. Nesta linha
aparece o conceito de biografia dos artefactos e diversos arqueólogos dedicaram-se à
construção de tempos de vida dos materiais. Antes eram apenas medidos e descritos ao
pormenor e remetiam para uma história dos homens onde não havia espaço para a história das
coisas. Jones define da seguinte forma o conceito de biografia associado aos artefactos: “…

237
the concept of artefact biographies proposes that the use-life of an artefact may be considered
analogous to the human life course, encapsulating the events of birth, growth, maturation,
and, eventually, death.” (Jones, 2007: 78)
J. Brück discute esta abordagem no estudo de contextos do Bronze Médio e Final do
Reino Unido. Nesta análise a autora propõe que corpos humanos, vasos, moinhos manuais e
casas teriam sido conceptualizados como possuindo ciclos de vida semelhantes. A biografia
dos vasos, moinhos e casas estaria em íntima relação com a dos seus proprietários ou
ocupantes. Neste sentido considera que as etapas pelas quais uma casa passa ao longo da sua
vida: construção, reconstrução/reelaboração e abandono podem ser conectadas com as que os
indivíduos devem passar: nascimento, casamento e morte. A ligação de ambos os percursos
de vida seria materializada por deposições intencionais. Estas práticas deposicionais
pressupõem que um conjunto de materiais se transmute em marcador de pontos críticos da
vida dos sítios e dos seus ocupantes e em metáforas para compreender a passagem do tempo.
Acrescenta ainda que vasos e casas seriam fragmentados intencionalmente e incorporados nas
práticas deposicionais que comemoravam de alguma forma a ligação entre coisas e pessoas e
entre estas (coisas e pessoas) e o passar do tempo. Nesta linha, a fragmentação intencional
seria “an essential element of the ongoing cycle of death and the regeneration of life” (Brück,
2001: 149).
Outro trabalho que merece ser referido é o de A. Jones (citado por McFadyen, em
preparação), acerca do estudo da cerâmica Grooved ware do sítio arqueológico de Barnhouse
(localizado nas Órcades). O autor propõe o entendimento dos possíveis momentos de
produção, uso e deposição da cerâmica enquanto elementos constituintes das biografias das
peças. A relação entre os diferentes dispositivos arquitectónicos é dado no trabalho de Jones
pela história de vida/biografia dos elementos cerâmicos. McFadyen (em preparação) apresenta
uma análise crítica a esta abordagem, referindo que o estudo das biografias dos materiais
concede fixidez ao discurso. Sublinha ainda que Jones, ao propor a morte de um vaso no
momento em que se quebra (os fragmentos cerâmicos simbolizam o fim da vida do vaso),
deixa de lado a “vida” do fragmento cerâmico (materialidade primeira com a qual o
arqueólogo lida). O conceito de biografia acarreta também outros problemas, como o de
inserir um vaso num tempo sequencial, propondo passagens por fases obrigatórias na “vida”
dos objectos como se estes fossem organismos vivos. Corre-se o risco de ao criticar o tempo
cronológico em Arqueologia se cair num novo modelo de tempo sequencial e linear. Parece
ser uma proposta de imagens fixas. Fixa o objecto. Indexa o objecto a uma história, à sua
suposta biografia.

238
Jones, num artigo com o sugestivo título: “Live in fragments”, desenvolve o conceito
de citação, na linha de Derrida e Butler. Propõe que materiais, inteiros ou fragmentados,
podem “entrar” em diferentes discursos como citações. Citações que remetem para outro
texto, outros lugares, memórias e histórias. A “circulação”, o “movimento” de materialidades
tornam-se peças fundamentais na criação (ou recriação) de relações sociais. O conceito de
citação permite ao autor reflectir acerca da interacção de coisas com pessoas a diferentes
escalas e ritmos. Pensamos que o grande problema deste trabalho reside no facto de Jones
enveredar por uma “universalização” do conceito de citação, na medida em que procura
exemplos desse “modelo” no espaço europeu durante o Neolítico. Se este exercício parece
trazer uma nova perspectiva, sem dúvida de grande interesse, poderá, no entanto, perder-se na
tentativa de generalização. Se por um lado, é verdade que muitos sítios do Neolítico europeu,
principalmente ligados ao mundo funerário, têm situações que podem ser questionadas pelo
conceito de citação, por outro lado as diversas práticas e contextos diluem-se no processo de
generalização.
Uma outra abordagem à vida dos objectos é protagonizada por C. Holtorf (2002) ao
estudar a vida de um fragmento cerâmico após ser “removido” da terra pelo colherim do
arqueólogo. Este texto salienta a importância dos estudos das biografias dos materiais em
Arqueologia e a pouca atenção dada aos mesmos a partir do momento em que são recolhidos
numa escavação arqueológica. Na revisão que faz dos estudos elaborados acerca da vida dos
objectos, salienta os trabalhos de Thomas e Tilley e resume num parágrafo as duas
abordagens que dividem estes autores: “In contrast to Schiffer’s attempt to infer from the life
histories of things the various contexts of their subsequent deposition, Tilley and Thomas
wanted to learn about the meanings and social roles of things from their various depositional
contexts (Thomas, 1996: 162 7; Tilley, 1996: 273 8).” (Holtorf, 2002: 54).
Este estudo permitiu ao autor reflectir acerca da própria actividade arqueológica,
nomeadamente no que leva um arqueólogo a definir uma “coisa” como um artefacto e a
atribuir-lhe antiguidade; o reconhecimento como uma “coisa antiga”, “com passado”; a
valorização da coisa enquanto objecto arqueológico (o que obriga à sua lavagem,
etiquetagem, acondicionamento e registo gráfico; ao estudo do fragmento, que passa pela
descrição do aspecto físico e inserção em tipologias. Todas estas etapas são cronometradas e
cartografadas por Holtorf).

7
Thomas, J. 1996. Time, Culture and Identity: An Interpretive Archaeology. London: Routledge
8
Tilley, C. 1996. An Ethnography of the Neolitic. Early Prehistoric Societies in Southern Scandinavia.
Cambridge: Cambridge University Press.

239
O conceito de biografia, amplamente questionado, pensado e utilizado, sobretudo no
contexto da arqueologia anglo-saxónica, permite entrelaçar pessoas e coisas numa mesma
narrativa acerca do passado. Sublinha a importância dos materiais e não os remete para
categorias amorfas como a Arqueologia (e a ciência em geral) tradicional os entendia.
Segundo Tringham (apud C. Gosden e Y. Marchal, 1999), o conceito de biografia dá
dimensão temporal às coisas; ou seja, fala-se na duração de uma casa com passado e
descendentes, e não como apenas um palco neutro onde um conjunto de actividades são
desempenhadas; trata-se de um espaço activo intimamente ligado à vida dos seus ocupantes.
Como referiu Kopytoff “…societies constrain both this worlds [the world of things and the
social world of its people] simultaneously and in the same way, constructing objects as they
construct people.” (Kopytoff, 1986: 90). O conceito de biografia das “coisas” interfere
também na definição de contexto, como Jones (2007: 79) refere. Se o objecto é definido pela
teia das relações em que se envolve(u) e se carrega consigo uma história, a sua interpretação
não pode ser apenas conseguida pela análise do contexto arqueológico onde foi identificado.
Esperamos voltar a este assunto mais à frente neste trabalho.
No entanto, parece que o conceito de biografia “apanha” o objecto num tempo
sequencial e fixo. Confere à história do objecto como que nódulos de existência (como
manufactura, uso e abandono/deposição).

O Tempo do Fragmento Cerâmico

McFadyen encontra-se a desenvolver um estudo de fragmentação cerâmica em Castelo


Velho de Freixo de Numão. Este trabalho insere-se num projecto de pós-doutoramento
orientado por Susana Oliveira Jorge. A análise foca-se no fragmento e não no vaso; ou seja,
não procura características morfotécnicas que o fragmento indica acerca do vaso; o fragmento
cerâmico é considerado per se, na sua história enquanto fragmento e não tanto como parte das
histórias de um vaso. Pretende assim estudar as histórias desses fragmentos e a sua
incorporação final em deposições. Este estudo está essencialmente direccionado para a
problematização das temporalidades de um fragmento cerâmico (entre o momento em que
deixa de fazer parte de um vaso e o momento em que é incorporado num depósito). A autora
está interessada no estudo de fragmentação e deposição de fragmentos cerâmicos em relação
com os elementos arquitectónicos do sítio. Neste sentido propôs-se estudar os seguintes

240
contextos do sítio de Castelo Velho de Freixo de Numão: fossa; estrutura com sementes;
estrutura com ossos humanos e passagem com duas lareiras
O estudo de McFadyen apresentou resultados significativos para o estudo das histórias
dos fragmentos cerâmicos em relação com as histórias da arquitectura. Por exemplo, a
estrutura em negativo detectada em Castelo Velho revelou aspectos diferentes em relação ao
padrão de fractura detectado nos outros contextos. Os fragmentos presentes na fossa
apresentam grande percentagem de arestas erodidas e são de pequena dimensão o que sugere
que este conjunto foi acumulado num outro sítio antes de ser depositado na fossa. Contudo, o
número de colagens e o carácter do conjunto parecem indicar uma fonte comum. Esta
observação indica, como referiu a autora, um contexto que não foi identificado, um contexto
em falta. Pressupõe um intervalo temporal relativamente grande entre a fractura do vaso e a
deposição dos fragmentos na fossa. Segundo McFadyen este grupo de fragmentos já não
estariam associados ao vaso, já não eram reconhecidos como pertencentes a um recipiente. As
restantes estruturas parecem indicar números mais homogéneos: grande percentagem de
fragmentos de tamanho médio assim como de colagens parecem indicar que o tempo que
mediou entre a fractura do vaso e a deposição dos fragmentos nestas estruturas não foi muito
longo.
O estudo da fragmentação permite adicionar o vector tempo à interpretação destas
estruturas na medida em que permite falar do tempo do fragmento cerâmico como fragmento
cerâmico (a sua vida desde a fractura do vaso até à sua incorporação num depósito). Outro
dado que adiciona dimensão temporal e diferentes histórias associadas aos fragmentos é por
exemplo a colagem de fragmentos queimados com fragmentos não queimados (identificados
na estrutura com sementes) ou a presença de fragmentos não queimados em articulação com
as lareiras da passagem. Estes dados mostram diferentes histórias para materiais presentes no
mesmo contexto; embora reunidos num único contexto, remetem para diferentes
manipulações. A grande diferença que McFadyen marca em relação aos estudos anteriores é a
dissociação do fragmento cerâmico do recipiente cerâmico; o fragmento é estudado enquanto
unidade, não se pretendendo que conte histórias do vaso ou do depósito; o seu significado não
está ligado à peça inteira mas constrói-se em relação com outros fragmentos e elementos
construídos. A autora propõe uma análise atenta de todos os fragmentos cerâmicos e da(s)
sua(s) relação(ões) contextual(is) para assim compor histórias de fragmentação em relação
com histórias da arquitectura. Na análise da componente artefactual de uma estrutura
específica de Castanheiro do Vento, iremos adoptar a metodologia de McFadyen (a
desenvolver no seguimento deste ponto).

241
McFadyen sublinha dois textos como fulcrais na definição do estudo de fragmentação.
Pensamos ser útil apresentá-los também aqui porque apresentam estudos artefactuais distintos
dos que temos vindo a apresentar e porque a sua leitura também nos influenciou aquando da
análise da fragmentação cerâmica em Castanheiro do Vento.
Provavelmente o trabalho que mais influenciou McFadyen foi o de Garrow,
Beadsmoore & Knight (2005) que se debruça sobre o sítio arqueológico de Kilverstone
(Reino Unido), datado do Neolítico Inicial e que se caracteriza pela existência de um conjunto
de fossas (num total de 226), organizadas por grupos. Segundo Chapman, trata-se de entre os
trabalhos de análise cerâmica “in many ways the most remakarble” (Chapman, 2007: 101).
A escavação de cada fossa processou-se pela remoção de camadas artificiais de 50 mm
e todos os materiais foram registados segundo a sua posição nesses mesmos planos e
embalados individualmente. Segundo os autores, o material presente nas fossas não tem a
aparência de ter sido “colocado” (intencionalmente, de forma organizada), pois encontra-se
com diferentes inclinações e a presença de restos de talhe (de pequenas dimensões) aponta
para o facto de este material ter sido trazido “em massa” para a fossa. Assim:
In this light, the notion of “structured” deposition (in the sense of artefacts having
been specifically chosen and arranged) seems entirely inappropriate. Any “structure” to
those deposits was acquired not in the act of deposition, but elsewhere, in the different tasks
carried out during the site’s occupation, in the rhythm of pot breakage, in the ways that
material was accumulated within people’s living space. (Garrow, Beadsmoore & Knight,
2005: 144).
Durante os trabalhos de pós-escavação os materiais foram colocados numa superfície
plana e tentou-se recriar a distribuição dos mesmos aquando da escavação; ou seja, foram
colocados por fossa e divididos pelos planos criados na escavação; em seguida, os materiais
de cada fossa (e de cada plano) foram colocados em relação com os das fossas remanescentes.
Nenhum vaso foi encontrado inteiro e não foi possível realizar colagens que permitissem a
reconstituição total de um recipiente. Também não foi encontrada toda a cadeia operatória de
um único objecto lítico (apesar de existirem exemplos para todos os passos da cadeia
operatória) 9 . Neste sentido, os autores sugerem que o tempo que mediou entre a fractura de
um vaso e a deposição dos fragmentos nas fossas não foi imediato. Além disso, o facto de
fragmentos queimados colarem com outros que não estão, remete para episódios em que o
vaso já se encontrava fragmentado, mas anteriores à colocação dos fragmentos na fossa; ou

9
Os autores admitem que o truncamento de algumas das estruturas pode ter contribuído para este aspecto
incompleto das amostras; contudo, esta não será nem a única nem a principal explicação para tal ocorrência.

242
seja, fragmentos do mesmo vaso foram submetidos a tratamentos diferentes (evidência de
percursos distintos) ainda que sejam novamente reunidos numa mesma fossa. Esta análise
permitiu também identificar elementos de sílex queimados que remontam a núcleos não
queimados. Os trabalhos de colagem e remontagem possibilitaram ainda a realização de
colagens entre fragmentos provenientes de diferentes fossas, ainda que da mesma
concentração (lembramos que as fossas se estruturavam por grupos). Não foi realizada
nenhuma colagem entre fragmentos de diferentes concentrações de fossas; relativamente ao
lítico, apenas se verificou uma colagem de dois elementos de sílex. É de realçar que não
apenas a cerâmica, mas todo o material proveniente das fossas foi analisado.
Os autores questionaram as diferentes temporalidades dos materiais depositados:
fragmentos cerâmicos e peças em sílex. O fragmento cerâmico é o fim do vaso, o fim da sua
utilização como tal, enquanto que uma peça em sílex, assim que se separa do nódulo, do
núcleo, torna-se potencialmente utilizável. Dois tipos de criação: o fragmento cerâmico pela
fractura de um vaso e a peça lítica pelo talhe. Referem ainda a possibilidade de distinguir dois
“tempos”. O primeiro deles seria o da acumulação de material em “pilhas”, previamente à
escavação das fossas; esta acumulação teria ocorrido num contexto ao ar livre – o que
explicaria a existência de cacos erodidos (os que se situavam à superfície da “pilha”) e não
erodidos (os que se encontravam no interior da “pilha”) – e próximo de fogueiras (que já
existiam ou teriam sido feitas após a acumulação), o que explicaria a ocorrência de
fragmentos queimados e fragmentos não queimados que colam. O outro “tempo” referido
seria então o da escavação da fossa e o seu enchimento com material que provinha deste
contexto ao ar livre.
Segundo os autores, não existe uma deposição intencional. “The artefacts within the
pits were not arranged piece by piece, but dumped within a soil matrix usually darkened by
charcoal.” (Garrow [et al.], op.cit.: 151). Os materiais eram, então, provenientes de contextos
pré-fossa, de onde foram trazidos juntamente com o próprio sedimento. Não parece existir
uma escolha deliberada dos materiais que iriam “preencher” estas fossas. Ao longo da análise
conseguiram também conectar as fossas pelos materiais; ou seja, a análise da distribuição dos
materiais permitiu relacionar as fossas. Verificaram que a quantidade de fragmentos
cerâmicos decresce ao longo de cada conjunto de fossas e que as peças de sílex – cujas
características permitem avaliar a sua distancia (também temporal) relativamente ao nódulo –
acompanham a sequência dos fragmentos cerâmicos: a fossa que contem menos material é
aquela que contem a última peça a ser extraída de um núcleo. Os autores propõem um cenário

243
que “involves repeated visits, by one group, or even a small number of people, digging a
cluster each visit over what may also have been a relatively long period” (Ibid: 154).
O outro trabalho referenciado por L. McFadyen é assinado por Brudenell e Cooper
(2008). Os autores questionaram o carácter excepcional das deposições tal como tem sido
referida na literatura inglesa referente ao contexto da nossa chamada Pré-história Recente.
Referem que as deposições de materiais têm sido entendidas sempre como intencionais e
descritas como: “deliberate, formal, placed, ritual, selected, special, token” (Brudenell &
Cooper, 2008:15). O estudo incide no sítio arqueológico de Broom Quary (Bedfordshire,
Reino Unido), datado do Bronze Final e caracterizado por um conjunto de estruturas em
negativo: fossas, buracos de poste e “roundhouses”. O objectivo principal do trabalho é “re-
emphasize the argument that depositional practices can be different in different places and
times (following Hill 1995), and to encourage more creative and thoughtful exploration in
future of the practices that structured later prehistoric deposits” (Ibid: 17).
Neste sentido, os autores desenvolvem um estudo dos fragmentos cerâmicos após a
fragmentação do vaso. Através do Peso Médio dos Fragmentos (PMF) e do estudo do estado
de conservação das superfícies e das arestas, reconhecem que num mesmo contexto se reúnem
fragmentos com características diferentes (uns erodidos e outros com as arestas não boleadas
ou “frescas”; uns queimados e outros que não o são) que podem colar entre si
(designadamente os queimados com os não queimados). Sublinham que o carácter da amostra
não permite a designação destes contextos como especiais e não registam uma organização
intencional dos materiais.
Este artigo destaca-se no panorama anglo-saxónico pela crítica ao uso abusivo da
característica “especial” em vários contextos da Pré-história Recente. No entanto falta neste
estudo desenvolver a articulação dos fragmentos cerâmicos com os outros materiais e não se
percebe muitas vezes a sua relação com as estruturas estudadas. Os autores utilizam a
expressão “trying to imagine”, e este parece ser o grande problema/engano: o tentar imaginar
cenas do passado. Também a interpretação destes contextos como “não especiais” é feita por
oposição às interpretações tradicionais que os vêem como “especiais”. No entanto, quais os
critérios em Arqueologia para a definição destas categorias? Não parecem estar definidos,
assentando sobretudo na sensibilidade, intuição, experiência e mesmo desejos do arqueólogo.
Este estudo parece reflectir um cansaço/desilusão relativamente a explicações idênticas para
diferentes contextos da Idade do Bronze.
Esta breve incursão pelos estudos da fragmentação é parte integrante do ponto que a
seguir desenvolveremos: o estudo da fragmentação do conjunto cerâmico da “Grande

244
Estrutura Circular 1” de Castanheiro do Vento. Procuraremos estudar fragmentos cerâmicos
que foram incorporados em outros contextos perdendo a sua conexão com a peça inteira.
Lichtenstein pergunta se um fragmento, porque é manipulado num contexto que o distancia da
peça inteira, poderá ainda ser olhado enquanto fragmento: “It is still a fragment?”
(Lichtenstein, 2009: 122). O fragmento que remete para o todo (o que se interpretava como
remetendo para a peça inteira) não “represent the thing; it presents it” (Ibid: 124); ou seja, o
fragmento é a coisa em si, o fragmento é o todo. Mas esta afirmação não pressupõe a
reconstituição de um todo original:
“Real wholes are ephemeral and start falling apart even before they are finished. Their
fragments last much longer and yet they too are subject to decay and corruption. The only
thing that is truly immortal is the lost whole that we reconstruct on the basis of fragments, that
never existed in reality, and that therefore can never perish.” (Most, 2009: 18)

245
246
10.2. Fragmentos da Grande Estrutura Circular

“O fragmento é o lugar des-pretensioso – sem pretensões de dar expressão a


totalidades – onde o intratável – precisamente a totalidade, o espaço sem
espaço – se tornou tratável. Porque é um espaço-tempo interior e in-
tensivo, e des-dobrável, abrindo para vazios que se enchem.” (Barrento,
2010: 148)

Definições e outros fragmentos de análise

Começamos a reunir os fragmentos. Para os pensar, outros fragmentos de pensamento


tornaram-se fundamentais. Outros fragmentos operatórios foram necessários na criação de um
discurso inteligível, ainda que fragmentado, acerca da Grande Estrutura Circular 1 de
Castanheiro do Vento. Assim, nas linhas seguintes ensaiamos a definição de um conjunto de
termos que fomos construindo ou descartando ao longo do percurso de perscrutação de uma
arquitectura. Os pontos que aqui se enumeram não foram definidos previamente ao trabalho
de análise de um conjunto de materiais. Foram sendo tecidos ao longo do trabalho (de campo
e de gabinete) e das leituras que, dadas em paralelo ao(s) próprio(s) momento(s) da escrita,
ajudaram a sedimentar ou inspiraram as reflexões seguintes. Começamos pela definição dos
termos: camada; nível; plano de registo e momento. Posteriormente serão explicitados os
métodos de análise dos fragmentos cerâmicos. A abordagem irá concentrar-se no estudo de
fragmentação. No entanto, antes de embarcarmos nesta viagem de definições e equações é
necessário começar por introduzir o conceito de contexto. A ideia de contexto em
Arqueologia é fundamental para questionar a própria disciplina, desde a sua prática de registo
aos exercícios interpretativos que desenvolve essencialmente por escrito. Pensar no contexto
envolve questionar outro termo interconectado com o primeiro e basilar na disciplina: registo
arqueológico.

247
Contexto

“All our knowledge, all our understanding of our place in the world is contextual. This simply
means that we make sense of things by finding a place for them.” (Barrett, 2006: 194)

A afirmação que transcrevemos de J. Barrett parece efectivamente a primeira definição


possível para contexto. Verbaliza a forma como compreendemos o mundo. A Arqueologia,
catalogada como um dos olhares que estuda o nosso mundo, desenvolveu técnicas e métodos
de contextualização específicos (Barrett, op.cit.:194). Mas que mecanismos definiu a
disciplina para definir o que é um contexto? Como desenhou os seus limites, as suas
características e as suas implicações? Como S. Gomes advertiu: “O contexto arqueológico
informa-nos da historicidade da prática arqueológica e não da historicidade do mundo que se
procura apreender com essa prática.” (Gomes,S. no prelo). Neste sentido, indagar acerca da
construção de contextos em Arqueologia é sobretudo questionar a prática arqueológica e a
nossa relação com as “materialidades” que se identificam como “do passado”.

A Arqueologia começou por privilegiar a contextualização cronológica dos materiais


exumados numa determinada escavação. A atenção não era dirigida às ligações desses
mesmos materiais no chamado “registo arqueológico”. Contudo, nos anos 80, I. Hodder
define um novo capítulo na história da arqueologia: a “arqueologia contextual”, que se
concretizou numa outra forma de fazer arqueologia, atenta ao conjunto de relações que
definem um objecto. Não é, no entanto, objectivo deste ponto a realização de uma
historiografia acerca do conceito de contexto 1. Referimos apenas que dada a relevância que
adquiriu com Hodder e com as críticas e reflexões que se seguiram, o termo “contexto” passa
a ser fulcral em arqueologia. Como Hodder e Hudson salientaram, contexto vem da palavra
latina contexere, que significa “to weave, join together, connect” (Hodder&Hudson, 2003:
170), e está intimamente relacionado com o conceito de escala. As escalas de relação
seleccionadas pelo arqueólogo podem ser diversas, privilegiando este o eixo tempo ou o eixo
espaço. O contexto poderá referir-se a um espaço geográfico amplo ou ainda a um contexto
cronológico mais ou menos apertado. O “contexto” é também referente ao contexto do
arqueólogo e ao contexto das investigações. Na definição dos limites do contexto, Hodder e

1
Para uma contextualização do conceito contexto em Arqueologia ver Papaconstantinou (2006) e Pereira (2010).

248
Hudson referem que estes podem ser constituídos pela selecção das “dimensões relevantes de
variação 2” (Hodder&Hudson, op.cit.: 188) ou pela “totalidade do meio relevante” do objecto.

Neste sentido, o objecto é inserido no seu texto para se tornar significante e incorre em
processos de comparação (em que se procuram semelhanças ou diferenças). É equacionado
em relação com outros materiais, no tempo e no espaço. São analisados o seu local de
proveniência e associações materiais imediatas. É também inserido numa tipologia, o que
permite a comparação com outros objectos com os quais partilha características comuns
(Thomas, 1999: 94). No entanto, a abordagem contextual, definida por Hodder, suscitou um
conjunto de críticas. Em 1987, Barrett, no seio da emergente arqueologia pós-processual,
escreve duras críticas à arqueologia contextual de Hodder:

“…Hodder makes two errors. First, he places the individual centrally within his historical
enquiry. Secondly, he treats the archaeological (material culture) record as the object of
study.” (Barrett, 1987: 470)

E propõe:

“Instead of attempting to read back from modern archaeological remains to meanings in the
past, a better proposal is to explore the implications of particular material conditions for
structuring of specified social relations (…) The context of the tomb then becomes, not its
pace within a text, but its active role within particular social practices.” (Ibid: 471-472)

Barrett conclui escrevendo:

“Can we really claim to be able to understand how they saw their world? This seems both
dubious and unnecessary.” (Ibid: 472)

J. Thomas aponta também alguns problemas inerentes à interpretação do registo


arqueológico como um texto, que pode ser lido pelo arqueólogo, e que em si contem a
informação acerca das intenções dos indivíduos do passado. O autor escreve:

“(…) [W]here the archaeological record is understood as a text that must be read by the
archaeologist, the assumption is that matter provides a kind of substrate that is altered and
rendered meaningful by the act of inscription. (… ) [it] accept[s] matter as substance, a

2
“The totality of the relevant dimensions of variation around any one object can be identified as the context of
that object.” (Hodder & Hudson 2003: 188).

249
formless and meaningless platform for physical impacts or events of encoding. (…) Hodder’s
original inspiration for developing a contextual archaeology lay in structuralism, and his
approach to archaeological evidence suggests a search for patterns and structures which can
be traced back to ideas in the heads of past people. (…) While Hodder emphasizes the
structural order and contextual disposition of material things, rather than their production, he
nonetheless appears to maintain the distinction between the mind as a realm of meaning and
dead matter” (Thomas, 2004: 210-214).

Thomas sublinha assim um dos grandes problemas da proposta de Hodder: o de


reconhecer os objectos como portadores de significado, como elementos que ainda que
interactivos com os indivíduos ou comunidades que os construíram e/ou manipularam têm em
si o seu significado. G. Lucas (1995) e Barrett (1998), ambos citados por J. Thomas (1999),
apontam um outro problema que subjaz à arqueologia contextual de Hodder: a divisão entre
objecto e contexto, ou seja, dirigem a crítica à atenção dada ao objecto e ao contexto enquanto
duas entidades individualizáveis. Thomas acentua que um objecto faz parte também do
contexto de um outro “In this way of thinking, there is no clear distinction to be made
between the object and the context: each object forms a part of the context of others (Lucas,
1995). Actions, utterances, objects and places continually recontextualize each other, and this
can be seen as a part of the process by which society constantly brings itself into being
(Barrett, 1998a, 7)” (Thomas, 1999: 95).

Outra questão a ser colocada à arqueologia contextual de Hodder relaciona-se com um


dos seus objectivos últimos: a compreensão do todo 3. Segundo Hodder, o estudo da parte terá
sempre como finalidade a apreensão do todo, das leis universais, como realçou Thomas
(2004:210). O fragmento remete para o vaso, os fragmentos do “passado” para as estruturas
sócio-económicas, culturais e políticas. Parece estar aqui patente, mais uma vez, a nostalgia
pelo todo perdido que o arqueólogo tenta desesperadamente reconstituir (ou construir) em
texto através dos traços desse passado que se quer erguer. O passado é entendido como o
outro 4, o que me pode explicar, o que pode perguntar pelo presente e nesta interacção revelar-

3
“The ultimate aim of our detailed accounts may well be generalization and universal laws, but initially, as
scientists rather than musicians or artists, our concern must be to question whether the theories, generalizations
and imaginative insights have the meaning we asume them to have in past historical contexts.” (Hodder &
Hudson, 2003: 193).
4
“The cycle of question and answer leads to new questions and a new understanding of self in relation to other
(the past).” (Hodder & Hudson, 2003: 197).

250
me, a mim, pelo estudo do outro. Mas quem é este outro? Que relação estabeleço com o outro,
o passado? É este outro objectivável? Poderá o “outro” ser apreendido através da leitura do
chamado registo arqueológico? Lemos em Hodder e Hudson a possibilidade da leitura
(contextual) do registo arqueológico; este é passível de transcrição, concretizada como
tradução, como cópia de um passado acontecido. De acordo com este autor, um conjunto de
objectos pode ser transformado num texto, numa narrativa que os conecte num discurso
inteligível acerca do passado; tal é possível porque os “objectos arqueológicos 5” encontram-se
em relação com outros, o que permite colocá-los em contexto; ao perceber essas relações pela
descrição detalhada e as perguntas certas, o arqueólogo poderá ter acesso ao texto escrito no
passado. Os dados, segundo Hodder e Hudson, devem ser exaustivamente recolhidos e
“entrelaçados” para que a leitura do “texto”, do “registo arqueológico” seja mais acurado.
Segundo os autores, existem leituras incorrectas, o que pressupõe a existência de uma leitura
correcta, ainda que afirmem que a leitura depende do contexto do arqueólogo, das perguntas
que compõem o seu inquérito, e ainda que convoquem os horizontes de Gadamer para
introduzir o carácter não estático dos contextos.

A crença de Hodder na leitura correcta do “registo arqueológico” conduz este texto a


problematizar este conceito. Qual a relação do arqueólogo com o conjunto de materiais que se
revela pela escavação? Iniciamos a discussão deste conceito com as abordagens críticas de L.
Binford e M. Schiffer. Ambos os autores se insurgem contra a “arqueologia tradicional”; no
entanto, ambos os arqueólogos acusam-se um ao outro de entender o registo arqueológico
como espelho do passado. Schiffer (1976; 1985) endereça duras críticas aos trabalhos de
Binford, o qual as devolve também em texto (Binford, 1981). A discussão entre estes dois
investigadores ficou conhecida pela “Premissa de Pompeia” 6. Ambos os autores acusam-se
mutuamente de olharem o “registo fóssil” como petrificado num preciso momento de tempo,
como ocorreria em Pompeia, onde o passado dessa forma se revela. Binford reage às críticas
de Schiffer chamando Asher à sua argumentação: “In a certain sense a part of every
community is becoming, but is not yet, archaeological data” (Asher, 1961 apud Binford,
1981:196). Binford acentua o carácter dinâmico dos processos ocorridos no passado e refere
a impossibilidade de reconstruir esse mesmo passado. O autor entende o registo arqueológico

5
Aqui seguimos a definição de Hodder para objecto. Neste sentido pode ser uma característica, um artefacto, um
tipo, uma cultura, etc (id., ibid:154-155).
6
Ver em Velho (2009: 136-144) o aprofundamento desta questão.

251
enquanto palimpsesto, no qual é impossível registar os pequenos eventos. O arqueólogo deve
indagar pelos sistemas culturais, os sistemas organizacionais que estão na origem e
determinam os episódios do dia-a-dia 7. Nestas linhas Binford insurge-se contra a premissa de
Pompeia e critica Schiffer, afirmando que a procura de transformações culturais e naturais no
registo arqueológico tem subjacente a crença num registo arqueológico “ideal”, ou seja, na
premissa de Pompeia.

“Binford has attributed to me a position I do not hold” (Schiffer, 1985: 18), contra-
argumenta Schiffer, afirmando que Binford interpretou mal as premissas da Arqueologia
Comportamental. Schiffer refere que Binford apenas teve em linha de conta os conjuntos
apelidados por “de facto refuse” (ou seja, objectos ainda passíveis de serem utilizados mas
que por razões diversas são “deixados para trás” pelas comunidades passadas) e não
considerou a análise do “secondary refuse” (ou seja, materiais que se deslocaram do seu sítio
original) na qual assenta grande parte do estudo da arqueologia definida pela Arqueologia
Comportamental. Schiffer coloca em relação o que designa por contexto sistémico e contexto
arqueológico, ou seja, a relação entre passado e presente, entre o que aconteceu e aquilo a que
hoje temos acesso. No entanto, para o autor, o contexto arqueológico não é um fóssil, mas
antes resultado de um conjunto de transformações, culturais e naturais. Este conjunto de
transformações perturba a relação que o arqueólogo pretende estudar entre passado e presente.
Schiffer defende que a incapacidade do arqueólogo em reconhecer a miríade de
transformações naturais que interferem e “fazem”o “registo arqueológico” induz as
explicações acerca do passado no erro de considerar os conjuntos artefactuais como contextos
sistémicos resultado apenas de causas “funcionais” e sociais 8 (Schiffer, 1985: 38).

7
“… the archaeological record represents a massive palimpsest of derivates from many separate episodes. Any
structure and repetitive patterns of association and covariation must derive from the operation of “systemic
events,” or dynamics, with a much longer term, more rigidly determined organization than is true of those
observed in the lives of persons and groups which embody the ethnographers’ perception of time and human
systems. My view was that we should be seeking to understand cultural systems, in terms of organizational
properties, and in turn, to explain differences and similarities among these cultural systems, rather than to
generate set pieces of descriptive history. This means, however, that those “things” of interest from the past are
organizational properties, which cannot be dug up directly.” (Binford, 1981:197).
8
“As Binford (1981) has claimed, an unhelpful Pompeii premise haunts archeology. The real Pompeii premise, a
methodological tenet of the New Archaeology, is that one can analyze house-floor assemblages as if they were
systemic inventories – unmodified by formation process. In accord with the principles of behavioral
archaeology, this paper has demonstrated that artifacts can come into floor contact through many processes and
that a variety of cultural formation processes can cause de facto refuse assemblages to be “depleted” relative to
systemic inventories. Analyses founded on the real Pompeii premise ignore these formation processes and
attribute variability in house-floor assemblages exclusively to “functional” or social causes. As a result,
investigators overlook important evidence on the nature and causes of settlement abandonment. In order to
252
Nas linhas pós-processualistas, os enfoques também não são consensuais. Regressando
a Hodder, o autor reconhece o registo arqueológico como indicador da intencionalidade das
comunidades do passado. Um registo eficiente e as perguntas correctas podem alcançar o
“significado” das coisas. Barrett refere-se ao registo arqueológico como o meio pelo qual se
pode compreender os contextos do passado, ou seja, as forças e os mecanismos que
possibilitaram o aparecimento de condições históricas específicas (Barrett, 2006: 201).
Thomas parece ensaiar a escrita de uma perspectiva outra ao referir que a criação de discursos
acerca de um sítio arqueológico nasce de um trabalho interpretativo colectivo (Thomas, 2004:
76). A “evidência arqueológica” revela-se precisamente na ausência de significado que lhe é
intrínseca. No entanto, um conjunto de métodos racionais e abstractos permite a elaboração de
um registo preciso, o que, segundo Thomas, pode ilibar o arqueólogo de qualquer
responsabilidade ética ou politica e o torna, muito provavelmente, incapaz de criar novo
discursos (Ibid: 77).

A ideia de palimpsesto nunca abandonou efectivamente a Arqueologia e ainda define o


que se entende por registo arqueológico. Relembramos que palimpsesto significa “riscar de
novo” e refere-se aos pergaminhos ou papiros que eram reutilizados, apagando-se a
informação anterior para que novas linhas pudessem ser riscadas. Esta imagem traduz assim a
relação que o arqueólogo estabelece com o registo arqueológico, espaço no qual diversas
actividades ocorreram no tempo, todas passíveis de deixarem vestígios, mas sendo a última a
mais visível. Como já referimos, McFadyen (2008) referiu que o conceito de palimpsesto (a
sobreposição de eventos) cria embaraços na hora de estudar arquitecturas pré-históricas. Neste
sentido sugere a ideia de processo para conceder espessura temporal ao que hoje registamos.
Assim, uma actividade não apaga a que lhe antecedeu nem se apaga com a seguinte. O
complexo rizoma de acções, às quais hoje, em texto, tentamos dar inteligibilidade, não se
explica por sobreposição mas sim por processos não sequenciais. Ou se considerarmos a
etimologia da palavra contexto, diríamos por um entrançado de coisas e acções que inspiram
as linhas com que se cose este e muitos outros textos em Arqueologia.

remedy this situation, archaeologists will have to devise a variety of new measures and apply them rigorously to
house-floor data.” (Schiffer 1985: 38)

253
“Is a translation meant for readers who do not understand the original?” (Benjamin,
1999: 70)

Provavelmente o registo arqueológico não é o texto que o arqueólogo lê; é – como


tentámos argumentar logo no ponto 1 deste trabalho – a multiplicidade de traços que
traduzimos. Traduzimos com ferramentas específicas da disciplina, através de métodos
partilhados e de práticas negociadas de escavação e escrita. O texto é tecido como tradução.
Mas esta tradução não é a cópia de um original. A tradução não anula a experiência da
escavação que em texto por vezes se omite. Não pretende apagar ou ofuscar as dúvidas que o
momento da escavação gera permanentemente. Isto porque há nos traços que hoje são passado
a possibilidade de traductibilidade (ou a possibilidade de ser traduzível, de acordo com
Benjamin), de constante interpretação. Porque a tradução não é um produto final. A sua
inscrição não é permanente. O tradutor, o arqueólogo, dá visibilidade, permite a emergência
do outrora que ainda é. A má tradução – e na esteira do pensamento de Benjamin – é aquela
que se dedica à transmissão de informação, ao relato dos dados e do necessário para a
reconstrução do passado.

A relação do arqueólogo com o registo arqueológico, a relação do arqueólogo com o


“passado” e a relação do arqueólogo com a construção de textos que remetem para um
passado é ambígua e não consensual. Mas, e em termos metodológicos? Na obra de Renfrew
e Bahn, utilizada em Portugal como manual de Arqueologia, o contexto arqueológico de um
“achado” é definido pela:

“its immediate matrix (the material surrounding it, usually some sort of sediment such as
gravel, sand or clay), its provenience (horizontal and vertical position within the matrix) and
its association with other finds (occurrence together with other archaeological remains,
usually in the same matrix).” (Renfrew & Bahn, 2000: 50).

Nesta citação está presente a importância da estratigrafia na definição do contexto de


um “achado”. A descrição da estratigrafia horizontal e vertical durante o trabalho de
escavação torna-se imprescindível para posicionar uma determinada peça. Como é sabido, a
disciplina baseia-se nos princípios estratigráficos definidos pela Geologia do século XIX, na
sobreposição de camadas e na premissa de que a camada de topo é a mais recente. No entanto,
o enfoque que a análise estratigráfica assume no seio da Arqueologia é distinto. De uma
forma genérica, os arqueólogos que personificam a corrente conhecida como histórico-
254
culturalismo definiam o contexto de um achado pela sua inserção em culturas e pela
comparação com outros objectos de diversas proveniências mas cuja semelhança formal e
técnica permitiam encaixar numa gaveta temporal. Neste sentido a leitura estratigráfica era
feita em secções e essa informação era “extraída” depois da escavação 9. Atendamos a esta
frase de Afonso do Paço, retirada de um texto acerca das escavações que conduziu no sítio de
Vila Nova de S. Pedro:

“O trabalhador que a desenterrou bateu com a enxada em pleno cabo [de uma faca ou punhal],
partindo-o infelizmente em múltiplos fragmentos. Notando várias esquírolas ainda aderentes
ao espigão, demos ordem nesse momento para cessar imediatamente a escavação, e nós
mesmos recolhemos pacientemente todos os fragmentos do cabo, de modo a poder ser quase
integralmente reconstituído” (Paço, 1970: 263)

“O trabalhador desenterrou” “e nós mesmos recolhemos”. Paço recolheu inúmeras


peças e colocou-as na barra cronológica por comparação com outros objectos. A tipologia dos
objectos permitia-lhe colocar os objectos no corte estratigráfico criado durante a escavação.
No entanto, a interpretação estratigráfica ou a descrição dos depósitos onde o achado se
encontrava não era preocupação para o arqueólogo; Afonso do Paço pretendia antes a inserção
dos materiais e do sítio nas camadas culturais peninsulares e europeias.

Paço termina o artigo onde descreve o resultado das campanhas arqueológicas em Vila
Nova de S. Pedro da seguinte forma:

“Que poderíamos dizer de considerações finais e cronológicas?

No estado actual das escavações, em que pretendemos agarrar pelos cabelos uns restos
de estratigrafia que nos possam dar ténue luz na noite escura da vida e evolução deste castro,
dizer coisas sem bases sólidas, seria, a nosso ver, estulta pretensão” (Paço, 1954: 79-80).

Os esboços que foram sido desenhados, tentando relacionar as “muralhas” com os


sedimentos eram imprecisos, esquemáticos, lineares. As escavações desenfreadas, colocando
a descoberto as estruturas e milhares de materiais, nunca supuseram qualquer preocupação

9
Como refere Thomas, “Even in the work of Wheeler and Kenyon in the mid-twentieth century, stratigraphy
was still presented as a series of layers, best recorded in section” (2004: 160).

255
estratigráfica 10. Em 1959 o arqueólogo galês Hubert N. Savory desenha o primeiro corte
estratigráfico do sítio de Vila Nova de S. Pedro. Os desenhos de Savory, apenas publicados
em 1970, são os únicos existentes para a problematização do sítio de Vila Nova de S. Pedro
(Savory, 1970). Os directores e colaboradores dos trabalhos de escavação concentraram-se na
recolha de materiais, na identificação das muralhas e na inserção dos materiais em horizontes
culturais que de alguma forma se conectavam com alguns depósitos que pelas suas
características pronunciadas eram individualizados.

Segundo Thomas (2004: 160-161), é apenas com a emergência das escavações em


contextos urbanos e projectos de grande escala de arqueologia de salvaguarda, a par da
utilização frequente de métodos de datação absoluta, que o estudo da estratigrafia em
Arqueologia ganha novos contornos. As relações horizontais passam a ser valorizadas e cada
unidade estratigráfica é entendida como uma acção protagonizada no passado; nesse sentido
deverá ser registada individualmente, depois organizada (ou seja, situada num conjunto de
relações) segundo a matriz de Harris, e em seguida explicada segundo uma lógica causal e de
equivalências entre unidades e acções ou eventos. Continuamos a seguir atentamente Thomas
quando refere:

“… this context-and-matrix system is absolutely characteristic of modern Western thought.


Stratigraphic units are first defined as free-standing entities, their attributes (texture, colour,
inclusions) are identified, and their relationships are then distinguished. These relations are, of
course, secondary to the entities themselves, which are monadic. Causal logic is then invoked
to connect each unit with a discrete event or act. These actions are not presented as engaged in
a flow of conduct. Rather, they are seen as isolated events: “burst” of intentionality.
Consequentially, the whole scheme is overwhelmingly atomistic.” (Thomas, op.cit.: 160)

As unidades estratigráficas organizadas segundo a matriz de Harris correspondem a


unidades contextuais que se dispõem em relação com outras unidades e são caracterizadas
sobretudo pela cor, textura, compactação, constituição, natureza dos depósitos. Segundo o
método de Harris, o tempo dos depósitos é sequencial e, como sublinha Thomas, cada
unidade encontra-se ligada a um evento ou acção determinada, e nesse sentido é estudada de
10
Note-se que num texto acerca da campanha arqueológica no sítio de Parede realizada em 1956, Eduardo da
Cunha Serrão refere que por esta altura em Portugal a obra de Wheeler (publicada em 1954) era praticamente
desconhecida (Serrão, 1983: 128). No entanto, este arqueólogo português revela neste relatório de escavação
uma preocupação (pouco vulgar à época) de estudar e registar as relações estratigráficas do sítio pré-histórico de
Parede.

256
forma isolada e não integrada “in a flow of conduct”. Como referiu Lucas (2005), e foi
também salientado por J.M.Cardoso (2007), o tempo de duração, a complexidade de acções e
a teia de relações nem lineares nem sequenciais, não são apreendidas pela organização do
registo em unidades estratigráficas 11. Segundo Papaconstantinou a ideia de contexto nas
correntes pós-processualistas está muito ligada ao contexto estratigráfico (Papaconstantinou,
2006: 7), e apesar das críticas ou de apontamentos discordantes, a arqueologia de campo
baseia-se no princípio estratigráfico. Contudo, “… the more refined are the methods we use in
order to define stratigraphic layers, and draw their boundaries and limits, the more uncertain
these definitions and boundaries become (Hodder 1999, 16-17).” (Ibid: 12)

Poderíamos sugerir para Castanheiro do Vento o registo tridimensional de todos os


“artefactos” detectados e a valorização do caderno de campo que deverá ser escrito não
apenas pelos coordenadores mas por todos os intervenientes na escavação (na linha de
Thomas, 2004: 243-247). No entanto, como já sublinhámos, o contexto como construção de
relações não se esgota no trabalho de campo. O estudo desenvolvido por McFadyen – que
procuramos aqui seguir e problematizar – pretende exactamente dar profundidade temporal
através do estudo da fragmentação cerâmica em relação com a “arquitectura”; ou seja, através
do estudo da construção permanente de espaços convoca-se uma multiplicidade de acções na
sua extrema complexidade. O trabalho de McFadyen é contextual tal como a autora o define,
e segue o estudo contextual realizado anteriormente em Castelo Velho de Freixo de Numão,
tal como fica patente nas seguintes frases da autora:

“The approach is a contextual one, and this means that the researchers studied all of the items
of material culture, and the ways in which they were physically associated together at
particular points of the site i.e. the assemblage of artefacts and how these were associated

11
“… the individual deposits or stratigraphic units, themselves, possess no temporality, they are just points in
the series” (Lucas, 2005: 39)

“… consideramos que a não interpretação em campo e a excessiva descontextualização de todos os elementos


que uma escavação arqueológica produz (igualmente como o método de Harris), em diferentes níveis de análise,
faz com que a visão global do sítio seja mais difícil de reconstituir, o que resulta na sobrevalorização do pequeno
contexto em detrimento do grande contexto em que está inserido. Por outro lado, o registo dos diversos
contextos, quer em desenho, quer em ficha descritiva, existindo separadamente, leva a uma perda de informação,
que em conjunto pode ser imediatamente relacionável em campo e pode mesmo alterar a metodologia de
trabalho em vigor. Uma escavação pauta-se por um trabalho constante de interpretação e não de enumeração de
camadas, interfaces, materiais, etc; estes dois níveis devem existir, mas o nível interpretativo, terá que ser
objectivamente feito em campo.” (Cardoso 2007: 89)

257
together in or with the details of the excavated context. This is an analysis of the depositional
contexts that were identified through the process of excavation, knowledge of the physical
relationships between things, and so it is spatial in its focus. But there is something else here,
great attention is paid to the constitutive qualities of assemblages, and how assemblages of
things made space in the past. Context here is also linked to social arenas of action in the past.
These authors, I would argue, have also done something else in their work: they have
demonstrated that the processes by which things were assembled together also carry with
them an architectural quality. An example of this would be the way Gomes pays attention to
the way in which 27 loom weights were brought together in an area of the site that was
recorded in excavated square E10 (2003: 126-131). He described these as elements of
material culture that were used in the making of architectural space, and not simply as the
remains of a broken loom that was located on the site.

My work on the pottery from Castelo Velho is also contextual, although it takes as its focus
the fragmentation of potsherds and how these relate to the excavated contexts in time. I
consider the significance of the temporal trajectory in our evidence, and how it reconfigures
accounts of the making and unmaking of space in the Chalcolithic. The previous studies of the
spatial distribution of artefacts show how often particular objects occur and the density of
particular categories of things, they analyse the presence or absence of artefacts in certain
spaces: they are about where things are. The difference is that my work is also about
when things are.” (McFadyen, no prelo, ênfase nosso)

Neste trabalho, e neste ponto, o contexto começa por ser a Grande Estrutura Circular,
e outros contextos se desenvolvem no seu interior. O contexto, enquanto conjunto de relações,
é dinâmico. Se é certo que a interpretação depende do contexto, esse mesmo contexto, por não
ser fixo, faz da interpretação um trabalho contínuo, ou melhor – uma construção contínua. O
edifício final não existe, assim como não se pretende alcançar o edifício original. Neste
sentido, o contexto nunca pode ter os seus limites perfeitamente desenhados ou os seus
conteúdos especificados. O seu significado não lhe é inerente nem se poderá escrever o
significado autêntico. Os contornos podem modificar-se, pois como construção interpretativa
movimentam-se, são movimento. A palavra construção não se traduz na imagem de
sucessivas fiadas de pedras ou na elaboração de uma parede de forma sucessiva desde as
fundações até à cobertura. Sequência, como ironiza J.L. Godard:

258
“Surely you agree, Mr. Architect, that building should have a base, a middle, and a top?”
“Yes, but not necessarily in that order.”(Godard, apud Tschumi, 1996:165)

Construção permanente retrata antes a (re)organização constante, a intervenção, o


encontro. A própria actividade arqueológica, enquanto uma actividade performativa cria,
inscreve, altera, intervém na construção de contextos, ou seja de relações (Jorge 2006/2007).
A aplicação de um conjunto de métodos, previamente estipulados só nas linhas dos manuais,
são colocados ao serviço do grande objectivo que é o de se proceder a uma escavação neutra e
“científica”. No entanto, em campo e em gabinete, o contexto ou contextos desdobram-se em
diversas formas de registo. Adquirem a forma de registo de campo, segundo as normas que a
disciplina desenhou, materializado em Castanheiro do Vento na atribuição de camadas
arqueológicas, no desenho de planos de registo, nos cadernos de campo (que num aparente
discurso mais desimpedido de espartilhos, são também profundamente condicionados pelo
discurso vigente), na definição de níveis e de momentos. A continuação deste texto
desenvolve-se através da definição dos elementos em que se desdobra o contexto da Grande
Estrutura Circular, intervenientes eles próprios na construção contínua desse(s) mesmo(s)
contexto(s).

Camada

Os métodos de escavação arqueológica, tal como já foi sublinhado, começaram por se


alicerçar na definição e compreensão da estratigrafia. A escavação por camadas foi
especificada por Wheeler [1961 (1954)] não só para obter sequências estratigráficas que
permitissem uma leitura cronológica do sítio, mas também para instituir métodos de
escavação que fossem transversais em Arqueologia.

O sítio de Castanheiro de Vento tem vindo a ser escavado por camadas arqueológicas.
Neste ponto não iremos utilizar as nossas próprias palavras na medida em que o termo
“camada” foi já amplamente definido e questionados por J. M. Cardoso na sua dissertação de
doutoramento. Assim:

“A sua definição é feita em relação à compactação, coloração, composição e às inclusões que


possui. No entanto após a sua caracterização, não podemos dizer que cada camada
diferenciada corresponda linearmente a uma ocupação ou período cronológico. Também é
259
verdade que não se pode generalizar uma determinada camada a toda a área intervencionada.
À excepção de áreas muito pontuais, as camadas não são associáveis a “fases” sucessivas de
utilização do local.” (Cardoso, 2007: 94).

“Só podemos considerar, neste momento, as camadas arqueológicas como um método de


trabalho.” (Ibid: 98).

“Apesar das diferenças temos alguns denominadores comuns. A camada 1 que corresponde,
de uma forma geral, ao sedimento humoso de superfície, encontra-se muito revolvida devido
aos trabalhos agrícolas e às raízes do coberto vegetal. Esta camada é a única que abrange toda
a estação arqueológica. A camada 2, que se apresenta ainda muito perturbada, tem sido
identificada em quase toda a área. No entanto em alguns locais, como o interior do recinto
secundário e em partes da zona norte, não foi identificada. Estas áreas correspondem a locais
onde foram detectados problemas pós-deposicionais associados à agricultura. (…) A camada
3 tem sido identificada em todo o sítio arqueológico. Globalmente associada a todas as
estruturas, até agora reconhecidas, possui um espectro cronológico muito amplo, desde inícios
do III milénio cal BC até meados do II milénio cal BC.” (Ibid: 99).

No estudo da GEC1 apenas nos referiremos à camada 3, na medida em que é a única


que se encontra em relação com a própria estrutura, ao contrário das camadas 1 e 2 que a
cobrem. Como fica claro da leitura dos longos trechos do trabalho de J.M. Cardoso, as
camadas 1 e 2, que aparentemente apresentam uma certa homogeneidade nas áreas
intervencionadas até ao momento, não estão conectadas com as estruturas datadas
genericamente do III milénio a.C., tempo de que nos ocupamos neste trabalho. Assim, para
facilitar a articulação com os restantes elementos intervencionados ao longo das escavações
em Castanheiro do Vento, e para que a associação entre registo de campo e nomenclatura
produzida em gabinete coincidisse, optámos por manter a designação de camada 3 (depósito
superior da estrutura, neste sentido o primeiro a ser removido pela escavação da estrutura).

Níveis

A sua definição aproxima-se da explicação para “camada arqueológica”, na medida


em que o “nível” se identifica pela compactação, coloração, composição dos depósitos e
inclusões detectáveis. Contudo, se a camada pressupõe uma grande extensão, e em
260
Castanheiro do Vento é admitido (ainda que como ferramenta de trabalho) que se estende por
todo o sítio arqueológico, os níveis detectados na GEC1 não têm para já relação com outros
depósitos detectados no sítio. A expressão em extensão e profundidade das unidades
registadas como níveis aquando da escavação de GEC1, conduziu-nos a apelidá-las de forma
distinta e a apartar-nos das nomenclaturas utilizadas para nomear depósitos de limites
reduzidos.

A definição de níveis em Castanheiro do Vento parece seguir genericamente a


definição de estratos de S. O. Jorge, quando refere que “Os estratos são unidades
estratigráficas normalmente pouco espessas e pouco extensas” (Jorge, S.O., 1986: 50). Os
níveis detectados durante a escavação foram numerados por ordem de escavação. A sequência
de numeração não se traduz numa sequência estratigráfica linear.

Planos de registo

O plano de registo é efectuado durante o trabalho de campo e nasce da negociação


entre escavadores e desenhadores (quando as tarefas se encontram adstritas a indivíduos
diferentes, como é o caso em Castanheiro do Vento) e materializa-se sobretudo no registo
gráfico, essencialmente em desenho. Trata-se de um processo de fazer visível aos outros, de
materializar uma determinada “realidade” que é presenciada pelos intervenientes
(escavadores/ desenhadores). Pela sua própria natureza é bidimensional, apesar de as cotas (as
altitudes e profundidades, a terceira dimensão) estarem presente no desenho de forma
numérica. Mas não representa ou apresenta o que estava lá. É interpretação (também na linha
de Carvalho, 2006) – uma imagem. Lendo McFadyen (2011), o desenho tem em si a
possibilidade de ser redesenhado, a potencialidade de futuro, sendo uma representação de um
passado; segundo a autora é-lhe imanente a possibilidade de improviso, apesar da existência
de gramática partilhada para a execução (e interpretação) de um desenho arqueológico.

O desenho traduz a tensão entre os espaços e as formas. No papel milimétrico são


desenhados os limites a traço contínuo, mesmo quando ao olhar do arqueólogo se constroem
na imprecisão e o colherim não consegue a definição desejada quando os interfaces surgem
desfocados. O plano de registo é sobretudo um conjunto de práticas, resulta de um
envolvimento, uma experiência.

261
O desenho é um exercício interpretativo na medida em que são tomadas opções, são
feitas escolhas, e geralmente, o desenho incorpora já a compreensão do arqueólogo
relativamente aos depósitos em questão. Obedece a escalas e a medidas. Os planos de registo
em questão foram elaborados à escala 1: 20 e foram executados com a ajuda de uma grelha
dividida em quadrados com 10 cm de lado. Apesar de a prática arqueológica ser
essencialmente um trabalho colectivo, todos os desenhos em questão foram realizados por
Bárbara Carvalho. No entanto – antes, por vezes durante e muitas vezes depois – cada traço
era discutido com os arqueólogos que estavam a empreender a escavação. McFayden fala de
linhas de movimento. Poderíamos dizer que estes planos de registo trazem latente o
movimento que apenas na narrativa dos momentos é concretizado.

“Each line of movement is present in the drawing: cut and fill are in the same time-space. In
life, things exist in different forms of space: a cut is a shape and a fill is a material. Only
during excavation do architectural and material spaces exist together at the same time.”
(McFadyen, 2011:40).

O desenho coloca em relação as relações de hoje. Materiais, cortes, diferentes


depósitos surgem como parte de uma acção ou actividades que nunca existiram no passado.
Mas são hoje colocadas em relação e traçam, fazem passado. São redesenhados em
momentos, momentos que nascem da relação do próprio desenho com a fotografia e com o
conjunto de materiais que o arqueólogo ou a equipa de arqueólogos interpretaram como
“muito provavelmente” sincrónicos.

Momentos

Nasce no processo interpretativo após o trabalho de campo onde várias variáveis são
equacionadas. O momento não é apenas a materialização de um plano cuja representação é
bidimensional mas interage com uma constelação de coisas que lhe dá volume, profundidade
temporal e extensão espacial ainda que não seja imprescindível a existência de limites. Aliás,
os momentos são permeáveis e as suas barreiras fluidas. Dão espessura temporal ao espaço do
registo. Os arqueólogos trabalham sobretudo com espaços apesar de a sua preocupação se
debruçar sobre tempos (passados); debruçam-se sobre o que num mesmo espaço deixou

262
marcas em outros tempos. Contudo a dificuldade da Arqueologia lidar com o Tempo levou a
problemas vários (ver Velho, 2009)

Susana Oliveira b começa por referir a palavra “momento” no estudo da estrutura com
ossos humanos em Castelo Velho de Freixo de Numão, em 1998. “Momento” surge aqui
enquanto um conceito operatório que permite a descrição/interpretação dos vários planos
registados durante a escavação desta estrutura. Assim, os planos de registo (desenhos) são
apresentados paralelamente à descrição em texto dos “momentos”. Em cada momento, para
além da descrição das materialidades visíveis no desenho (especialmente as lajes de xisto e os
restos osteológicos) são referidos todos os outros materiais em associação (como fragmentos
cerâmicos) e são utilizados verbos que implicam acção na descrição de cada “momento”
como: colocar; construir; depositar; cobrir; fechar; ocultar…

Em 2003, num texto apresentado à revista Côavisão, onde se reproduz parte do


relatório das escavações ocorridas em 2001 em Castelo Velho de Freixo de Numão, S. O.
Jorge descreve a escavação de uma estrutura que continha milhares de sementes carbonizadas
(Jorge, S.O., 2003b: 139). Apesar de começar por referir que “foram detectados vários
“momentos” de deposição integrando sementes e fragmentos de vasos cerâmicos”, opta por
proceder à descrição da estrutura por “níveis”. Apesar de nunca serem definidos pela autora
os termos “momento” e “nível”, parece que neste caso, por se tratar de um relatório de
escavação, os níveis estão relacionados com níveis de escavação em si, com os planos de
registo já mencionados, na medida em que os resultados de campo ainda se encontravam em
fase de estudo. Assim, na dissertação de mestrado de L. Baptista (2003), a estrutura com
sementes já é equacionada por momentos.

A interpretação através de momentos – da escavação e dos elementos concretizados


pelo registo em campo – foi seguida nos trabalhos realizados acerca de Castelo Velho de
Freixo de Numão (Baptista, 2003; Gomes, 2003; Oliveira, 2003) assim como nos que se
debruçaram sobre Castanheiro do Vento (Vale, 2003 12). A utilização deste conceito operatório
é identificável em trabalhos posteriores, como o de McFadyen (no prelo) que segue os
“momentos” criados pelos investigadores que inicialmente estudaram as estruturas nas quais
recai o seu trabalho de fragmentação em Castelo Velho de Freixo de Numão. L. Baptista, S.
Gomes e C. Costa realçaram também recentemente a importância do conceito num exercício

12
Como fica patente na análise do “Bastião” A apresentada no ponto 9.1deste trabalho

263
interpretativo de estruturas em negativo em Horta de Jacinto (Beringel, Beja); neste trabalho
referem:

“Por “Momentos”, entendemos intervalos de tempo que podemos construir com base na
unidade das relações que consideramos no âmbito de um contexto ou num conjunto de
contextos. Deste modo, cada um dos Momentos é o resultado de um exercício de
interpretação onde se joga a associação de uma série de elementos que, durante o processo de
escavação e registo, foram nuclearizados. A sua associação, considerada em termos de
possibilidades, abre um horizonte em que tentamos compreender a fisicalidade dos elementos
produzidos durante a escavação. O sentido deste ordenamento é o de operacionalizar, num
esquema de relações, as unidades e assim sugerir uma sequência de ocorrência.” (2010)

Parece consensual entre os diversos investigadores nas várias definições e construções


do termo “momento”, que este assenta sobretudo no carácter temporal que invoca um tempo
sequencial. Na análise da Grande Estrutura Circular 1 de Castanheiro do Vento a sequência
temporal linear dos momentos foi inviabilizada. Durante o processo de escavação foram
registados planos de registo sequenciais devido à própria natureza da escavação arqueológica.
Como não foi possível em campo a compreensão dos limites dos depósitos identificados
também não foi sempre possível a escavação através do que poderíamos chamar de “unidades
estratigráficas”. Este facto não se deve a uma intervenção arqueológica insuficiente, mas antes
levanta problemas interpretativos, pois no caso em apreço um conjunto de acções encontra-se
materializado de forma não sequencial.

264
Estudo de fragmentação cerâmica - O Método

“One of the most significant ways in which archaeology finds itself embedded in modernity
lies in its adherence to a conception of knowledge that privileges method.” (Thomas 2004:
55).

O estudo das histórias de fragmentação obedece a um conjunto de métodos. Todos os


fragmentos são analisados segundo um conjunto de parâmetros. As questões são
estabelecidas, e a análise minuciosa de cada fragmento irá permitir a obtenção de um conjunto
de informações que, colocadas em relação com outras variáveis desenhadas a várias escalas,
permitem a problematização dos sítios arqueológicos segundo uma abordagem crítica e
relacional. No entanto, os métodos são precisos, acurados. As medições dão-se em
centímetros, o peso em gramas, o estado de conservação de superfícies e arestas é indagado
por um conjunto de descritores definidos (e estanques). A Arqueologia, no contexto da
ciência moderna, perseguiu e persegue a elaboração de metodologias precisas que permitam a
obtenção das informações correctas. Ou seja, a criação de um sistema de perguntas abstracto
deveria ser capaz de ser manuseado por todos e, na ausência de manipulação deficiente do
inquérito, produzir conhecimento “verdadeiro” acerca do passado. De matriz cartesiana, a
crença na infalibilidade e o desejo pelo método universal ainda ocupa a maioria dos
arqueólogos.

Como refere J. Thomas (2004) a experiência da própria escavação é colocada à


margem no discurso científico. No entanto, relembrando a posição de Hodder (1997:693)
afirma que “Archaeological sites and their contents are not simply sets of alienated objects
that can be described in a distanced and abstract way. The production of knowledge about the
past on an archaeological site is a collective interpretative labour, which involves the
“working” of a set of social relationships between people and things.” (Thomas 2004: 76).

V. O. Jorge (2006/2007) realçou também a necessidade urgente de pensar a própria


actividade de escavação. O momento de envolvimento dos corpos, dos materiais, no sítio e
com o sítio. É necessário trazer ao discurso o carácter irrepetível da escavação, entendida
como performance, como um acto criativo. Mesmo um estudo atento ao detalhe uniformiza o
conjunto ao colocá-lo em tabelas traduzidas em números. Mesmo que o inquérito se
modifique e as perguntas pretendam questionar o fragmento cerâmico na sua individualidade,
essa abordagem abafa também a especificidade de cada um. Cada investigador que estuda

265
fragmentos cerâmicos sabe, que sob a aparente homogeneidade de cada grupo artefactual,
cada elemento era passível de uma descrição que o diferenciaria do seguinte e do precedente
na base de dados. Mas a própria ficha da base de dados e a necessidade de trabalhar os
resultados inviabiliza um estudo que pretende estudar o detalhe de cada fragmento cerâmico.
A hierarquização da informação é inevitável 13.

O estudo dos fragmentos cerâmicos desta estrutura de Castanheiro do Vento segue


assim de perto a análise proposta por L. McFadyen (no prelo) para a análise de um conjunto
de contextos identificados em Castelo Velho de Freixo de Numão. Relembramos que a autora
propõe a análise da fractura do fragmento paralelamente à do contexto de deposição dos
fragmentos cerâmicos e em relação com os elementos arquitectónicos do sítio.

Tendo em consideração estes objectivos, a autora definiu os seguinte critérios para a


caracterização das amostras:

- Número de colagens.

- Definição do número mínimo de vasos. Esta variável não procura responder à pergunta de
quantos vasos exactamente estariam presentes numa estrutura mas é utilizado na análise
comparativa de estruturas: importa perceber se os vários fragmentos de uma estrutura são de
poucos ou muitos vasos. Em relação com este descritor, a autora referenciou também se os
fragmentos cerâmicos eram provenientes de grandes vasos ou de pequenos recipientes, já que
o número de fragmentos resultante de um grande recipiente cerâmico poderá diferir do de um
com dimensões mais reduzidas.

- Peso dos fragmentos.

Para o estudo da fragmentação McFadyen definiu os seguintes critérios:

- Estado de superfície dos fragmentos: desgastado, erodido, queimado.

13
“And after all this we should not feel nostalgic for the fact that we do not find a definitive truth. Who wants a
definitive truth? Is it as much useless as last days papers, to remember an old song of the Rolling Stones. We
want to act together in the present. To find people, not only faces, not only images; to make things in the soil, not
just to look at it or to experience it walking, talking, or whatever. “Going into the deep of thinks” means just be
active, feel happy, raise questions, propose guesses, elaborate interpretations, discard views, in a word – to
dialogue each other inside a real and active, engaged world of relationships.” (Jorge, V. O. 2006-2007: 307)

266
- Estado das arestas: desgastado, erodido, queimado.

- Proporção de bordos/panças/fragmentos decorados.

- Tamanho dos fragmentos segundo um esquema fixo: pequenos (<3 cm); médios (<7 cm) e
grandes (>7cm). Este esquema de fragmentação não é utilizado para o estudo das histórias
individuais de cada fragmento cerâmico mas para a análise do conjunto cerâmico à escala da
estrutura e depois em análises comparativas.

A análise comparada de estruturas de Castelo Velho de Freixo de Numão teve em


consideração os seguintes aspectos:

- Relação do número mínimo de vasos.

- Relação da espessura dos fragmentos com o número de ocorrências.

- Relação da percentagem de bordos/panças/fragmentos decorados.

- Relação do tamanho dos fragmentos.

A análise que agora apresentamos teve em consideração 2818 fragmentos cerâmicos


recolhidos no interior da Grande Estrutura Circular 1. O estudo inclui também a abordagem
clássica que privilegia os aspectos morfotécnicos que o fragmento diz acerca do recipiente ao
qual pertenceu. Esta perspectiva pretende caracterizar a amostra pela descrição dos vasos que
teriam sido elaborados e utilizados pelas comunidades. Nesse sentido, o inquérito é construído
de forma a iluminar as técnicas de fabrico dos vasos cerâmicos (caracterização da pasta;
tratamento de superfície e cor, que pode relacionar-se com técnicas de cozedura). A análise
dos fragmentos decorados e dos bordos deverá no final proporcionar a elaboração de uma
tabela tipológica de formas cerâmicas e de organizações decorativas (ver Anexo). O inquérito
tradicional resulta em textos e tabelas que retratam o conjunto de recipientes cerâmicos do
sítio em questão. No entanto, apesar de o inquérito incluir os parâmetros tradicionais de
análise cerâmica, não é objectivo desta pesquisa a elaboração de um quadro representativo
dos vasos cerâmicos de Castanheiro do Vento pelo que remetemos para anexo os resultados
provenientes da análise morfotécnica dos fragmentos cerâmicos. Relembramos, no entanto,
que o objectivo traçado pelo inquérito tradicional, de ler na parte o todo, tem inviabilizado
discursos outros no seio da análise cerâmica em arqueologia. E talvez por esta razão, estes
mesmos estudos ficam muitas vezes presos no círculo de investigadores que se dedicam à

267
análise cerâmica deixando indiferentes outros investigadores. A análise que McFadyen
introduziu na Arqueologia Portuguesa proporciona uma outra abordagem, um outro inquérito
e sobretudo a análise dos fragmentos cerâmicos não como um campo de especialistas mas
uma forma de pensar a arquitectura dos sítios.

Aquando da análise de um conjunto cerâmico resultante das campanhas de 1998, 1999


e 2000 em Castanheiro do Vento, concluímos o trabalho escrevendo:

“Deparámo-nos com uma imensa quantidade de quantificações e uma escassa quantidade


qualitativa de resultados. Por outras palavras, o método de análise seguido concedeu-nos
inúmeras hipóteses de cruzamento de dados, que apenas se exprimiram por números. Neste
sentido, questionámo-nos se o método adoptado foi coincidente com as perguntas que
tencionávamos colocar aos objectos e se as respostas que obtivemos eram, de facto, aquelas
que este método possibilitava obter. Por exemplo, interpelámos o tipo de pasta, mas apenas
obtivemos números. Não seria mais coerente, se colocássemos esta questão com vista ao
reconhecimento de barreiros? Nesta medida, pensamos que é essencial para uma abordagem
deste tipo um suporte laboratorial, de que com certeza os próximos trabalhos que se debrucem
sobre a análise dos materiais irão usufruir” (2003: 153)

No entanto, esse “suporte laboratorial” não foi concretizado. E as perguntas foram-se


distanciando deste inquérito inicial. Neste sentido outros itens foram adicionados à base de
dados elaborada por João Muralha Cardoso, e outros pontos – como o estado de conservação
de superfícies e arestas ou tamanho do fragmento – foram valorizados. Já em 2003 tínhamos
afirmado que o nosso estudo tinha por base o fragmento cerâmico. Como já foi sublinhado, a
análise dos fragmentos cerâmicos surge como um dos possíveis caminhos para o estudo da
construção de espaços em Castanheiro do Vento e como parte integrante da problematização
das formas de fazer “arquitectura”; concretamente neste ponto, surge como essencial para
pensar a Grande Estrutura Circular 1.

Neste sentido apresentaremos a análise da fragmentação, tal como definida por


McFadyen, paralelamente à discussão dos “contextos”. Contudo, a ausência de limites desses
mesmos contextos levou-nos a adaptar o conjunto de métodos de análise propostos pela
investigadora. Assim, os fragmentos foram divididos pelo seu tamanho, tal como no trabalho
de McFayden: pequenos, menores que 3 cm e identificados com a letra A; médios, entre 3 e 7
cm e aos quais corresponde a letra B; grandes, maiores que 7 cm e referenciados com a letra
268
C. O estado das arestas foi apenas divido entre erodida e não erodida (representados com os
números 1 e 2 respectivamente). Quando as percentagens são expressivas ao nível do estado
de superfície e da relação entre fragmentos cerâmicos decorados e não decorados, também
serão apresentadas.

Para facilitar o processo de obtenção de colagens, os fragmentos foram distribuídos


por níveis e por quadrículas e posteriormente agrupados por técnicas decorativas e
proveniência em relação ao vaso (bordo, bojo e colo). No entanto, e podemos desde já referir,
o número de colagens conseguidas foi diminuto, e os fragmentos colados encontravam-se
num mesmo contexto/nível/quadrícula/concentração. Apenas foi realizada uma colagem com
expressão no discurso interpretativo da estrutura que será analisado na continuação deste
texto. Apesar do número de colagens ser quase inexpressivo verificou-se a existência de
fragmentos do mesmo vaso. Tendo em consideração estas variáveis, passaremos no ponto
seguinte ao estudo da Grande Estrutura Circular 1 de Castanheiro do Vento.

Fig. 10.2.1. Distribuição dos fragmentos cerâmicos por contexto durante a fase de análise.
269
Genealogia da intervenção arqueológica

“A descrição minuciosa do caos falha porque não há pormenores quando se


desconhece o início e o fim de uma estrutura. Se o miolo é um estilhaço,
por onde começar a construir?”

Tavares, Gonçalo M. (2009: X)

Localização da estrutura no sítio

Fig. 10.2.2. Localização da GEC1 na planta do sítio (croquis realizado após campanha de 2010; tratamento
gráfico de A. T. Santos sobre desenhos de B. Carvalho).

270
A Grande Estrutura Circular localiza-se na área oeste do sítio. Situa-se muito próxima
da linha do Murete 2 (o limite poente da GEC1 dista cerca de 50 cm da face interna do M2).
Poderíamos também colocar esta estrutura em relação com o Murete 3. No entanto, como o
limite leste da GEC1 se encontra numa área bastante perturbada, a linha do M3 não se
encontra materializada no terreno. É possível a admissão das seguintes hipóteses:

• GEC1 foi elaborada no espaço desenhado pelas linhas curvilíneas dos muretes
que definem, até ao momento, a morfologia do sítio de Castanheiro do Vento;

• no momento da construção de GEC1, a linha do Murete 3 já se encontrava


desmontada/destruída. Neste caso a GEC1 abrir-se-ia ao interior do Recinto
Principal. Contudo, sublinhamos que, nesta área os depósitos conectados com
a actividade agrícola repousam imediatamente no afloramento rochoso.

A linha do Murete 2 ampara e delineia o espaço a oeste. Nesta área a linha de Murete
2 é cortada por uma passagem (número 12). Do lado externo do M2 duas estruturas
geminadas foram registadas (23 e 24). Neste sentido, a passagem no Murete 2 – se sincrónica
com as pequenas estruturas circulares e a com a de grandes dimensões – abria-se a espaços
estreitos e sinuosos, de circulação condicionada. O caminho far-se-ia por percursos
constrangidos pela existência de paredes, mais ou menos espessas, mais ou menos alteadas. A
norte foram registadas duas estruturas circulares geminadas (números 22 e 25) e um conjunto
de linhas em arco que poderiam fazer parte de estruturas circulares ou corresponder a formas
outras de organização do espaço.

271
Fig. 10.2.3. Localização da GEC 1 em relação com murete a sul e EC 26 (tintagem sobre desenhos de B.
Carvalho).

Caminhando mais para norte, desenha-se a linha incompleta da Grande Estrutura


Circular 2. Continuando este percurso pelos “arredores” da GEC1, concentremo-nos no
conjunto de estruturas de base pétrea identificado a sul. Na campanha de escavação de 2008
identificou-se um possível murete, com orientação SSW-NNE. Parecia dividir espaços
delineados pelos Murete 2 e 3 e encontrava-se em relação com a estrutura circular 26. As
escavações levadas a cabo em 2010 incidiram novamente neste aparente troço de murete,
evidenciando-se aí um conjunto de características que parecem distanciar este alinhamento
pétreo daqueles identificados até ao momento: não apresenta uma face interna e externa ao

272
longo da sua extensão e parece comportar buracos de poste no seu interior; este último
aspecto sugere um tipo de construção em altura distinto do dos outros muretes (M1, M2, M3 e
M4). O estado actual da investigação permite-nos sugerir que esta estrutura, definida por um
alinhamento pétreo de tendência curvilínea com uma extensão de cerca de 6 metros, faz parte
do complexo da GEC1, correspondendo a uma espécie de anteparo que define um percurso de
acesso à estrutura. Como na continuação deste texto iremos descrever, a GEC1 parece conter
uma passagem a sul, definida por uma interrupção no murete e um buraco de poste. Esta
entrada faria, portanto, a ligação entre o interior da GEC1 e um espaço delimitado a sul por
um alinhamento pétreo, base do que poderíamos supor ser uma parede de terra crua. O espaço
que medeia o limite da GEC1 e o alinhamento pétreo é apenas pontuado por buracos de poste
(foi possivel a identificação clara de três) e por um conjunto de lajes de xisto aparentemente
não estruturadas; no entanto, uma delas encontrava-se facetada, e tinha uma forma
genericamente circular. Neste local foi detectado um punção em cobre assim como um
elevado número de fragmentos cerâmicos.

A escavação realizou-se por camadas arqueológicas, tendo a área sido dividida em


quadrículas de 2x2 m, segundo o método de escavação seguido em Castanheiro do Vento, tal
como referido na primeira parte deste trabalho. Durante a escavação da estrutura introduzimos
um caderno de campo partilhado por todos os escavadores e sempre que possível os materiais
foram registados tridimensionalmente. Foram também recolhidas amostras de sedimento que
aguardam uma oportunidade de análise. Todos os materiais e amostras de sedimentos estão
neste momento à guarda do Museu da Casa de Moutinho, localizado na vila de Freixo de
Numão.

273
Descrição das intervenções arqueológicas

Durante a campanha de escavações de 2008 a Grande Estrutura Circular foi identificada.


Como já tivemos oportunidade de referir (no ponto 9.2), o registo começa apenas por apontar
um alinhamento de lajes de xisto fincadas de tendência curvilínea. Posteriormente tornou-se
visível que este mesmo alinhamento desenhava um círculo. Após a remoção dos sedimentos
de topo (camadas 1 e 2) o alinhamento começa a ser perceptível. Ainda durante Julho de 2008
inicia-se a escavação do que convencionalmente apelidamos camada 3. Durante a escavação
da camada 3 foi possível então detectar um alinhamento circular, bastante perturbado no seu
lado leste, e no final da campanha podíamos então registar:

Fig. 10.2.4. Aspecto geral da GEC1 após a intervenção arqueológica de 2008.

• Uma interrupção no alinhamento a sul, de cerca de 1,40 m, localizando-se


sensivelmente ao centro daquela um buraco de poste.

• Uma estrutura de tendência circular também a sul, definida essencialmente por uma
espécie de lajeado constituído por lajes de xisto de dimensão média. Esta estrutura
parecia aproveitar parte do alinhamento da grande estrutura e desenvolve-se para a
área interna desta. Apelidou-se de Estrutura 1.

274
• Na sector oeste foi registada uma área que parecia comportar uma estrutura de
tendência circular (Estrutura 3) e na qual foram reconhecidos diversos contextos ainda
que não fosse possível definir os limites precisos dos mesmos ou perceber as relações
estratigráficas que estabeleciam entre si. Assim reconheceu-se uma área caracterizada
por um sedimento cinzento-escuro, pouco compacto; e uma outra caracterizada pela
presença abundante de barro de revestimento.

• Foram ainda registados 19 buracos de poste, uma depressão preenchida por um


depósito semelhante à camada 3; aquele individualizava-se desta devido à presença de
bastantes elementos de quartzo, de forma irregular e de pequeno a médio calibre.

• O estudo dos fragmentos cerâmicos revelou que foram recolhidos 1302 fragmentos
cerâmicos durante a campanha de 2008.

O interesse crescente que esta estrutura nos despertava – pela sua singularidade ao nível
formal (dada pelo seu diâmetro, distante do que até então poderiam ser consideradas as
tradições construtivas no sítio de Castanheiro do Vento) – e as particularidades que certas
áreas da estrutura pareciam denunciar – como a concentração de fragmentos de barro de
revestimento e de grandes fragmentos cerâmicos – levaram uma pequena equipa a realizar aí
uma intervenção em Junho de 2010 14. Os objectivos desta intervenção encontravam-se
definidos:

1. Compreender o limite leste da estrutura onde aparentemente nenhuma laje de xisto se


encontrava a delimitar a sua área;

Nesse sentido foi intervencionada a quadrícula 97.27. Procedeu-se à escavação de um


depósito de cor castanha clara, pouco compacto, com elementos pétreos de pequeno calibre 15.
Este depósito assentava directamente no afloramento rochoso, irregular e bastante fracturado.
No entanto, apresentava um “degrau” que poderá corresponder à delimitação da estrutura
nesta área.

14
Esta intervenção contou com a presença de: Sérgio Gomes, Higino Matos, Lesley McFadyen, Mark Knight,
Joana Alves Ferreira, Lurdes Oliveira, Susana Mesquita, André Tomás Santos e João Muralha Cardoso.
15
Este depósito corresponde à camada 3, ainda que apresente uma coloração de tom mais escuro, devido à
humidade do solo nesta época do ano.

275
2. Compreender o que apelidámos de Estrutura 3, e que se sobrepunha às lajes que
perfazem o limite da GEC1;

A concentração de barro de revestimento parecia estender-se pela quadrícula 96.24 e


parcialmente pela 97.24. Optou-se por realizar uma pequena intervenção na quadrícula 97.24
a fim de se obter um corte estratigráfico e assim contribuir para a compreensão da estrutura.
Escavou-se uma área de 1,50 m de comprimento por 0,80 m no extremo leste e de 1,50 m por
0,10 m de largura no extremo oeste. Em profundidade atingiu-se um máximo de 0,25 m. A
escavação desta área revelou um depósito constituído quase exclusivamente por fragmentos
de barro de revestimento, de pequeno, médio e grande tamanho. Neste depósito foi recolhido
um vaso inteiro, em forma de calote de esfera. No extremo leste identificou-se um depósito
constituído por um sedimento cinzento-escuro e elementos pétreos de pequeno tamanho onde
aparentemente encostava o depósito do barro de revestimento. Este depósito revelou um
punção em cobre. Foi ainda detectado na base da intervenção, sob as lajes que delimitam a
GEC e estendo-se para o seu interior, um sedimento igualmente de cor cinzento-escura com
inclusões de elementos pétreos de pequeno calibre.

Fig. 10.2.5. Corte estratigráfico obtido durante a escavação da Estrutura 3.

3. Compreender a relação entre as lajes que desenham o limite da estrutura e os depósitos


que a elas se encostam;

276
Na tentativa de concretizar este objectivo foram intervencionadas as quadrículas 95.24 e
94.24 no extremo oeste da GEC1, área onde a “camada 3” tinha já sido escavada durante a
campanha de 2008. Foram registados 2 níveis que serão abordados na continuação deste
texto. Salientamos desde já que as lajes que delimitam a estrutura parecem assentar no nível
2.

Fig. 10.2.6. Vista (de norte) sobre as quadrículas 95.24 e 94.24 em processo de escavação

4. Compreender a relação entre os depósitos que se encontram dentro e fora da estrutura,


tentando estabelecer relações entre a GEC1 e o Murete 2.

Assim, iniciou-se a intervenção da área compreendida entre a face interna do Murete 2 e a


GEC1. Realizou-se uma primeira decapagem, durante a qual se detectou um nível com
bastantes inclusões de lajes de xisto de pequeno e médio calibre.

277
Fig. 10.2.7. Pormenor da escavação dos depósitos que encostam à face externa da GEC1.

No mês seguinte regressámos a Castanheiro do Vento e, durante o mês de Julho com


uma grande equipa em campo, escavou-se até ao nível da rocha basal o interior da Grande
Estrutura Circular 1; prosseguiu-se, de igual forma, a escavação nas imediações da estrutura.
Assim, realizou-se a escavação integral das Estrutura 1 e 3, assim como de uma área
caracterizada por um alinhamento de tendência circular e pela presença de alguns buracos de
poste, localizada sensivelmente na área central da GEC1, e à qual apelidámos de Estrutura 2.
Durante a campanha de 2010 foram recolhidos 1516 fragmentos cerâmicos.

Passemos à descrição dos planos de registo 16 realizados durante a escavação.

Na Estrutura 1 foram realizados 2 planos de registo. O primeiro plano de registo


mostra um conjunto de lajes de xisto dispostas na horizontal como que formando uma espécie
de lajeado. O segundo plano de registo é realizado após o desmonte destas lajes e assinala a
construção conjunta das duas estruturas – GEC1 e Estrutura 1 – relevando as lajes que
definem os limites de uma e de outra, mas realçando o entrelaçado que a composição pétrea
sugere.

A escavação da Estrutura 2 permitiu a elaboração de quatro planos de registo. O


primeiro, desenhado durante a escavação de 2008, revela um alinhamento de tendência

16
Os planos de registo obedecem à ordem pela qual foram escavados, ou seja, o primeiro plano de registo
corresponde à primeira unidade escavada e neste sentido, segundo as leis estratigráficas, ao mais recente.

278
circular assim como uma concentração de buracos de poste (que se materializavam pela
presença de conjuntos de lajes de xisto fincadas). O segundo plano, efectuado já em 2010,
assinala o topo do enchimento. O terceiro plano também se debruça sobre o enchimento e
assinala a presença de alguns fragmentos cerâmicos na extremidade leste da estrutura junto ao
alinhamento de tendência curvilínea. Por fim, o quarto plano desenha a base da depressão e os
limites da estrutura.

Durante a intervenção da Estrutura 3 foram elaborados 5 planos de registo que


apresentamos de seguida, de forma pormenorizada. Estes planos de registo (assim como os
agora descritos para a estrutura 1 e 2) serão posteriormente tratados em relação com todas as
outras informações recolhidas durante o trabalho de campo e cada estrutura será interpretada
segundo “momentos”.

• 1º Plano de registo: a área de dispersão de barro de revestimento não tem limites bem
definidos. De forma ovalada, apresenta um comprimento máximo de 2,60 m e uma
largura máxima de 2,40 m. A pequena estrutura circular começa a revelar os seus
limites (é visível o topo das lajes que a definem). Verifica-se uma área de sedimento
cinzento-escuro na área a oeste e uma pequena mancha a sudoeste da quadrícula. O
nível de barro de revestimento e sedimento cinzento-escuro sobrepõem-se às lajes que
delimitam a estrutura. (Quadrículas: 97.24; 96.24 e 95.24).

• 2º Plano de registo: a área de barro de revestimento concentra-se na área norte da


quadrícula 96.24 e na área sul da 97.24, no exterior da pequena estrutura circular mas
sobrepõe-se às lajes que definem a GEC1. Verifica-se a continuação para norte do
depósito caracterizado pelo sedimento cinzento-escuro identificado no plano 1, se bem
que aqui apresente uma tonalidade não tão escura. Identificou-se uma mancha de
sedimento cinzento-escuro a oeste da pequena estrutura circular que encosta a uma das
lajes que a definem. A sul, e parcialmente a oeste, da pequena estrutura circular foi
registado um depósito caracterizado por um sedimento de matriz areno-argilosa,
medianamente compacto, de cor amarelo-acastanhada clara, com inclusões de
elementos pétreos de pequeno calibre.

• 3º Plano de registo: realizado após a remoção total do barro de revestimento; o


sedimento cinzento-escuro localiza-se no interior e em torno da pequena estrutura
circular excepto a sul. Registou-se ainda no interior da estrutura circular um nível de
279
deposição constituído por: um fragmento de haste de bovídeo, espinhas de peixe, um
peso de tear, alguns fragmentos cerâmicos. Na área da estrutura 3 identificou-se ainda
duas áreas de sedimento cinzento-escuro registadas com os números 1 e 2. Em ambas
foram recolhidos sedimentos de barro de revestimento. Na área 1 (continuação do
depósito detectado nos níveis de registo anteriores, a oeste) foram recolhidos
fragmentos cerâmicos que se encontram em relação com pequenas lajes de xisto; a
concentração 2 apenas se delimita pela coloração e compactação do sedimento (mais
escuro e um pouco mais compacto que o sedimento em redor).

• 4º Plano de registo: define as lajes que delimitam a GEC1 e define o nível de pequenas
pedras no interior do da pequena estrutura circular. O depósito identificado é
caracterizado por um sedimento amarelo, compacto, com elementos pétreos de
pequeno calibre.

• 5º Plano de registo: desenha os limites da depressão. Apesar da pequena estrutura


circular não ter sido desmontada, este plano refere-se a momentos anteriores à sua
criação; nível constituído por cascalho e sedimento argiloso compacto.

Após a descrição dos planos de registo das três estruturas efectuados durante os trabalhos
de escavação de Julho de 2010, apresentamos de seguida os diversos níveis que ocorrem nos
restantes espaços da GEC1. Esta descrição congrega as três fases de escavação.

Camada 3: depósito de cor amarela, areno-argiloso, pouco compacto, com inclusões


frequentes de lajes de xisto – de distinto calibre e configuração – e de pequenos blocos
irregulares de quartzo. Os limites deste depósito podem ser desenhados pelas lajes que
definem a GEC1; contudo ele não foi identificado na estrutura 3. Em profundidade varia
bastante. Na área oeste da estrutura assenta directamente no afloramento rochoso.

Nível 1: depósito de cor amarela, areno-argiloso, compacto, com inclusões de lajes de


xisto de distinto calibre e configuração (regista-se praticamente em toda a estrutura, nas
quadrículas: 93.25, 94.24; 94.26; 95.24; 95.25; 95.26; 95.27; 96.25; 96.26; 97.25 e 97.26. As
áreas onde não foi registado este depósito correspondem às que se caracterizam pela presença
de estruturas e à do limite leste da GEC, que se encontra bastante perturbada e onde a camada
3 cobre o substrato geológico).

280
Nível 2: depósito de cor amarelo-clara, areno-argiloso, compacto, com poucas inclusões
de lajes de xisto de distinto calibre e configuração. Apenas foi possível a sua identificação nas
quadrículas 94.24; 95.24; 95.25 e 96.24 ou seja no extremo oeste da estrutura.

Nível 3: depósito caracterizado por um sedimento argiloso pouco compacto, de cor


amarela, de matriz areno-argilosa, com abundantes inclusões de pequenas lajes de xisto
(removido durante a 3º semana: de 12 a 16 de Julho). Encontra-se localizado nas quadrículas:
96.26; 96.25; 97.25; 97.26, 94.24 e 95.24 (ou seja, genericamente na área sudoeste da
estrutura). Este depósito parece ser anterior à colocação das lajes que definem a estrutura e
estende-se até à face interna do Murete 2.

Nível 4: depósito que está sobre o afloramento xistoso, entre as suas fracturas naturais.
Caracteriza-se por uma coloração amarela, de matriz areno-argilosa, muito compacta.

281
Estudo da fragmentação por contextos

Entremos comigo no interior do espaço interpretativo desta estrutura, que gostaríamos


aqui de comparar a um recinto. Tal como no interior de um recinto, encontramo-nos numa
área delimitada por um alinhamento pétreo que, podemos imaginar, corresponde ao nível
basal de paredes elaboradas com recurso a terra crua e materiais perecíveis, num entrelaçado
de ramos e terra argilosa. No interior deste recinto tentaremos estudar diferentes formas de
fazer espaços, diferentes práticas e manipulações de materiais diversos; ou seja, iremos
debruçar-nos sobre a arquitectura desta estrutura. Começámos por salientar que estes níveis
não se apresentam enquanto depósitos com limites definidos. Gostariamos de chamar esta
estrutura de recinto porque as lajes dispostas de forma subcircular que definem a sua linha
basal são os limites possíveis desta análise. Delimitam para já o problema. Se a ideia de
recinto está conectada com possessão, com o desejo de manter e proteger, o recinto é
considerado aqui estruturador das fronteiras que por agora impomos à pesquisa. Assim,
tentaremos desdobrar os planos de registo e fazer visível o entrelaçado de acções que os
detalhes dos materiais parecem denunciar. Antes de prosseguir é também necessário sublinhar
que o estudo desta estrutura tenta coordenar três intervenções arqueológicas, com agendas e
intervenientes distintos.

Fig. 10.2.8. Localização da Estrutura 1 na GEC1 e representação de três momentos.

282
Comecemos pela estrutura circular número 1, localizada sensivelmente a sudoeste.
Esta estrutura foi tecida ao mesmo tempo que o recinto, ou seja, a construção de uma e outro
entrelaça-se; ainda que as lajes que definem cada uma das estruturas não sejam as mesmas,
elas nascem de forma intercalar. Recorremos à categoria “momento” como forma de
compreensão destas estruturas, e como tentativa de as tornar inteligíveis ao leitor. A partir
deste processo que envolve a escavação e todo o trabalho de pós-escavação, delineámos 4
momentos 17. O primeiro está relacionado com o nível 2 descrito anteriormente, ou seja – com
o depósito onde assentam as lajes da estrutura e que lhe será imediatamente anterior. O
segundo é caracterizado por um sedimento muito compacto que se encontra por debaixo de
um terceiro momento constituído sobretudo por lajes de xisto de média dimensão, dispostas
na horizontal e formando uma espécie de lajeado. O quarto momento corresponde à camada 3
e cobre o momento anterior.

Gráfico 10.2.1. Relação arestas boleadas (número 1) /não boleadas (número 2) na Estrutura 1, nos diversos
momentos. Números percentuais

17
Os momentos, ao contrário dos planos de registo, revertem a ordem de escavação. Ou seja, o primeiro
momento será aquele que em termos estratigráficos é o primeiro a formar-se ainda que não seja linear a
sobreposição ou a sequência de momentos.

283
A análise do estado das arestas dos fragmentos provenientes da Estrutura 1 permite
destacar o momento 3. Apresenta uma grande percentagem de arestas erodidas e está
conectado com o nível das lajes de xisto dispostas na horizontal (“tipo pavimento”). No
entanto, atendendo ao estado de conservação das superfícies dos fragmentos há apenas a
destacar uma grande homogeneidade nos valores. As superfícies são maioritariamente
preservadas tanto no lado externo (os números percentuais situam-se entre 90,9% e 100%)
como no lado interno (frequências entre 83,3% e 96,97%).

Gráfico 10.2.2. Relação da dimensão dos fragmentos nos diversos momentos da Estrutura 1. Os
resultados apresentam-se em números percentuais. (Letra A = <3cm; Letra B = 3-7cm; Letra C =>7cm)

Os números percentuais relativos ao tamanho dos fragmentos não revelam diferenças


significativas ao longo dos quatro momentos criados para a interpretação desta estrutura.

A análise do conjunto lítico apenas registou a presença de 29 termoclastos em quartzo


e um em granito, registados no momento 2, ou seja, no momento que antecede a colocação de
lajes tipo lajeado. É de notar que os blocos irregulares de quartzo alterados pela acção do fogo
não se encontram conectados com um depósito caracterizado por sedimentos escuros que
poderiam estar relacionados com actividades de combustão 18.

18
C. Costa que se encontra a desenvolver o estudo do conjunto faunístico de Castanheiro do Vento sugeriu que a
grande percentagem de ossos calcinados assim como a sua elevada fragmentação poderia indicar que os ossos
animais teriam sido utilizados como combustíveis. As características da combustão diferem da combustão com
284
Fig. 10.2.9. Localização da Estrutura 2 e fotografias de três momentos

A estrutura número 2 localiza-se genericamente na área central da GEC1. Trata-se,


como já foi referido, de uma estrutura constituída por um alinhamento de contorno circular e
pela presença de buracos de poste. Esta estrutura ganha expressão pelo seu enchimento,
caracterizado por um sedimento argiloso compacto, amarelo-acinzentado, com fragmentos
cerâmicos, elementos em granito, lajes de xisto – nomeadamente uma de cor avermelhada
afeiçoada – e vestígios osteológicos.

Definimos quatro momentos. O primeiro, corresponde ao depósito da base da


depressão e dele provêm apenas dois fragmentos cerâmicos. O segundo momento relaciona-se
com o primeiro nível de lajes que preenchem a depressão; entre estas lajes releve-se a de xisto
afeiçoada, tipo estela, de cor avermelhada e que terá sido submetida a altas temperaturas.
Neste segundo momento os fragmentos cerâmicos parecem concentrar-se na extremidade
leste. O terceiro momento está conectado com o segundo nível de lajes de xisto e com uma
concentração constituída por sete blocos irregulares de quartzo leitoso, localizada na
extremidade norte da estrutura, junto do buraco de poste 11. Os fragmentos cerâmicos deste

elementos vegetais, pela não produção de brasas e também pela possibilidade de manter a combustão por um
tempo mais prolongado (Costa, 2011). Poderá esta situação estar conectada com a frequência baixa de estruturas
de combustão (ou reconhecidas como tal) conectadas com sedimentos escuros?

285
momento foram registados quase todos no extremo oeste da estrutura. O quarto, e último
momento, é definido pelo depósito que cobre a estrutura e que se poderia conectar com a
camada 3.

Gráfico 10.2.3. relação das superfícies preservadas / corroídas na Estrutura 2

A comparação do estado das superfícies (externas e internas) ao longo dos quatro


momentos indica que no momento 2 existe uma alta percentagem de superfícies corroídas, ao
contrário do momento 3, relacionado tal como o anterior com o enchimento da estrutura.

Gráfico 10.2.4. Relação de arestas boleadas/não boleadas nos 4 momentos identificados na Estrutura 2

286
A Estrutura 2 não apresenta diferenças significativas ao longo dos quatro momentos
criados em relação ao estado das arestas dos fragmentos cerâmicos. O gráfico 11.2.4. realça o
momento 1 que apenas regista arestas não boleadas; no entanto, este conjunto é apenas
definido por dois fragmentos cerâmicos. Contudo, comparando os valores das arestas
boleadas em outros contextos, a Estrutura 2 parece apresentar um elevado número de
fragmentos cerâmicos com as arestas boleadas.

Gráfico 10.2.5. Relação da dimensão dos fragmentos na Estrutura 2

Em relação ao tamanho dos fragmentos, os momentos 2 e 3 podem ser destacados pois


apresentam uma grande percentagem de fragmentos de grande dimensão, identificados com a
letra C. Ambos os momentos relacionam-se com o enchimento da depressão e localizam-se
nas extremidades da mesma.

Em relação com o enchimento da estrutura foram detectados também: um núcleo para


lascas em quartzo leitoso, anguloso, com três levantamentos e vestígios de maceração; cinco
lascas fragmentadas em quartzo leitoso; um fragmento de lasca. Foram ainda recolhidas duas
esquírolas em quartzo, oito blocos de quartzo que sofreram a acção de calor (termoclastos),

287
um bloco de granito também queimado; cinco blocos de quartzo de filão (e de contacto com
filões de xisto) não alterados pelo calor

Fig. 10.2.10. Nesta fotografia encontra-se assinalada a área de distribuição dos depósitos relacionados
com a estrutura 3.

A estrutura número 3, tal como a 1, é tecida com o recinto: caracteriza-se por uma
depressão, por uma pequena estrutura circular e pelas lajes que a definem; mas destaca-se,
como a estrutura 2, também pelo seu enchimento. Foi possível registar uma depressão, uma
pequena estrutura circular que poderia ser revestida por terra crua, e um “enchimento”
caracterizado por um sedimento cinzento-escuro e uma curiosa acumulação de fragmentos de
barro de revestimento (um total de 37 Kg foram recolhidos). Este enchimento parece
ultrapssar os limites da GEC1. Durante o trabalho de campo foram detectados 5 planos de
registo como já tivemos oportunidade de referir, mas durante o trabalho de gabinete estes
foram desdobrados ou agrupados em relação com os materiais a que correspondiam. Tentou-
se definir limites (ainda que desfocados) para os contextos – cujos interfaces se perdiam no
próprio processo de escavação – capturadas em cada plano de registo, através dos “pequenos”
materiais. Neste sentido, o sedimento cinzento-escuro (contexto 1), o depósito constituído por
fragmentos de barro de revestimento (contexto 2) e a pequena estrutura circular (contexto 3)
foram individualizados.

288
Gráfico 10.2.6. Relação de panças e bordos decorados ao longo dos 4 momentos identificados no
contexto caracterizado por sedimento cinzento-escuro (contexto 1).

O contexto caracterizado pelo sedimento cinzento-escuro foi localizado, de uma forma


geral, na área oeste da estrutura. Apesar de outras manchas e bolsas de terra escura terem sido
registadas, os fragmentos cerâmicos localizam-se apenas, e curiosamente, nesta área precisa
que agora analisamos. Criámos quatro momentos, articulando os planos de registo, os
materiais e tendo em consideração os intervalos dados pelas cotas absolutas.

Neste contexto é necessário começar por apresentar a relação entre fragmentos de


pança decorados e fragmentos de bordos decorados. Sublinha-se a inexistência de bordos
decorados no momento 4.

289
Gráfico 10.2.6. Relação de arestas boleadas/não boleadas no contexto caracterizado por sedimento
cinzento-escuro

A análise do estado das arestas no contexto caracterizado por sedimento cinzento-


escuro permite individualizar, uma vez mais, o momento 4, na medida em que apresenta uma
elevada percentagem de arestas erodidas. As superfícies dos fragmentos cerâmicos
apresentam-se maioritariamente preservadas. Apenas o momento 1 apresenta uma
percentagem mais baixa na contagem das superfícies externas preservadas (69,6%), o que
provavelmente se relacionará com a fragmentação acentuada do conjunto cerâmico que define
este momento, como se pode ler no gráfico seguinte.

290
Gráfico 10.2.7. Relação da dimensão dos fragmentos no contexto caracterizado por sedimento cinzento-
escuro.

Tendo em consideração o tamanho dos fragmentos cerâmicos verifica-se que o


momento 4 apresenta uma grande percentagem de grandes fragmentos assim como o
momento 2, no qual fragmentos de pequena dimensão não foram identificados. O momento 4
apresenta no entanto especificidades que não conseguem ser apreendidas por estes gráficos.
No conjunto cerâmico deste momento verifica-se duas colagens de dois grandes fragmentos
cerâmicos 19 com espessuras (entre 1,3 e 1,7 cm). As arestas estão boleadas, mas de forma
intencional. As arestas foram afeiçoadas e as superfícies mantiveram-se preservadas. O
conjunto é ainda composto por dois fragmentos de grandes dimensões 20 também com arestas

19
Fragmentos cerâmicos: CSTVNT/10/96.24/3/2863 (comp.:16,5cm; larg.:11cm; esp.: 1,3) e
CSTVNT/10/96.24/3/2895 (comp.:10,7cm; larg.:8,6cm; esp.: 1,7).
20
Fragmentos cerâmicos: CSTVNT/08/96.24/3/190 (comp.:14,5cm; larg.:10,8cm; esp.: 1,7) e
CSTVNT/08/96.24/3/158 (comp.:14cm; larg.:9,5cm; esp.: 1,1).

291
boleadas de forma intencional. Este momento, o quarto, como que sela esta estrutura. Grandes
fragmentos cerâmicos são depositados no topo da estrutura 3.

Os objectos líticos apenas foram detectados no momento 3, onde se registou: um


fragmento de dormente, exposto a altas temperaturas; 2 moventes de morfologia sub-
rectangular; um fragmento com vestígios de maceração em quartzo leitoso; um termoclasto
em quartzo; uma peça em granito polido. Também neste momento se detectou um punção de
cobre.

Gráfico 10.2.8. Relação do estado das arestas nos momentos identificados no contexto caracterizado
pela presença de fragmentos de barro de revestimento (contexto 2).

Em relação ao contexto caracterizado pelo elevado número de fragmentos de barro de


revestimento (contexto 2), foram criados três momentos em estreita ligação com os planos de
registo. Durante a escavação deste depósito não foi detectado qualquer diferença ao longo dos
planos de registo. No entanto a análise dos fragmentos cerâmicos permite realçar algumas
nuances nos fragmentos que se distribuem por este contexto. Começamos por referir que o
292
momento 3 caracteriza-se pela grande quantidade de fragmentos cerâmicos em relação com os
restantes momentos, pois foram registados 85 fragmentos no momento 3, 19 no momento 2 e
12 no momento 1. É também no momento 3 que se concentram os materiais líticos registados:
um dormente em granito; um fragmento de lasca em quartzito; uma lasca em quartzo leitoso;
uma raspadeira em quartzo leitoso, com retoque descontínuo abrupto unifacial e vestígios de
maceração; um núcleo em quartzo cinzento, para lamelas, apenas com um levantamento e
talhe unipolar; um núcleo em quartzo cinzento para lamelas, com um levantamento e talhe
unipolar; um termoclasto em quartzito. O momento 1 regista apenas um percutor em quartzito
com sinais de fogo

Atendendo às arestas dos fragmentos recolhidos, estas apresentam-se maioritariamente


não boleadas. Este conjunto cerâmico é também constituído por superfícies maioritariamente
preservadas (os valores percentuais das superfícies externas preservadas situam-se entre
84,2% e 92,9% e os das superfícies internas entre 83,3% e 87,1%)

Gráfico 10.2.9. Relação da dimensão dos fragmentos cerâmicos no contexto definido pela grande
quantidade de fragmentos de barro de revestimento (contexto 2).

293
Em relação ao tamanho dos fragmentos, o momento 2 é, por comparação com os
outros dois, caracterizado por uma percentagem superior de fragmentos de grandes
dimensões. Foi também no momento 2 que o vaso inteiro foi registado. O depósito
caracterizado pela presença de 4038 fragmentos de barro de revestimento, o que equivale a
37,064 kg, foi dividido neste texto em momentos. De facto, os fragmentos cerâmicos
detectados, quando relacionados com os diversos planos de registo efectuados durante o
trabalho de escavação, permitiram a individualização de três momentos. No entanto, a
homogeneidade do depósito é evidente ao longo dos diversos momentos. Os momentos que
criámos são categorias de contextualização que desenhámos ao longo da construção
interpretativa. No entanto, na maioria das ocasiões surgem enquanto instrumentos úteis na
negociação de sentidos, negociação essa que neste caso parece segmentar um depósito em
diversas acções sequenciais. Provavelmente este depósito de barro de revestimento é criado
por uma mesma acção.

Fig. 10.2.11. Pequena estrutura circular no final da escavação de 2010 (contexto 3).

294
A pequena estrutura circular é delineada por quatro lajes de xisto fincadas que
delineiam um espaço de tendência circular. Provavelmente seria revestida a argila; a
escavação do sedimento escuro no exterior da estrutura revelou uma pequena depressão junto
da base das lajes que definem a estrutura, principalmente a norte e leste. Poderá tratar-se de
vala de fundação? Ou estariam outros materiais – como a madeira – associados à periferia?

Gráfico 10.2.10. Frequência de fragmentos de bojo decorados nos quatro momentos identificados na
interpretação da pequena estrutura circular (contexto 3)

O estudo da pequena estrutura circular começa por revelar a pequena percentagem de


fragmentos decorados no momento 2.

Gráfico 10.2.11. Relação do estado das arestas na pequena estrutura circular (contexto 3).

O gráfico 11.2.11 contrasta com os apresentados para a análise do estado das arestas
nos restantes contextos ao apresentar apenas aresta não boleadas.

295
Gráfico 10.2.12. Relação do estado de conservação das superfícies nos quatro momentos
identificados na interpretação da pequena estrutura circular (contexto 3).

No entanto, atendendo à análise do estado de conservação das superfícies, as colunas


do gráfico 11.2.12 não apresentam a simetria daquelas obtidas na leitura do estado físico das
arestas. Apesar de as superfícies se apresentarem preferencialmente preservadas, o momento 1
indica uma maior corrosão, assim como o momento 3.

Gráfico 10.2.13. Relação do tamanho dos fragmentos cerâmicos identificados no interior da pequena
estrutura circular (contexto 3).

296
Atendendo ao tamanho dos fragmentos cerâmicos, todos os momentos criados
parecem apresentar a sua especificidade. O momento 2 da pequena estrutura circular (o
momento que apresenta a fraca ocorrência de fragmentos decorados) encontra-se em relação
com um conjunto de outros materiais: um fragmento de corno de bovídeo; espinhas de Alosa
sp. (sável/savelha) 21; um peso de tear; sementes 22; uma lasca em quartzito, angulosa; um
núcleo em quarto leitoso para extracção de lascas onde são identificáveis quatro
levantamentos.

Este momento 2 encontra-se em conexão com o segundo momento identificado no


contexto caracterizado por sedimento cinzento-escuro. Um fragmento do momento 2 do
interior da pequena estrutura circular cola com um fragmento registado no momento 2 do
sedimento escuro.

Fig. 10.2.12. As duas fotografias representam os quatro momentos identificados no contexto 3 (pequena
estrutura circular) e no contexto 1 (depósito caracterizado por sedimentos de cor cinzento-escuro). Assinala-se
também os fragmentos cerâmicos que pertencem ao mesmo recipiente e que podem ser remontados.

21
O estudo dos restos de peixe está a cargo da arqueóloga Sónia Gabriel, do Laboratório de Arqueozoologia do
IGESPAR.
22
As sementes recolhidas no interior da pequena estrutura ainda se encontram em análise e não foi possível
apresentar os resultados desse estudo neste trabalho.

297
Como já referimos, este momento, criado aquando da interpretação do contexto 1
(depósito caracterizado por um sedimento cinzento-escuro), apresenta uma elevada
percentagem de fragmentos decorados (o que contrasta com a percentagem de fragmentos
decorados no interior da pequena estrutura circular) e de grandes fragmentos cerâmicos.

Fig. 10.2.13. Pormenor do momento 2 da pequena estrutura circular. É possível identificar na fotografia o peso
de tear, o fragmento de haste de bovídeo e fragmentos cerâmicos.

O momento 2 da pequena estrutura circular conduziu-nos à palavra deposição. Em


campo e em gabinete não questionámos este conceito. Parecia evidente que um contexto
definido pela reunião de um conjunto de materiais “especiais” (porque não comuns no
“registo arqueológico” do sítio) contidos numa estrutura de pequeno tamanho se tratava de
uma deposição, ou seja, da colocação intencional de um conjunto de materiais seleccionados e
dispostos de forma organizada. Apenas quando iniciámos a redacção deste texto pareceu-nos
necessário definir e questionar este conceito amplamente utilizado na bibliografia
arqueológica e chamar à problematização o que em outros momentos considerámos
deposição. Foi já referido (capítulo 9.1) que a arquitectura é também uma deposição, ou seja,
298
constrói-se na colocação intencional de materiais previamente escolhidos num determinado
sítio não aleatório. Aqui, a pequena estrutura é uma deposição no interior de uma outra
deposição de outra escala. Anteriormente referimos também que a deposição não poderia
depender de características especiais dos materiais. No entanto, neste ponto sublinhamos a
invulgaridade das coisas e da sua organização. Efectivamente, neste contexto vemos aparecer
pela primeira vez no sítio de Castanheiro do Vento um fragmento de haste de bovídeo e
fragmentos de espinhas de peixe, neste caso sável ou savelha. A colagem de fragmentos
cerâmicos entre o interior e o exterior da estrutura obriga à pergunta: se o momento 2 do
interior da estrutura é interpretado como uma deposição, poderão os materiais e sedimentos
contíguos ser interpretados da mesma maneira? E qual a relação com o depósito de
fragmentos de barro de revestimento no qual se registou um vaso inteiro?

Os materiais do interior da pequena estrutura circular obriga-nos também a pensar os


tempos e ritmos das coisas no sítio e a relação do sítio com o meio que o rodeia. A espécie de
peixe Alosa sp. vive no mar até idade adulta, altura em que entra nos rios para se reproduzir.
O sável, em Portugal e actualmente, vive em água doce entre Março e Maio e a savelha entre
Maio e Junho. A migração desta espécie encontra-se dependente de factores climatéricos, no
entanto, é sempre sazonal. Os restos ictiológicos depositados na pequena estrutura circular
seriam de um peixe, muito provavelmente, pescado por alturas da Primavera. Poderá a
singularidade deste animal, ligada ao carácter sazonal com que aparece nos rios, estar
conectada com a singularidade deste depósito? 23

Segundo Brück (2001), as deposições intencionais de determinados materiais marcam


pontos críticos da vida do sítio e dos seus ocupantes; Pollard (2001) alerta para a dimensão
estética da acção de depositar assim como dos próprios objectos envolvidos e sua
organização. O autor reflecte ainda sobre gestos, movimentos e audiências no momento de
depositar um conjunto de materiais num determinado espaço. Esta linha de abordagem parece
conduzir inevitavelmente ao conceito de ritual, enquanto um conjunto de acções padronizadas
e formalizadas que, ainda que conectadas com a vida de todos os dias das comunidades,
apontam ou transportam os intervenientes para outros tempos e espaços (Thomas, 2004).
Tema pouco consensual na actualidade do debate arqueológico, tem sido profundamente
relevado por J. Thomas como algo importante na interpretação das comunidades pré-
23
No entanto, devemos salientar que é extremamente rara a sobrevivência de espinhas de peixe em contextos
pré-históricos portugueses.

299
históricas. Em contexto português S. O. Jorge (2010) tem protagonizado um importante
debate acerca do conceito, apontando as fragilidades do mesmo e a impossibilidade de
construir discursos acerca das comunidades passadas assentes na dimensão ritual ou
ritualizada das suas vidas, na medida em que o conceito se aplica às comunidade actuais do
mundo ocidental e não às do passado. Optámos por não fazer deste espaço um momento de
discussão deste tema. Não perguntámos ao conjunto de materiais depositados na pequena
estrutura circular se eles integraram uma acção ritual, ou se essa dimensão era equacionada
pelas comunidades que performatizaram a(s) acção(ões) agora em causa, ou se a categoria
actual de ritual é uma catalogação abusiva das acções passadas.

Gostaríamos, no entanto, de sublinhar que o arranjo de materiais estabelece novas


conexões; são colocados lado a lado materiais que provavelmente foram criados e/ou
transformados no espaço que hoje chamamos de Castanheiro do Vento e materiais exteriores
ao sítio. Equacionamos estas materialidades como citações; citações de materiais, como já
referimos, por diversas vezes, durante os textos anteriores; não como citações que retêm o
significado da frase ou do texto onde estavam inseridas nem remetem para o todo do qual a
citação é o fragmento. O conceito de fragmento tal como tem vindo a ser trabalhado neste
projecto não se traduz na parte que possibilita a apreensão do todo onde estaria inserido. A
combinação das lajes – resultado da transformação do substrato em unidades de construção –,
de fragmentos cerâmicos, de pesos de tear e de animais – do bovídeo e do peixe – relaciona
diferentes espaços e diferentes tempos – tempos curtos, sazonais, ritmados que o peixe
simboliza e tempos imemoriais que a pedra carrega consigo.

O estudo da fragmentação, por não perguntar pela intenção ou vontade de determinada


acção, concentra-se no pormenor dos materiais e nas histórias que a atenção ao detalhe pode
potenciar. Os fragmentos encontram-se na sua maioria com as arestas frescas, o que implica
que o tempo entre o momento de fractura e o momento de deposição não possa ter sido longo.
Os fragmentos caracterizam-se sobretudo pela ausência de decoração. Um fragmento do
interior da estrutura cola com um outro identificado no exterior. O peso de tear não se
encontra fragmentado. A haste de bovídeo é apenas um fragmento. Foram recolhidas
sementes. Este arranjo de coisas, de fragmentos de coisas, pode não invocar o todo a que
pertenceram, ou seja, o vaso, o tear, o bovídeo, o sável, as colheitas. A sua reorganização
enquanto fragmentos implica uma reorganização de sentidos.

300
Estudo da fragmentação por níveis

Afastando-nos das três estruturas e olhando novamente para a camada 3 e para os


níveis identificados, a análise da fragmentação revela uma certa homogeneidade ao longo dos
cinco contextos identificados, com excepção do nível 4. Como já foi referido, este nível foi
identificado apenas numa área reduzida e provavelmente está conectado com acções prévias
ao arranjo das lajes de xisto de forma circular. Em relação ao tamanho dos fragmentos
nenhum dos níveis se destaca, revelando todos percentagens semelhantes.

Gráfico 10.2.14. Relação de arestas boleadas/não boleadas nos diferentes níveis/camada identificados na GEC1

Gráfico 10.2.15 Relação do tamanho dos fragmentos cerâmicos nos diversos níveis/camada da GEC1

A escavação arqueológica foi efectuada por níveis após quadriculagem da área, sendo
cada quadrícula de 2x2 m entendida como unidade de registo do material identificado. Neste
301
sentido, tentaremos desdobrar os resultados obtidos para cada nível por cada uma destas
unidades. Começamos por referir o número total de fragmentos por quadrícula.

Camada Nível Nível Nível Nível


Quadricula
3 1 3 2 4

98.26 17
97.28 16
97.27 164
97.26 200 101 60
97.25 74 37
96.28 38
96.27 6
96.26 82 124
96.25 69 7 116
96.24 15
95.28 38 7
95.27 42 8
95.26 76
95.25 71 292 13 4
95.24 22 73 11
94.27 24 2
94.26 77 4 17 8
94.25 47
94.24 13 22 11
93.25 1

Quadro 10.2.1. Número de fragmentos cerâmicos por quadrícula e por nível/camada (números absolutos)

A concentração de fragmentos cerâmicos varia bastante de quadrícula para quadrícula


num mesmo nível, o que introduz dinâmica em cada nível e nos diferentes níveis.

302
Gráfico 10.2.6. percentagem de arestas boleadas por quadrícula na camada 3

A análise do estado das arestas dos fragmentos da camada 3 por quadrícula apresenta
diferenças significativas. A percentagem de arestas boleadas para a camada 3 é de 20,48%; no
entanto, nas quadrículas 97,26 e 94.26 a percentagem de arestas boleadas é de apenas 12,5% e
de 11,69% respectivamente, o que contrasta com os números obtidos para as quadrículas
97.28 e 96.27 – 43,75% e de 33,33% respectivamente. Poderíamos referir que as duas últimas
quadrículas referidas se situam no extremo leste da estrutura, profundamente perturbado o que
poderia originar um conjunto mais fragmentado e erodido, enquanto que as quadrículas que
apresentam uma baixa percentagem de arestas boleadas se pode articular com os limites norte
e sul da estrutura; poderão estes fragmentos estar, de alguma, forma conectados com a
construção desta arquitectura.

303
Gráfico 10.2.17 Relação entre fragmentos cerâmicos pequenos (a azul), médios (a vermelho) e grandes (a verde)
por quadrícula na camada 3 por comparação com as médias obtidas para a dimensão dos fragmentos cerâmicos
na camada.

Em relação ao tamanho dos fragmentos, registou-se uma percentagem de 23% de


fragmentos de pequena dimensão (identificados com a letra A). Contudo, um olhar atento aos
resultados obtidos por quadrícula evidencia um valor elevado de pequenos fragmentos
cerâmicos nas quadrículas 94.27 e 94.25. Seguindo a linha de raciocínio escolhida na análise
do estado das arestas na camada 3, poderíamos também referir que a quadrícula 94.27 se situa
no extremo leste da estrutura e neste sentido o seu elevado nível de fragmentação seria
justificado pela perturbação identificada nesta área. No entanto, a quadrícula 94.25
corresponde à quadrícula onde foi identificada a Estrutura 1. Atendendo à análise da
frequência de fragmentos cerâmicos de grandes dimensões, verifica-se que estes se situam
preferencialmente no limite norte da estrutura (na quadricula 97.27 onde se verificou 12,8%
de fragmentos de grandes dimensões e na quadrícula 97.27 com 7,5%); realçamos também
que nas quadrículas situadas no extremo leste não foi detectado nenhum fragmento de grandes
dimensões. Sublinhamos que provavelmente poderão estar conectados com actividades de

304
elaboração do espaço. Também a quadrícula 95.25 (8,45%) evidencia uma presença elevada
de fragmentos tipo C. Esta quadrícula localiza-se genericamente na área central da estrutura.
Nenhuma pequena estrutura foi registada nesta unidade.

Este exercício foi efectuado para todos os níveis registados. As diferenças por
quadrícula são por vezes bastante expressivas (remetemos para Anexo). No entanto, não
procuramos explicações para as diferenças de valores. Também não encararamos a
interpretação desta amálgama de fragmentos como um palimpsesto. Gostaríamos antes de
acentuar a multiplicidade de acções que são promovidas ao nível do discurso pelos milhares
de fragmentos cerâmicos ao longo dos contextos criados em escavação e em gabinete. Este
exercício pretende também referir que a ausência de contextos com limites definidos e a
grande extensão de alguns níveis pode silenciar a diversidade neles presente. Ou seja, certos
padrões podem ser questionados como representativos de uma unidade, não permitindo o
realce das particularidades do conjunto. Neste cenário poderíamos escrever acerca de
regularidades ilusórias. Podemos enunciar a existência de contextos com limites esfumados
ou a utilização constante de números percentuais e médias como variáveis que denunciam
quer o perigo da análise, quer a necessidade da crítica constante. No entanto, parece um
problema bem mais abrangente em Arqueologia. Para já deixamos em suspenso. No entanto,
o estudo por contextos em cada estrutura e por quadrículas em cada nível do “recinto” abre a
possibilidade de se introduzir ruído nas imagens estáticas dos planos de registo.

A Grande Estrutura Circular é pontuada por buracos de poste, ou seja, por conjuntos
de pedras fincadas. Durante a escavação algumas destas unidades foram desmontadas e os
materiais em conexão com elas foram recolhidos. Apesar do número de fragmentos
cerâmicos 24 ser muito reduzido procedemos à análise das “coisas” que em Julho de 2010
estavam em relação com três unidades interpretadas como buracos de poste.

24
O Buraco de Poste 1 conta com 2 fragmentos cerâmicos; durante o desmonte do BP 4 foram recolhidos 7
fragmentos e, no BP 6, 21 fragmentos cerâmicos.

305
Gráfico 10.2.18 relação entre o estado (preservado/ corroído) das superfícies externas e internas nos três buracos
de poste em estudo

As superfícies encontram-se genericamente preservadas, apenas o BP4 apresenta uma


elevada percentagem de superfícies externas corroídas.

Gráfico 10.2.9.Relação entre arestas boleadas (1) e não boleadas (2) no BP 6, BP 4 e BP1

As arestas encontram-se predominantemente não boleadas. No entanto, o buraco de


poste 6 e 4 apresentam 33,33% e 28,57% respectivamente de arestas boleadas.

306
Gráfico 10.2.10. Percentagem de fragmentos cerâmicos de pequena (A), média (B) e grande (C)
dimensão ao longo dos buracos de poste em estudo.

Em relação ao tamanho dos fragmentos, assinala-se a presença efectiva de fragmentos


de pequena dimensão registados com a letra A no gráfico e a fraca percentagem de grandes
fragmentos. Chamamos a atenção para o BP6 onde efectivamente predominam os fragmentos
pequenos (66,67% de ocorrências).

Fig. 10.2.14. Buraco de poste identificado na GEC1.

A análise da utensilagem lítica registou um fragmento de dormente em granito e um


bloco de granito talhado conectado com o BP4; um fragmento de dormente em granito
talhado em relação com o BP1. Também foram recolhidas outras peças líticas em outros três
buracos de poste sem que se tenha recolhido qualquer fragmento cerâmico em relação com os
307
mesmos. Assim no BP10 foi identificado uma raspadeira em quartzo leitoso com retoque
contínuo abrupto bifacial, com vestígios de maceração unifaciais; no BP8 um fragmento de
quartzo com vestígios de maceração; três termoclastos em quartzo e, no BP7, 3 termoclastos
em quartzo e um em granito

Entrelaçando fragmentos

A análise dos fragmentos enquanto fragmentos introduz movimento na narrativa. O


tamanho dos mesmos, a sua concentração, o estado das suas arestas – boleadas ou não
boleadas –, coloca em movimento um outro discurso, apesar de ser sobretudo descritivo.
Trata-se de uma tentativa de desconstruir imagens estáticas do passado que representam o
tempo de forma circular, baseado em ciclos do sol, da lua, das colheitas, das estações…
Contudo, este tempo circular atribuído às comunidades pré-históricas é representado de forma
linear e sequencial até ao presente. Do passado, para o presente, em direcção ao futuro. Neste
sentido, a Arqueologia procura falar acerca do tempo circular, do tempo cíclico das
comunidades agro-pastoris e metalúrgicas, através de estruturas de tempo linear e sequencial,
através de uma barra cronológica que tem o presente como limite (provisório) da estrada do
progresso humano. Contudo, em Castanheiro do Vento não há sequências. Os níveis que
apresentamos não se sobrepõem nem têm entre si relações estratigráficas simples. Dois
depósitos (camada 3 e nível 1) parecem estar conectados com a construção da linha basal,
apesar de o nível 1 parecer indicar uma grande actividade no interior do “recinto”. Não
existem limites, as fronteiras não estão materializadas, não existem cortes. As diferenças entre
os depósitos são normalmente apontadas por nuances, invisíveis em corte; a leitura de um
corte estratigráfico pode perder a sua linearidade durante a escavação da estrutura.

Poderíamos sugerir que as características dos fragmentos cerâmicos detectados no


momento 2 da estrutura 1, de pequena dimensão, poderiam estar associados à construção de
um nível tipo lajeado. Os fragmentos de pequena dimensão seriam utilizados durante o
processo construtivo. As características da estrutura 2, localizada na área central da GEC1,
ladeada principalmente a oeste por buracos de poste, e as características dos fragmentos
cerâmicos (a sua localização e frequência alta de grandes fragmentos cerâmicos) poderiam
indicar uma estrutura relacionada com a construção da cobertura da GEC1. No entanto, as
308
características dos fragmentos cerâmicos distanciam-se daquelas obtidas para os buracos de
poste (de menor dimensão e normalmente com as arestas boleadas). A estrutura 2 parece
assim ser caracterizada por fragmentos de média e grande dimensão situados aparentemente
nas extremidades da depressão. Estes fragmentos cerâmicos não foram incorporados na
estrutura imediatamente após a fractura do vaso. O estado das arestas mostra que entre 36,84 e
50% dos fragmentos sofreram acções enquanto fragmentos (poderiam ter sido depositados
num outro local, por exemplo.). A Estrutura 3 entrelaça-se em complexas teias de
entendimento. As unidades identificadas e os materiais são diversos, múltiplos e apresentam
características diversas. A explicação imediata, linear, proporia que esta “realidade
arqueológica” seria resultado do colapso de uma estrutura circular construída com materiais
perecíveis e barro de revestimento (tipo cabana). Os depósitos cinzento-escuros preenchidos
com materiais que sofreram a acção de altas temperaturas (fragmentos cerâmicos, fragmentos
osteológicos e líticos) poderiam indicar um incêndio (intencional ou não) como a causa desse
colapso. Este derrube da estrutura teria permitido a conservação de materiais como um vaso
inteiro, um punção e estaria por trás da pouca fragmentação dos artefactos. No entanto ficaria
por explicar uma miríade de situações: qual a articulação da eventual estrutura circular com a
pequena estrutura delineada por lajes de xisto onde um fragmento de haste de bovídeo e
espinhas de peixe foram detectadas? Onde colocar na história os grandes fragmentos
cerâmicos boleados (intencionalmente) do momento 4 do depósito cinzento-escuro? Que
acção teria originado o facto do vaso inteiro estar “embalado” em fragmentos de barro de
revestimento? Ou poderemos explicar a chamada Estrutura 3 como o resultado de acções de
deposição?

Continuando com as palavras de B. Tschumi:

“Fragments of architecture (bits of walls, of rooms, of streets, of ideas) are all one actually
sees. These fragments are like beginnings without ends. (…) They are relays rather than signs.
They are traces. They are in-between. (…) How such fragments are organized matters little:
volume, height, surface, degree of enclosure, or whatever. These fragments are like sentences
between quotation marks. Yet they are not quotations. They simply melt into the work’.
(1996: 95).

Os fragmentos fundem-se na estrutura e a estrutura no sítio. A análise da fragmentação


deu movimento à narrativa e introduziu uma descrição dinâmica. Diversas acções estão

309
entrelaçadas na estrutura. Mas não se tratam de acções sequenciais. É-nos impossível falar de
construção, uso ou ocupação e abandono (intencional ou não) desta estrutura. É uma ruína, ou
algo que reconhecemos como uma ruína, que nunca revela o passado acontecido mas algo que
ainda permanece. A análise da fragmentação introduz dinamismo ao carácter estático dos
registos dos níveis criados durante o processo de escavação. “Traz para a frente” o choque
entre volumes, mas não permite a criação de uma hierarquia: nenhum dos fragmentos é
seleccionado por poder conter mais informação que os outros, o vaso inteiro não é mais
importante no discurso acerca da estrutura do que os fragmentos. Numa teia de relações
fragmentos cerâmicos, pesos de tear e punção em cobre interagem; em cada associação novas
teias são criadas, novos contextos delineados.

A Arquitectura é relação. E o movimento constante de cada peça reestrutura o


contexto anterior criando novas relações, que se dão por acumulação, por adição, por
perturbação, destruição, superimposição, por contaminação… uma miríade de relações é
promovida. A arquitectura não é acerca da função. Os materiais erguidos não encontram
explicação linear. Como alerta Tshumi, a prática da arquitectura comummente aceite, ou seja
enquanto ordenação de objectos que reflectem da ordem do mundo, a perfeição dos objectos,
aliada à ideia de progresso, é inadequada para os dias de hoje (id., ibid.: 176). E para o que
resta também. Esta abordagem, perfeitamente datável mas que informa as explicações acerca
de arquitecturas pré-históricas, repousa na visão de um futuro construído pela continuidade e
progresso

O rizoma de acções que a GEC1 sugere traduz-se em fragmentos deslocados. Não


deslocados do seu sítio original, mas deslocados porque o tempo está deslocado. Não há
continuidade entre o que resta hoje e o que foi ontem. O processo de ruína não pode ser
traçado e os materiais não podem mais falar acerca de quem os tocou.

“The fragmentation of our contemporary “mad” condition inevitably suggests new and
unforeseen regroupings of its fragments. No longer linked in a coherent whole, independent
from their past, these autonomous fragments can be recombined through a series of
permutations whose rules have nothing to do with those of classicism or modernism.” (id.,
ibid.: 180).

Ou como E. Vilela (2010: 472) realçou no texto de W. Benjamin “A Tarefa do


Tradutor”, o fragmento fez um dia parte do vaso mas não pode reconstituir o todo. Não é
310
possível aceder ao vaso pelo fragmento. A nossa ligação não é a ligação ao vaso mas ao
fragmento. Ao fragmento do fragmento. Os fragmentos são assim reagrupados em texto, não
para juntos explicarem o vaso, ou para explicarem a estrutura. Foram agrupados novamente
em imprecisas relações de materiais e imprecisas arquitecturas. O arquitecto é o inventor de
relações (Tschumi, 1996: 181), e é na multiplicidade de relações que aqui apresentámos que
uma arquitectura em transformação foi construída.

No primeiro ponto desta terceira parte deixámos em suspenso a interpretação de


Castanheiro do Vento como um local onde um ou vários grupos se sentiria(m) em casa. Esta
abordagem não pressupõe o carácter doméstico e familiar que define a casa hoje em dia, a
imagem estereotipada criada no mundo burguês ocidental, de espaço privado, intra-muros.
Sentir-se em casa é habitar/construir esse espaço, senti-lo no jogo de forças e energias que se
alteram a cada passo. Concluímos com palavras emprestadas:

“…o espaço, ou os espaços, que dão nome e identidade a uma casa, ou casas, além de tão
familiares como surpreendentes, são reflexo de uma multiplicidade de relações e de um longo
e denso processo de permanente recriação. Ao imergirmos neste diálogo, confrontamos a
noção de casa com a diversidade das experiências acumuladas do habitar.” (Pacheco, P.,
2010: 88, ênfase nosso).

311
312
10.3. Aporias arquitectónicas e impasses
interpretativos

“Only a thought that does not conceal its own unsaid – but constantly
takes it up and elaborates it – may eventually lay claim to originality”

(Agamben, 2009: 8)

“The aporia may be resolved only if we understand that a paradigm


implies the total abandonment of the particular-general couple as the model
of logical inference. The rule (if it is still possible to speak of rules
here) is not a generality preexisting the singular cases and applicable to
them, nor is it something resulting from the exhaustive enumeration of
specific case that constitutes a rule, which as such cannot be applied or
stated.” (Agamben, 2009:26)

O estudo dos bastiões, das estruturas circulares e da Grande Estrutura Circular 1 de


Castanheiro do Vento não pretende avançar com explicações acerca do sítio. Foram
convocados como janelas de entrada no sítio e como janelas de entrada em questões como,
entre outras, o movimento, a percepção da luz, a imersão, os caminhos, as audiências, o
encadeado de práticas, a não correspondência entre semelhança formal e semelhança dos
gestos, os materiais e suas histórias, a construção propriamente dita; ou seja, poderíamos
entender aquelas estruturas como particularidades que, longe de representarem um conjunto
de universais passíveis de serem aplicados a vários contextos semelhantes, permitem estudar a
arquitectura do sítio de forma atenta ao pormenor e à singularidade.

No entanto, existem particularidades que nos colocam de forma mais evidente perante
a dúvida e a dificuldade de interpretação. Normalmente estes casos são remetidos à
invisibilidade no discurso explicativo geral para determinado sítio arqueológico. As dúvidas
ou ficam guardadas nas gavetas dos arqueólogos sob forma de fotografias, desenhos ou notas
que não serão mais descritas, ou entram em espartilhos explicativos que suprimem a sua
singularidade e irredutível estranheza. Aqui optámos por trazer apenas um espaço, por um
lado para descrevê-lo enquanto uma aporia e paradoxo, e por outro para destabilizar também o

313
texto que até aqui temos vindo a tecer. Esta área introduz ruído, sublinha a dificuldade, o
impasse. Assim, passamos à descrição, ainda que muito sucintamente:

Fig. 10.3.1. Representação da área em estudo. Tintagem de L. S. Pereira, sobre desenhos de B. Carvalho.

Começamos por uma área localizada a nordeste do sítio de Castanheiro e que de


alguma forma se integra no murete 2, escavado em 2005 e 2006. Aqui, a definição da linha
que desenha o murete 2 é feita como que por troços de muretes e dois alinhamentos, um de
tendência recta e outro curvilínea. Os troços de murete foram construídos à semelhança do
M2; ou seja, recorreu-se a lajes de xisto aparelhadas com dupla face; e os dois alinhamentos
dir-se-ia que se assemelham às linhas que delineiam as estruturas circulares, ou seja, na sua
construção foram utilizadas lajes fincadas na oblíqua. Este espaço é ainda caracterizado por
registar um sedimento cinzento-escuro, pulverulento, sem que os seus limites sejam
perfeitamente perceptíveis.

314
Fig. 10.3.2. Desenho de campo e fotografia da área entrecortada por alinhamentos pétreos e sedimento cinzento-
escuro.

Esta área de muretes e alinhamentos entrecortados – como que de pedaços, de


fragmentos de muros se tratassem – pode estar conectada com a incompletude do Bastião O, a
oeste, e o interrompimento do Murete 1 e a área definida como Átrio, a leste. A área
designada por átrio, foi intervencionado em 2003 e, por não apresentar nenhuma estrutura
pétrea ou uma organização do espaço evidente, surgia como um local aberto de acesso ao
sítio. É de referir que o nome átrio ficou apenas porque já se encontrava instituído no nosso
vocabulário. Neste átrio registaram-se manchas de sedimento de cor cinzento-escura, que
poderiam ser traços de estruturas de combustão tipo lareiras, e abundante material cerâmico
que à primeira vista se apresentava em bom estado de conservação. A leste da área dos
alinhamentos entrecortados foi identificado o Bastião O, também fragmentado, sendo apenas
parte da estrutura passível de reconhecimento. Estas interrupções, perturbações, destruições
não parecem resultar das práticas de agricultura no local ou dos efeitos do passar do tempo. A

315
área de muretes compartimentados aliada a um sedimento cinzento-escuro também
interrompe qualquer explicação.

Fig. 10.3.3: Fotografia da área apelidada de “átrio”. Fotografia de L. S. Pereira (2001)

O arranjo de coisas torna impossível o reconhecimento de elementos organizados. A


composição do discurso estranha a ausência de sequências construtivas “tradicionais”. A
estabilidade e coerência da composição detectada até aqui são questionadas por estas áreas
preenchidas por unidades e composições não familiares no registo. São notas discordantes.
Entram em contradição com a estabilidade que, ainda que insegura e desfocada, transmite
uma certa homogeneidade construtiva, ritmada, que privilegia a adição. Aqui irrompe a
sobreposição, a confusão, a descontinuidade. O espaço é heterogéneo. Não há um antes e um
depois, uma forma e uma função, mas sobreposição.

Tschumi esclarece acerca do Parque La Villette (Paris):

“[T]he Park rejected context, encouraging intertextuality and the dispersion of meaning. It
subverted context: La Villette is anticontextual. It has no relation to its surroundings. Its plan
subverts the very notion of borders on which “context” depends.” (Tschumi, 1996: 200)

As áreas de Castanheiro do Vento apresentadas interrompem o discurso. Aparecem


descontextualizadas. Sem limites. A impossibilidade de em campo reconhecer as fronteiras e
316
as linhas que organizam, em texto, inspirados por Tschumi e no seu trabalho em La Villette,
no qual J. Derrida participou, traduz-se em pontos Folies no discurso. Pontos onde o
significado é sempre diferido, desmantelado e irresolúvel. A tentativa de construir limites no
ponto anterior aquando da análise da Grande Estrutura Circular 1 e a necessidade de criar
contextos, ainda que com os seus limites desfocados, não tem continuidade na análise dos
espaços que apresentamos. Estas linhas podem ser contestadas, argumentando-se que a
escavação destas áreas ainda não está completa, que a análise do conjunto artefactual ainda
está por fazer, que análises outras a sedimentos e amostras podem ser feitas. No entanto, a
organização dos espaços que descrevemos revelam por agora estranheza. As tradições de
práticas que apontamos no ponto 9.2, são interrompidas. O modo de aparelhar a pedra não é
distinto, mas a forma com o espaço foi (re)organizado é disruptivo.

“The city and its architecture lose their symbols – no more monuments, no more axes,
no more anthropomorphic symmetries, but instead fragmentation, parcellization, atomization,
as well as the random superimposition of images that bear no relationship to one another,
except through their collision. (…) One must remember that, initially, the sciences were
about substance, about foundation: geology, physiology, physics, and gravity. And
architecture was very much part of that concern, with its focus on solidity, firmness,
structure, and hierarchy.” (Tschumi, 1999: 218).

Seguindo as palavras de Tschumi, perguntamos: ficará a Arqueologia presa ao estudo


das fundações? Às leis da estratigrafia? À hierarquização de dados e à criação de tipologias?
Ficará agarrada às velhas estruturas (dos sítios e de pensamento)? Deixemo-nos contaminar
pelas novas abordagens ao nosso mundo. Não como um novo enquadramento de pensamento
mas como um outro olhar, um outro sentir, uma outra escrita acerca do que fazemos, do que
registamos, acerca da reflexão sobre o passado que ainda é nas ruínas que escavamos. Com
isto não defendemos a completa associação livre entre coisas e imagens. A ausência da ordem
estabelicida, das linhas normativas estruturantes, poderá fazer emergir outras abordagens,
construir espaços para a criação de outros discursos; discursos não carentes de sequência
narrativa, da espessura da história, da explicação. A associação entre forma, função e
significado é uma barreira, uma parede, uma muralha que enforma e condiciona as narrativas
arqueológicas. A sua manutenção como perímetro necessário às explicações e a
interdependência das três variáveis procurada em muitos textos é inadequada. Movemo-nos

317
no discurso fragmentado e entre fragmentos, fragmentos cerâmicos, de muretes, e de
pensamento.

“Ex-centric, dis-integrated, dis-located, dis-juncted, deconstructed, dismantled, disassociated,


discontinuous, deregulated…de-, dis-, ex-. These are the prefixes of today. Not post-, neo-, or
pre-.” (Tschumi, 1996: 225).

318
IV

Arquitectando espaços

em Castanheiro do Vento

319
320
© JoanaAlvesFerreira 2009

“- Também pensei num modelo de cidade de que deduzo todas as outras – respondeu Marco. – É uma
cidade feita só de excepções, impedimentos, contradições, incongruências, contrassensos. Se uma
cidade assim é o que há de mais improvável, diminuindo o número dos elementos anormais
aumentando as probabilidades de existir realmente a cidade. Portanto basta que eu subtraia
excepções ao meu modelo, e proceda com que ordem proceder chegarei a encontrar-me perante uma
das cidades que existem, embora sempre como excepção. Mas não posso fazer avançar a minha
operação para além de um certo limite: obteria cidades demasiado verosímeis para serem
verdadeiras.” (Calvino, 2010: 71)

321
322
Em Maurília, o viajante é convidado a visitar a cidade e ao mesmo tempo a observar
certos velhos postais ilustrados que a representam como era dantes: a mesma idêntica praça
com uma galinha no lugar da estação dos autocarros, o coreto da música no lugar do
viaduto, duas meninas de sombrinha branca no lugar da fábrica de explosivos. Para não
desiludir os habitantes o viajante tem de gabar a cidade nos postais e preferi-la à presente,
com o cuidado porém de conter o seu desgosto pelas mudanças dentro das regras bem
precisas: reconhecendo que a magnificência e prosperidade de Maurília transformada
metrópole, se comparadas com a velha Maurília provinciana, não compensam uma certa
graça perdida, a qual contudo só pode ser gozada agora nos velhos postais, enquanto
outrora, com a Maurília provinciana debaixo dos olhos, de gracioso não se via mesmo nada,
e igualmente não se veria hoje se Maurília houvesse permanecido tal e qual, e que no entanto
a metrópole tem mais esta atracção, que através do que se tornou se pode representar com
nostalgia no que era.

E nem pensem em dizer-lhes que por vezes se sucedem cidades diferentes sobre o
mesmo chão e sob o mesmo nome, nascem e morrem sem se terem conhecido,
incomunicáveis entre si. Às vezes até os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o
sotaque das vozes, e até mesmo os delineamentos dos rostos; mas os deuses que habitam
debaixo dos nomes e sobre os locais partiram sem dizer nada a ninguém e no seu lugar
aninharam-se deuses estranhos. É inútil interrogarmo-nos se estes são melhores ou piores
que os antigos, dado que não existe entre eles nenhuma relação, tal como os velhos postais
não representam Maurília como era, mas sim outra cidade que por acaso se chamava
Maurília como esta. (Calvino, 2010, 33-34).

323
Os habitantes de Maurília acreditavam que os velhos postais representavam o passado
da cidade. Ilustravam a velha Maurília antes da estação dos autocarros, do viaduto, da fábrica
de explosivos. Desenhavam o passado nostálgico que outrora a cidade foi e que outrora os
seus habitantes foram. Os habitantes de Maurília metrópole acreditavam que a sua cidade
“através do que se tornou se pode representar com nostalgia no que era”. Como pode a
Arqueologia fugir da tentação de, por intermédio de um processo dedutivo, a partir do que é
hoje representar aquilo que foi? Como poderemos escapar à lógica que nos prende à ordem do
progresso que subentende a passagem do simples para o complexo, da aldeia para a cidade, do
coreto de música para o viaduto? Marco Polo conta ao sultão que a velha Maurília não tem
qualquer relação com a nova Maurília. A relação que os habitantes estabelecem pelos postais
ilustrados não pode ser lida enquanto relação linear entre o que foi e o que é, entre passado e
presente. É uma relação construída pelos habitantes entre duas imagens de duas cidades. Os
postais e as imagens da Maurília metrópole não são duas representações da mesma cidade. “E
nem pensem em dizer-lhes que por vezes se sucedem cidades diferentes sobre o mesmo chão
e sob o mesmo nome, nascem e morrem sem se terem conhecido, incomunicáveis entre si.”.
Como escrever acerca do incomunicável?

No final não pretendemos ligar os pontos; tal é impossível. Este último ponto do
trabalho pretende reflectir acerca de palavras, conceitos, sentimentos que povoam os textos
precedentes. Mas no final não pode existir explicação – a explicação para o sítio de
Castanheiro do Vento. No final, discutimos pontos de relação que nos permitam pensar
Castanheiro do Vento, a nossa presença no sítio, a escrita de linhas acerca de comunidades
que já não existem e que não se plasmam nos materiais que hoje devolvemos à luz. Porque
estes materiais interagiram e interagem com uma panóplia de pessoas e coisas e nesse sentido
não podem revelar as características de uma comunidade ideal que os teria “construído”,
“usado” e “descartado”. Mas podem promover um conjunto de relações e de movimentos que
são também das comunidades várias que se “sentiram em casa” em Castanheiro do Vento. As
fotografias e desenhos de Castanheiro não podem representar o Castanheiro do Vento que foi.
“É inútil interrogarmo-nos se estes são melhores ou piores que os antigos, dado que não existe
entre eles nenhuma relação, tal como os velhos postais não representam Maurília como era,
mas sim outra cidade que por acaso se chamava Maurília como esta.” O nome de Maurília
permaneceu. Castanheiro do Vento é hoje o nome do espaço. O nome que despe este sítio da
neutralidade do espaço não nomeado.

324
O estudo de Castanheiro do Vento baseou-se na interpretação de uma arquitectura.
Neste sentido, retomamos o conceito “arquitectura”, primeiro recuperando a definição da
palavra para depois questionar as implicações e a rede de relações que emergem do estudo de
“arquitecturas calcolíticas”.

“Arquitectura é a “arte” de transformar o espaço numa rede de lugares e de trajectos


significativos para as comunidades que os habitam ou neles circulam, através de
materializações (por acrescentamento e/ou ablação) mais ou menos intensas.” (Jorge, V. O.,
2006: 106).

“As arquitecturas não espelham a “natureza” das sociedades, nem “falam”, por si só, sobre
o que no seu interior ou em redor foi ocorrendo. E “o-que-foi-ocorrendo” no interior e à
volta das arquitecturas não tem correspondência directa na forma dos espaços e nas
materialidades que deram vida aos cenários da acção.” (Jorge, S. O., 2007: 12).

“What if we are to understand material culture as architecture? What if the production of


material culture was a part of the production of architecture? Why should material culture
exclusively be explained in terms of objects that were placed in, below or around a larger
built object?” (McFadyen, 2006: 94).

Architecture is gesture made with buildings. (Ballantyne, 2000: 20).

As primeiras duas citações, de V.O. Jorge e de S.O. Jorge foram já transcritas no ponto
4. Introduzimos depois um conjunto de perguntas elaboradas por uma autora que nos tem
acompanhado ao longo deste trabalho – L. McFadyen – e por último chamamos ao texto uma
forma de dizer arquitectura pela mão do arquitecto A. Ballantyne. O que pretendemos realçar
com este conjunto de citações? Pretendemos sobretudo sublinhar a arquitectura como “a arte
de transformar o espaço numa rede de lugares e trajectos significativos para as comunidades
que os habitam ou neles circulam”. A arquitectura não se materializa apenas em paredes e
muros. É necessário equacionar uma panóplia de materiais que interagem na construção de
espaços, seja ao nível da feitura de um muro, seja na estruturação de movimentos. A
arquitectura não se restringe apenas ao desenho, à concepção de um edifício assim como não
espelha significados. A arquitectura não encerra em si o seu significado. E na linha de S. O.
Jorge, as arquitecturas pré-históricas não dão a conhecer o que se passou em determinado
local. A última citação resume, ainda que de forma muito vaga, o que entendemos por

325
arquitectura. A arquitectura é gesto feito com edifícios. A arquitectura é assim gesto,
experiência, movimento, habitação.

“Quem habitou aqui, quem fez deste espaço a sua casa?” (Jorge, V. O., 2003: 14).
Como arqueólogos, as perguntas “quem habitou aqui?” ou “quem fez deste espaço sua casa?”
são permanentes. E como fez deste espaço sua casa? Quando V. O. Jorge lança esta questão
em 2003, escreve logo a seguir: “E, nesses momentos, nos meus pés concentra-se todo o peso
de chumbo do escafandro de quem mergulha fundo, ou do fato de quem se eleva para o
espaço: e, ao mesmo tempo, a característica imponderabilidade desses momentos.” A
ausência de gravidade, a ausência de caminho certo, a ausência do peso da crença de que é
possível reconstituir ou explicar o passado é a imponderabilidade da questão, do arqueólogo,
do texto. A pergunta colocada por V. O. Jorge pode ser definida como a questão essencial em
Arqueologia. Mas o verbo “habitar” não tem definições claras e as implicações do habitar
revelam-se pouco consensuais. Neste texto, Jorge referia-se claramente ao habitar tal como
definido por T. Ingold e que já tivemos oportunidade de analisar. Habitamos e construímos
num mundo que não é inerte. O mundo que habitamos não é matéria neutra que o ser humano
transforma. No entanto, os estudos em Arqueologia têm sido vincados pela dobra que
distingue o mundo natural e o mundo humano, o segundo construído no e com o primeiro,
modificando-o, alterando-o. Segundo esta perspectiva, a natureza é o palco passivo onde o
Homem arquitecta o seu espaço. Esta forma de interpretar a acção do ser humano no mundo
conduziu ao estudo da arquitectura como origem da capacidade humana de construir espaços
previamente planeados, o que distinguiria o Homem do Animal. O grau de complexidade das
construções humanas encontraria relação no grau de sedentarismo das comunidades e no
progresso tecnológico que o Homem teria alcançado em proveito do bem-estar.

A oposição entre estas duas abordagens, que Ingold (2000) apelidou de “building
perspective” (que pressupõe que o ser humano constrói num mundo inerte e o dota de sentido
pela construção, o que permite que nele se habite) e de “dwelling perspective” (que, ao
contrário pressupõe que o ser humano constrói porque habita no mundo), podem de certa
forma representar como a Arquitectura tem sido estudada em Arqueologia. Os estudos acerca
das unidades construídas registadas em sítios arqueológicos datadas da Pré-História Recente
escrevem-se geralmente segundo a “building perspective”. O edifício é construído para que a
“habitação” possa ocorrer no seu “interior”. Assenta no paradigma da evolução arquitectónica
e nesse sentido pressupõe a existência da “cabana primitiva”. Assim, enquanto a “building
326
perspective” persegue a primeira construção, o momento em que o homem humaniza a
natureza e constrói os seus espaços, a “dwelling perspective” assenta na convicção de que
“the search for the first hut – for the beginnings of architecture, history and true humanity –
becomes a quest after an illusion.” (Ingold, 2000: 187).

Fig. 11.1: Essai sur l’Architecture, Mar-Antoine Laugier

Nesta imagem 1 vemos uma cabana construída com troncos de árvore ainda em
crescimento e com uma cobertura de ramos, utilizando as próprias copas das árvores. É o
limiar entre Natureza e Cultura. As árvores ainda com as suas raízes no solo são utilizadas,

1
Esta imagem, e a reflexão acerca da mesma, foram sugeridas pela apresentação de L. McFadyen intitulada
“Building traditions in question” proferida no congresso Theoretical Archaeology Group, Bristol, 2010.
327
transformadas em abrigo, pela acção humana, pela acção construtiva. À direita vemos a musa
que repousa nas ruínas de construções clássicas e segura na sua mão esquerda um instrumento
de medida. A sua mão direita aponta para a cabana. Para a cabana primitiva. Mas são as
ruínas clássicas que sublinham na imagem a capacidade humana de planear, de medir, de
construir edifícios proporcionais; são elas que representam a forma moderna de construir. A
cabana, conectada com a arquitectura primitiva, vernacular, é substituída pela arquitectura
clássica. E é ainda sobre as medidas da arquitectura clássica que pensamos a arquitectura ou a
construção de espaços.

A busca da cabana primitiva está interligada com busca do templo primitivo. Com a
identificação do momento em que o ser humano marca a diferença entre o espaço de
habitação – a casa – e o espaço reservado aos deuses – o espaço do sagrado e dos rituais. O
arquitecto Le Corbusier apresenta-nos esta planta:

Fig. 11.2: Templo Primitivo, Le Corbusier 2009[1993]

E escreve em 1923:

“O homem primitivo parou a sua carreta; decide que aqui será o seu chão. Escolhe
uma clareira, derruba as árvores mais próximas, aplana o terreno em torno; abre caminho
328
que o ligará ao rio ou àqueles da sua tribo que ele acabou de deixar; enterra os piquetes que
sustentarão sua tenda. Esta é cercada com uma paliçada na qual ele abre uma porta. O
caminho é tão rectilíneo quanto lhe permitem seus instrumentos, seus braços e seu tempo. Os
piquetes de sua tenda descrevem um quadrado, um hexágono ou um octógono. A paliçada
forma um rectângulo cujos quatro ângulos são iguais, são retos. A porta da cabana abre-se
no eixo do cercado e a porta do cercado faz face à porta da cabana.

Os homens da tribo decidiram abrigar o seu deus: Eles o dispõem em um lugar de um


espaço correctamente preparado; colocam-no ao abrigo sob uma cabana sólida e enterram
os piquetes onde virão se prender as cordas dos altos postes do cercado. Eles determinam o
espaço que será reservado aos sacerdotes e instalam o altar e os vasos do sacrifício. Abrem
um portão na paliçada e o colocam no eixo da porta do santuário.

Vejam no livro do arqueólogo, o gráfico desta cabana, o gráfico deste santuário: é a


planta de uma casa, é a planta de um templo.” (Le Corbusier, 2009 [1923]: 43).

O momento em que o ser humano define o espaço doméstico e o espaço ritual pode
conduzir-nos à velha questão da dicotomia de profano vs. sagrado e da discussão da
capacidade das comunidades pré-históricas relativamente à distinção entre estas duas esferas,
perfeitamente delimitadas nos dias de hoje no mundo moderno ocidental, com espaços e
tempos próprios 2. O estudo de locais rituais e de locais residenciais parece animar um
conjunto alargado de investigadores. Os espaços do dia-a-dia são normalmente associados a
estruturas circulares, como já referimos, e conectados com materiais do quotidiano. O ritual,
por sua vez, é conectado com o mundo dos mortos ou com materiais especiais, excepcionais
pela sua morfologia ou matéria-prima. Podemos salientar como exemplo o caso de
Stonehenge, monumento ritual, conectado com o espaço doméstico de Durrington Walls

2
S. O. Jorge debateu esta questão recentemente aquando da sua comunicação Sobre o uso dos termos
sagrado/profano na interpretação do passado Pré-histórico, apresentada na mesa redonda “Artes Rupestres da
Pré-história e da Proto-história”, realizada em Foz Côa em Novembro de 2010. Também em 2006, V. O. Jorge
denuncia a divisão geralmente considerada pela arqueologia tradicional entre o que chamou: homem económico;
homem religioso e homem político. Aponta que nos cenários construídos para o passado podemos observar
“…people quietly living their “daily lives” in peace (sub-liminal message), working and producing as good
laymen and laywomen – projection into the past of the “economic man” (domestic harmony); people burying
their dead, making their “art” or “monuments”, praying to their “spiritual entities or ancestors” – projection of
the “religious man” (cosmic harmony); and people making fantastic efforts in the construction of defenses or
fortresses in order to defend themselves from “nature” or from external human attacks – projection of the
“political man”, in the famous line of thought that says that “war” (whatever its nature) in nothing but politics
(whatever its scale) pursued through different means. Domestic and cosmic harmony menaced, and making all
efforts to maintain itself in homeostasis. (Jorge, V. O. [et al.], 2006: 216).

329
(Pearson [et al.], 2008). Em contexto português é possível referir o sítio de Fraga da Pena
(Fornos de Algodres), sítio ritual, conectado com sítios de cariz residencial e com o “povoado
fortificado” de Castro de Santiago (também em Fornos de Algodres) (Valera, 2006).

Os exemplos da Antropologia podem ajudar-nos a perceber melhor as diversas


interpretações do registo arqueológico. Atendamos à obra emblemática de Victor Turner, The
Ritual Process (1969). O espaço dos rituais descrito pelo autor é normalmente efémero,
construído e abandonado/destruído após o ritual. O antropólogo, concentrado na descrição dos
gestos e das palavras que compõe uma cerimónia ritual específica, descreve também o espaço
em que se desenvolvem os rituais Isoma da comunidade ndembo (noroeste da Zâmbia)
(Turner 1974 [1969]: 35-39). O espaço descrito é escolhido seguindo um conjunto de
preceitos: é escolhida a toca “abandonada” de um animal específico, localizada num
determinado local que esteja em relação com os elementos da comunidade que irão ser alvo
da cerimónia. Acendem-se lareiras, posicionam-se objectos. Cada um sabe o seu local, cada
um sabe as suas palavras e gestos. Não se regista uma construção duradoura. O espaço é
construído pelos gestos, palavras e coisas. Não é construído segundo uma planta ou desenho
específico. Mas existe um programa. Não é um templo. A comunidade ndembo delimita um
espaço. “Cingir algo numa forma circular é um tema persistente do ritual ndembo. É
geralmente acompanhado pelo processo de fazer uma clareira (mukombela) com enxada.
Deste modo, um pequeno reino de ordem é criado no meio disforme da floresta.” (Ibid: 39).

Em Arqueologia pré-histórica a definição de espaço ritual e espaço doméstico é


normalmente associada a estruturas ou a objectos específicos. Continuando a seguir a
descrição de Turner, nos rituais Isoma não são utilizados objectos especiais. Pelo ritual estes
são convertidos em excepcionais. Não pretendemos fazer da descrição do antropólogo inglês
um modelo ou representação das linhas estruturais de qualquer ritual que o arqueólogo
deveria conseguir reconhecer no “registo arqueológico”. No entanto, as descrições de Turner
permitem-nos pensar acerca dos preconceitos na definição de áreas rituais e de objectos
sagrados. A comparação de artefactos e espaços conectados com o sagrado carrega diversas
implicações que podem impedir a própria comparação. Quando comparamos plantas o que é
que realmente estamos a comparar? Será possível o estudo de sítios ou de determinados
espaços pela planta? Afinal o que significa comparar plantas e quais as suas implicações?

330
Planta, Alçado e Projecto

O estabelecimento de arquétipos em arqueologia: a casa, o templo e o castelo, a


cabana, o povoado fortificado…reconhecíveis pelo arqueólogo, permitiram também o
reconhecimento das comunidades que os construíram e utilizaram. A definição de modelos
arquitectónicos é paralela ao desenho das estruturas económicas, sociais, políticas e religiosas
de determinado grupo. Existirá uma relação dialéctica entre formas construídas e processos
sociais? O que é que a arquitectura diz dos grupos sociais e como? Será possível o estudo dos
grupos humanos pelo espaço construído? Poderá a Arqueologia pré-histórica estudar as
comunidades do passado através da arquitectura? Estas parecem ser questões fulcrais, não só
ao nível deste trabalho 3, mas da própria disciplina. O papel da arquitectura e do planeamento
“has been analysed in terms of a projection on the ground of the images of social institutions,
as a faithful translation of the structures into buildings or cities.” (Tschumi, 1996: 44). Poderá
a Arqueologia traduzir edifícios, ou melhor – as suas infra-estruturas – em estruturas sociais?
Poderá o estudo da planta dizer acerca da sociedade?

Um projecto de um edifício desenha-se a duas dimensões: a projecção horizontal, a


planta; e a projecção vertical, o alçado. A planta estabelece os limites, as divisões, as
especificidades de cada área. O alçado desenha a fachada. A planta estrutura o edifício. O
alçado dá rosto ao edifício. Os alçados dos “recintos murados” são dados por reconstruções
(ver Velho, 2009 ou os trabalhos de G. Casella) e nesse sentido a nossa atenção focar-se-á na
planta. Gostaríamos apenas de salientar, seguindo o trabalho de Lefebvre (2000), que o
Ocidente fetichizou a fachada. A fachada tornou-se símbolo de status social, do que é para ser
visto e de onde se vê. Tal como os edifícios, o autor refere que o Ocidente dotou as peças de
mobiliário de fachada, fachada esta que se impõe no mundo privado, dominando os espaços
interiores dos edifícios 4.

3
Já em 2006 num trabalho assinado pela equipa responsável pelos trabalhos em Castanheiro do Vento, escreveu-
se que os “objectivos mais amplos, mais ambiciosos” estão ligados a “questões/conceitos relacionados com a
arquitectura, estilo, eventuais “razões de ser” de estruturas monumentais deste tipo, formas de sociabilidade
com elas relacionáveis, etc. etc.” (Jorge, V.O. [et al.], 2006-2007: 244).
4
“Quand à l’œil de l’architecte, il n’est pas plus innocent et neutre que le lot qu’on lui accorde pour bâtir ou que
la feuille blanche sur laquelle il va prendre son premier croquis. L’espace «subjectif» de l’architecte se charge de
significations très objectives. Visuel, il se réduit au dossier, à l’image : à ce «monde de l’image», adversaire de
l’imagination. La perspective linéaire accentue et justifie ces réductions. Déjà Gromort [Architecture et sculpture
en France] rejetait ces tendances stérilisantes en montrant comment elles fétichisent la façade, volume composé
de plans et faussement enrichi de motifs décoratifs (moulures). Réduction à la parcelle, à l’image, à la façade
faite pour voir et être vue, donc intégrative à l’espace «pur» visuel, cette tendance produit la dégradation de
l’espace. La façade (voir et être vu) mesure le statut et le standing social. La cage façadée – cage familiale –
331
Mas falemos de plantas. As plantas dos recintos murados são muitas vezes
comparadas e o estudo comparado das linhas que delimitam os sítios têm sido a base para
delinear contactos, movimentos, influências, difusões de projectos, ideias e pessoas (ver por
exemplo, Cardoso, 1997). A semelhança formal dos chamados “povoados fortificados” cedo
despertou a atenção dos arqueólogos e parece consensual atribuir às plantas destes sítios um
“ar de família” (Cardoso, 1997: 85; Jorge [et al.], 2006) . Mas o que é que traduz a planta de
um recinto murado 5? Poderão os processos construtivos que resultaram em morfologias
semelhantes ser comparados? Será possível estudar a semelhança formal das plantas dos
recintos murados peninsulares?

A curiosidade por semelhanças arquitectónicas, ou melhor, por semelhanças ao nível


da planta, não é, claro, exclusiva da Arqueologia pré-histórica peninsular. Bradley destaca a
compulsão para a comparação de recintos, “causewayed enclosures” à escala europeia
assinalando que esta linha de investigação se sedimentou após os trabalhos do arqueólogo
inglês S. Piggott: “Indeed, ever since the work of Stuart Piggott in the 1950s there had been
the feeling among British prehistorians that if they were to discover the correct interpretation
of continental enclosures they would be able to use the same ideas in their own research”
(Bradley 1998: 189). Bradley sublinha a heterogeneidade dos contextos presentes em sítios
que se definem por plantas (“ground plan”) semelhantes e conclui: “There is no direct
relationship between form and function in the way that British prehistorians once supposed.
The form of these enclosures was dictated by traditional norms, but the activities that took
place in and around these sites were much less stable. It is quite impossible to impose a
narrative structure on so much variation and it means very little to talk about the “evolution”
of this kind of monument.” (id., ibid.: 201).

devient le type et le module de l’espace embourgeoisé. […] En Occident, la façade n’a pas fini de gouverner
l’espace. Les meubles – aussi lourds que les immeubles – avaient et ont encore une façade tournée vers l’espace
privé pour le dominer : l’armoire à glace, le buffet, le bahut. » (Lefevre, 2000: 416-417; 419).
5
Referimo-nos apenas aos recintos murados identificados na Peninsula Ibérica. Contudo, recintos com planta
semelhante foram também detectados no sul de França [ver, por exemplo, Coularou et al., 2008, a propósito do
sítio de Boussargues (Montpellier)]
332
Fig. 11.3: Exemplos de sítios interpretados como povoados fortificados: 1. Fortim 1 de Los Millares
(Almeria, Espanha) [Molina & Cámara, 2005]; 2. Los Vientos de la Zarcita (Santa Bárbara de Casa, Espanha)
[Piñón Varela, 1994]; 3. Los Millares (Almeria, Espanha) [Molina & Cámara, 2005]; 4.Palacio Quemado
(Badajoz, Espanha) [Hurtado Pérez & Enríquez Navascués, 1991].

Fig.11. 4: Exemplos de sítios interpretados como povoados fortificados: 5. Leceia (Oeiras, Portugal),
Cardoso, J.L., 1994; 6. Cerro do Castelo de Santa Justa (Alcoutim, Portugal); 7. Olelas (Sintra, Portugal),
Gonçalves, J. L. M., 1990-1992; 8. Vila Nova de S.Pedro (Azambuja, Portugal).

O arquitecto Le Corbusier define o desenho de uma planta como o desenho da ordem.


É o planeamento. É o estabelecimento do que se vai fazer a seguir. Escreve “Fazer uma
planta, é precisar, fixar ideias (…) Sem uma boa planta nada existe, tudo é frágil e não dura,
tudo é pobre mesmo sob a aparência confusa da opulência.” (Le Corbusier, 2009 [1923]:125;
333
127). A planta define as linhas basais de um edifício. É elaborada previamente à construção.
A sua concepção e desenho são feitos pelo arquitecto, artista primeiro. A sua execução cabe
ao construtor, ao que manipula a técnica construtiva e conhece os materiais. A planta
estabelece a separação entre a ideia do edifício e o edifício em si, separa os intervenientes na
construção do espaço por especialidade, formação, experiência. Este projecto de arquitectura,
defendido por Le Corbusier, nos anos 20 do Século XX, é frequentemente adoptado para o
estudo das arquitecturas pré-históricas. Os arqueólogos pressupõem a existência de uma
planta, de uma projecção horizontal que antecedeu a concretização do edifício em si. No
entanto, será possível entender um edifício na ausência de uma planta? Ausência não porque
desapareceu ou se perdeu mas porque nunca existiu. Será possível pensar as arquitecturas pré-
históricas na ausência do projecto?

A arquitectura moderna ocidental traduz plantas em edifícios. Apesar de este processo


não ser de todo linear, já que nenhuma planta é passível de ser traduzida em edifício, procura-
se para a Pré-história a tradução do que os arqueólogos identificaram como unidades
construídas. Estas unidades entram depois na narrativa textual e icónica como cenários. O
processo construtivo, ou a construção permanente dos espaços raramente é equacionada.

Fig. 11.5: Casa de Sir Charles Hotham, Yorkshire, in Vitruvius Britannicus, Volume II, 1717.

334
Fig. 11.6: Los Millares (Molina & Cámara, 2005).

As duas figuras representam a tradução de plantas em edifícios. A primeira espelha a


arquitectura moderna. A projecção vertical e horizontal de um edifício que se concretiza pela
construção. É o plano original. A segunda ilustra o sítio arqueológico de Los Millares
(Almeria, Espanha). As linhas identificadas e desenhadas pelos arqueólogos são entendidas
como as linhas de uma planta original. O arqueólogo desenha apenas a projecção vertical. O
edifício está completo. Como se pressupõe que existiu um projecto original que não foi
alterado (ou apenas sofreu pequenas modificações) é possível recuperar o edifício original,
inalterável, cenário das actividades que no seu interior decorreram.

A Arquitectura, como a Arqueologia, carrega no próprio nome a palavra de origem


grega “arché”, que significa “a origem”, “o princípio”. Em Arquitectura, a origem do edifício
pelo desenho, em Arqueologia a origem do homem. Mas a Arquitectura, envolvida na busca
das origens surge também como arquivo, como o começo de uma cultura, de uma
comunidade, de uma nova ordem social, política e económica. A Arquitectura é a metáfora da
fundação. Tal como o arquivo encontra a sua definição mais linear como a fundação da escrita
da história. A Arquitectura, como fundação, arquiva a história de um sítio. Pela Arquitectura,
a Arqueologia tradicional, recupera o arquivo que fala de comunidades passadas. A
Arquitectura é lida como arquivo de comunidades passadas, resultado da acumulação,
conservação ou ablação/eliminação de informação (petrificada), que o arqueólogo pode
recuperar pela leitura correcta do “registo arqueológico”. Por sua vez, o registo arquiva o que
foi recuperado, traduz na gramática própria da Arqueologia a explicação do passado que
depois se transcreve em texto. O registo do arquivo (da Arquitectura) é arquivado nas sedes
do arquivo moderno (em museus ou instituições de tutela).
335
A Arquitectura surge-nos assim como o início do sítio, as paredes necessárias para que
a ocupação ocorra no seu interior. A Arquitectura aparece como pano de fundo, como
contentor de um conjunto de actividades, como imagem fixa, como cenário. Em Arqueologia
o estudo dos pequenos materiais – como vasos ou fragmentos cerâmicos, objectos líticos, etc
– tem relevado as diferentes teias de relação nas quais um artefacto pode ser manipulado e,
nesse sentido, tem chamado à atenção para a multiplicidade de significados que uma mesma
peça acarreta consigo (veja-se, a título de exemplo, os trabalhos de Hodder ou Jones). No
entanto, os elementos construídos aparecem em texto geralmente como inalteráveis, como
cenários fixos onde o conjunto dos pequenos materiais é apanhado em diferentes teias de
sentido. Mas o significado da casa, do bastião, do muro ou da muralha permanece fixo. Na
bibliografia sobre os povoados fortificados é comum explicar as unidades construídas como
unidades estáticas, encaixadas em fases de construção. Os elementos construídos podem na
fase final do “povoado” adquirir outro significado, mas encontram-se inevitavelmente
prisioneiros de momentos chave, de grandes mudanças. O gesto que faz os edifícios não é
questionado. Os movimentos que fazem espaço não entram no discurso. E só assim podemos
explicar as representações do passado de que as próximas duas imagens são exemplo.

Fig.11. 7: Representação do interior de uma casa de Durrington Walls. Desenho de Kazuhizo Sano,
reproduzido em National Geographic, nº90

336
Fig. 11.8: Representação da vida extra-muros no povoado de Leceia (Oeiras) (Cardoso, J.L., 1997).

Estas duas ilustrações pressupõem a arquitectura como veículo de tradução do


passado. Ou seja, pressupõem que é possível a tradução linear do chamado registo
arqueológico em cenas da vida passada. Pressupõem a tradução de alinhamentos pétreos ou
delineados pela escavação do solo em elementos arquitectónicos estáveis, em cenários de um
passado que realmente aconteceu. Esta tradução verte em texto e imagens estrutura familiares
nas quais me posso reconhecer. No entanto, pegando nas palavras de Jorge Luis Borges
“Também há letras na lombada de cada livro; estas letras não indicam nem representam o que
dirão as páginas” (Borges, 2009: 69).

O desenho de uma casa, a construção de determinados espaços e paredes condiciona a


forma como o habitante irá habitar o edifício. Porque o espaço para dormir ou comer é
organizado para que a cama ou a mesa se encaixem num local específico já planeado pelo
arquitecto (como referimos no ponto 9.2). Nos dias de hoje, no mundo ocidental, o projecto e
a execução dos edifícios pressupõe este entendimento. No entanto, retirando a ideia de

337
projecto prévio materializado em papel, com medidas e cálculos de volumes, a construção de
um espaço condiciona sempre os movimentos e gestos realizáveis em articulação com o
espaço. Gostaríamos de introduzir o conceito de programa. A arquitectura “Arrasta consigo
um programa, mas um programa que não está seguramente pré-programado. Um pro-grama
sem programa, sem planificação específica, sem definição ou cumprimento exacto; guarda
dentro de si a própria possibilidade do “sem programa”. Quer dizer, um programa de
cumprimento indeterminado” (Santos Guerrero, 2011: 25).

Pensar a arquitectura na ausência de um projecto mas conduzida por um programa


“sem programa”. Pensamos importante desenvolver esta noção do filósofo espanhol, J. Santos
Guerrero, para pensar a construção de Castanheiro do Vento. Poderíamos definir programa
como uma colecção de instruções, de tarefas; um conjunto de variáveis, de directrizes, que
não é estático. A hierarquia das variáveis não é pré-definida e o seu cumprimento, associação
e escolha são indeterminados. A construção de Castanheiro do Vento poderia não ter
obedecido a um projecto pré-definido (o que implicaria a construção rápida do edifício como
materialização da representação idealizada de um “arquitecto”) mas poderá ter seguido um
programa (que não é pré-programado e “guarda dentro de si a possibilidade do “sem
programa”). Neste sentido, o que ao longo deste trabalho temos proposto pode inscrever-se na
palavra “programa”. A construção permanente do sítio que se faz pela experiência, que
avança ao ritmo dos corpos e atenta aos movimentos, não se despe, no entanto, dos modos de
fazer, do saber fazer, do que chamamos “tradições de práticas”. O programa de Castanheiro
do Vento arrasta consigo as linhas concêntricas pontuadas por estruturas semicirculares que se
constroem durante o IIIº milénio a.C. na Península Ibérica. Mas a planta de Castanheiro do
Vento, que hoje apresentamos, não é o projecto de Castanheiro do Vento. J. M. Cardoso
(2007) propôs que a construção do sítio se possa ter dado por módulos (correspondendo estes
a troços de murete e estruturas semicirculares que poderiam ser reformuladas a qualquer
altura sem alterar a configuração geral do sítio). O(s) programa(s) de Castanheiro do Vento
poderiam materializar-se em módulos, em unidades construídas, na adição de estruturas
circulares ou na ablação de outras, no afeiçoamento do afloramento xistoso.

Poderíamos também acrescentar que a percepção do espaço, a construção/elaboração


do espaço não se faz apenas, nos dias de hoje, pelo desenho ou concepção de plantas e
alçados, não se faz apenas por projecções horizontais e verticais. O movimento e a acção
fazem e constroem espaço. Como referiu o arquitecto Tschumi: “The pervasive smells of
338
rubber, concrete, flesh; the discomforting rubbing of an elbow on an abrasive surface-, the
pleasure of fur-lined walls and the pain of a corner hit upon in the dark; the echo of a hall –
space is not simply the three-dimensional projection of a mental representation, but is
something that is heard, and is acted upon. And it is the eye that frame – the window, the
door, the vanishing ritual of passage… Spaces of movement – corridors, staircases, ramps,
passages, thresholds; here begins the articulation between the space of the senses and the
space of society, the dances and gestures that combines the representation of space and the
space of representation. Bodies not only move in but generate spaces of representation.
Bodies not only move in but generate spaces produced by and through their movements”
(Tschumi, 1996: 111).

Não resistimos a introduzir mais uma passagem de Le Corbusier, para pensar os


espaços que se experienciam. Segundo Le Corbusier, os jardins de Versailles só podem ser
apreendidos com esplendor na visualização da planta ou se sobrevoados. A experiência de
quem caminha nesses espaços é distinta daquele que contempla o projecto:

“VERSAILLES: Luís XIV não é o sucessor de Luís XIII. É o Rei-Sol. Imensa


vaidade. Ao pé do trono, seus arquitectos lhe trazem plantas que vistas de cima parecem
mapas dos astros; eixos imensos, estrelas. O Rei-Sol se enche de orgulho; os gigantescos
trabalhos são executados. Porém, um homem não tem mais que dois olhos a 1,70 m do solo,
que fixam somente um ponto de cada vez. Os braços das estrelas são visíveis somente um
após o outro e é uma reta sob uma copa frondosa. Uma reta não é uma estrela; as estrelas
caem. E tudo assim por diante: a grande bacia, os jardins bordados que estão fora de uma
vista de conjunto, os edifícios que só se vêem por fragmentos e se deslocando. É um engano,
a ilusão. (Le Corbusier, 2009 [1923]: 141).

Qual a relação entre planta e jardins? Qual a relação entre as plantas com os muretes
assinalados e a experiência do espaço? A experiência de quem caminha nos jardins de
Versailles anula a experiência da contemplação da estrela, do bordado. Apenas vê segmentos
de recta, fragmentos. A comparação de plantas anula a experiência dos edifícios. Plantas
morfologicamente semelhantes podem provocar a ilusão de espaços semelhantes. As linhas de
murete interceptadas por bastiões que caracterizam estes sítios colocam par a par espaços
construídos distintos. Será possível escrever sobre distintas práticas performatizadas por
distintos grupos munidos de um esboço programático? A planta de um sítio pressupõe que

339
este foi conceptualizado previamente e que a construção seguiu um plano prévio. Mas se a
planta (que hoje desenhamos) é resultado, pensamos (equipa de investigação de Castanheiro
do Vento), de um processo construtivo contínuo (não só por adições ou reformulações mas
também por ablações), como comparar a planta de Castanheiro do Vento com outras plantas
às quais se assemelha?

Será possível imaginar um sítio com estruturas em ruína, outras construídas e outras
em manutenção? Que espaços se geram? Que paisagem se percepciona? A planta de um sítio
representa as estruturas de forma sincrónica. A planta é a representação do espaço. Apesar da
sincronia absoluta das estruturas ser mistificador 6. A diacronia, dada apenas pela gráficos de
datas absolutas ou por casos pontuais onde é possível perceber reestruturações dos espaços
(como é o caso, por exemplo, do Bastião B e da “Torre Principal”), não está presente na
projecção horizontal do sítio. Sempre atentos a Agamben não procuramos valorizar o espaço
por oposição ao tempo, ou vice-versa. Como refere o autor (2007: 84), é “the opposition
between diachrony and synchrony which characterizes every human society.”

No entanto, conscientes dos problemas inerentes à definição e apresentação de plantas,


a comparação parece inevitável. O “ar de família” dos sítios rodeados por muretes e bastiões
do IIIº milénio peninsular continua a ser um ponto importante na discussão destes sítios. Este
“ar de família” é dado pelo sistema de muretes concêntricos interceptados por
“protuberâncias” semicirculares chamadas bastiões, conferindo a estes dispositivos um ritmo

6
Seguimos aqui Agamben (2007), ainda que procedendo a uma apropriação e transformação dos conceitos
(diacronia e sincronia) que definiu no texto “ In Playland. Reflections on History and Play”. Sincronia e
diacronia revelam-se essenciais para estudar o “tempo humano”, na medida em que a história é a margem
diferencial entre diacronia e sincronia (Agamben, 2007: 84). Mas como o autor refere “the precise instance as an
intersection of synchrony and diachrony (the absolute presence) is a pure myth, which Western metaphysics
make use of to guarantee the continuation of its own dual conception of time. It is not merely – as Jakobson
showed for linguistics – that synchrony cannot be identified with the static nor diachrony with the dynamic, but
that the pure event (absolute diachrony) and the structure (absolute synchrony) do not exist. Every historical
event represents a differential margin between diachrony and synchrony, instituting a signifying relation between
them.” (Ibid: 84-85) e acrescenta “History – as all the anthropologists now accept, and as historians have no
trouble acknowledging – is not the exclusive patrimony of some peoples, compared with which other societies
figure as people without history. This is not because all societies are within time, within diachrony, but because
all societies produce differential margins between dyachrony and synchrony; in all societies, what we have here
called ritual and play work to establish signifying relations between diachrony and synchrony. Far from being
identified with the diachronic continuum, from this perspective history is nothing other than the result of the
relation between diachronic signifiers and synchronic signifiers produced incessantly by the ritual and play – the
“play”, as we could say, using a mechanical value of the term, which is found in many languages, between
diachrony and synchrony.” (Ibid: 85).

340
construtivo semelhante. Localizam-se geralmente em locais destacados na paisagem, no topo
de colinas (ver Jorge, V. O. [et al.], 2006: 229). S. O. Jorge tem vindo a acentuar desde 1994 a
heterogeneidade destes sítios, sublinhando a necessidade de estudar cada sítio na sua
unicidade, integrando-o numa escala de análise local/regional, mas sem perder de vista a sua
contextualização no quadro europeu (Jorge, S.O., 2003: 14). Apesar das semelhanças formais
dos recintos murados, a autora sublinha que “A variabilidade destes recintos pode equacionar-
se tendo em vista aspectos relacionados com a implantação topográfica (e, duma maneira
geral, a interacção com a paisagem), a cronologia relativa e tempo de funcionamento, a
dimensão, a tipologia e projecto arquitectónicos, a funcionalidade (a escalas diversas) e a
relação com outros lugares contemporâneos (nomeadamente necrópoles, povoados, sepulcros
isolados, santuários, outros recintos, etc.).” (Ibid.16).

A comparação das plantas ilude, geralmente, as próprias dimensões dos sítios, a sua
localização, o tempo de ocupação, a associação a outros dispositivos arquitectónicos como
sejam as necrópoles. Cada sítio deverá ser entendido na sua singularidade; no entanto, como
estudar a rede de contactos que as semelhanças formais destes sítios parecem denunciar?
Como referimos, a arquitectura pode ser estuda enquanto gesto construtivo, gesto feito
edifício. Mas, contudo, este gesto não é neutro mas negociado, é condicionado, é político. E
insere-se num sistema de significações. Mas este sistema de significações “não é um elemento
“a priori”, mas um dado negociado permanentemente e portanto plástico, se bem que
podendo ser temporariamente estabilizado por “tradições”. As tradições (traduzidas ao nível
da arquitectura por “estilos”, por exemplo) são sempre uma forma de os grupos se entenderem
sobre o que não vai mudar por um tempo, são uma forma de tentar estancar o tempo; mas
como sabemos as tradições mudam e criam-se, sedimentando-se por vezes com certa
rapidez.” (Jorge, V. O., 2006: 107, ênfases do autor). V. O. Jorge define estabilização
temporária de um “sistema de significações” como estilo (arquitectónico). Geralmente, o
estilo é associado às qualidades semelhantes que um conjunto de materiais “apresenta” e
entendidas pelo histórico-culturalismo como representantes de uma “cultura”, de contactos e
difusões. J. Thomas (2004) salientou que esta linha de pensamento tinha subjacente a
distinção entre duas categorias que podiam ser separadas: matéria e significado, sendo o
segundo conferido ao primeiro pelo ser humano. A matéria era considerada inerte e neutra.
Ainda segundo J. Thomas, a arqueologia contextual de Hodder tentou superar este problema
ao anunciar que os materiais não são apenas reflexo da sociedade que os criou e manuseou,

341
mas devem ser considerados como elementos activos. No entanto, segundo Thomas, Hodder
continua a pressupor que o significado é investido pelo ser humano nas coisas materiais
(Thomas, 2004: 213-214).

Ao longo da história da Arqueologia, o conceito de estilo tem sido entendido e


enfatizado segundo diferentes ritmos e escalas. Contudo, parece consensual que o termo estilo
estabelece uniformidade a um dado conjunto. Ao referirmos, por exemplo, que certos
elementos partilham o mesmo estilo estamos a facilitar o trabalho comparativo entre algo que
é de facto semelhante ou, pelo contrário, ao valorizarmos determinados critérios, estamos a
esconder o que é diferente e que nos permitiria avaliar esse algo como distinto? No campo da
Arte o conceito tem sido discutido, e por intermédio da arte rupestre o tema é ciclicamente
reposto em Arqueologia. Mas como definir estilo? Será um conceito operatório válido no
estudo de sítios arqueológicos? Será uma ferramenta útil nos estudos comparativos? Ou pelo
contrário, por recorrermos a variáveis que podem ser tratadas através do estabelecimento de
estilos não corremos o risco de uniformizar uma amostra distinta por natureza? O
reconhecimento de um mesmo estilo pode ser interpretado como resultado de contactos?

M. J. Sanches (1997), seguindo de perto Weissner (1990), Sackett (1990) e Plog


(1990), encara o estilo (ainda que se debruce essencialmente sobre o estilo cerâmico) como
um elemento de comunicação não verbal, vinculado à expressão da identidade, como
indicador cronológico e sobretudo como indicador de “modos de fazer” (Sanches, 1997:171-
174). Será possível pensar os sítios que temos vindo a abordar como unidades particulares,
como materializações de um conjunto de práticas que não podem ser comparadas, mas que,
no entanto, denunciam um programa, ainda que vago, que carrega uma imagem? Imagem
passada e repassada pelos mais diversos tipos de contactos? Denunciam estes sítios através
dos seus modos de fazer uma tradição? Uma tradição na forma como constroem o seu espaço?
Mais uma vez referimos, contudo, que a tradição de modos de fazer não implica a reprodução
do que outros fizeram, tratando-se antes de um processo criativo e de memória. É um
processo que é do grupo e que conta ao grupo. Parece assim que estes dispositivos
arquitectónicos, conectados com a coesão social e com a memória, são construções
monumentais. Poderá Castanheiro do Vento ser entendido como um monumento?

342
Arquitectura monumental/ Arquitectura doméstica

Durante o texto referimos a interpretação de Castanheiro do Vento enquanto colina


monumentalizada mas deixámos em suspenso as implicações desta designação. Se por um
lado “colina monumentalizada” procura chamar a atenção para todo o morro e não apenas
para o topo onde decorrem as escavações arqueológicas, expandindo desta forma os limites do
sítio e apresentando já no nome o extravasar do sítio, por outro lado implica a “utilização” de
conceitos que se podem apresentar problemáticos, como sejam o de monumento ou
monumentalidade. É do senso comum explicar o carácter monumental de uma arquitectura
pela sua qualidade de “obra” especial, de construção simbólica, única e perene. No entanto,
afastamo-nos desta explicação apesar de subscrevermos o carácter monumental da colina de
Castanheiro do Vento 7.

S. O. Jorge define monumento da seguinte forma: “toda a arquitectura durável,


concebida para marcar o espaço, enquanto lugar de memória e de processamento de
identidade.” (Jorge, S.O., 2003a: 64). Refere também o conceito de cenografia monumental
que define como “qualquer dispositivo cénico que recorra à manipulação do tempo e do
espaço, em escalas variadas, destinado a promover interacção e construir identidade” (Ibid,
ibidem). Sublinhamos nestas duas definições de S. O. Jorge as expressões ou conceitos:
“lugar de memória”, “processamento de identidade”, “manipulação do tempo e do espaço”,
“interacção” e “construir identidade”. De facto, quando sublinhamos e repetimos a designação
de lugar ou colina monumentalizada (pelas mãos de V. O. Jorge e S. O. Jorge) pretendemos
acentuar a relação destes sítios com estratégias de coesão social, de criação, recriação e
negociação de identidades colectivas, enquanto lugares de memória que dizem do grupo e ao
grupo a sua história, falam dos seus antepassados, precisam as suas normas, delineiam a sua

7
Chapman (2003) refere mais de uma centena de « povoados fortificados » identificados na Península Ibérica
(aspecto sublinhado por Jorge, S. O., 2005 [2003]: 172). No entanto, trabalhos recentes como o de J. M. Cardoso
(2007) mostram como a paisagem pode estar povoada por sítios semelhantes a Castanheiro do Vento, com
dimensões e enquadramentos distintos. O autor identificou 11 recintos e 7 prováveis recintos no concelho de
Vila Nova de Foz Côa, clarificando: “Entendemos por recintos, aqueles locais geralmente situados no topo de
colinas, caso de Castanheiro do Vento, Castelo Velho de Monte Meão, Montes ou Castelo Velho do Souto, ou
implantados em situações predominantes na paisagem, como esporões, caso do Castelo Velho de Freixo de
Numão e o Alto da Lamigueira, e colinas de formato circular e/ou sub-circular, como Zaralhôa, Quinta de
Alfarela, Pitanceira e Cerro do Bastião. Apresentam um espaço circular, sub-circular ou ovalado, delimitado por
uma ou mais linhas de muretes. Estas linhas definidoras de espaços, apresentam interrupções, passagens e
estruturas sub-circulares incorporadas (tipo “bastião”). Pelo menos em quatro casos (entre onze), os recintos
parecem não se confinar ao topo das elevações, como Castelo Velho de Freixo de Numão, Castanheiro do Vento,
Castelo Velho do Souto e Cerro do Bastião. Existem vestígios estruturais ao longo das colinas, pelo menos na
área mais próxima ao topo.” (Cardoso, 2007: 334-335).
343
forma de construir espaços e paisagens. E revelam também interditos ao mesmo tempo que
trazem latente a possibilidade de os transgredir.

Pedimos ajuda a H. Lefebvre na definição de arquitectura monumental, ou o que o


autor define por espaço monumental. Segundo Lefebvre, o “espaço monumental” não tem um
significado inscrito mas espraia-se num horizonte de sentidos, através de uma multiplicidade
definida e indefinida de significados, não hierarquizáveis, ou assentes em hierarquias fixas. O
“espaço monumental” não é uma recolha de símbolos nem uma cadeia de símbolos. Não é um
objecto nem uma soma de objectos diferentes «encore que son “objectalité”, la position d’un
objet social, se rappelle à chaque instant par la brutalité des matériaux et des volumes, ou au
contraire par leur douceur.» (Lefebvre, 2000: 257). O « espaço monumental » não é uma
escultura ou uma figura nem resultado de procedimentos materiais.

“L’espace monumental offrait à chaque membre d’une société l’image de son


appartenance et de son visage social, miroir collectif plus «vrais» qu’un miroir individualisé »
(Ibid: 253). Segundo o autor, o espaço monumental promove o consensus; a construção do
espaço por uma comunidade potencia a coesão social ao anular, iludir, atenuar, reprimir
qualquer “agressividade” inerente às práticas sociais (ou potencia essa ilusão). A [prática da]
arquitectura introduz volumes, texturas, ritmos, e condiciona movimentos, sons ou silêncios,
molda os corpos ao espaço; a construção de um espaço monumental, enquanto obra colectiva
onde cada corpo se reconhece e sabe como se mover, reforça laços sociais (ainda que possam
ser apenas aparentes). Os espaços não são neutros e pela sua construção as relações de poder
são negociadas, reforçadas, alteradas. O espaço não é um palco inocente. “…[A] noção de
“espaço” como “cápsula” vazia só surge com a sociedade capitalista moderna e com a
transformação da terra em mercadoria como qualquer outra.” (Jorge, V. O., 2003: 19). Ingold
referiu muito recentemente que “space is nothing, and because is nothing it cannot truly be
inhabited al all” (Ingold, 2011: 145). O agricultor trabalha a terra, não o espaço, os viajantes
percorrem países, não espaços, pisamos o chão, não o espaço. O espaço é abstracção, vazio,
não habitado. No entanto, aqui falamos de espaço monumental e por diversas vezes neste
trabalho referimos a palavra “espaço”. Seguimos a definição proposta por D. Massey (2005)
(da qual Ingold não discorda ainda que estruture de forma distinta a abordagem que tece
acerca do espaço, do local, da habitação, da ocupação). Massey, na abertura da sua obra
sintetiza as três proposições que estão na base da sua definição de espaço:

344
“First, that we recognise space as the product of interrelations; as constituted
through interactions, from the immensity of the global to the intimately tiny. (…) Second, that
we understand space as the sphere of the possibility of the existence of multiplicity in the
sense of contemporaneous plurality; as the sphere in which distinct trajectories coexist; as the
sphere therefore of coexisting heterogeneity. Without space, no multiplicity; without
multiplicity, no space. If space is indeed the product of interrelations, then it must be
predicated upon the existence of plurality. Multiplicity and space as co-constitutive. Third,
that we recognize space as always under construction. Precisely because space on this
reading is a product of relations-between, relations which are necessarily embedded
material practices which have to be carried out, it is always in the progress of being made.
It is never finished; never closed. Perhaps we could imagine space as a simultaneity of
stories-so-far.” (Massey, 2005: 9).

Esta incursão pela definição do conceito “espaço” devolve-nos Castanheiro do Vento


ao texto, porquanto o olhamos como um espaço de relações, em construção permanente, de
histórias de longe e de perto, e também como um espaço monumental. O aspecto durável que
reconhecemos num espaço monumental e que reconhecemos em Castanheiro do Vento pode
ter sido uma vontade que pela acção de corpos se concretizou num aparelho que parecia feito
para durar. Esta vontade de fazer durar, Lefevbre associa a uma vontade de poder ou à
vontade de ter vontade, única forma de superar a morte ou de crer na sua superação 8. Desta
forma, pela construção de um edifício, pela concentração de numerosos indivíduos, pela
partilha de um programa, pela contínuo tecer de um espaço por gerações, pode-se garantir
coesão social, negociar consensus e assim assegurar a durabilidade dos espaços, dos
monumentos, assim como da comunidade e das suas formas de habitar.

8
“Toutefois, la «durabilité» monumentale ne peut illusionner complètement. En termes dits modernes, elle n’a
jamais crédibilité achevée. Elle substitue l’apparence réalisée matériellement à la réalité brutale ainsi changée en
apparence. Le durable ? Ce n’est que la volonté de durer : l’impérissabilité monumentale porte une marque, celle
de la volonté de puissance. Seul le Vouloir, en ses formes les plus élaborées : vouloir de pouvoir, volonté de
volonté, peut surmonter le mort ou croire qu’il la surmonte. (Levefvre, 2000: 254-255).
345
Fig. 11.9: Fotografia aérea de Castanheiro do Vento. Direcção Geral de Cultura Norte, 2008.

No entanto, não entendemos o espaço monumental como um local cerimonial, onde


objectos do “dia-a-dia” são transformados, transferidos da esfera da prática quotidiana para
um quadro de acções mais ou menos ritualizadas, manipulados como objectos sagrados, como
Lefevbre parece sugerir. O percurso que fizemos nos dois parágrafos anteriores
acompanhados pelo filósofo/sociólogo francês não pretendeu a definição de arquitectura
monumental por oposição à arquitectura doméstica. Em Castanheiro do Vento esta divisão ou
oposição é inoperante. Retenhamos a ideia do espaço monumental enquanto espaço colectivo,
de promoção de coesão social, que não é apenas a reunião de um conjunto de objectos nem se
estrutura por sistemas hierárquicos fixos. Não é um espaço neutro mas também não é um
espaço de excepção ou especial. É um espaço construído por diversas comunidades que o
habitaram mediante a sua própria construção. Não procuramos os espaços de vida de todos-

346
os-dias por oposição a um espaço exterior ao quotidiano que poderíamos tentar encontrar em
Castanheiro do Vento pelo seu carácter monumental.

O espaço de vida de todos os dias – a arquitectura doméstica, a casa – é normalmente


definido por oposição à arquitectura monumental, à arquitectura do sagrado, ao templo. Como
já referimos no ponto 10.2, alguns autores, como o arquitecto Le Corbusier, procuraram a
origem da casa e do templo num mesmo edifício, no monumento em que a forma da casa é
replicada para albergar as “divindades”. Mas, como estabelecer os limites da casa? Como
defini-la? Começámos a tecer os problemas inerentes a este conceito no ponto 10.2 e no ponto
9 propusemos que as comunidades que “habitaram” (no sentido ingoldiano) Castanheiro do
Vento se sentiram em casa, fizeram, tal como nós arqueólogos, do lugar a sua casa. No
entanto, este sentir-se em casa não se prende com a feitura de um espaço doméstico como
hoje o entendemos (espaço privado que protege uma família, com espaços reservados a
actividades específicas performatizadas em tempos específicos ao longo do dia). O conceito
de casa espraia-se para além dos seus muros, o problema da “dimensão” da casa “não tem a
ver com a dureza dos muros, dos seus obstáculos e contenções, mas da impossibilidade de
situar esses muros, de definir onde começa e onde termina a casa, porque ela é, antes de mais,
uma instância de relação, uma marca de outros que a ultrapassa.” (Guerrero, 2011: 19).
Segundo o filósofo espanhol, J. S. Guerrero, a casa é um intermédio, um interstício, um
“entre”. A casa é, sendo um dentro e também um fora, uma passagem. É a relação com outras
coisas, edifícios, paisagens. A casa é um problema.

Fig. 11.10: Colina de Castanheiro do Vento visto de Noroeste.

347
Talvez distinguir arquitectura monumental e arquitectura doméstica faça algum
sentido no mundo moderno ocidental como forma de estudo das unidades construídas que
habitamos. Mas revelam-se expressões controversas, ou demasiado assertivas, para pensar um
espaço como Castanheiro do Vento. A arquitectura de Castanheiro do Vento, o jogo de
relações e tensões que hoje tentamos pensar não se encaixa nas definições consensuais de casa
e monumento. Se por um lado poderíamos afirmar que Castanheiro do Vento é um espaço de
negociação de poderes, de tensões, promotor de coesão social, por outro ele é também um
espaço de habitação, onde indivíduos se sentiram em casa. Este é provavelmente um
problema de ligação estreita entre forma e função no mundo de hoje. A casa e o monumento
são desenhados e constroem-se sob formas reconhecíveis, identificáveis (principalmente a
casa) com funções associadas. Gostaríamos de pensar Castanheiro do Vento como um espaço
entre, um espaço que não é só um monumento, que não é apenas casa. É um espaço de
passagem, de ligação, de reunião de caminhos, coisas, indivíduos, grupos. É a associação
estreita entre forma e função que tem permitido a interpretação de unidades arquitectónicas
semelhantes como “povoados fortificados”.

Função/forma

“ «Por um curto-circuito eléctrico incompreensível, o electrocutado foi o funcionário


debaixo da alavanca e não o criminoso que se encontrava sentado na cadeira. Como
não se conseguiu resolver a avaria, nas vezes seguintes o funcionário do governo
sentava-se na cadeira eléctrica e era o criminoso que ficava encarregue de baixar a
alavanca no botão.»

Esta história tem a ver com algo que me interessa em termos de espaço, que é a
confusão intencional entre posições e funções. Esta pequena história tenta retratar que muitas
vezes a associação entre um objecto e uma função pode ser posta em causa.” (Tavares, G. M.,
2011: 30).

A citação introduzida começa com um excerto do livro O senhor Brecht, e continua


com as palavras do autor, Gonçalo M. Tavares, proferidas numa conferência realizada
recentemente (2009) em Matosinhos. O “exemplo” caricato que Gonçalo M. Tavares
apresenta permite questionar a rigidez das associações entre forma e função, a inevitável
função de uma forma. A forma nem sempre diz da função. Uma unidade pode ter tido
348
diversas funções. “A associação entre um objecto e uma função pode ser posta em causa” e
deve ser posta em causa. Em Arqueologia diversos autores alertaram para o perigo de associar
“objectos”, materiais, artefactos a uma função, significado, uso… no entanto, os elementos
construídos parecem permanecer na sombra, como cenário que não se altera ou pouco se
modifica, permanecendo conectado com uma função ou com uma actividade específica.
Como temos vindo a referir, os espaços construídos são geralmente associados a uma função
específica. Estes mesmos espaços são posteriormente interpretados enquanto palcos, enquanto
elementos que recebem, que dão espaço, que protegem, que enquadram um conjunto de
actividades. Mas a sua forma, porque de cariz mais permanente, traduz-se numa função
permanente também.

E continuamos com as palavras proferidas por Gonçalo M. Tavares:

“Neste espaço, como em qualquer outro, há movimentos que podem ser feitos e movimentos
que não podem ser feitos. (…) A arquitectura é uma selecção e uma escolha de movimentos,
mais do que uma selecção apenas de objectos. Há movimentos que eu quero que sejam feitos
neste espaço e há movimentos que eu não quero que sejam feitos neste espaço. Esse é o poder
dos arquitectos. Ora isto é instalar no espaço uma filosofia de vida, uma filosofia de vivência
do espaço. Se um arquitecto escolhe uma entrada muito baixa para entrar num espaço, que
obriga as pessoas a curvarem-se, está a dar ordens num determinado sentido, está a determinar
uma filosofia de acesso ao espaço.” (Tavares, G. M., 2011: 41).

Considerar a Arquitectura como uma selecção e escolha de movimentos implica


reconsiderar as explicações funcionalistas e deterministas para os espaços. Por um lado, a
associação entre forma e função nega todo o processo construtivo que, como temos vindo a
desenvolver, parece ser um contínuo mais do que uma fase na vida das construções; por outro
não permite equacionar movimentos e gestos que pela e na construção de espaços são
promovidos, potenciados, interditos. Os movimentos e gestos num espaço não são
mecanizados, repetidos, estudados como os únicos possíveis (se assim fosse sublinhariam a
explicação funcionalista determinista de um espaço). Mas os movimentos alteram-se com a
colocação de um vaso em determinado espaço, ou com a pintura das paredes, ou com a
abertura/fechamento de uma entrada ou de uma janela. E as actividades que se poderiam
elencar não permanecem inalteráveis ao longo de centenas de anos, não encaixam em fases de
explicação das estruturas. Isto também porque a construção de uma estrutura não pode ser

349
atribuída a determinada fase, na medida em que a construção do espaço não se processa por
fases de construção e fases de ocupação mas por um fluxo de construção de espaços. Os
movimentos não são livres de constrangimentos. As paredes dos bastiões, a circularidade, o
espaço aberto ou a passagem estreita condicionam o movimento ao mesmo tempo que
também constroem espaço, constroem o bastião e a passagem. Mas a construção que colocou
uma pedra e depois outra, que amassou a terra e a colocou, condiciona invariavelmente a
circulação dos corpos, as texturas, a luz, o toque. No entanto, a permanência do muro circular
pode desdobrar-se em formas de interacção dos corpos, do olhar com a parede:

“I put a picture up on a wall. Then I forget there is a wall. I no longer know what there is
behind this wall, I no longer know there is a wall, I no longer know this wall is a wall, I no
longer know what a wall is. I no longer know that in my apartment there are walls, and that if
there weren’t any walls, there would be no apartment. The wall is no longer what delimits and
defines the place where I live, that which separates it from the other places where other people
live, it is nothing more than a support for the picture. But I also forget the picture, I no longer
look at it, I no longer know how to look at it. I have put the picture on the wall so as to forget
there was a wall, but in forgetting the wall, I forget the picture, too.” (Perec, G., 1997: 39).

A relação entre paredes e pequenos objectos, entre a construção de muros e a


colocação de elementos (aparentemente) móveis de várias dimensões e matérias, a relação dos
corpos, os movimentos que potenciam e interditam, a luz, o brilho das coisas, integram as
equações necessárias para se pensar o espaço. A articulação imediata de espaços a funções, de
objectos a funções (e protagonistas) esvazia as possibilidades interpretativas. No ponto 9
deste trabalho procurámos desconstruir as associações directas que a Arqueologia tradicional
desenha entre bastiões e sistemas defensivos e entre estruturas circulares e casas ou cabanas.
A associação entre a forma dos recintos murados peninsulares e uma função determinada – a
de povoados fortificados – permitiu o estudo deste tipo de sítios como uma unidade. Quando
S. O. Jorge aponta as primeiras críticas a este modelo explicativo considera “todos os
povoados providos de estruturas pétreas que delimitavam espaços domésticos,
maioritariamente designados, pelos autores, como «estruturas defensivas»” (Jorge, S. O.,
2005 [1994]: 27) e que são consequentemente considerados pelas teorias “processualistas”
como indicadores de “complexificação social” e como pertencentes à “mesma realidade
cultural” (Ibid: 22). Neste sentido, espaços construídos genericamente semelhantes
denunciam a mesma função e nessa mesma linha apontam para realidades sócio-económicas,
350
políticas e religiosas semelhantes. Ou seja, o estudo de um sítio pode ser revelador do IIIº
milénio peninsular e assim extensível aos outros sítios.

Como V. O. Jorge referiu: “Durante muito tempo, uma pertinaz (e prejudicial)


tipologia de sítios arqueológicos, que redundava numa divisão entre habitats (na acepção,
note-se, usada em arqueologia, sobretudo inspirada nos franceses – em inglês exprime-se pela
palavra “settlement” – sítios ocupados pelos seres humanos, ou povoados) e outros locais
arqueológicos, como túmulos ou cemitérios, monumentos e locais de culto, lugares de “arte
rupestre”, serviu-nos de ecrã mistificador” (Jorge, V. O., 2003: 18). Este ecrã mistificador não
se refere à efectiva constatação que estas comunidades viviam em determinados espaços,
enterravam os seus mortos e inscreviam-se no território, deixando marcas, como os lugares de
arte rupestre. O problema reside na separação destes espaços por funções através da sua
forma. Ou seja, a forma, neste caso, fala da função. Nas margens desta narrativa ficaria, por
exemplo, a deposição de ossos humanos de Castelo Velho de Freixo de Numão. Na matriz
tradicional, este contexto encontra-se num espaço doméstico, extra muros (ou seja, fora da
muralha e neste sentido no exterior do espaço protegido). O sítio doméstico, o sítio defensivo
e o sítio do culto confundiram-se. A construção deste espaço em Castelo Velho deu-se não só
pela colocação de lajes e pela deposição de ossos humanos mas também pela colocação de
outros pequenos objectos como fragmentos cerâmicos e pesos de tear. Como S. O. Jorge
referiu: “A recente descoberta de uma estrutura ritual com ossos humanos, a par da exumação
de outras estruturas e áreas associadas a fauna carbonizada, parece vir contribuir para abrir um
novo campo de investigação, não só neste local, mas em estações congéneres: o estudo de
recintos do Calcolítico e da Idade do Bronze peninsular com funções socialmente especificas,
recintos que, não sendo objectivamente “sepulcrais” ou “habitacionais” (segundo a dicotomia
tradicional) partilham com os primeiros o processo de “manipulação social” dos mortos, e,
com os segundos, a representação simbólica de esferas de actividades ligadas à subsistência.”
(Jorge, S.O., 2005 [1998]: 105). Neste sentido, as barreiras que tradicionalmente se
impunham a determinados sítios que pela sua morfologia indicavam uma função: –
simbólica, defensiva, habitacional – diluem-se na construção de espaços que ganham
“sentidos” na interacção de diferentes coisas.

351
Arquitectura e Construção

Falamos até agora de arquitectura e construção. Será possível separar ou definir de


forma apartada estes dois termos?

“Utilizamos a pedra, a madeira, o cimento; com eles fazemos casas, palácios; é a


construção. A engenhosidade trabalha.

Mas, de repente, você me interessa fortemente, você me faz bem, sou feliz, digo: é
belo. Eis aí a arquitectura. A arte está aqui.” (Le Corbusier, 2009 [1923]: 125).

Em 1923 o arquitecto Le Corbusier define construção e arquitectura. Construção é a


utilização correcta dos materiais. O engenho, a técnica, o saber fazer. É a habilidade do gesto
com os materiais “de construção” que executam um projecto. É a elaboração de um edifício
previamente desenhado. Pela construção a “ideia” – desenhada em plantas e alçados, em
números e cálculos – é concretizada. Enquanto “engenhosidade” que trabalha, enquanto
habilidade que se pratica, é uma aprendizagem. Aprendizagem pela prática. É algo de
corpóreo. O corpo aprende como fazer pela repetição do gesto. A construção é a habilidade de
erguer, de criar em matéria a ideia concebida pelo arquitecto. A construção pressupõe o êxito,
ou seja, a execução com sucesso de um plano. A construção não permite o fazer e o refazer,
uma e outra vez. Não se apaga o traço para que outro se una aos existentes de forma diferente.

A Arquitectura é um sentimento. É arte. É a perfeição dos traços, a harmonia do


edifício. A Arquitectura impressiona. Tem autor. É individual. Permite a multiplicação e o
apagar de traços. Diz-se de um edifício. Foi construída pela habilidade dos construtores que
usaram a técnica e os materiais correctos correctamente. É a ideia. É dependente da
apreciação individual. Move-se por entre estilos, modas ou gostos arquitectónicos. É pensada.
O corpo permanece quieto. É um bailado de mãos no traço que inscreve o que vai ser
construído. É o início. A origem do edifício e a experiencia sensitiva do edifício (após
construção).

Em 1923, o arquitecto Le Corbusier divide assim construção e Arquitectura. A


dicotomia entre o projecto, o conceito e a execução, a prática, a concretização da ideia
original parece persistir em Arqueologia 9. Os moldes da Arquitectura clássica continuam a

9
T. Ingold (2000) enfatiza este aspecto no texto já por diversas vezes referido “Building, dwelling, thinking:
how animals and people make themselves at home in the world”.
352
enformar os estudos de Arquitectura em Arqueologia. Como temos vindo a enfatizar, o
modelo explicativo dos povoados fortificados assenta na crença da existência de um projecto,
de uma ideia, posteriormente concretizada segundo as linhas previamente definidas e num
curto espaço de tempo. A construção é sucedida pela ocupação, que ocorre apenas quando a
construção do edifício já se encontra elaborado. Neste sentido, a Arquitectura é entendida
sobretudo como a capacidade de conceptualizar um edifício, mas também como o edifício em
si, em particular quando nele se inscrevem certas características como monumentalidade ou se
podem descortinar nele atributos estéticos.

As explicações de sítios arqueológicos pré-históricos assentam na definição de fases


construtivas. Cada fase encontra-se datada. Assim o “edifício”, os muros, bastiões, estruturas
subcirculares foram construídos num dado momento ao qual se seguem fases de ocupação.
Durante as fases de ocupação não existe construção. Como foi referido, as unidades
construídas permanecem como cenário de um conjunto de actividades. As fases de ocupação
desdobradas num conjunto de actividades performatizadas pelas comunidades são
representadas, tal como as fases de construção, por imagens estáticas. O conjunto de
actividades que caracterizam a própria comunidade (como de moagem, metalúrgica, de
preparação de alimentos, da produção de utensílios, etc.) são escritas como inalteráveis ao
longo de centenas de anos tendo como pano de fundo as petrificadas construções.

Fig.11.11: Representação de um recinto construído por postes em madeira de Durrington Walls,


reproduzida por Richards, J., 2005:24
353
A imagem 11.11, reproduzida num volume de divulgação, escrito pelo arqueólogo
Julian Richards, apresenta a construção de Woodhenge. O monumento constituído por postes
de madeira (provavelmente o arquétipo de Stonehenge) aparece representado durante a sua
fase de construção. Construído de uma só vez é possível ver na imagem um conjunto de
elementos do sexo masculino a trabalhar na construção. A erguer os postes, a decorar os
postes, a transportar postes, a segurar instrumentos de trabalho, etc. Para além de representar
preconceitos de género óbvios, esta imagem desenha uma interpretação: a construção é feita
de uma só vez e entendida enquanto a erecção dos postes para que nela se processe a
ocupação (materializada em rituais ou actividades domésticas). A construção do espaço diz
apenas respeito à aparelhagem dos grandes materiais construtivos, neste caso dos postes em
madeira, no caso dos recintos murados, dos muros e bastiões, torres e estruturas subcirculares
em pedra e argila.

Mas regressemos à questão formulada por G. Perec: “Quando num quarto se muda a
posição da cama, poderá ser dito que se mudou de quarto?”. Pode o quarto (a divisão de
quatro paredes + peças de mobiliário) ser descrito como um quarto ao longo de centenas de
anos? Qualquer quarto é comparável com outro qualquer quarto? Um quarto sempre foi um
quarto? Provavelmente estas quatro paredes nem sempre albergaram uma cama e nessa
medida nem sempre foi um quarto. Mas sempre se dormiu entre quatro paredes numa cama?
Como definir um quarto? É o quarto construído quarto cada vez que mudamos a cama ou
sempre que sobre ela adormecemos?

Se consideramos a construção de espaços como um processo permanente, a distinção


entre Arquitectura e construção parece fazer pouco sentido. Os espaços vão-se arquitectando
pelas práticas de “habitação”. Isto não implica que se expliquem como polissémicos ou como
entidades individuais e neutras que “presenciaram” diversas actividades e indivíduos. Os
espaços, impossíveis de distanciar das teias de relações entre pessoas e coisas em que se
encontram “apanhados”, são permanentemente repensados, apreendidos de formas múltiplas,
são implicados numa variedade de gestos e práticas. As coisas mudam de sítio, os indivíduos
movimentam-se de formas diversas, e neste sentido não existe apenas um espaço, uma
estrutura, entendida como cenário. Os espaços modificam-se a cada gesto e assim a
construção é permanente. As peças de mobiliário (utilizamos, claro, uma nomenclatura
moderna de ordenação dos espaços, mas atentos aos condicionalismos da linguagem tentamos
pensar o espaço, não fora dos nossos preconceitos mas tentando identificá-los e desafiá-los),
354
as coisas que vivem connosco não são um elemento que se adiciona a uma construção mas
elas próprias fazem espaço, constroem espaço, conduzem movimentos, interagem com
sentimentos de pertença, de familiaridade, ou introduzem ruído e mal-estar.

McFadyen (2006) ao propor o entendimento da cultura material como Arquitectura,


tenta exactamente sublinhar o carácter relacional da construção de espaços que não se
materializa só pela feitura de um muro mas também pela conjugação de “pequenos
materiais” 10. No texto de 2006, referindo-se especificamente a sítios arqueológicos ingleses
neolíticos, a autora argumenta que os arqueólogos se debruçaram quase exclusivamente sobre
a arquitectura quando entendida como monumental. O monumento é descrito por vezes
mesmo antes da sua intervenção e a atenção do arqueólogo foca-se no produto final, no
monumento e não nos processos de feitura 11 (McFadyen, 2006:93). A autora sublinha que
apenas um estudo atento ao detalhe que não descure a relação das pequenas coisas pode
questionar a multiplicidade de espaços construídos continuamente. Em vez de olhar para as
pequenas coisas que simplesmente estavam lá (as que por exemplo se encostavam às paredes)
ou para o sítio como uma construção monumental que deve apenas ser estudado nos grandes
traços da arquitectura/monumento, deverá prestar-se um olhar atento ao detalhe, às relações,
evitando hierarquizar elementos pelo seu tamanho e durabilidade.

Como Álvaro Siza escreveu:

“Nunca fui capaz de construir uma casa. Não me refiro a projectar e construir casas,
coisa menor que ainda consigo fazer, não sei se acertadamente. A ideia que tenho duma casa é
a de uma máquina complicada, na qual em cada dia avaria alguma coisa: lâmpada, torneira,
esgoto, fechadura, dobradiça, tomada, e logo cilindro, fogão, frigorífico, televisão ou vídeo; e
a máquina de lavar, ou os fusíveis, as molas das cortinas, o fecho de segurança. As gavetas
encravam, os tapetes rompem-se, e os esforços do divã da sala.” (in, Llano e Castanheira,
1996: 94).

10
A autora pergunta: “What if we are to understand material culture as architecture? What if the production of
material culture was a part of the production of architecture? Why should material culture exclusively be
explained in terms of objects that were placed in, below or around a larger built object?” (McFadyen, 2006: 94).
11
“In some ways, this approach might be compared to seeing the end of a film and the only ever talking about
the end-point (a “finished” long barrow) being the point of the whole film, when we all know that films are
composed of many life-changing events for the characters involved. Plot twist and turn and change and
transform character’s lives and so it is not possible to understand the significance of different processes by
continually watching the end, or by attempting simply to reverse the order of the reels. Similarly, the film-maker
does not just make the end of the film: “making” a film is not just about producing a narrative ending.
(McFadyen, 2006: 93).
355
Siza elenca alguns dos objectos que conectamos com o espaço doméstico e destaca
sobretudo a vida desses próprios objectos. Um edifício, como organismo não é apenas a soma
das suas paredes e dos seus objectos como unidades estáticas, conservadas, inalteráveis. A
casa, como qualquer outro edifício, é a vida, é o rizoma de relações entre coisas e pessoas, é
uma experiência, um gesto, é habitação. As imagens seguintes referem-se à mescla de
materiais usados na construção de paredes e pavimentos. Mas como já referimos essa mescla
de coisas não interage apenas na feitura de um muro mas na construção do espaço. Sentir-se
em casa é habitar/construir esse espaço, senti-lo no jogo de forças e energias que se alteram a
cada passo.

Fig. 11.12: Exemplos de fragmentos cerâmicos incorporados em muros (Castanheiro do Vento),


pavimentos (Fez, Marrocos), paredes (Paul, Covilhã) e deposições (Castanheiro do Vento, desenho de Bárbara
Carvalho).

356
Sombra e Claridade

Um corpo em movimento, a construção do espaço, a criação de lugares, a colocação


de coisas, a feitura de muros, faz-se e provoca um jogo de luz onde apreensão da arquitectura
se move entre a sombra e a claridade (e entre todas as nuances perceptíveis pela retina
humana). “Em termos da percepção visual os limites ou barreiras e a sensação de espaço
interior ou exterior que lhe está associada dependem da luz nas suas distintas formas. (…) A
leitura plástica dos volumes, as massas e as superfícies exteriores, assim como o espaço
interior, resultam do controlo da antinomia luz/sombra. Interiormente, a entrada da luz numa
câmara arquitectónica, é determinada pelo nível de abertura dos vãos, pela sua natureza, pela
sua localização e orientação, e pelas várias expressões de chegada e de canalização: directa,
indirecta, velada, reflectida, difusa, frontal, parietal ou zenital.” (Pinto, 2007: 35-36). A
incidência ou não de luz oculta ou revela espaços, pode provocar a estranheza do não
reconhecimento ou o conforto do espaço familiar (podendo este último situar-se na penumbra
ou na luz aberta; a luz/sombra não se traduz nos binómios: conhecido/desconhecido;
familiar/perigoso).

A história da Arquitectura conta como os diversos arquitectos ou estilos entenderam a


luz e a sombra e como criaram espaços onde um e outro eram sublinhados (claro que na
indivisibilidade de espaços-sombra e espaços-luz) (Ibid: 40-47). As igrejas românicas apenas
recebiam pequenas frestas nas suas paredes. O espaço-sombra do interior indicava o caminho
ao mistério divino, incentivando a meditação. Já as catedrais góticas, com os seus longos
vitrais, deixavam o interior revelar-se enquanto um espaço-luz, onde Deus se manifestava. No
Renascimento o rigor da geometria e o ritmo das simetrias proporcionam espaços preenchidos
pela luz. O barroco encenou o jogo dramático entre luz e sombra que transforma o interior das
igrejas em espaços míticos, com recantos e espaços revestidos a dourado. Pinto (op.cit.: 44)
continua a sua incursão pelos espaços-luz e espaços-sombra com a Modernidade e a
desmaterialização da parede. O uso do ferro e do vidro cria espaços permeáveis à luz. O
arquitecto Le Corbusier, amante das formas geométricas e dos limites rigorosos das
superfícies, ensaiou a projecção de sombra em superfícies rectas em que se revelava sempre a
exactidão dos traços; Pinto (op.cit.: 44) refere também a obra Pavilhão de Barcelona de Mies
van der Rohe onde “ a enigmática caixa de luz opalina […] situada na transição entre o
exterior e o interior [...] não deixa de ter um alcance holístico de imaterialidade espiritual e de

357
captação da essência metafísica [o] que reflecte a influência em Mies do neoplatonismo
cristão.”

Fugindo aos espaços-luz e aos espaços-sombra que podem ser seguidos na história do
Ocidente, atendamos por instantes à obra de Tanizaki (2008), arquitecto japonês, que se
propôs contar ao ocidente acerca da importância da sombra na “Terra do Sol Nascente”. O
autor compõem um “elogio da sombra” na estética japonesa. Presta atenção à construção da
casa – o telhado, o jardim, as aberturas, a divisão dos espaços interiores, assim como à
decoração dos espaços interiores, à iluminação (a que vem de fora e a que se procura por
meios artificiais no interior) e à posição de cada um dentro da casa (por exemplo, à mulher
são reservados espaços sombrios e recônditos). A sombra traduz-se também no próprio rosto e
corpo feminino; o pormenor da pintura facial (o dentes são pintados de cor escura) e a
indumentária da mulher é sempre feita em cores neutras.

O papel da sombra no mundo tradicional japonês joga-se também ao nível dos


objectos (como a taça da sopa); releva-se os traços de “usura” que os objectos guardam, o
tempo da acção, do toque que apaga e desvanece o brilho, brilho esse que normalmente está
conectado com o que é novo. Tanizaki adverte: “Não é que tenhamos uma reserva a priori
relativamente a tudo o que brilha, mas, a um brilho superficial e gelado, preferimos sempre os
reflexos profundos, um pouco velados; seja nas pedras naturais, seja nas matérias artificiais,
esse brilho ligeiramente alterado que evoca irresistivelmente os efeitos do tempo. “Efeitos do
tempo”, é o que de certo soa bem, mas, para dizer a verdade, é o brilho produzido pela
sujidade das mãos. Os Chineses têm uma palavra para isso, “o lustro da mão”; os Japoneses
dizem “usura”: o contacto das mãos no decorrer de um longo uso, o roçar, sempre aplicado
nos mesmos locais, produz com o tempo uma impregnação gordurosa; noutros termos, este
lustro é, pois, a sujidade das mãos.” (Tanizaki, 2008: 25-26).

A necessidade de luz, de polir os objectos, da correspondência de uma paleta de cores


às quais se associam objectos ou divisões específicas de um edifício nem sempre mereceu
atenção por todos os construtores de espaço. Claro que artistas e pintores sempre perceberam
o efeito da cor na criação de emoções (de calor ou de frio, por exemplo) ou na criação de
ilusões, na criação de profundidade. A equação de espaços-luz e espaços-sombra, o trazer à
escrita possibilidades cromáticas não pretende problematizar os efeitos estéticos ou cénicos
das arquitecturas sobre as quais nos debruçamos neste trabalho. Os autores evocados neste

358
ponto, quase no final, foram necessários para pensar limites, barreiras, fronteiras. Limites que
não são apenas feitos de muros ou de interditos estipulados pela comunidade como temos
vindo a falar. Mas podem também ser limites visuais, de apreensão do espaço, potenciam
diversas formas de olhar e permitem, mais uma vez, questionar o velho problema do que se vê
neste sítios, de onde em particular e por quem especificamente. Aqui introduzimos mais uma
variável. A penumbra, a luz directa, a luz artificial de qualquer estrutura de combustão, de
uma tocha, do fogo. A luz do Sol que irrompe pelo rasgão da parede ou pela passagem aberta
ou apenas a sombra da luz que entra pela janela e se reflecte no interior do espaço através da
porta. A luz que os espaços não cobertos deixam passar. A estrutura que se encontra protegida
no topo por materiais perecíveis. A cor da terra, ou a terra pintada. O fechar e o abrir de
aberturas. O retirar de coberturas. O reconstruir e construir. A noite. Os limites, o dentro e o
fora, extravasam os limites dos muros e os limites deste texto. “If space is a material thing,
does it have boundaries? If space has boundaries, is there another space outside those
boundaries? (…) If space is not matter, is it merely the sum of all spatial relations between
material things? (…) Is architecture the concept of space, the space, and the definition of
space?” (Tschumi, 1996: 53-55).

Um recinto estabelece limites, um dentro e um fora e cria um feixe infinito de


possibilidades de incidência de luz, de efeitos cromáticos. Considerámos a Grande Estrutura
Circular como um recinto, metáfora do recinto ou recintos de Castanheiro do Vento. Este
trabalho também poderia ser dito como um recinto. Criou um dentro e um fora. Esteve fora do
recinto de Castanheiro do Vento e voltou a estar dentro para sair novamente. Mas os limites
foram sendo construídos em movimentos curvos

359
Fig. 11.13: Reprodução de uma página do livro Investigações Geométricas de Gonçalo M. Tavares
(2005: 55).

360
“…isto já estava aqui antes de ti”

“Subitamente entrevi que tudo aquilo tinha estado à minha espera sem eu o saber, e que
bastara um leve erguer de olhos para o reconhecer num misto de incredulidade e plenitude,
pois, mesmo sem conseguir ainda dizê-lo, sabia que aquela paisagem, que só naquele
momento se me tinha manifestado, me havia precedido desde sempre, salvando os meus dias
(verso de Goethe, Alexis und Dora).” (Molder, 2009: 14).

Fig. 11.14: Castanheiro do Vento. Fotografia Sérgio Gomes, 2010

Aquela paisagem, Castanheiro do Vento, precedeu-me “desde sempre”, e no encontro


foi “salvando os meus dias”, fazendo os meus dias. O que estava lá e o que agora aqui está
não têm qualquer relação. As relações emergem no que ainda é. São como as duas cidades de
Maurília. Mas não são apenas dois sítios de Castanheiro do Vento. Desdobram-se nas
interpretações. Os sítios reencontram-se no momento em que os “vemos” pela primeira vez, a
cada movimento, a cada ano, a cada dia, nas múltiplas relações com as múltiplas pessoas e

361
múltiplas coisas que cruzaram os seus caminhos com Castanheiro do Vento e assim comigo.
Aquela paisagem que “me havia precedido desde sempre” subitamente desencadeia o espanto.
O espanto não apenas do momento da “descoberta” mas a cada momento, a cada passagem do
colherim. A Grande Estrutura Circular, os seus limites, as suas estruturas internas, a sua
articulação com os muretes e bastiões, animou os corpos quentes e, com espanto, inscrevi-mes
nestas páginas ensaiando linhas interpretativas.

A descoberta, em Arqueologia, associada à própria prática da disciplina, emerge da


dicotomia que dá corpo à Arqueologia ao mesmo tempo que a posiciona historiograficamente
e lhe retira volume e peso no pensamento crítico contemporâneo: superfície e profundidade
(ou luz e escuridão). A descoberta passa sobretudo pela remoção de terra para que o passado,
o que está enterrado, se revele. É o que está escondido, o segredo, que descansa sobre os
nossos pés. O que se traz à luz do conhecimento é transformado em passado. No entanto, “o
passado está à nossa volta” (Thomas, 2004) ou em última análise o “passado não existe”
(Jorge, V. O.). Porque o passado é construído, o passado é o que ainda é hoje, Castanheiro do
Vento é o que foi e o que ainda é. Como recentemente V. O. Jorge escreveu: “Em vez de
querer re-representar esse passado mítico, é muito mais interessante criar a vivência colectiva
de um espaço outro, de um espaço visto de esguelha, de um espaço de viés, que é o espaço do
sítio arqueológico, se ele não quiser ser um túmulo ou uma realidade amorfa.” (Jorge, V. O.,
2011).

Entrei em Castanheiro do Vento pelo conceito genérico de “Arquitectura”. A


arquitectura de Castanheiro do Vento permitiu reflectir acerca de uma ruína que reconheço
como o “edifício” que foi e o “edifício” que é, desdobrando-se em possibilidades.
Possibilidades interpretativas, possibilidades de articulações, de relações, de coisas e de
pessoas, de sítios e de paisagens, de intensidades de luz, de diferentes formas de sentir e de
habitar o espaço hoje. O estudo da arquitectura permitiu convocar a análise atenta ao detalhe
das pequenas materialidades, dos fragmentos cerâmicos e dos objectos líticos, não apenas
estudando-os per se, mas de forma integrada nos movimentos construtivos que Castanheiro
do Vento pode erguer. Permitiu o estudo de diferentes espaços como bastiões e estruturas
circulares através da possibilidade de movimentos e gestos, o que desarticula a ligação
aproblemática elaborada pela Arqueologia tradicional entre forma e função. Permitiu seguir a
linha interpretativa de Castanheiro do Vento enquanto um labirinto, propondo este espaço
mais como um espaço de imersão do que de contemplação. Permitiu falar destas
362
comunidades, agro-pastoris, como habitantes de Castanheiro do Vento. De comunidades que
se sentiam em casa em Castanheiro do Vento.

Fig. 11.15: Castanheiro do Vento, 2010. Vista sobre a Grande Estrutura Circular 1.

“Durante a infância foram muitas as experiências de descoberta da “primeira vez”, em que


ouvia uma voz dizer-me: “isto já estava aqui antes de ti”. Evidência invencível que se soltava
da maravilha das ruínas dispersas pela cidade de Lisboa, sinal equívoco de um apelo ao qual
tentava responder pelo devaneio. No entanto, embora fosse dada, e muito, a essas travessias
nostálgicas dos lugares estranhos aos quais pertencia, a visão daquela paisagem, mesmo que
se possa de uma ou outra maneira vincular a estas travessias, era distinta. Não, não se tratava
de uma experiência de déjà-vu, embora tivesse alguma coisa a ver com a melancolia de uma
vie antérieure. Por ela compreendia que não só bastava uma leve deslocação do olhar para ver
o inapercebido, como também, antes de olhar para o mar, o mar estava à minha espera, isto é,
outros olhos o tinham surpreendido antes. Aquela paisagem era já, tinha-se tornado, o
conteúdo de uma transmissão.” (Molder, 2009: 14-15).

363
Se aquela paisagem “me tinha precedido desde sempre” “salvando os meus dias”,
aquela paisagem era já, tinha-se tornado, o conteúdo de uma transmissão. Castanheiro do
Vento terá de ser entendido enquanto um dispositivo de transmissão. De transmissão de
conteúdos de e para as diversas comunidades que habitaram aquele espaço, que construíram
aquele espaço. A construção activa do espaço, como tem sido sublinhado, activou
mecanismos de promoção de coesão social e de criação de identidades colectivas. Na segunda
metade do IIIº/ primeira metade do IIº milénios a.C., a construção de uma arquitectura, pela
feitura de três muretes de tendência concêntrica interrompidos por bastiões e passagens, pela
elaboração de estruturas genericamente circulares de várias dimensões, pela feitura e uso de
vasos cerâmicos, pela manipulação de fragmentos cerâmicos ou pela sua inserção nos
dispositivos construídos, moldou também estas comunidades, pela transmissão de modos de
fazer, de modos de circular e de dizer.

Espaços como Castanheiro do Vento, ditos especiais, mas não únicos e isolados.
Como já referi, o estudo de J. M. Cardoso (2007) permitiu a identificação de sítios
semelhantes. No entanto, em comunidades semi-sedentárias, sítios permanentes como
Castanheiro do Vento, teriam sido pólos agregadores de sentidos e de pessoas, pontos
estruturadores do “povoamento” regional e centros de interacção com outros grupos e outros
materiais. Nada aponta no chamado “registo arqueológico” para a existência de acentuadas
desigualdades sociais ou para uma hierarquização social instituída. Provavelmente diferentes
tarefas, acções, actividades, gestos ou ditos fossem performatizados ou dirigidos por
indivíduos (ou grupo de indivíduos) específicos.

No entanto, Castanheiro do Vento, enquanto conteúdo de uma transmissão, existe


ainda como base deste trabalho e de transmissão de formas de estudar arquitecturas. O olhar
nostálgico que a imagem de um Castanheiro do Vento pretérito desperta não pode também ser
ignorado. Se, por um lado, estou consciente do perigo da nostalgia por um passado perdido
(característico da modernidade ocidental), não posso disfarçar a nostalgia que Castanheiro do
Vento me desperta, pelo que foi no passado que construí ou pelo que foi no passado que vivi.
Castanheiro do Vento sempre foi passado e talvez por isso mesmo nunca o pode ser. Apenas o
posso entender como ausência ou talvez como o tempo por vir. Talvez seja agora a hora de
colocar um ponto final nas incursões curiosas de um percurso pessoal, num sítio que me
precedeu, mas que sempre esteve à minha espera.

364
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(última consulta: 18 de Janeiro de 2010)

VV.AA. 2010. “Falemos de casas…” em Portugal, Lisboa:Athena

381
382
ANEXOS

© JoanaAlvesFerreira 2009

383
384
Sumário:

1. Intervenção da GEC1 durante Junho de 2010 387

2. Representação dos níveis identificados 390

3. Estudo da fragmentação por quadrícula 393

4. Restos faunísticos recolhidos na GEC1 402

5. Análise do conjunto artefactual 403

5.1. Conjunto cerâmico 403

5.1.1. Metodologia de análise 403

5.1.2. Análise do conjunto cerâmico 407

5.1.3. Classificação morfológica 413

5.1.4. Classificação de organizações decorativas 423

5.1.5. Fotografias de cerâmicas decoradas com a técnica de incisão

426

5.1.6. Desenhos de forma 429

5.1.7. Análise do conjunto cerâmico proveniente do exterior da


GEC1 439

5.2. Metodologia e análise do conjunto lítico 442

5.3. Placas de xisto gravadas 448

385
386
Grande Estrutura Circular 1

1. Intervenção da GEC1 durante Junho de 2010

Objectivos

Fig. 1: Área norte da GEC1 intervencionada em Junho de 2010.

Em Junho de 2010 procedeu-se a uma pequena intervenção da GEC1 com objectivos muito
específicos, tal como ficou descrito no ponto 10.2. O primeiro conjunto de imagens refere-se à
escavação do alinhamento que define a estrutura, realizada a partir do seu interior. No espaço
intervencionado o limite da estrutura não era claro. Duas lajes de xisto inflectiam para o interior da
estrutura e colocou-se a hipótese de poderem ter pertencido à definição da linha que desenha a
estrutura e por razões diversas teriam sido deslocadas do seu sítio original. A escavação permitiu
observar que a espessura sedimentar era muito reduzida o que indica processos pós-deposicionais
intensos nesta área. Revelou que a camada 3 repousava imediatamente no afloramento rochoso.
Permitiu também observar uma falha no substrato rochoso. Este corte poderá ter origem antrópica e
terá ocorrido no momento de construção da estrutura de forma a permitir o encaixe de lajes de xisto a
protecção do lado externo das mesmas.
387
Fig. 2: Área noroeste da GEC1 intervencionada em Junho de 2010

A segunda área intervencionada pretendia estudar uma curiosa concentração de fragmentos de


barro de revestimento detectados durante a campanha de escavação de 2008. Assim optou-se por
intervencionar apenas uma quadrícula o que resultaria na criação de um corte estratigráfico útil na
compreensão da área que se apelidou Estrutura 2. A intervenção permitiu a recolha de centenas de
fragmentos de barro de revestimento, um vaso inteiro, um punção em cobre, alguns fragmentos
cerâmicos e fragmentos de fauna. Foram detectadas duas bolsas de terra escura que posteriormente se
revelaram mais extensas do que a intervenção de Junho fazia crer. Os depósitos removidos assentavam
na linha que delimita a estrutura e prolongavam-se para o seu exterior. A leitura do corte estratigráfico
conseguido durante esta intervenção apontava para um depósito de fragmentos de barro de
revestimento assente numa depressão ladeada a leste por um depósito de cor amarela, argiloso,
compacto e a oeste por uma bolsa de terra escura. No entanto, a escavação empreendida em Julho de
2010 veio complicar estas observações tal como tentamos escrever no ponto 10.2.

388
Fig. 3: Área sudeste da GEC1 escavada em 2010.

O terceiro e quarto objectivos desta intervenção encontram-se em íntima conexão, na medida


em que se enunciavam no estudo das relações entre os depósitos presentes no interior e no exterior da
GEC1. Assim, foi realizada uma pequena escavação na área a sudoeste da estrutura. No interior da
estrutura foram registados diferentes níveis que foram abordados no ponto 10.2. No exterior da
estrutura verificou-se um depósito constituído por um sedimento de matriz areno-argiloso, de cor
amarelo acastanhado claro com inclusões frequentes de pequenas lajes de xisto. O registo de depósitos
com características distintas no interior e exterior da estrutura permite afirmar que as lajes que
definem o alinhamento da GEC1 não cortam um depósito existente, mas os sedimentos que lhe
encostam relacionam-se com a “vida” da estrutura.

Fig. 4: Área sudoeste da GEC1 intervencionada em Junho de 2010.

389
2. Representação dos níveis identificados

Fig. 5: Extensão da camada 3. Foi identificada em toda a estrutura com excepção da área
correspondente à Estrutura 2, assinalada na fotografia por um pequeno círculo com preenchimento de
cor amarela.

Fig. 6: Representação da área onde se identificou o nível 1. Estende-se por grande parte da
área interna da GEC1 com excepção dos limites a norte e na área correspondente à Estrutura Circular
2
390
Fig. 7: O nível 2, caracterizado por um depósito onde se registou a presença de bastantes
inclusões de pequenas lajes de xisto localiza-se genericamente no centro norte da estrutura, e estende-
se por debaixo da linha que define a GEC1. Estamos já perante um depósito que antecede a construção
propriamente dita da estrutura.

Fig. 8: O nível 3 apenas foi localizado no extremo oeste da GEC1. Encosta ao nível 2 e será
também anterior à deposição das lajes de xisto que definem o alinhamento de morfologia subcircular
da GEC1

391
Fig. 9: O nível 4 caracteriza-se pelo sedimento presente entre os interstícios do próprio
afloramento rochoso. A sua representação nestas duas áreas poderá ser enganador na medida em que
este nível se apresenta como uma camada natural resultado da degradação do substrato de xisto. No
entanto não é de descartar a possível escavação dos interstícios do afloramento e a colocação
deliberada de materiais nas suas fissuras tal como foi registado em Castelo Velho de Freixo de
Numão. Também, como já foi comentado aquando da apresentação dos resultados da escavação
empreendida em Junho de 2010, o substrato rochoso poderá ter sido afeiçoada, esculpido para a
criação/construção da Grande Estrutura Circular 1.

392
3. Estudo da fragmentação por quadrícula

Aquando da análise do estado de conservação das arestas e o tamanho dos fragmentos


da GEC1 no ponto 10.2 remetemos para anexo o estudo por quadrículas em relação a cada
nível registado. Quando efectuamos o estudo da fragmentação por níveis verificamos que as
diferenças entre níveis não eram significativas. No entanto, como cada nível tinha sido
registado por quadrícula pensamos necessário desdobrar o estudo e tentar perceber até que
ponto a homogeneidade dos primeiros gráficos se estendia ao espaço pelo qual se estendia
cada depósito. Tivemos já oportunidade de discutir no ponto 10.2 as particularidades que cada
quadrícula mostrava no estudo do estado de conservação das arestas e tamanho dos
fragmentos cerâmicos na camada 3. Optamos por apresentar em anexo os resultados obtidos
para os níveis seguintes. Não iremos proceder à procura de explicações que poderão estar na
base dos resultados obtidos nos gráficos pois estas não poderiam ser baseadas no registo. Uma
multiplicidade de factores poderá estar na origem destas diferenças entre níveis. Assim
apresentaremos apenas os gráficos que nos suscitaram interrogações em número superior a
possíveis explicações. Por vezes, as percentagens podem também ser viciadas pelo número de
fragmentos, ou seja, ou seja, uma amostra de 4 fragmentos cerâmicos poderá revelar números
percentuais muito altos mas não significativos em termos da análise da estrutura ou de cada
nível.

393
Nível 1

Gráfico 1: Representação da frequência percentual de arestas boleadas por quadrícula em relação com a média
obtida para o nível 1. Parece que as percentagens mais elevadas de fragmentos com as arestas boleadas se
localizam nas áreas limítrofes da estrutura. Salienta-se que apenas foi recolhido um fragmento na quadrícula
93.25 o que se traduz no número percentual de 100.

394
Gráfico 2: Representação gráfica do tamanho dos fragmentos cerâmicos por quadrícula (a gráfico a azul refere-se
aos fragmentos de pequeno tamanho: <3cm; o gráfico a vermelho os fragmentos entre 3 e 7com e o gráfico a
verde os fragmentos de grandes dimensões, >7cm) e sua relação com os valores médios calculados para o nível
1. É de referir que na quadrícula 94.26 apenas se registaram 4 fragmentos e na quadrícula 93.25 identificou-se
um fragmento como já referimos. Destaca-se no gráfico a alta percentagem de fragmentos cerâmicos de média
dimensão, identificados na quadrícula 95.26, localizada sensivelmente na área central da estrutura.

395
Nível 3

Gráfico 3: O nível 3 parece ser aquele que apresenta uma grande diversidade de resultados obtidos por
quadrícula. Na análise do estado de conservação das arestas destacamos a quadrícula 94.24 pelo elevado número
de arestas boleadas. Esta quadrícula situa-se no limite sudoeste da estrutura.

396
Gráfico 4: Em relação à análise do tamanho dos fragmentos por quadrícula no nível 3 quase todas parecem
apresentar especificidades próprias. As quadrículas 97.25 e 97.26 revelam uma percentagem elevada de
fragmentos cerâmicos de pequeno tamanho em relação à média apontada para o nível 3. Ambas se situam na área
norte da estrutura. A quadrícula 96.25 destaca-se pelo elevado número de fragmentos de grande dimensão. Esta
quadrícula situa-se na área noroeste da estrutura sem estabelecer contacto com os limites da estrutura.

397
Nível 2

Gráfico 5: A relação de arestas boleadas por quadrícula no nível 2 apresenta dois blocos. Duas quadrículas
apresentam um número elevado de arestas boleadas (superior a 50%) contrastando com as outras duas que não
ultrapassam os 24% de arestas boleadas. As quadrículas agrupadas por este gráfico não são no entanto contíguas
no espaço. Poderão indicar um conjunto de acções que dificilmente se poderão articular.

398
Gráfico 6: Em relação à análise do tamanho dos fragmentos cerâmicos destacamos as quadrículas 95.24 e 95.25
pela elevada percentagem de fragmentos de grande dimensão. Localizam-se de forma contígua, partindo do
limite oeste da estrutura em direcção ao seu interior. Contrastam com os resultados obtidos para a quadrícula
96.24 que revela uma presença elevada de fragmentos de pequena dimensão. Note-se que esta quadrícula é
contígua à quadrícula 95.24 que desçamos exactamente pelo elevado número de fragmentos de grande tamanho.

399
Nível 4

Gráfico 7: Relação de arestas boleadas por quadrícula tendo em consideração a média de arestas boleadas e não
boleadas no nível 4.

Gráfico 8: Relação do tamanho dos fragmentos cerâmicos por quadrícula atendendo à média dos 3 grupos
identificados no nível 4.

400
Os fragmentos recolhidos nos interstícios do afloramento rochoso são pouco numerosos e não foi
detectada qualquer deposição/colocação de fragmentos cerâmicos nestas quadrículas. Apresentamos os
gráficos obtidos apenas enquanto exercício teórico na medida em que não poderá ser questionada
nenhuma das variáveis representadas. Servem apenas para caracterizar a amostra.

401
4. Restos faunísticos recolhidos na GEC1

O. Médio Micro
Sus sp. Bos sp. Alosa sp.
Cuniculus porte fauna
Fragmento
haste 1
Fragmento
molar 1
Escápula
esquerda 3
Metapodo
2
Vértebras
5
Costela
4
Calcâneo
1
Falange Lateral
1
Fragmentos
indeterminados 6 1
Quadro 1: Restos faunísticos identificados na GCE1. Resultados fornecidos por Cláudia Costa

Os restos faunísticos identificados na Grande Estrutura Circular 1, resumidos no quadro


anterior, revelam especificidades concretas se comparados com outros conjuntos faunísticos
identificados em outros contextos, como por exemplo, no espaço interno dos Bastiões. Começamos
por destacar a presença de Alosa sp. (sável/savelha) e do fragmento de haste de Bos sp. exemplares
únicos no sítio de Castanheiro do Vento. Também se lê facilmente na tabela a preponderância de
fragmentos identificáveis da espécie Sus sp. Em comparação com os contextos tipo Bastião não existe
discrepâncias. No entanto, a presença maioritária de Sus sp. permite individualizar a GEC1, tendo em
consideração que nas estruturas tipo Bastião a espécie Bos sp. é também muito expressiva. Realçamos
também que se encontram ausentes no quadro espécies como Ovis/Capra; Cervus elaphus, Equus sp. e
animais de grande porte identificados nas unidades tipo bastião.

402
5. Análise do conjunto artefactual

5.1. Conjunto cerâmico

5.1.1. Metodologia de Análise

O conjunto artefactual analisado provêm da Grande Estrutura Circular 1 e resulta de três


intervenções arqueológicas. Aqui apresenta-se os resultados que em texto ficaram ausentes por, neste
momento, não fazerem parte do discurso criado para esta estrutura de Castanheiro do Vento. Optamos,
no entanto, por concretizar em Anexo as informações recolhidas pelo questionário da base de dados de
Castanheiro do Vento, elaborada por João Muralha Cardoso. Durante o processo de análise cerâmica
também tivemos em consideração um pequeno conjunto de fragmentos cerâmicos do exterior da
GEC1. No entanto, este conjunto não foi tido em consideração no ponto 10.2 aquando da análise da
GEC1 pois provinha de uma área cuja intervenção ainda se encontra em curso. Contudo iremos
também apresentar neste espaço a sistematização da informação, muito provisória, deste conjunto de
fragmentos cerâmicos.

Como já referimos num outro momento em que procedemos à análise de um conjunto


artefactual de Castanheiro do Vento (Vale, 2003) a cada fragmento corresponde uma ficha individual.
Esta ficha segue as propostas de análise de vários autores, contudo, é através dos estudos de Susana
Oliveira Jorge (1986) que os critérios de análise de cerâmica em Castanheiro do Vento se estruturam.

O primeiro passo passou pela divisão da amostra em bojos, bordos, colos, fundos e asas (os
últimos dois inexistentes neste conjunto), alvo posteriormente de uma análise técnica. A análise
técnica dos fragmentos cerâmicos assenta em quatro items descritivos: pasta; estado e tratamento de
superfície e cor. Estes pontos permitiriam perceber acerca de técnicas de fabrico do vaso,
equacionando a escolha do barreiro, a preparação da pasta, a moldagem do vaso, o acabamento e
cozedura do mesmo. No entanto, a simplicidade na forma de perguntar e a ausência de estudos outros
complementares inviabilizaram a inferirão acerca de técnicas de fabrico. Além disso, o nosso inquérito
distancia-se cada vez mais das perguntas que compõem as fichas individuais da base de dados. No
entanto, apesar desta ressalva já materializada também em texto 10.2 apresentamos os resultados
obtidos.

A análise do tipo de pasta tem em consideração o tipo de elementos não plásticos (e.n.p)
detectáveis a olho nu, assim como o calibre preponderante dos mesmos. A proporção dos e.n.p e sua
distribuição na pasta, assim como a ligação da própria argila permitem a equação da textura:
compacta, quando a pasta é consistente mas a distribuição dos e.n.p. não é homogénea; friável, quando
403
a pasta denota problemas de compactação, homogénea, quando a pasta é compacta e os e.n.p. se
encontram distribuídos de forma regular, geralmente de pequeno calibre.

Pasta

Tipo de
E.N.P. Calibre Textura

<0,5mm
Quartzo (pequeno) Compacta

0,5-1mm
Mica (médio) Friável

Feldspato >1mm (grande) Homogénea

Xisto

Granito

Cerâmica

A análise das superfícies dividiu-se entre estado de conservação e técnicas de tratamento.


Assim, em relação ao estado de conservação registou-se se as superfícies externas e internas se
encontravam corroídas ou preservadas (no caso de uma superfície se apresentar parcialmente corroída
ou preservada optou-se por considerar o estado de conservação preponderante). Em relação às arestas
foram divididas entre boleadas/não boleadas (note-se que o estado das arestas pode ter sido provocado
por factores tafonómicos mas também pela gesto intencional de afeiçoar uma aresta ou as arestas de
um fragmento cerâmico).

Estado da superfície

Corroído
Exterior
Preservado

Interior Corroído

Preservado

As técnicas de tratamento de superfície que compõem o nosso inquérito resumem-se a:


alisamento, polimento e ausência ou tratamento incipiente da superfície. A técnica de alisamento
traduz-se pela regularização das superfícies dos recipientes quando a pasta ainda se encontra húmida.
404
A técnica de polimento confere às superfícies um certo brilho causado por uma acção de fricção sobre
a pasta seca.

Tratamento da superfície

1. Alisado

Exterior 2. Polido

3. Rugoso

1. Alisado
Interior
2. Polido

3. Rugoso

Foi também perguntado acerca da cor dos fragmentos. Primeiro registou-se se a coloração do
fragmento era ou não homogénea pelas superfícies para depois se identificar a cor predominante nas
superfícies externas e internas.

Cor 1. Beije

Homogéneo 2. Castanho
Aspecto Exterior
Não homogéneo 3. Cinzento

Homogéneo 4. Laranja
Aspecto Interior
Não homogéneo 5. Vermelho

Distinguimos as seguintes categorias cromáticas, atendendo à coloração externa e interna dos


fragmentos: 1.1 (beije/beije), 1.2 (beije/castanho), 1.3 (beije/cinzento), 1.4 (beije/laranja), 1.5
(beije/vermelho), 2.1 (castanho/beije), 2.2 (castanho/castanho), 2.3 (castanho/cinzento), 2.4
(castanho/laranja), 2.5 (castanho/vermelho), 3.1 (cinzento/beije), 3.2 (cinzento/castanho), 3.3
(cinzento/cinzento), 3.4 (cinzento/laranja), 3.5 (cinzento/vermelho), 4.1 (laranja/beije), 4.2
(laranja/castanho), 4.3 (laranja/cinzento), 4.4 (laranja/laranja), 4.5 (laranja/vermelho), 5.1
(vermelho/beije), 5.2 (vermelho/castanho), 5.3 (vermelho/cinzento), 5.4 (vermelho/laranja), 5.5
(vermelho/vermelho)

405
O passo seguinte na base de dados consistia em classificar os fragmentos em decorados / não
decorados. Posteriormente era registado a técnica decorativa e o motivo. Em relação ao estudo das
técnicas decorativas devemos salientar que todas foram realizadas antes da cozedura. Não foram
detectadas a técnica de decoração plástica e a técnica de excisão. O conjunto artefactual estudado
permitiu registar as técnicas: incisão; impressão; puncionamento e espatulamento.

A técnica da incisão consiste em riscar a pasta com um estilete de forma contínua. A repetição
de movimentos nunca desenha motivos idênticos porque são elaborados, na medida em que cada linha,
cada canelura é riscada individualmente. Consideramos as caneluras no grupo da técnica de incisão,
tendo em consideração o estudo de S. O. Jorge (1986: 58), ao contrário de Séronie-Vivien (1982:39),
que as coloca no grupo das impressões, já que as incisões podem ser largas ou estreitas, profundas ou
superficiais, consoante o estilete utilizado e a intenção pretendida.

A técnica da impressão define-se pela utilização de uma matriz, que por pressão,
perpendicular ou oblíqua à superfície do recipiente, imprime diferentes motivos decorativos;
distinguimos a impressão penteada, ungulada e de cana.

O puncionamento diferencia-se da impressão apenas pelo utensílio utilizado, ou seja, não


utiliza uma matriz mas sim um estilete, cuja extremidade pode ter diferentes formas, o que permite,
também, a obtenção de vários motivos. Ambas as técnicas, impressão e puncionamento, caracterizam-
se sobretudo pela repetição de motivos rigorosamente idênticos de forma contínua, descontínua,
arrastada (definidas por um movimento de vai-vem, no qual o utensílio utilizado perde ou não o
contacto com a superfície) ou oblíqua arrastada (o movimento de vai-vem é realizado com o estilete ou
pela matriz em posição obliqua em relação à superfície do recipiente).

O último grupo refere-se ao espatulamento. Consiste na acção de friccionar intensivamente a


superfície, provocando bandas decoradas rectilíneas ou curvilíneas, paralelas ou perpendiculares ao
bordo, surgindo normalmente associada a outras técnicas decorativas e raramente é identificada como
a única técnica presente num recipiente.

Tivemos também em consideração o comprimento, largura e espessura de todos os


fragmentos, medidos em milímetros. Atendendo às dimensões dos fragmentos cerâmicos foram
divididos em pequenos (< 3cm), médios (3 a 7cm) e grandes (>7cm) cuja análise é apresentada no
corpo de texto deste trabalho (ponto 10.2)

406
5.1.2. Análise do conjunto cerâmico

Apresentaremos em seguida os dados obtidos segundo o inquérito proposto. Não


consideraremos os itens que foram apresentados aquando da análise da Grande Estrutura Circular 1
discutidos no ponto 10.2.

Gráfico 9: Relação de bojos, bordos e colos identificados na GEC1 em números absolutos

O conjunto cerâmico da Grande Estrutura Circular, constituído por 2818 fragmentos


cerâmicos, divide-se em 2603 bojos, 192 bordos e 23 colos, o que se traduz em 92,27% de bojos, e
apenas 6,8% bordos e 0,8% colos.

Gráfico 10: Estado de preservação das superfícies externa/interna em números absolutos

Na sua maioria encontram-se preservados. Os números absolutos apresentados no gráfico


dividem-se nas seguintes percentagens: 1.Corroído/1.Corroído – 10,4%; 1.Corroído/2.Preservado –
6,92%; 2.Preservado/1.Corroído – 7,49%; 2.Preservado/2.Preservado – 72,43%.

407
Gráfico 11: Tratamento de superfície externa/interna em números absolutos

Analisando o tratamento de superfície do conjunto cerâmico verificamos que os fragmentos


cerâmicos com ambas as superfícies polidas são maioritárias. As superfícies rugosas apenas se
verificam em números vestigiais (4 superfícies externas e 5 superfícies internas são rugosas).

Atentos à cor dos fragmentos a diversidade é grande contudo, realçamos no Gráfico as


principais cores verificadas nas superfícies externa e internas.

Cor Total
1.1 Beije/Beije 16
1.2 Beije/Castanho 1
1.3 Beije/Cinzento 9
1.4 Beije/Laranja 2
2.1 Castanho/Beije 8
2.2 Castanho/Castanho 973
2.3 Castanho/Cinzento 847
2.4 Castanho/Laranja 7
2.5 Castanho Vermelho 54
3.1 Cinzento/Beije 1
3.2 Cinzento/Castanho 83
3.3 Cinzento/Cinzento 471
3.4 Cinzento/Laranja 3
3.5 Cinzento/Vermelho 14
4.1 Laranja/Beije 2
4.2 Laranja/Castanho 8
4.3 Laranja/Cinzento 19
4.4 Laranja/Laranja 34
4.5 Laranja/Vermelho 5
5.1 Vermelho/Beije 3
5.2 Vermelho/Castanho 30
5.3 Vermelho/Cinzento 74
5.5 Vermelho/Vermelho 141
Quadro 2: Cor dos fragmentos cerâmicos (superfície externa e interna) em números absolutos.

408
Gráfico 12: Relação das cores preponderantes nas superfícies externas e internas em números absolutos.

Segundo o Gráfico 4 verifica-se a predominância da cor castanha nas superfícies externas e


externas. Os números absolutos do gráfico traduzem-se nos seguintes valores percentuais:
2.Castanho/2.Castanho -34,69%; 2.Castanho/3.Cinzento – 30,2%; 2.Castanho/5.Vermelho – 1,93;
3.Cinzento/2.Castanho – 3%; 3.Cinzento/3.Cinzento – 16,79%; 5.Vermelho/3.Cinzento – 2,64;
5.Vermelho/5.Vermelho – 5,03%.

Gráfico 13: Relação entre fragmentos decorados e fragmentos sem decoração em números absolutos.

A relação entre fragmentos lisos/fragmentos decorados é semelhante à detectada para as outras


unidades estudadas (ver ponto 9.1). Em números percentuais os fragmentos decorados representam
25,8% do conjunto cerâmico analisado.

Os fragmentos decorados dividem-se nas seguintes categorias e associações decorativas:

Decoração Incisa (64)

Caneluras (21)

409
Linhas incisas (44)

Incisão + Espatulamento (1)

Incisão + Puncionamento (1)

Impressão (649)

Impressão de cana (3)

Impressão Ungulada (1)

Impressão Penteada (645)

Impressão Penteada Curvilínea (273)

Impressão Penteada Rectilinea (205)

Impressão Penteada Arrastada (8)

Impressão Obliqua Arrastada (3)

Impressão Penteada + Espatulamento (3)

Impressão Penteada Curvilinea + Espatulamento (56)

Impressão Penteada Rectilinea + Espatulamento (36)

Impressão Penteada Arrastada + Espatulamento (1)

Impressão Penteada Curvilínea + Impressão Penteada Rectilínea (14)

Impressão Penteada Curvilínea + Impressão Penteada Rectilínea + Espatulamento (3)

Impressão Penteada Curvilínea + Incisões (caneluras) (1)

Espatulamento (6)

Gráfico 14: Relação das técnicas decorativas identificadas no conjunto cerâmico da GEC1 em números
percentuais.

410
Verifica-se um elevado número de fragmentos onde é possivel identificar a técnica de
impressão penteada. O espatulamento revela também uma presença elevada. No entanto é necessário
referir que esta técnica se encontra registada maioritariamente em associação com a técnica de
impressão penteada. É de assinalar também o elevado número de fragmentos com a técnica de incisão.
Comparando, por exemplo, com os dados obtidos para o Bastião A, a presença da incisão cresce de
forma consideravel, na medida em que no Bastião apenas se verificaram 2,21% de fragmentos
decorados com a técnica de incisão.

Tendo em consideração apenas os fragmentos cerâmicos decorados provenientes da Estrutura


3 e distribuindo-os por contextos e momentos verifica-se uma grande diversidade de associação de
motivos ainda que se registe a predominancia da técnica decorativa impressão penteada. No entanto, o
quadro 2 permite-nos questionar a diversidade existente no seio da técnica de impressão penteada.

Contexto 1 Contexto 2 Contexto 3


Decoração
m1 m2 m3 m4 m1 m2 m3 m1 m2 m3 m4
Imp pent curv 1 2 4 24 4 1 2 2 2
Imp pent curv paralela bordo 2
Imp pent curv+espat 1 1
Imp pent curv paralela bordo+espat prependicular bordo 1 2
Imp pent curv paralela bordo+espat paralela bordo 1
Imp pent curv paralela bordo+Imp pent prependicular
bordo 2
Imp pent curv paralela bordo+Imp pent curv prependicular
bordo + espat paralelo bordo 1
Imp pent curv paralelas bordo+espat paralelo bordo+espat
prependicular bordo 1
Imp pent rect 1 3 9 1
Imp pent rect + espat 1
Imp pent rect prependicular bordo + espat prependicular
bordo 1
Imp pent rect prependicular bordo + Imp pent rect paralelo
bordo 1
Imp pent rect paralela bordo + Imp pent curv paralela
bordo + espat paralelo bordo 1
Puncionamento simples 1
Puncionamento oblíquo arrastado + espat 1
Linhas incisas paralelas bordo 1 1

Quadro 3: Técnicas e motivos decorativos identificados nos três contextos da Estrutura 3

411
Da análise do conjunto cerâmico destaca-se ainda a identificação de fragmentos que indicam
que o vaso teria sido revestido por um nível, uma capa, de argila. Em um exemplar esse revestimento
cobriu uma superfície decorada por impressão penteada, ocultando a decoração e criando uma
superfície lisa. Um dos fragmentos parece também denunciar um engobe tipo aguada na superfície
externa.

Fig. 10: Fragmento cerâmico com revestimento (CSTVNT/10/97.27/3/1215)

412
5.1.3. Classificação morfológica

“...uma herança é a maneira mais segura de formar uma colecção. A atitude do coleccionador
em relação às peças que possui vem do sentimento de responsabilidade do dono para com os objectos
que possui. É, pois, no sentido mais elevado, a atitude do herdeiro. O título de glória de uma colecção
será sempre o da sua hereditariedade.” (Benjamin, 2004:214)

A atidude do arqueológo em relação às “suas” peças pode assemelhar-se à do coleccionador


descrita por Benjamin. O apego à coisa em si, a necessiade de ordenar, catalogar, inventariar persegue
o arqueólogo e o coleccionador. A conversão do caos de milhares de fragmentos cerâmicos em
classificações e consequente manipulação dos dados não através da unidade, da peça, do fragmento
cerâmico mas por classes parece ser essencial para o estudo da chamada componente “artefactual” de
um sítio arqueológico. Neste trabalho diversas categorias foram criadas e os fragmentos indexados a
essas mesmas categorias. A definição dos critérios de categorização procuraram ser definidos à
mediada que o conjunto cerâmico ia sendo análisado através de um inquérito já pré-estabelecido. A
classificação parte da descrição dos objectos e da selecção dos descritores. As classificações podem
ser inúmeras dadas as múltiplas relações/hierarquizações possiveis entre eles.

A colecção que estudamos é ordenada aqui com a consciencia da responsabilidade que


herdamos uma colecção e a passamos a outros. Esta colecção, para que pudesse ser partilhada foi
classificada. Apenas as classes são dadas a conhecer. Consideramos este anexo em geral como uma
partilha da coleção, seguindo a atitude do herdeiro mencionada por Benjamin. Não cremos, no entanto,
que a aplicação de métodos rigorosos revelem a “essencia” do objecto, ou seja, nenhum inquérito
permite a resposta clara às questões: para que foi contruido? por quem? para quê? Este conjunto de
perguntas feitas tanto pela escola histórico-culturalista como pela processualista apenas pode ser
consideradas como exercício interpreativo do arqueológo. O mesmo inquérito pode conduzir o
investigador a aspectos distintos da sua classificação. No ponto 10.2 abordamos o estudo dos
fragmentos cerâmicos da Grande Estrutura Circular 1. No entanto, a caracterização morfológica não
foi apresentada. Isto porque as questões que nos preocupavam eram distintas. Mas, porque pensamos
que é parte inerente do nosso compromisso como “herdeiros” da colecção a partilha deste item de
análise, que tem sido muito valorizado nos estudos cerâmicos.

No entanto relembramos, que estas pergusntas, este inquérito, esta classificação apenas faz
sentido dentro da nossa disciplina nos dias de hoje, como claramente referiu Thomas: “Artefact
typology, seriation, numerical taxonomy, the establishment of chronological sequences, the definition
of “culture groups”, and the plotting of special distributions of artifact types are all practices that
would be unthinkable without the abstract notion of methodology that fragments the world into
discrete entities in order to render it malleable (Bauman 1991:12). Obviously, these have all proved to
413
be useful tools in making sense of the past, but it is undeniably disturbing that the means through
which we address alien cultural contexts are ones that are so intimately tied to our own procedures that
are meaningless outside of a modern context. In taking part in the modern “war against chaos”,
archaeology seeks to establish an order amongst the things of the past.” (Thomas, 2004: 62/63)

A caracterização morfológica do conjunto cerâmico estudado segue os parâmetros definidos


em 2003 (Vale, 2003) aquando da análise dos fragmentos cerâmicos recolhidos em Castanheiro do
Vento durante as campanhas de 1998, 1999 e 2000. Neste trabalho obedecemos também aos critérios
enunciados na elaboração das tipologias de formas e decorativas da equipa de investigação de Castelo
Velho de Freixo de Numão (Baptista, 2003; Oliveira, 2003). Desde então, não houve alterações
significativas nos parâmetros caracterizadores de cada tipo e o conjunto cerâmico aqui analisado não
apresentou especificidades que obrigassem à revisão dos critérios tipológicos.

Na elaboração dos tipos morfológicos foi tido em consideração a distinção proposta por Balfet
(1983) entre formas abertas e fechadas, adoptando-se o índice de abertura de boca 1 para esta distinção
(índice de abertura de boca < a 100 traduz-se em formas fechadas e índice de abertura de boca > a 100
em formas abertas). Considerou-se também os critérios propostos por Seronie-Vivien (1892) para a
divisão entre formas simples (esfera, cilindro, cone e ovóide) e compósitas (resultantes da associação
de várias formas geométricas simples). Em alguns subtipos foi ainda tido em consideração o diâmetro
externo de boca.

Grupo Morfológico I

Recipientes de tendência esférica, forma muito fechada, com índice de abertura de boca
inferior a 80.

a) Recipientes sem colo (silhueta de bordo convexa oblíqua fechada);


b) Recipientes com colo (silhueta de bordo e colo recta oblíqua fechada)
c) Recipientes com colo acentuado (silhueta de bordo de tendência côncava oblíqua
fechada).

Grupo Morfológico II

Recipientes de tendência esférica, boca fechada, apresentando valores de índice de abertura


boca entre 80 a 94.

1
Diâmetro externo de boca x 100 / diâmetro externo de pança

414
a) Recipientes com silhueta de bordo convexa oblíqua fechada

b) Recipientes com silhueta de bordo recta oblíqua fechada

Grupo Morfológico III

Recipientes semi-esféricos, boca levemente fechada, com índice de abertura de boca entre 94 e
100.

a) Recipientes com um diâmetro externo de boca coincidente ou superior a 180 mm.

b) Recipientes que apresentam um diâmetro externo de boca entre 110 e 179mm.

Grupo Morfológico IV

Recipientes abertos, com índice de abertura de boca superior a 100, de tendência hemisférica.

a) Recipientes com um diâmetro externo de boca inferior a 150 mm (99 e 102)

b) Recipientes com um diâmetro externo de boca superior a 151 mm (na amostra vai até 197
mm).

Grupo Morfológico VI

Recipientes de paredes rectas de tendência cilindrica.

a) Recipientes com um diâmetro externo de boca coincidente ou superior a 200 mm (205 e


203)

b) Recipientes com um diâmetro externo de boca entre 140 e 199 mm. (180, 150)

415
Grupo Morfológico I

Ia

Ib

Ic

416
Grupo Morfológico II

IIa

IIb

Grupo Morfológico III

IIIa

IIIb

417
Grupo Morfológico IV

IVa

IVb

Grupo Morfológico VI

VIa

VIb

418
Como já referimos apenas se registaram 192 bordos o que se traduz em 6,8% da amostra e
destes apenas 44 permitiram a inferição da forma (ou seja 22,92%). Deste conjunto registaram-se 31
recipientes de tendencia esférica, ou seja, 70,45% da amostra (27,27% dos quais de forma muito
fechada e 43,18% de boca fechada); 4 recipientes semi-esféricos (9,09%); 5 recipientes abertos de
tendencia hemisférica (11,26) e 4 recipientes de paredes rectas de forma tendencilamente cilindrica
(este último tipo não tinha sido detectado no estudo cerâmico do Bastião A).

Nº inventário Forma Contexto

CSTVNT/10/96.25/3/2681 Ia BP1
CSTVNT/08/97.27/3/869 Ia c3
CSTVNT/08/95.24/3/844 Ia c3
CSTVNT/10/96.25/3/2761+3018 Ia Est. 3/contexto 2/momento 3
CSTVNT/10/96.24/3/2910 Ia Est.3/contexto 1/momento 2
CSTVNT/08/97.27/3/900 Ib c3
CSTVNT/10/3/2561 Ib BP7
CSTVNT/10/96.24/3/2889 Ib Est. 3/contexto 1/momento 3
CSTVNT/10/96.25/3/2363 Ib Nível 3
CSTVNT/10/94.25/3/1074 Ic c3
CSTVNT/08/95.25/3/192 Ic c3
CSTVNT/10/96.24/3/522 Ic Est. 3/ contexto 2/momento 3
CSTVNT/08/95.27/3/938 IIa Nível 1
CSTVNT/10/97.25/3/2214 IIa Nível 3
CSTVNT/08/96.25/3/536 IIa c3
CSTVNT/10/96.24/3/2886 IIa Est.3/contexto 1/momento 3
CSTVNT/08/96.27/3/934 IIa Nível 1
CSTVNT/10/94.24/3/1811 IIa Nível 1
CSTVNT/10/95.26/3/1528 IIa Nível 1
CSTVNT/10/3/2288 IIa BP4
CSTVNT/08/95.26/96.26/3/389+447 IIa Nível 1
CSTVNT/08/95.26/3/306+308 IIa Nível 1
CSTVNT/08/93.26/3/1031 IIa c3
CSTVNT/10/96.24/3/2832 IIa c3
CSTVNT/08/96.24/3/2973 IIa Est. 3/contexto 2./momento 3
CSTVNT/10/94.25/3/1894 IIb Est 1/momento 1
CSTVNT/10/96.25/3/1760 IIb Nível 1
CSTVNT/10/96.24/3/2976+2979 IIb Est. 3/contexto 2/momento 1
CSTVNT/08/95.26/96.263/410 IIb Nível 1
CSTVNT/10/96.24/3/3030 IIb Est. 3/contexto 2/momento 1
CSTVNT/08/97.24/3/1150+1151 IIb Est. 3/contexto 2/momento 3
CSTVNT/08/97.26/3/770 IIIa c3
419
CSTVNT/08/96.24/3/80 IIIb c3
CSTVNT/10/96.26/3/2262 IIIb Est.2/momento 2
CSTVNT/08/96.24/3/40 IIIb c3
CSTVNT/08/98.26/3/1099 IVa c3
CSTVNT/08/96.24/3/41 IVa c3
CSTVNT/08/96.24/3/73 IVb Est. 3/contexto 2/momento 1
CSTVNT/10/96.24/3/2809 IVb c3
Est. 3/ contexto 2./momento
CSTVNT/10/97.24/3/3031 IVb 2
CSTVNT/08/93.26/3/1009 Via c3
CSTVNT/08/95.28/3/153 Via c3
CSTVNT/08/97.27/3/827 VIb c3
CSTVNT/08/95.24/3/796+/798 VIb c3
Quadro 4: Identificação dos contextos onde se identificaram os fragmentos cerâmicos cuja forma foi
possível reconstituir.

Na camada 3 (c3) foram identificados 18 fragmentos que possibilitaram inferir a morfologia do


recipiente, o que representa 40,9% da amostra. Neste contexto quase todos os grupos morfotécnicos e
variantes se encontram representados. Também é de assinalar a presença exclusiva do tipo VI nesta
camada arqueológica. O grupo morfológico IV encontra-se apenas presente na camada 3 e na estrutura
3, contexto 2 (caracterizado pela presença de barro de revestimento). No nível 1 apenas foi possivel
identificar o grupo II e na Estrutura 1 e 2 apenas foi possivel a reconstituição da forma de um
recipiente (1 fragmento de um vaso do grupo IIb na estrutura 1 e um vaso do grupo IIIb na estrutura
2). É de facto na estrutura 3 da Grande Estrutura Circular que foi possivel reconhecer mais fragmentos
que possibilitam a inferição da forma do “vaso” (25%) em comparação com as outras estruturas e
níveis identificados (claro que com exepção da camada 3). O contexto 1 (caracterizado pela coloração
do sedimento – cinzenta-escura) revelou 3 fragmentos; o contexto 2 (caracterizado pela presença de
barro de revestimento), 8 fragemntos o que contrasta com o contexto 3 (pequena estrutura circular) na
qual nenhum fragmento cerâmico recolhido permitiu a reconstituição do vaso a que pertenceu. No
entanto, tendo em consideração que a maior percentagem de fragmentos de grandes dimensões (>7cm)
dentro da estrutura 3 encontra-se no contexto 1 (18,18%), seguido do contexto 3 (9,76%) e do
contexto 2 (4,31%). No entanto, foi o contexto 2 aquele que revelou um maior número de fragmentos
que possibiltaram a inferição de forma.

Apresentamos no quadro seguinte a relação das classificações morfológicas com o


estado/tratamento de superfície assim como em relação com o tamanho e espessura dos fragmentos
cerâmicos:

420
Tratamento de Superfície
Nº inventário Forma Sup Ext Sup Inter Tamanho Espessura
CSTVNT/10/96.25/3/2681 Ia Corroído corroído B 0,5
CSTVNT/08/97.27/3/869 Ia Corroído corroído B 0,7
CSTVNT/08/95.24/3/844 Ia Corroído alisado B 1
CSTVNT/10/96.25/3/2761+3018 Ia Corroído polido B 0,8
CSTVNT/10/96.24/3/2910 Ia c/decoração polido C 0,7
CSTVNT/08/97.27/3/900? Ib Polido alisado B 0,9
CSTVNT/10/3/2561 Ib Polido polido B 0,8
CSTVNT/10/96.24/3/2889 Ib Polido polido B 0,5
CSTVNT/10/96.25/3/2363 Ib Polido polido B 0,9
CSTVNT/08/94.25/3/1074 Ic Polido polido B 0,7
CSTVNT/08/95.25/3/192 Ic Polido polido B 0,8
CSTVNT/08/96.24/3/522 Ic c/decoração corroído B 0,8
CSTVNT/08/95.27/3/938 IIa Polido polido B 1
CSTVNT/10/97.25/3/2214 IIa Polido polido B 0,7
CSTVNT/08/96.25/3/536 IIa Corroído polido B 0,5
CSTVNT/10/96.24/3/2886 IIa Polido polido B 0,6
CSTVNT/08/96.27/3/934 IIa Corroído corroído B 0,7
CSTVNT/10/94.24/3/1811 IIa Polido polido A 0,5
CSTVNT/10/95.26/3/1528 IIa Alisado polido B 0,8
CSTVNT/10/3/2288 IIa Alisado polido C 0,9
CSTVNT/08/95.26/96.26/3/389+447 IIa Corroído corroído B 0,6
CSTVNT/08/95.26/3/306+308 IIa Corroído corroído B 0,6
CSTVNT/08/93.26/3/1031 IIa Polido polido A 0,5
CSTVNT/10/96.24/3/2832 IIa Polido polido B 0,9
CSTVNT/08/96.24/3/2973 IIa Polido polido C 0,5
CSTVNT/10/94.25/3/1894 IIb Alisado alisado B 0,7
CSTVNT/10/96.25/3/1760 IIb c/decoração polido B 0,7
CSTVNT/10/96.24/3/2976+2979 IIb Alisado alisado B 0,6
CSTVNT/08/95.26/96.263/410 IIb c/decoração polido B 0,7
CSTVNT/10/96.24/3/3030 IIb c/decoração alisado C 0,8
CSTVNT/08/97.24/3/1150+1151 IIb Polido alisado B 0,8
CSTVNT/08/97.26/3/770 IIIa c/decoração rugoso B 0,6
CSTVNT/08/96.24/3/80 IIIb Polido polido C 0,6
CSTVNT/10/96.26/3/2262 IIIb Polido polido B 0,8
CSTVNT/08/96.24/3/40 IIIb Polido polido C 0,8
CSTVNT/08/98.26/3/1099 IVa Corroído corroído A 0,7
CSTVNT/08/96.24/3/41 IVa Polido polido B 0,7
CSTVNT/08/96.24/3/73 IVb Alisado alisado B 0,8
421
CSTVNT/10/96.24/3/2809 IVb Alisado alisado C 0,6
CSTVNT/10/97.24/3/3031 IVb Alisado alisado C 0,8
CSTVNT/08/93.26/3/1009 VIa Polido polido B 0,9
CSTVNT/08/95.28/3/153 VIa Polido alisado B 0,8
CSTVNT/08/97.27/3/827 VIb Corroído ? A 0,8
CSTVNT/08/95.24/3/796+798 VIb Polido ? A 0,9
Quadro 5: Relação do tratamento de superfície, tamanho e espessura dos fragmentos cerâmicos e grupos
morfológicos.

Apesar das diferenças que podem ser identificadas entre estado/tratamento das superfícies
externa e interna do fragmento cerâmico, pensamos que não é possível associar nenhum grupo
morfológico com técnicas específicas de tratamento de superfície.

Gráfico 15: Relação dos grupos morfológicos e tamanho dos fragmentos.

No entanto atendendo à relação entre grupos morfológicos e tamanho de fragmentos


cerâmicos certos pontos devem ser destacados. Apesar da preponderância de fragmentos cerâmicos de
médio tamanho (entre 3 e 7cm), pequenos fragmentos cerâmicos (representados com a letra A - <3cm)
possibilitaram a reconstituição de exemplos das classes IIa, IVa e VIb. Grandes fragmentos cerâmicos
permitiram a reconstituição do tipo Ia, IIb, IIIb e IVb, sublinhando-se a presença de grandes
fragmentos cerâmicos nos tipos IIIb e IVb de tendência hemisférica.

422
Quadro 16: Relação dos tipos morfológicos e espessura dos fragmentos cerâmicos.

Em relação à espessura dos fragmentos regista-se o predomínio de espessuras superiores a


8mm nos grupos I e VI e o predomínio de paredes finas no grupo II. Nos grupos III e IV varia
consoante o subtipo. No entanto salientamos que o número de unidades que constitui esta amostra, 44,
parece insuficiente para a realização de um estudo comparativo entre grupos morfológicos. A análise
denuncia a existência de uma tendência mas que deverá ser revista tendo em consideração um maior
número de exemplares.

5.1.4. Classificação de organizações decorativas

No anterior trabalho que realizamos acerca de um conjunto artefactual cerâmico de


Castanheiro do Vento (Vale, 2003) optamos por não seguir o quadro tipológico entretanto elaborado
durante o estudo dos fragmentos cerâmicos de Castelo Velho de Freixo de Numão (Baptista, 2003 e
Oliveira, 2003) ainda que os critérios subjacentes à criação de tipos fossem semelhantes. No actual
trabalho seguimos a tipologia elaborada por nós em 2003. O conjunto estudado não parece apresentar
particularidades específicas. Pelo contrário, a associação de técnicas decorativas e os motivos
identificados no estudo dos fragmentos cerâmicos registados no interior da Grande Estrutura Circular
1 não permitiu a identificação de todos os tipos e subtipos criados em 2003. Seguimos assim os tipos
elaborados em 2003 cujos critérios adoptados se baseavam na abrangência e disposição dos elementos
decorativos pela superfície do recipiente; os subtipos tiveram em linha de conta a técnica e os motivos
decorativos.

423
Grupo I

Uma banda decorada paralela ao bordo

a) Uma banda decorada produzida por impressão


1. Penteada, que pode ou não resultar da múltipla passagem do pente.

Grupo II

Sequência horizontal de elementos decorativos na superfície do recipiente, intercalados por


espaços vazios, ou seja, intencionalmente não decorados.

a. Bandas decoradas por impressão penteada

Grupo III

Sucessão paralela ou prependicular de faixas decoradas paralelas ao bordo, onde não existem
espaços sem decoração.

a. Alternância de bandas decoradas por técnicas que perfuram a pasta, impressão penteada,
com bandas que não interferem no relevo inicial (momento pré decoração) do recipiente,
espatulamento. Pode ou não apresentar uma banda vertical, criada por espatulamento, que
interrompe a disposição dominante das bandas decoradas, i.é. horizontal.

Grupo IV

Conjunto de bandas decoradas paralelas ao bordo seguidas por um conjunto de bandas


decoradas verticais ao bordo, sem que se verifique uma sobreposição, ainda que parcial, dos
dois conjuntos.

424
Nº inventário Forma Dec Técnica Motivo
CSTVNT/10/96.25/3/2681 Ia IIa Impressão Penteada Curvilínea
CSTVNT/08/97.27/3/869 Ia Ia Impressão Penteada Curvilínea
CSTVNT/08/95.24/3/844 Ia Ia Impressão Penteada
Penteada
CSTVNT/10/96.25/3/2761+3018 Ia IIIa Impressão+Espatulamento Curvilínea+Espatulamento
Penteada
CSTVNT/10/96.24/3/2910 Ia IV Impressão+Espatulamento Curvilínea+Espatulamento
CSTVNT/08/97.27/3/900 Ib III Impressão Impressão de Cana
CSTVNT/10/3/2561 Ib Ia Impressão Penteada Rectilínea
CSTVNT/10/96.24/3/2889 Ib IIa Impressão Penteada Curvilínea
CSTVNT/10/96.25/3/2363 Ib liso
CSTVNT/08/94.25/3/1074 Ic liso
CSTVNT/08/95.25/3/192 Ic Ia Impressão Penteada Rectilínea
Penteada
CSTVNT/08/96.24/3/522 Ic IIa Impressão Curvilínea+Espatulamento
CSTVNT/08/95.27/3/938 IIa
CSTVNT/10/97.25/3/2214 IIa Ia Impressão Penteada Rectilínea
CSTVNT/08/96.25/3/536 IIa Ia Impressão Penteada Curvilínea
CSTVNT/10/96.24/3/2886 IIa liso
CSTVNT/08/96.27/3/934 IIa liso
CSTVNT/10/94.24/3/1811 IIa Ia Impressão Penteada Rectilínea
CSTVNT/10/95.26/3/1528 IIa Ia Impressão Penteada Rectilínea
CSTVNT/10/97.25/3/2288 IIa Ia Impressão Penteada Rectilínea
CSTVNT/08/95.26/96.26/3/389+447 IIa liso
CSTVNT/08/95.26/3/306+308 IIa Ia Impressão Penteada Curvilínea
CSTVNT/08/93.26/3/1031 IIa Ia Impressão Penteada Curvilínea
CSTVNT/10/96.24/3/2832 IIa IIa Impressão Penteada Curvilínea
Penteada
CSTVNT/08/96.24/3/2973 IIa IIa Impressão Curvilínea+Espatulamento
CSTVNT/10/94.25/3/1894 IIb IIa Impressão+Espatulamento Penteada+Espatulamento
CSTVNT/10/96.25/3/1760 IIb IIa Impressão+Espatulamento Penteada+Espatulamento
CSTVNT/10/96.24/3/2976+2979 IIb Ia Impressão Penteada Rectilínea
CSTVNT/08/95.26/96.263/410 IIb Ia Impressão Penteada Curvilínea
CSTVNT/10/96.24/3/3030 IIb liso
CSTVNT/08/97.24/3/1150+1151 IIb liso
CSTVNT/08/97.26/3/770 IIIa IIa Impressão Penteada Curvilínea
Penteada
CSTVNT/08/96.24/3/80 IIIb IIa Impressão Rectilínea+Espatulamento
CSTVNT/10/96.26/3/2262 IIIb liso
Penteada
CSTVNT/08/96.24/3/40 IIIb IIIa Impressão Curvilínea+Espatulamento
CSTVNT/08/98.26/3/1099 IVa liso
425
CSTVNT/08/96.24/3/41 IVa Ia Impressão Penteada Curvilínea
CSTVNT/08/96.24/3/73 IVb Ia Impressão Penteada Rectilínea
CSTVNT/10/96.24/3/2809 IVb IIa Impressão Penteada Curvilínea
CSTVNT/10/97.24/3/3031 IVb liso
CSTVNT/08/93.26/3/1009 VIa Ia Impressão Penteada oblíqua
CSTVNT/08/95.28/3/153 VIa liso
CSTVNT/08/97.27/3/827 VIb liso
CSTVNT/08/95.24/3/796+798 VIb IIa Impressão Penteada Curvilínea
Quadro 6: Relação dos grupos morfológicos e técnicas e motivos decorativos.

Este quadro pretende apresentar a relação dos grupos morfológicos com a decoração do
recipiente. Numa primeira abordagem é patente a superioridade de fragmentos de bordo decorados:
70,54% da amostra é decorada. A técnica decorativa usada é essencialmente a impressão a fim de criar
motivos penteados curvilíneos e rectilíneos. No entanto, técnicas e motivos parecem distribuir-se de
forma diferenciada entre grupos morfológicos. Uma análise mais detalhada parece denunciar a grande
percentagem de fragmentos de bordo decorados pertencentes ao grupo I, apesar do subgrupo Ic
apresentar 50% de unidades lisas o que se pode justificar por se tratar da área entre o bordo e o colo do
recipiente. O subgrupo III b e o subgrupo IV a também apresentam 50% de elementos sem decoração
assim como o grupo VI. Poderíamos referir que os dois primeiros exemplos de tendência hemisférica e
o grupo VI com paredes de tendência recta não seriam tão susceptíveis de serem decorados já que a
decoração nas suas paredes não seria tão visível. No entanto o reduzido número da amostra não nos
permite conclusões precisas. Parece apenas existir a tendência para a decoração da grande maioria dos
recipientes fechados apesar de se sublinhar o predomínio de fragmentos de bordo decorados. Em
relação aos grupos de organizações decorativas apenas é possível identificar uma maior diversidade de
associações e composições no grupo Ia e a preferência no grupo morfológico IIa pelo grupo Ia (ou
seja, recipientes de tendência esférica decorados com uma banda paralela ao bordo).

Foi também identificado um conjunto significativo de fragmentos decorados com linhas


incisas (como já foi referido). Apresentamos algumas fotografias:

Fig. 11: Exemplos de fragmentos incisos (linhas incisas).


426
Fig. 12: Exemplos de fragmentos incisos (caneluras). Fig. 13: Exemplos de fragmentos incisos (linhas incisas paralelas).

427
Fig. 14: Exemplos de fragmentos incisos (linhas incisas descontinuas). Fig. 15: Exemplos de fragmentos incisos (linhas incisas obliq

428
Fragmento CSTVNT/10/96.25/3/2761+ CSTVNT/10/96.24/3/3018. Identificado na Estrutura 3, contexto
2, momento 3. Grupo morfológico Ia. Desenho de Lídia Azevedo. Organização decorativa IIIa, impressão
penteada curvílinea+espatulamento.

Fragmento CSTVNT/08/97.27/3/869. Identificado na Camada 3. Grupo morfológico Ia. Desenho de Lídia


Azevedo. Organização decorativa Ia, impressão penteada curvilínea
429
Fragmento CSTVNT/08/96.25/3/2681. Identificado no Buraco de Poste 1. Grupo morfológico Ia.
Tintagem sobre desenho de Lurdes Cunha. Organização decorativa IIa, impressão penteada curvilínea.

Fragmento CSTVNT/08/95.24/3/244. Identificado na camada 3. Grupo morfológico Ia. Desenho de Lídia


Azevedo. Organização decorativa Ia, impressão penteada.

430
Fragmento CSTVNT/08/95.24/3/244. Identificado na estrutura 3, contexto 1, momento 2. Grupo
morfológico Ia. Desenho de Lídia Azevedo. Organização decorativa IV, impressão penteada
curvilínea+espatulamento.

Fragmento CSTVNT/10/96.24/3/2889. Identificado no buraco de poste 7. Grupo morfológico Ib.


Tintagem sobre desenho de Lurdes Cunha. Organização decorativa Ia, impressão penteada rectilínea.

431
Fragmento CSTVNT/10/96.26/3/1561. Identificado na Estrutura 3, contexto 1, momento 3. Grupo
morfológico Ib. Tintagem sobre desenho de Lurdes Cunha. Organização decorativa IIa, impressão
penteada.

Fragmento CSTVNT/10/96.25/3/2363. Identificado no nível 3. Grupo morfológico Ib. Tintagem sobre


desenho de Lurdes Cunha. Fragmento sem decoração.

Fragmento CSTVNT/08/97.27/3/900. Identificado na camada 3. Grupo morfológico Ib. Desenho de Lídia


Azevedo. Organização decorativa Ia, impressão de cana.

432
Fragmento CSTVNT/08/95.25/3/192. Identificado na camada 3. Grupo morfológico Ic. Desenho de Lídia
Azevedo. Organização decorativa Ia, impressão penteada rectilínea.

Fragmento CSTVNT/08/94.25/3/1074. Identificado na camada 3. Grupo morfológico Ic. Desenho de


Lídia Azevedo. Fragmento sem decoração.

433
Fragmento CSTVNT/08/95.26/3/306+307. Identificado no nível 1. Grupo morfológico IIa. Desenho de
Lídia Azevedo. Organização decorativa Ia, impressão penteada curvilínea.

Fragmento CSTVNT/08/95.26/3/389+447. Identificado no nível 1. Grupo morfológico IIa.


Desenho de Lídia Azevedo. Fragmento sem decoração.

434
Fragmento CSTVNT/10/95.26/3/1528. Identificado no nível 1. Grupo morfológico IIa. Tintagem
sobre desenho de Lurdes Cunha. Organização decorativa Ia, impressão penteada rectilínea.

Fragmento CSTVNT/08/96.24/3/80. Identificado na camada 3. Grupo morfológico IIIa. Desenho de Lídia


Azevedo. Organização decorativa IIa, impressão penteada rectilínea+espatulamento.

435
Fragmento CSTVNT/10/96.26/3/2262. Identificado Estrutura 2, momento 2. Grupo morfológico IIIb.
Desenho de Lídia Azevedo. Fragmento sem decoração.

436
Fragmento CSTVNT/08/96.24/3/40. Identificado na camada 3. Grupo morfológico IIIb. Desenho de Lídia
Azevedo. Organização decorativa IIIa, impressão penteada curvilínea+espatulamento.

Fragmento CSTVNT/08/96.24/3/41. Identificado na camada 3. Grupo morfológico IVa. Desenho de Lídia


Azevedo. Organização decorativa Ia, impressão penteada curvilínea.

Recipiente inteiro CSTVNT/10/97.24/3/3031. Identificado na Estrutura 3, contexto 2, momento 2 . Grupo


morfológico IVb. Desenho de Lídia Azevedo. Fragmento sem decoração.
437
Fragmento CSTVNT/08/93.26/3/1009. Identificado na camada 3. Grupo morfológico VIa. Desenho de
Lídia Azevedo. Organização decorativa Ia, impressão penteada oblíqua.

Fragmento CSTVNT/08/97.27/3/827. Identificado na camada 3. Grupo morfológico VIb. Desenho de


Lídia Azevedo. Fragmento sem decoração.

438
5.1.7. Análise do conjunto cerâmico proveniente do
exterior da GEC1

A análise cerâmica teve também em consideração um pequeno conjunto proveniente do


exterior da Grande Estrutura Circular 1. Quando iniciamos o estudo desta amostra o objectivo
primordial era a possibilidade de comparar o conjunto de fragmentos cerâmicos identificados no
interior da GEC1 com os registados no exterior. No entanto, devido ao próprio constrangimento
de tempo deste trabalho e às opções e tempos do trabalho de escavação, apenas analisamos um
conjunto de 346 fragmentos cerâmicos do exterior. A escavação desta área ainda esta a decorrer
e neste momento optamos por apresentar os dados obtidos deste pequeno conjunto pois pode já
indicar semelhanças/diferenças entre os conjuntos artefactuais identificados no interior e no
exterior de estruturas.

O conjunto é constituído por 308 (89,02%) bordos, 33 (9,54%) e 4 (1,16%) colos. As


superfícies encontram-se preferencialmente preservadas, sendo de assinalar a baixa percentagem
de superfícies internas corroídas. As arestas encontram-se na sua maioria preservadas,
registando-se 28,9% de arestas boleadas, o que se traduz em 100 unidades. O tratamento de
superfície é geralmente conseguido pela técnica de polimento, tanto nas superfícies externas
como internas

Gráficos 17 e 18: Tratamento das superficies


externas e internas em números absolutos.

439
Gráfico 19: Tratamento das superficies externas e internas em números absolutos.

Preferencilamente registam-se assim superficies polidas em ambos os lados do fragmento.

A cor dos fragmentos cerâmicos analisados é sobretudo castanha/castanha; castanha/cinzento e


cinzento/cinzento.

Cor
1.1 2
1.3 3
2.2 119
2.3 82
2.4 1
2.5 6
3.2 9
3.3 72
3.4 2
3.5 3
4.2 1
4.3 1
4.4 4
5.1 1
5.2 4
5.3 12
5.5 21
Quadro 7: Cor dos fragmentos nas superfícies externa e interna.

440
O conjunto de fragmentos cerâmicos analisados do exterior da Grande Estrutura Circular 1 é
constituido por 30,07% de fragmentos decorados que se distribuem nas seguintes combinações de
técnicas e motivos:

Impressão de cana 2
Impressão penteada 3
Impressão penteada rectilínea 31
Impressão penteada curvilínea 48
Impressão penteada curvilínea+Espatulamento 10
Impressão penteada rectilínea+Espatulamento 4
Impressão penteada curvilínea+Impressão penteada rectilínea 1
Impressão penteada oblíqua arrastada+Espatulamento 1
Incisão 4
Quadro 8: Técnicas decorativas presentes nos fragmentos decorados do conjunto artefactual do exterior da
GEC1.

É de sublinhar a preponderância da impressão penteada (94,23%), a fraca presença de


fragmentos decorados pela técnica da incisão (3,85%), especialmente em relação ao número de
fragmentos decorados com a técnica de incisão do interior da GEC1, que representam 8,8% do
conjunto de fragmentos decorados. Apontamos também a inexistência da decoração conseguida por
puncionamento.

Em relação ao tamanho dos fragmentos cerâmicos, estes são sobretudo de tamanho médio
(70,52% o que se traduz em 244 unidades). Contaram-se 87 fragmentos pequenos o que representa
25,14% do conjunto e 15 fragmentos cerâmicos de grande dimensão, que se traduzem em 4,36%

441
5.2. Metodologia e Análise do Conjunto lítico

1. Para todos os objectos líticos foi atribuído número de inventário, constituído pelo acrónimo da
estação (CSTVNT), ano da campanha, quadricula, camada, e um número correspondente.

2. Foi também inserida na base de dados (elaborada por João Muralha Cardoso) a localização da peça,
indicando a quadricula e camada, e, sempre que a informação disponível permitia, por contexto,
micro-contexto e o seu posicionamento tridimensional.

3. Estado físico e Estado de conservação foram também observados em todas as peças analisadas.

Para todos os materiais de pedra lascada foi considerado:

4. Matéria-prima: granito, grauvaque, quartzo-hialino, quartzo leitoso, quartzito e sílex.

A caracterização tecnológica das lascas foi elaborada segundo os seguintes critérios:

5. Verificação da existência/ausência de talão;

6. Identificação do bolbo (existente ou suprimido);

7. Presença ou inexistência de córtex: sem córtex, cortical e parcialmente cortical;

8. Classificação quanto à geração: de 1ª ou de 2ª geração;

9. Identificação de vestígios de uso.

A escavação da GEC1 permitiu a identificação de 19 lascas das quais 8 encontram-se inteiras;


8 fragmentadas e 3 são fragmentos de lasca. Em relação ao estado físico, 17 são angulosas e 2
eolizadas. 14 lascas têm o quartzo leitoso como matéria-prima; 2 o quartzito; 2 o quartzo hialino e 1 o
quartzo cinzento. Tendo em consideração a caracterização técnica das lascas registadas 13 apresentam
talão e em 6 o talão é inexistente; 11 têm bolbo ausente e em 8 o bolbo está presente; 16 lascas não
apresentam vestígios de córtex, 2 são corticais, 1 é parcialmente cortical. 17 unidades são assim de 2ª
geração e 2 de 1ª geração. Em relação aos vestígios de uso, 6 apresentam vestígios unipolares e apenas
1 bipolar. Uma lasca apresenta sinais de fogo.

Na caracterização tecnológica dos núcleos foram seguidos os seguintes itens:

5. Suporte: bloco anguloso, lasca, seixo rolado, placa de xisto;

6. Características do suporte: planos de clivagem, linhas de clivagem, textura homogénea;


442
7. Estado do núcleo: muito desgastado, desgastado, sem desgaste (este critério tem por base as
dimensões da peça);

8. Características do talhe: unipolar, bipolar, multidireccional, centrípeto;

9. Número de levantamentos;

10. Acidentes de talhe: fracturas e ressaltos;

11. Produto de talhe;

12.Reutilizações.

Foram identificados 5 núcleos; 4 em quartzo leitoso, 1 em quartzo cinzento; 3 inteiros, 1


fragmentado e 1 fragmento de núcleo; 5 angulosos; 5 são em blocos angulosos; em relação às
características de suporte 4 apresentam planos de clivagem e 5 linhas de clivagem; 4 apresentam-se
desgastados e 1 muito desgastado; em 4 o talhe é multidireccional/globuloso, e unipolar em uma
unidade; foram registados 3 levantamentos em 2 peças; e nas restantes: 1, 2 e 4 levantamentos
respectivamente; tendo em atenção os acidentes de talhe verificou-se 3 unidades com ressaltos, e 2
núcleos com fracturas. O produto de talhe é a lasca e 4 unidades e lamela em uma. Em 4 núcleos foi
possível identificar vestígios de maceração.

A caracterização tecnológica dos utensílios teve em atenção os seguintes critérios:

5. Verificação da existência/ausência de talão;

6. Identificação do bolbo (existente ou suprimido);

7. Presença ou inexistência de córtex: sem córtex, parcialmente cortical;

8. Características do retoque: continuo, descontinuo, total, ausente;

9. Tipo de retoque: aplanado unifacial, abrupto unifacial, aplanado bifacial, abrupto bifacial.

Registaram-se 3 raspadeiras; as três inteiras; uma angulosa, as restantes eolizadas. 2 em


quartzo leitoso, 1 em quartzo cinzento. Talão ausente em uma raspadeira e presente em duas. O bolbo
é identificável em duas; as 3 não têm córtex, o retoque é continuo em duas e descontinuo numa
unidade. As três raspadeiras deste conjunto lítico apresentam tipos de retoque diferenciado,
identificou-se: retoque abrupto bifacial, abrupto unifacial e aplanado unifacial. Uma peça apresenta
vestígios de maceração unifaciais.

Foi ainda detectada uma lâmina fragmentada, em quartzo leitoso, eolizada. O talão assim
como o bolbo estão ausentes e não tem vestígios de córtex. O retoque é contínuo aplanado unifacial.
Trata-se de uma lâmina de secção transversal triangular.

443
No conjunto de pedra lascada registou-se também uma lasca retocada, fragmentada, em
quartzo leitoso, angulosa. O talão e o bolbo estão presentes. Não tem córtex. O retoque é continuo
aplanado unifacial e apresenta uma secção transversal trapezoidal.

Há também a assinalar uma ponta de seta de base recta fragmentada, em quartzo leitoso,
boleada. O talão e o bolbo estão ausentes assim como não há vestígios de córtex. O retoque é contínuo
aplanado bifacial e a secção transversal triangular.

Fig. 16: Ponta de seta fragmentada em quartzo

O conjunto de pedra lascada é ainda constituído por 7 fragmentos com vestígios de


maceração, em quartzo leitoso, 5 angulosos e 2 boleados. Os vestígios de maceração são bipolares em
2 unidades, unilaterais em 4, unipolar em 2 e total num exemplar.

Também se identificou uma esquírola em quartzo hialino assim como um cristal de quartzo
hialino.

Para os percutores foi considerado:

3. Matéria-prima do artefacto em estudo: granito, grauvaque, quartzo-hialino, quartzo leitoso,


quartzito e sílex.

4. Suporte da cada percutor: em bloco anguloso ou seixo rolado.

5. Estado de conservação: intacto, fragmentado (quando a peça possuía mais de 50% do seu
total) e fragmento (quando possuía menos de 50%).

6. Morfologia: considerou-se a forma e a secção, segundo os seguintes itens


descritivos:1.circular/semicircular, 2.elipsóide/ovóide, 3.quadrangular/subquadrangular,
4.rectangular/subrectangular, 5.trapezoidal, 6.triangular, 7.irregular e 8.indeterminada.

444
7. Localização dos vestígios de uso: polar (unipolar ou bipolar), facial (unifacial ou bifacial),
lateral (unilateral ou bilateral).

8. Utilização: activa e suave. Estas designações basearam-se na extensão e intensidade dos


vestígios de utilização na peça.

Foram registados 6 percutores, 4 intactos e 2 fragmentados. 3 unidades são blocos angulosos


em quartzo leitoso e 3 percutores são seixos rolados em quartzito. 3 exemplares apresentam uma
forma elipsóide/ovóide, 2 circular/subcircular e 1 rectangular/subrectangular. A caracterização da
secção divide-se entre circular/semicircular com 2 unidades, rectangular/subrectangular também com
duas unidades, elipsóide/ovóide com uma assim como trapezoidal com uma. A localização dos
vestígios de uso localiza-se de forma bipolar em 4 exemplares, bilateral em 3 e unipolar apenas em
uma (pode verificar-se a localização bipolar e bilateral num mesmo percutor). A utilização revela-se
activa em 3 unidades e suave nas restantes 3. Em três dos percutores registou-se também marcas de
maceração e em quatro vestígios de fogo.

Ainda neste grupo de análise identificou-se um seixo rolado em quartzito tipo bigorna, com
utilização suave bifacial e com vestígios de fogo. Também se registou um seixo rolado em quartzito
com vestígios de uso suaves em ambos os pólos.

Para dormentes e moventes foi considerado:

3. Matéria-prima.

4. Calibre do grão: médio-grosso, médio e fino;

5. Estado de conservação: intacto, fragmentado e fragmento

Para a análise dos dormentes individualizam-se os seguintes itens descritivos:

6.Morfologia: considerou-se a forma e a secção, atendendo às classificações: circular, elíptica e


rectangular;

7. Estado do bordo: anguloso, afeiçoado, boleado, picotado;

8. Características da superfície activa: concava, convexa e plana;

9. Estado da superfície activa: picotada e polida;

445
10. Características da base: aplanada, convexa e cónica.

Registaram-se 9 dormentes em granito, 1 de grão fino e 8 de grão médio. Apenas 1 exemplar


se encontra intacto, 8 unidades são fragmentos de dormente. Em relação ao estado do bordo, 2
encontram-se boleados, 3 angulosos, 2 afeiçoados e 2 indeterminados. A superfície activa é plana em 3
unidades, côncava em 3, convexa em 1 exemplar e 1 indeterminado. A superfície activa encontrava-se
apagada em 6 exemplares, viva em apenas 1 e num exemplar não foi possível registar esta informação.
A base é côncava em 3 unidades, aplanada em 2, 2 bases são convexas e 2 indeterminadas. Por se
tratarem de fragmentos a morfologia da peça é indeterminada em 6 exemplares. Foi apenas possível
registar 2 unidades de morfologia circular/ovóide e uma rectangular/subrectangular. A mesma situação
verificou-se na análise das secções. Assim a secção longitudinal e transversal é indeterminada em 7
unidades. Foi no entanto possível registar uma secção longitudinal convexo-côncava e uma plano-
côncava. Os mesmos resultados foram registados na leitura da secção transversal.

Na análise dos moventes recorreu-se aos seguintes critérios específicos:

6. Morfologia: atendendo à forma e secção, distinguiram-se as classificações: circular, elíptica,


ovalar e rectangular;

7. Características da superfície activa: concava, convexa, irregular e plana;

8. Estado da superfície activa: polida e picotada. Este último critério pode ainda apresentar-se
vivo, apagado ou circunscrito.

Foram apenas registados 3 moventes em granito de grão fino, intactos. As 3 unidades apresentam
uma morfologia rectangular/subrectangular. A superfície activa é plana nos três exemplares e
encontra-se circunscrita em um exemplar e polida também numa unidade. As secções das peças, tanto
transversais como longitudinais, são plano-côncavas. Duas unidades foram reutilizadas como bigornas
e percutores

Figs. 17 e 18: Moventes em granito

446
Foram ainda detectados:

• 103 termoclastos em quartzo leitoso o que se traduz em 6360gr

• 7 termoclastos em granito (provavelmente fragmentos de dormentes) o que se traduz em 770gr

• 5 termoclastos em quartzito, seixos de rio, o que se traduz em 340gr

Identificação do elementos líticos por contexto (os identificados nas estruturas 1, 2 e 3 encontram-
se referenciados aquando da análise da GEC1 no ponto 10.2):

A camada 3 é definida pela presença de: 4 fragmentos de dormentes em granito; 1 percutor em


quartzo leitoso; dois percutores em quartzito;uma ponta de seta fragmentada, em quartzo leitoso(
boleada, com retoque contínuo, aplanado bifacial, apresentando secção transversal triangular e base
recta); três lascas em quartzo leitoso; uma lasca em quartzo cinzento; uma lasca fragmentada em
quartzo leitoso, angulosa, com vestígios de fogo; três fragmentos com vestígios de maceração, em
quartzo leitoso; lasca fragmentada em quartzo hialino; dois termoclastos em quartzito (junto da
estrutura 3); dois termoclastos em quartzo e um termoclasto em granito.

O nível 1 conta com a presença de 1 fragmento de dormente em granito; 1 percutor em quartzito; 2


percutores em quartzo leitoso; três lascas fragmentadas em quartzo leitoso; um núcleo fragmentado em
quartzo leitoso para lasca, com três levantamentos e com vestígios de maceração; fragmento de núcleo
em quartzo leitoso para lascas com dois levantamentos; uma lasca retocada fragmentada em quartzo
leitoso (eolizada, com retoque contínuo aplanado unifacial); uma placa de xisto afeiçoada; dezassete
termoclastos em quartzo e um termoclato em granito.

No nível 2 foram registados: 1 percutor em quartzito; uma raspadeira em quartzo cinzento


(eolizada, com retoque continuo aplanado unifacial); 22 termoclastos em quartzo; dois termoclastos
em quartzo com vestígios de maceração e três em granitoe um termoclasto em quartzito (seixo de rio).

No nível 3 foram identificados: uma lâmina fragmentada em quartzo leitoso, eolizada, com
retoque continuo aplanado unifacial; um cristal de quartzo; uma lasca em quartzo leitoso; uma em
quartzo hialino; quatro blocos de granito; um seixo em quartzito, um bloco em granito; oito
termoclastos em quartzo e um termoclasto em quartzito.

O nível 4 define-se pela inclusão de um fragmento de lasca angulosa em quartzo leitoso e sete
termoclastos em granito

447
5.3. Placas de xisto gravadas

Peça 1
Quadrado – 91. 37
Camada: 3
X: 1,37
Y: 1,29
Z: 727,17
Dimensões: 57 mm x 38 mm x 9 mm
Contexto: Argila compacta
Descrição: Fragmento proximal de placa de xisto de forma e secções subtrapezoidais; a superfície e os
bordos remanescentes parecem ter sido alvo de preparação (polimento) prévia à gravação.
Anverso: Reconhecem-se duas séries de traços incisos de tendência recta dispostas diagonalmente em
relação ao eixo longitudinal da peça; ambas as séries parecem convergir ao longo daquele eixo.
Reverso: No terço direito da peça, junto ao seu bordo, observa-se uma banda de traços horizontais
incisos, subparalelos entre si; outros dois conjuntos de incisões mais finas dispõem-se na diagonal
relativamente ao eixo longitudinal da peça parecendo convergir ao centro.

(Levantamento e descrição da peça de André T. Santos)

448
Peça 2
Quadrado – 95. 26
Camada: 3
X: 0,47
Y: 0,40
Z: 727,79
Contexto: Interior de grande estrutura circular em sedimento argiloso muito compacto.
Dimensões: 62 mm x 47 mm x 6 mm
Descrição: Fragmento (proximal ?) de placa em xisto de forma subtrapezoidal com os lados a
divergiram no sentido do topo. Junto à base observa-se figura em forma de triângulo invertido
conseguida por incisão (por vezes repetida); junto ao vértice inferior os lados da figura encurvam um
pouco; os traços definidores da forma prolongam-se para além dos vértices da mesma; no lado direito
observa-se um traço que saindo praticamente da ponta do triângulo diverge um pouco relativamente ao
seu perímetro.

(Levantamento e descrição da peça de André T. Santos)

449
Fig.19: Representação das cinco grandes estruturas identificadas em Castanheiro do Vento. Tintagens sobre desenhos de Bárbara Carvalho e João Muralha Cardoso
450
451

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