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Título original:

Hermeneufics

© 1969 by Richard Palmer.


Publicado inicialmente em 1969 pela Northwestern
Todos os direitos reservados.
University Press.
Hermenêutica
Tradução: Maria Luísa Ribeiro Ferreira

Capa: FBA

Depósito Legal na 245743/06

Impressão c acabamento:
MANUEL A. PACIIECO
para
EDIÇÕES 70, LDi\.
Setembro de 2006

ISBN (10): 972-44-1298-X


ISBN (13): 978-972-44-1298-6
ISBN da I" edição: 972-44-0340-8

Direitos reservados para todos os países de língua portuguesa


por Edições 70

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de procedimento judicial. l-:2oJ
PRIMEIRA PARTE

SOBRE A DEFINIÇÃO, ÂMBITO E SIGNIFICADO


DA HERMENÊUTICA
~",,,'" ,;".
!;

\
f
1
I,
~ INTRODUÇÃO

Hermenêutica é uma palavra que cada vez mais se ouve noS


círculos teológicos, filosóficos e mesmo literários. A Nova Herme-
nêutica emergiu como um movimento dominante na teologia
protestante europeia, defendendo a hermenêutica como o ponto
central dos actuais problemas teológicos r). Houve três conferências
sobre hermenêutica de âmbito internacional, na Drew University r)
e é possível encontrar várias obras recentes em inglês sobre herrne-
nêutica num contexto teológico r). Martin Heidegger, num conjunto
de ensaios recentemente publicados, discute o caracter persistente-
mente hermenêutico do seu próprio' pensamento, no que respeita
tanto ao primeiro como ao último Heidegger ('). A própria filo-
sofia, afirma Heidegger, é (ou devia ser) «hermenêutica». E, em
1967, o esplêndido isolamento da crítica literária americana no que
respeita à hermenêutica foi destruído pela obra de E. D. Hirsch
4 Validity in Interpre.tatiorr.·O tratado de Hirsch é um ensaio com.
pleto sobre hermenêutica, constituindo um desafio às ideias domi·
nantes da crítica actual. Segundo Hirsch, a hermenêutica pode l'l

(1) Ver a posição de Gerhard Ebeling, que defende ser a hermenêutica


"O Brenn~npunkt (ponto central) dos problemas teológicos de hoje.
--..-J (') Em 1962, 1964 e 1966. As comunicações da Conferência de 1962
foram publicadas em NH. Os encontros de 1966 (oram publicados - «lnter-
pretation: Th~ l'oetry 01 Meaninp, ed. Stanley R. Hooper and David L. Miller.
A obra «The later Heidegger andTheology .•, ed. Janies M. Robinson e John
B. Cobb, Jr. está intimamente relacionada com as conferências.
(') Acresc:entAndo-se._a' NH, e mais recentemente a Robert W. Funk,
«Languag~: 'Henneneutic and Word' 01 God., veja-se o «/ouma{ 01 Theolo/(y.
11 lU «Church series 01 bookS'h editadas por Robert W. Funk e Gerhard Ebelin8,
especialmente «The Bultmann School 01 Biblical Interpretatian: New Direc-
ti_i» e «History and HermeneuticS'h.
(') «Aus einem Gesprãch von der SpracheY>.US esp. 95-99. 120-32, 136,
ISO-SS. ;
';
15
deve servir de disciplina fundamental, preliminar a toda a inter- tica fenomenológica, contra outras formas, o contexto mais ade-
pretação literária. quado para a questão ser explorada.
Com estas reivindicações contemporâneas da importância cen- Na perspectiva da finalidade programática deste estudo rela-
tral de hermenêutica em três disciplinas humanísticas - teologia. tivamente à interpretação literária, as duas secções que se seguem
filosofia e interpretação literária - torna-se cada vez mais evidente apresentam algumas observações preliminares sobre a situação da
a importância que este domínio assumirá nas fronteiras do pensa- crítica literária americana e sobre a necessidade de uma reavaliação
mento americano nos próximos anos. Mas ~ termo não é uma filosófica do pensamento literário americano.
palavra usual quer na filosofia quer na critica literária; e mesmo
em teologIa o seu_,.!!~12arec;;.~wtas.3ezes num ..sentido restrito '----
,cias do seDSO comum..
que contrasta com um uso ..largamente ..leitô' nã<<IiôVãõermenitu-
{Ical) teolôg.íc'a--cõiífemPôrâi1êa:"~ DaJ"-o"--éôi~C'â-;~~~fiêqüeniemeiite 4: objectividade 113 Critica literária. ameriCana
a,·""-_,~.~~",·_.·'.;;a---:i"'ti.i"~.'·.-""i:.;.-,,,~,,,~
que~tãó--rque1"'ãllérméxíêutlca'! .•••··"'~--_· OWebster
.• -.•.....,"•.....
1hlrd New ,.••Int;;'~
__ •.-~
Filosoficamente falando, a interpretação literária em Inglaterra
nation~~y, ..~e;o-
__~~P;;~~E2...~9.:,>,~-5~~~~~.~?~.er1!tJ:í~ios e na América actua de um modo geral num contexto realista r).
aoIõgíc'os..de interpretação e de explIcação; hermenêutica específica:
õ'êSiUd6,wdôS"pniíCfpÍos"gerais" de "úifêrpre1âçãô'bíbüêã:'Umã'-ciefi- Tende a pressupor, por exemplo, que a obra literári:.1está simples-
<i~kn_ãS~gr~!~p~~
~~o d~§1c;".J!1?9,.~R9"ª~.!f3~ga%é!=fcit!:~t~ mente «lá fora», no mundo, essencialmente independente daqueles
que a captam. A percepção que cada um tem da obra é considerada
uma compreensão openltóJ:'iada pJ:'ópriapalavra; os que pretendâiri
separadamente da própria obra, e a interpretação literária tem
ã1CãõçãF'iliifã'iãéía"êiõ'campo. di' ~~ríii~iiéútiCãéXigir[o>iriUltomâis.
HéfiZTiíérite:'---
Iiâõha 'Pôr énqu~to em' kglêS néitliurii ' trátameiít""o éÕmo tarefa falar da «pró ria obra», De Igual modo, as mtençoes do
completo de hermenêutica, enquanto disciplina geral, não teológica. au ao consl eradas enquanto rigldamt:utt: "''''l'<l.l",d'''l>
ua oora;
No entanto, há uma necessidade premente no sentido de uma a~obra ç <'lU ",i IDt::sWi:l. \~WU ""'1>1, um ser com os seus próprios
pod(,.l•.. e a sua lttna:Iiiiê3:. Um mtérPrete mo<teruo úpíco uereooe
:S
abordagem introdutória à hermenêutica num contexto não teoló-
geralmente a obra literária como «um ser autônomo» e vê a sua
gico, orientado para a clarificação do sentido e do âmbito do termo.
tarefa como a de alguém que penetra nesse ser autónomo por meio
O presente trabalho pretende ir ao encontro desta necessidade. da análise textual. A se aração preliminar de sujeito e ob·ecto -o
Dar-se-á ao leitor uma ideia da fluidez da hermenêutica e dos axiomática no realismo, toma-se o un amento I os6fic.o e o con-
problemas complexos que se ligam à sua definição. Discutir-se-ão texto da interpretação literária.
os problemas -sásicos_..que preocuparam quatro dos maiores pensa- vs frutos extraordinârios de um contexto deste género tor-
dores sobre este tema. Também serão dadas referências bibliogrâ- nam-se patentes na arte altamente desenvolvida das recentes análises
ficas básicas para uma exploração ulterior. de texto. Esta arte não tem ponto de comparação na história da
Contudo, para o seu autor, este livro sitmt-se no, contexto de interpretação literária ocidental, no que respeita a poder técnico
um outro projecto - o de se orientar numa abordagem mais ade- e a subtileza. Chegou, no entanto, a hora de pôr em causa o fun-
quada da interpretação literâria. ,Na teoria hermenêutica alemã, damento dos pressupostos sobre os quais assenta. E isto faz-se
podemos encontrar às baSes filosóficas para um conhecimento radi- melhor, não do interior da própria perspectiva realista, mas. saindo
calmente maÍ1! amPlo, dos problemas da' interpreta~o literárIa. dela e inspeccionando-a. A fenomenologia é ÚIDa orientação do
pensamento europeu que submeteu as concepções realistas da
Assim, o objectivo de explorar a hermenêutica subordina-se neste
livro a uma outra finalidade: delinear a matriz das razões no âmbito percepção e da interpretação a uma crítica radical. Ao fornecer
a chave para uma reavaliação dos pressupostos sobre os quais se
das quais os teóricos literários americanos poderão significativa- baseia a interpretação literária inglesa e americana, a fenomeno-
mente .retomar a questão da interpretação, num nível filosófico" logia poderia fornecer o ímpeto para um próXimo e decisivo avanço
anterior a todas as considerações de aplicação a técnicas de análise
na teoril\ e na prática.da interpretação americana.
literária. Pondo a questão de um modo programático, a finalidade Um' ~estudõ da-Jenomenologia toma especialmente visível a
~ste livro é apelar para que a interpretação literâria americana semelhança essencial entre o realismo e a -perspectiva «científica»
reexplore num contexto fenomenológico a pergunta: o que é inter-
pa:tação? Por fim, este estudo.-aponta uma orientação ,especÍfica (') Ver Neal Oxenhandler, cOnt%gical Criticism in America and France.,
para. o problema: a abordagem fenomenológica. Vê -na hermenêu- HLR, LV (1960)17-18. ,.
i
16 17
!p!

.l!!Pstrandoaté que ponto a interpretação literária caiu num modo obra, considerando-a como um objecto de análise. Contudo, as
científico "dê-pensar: a sua o6Ject1Vidãdeoperatória., a suaconcep- obras literárias serão consideradas mais perfeitamente não enquanto
tuaI:izaçao c:;I.áLi\;<I. li. SIDrãüSêilciâ(j<!'"sefiTtdtJh1s!õt'tt'b
v ,,,:;u <Ullór
objectos de análise mas como textos que falam, criados por seres
humanos. Há que arriscar o nosso «mundo» pessoal se queremos
peI'a.cúI..nl:se.~com que tazfodas
~rp.fI as st1as
na poeSIa pretensoes
«numa 'fiumãníStÍcaS
~ti!CD.OlogIã», penetrar no mundo vivo de um grande poema lírico, de um romance
a CrítIca moderIiã1ifê'rana Cõiiiõü-se cada vez maIS tecnolOgícã. ou de uma obra. E para isso, não precisamos de qualquer método
I~Z"1l1ãiSãã6õroâgémõõaentIsta. u texto de Ul11â científico disfarçado, ou de qualquer «anatomia de uma crítica»,
oõFa literánat'fuau grado a sua «existêncIa autõnoma») tende a. ser com tipologias e classificações muito brilhantes e subtis (9), mas sim
encarado como um objecto - um «objecto estético». O texto é de uma compreensão humanística daquilo que implica a interpre-
analisado numa total separação relativamente a qualquer sujeito tação de uma obra.
percepcionante, e a «análise» é considerada como sendo virtual-
mente sinónima de «interpretacão~~ .-
,.... Mesmo a recente aproximação com a crítica social, numa Interpretação literária, hermenêuticae interpreta~
espécie de formalismo iluminado, apenas alarga a definição do de obras
objecto, incluindo na análise o seu contexto social ("). A interpre-
tação literária de um modo geral é ainda essencialmente encarada A tarefa da interpretação e o significado da compreensão são
como um exercício de «dissecação» conceptual (é uma imagem bio- diferentes (uma mais indefinível, outra mais histórica) no que res-
lógica) do objecto (ou «ser») literário. É claro que como este ser peita a uma obra e no que respeita a um «objecto». Um «objecto»
ou objecto «estético», pensamos que dissecá-Io é sempre muito mais é sempre selado com um toque humano; a própria palavra o sugere,
«humanizante» do que dissecar um sapo num laboratório; no en- porque uma obra é sempre a obra de um homem ou de Deus. Por
tanto, a imagem do cientista, que isola um objecto para ver como outro lado, um «objectm)pode ser uma obra ou pode ser um objecto
ele é feito, tornou-se o modelo dominante na arte da interpretação. natural. Usar o termo «objecto» relativamente a uma obra é tornar
Nas aulas de literatura, diz-se mesmo aos estudantes que a expe- obscura uma distinção importante, pois temos necessidade de enca-
riência pessoal que têm de um trabalho extraliterário é uma espécie rar a obra não como objecto mas como obra. A critica lit~rária.
de falácia irrelevante para a análise da obra (T). Os professores, uni-
dos em convénio gigantesco, lamentam ritualmente o facto de os precisa de procurar um «método» ~~ia» e~-ciliç~.m..~te...adc::.
seus alunos acharem a literatura «irrelevante»; mas a concepção quadbs à decifraçao da marca humana n~jJE, ao seu ~si~-
fIcado». Este processo de «c:recffiãÇão»,esta «com eensãm}do signi-
tecnológica que têm da interpretação, com a sua metafísica de um fIcado de uma obra, e o ponto centra da hermenêutica..•.•• erme-
realismo envolvente, promove realmente a própria irrelevância que ri'êutíca e o esti11fl:r:c(ij::~.õiiiütê.e1I~SSeiiCiá1ÍÍ1entea tare ..e
eles tão ineficazmente lamentam. «A ciência manipula as coisas e éompreender textos. As ciências da natú~têm--mêtõ~.Para
desiste de viver nelas», diz-nos o falecido fenotnenologista francês compreender os 06jectos"'náturals; as ~obras» precIsam de uina ner-
Maurlce Merleau-Ponty ("). Isto, resume numa frase o que aconteceu m~neuttca, de uma «CIenCla»ela compreensão I adequádã a ob~
à interpretação literári.a americana. Esquecemos que a obra literária -enquanto obras:-~'ftõ qüê"õSméfõãõS"'êIe"(;ãIíáliSe científica»
não é um objecto manipulável, completamente à nossa disposição; Podem e devem Ser aplicados às obras, mas ao proceder deste modo
é uma voz humana que vem do passado, uma voz à qual temos de estamos a tratar as obras como objectos silenciosos e naturais. Na
certo modo que dar vida. O diálogo, e não a dissecação, abre o .medida em que são objectos, são redutíveis a métodos científicos de
universo da obra literária. A objectividad . desinteressada não é ade- interpretação; enquanto obras, apelam para modos de compreensão
.vel à compreensão de uina o ra ária. c aro que o crítico mais subtis e compreensíveis. O campo da hermenêutica naSceu
mo o e en e a pwxao e mesmo a capItulação perante «a exis-
como esforço para descrever estes úItIDlOSmodos de compreens!o,
tência autónoma da obra» -, mas, não obstante, vai trabalhando a mais especificamenkJhistóril'Oll» ~ ~
(") :a precioso o capítulo Cmalda obra de Walter Sutton cModem Ame-
-orO:O~e~s. n,?~§~ç~~~s, a~ermenê~t1ca ~heg~ à
rican Criticism. (a crítica como um acto social). ..~~~ ~I?Iensão m~~~t;lji.91. 9..1;1~9~~~,~um....ÇQ!l.mP12J
(') Estou a pensar na bem conhecida «falácia afectivu como foi, por ~!os.e de .~~~ de expli~~..!ext!' e ~uando-.t~.~~
exemplo,apresentada na obra de William K. Wimsatt Ir., «The Verbal [coia••
C') «Eye and Mind., tradução Carleton DaIlery. in Merleau-Ponty «The
o pro'6rema hermenêunco
............-~ "
•....•. ~...,:...~~~~ .....-::~
àenuo do horizonte de uma avaliação
Primacy 01 Perception and other ESl1ayn. 00. Iames M. Edie, pág. 159. (") Especialmente a obra de Northorp Frye- «Anatomy 01 Criticúm ••
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18 19
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geral da própria interpretação. Deste modo, implica dois pólos de poder comunicativos, quer na importância geral que desempenha ('2).
ãtenç~~(ff§f§"têse-iàiêfã'ftilãntes: 1) 9_f~~Ç.QJ;ODLWl.~ A linguagem molda a visão do homem e o seu pensamento - simul-
~to e 2) a questão maIS englobante do que é compreender e taneamente a concepção que ele tem de si mesmo e do seu mundo
~r . .--, ~- (não sendo estes dois aspectos tão separados como parecem).
Um dos elementos essenciais para uma teoria hermenêuticaade- A própria visão que tem da realidade é moldada pela linguagem (U).
9!la<rãê:"'êonSéqüeÍ1temeritê;'npárã-Wiíãt~~uada' da iIiteilie- Muito mais do que pensa, o homem veicula através da linguagem
tacão literáil~ é _l.!S~C§'§"íif]'~r;-Ç,..9~i.WE'l
.mteEN~~~5Lq~a as várias facetas da sua vida - aquilo que venera, aquilo que ama,
~iciente!!!~ºl~,,!~J1ti:). Consideremos por um momento a ubiqui- os comportamentos sociais, o pensamento abstracto; mesmo a forma
dade da interpretação' e a generalidade da utilização da palavra: dos seus sentimentos é conforme com a linguagem. Se considerar-
O cientista chama «interpretação» à análise que faz dos dados; mos este tema em profundidade, toma-se visível que a linguagem é
o critico literário chama interpretação à análise que faz de uma o «medium» no qual vivemos, nos movemos e no qual temos o nosso
obra. Chamamos intérprete ao tradutor de uma língua estrangeira; ser ("4).
um comentador de notícias «interpreta» as notícias. Interpreta- A interpretação é, portanto, um fenómeno complexo e universal.
mos - por vezes erradamente - uma observação de um amigo, uma E no entanto até que ponto o critico literário compreende este fenó-
carta de familiares, ou um sinal da estrada. 'Na verdade, desde que meno de um modo complexo e profundo? Temos que nos interrogar
acordamos de manhã, até que adormecemos, estamos a «interpre- se os críticos não tenderão a equacionar análise e interpretação.
tar». Ao acordar, olhamos para o despertador e interpretamos o Temos que nos interrogar se acaso as asserções realisticamente meta-
seu significado: lembramos em que dia estamos e ao compreender físicas e as suposições que estão na base de quase todas as formas
o significado desse dia estamo-nos já a lembrar do modo como nos da critica moderna não apresentarão uma visão da interpretação.
situamos no mundo e dos planos de futuro que temos; levantamo-nos simplificada e mesmo distorcida. Uma obra literária não é um
e temos que interpretar as palavras e os gestos das pessoas que con- objecto que compreendemos através da conceptualização ou da aná-
tactamos na nossa vida diária. A interpretação é, portanto, talvez lise; é uma voz que devemos ouvir, e «ouvindo-a» (mais do que
o acto essencial do pensamento humano; na verdade, o próprio vendo-a) comprendemo-Ia. Como sugeriremos nos capítulos seguin-
facto de existir pode ser considerado como um processo constante tes, a compreensão é simultaneamente um fenómeno epistemológico
de interpretação. e ontológico. A compreensão literária tem que se enr~~,~~s
A interpretação ultrapassa o mundo lingufstico em que o homem de compreensão maIS. latos e tfnmormats qúe têm a ver com o
vive, pois a própria existência dos animais depende dela. Estes sen- muro, ""'eõih--prêenlrerüâiãobm
'nosso próprIO. ser-no-müÍl<lõ:''''"''Fok
tem o modo como se situam no mundo. Um pouco de comida em rnerltl.'i'ãi1~~c~dê"CÕfiT1eCitfi~fftêrêíeiit(ffcõ~q~e
frente de um chimpanzé, de um cão ou de um gato será interpre- ~~te"~fã~~'!r!~;~t[çsJ.~lf!g~~hist~~co
tado pelo . animal em termos das suas próprias ~ necessidades e da
sua própria experiência. Os pássaros conhecem os sinais que os
que aR~~~!!!:!!!P~r~5J!...~,~Q~.,~~~
eS,t! n~ IUmillO.
~rinenêutica ~ ~do deste últnu.o ti1?9de conhecimeIÜ.o.
levam a voar em direcção ao Sul. Pretende iuntar duas áreas. da teoria da compreensão: o tema da-
:É, claro que há UlIl.ainterpretaçã() constante a muitos níveis lin- qUilOque está enVOlVIdono 1actõ'd~-C"""um:1éitô''T o
--- ífuisticos; tecidos pela convivência humana. Joachim Wach diz-nos tema de o que é a pr6pria comp;~eDsão,ÕC;S;~ sentid~ ~iS fun-
que podemos conceber a existência humana sem linguagem, mas dâD.tee «existimcial». .E"IÍqi'iãlnõC'õf'fêõ'fê"c:f~iÍtõãrêiíiãô,"" a
não a podemos conceber sem uma compreensão mútua de um IíêrmeneutIca l'íl!1boupor ser profundamente influenciada pela feno-
homem para outro - ou seja, não a podemos conceber sem inter- menologia .alemã e pela filosofia existencial. E é claro que o signi-
pretação. No entanto, a existência humana ('1) tal como a conhe- ficado que tem para a interpretação literária americana é realçado
cemos implica sempre a linguagem e, assim, qualquer teoria sobre pela aplicação desse pensamento aos problemas da interpretação
interpretação humana tem que lidar com o fenómeno da linguagem. de textos.
E entre os mais variados meios simbólicos de expressão usados pelo O es(orço constante: de lidar com o fenómeno da compreensão
homem, nenhum ultrapassa a linguagem quer na flexibilidade e naquilo .~m qüe elé"Ultrapassa a mera interpretação textual, dá à
(10) Ver o meu· artigo «Toward a Broader Concept of Interpretationl~. ISN (O) Ver Ernst Cassirer. IlPhiJosophy o/ Symbolic FOTmSIP e o capítulo sobre
(Novembro 1967), 3-14, e a minha resenha de VII in IAAR, XXXVI (Setembro linguagem na sua obra cEssay on Man ••
1968) 243-46. (O) Ver- Benjamin Whort, cLanguage, Thought and ReaJitylt.
(11) V I. 1. C'4) Ver mais adiante os capítulos sobre Heidegger e sobre Gadamer.

20 21
.. ti
.
·f"· hermenêutica um significado potencialmente lato no que se refere
a todas as disciplinas habitualmente designadas por humanidades.
A hermenêutica, enquanto se define como estudo da compreensão
das obras humanas, transcende as formas linguisticas de interpre-
tação. Os seus princípios aplicam-se não só a obras escritas, mas
também a quaisquer obras de arte. Visto isto, a hermenêutica é
fundamental em todas as humanidades - em todas as disciplinas
que se ocupam com a interpretação das obras do homem. É mais
do que meramente interdisciplinar, porque os seus princípios in-
cluem um fundamento teórico para as humanidades (15); os seus
princípios deviam colocar-se como um estudo essencial para todas 2
as disciplinas humanísticas.
O contraste acima feito entre uma compreensão -científica e HERMENEUEIN E HERMENEIA:
aquilo a que chamámos uma compreensão histórica ou hermenêu- O SIGNIFICADO MODERNO DO SEU ANTIGO USO
tica, torna mais claro o carácter distinto da tarefa interpretativa
nas humanidades. E, por contraste, também clarifica o carácter de
interpretação nas ciências. Através de um estudo da teoria herme- As raízes da palavra hermenêutica residem no verbo grego her-
nêutica, as humanidades alcançam uma medida mais cheia de auto- meneuein, usualmente traduzido por <<interpretar»,e no substantivo
conhecimento e uma melhor compreensão do carácter da sua tarefa. hermeneia, «interpretação». Uma exploração da origem destas duas
O presente estudo tenta, no entanto, lançar os fundamentos filo- palavras e das três orientações significativas básicas que elas veicula-
sóficos para explorar o significado da hermenêutica na interpretação vam no seu antigo uso esclarece consideravelmente a natureza da
literária. Esses fundamentos deverão ser uma compreensão ade-
interpretação em teologia e em literatura e servirá no actual con-
quada do que é a própria hermenêutica. Na busca dessa compreen-
texto de introdução válida para a compreensão da hermenêutica
são, este livro começa com as raízes gregas da moderna palavra moderna.
«hermenêutica»), traçando depois o desenvolvimento de certas con-
Hermeneuin e hermeneia, nas suas várias formas, aparecem
cepções da teoria hermenêutica (tanto quanto se chamou a si pr~
pria hermenêutica) nos tempos modernos. Finalmente, explora com inúmeras vezes em muitos dos textos que nos vieram da Antiguidade. \
certo pormenor os problemas que inquietaram quatro dos principais
do importante,
Aristóteles o famosoCOÍlsiderouque
no Organon m erpre um
Peri hermeneias,o tema merecia açao»
tra - \
pensadores dessa área. A busca não é de modo algum exaustiva,
mas preliminar; não entra na utilização da hermenêutica na teo- A palavra aparece na sua forma substantiva em «E lpo em Co- 1
logia contemporânea C"), nem tenta discutir"'o incremento deste lono», e muitas vezes em Platão. Encontram-se inúmeras formas do )
tema que actualmente ocorre em França ('"'). Os capítulos finais dão termo na maior parte 'ü<5S escritores antigos mais conhecidos, como
realmente algumas indicações sobre o significado da hermenêutica Xenofonte, Plutarco, Eurípedes. Epicuro, Lucrécio e Longino (').
fenomenológica no que respeita à .interpretação literária, mas opre- Poder-se-ia consagrar um estudo frutífero ao contexto de. cada ocor-
sente estudo é encarado essencialmente como uma introdução filo- rência, para determinar em cada caso os matizes de significado;
sófica à hermenêutica, podendo servir simultaneamente de funda- neste capítulo, apenas notaremos a associação das palavras com o
mento para um segundo volume que discuta a hermenêutica na sua deus Hermes, apontaremos três vertentes essenciais do seu signifi-
relação com a teoria literária. cado e sugeriremos algo sobre o seu actual sentido, especialmente
no que respeita à interpretação literária e bíblica.

('.") Ver HAMG e AAMG.


(l-) A nota 3 acima mencionada faz uma listagem de referênciaS nesse
". -
campo. (l) Atistóteles. The Basic Works, págs. 40-61. Tem intetesse uma tradução
(1?) Com uma pequena excepção que é a discussão no capítulo cinco recente do tratado; Aristóteles. «Da interpretação», com comentário· de S. Tomás
de D. I. de Ricoeur; ver também a sua cExütence et Hermeneutiquo Dialogue, de Aquino e de Caetano, tradução e introdução de Jean T. Oecterle.
IV (1965-6) 1-25, e a sua obra eLa. SITUCrun. IA Mot, L'Evenement», M EW (2) Hermêneia e hermêneuein. G E L. Ver também Johannes Bhem, Er-
r. (1968), 10-30.
meneuo. ermeneia in TDNT n. 661-66.

22 23
As origens e as três orientações significativas pendente e relevante do termo interpretaçãà. A interpretação pode
de «hermeneueÍD» e «hermeneia.» pois referir-se a três usos bastante diferentes: uma recitação oral,
uma explicação racional e uma tradução de outra língua - quer
para grego quer para português. Podemos, no entanto, notar que
A palavragrega~~:2eferia-se
de Delfos. Esta palavra, ao sacerdote
hermeneuein do oráculo
e o substantivo her- o «processo Hermes» originário, está em acção: nos três casos, há
meneia, mais comuns, remetem paar o deus-mensageiro-alado algo de diferente, de estranho e de separado no tempo, no espaço
H;ermes, de cujo nome as palavras aparentemente derivaram (ou ou na experiência, que se torna familiar, presente e compreensível;
vice-versa?). E é significativo que ~rmes J;~cie a uma fJ.m.- há algo que requer representação, explicação ou tradução e que é,
ção de transmutação - transforinar tudo aquilo que ultrapassa de certo modo, «tornado compreensível», «interpretado».
a ·compreensão humana em algo que essa inteligência consiga Para começar, podemos notar que a interpretação literária en-
compreender. As várias formas da palavra sugerem o processo volve dois desses processos e muitas vezes um terceiro. A literatura
de trazer uma ·situação ou uma coisa, da inteligibilidade à com- apresenta algo que deve tornar-se compreendido. O termo do texto

--"-----::---~-,~-~.~-
e da escrita - as ferramentas
para chegar ao~ifIcado
-_
preensão. 0~_9r~gos atribuíam :tHerme';fa desco~erta da li.q!@ª~7W<
que a compreensao humana u~
...,.~~-_ _.-~.-
..•...

das coisas e para o transmItIr aos outros.


..•..,..
pode estar longe de nós no tempo, espaço, linguagem e pode haver
outros obstáculos à sua compreensão. Isto também se aplica à
compreensão de um texto bíblico. A tarefa da interpretação deverá
Martin Heidegger, que vê a própriã"1üõSófía, 'êíiquaii~~<1tttêr- ser tornar algo que é pouco familiar, distante e obscuro em algo
pretação», relaciona explicitamente a filosofia-como-hermenêutica real, próximo e inteligível. Os diferentes aspectos deste processo
com Hermes. Hermes «traz a mensagem do destino; hermeneuein interpretativo são vitais e essenciais quer para a literatura quer
para a teologia. Examinemos, pois, cada um deles no que respeita-
é esse descobrir de qualquer coisa que traz uma mensagem, na
ao seu significado na interpretação literária e teológica. (É interes-
medida em que o que se mostra pode tomar-se mensagem. Uma
sante notar como a maior parte dos criticos literários ignoram as
tal descoberta toma-se numa explicação do que já fora dito pelos abordagens interpretativas existentes na teologia cristã contem-
poetas, que são eles próprios, segundo Sócrates no diálogo platónico porânea.)
«10m) (534 e) «mensageiros (Botschafter) dos deuses», hermenes eisin
rim tehon C). Assim, levada até à sua raiz grega mais antiga. a ori-
gem das actuais palavras «hermenêutica» e «hermenêutico» sugere o
processo de «tornar compreensível», especialmente enquanto tal pro- Hermeneuein~õn!i:!~~l
cesso envolve a linguagem, visto ser a linguagem o meio por exce- A primeira orientação fundamental do sentido de hermeneuein
lência neste processo. é «exprimir», «afirmar» ou «dizer». Isto relaciona-se com a função
Este processo de «tornar compreensível», ~ociado a Hermes anunciadora de Hermes. Do ponto de vista qa teologia, tem signi-
enquanto· ele é mediador e portador de uma mensagem, está impIf- ficado uma polémica etiniólógica que nota estar a forma inicial
cito nas três vertentes básicas patentes no significado de herme- herme próxima do latim sermo, «dizer», e do latim verbum, pala-
neuein.e hermeneia, noseuantigo uso. As três orientações, usando vra ("). Isto sugere que o sacerdote ao apresentar a Palavra está
a «anunciar» e a «afirmar» algo; a sua função não é meramente
a forma verbal (hermêneuein) para fins exemplificativos, significam:
explicar, mas sim proclamar. O sacerdote, tal como Hermes, e tal
1) exprimir em voz alta, ou seja, «dizer»; 2) explicar, como quando
. como o sacerdote de Delfos, traz notícias fiéis da divindade.
se explica uma situação, e 3) traduzir, como na tradução de uma Naquilo que diz ou proclama, ele é, tal como Hermes, um men-
língua estrangeira (').
sageiro de Deus para com o homem. Mesmo o simples dizer, afirmar
ou proclamar é um acto importante de interpretação.
Os três significados podem ser expressos pelo verbo português Ainda dentro desta primeira orientação significativa, há um
«interpretar», e no entanto cada um representa· um sentido inde- matiz vagamente difere.nte, sugerido pela: frase «expressar», que
ainda mantém Üm sentido de «dizer», mas que é um dizer que é
(') U S 121-122.
(') Ibidem. James M. Robinson nota, N H 2-3, que hermeneia era tam-
(4) Relativamente a estas três orientações significativas, ver o precioso bém usado antigamente para designar um trabalho de formulação lógica ou
artigo de Gerhard Ebe1ing «HermeneUlih R G G 111,242.

24
,
de elocução artística, aquilo a que hoje se chama «interpretação.orili.

25
j" F!

em si próprio interpretação. Por esta razão, somos orientados pelo se converte num processo visual de leitura. Naturalmente que não
modo como uma coisa se exprime - o «estilo» de uma «perfor- podemos hoje recuar para uma transmissão oral da literatura (e há
mance». Usamos este cambiante da palavra «interpretação» quando vantagens numa transmissão escrita), mas não deveríamos esquecer
nos referimos à interpretação que um artista faz de uma canção que a linguagem na sua forma originária é mais ouvida do que
ou que um maestro faz de uma sinfonia. Neste sentido, a interpre- vista e de que há boas razões que fazem com que a linguagem oral
tação é uma forma de dizer. De igual modo, a dicção oral ou o seja mais facilmente «compreendida» do que a linguagem escrita.
canto são interpretações. No tempo dos gregos, hermeneiapodia. Consideremos o facto da leitura em voz alta. A interpretação
oral não é uma resposta passiva aos signos no papel, à maneira de
No lon de Platão, o jovem intérprete recita Homero e através um fonógrafo que toca um disco; é um tema criativo, é uma «per-
das su s ~Jr
referir~ exemplo«interpreta-o»,
entoações a uma recitação oral de Romero.
exprimindo-o e mesmo expli- formance», semelhante à de um pianista que interpreta uma peça
cando-o subtilmente, transmitindo mais do que ele próprio cons- musical. Qualquer pianista poderá dizer-nos que uma partitura
tata ou compreende. Assim, torna-se tal como Rermes, num veículo musical é como uma casca. Para interpretar ..a música é preciso
da mensagem homérica. chegar ao «sentido» das frases. O mesmo se passa com a leitura da
É certo que Homero era ele próprio um intermediário entre os linguagem escrita. Um intérprete oral tem apenas um envólucro do
deuses e o homem, um «intérprete» que nas palavras de Milton, original- «contornos» de sons sem indicação do tom, ênfase ou
«justificava os caminhos de Deus para o homem». Assim, Romero atitude, e no entanto tem que reproduzir sons vivos. Mais uma
era um intérprete, no sentido mais primitivo da palavra, pelo facto vez, aquele que reproduz tem que chegar ao sentido das palavras,
de que antes dele as palavras não tinham ainda sido ditas. (É óbvio de modo a exprimir, mesmo que seja uma só frase. Mas como se
que as lendas já existiam; daí poder-se dizer que ele apenas «inter- passa esta misteriosa apreensão de sentido? O processo é um para-
pretava» e enunciava as lendas.) Dizia-se que o próprio Homero doxo confuso: para lermos algo torna-se necessário compreender
fora inspirado pelos deuses; no seu «dizer», era um intérprete deles. previamente o que vai ser dito e, porém, esta compreensão
O dizer e a recitação oral enquanto «interpretação» recordam deverá vir da leitura. O que aqui começa a emergir é um complexo
aos literatos um nível que muitos deles tendem a desprezar ou processo dialéctico implicado em toda a compreensão, na medida
mesmo a esquecer. E, no entanto, a literatura faz derivar muito do em que torna uma frase significativa e, de certo modo, numa orien-
seu dinamismo, do poder da palavra falada. Desde tempos imemo- tação oposta, lhe fornece o alvo e o relevo. Só estes conseguirão
riais que as grandes obras da .linguagem são feitas para serem ditas tomar significativa a palavra· escrita. Assim, a interpretação oral
em voz alta e para serem ouvidas. Os poderes da linguagem falada tem duas vertentes: é necessário compreender algo para o P2Q.~~
deveriam recordar~nos um importante fenómeno: a fraqueza da exprimir e, no entan!õ:ã'-p-ro"'-
p-r-l-a-c-o-'m--p-r'-e"é"n-SãõVema-pártir"deuma
linguagem escrita. A linguagem escrita não tem a «expressividade» leifúra:expf.~s.S.~:Ir!!:~mfªf.ª:fiY.j).:-·"-'·"~·~"···"-·~--··-,,,--,,,----.-
primordial da palavra falada. Todos sabemos que a passagem de ---Paiaquem profissionalmente esteja ligado à «interpretação lite-
uma língua a escrito a vai fixar e conservar, dando-Ihe estabilidade, rária», particuIarmente--pafa os professores d.e literatura, que sen-
constituindo as bases da história (e da literatura), mas ao mesmo tido terá o facto da linguagem falada' ser considerada em si mesma
tempo sabemos que a enfraquece. Na sua Carta Sétima e também como um fen6meno interpretativo? Fundamentalmente torna-se ne-
no Fédro, Platão enfatiza a fraqueza. e inutilidade da linguagem cessário reexaminar o papel da iriterpretação oral em todo o ensino
escrita. Toda a linguagem escrita apela para uma reconversão na sua da literatura. Pois não será a leitura de produções literárias (pelo
forma falada; apela para um poder perdido. Escrever uma língua estudante) uma «performance» análoga à interpretação musical?
é «uma alienação da língua,. relativamente à sua vivacidade - é uma Precisamos de nos interrogar sobre quantas produções literárias
Selbstentfremdung der Sprache ("), um autodistanciamento da fala. foram escritas directamente para serem lidas em silêncio. Os roman-
(A palavra alemã para língua, Sprache, é sugestiva dessa forma ces foram-no nitidamente e alguns poemas recentes assentam oca-
primordial da linguagem que é a de ser falada.) sionalmente sobre efeitos visuais; no entanto, mesmo nestes casos.
As palavras orais parecem ter um poder quase mágico, mas ao não é veçdade que muiPiS vezes (e com toda a justiça) imaginamos
tomarem-se imagens visuais perdem muito desse poder. A literatura os sons 'it medida' qUe"os lemos?
usa palavras de modo a tirar o máximo partido da sua «eficácia», Por exemplo, ao ler um romance de Dostoievsky, não é g.ueou-
mas, no entanto, IIlllÍto do seu poder, se esgota qu~do. a audição vimónnti'âlo~o l(':'~1Ll~í~~]iJ.~"ói:'ifãõSêr;r;;-is
'o sentido irise arável das entoações auditivas fornecntas ae acord'o
(') Ver W M 370-71"•
.--
com «o círculo...!~§~Q.Ji,.~yYª »
,..r----~------
g,ue se conSf'"rulunoprocesso

26 21
de leitura da obra? (Isto, como veremos, é na realidade o «círculo Nova Crítica sem dúvida que concordaria que uma crítica verda-
ii.ermen~ütréÕ».)AqüíeStãnovamente a vertente oposta da dia- deira, «autónoma», é a que se orienta para uma leitura oral. mais
Mcti'cã:OTe1tor fornece a «expresSão» de acordo com a sua '-Cõm- adequada do próprio texto, de modo a que o texto possa existir
preensão do texto. A tarefa da interpretação oral não é de modo outra vez como um acontecimento significativo no tempo, um ser
algum uma mera técnica que exprima um sentido totalmente co- que irradie pela sua verdadeira natureza e integridade.
piado; é uma tarefa filosófica e analitica e nunca pode divorciar-se A interpretação oral ajuda a crítica literária a lembrar-se da
do problema da própria compreensão. Mais especificamente, «o sua intenção secreta, quando considera (de um modo mais cons-
problema da compreensão», especialmente o da compreensão da ciente) a definição da «existência» de uma obra, não como uma
linguagem, é intrínseco a toda a «interpretação literária». É este coisa estática e conceptual, não como uma «essência») atemporal
problema que constitui o tema da hermenêutica. que se coisificóu enquanto conceito expresso por palavras, mas
Tomemos isto como princípio: Toda a leitura silenciosa de um antes como uma existência que realiza o seu poder de existir en-
texto literário é uma forma disfarçada de interpretação oral. E os quanto acontecimento oral no tempo. A palavra tem que deixar
princípios de compreensão que se aplicam numa boa interpretação de ser palavra (i. e. visual e conceptual) e tornar-se «evento»; a
oral também se aplicam à interpretação literária como um todo. existência de uma obra literária é uma «palavra evento») que acon-
Uma crítica literária que aspira a ser um «Enabling Act» (*), colo- tece enquanto «performance») orat('). Uma crítica literária ade-
ca-se em parte como um esforço para compensar a fraqueza e a quada orienta-se para a interpretação oral da obra na qual se
total debilidade da palavra escrita; tenta devolver à obra as dimen- concentra. Nada há na «autonomia existencial» da obra literária
sões do discurso oral. Consideremos a segunda questão: Não é ver- que contradiga este princípio; pelo contrário, a autonomia da exis-
dade que um crítico literário avaliará diferentemente uma versão tênciaestá de acordo com ele (").
oral de um soneto e uma versão escrita do mesmo? No caso da O poder da palavra oral é também significativo nessa religião
interpretação oral, não estará ele na verdade a oferecer uma inter- centrada no texto que é o Cristianismo. Tanto São Paulo como Lu-
pretação rival, uma comparação imaginária com a sua própria inter- tero são famosos por dizerem que a salvação vem pelos ouvidos. As
pretação? No caso de ser escrita, não estará à procura de outras epístolas de São Paulo foram compostas para serem lidas em voz alta
palavras escritas (e por conseguinte igualmente castrantes, retendo e não silenciosamente. Lembremo-nos que a leitura rápida e silen-
o seu conteúdo básico conceptual, visual e não auditivo) para subs- ciosa é um fenómeno moderno trazido pela Imprensa. A nossa era
tituir o que se perdeu com o som das palavras? Não estará ele de velocidade fez da «leitura, rápida» uma virtude; é-nos extrema-
num certo sentido a fornecer aquilo que uma boa interpretação mente custoso imprimir a semivocalização das palavras numa
oral fornece por meio da pura sonoridade? criança que aprende a ler, E, no entanto, isto era perfeitamente
Especialmente na «nova crítica»),é habitual imaginar que o texto normal em épocas passadas. Santo Agostinho afirma que era assim
fala por si, sem a ajuda de dados biográficos.: históricos ou psico- que lia. A teologia cristã tem que se lembrar de que a «teologia da
lógicos. O próprio texto tem o seu «ser» nas palavras, no seu Palavra» não é uma teelogia da palavra escrita mas sim da palavra
arranjo, nas suas intenções, e nas intenções da obra enquanto ser falada, a Palavra que nos confronta na «linguagem evento~ das
de uma determinada espécie. Se assim é, não será que o crí- palavras faladas. As Escrituras (especialmente na teologia de Bult-
tico - que idealmente não domina mas que antes se rende ao ser mano) são' Kerygma; uma mensagem que' deve' ser proclamada.
da obra (e é assim que deverá ser) - ajuda a restaurar a perda É certo que a tarefa da teologia é explicar a palavra na língua e no
implícita nas palavras escritas? Quando o crítico torna patentes os contexto de cada época, mas deverá também exprimir e proclamar
elementos conceptuais (as suas ferramentas) não estará a construir a Palavra no vocabulário da época. O esforço de propagação da
um contexto significativo (um «círculo hermenêutico») a partir do Bíblia impressa, auto-anular-se-á se a Bíblia for vista basicamente
qual sairá uma «performance. oral mais apropriada, mesmo que como um contrato, como um documento legal ou como uma expli-
disfarçada de leitura silenciosa mais profundamente interpretativa? cação conceptual do mundo. A linguagem bíblica actua de um
Isto ainda cumpre a intenção da Nova Crítica que é preservar a
integridade da existência da própria obra, da «heresia da paráfrase»,
~. -
modo tCltalmente .-_.
dife~nte de um manual ,de construção ou de uma
(') Usei aqui intencionalmente o vocábulo familiar de teologia do «evento
pois ela trabalha para que o texto fale por si mesmo. A esta luz, ,a
discursivo» (speech-event theology); ver W F 295 n." 313. 318 - 9 e pas$im.
(I) Algumas teorias modernas da interpretação oral orientam-se para a
(*) Decreto que conferiu à Igreja Estabelecida (Established Church) uma centração numa palavra evento. Ver Don Geiger. «The Souná. Sense and Per-
certa autonomia. (N. da T.) formance 01 Literat~. ~
j1
i
28 29
folha informativa; «Informação» é uma palavra significativa aponta uma situação sem a explicar;exP:t.".imHa Linte.cpretá_Ia, mas.. ~p}.i-
para uma utilização da linguagem diferente da que se encontra na cá-"fa--étâiiifiêm--üIriaformade «interpretação». Consideremos algu-
Bíblia. Apela para a faculdade racional e não para a personalidade mas das "dÍ1iiens<5escãestâsegunda e mais óovià forma de interpre-
no seu todo; para compreendermos uma informação não temos que tação e o seu significado actual.
recorrer à nossa experiência pessoal nem que tomar qualquer
risco - e a informação não é muito afectada por uma leitura silen-
As mensagens crípticas do ~o de Delfos_~'?_in.te!p'reta"am I
um texto preexistente; eram «in~rpretaç~ de uma situação. (As
ciosa. Mas a Bíblia não é informação; é uma mensagem, uma «pro-
clamação}}, e é suposto lê-Ia em voz alta e ouvi-Ia. Não é um próprias mensãgens precisavam de ser interpretadas·L~vavam ãIgo-l
conjunto de princípios científicos; é uma realidade de uma ordem
a~~~ir-~J.~~~e ayr~~~.~)~r~()!-cli~!~!!~t;l?c;.~o si~nl!i.~:
diferente da verdade cientifica. É uma realidade que deve ser com- tiva) mas o que fevavaro aexp~~I}l!r-seera ao m~m,?~~l!. \
explícãçw·"deãrgO"---·argó'·previâilienté ln~ipIíéããõ::-LevaY'!:gt....E~~g~
preendida como um relato histórico, é um acontecimento para ser nifiCádo})· élé --üIriã- ·situàção·- à- sua formulação verbal;, explicavam-no,
ouvido. Um princípio é científico; um acontecimento.é histórico. porvezes,-põi'y;)êloCle palaviás <lue:escondia~ tanto-quanto-"revera- \\\
A racionalidade de um princípio não é a de um evento. Neste sen-
varo. DiZiam' em palavras, algo sobre llmasituação~sobre arealidade.
tido mais profundo da palavra «histórico», a literatura e a teologia O· significado iiãó· estava escondido no, estilo ou na maneira .de dizer;
são, enquanto disciplinas, mais estritamente «históricas}} do que -n~ã-o-e-r-a-I'-'s-so-q-u-e-co-n-s-t-:-ituí~'
a-.-a-su-a-
..-p-r-e-o-cu-P-.,
ã~4õriilliãÍ11ê.Tfátiva:~e
«científica}} (9). Os processos interpretativos adequados à ciência, antes ae, umaexprrcaçãô;-D.õ-sentídõ":4e"cl.i,z~r.~àiio-sõbr~"}iü~I<lUêr
são diferentes dos processos interpretativos adequados aos aconte- outráCõisa:Ã.ssím;-~énqüãiííó "quenwn .s~ntido os oráculos apenas
cimentos históricos, ou dos acontecimentos que a teologia e a ãIiíâiii""ou: enunciavam, enquanto explicação orientavam-se para
literatura pretendem compreender. um segundo momento interpretativo - explicar ou dar conta de
A presente abordagem da primeira orientação significativa do algo.
antigo uso de hermeneuein - interpretação como dizer e como ex-
primir -levou à afirmação de alguns princípios fundamentais de O tratado de~ótete't«Peri hermenei(JS)) define a interpretação
como «enunciaçam). uma definição deste tipo sugere a primeira
interpretação, quer em literatura quer em teologia. Levou-nos à ~ntação sIgrufIcativa. «dizer» ou «anuncian>. No entanto, se o
forma e função primordiais da linguagem como som vivo, detentor texto for aprofundado, como actualmente o podem fazer aqueles
do poder de uma fala significativa. A linguagem, enquanto emerge que lêem inglês, devido a uma recente tradução com um extenso
de um não ser, não é signo mas Som. Perde algum do seu poder comentário de S. Tomás-eO), a segunda orientação também se pode
expressivo (e por conseguinte do seu significado) quando se reduz aplicar. -.
a imagens visuais -.0 mundo silencioso do espaço. Por conseguinte, f~ ,define hermen,eia_ referindo-se à operação da mente
a teologia e a interpretação literária devem reconverter a escrita que-fõrmiífâ-'jwzõsque·têm~ a ver com a veroade-õiJ--fãJSiilã1fêdãs
em discurso. Os princípios de compreensão que permitem esta con-
cÕlSas.Neste sentIJ.õ;- a.5(r~~~"iRr:Ç.tãÇã:Q!):~~:.[operação·-fúí1dãmentáI
versão constituem uma preocupação dominante! da moderna teoria ãõiÍitetectôq"üãndõ"-rôrínula um iuízo verdadelroso6f'e"uI:õã-CõiSa.
hermenêutica.
Um pedido, uma ordem, uma pergunra ou uma imprecaçãõiiãô"São
juízos, segundo Aristóteles, mas derivam de juízos. Constituem for-
mas secundárias de frases que se aplicam a situações que o intelecto
HermeneueinL~1llQ «expJicar?J originalmente percebeu sob a forma de juízo. (.É típicq em Arist6-
"teles o facto do intelecto se aperceber do significado sob a forma de
A segunda orientação significativa de hermeneuein é «explicar}). juízo.) O juízo originário «a árvore é castanha» precede qualquer
A interpretação como explIcação dá ênfase ao aspecto discursivo juízo que exprima um desejo ou uma utilização da mesma. Por
't§.. CQmQ!"een~ão;aponta para a dimensão eX:Qtk<!!!vada-llitep!.e- conseguinte, «interpretações» não são iuízos que tendam ~
tação,~do que."..j>ara a sua dííiiensão expressiva. No final de uma utilização como e um ..pe o ou uma~..9!4.<;ro m"" "ntê~
Cõiiias, as pi!avrã;não·se-iúDitam a dizer alio femb~rãtãní'6eri:i"o
JUIZos so~re aI~_~~ ~ verdaãérrõou.!.~<.?;_Aristóteles define-os
façam e ISSOS~,ª-\mLm~nto fundamental <fa mte~retãÇá.§t como «uIn" dis~ -õnãe~dade ou falsidaCre})(17 a 2). Uma
el~ ex!,licam,racionalizam e ê~~~~~ a:!:,?~çPode~os exp:...~ir consequência desta ciêfiiúçao de mterpretãç~ é que tanto a ret6-

(') Ver Carl Michalson «The Rationality 01 Faith». (D) Ver a nota (1).

30 31
demasiado depressa a fixar automaticamente a interpretação no
\.\ tação, vistoa que
rica como tendem
poética a comover
estão o ouvinte
fora do âmbito do (17 a 5). de interpre-
tratado momento da análise lógica. Os processos lógiços são ,também inter-
\ A enunciação (interpretação) não pode, segundo Aristóteles con- pretação, mas a «interpretação» prioritária e fundante tem que ser
fundir-se com a lógica, porque a lógica provém da comparação de lembrada. Por exemplo, um cientista chamará interpretação às
juízos formulados. Aenunciação é a formulação dos próprios juízos, análises de dados que faz; também seria correcto chamar inter-
não .é um processo de raciocínio que parte do conhecido para o pretação à sua visão dos dados. Mesmo no momento em que os
desconhecido. De um modo geral, Aristóteles divide as operações dados se tornaramjuízos, ocorre!J interpretação. Do mesmo modo
básicas· da mente· em 1) compreensão simples dos objectos 2) ope- um crítico literário chamará interpI:etação à análise que faz de uma
rações de composição' e de divisão, 3) operações de raciocínio obra; seria igualmente correcto chamar interpretação ao modo
partindo do conhecido para o desconhecido. A enunciação, tal como ele vê a obra.
como· é discutida na obra Da interpretação é apenas lida com o Todavia, a «compreensão» queserve de base à interpretação
S~do ser;~~~():_
a_?p<:r~ção'Cõnsn~tiv,:-=-õlVlSlva.de_~~u~ jámôiêlâ-é coiiaIêiõriã'a1Ii1eroreiaça9-~:' (tmii iiitetpretação'piéli-
".'_'-'" .•.••.••••. - .-~~' -- . '--"''''.'''''' :'~·!oi;·h__J·, -. ,., , -"~o ; .. " ...•••. , ". ,., '",'''' ,:- .. .-'

zos suscephvets,de verdaêIeõ1rfa:lsidã:ãe. A"'"'emnrcIaçaonaó e por- mmar,"-mãS"uma--lnteepretação qué-j,rovoc:uá toda. adifei-enca


~6g1ca,-reiórica· ou poética, mas mais fundamental; é a (ÍiilliIãiíçãf 'Pórqúé"êó'loca- o - pillco" ~p;râ·-~mak{t~iPretaçã()~líbs~·-
enunciação da verdade (ou falsidade) de uma coisa enquanto juízo. quenté. 'MeSiiíoqÚãííâO"íÍl:Ii·'uitêrpr~te"literário sé' voltá"para um
O que fazer com esta definição específica de interpretação, restrita põ'êriia e diz: «Isto é um poema, vou compreendê-Io fazendo isto
mas contudo frutífera? Em primeiro lugar, é significativo o facto ou aquilo», ele já interpretou a sua tarefa e consequentemente já
de a enunciação não ser «a compreensão simples dos objectos» mas moldou a sua visão do poema ("). E com o seu método, já moldou
de lidar com os processos implicados na construção de um juízo o significado do objecto. Na verdade, método e objecto não podem
verdadeiro. Actua ao nível da linguagem mas ainda não é lógica; separar-se: o método já delimitou Q que veremos. Já nos disse o
a enunciação alcança a verdade de uma coisa e incorpora-a como que o objecto é enquanto objecto. Por este facto, todo o método
juízo. O telo9 do processo não é agir sobre as emoções (a poética) é já interpretação; é, no entanto, apenas uma interpretação e o
ou provocar uma actuação política (retórica) mas sim tornar com- objecto, visto com um método diferente, será um objec~o diferente.
preensível o juízo.
Portanto, a explicação tem que ser vista no contexto de uma
A enunciação, ao procurar exprimir a verdade de algo tal como explicação ou interpretação mais funda, a interpretação que já
um juízo proposicional, inclui-se nas operações da mente mais altas ocorre no modo como nos voltamos para o objecto. A explicação
e puras, na teoria mais do que na prática; preocupa-se mais, com apoiar-se-á certamente nas .ferramentas da análise objectiva, mas
a verdade e falsidade do que com a utilidade. Não se tratará então a selecção das ferramentas relevantes é já uma interpretação da
da primeira orientàção significativa e não da segunda? Ou seja, tarefa compreensiva. A análise é interpretação; sentir a necessidade
mais do que exprimir ou dizer, não se tratará antes de explicar? de análise é também uma interpretação. Assim, a análise não é
Talvez assim seja; mas temos que ver que a éxpressão diz respeito realmente uma interpretação básica mas sim- uma forma derivada;
ao estilo, temos que notar que dizer era quase como que uma montou primeiro o palco com uma ,interpretação essencial e pri-
operação divina: anunciava o divino mais do que enunciava o mária, antes mesmo de começar a trabalhar com os dados. E isto
raciOnal.A enunciação, para Aristóteles, não é uma mensagem da infelizmente é tão verdade no que respeita à «análise noticiosa»
divindade mas uma operação do intelecto racional. E como tal, que interpreta os acontecimentos do dia, como para a análise cien-
começa imperceptivelmente a transformar-se em explicação. Come- tífica de laboratório ou para a análise literária feita na sala de
çamos já a compor e a dividir para encontrar a verdade de um juízo; aula. O carácter derivado da lógica, enquanto dependente de propo-
porque o dizer é pensado como juízo, começa já a afirmar-se o sições, é suficientemente claro; o carácter caracteristicamente deri-
elemento racional, a verdade torna-se estática e informativa, é um vado da explicação ou análise não é tão óbvio, mas não é menos
juízo sobre uma coisa que corresponde à sua essência. Já a verdade real ,
é «correspondência» e o dizer é «juízo»; imperceptivelmente, a ver- Um uso interessante da palavra hermenêutica aparece no Novo
dade do «acontecer» transforma-se na verdade estática de princípios Testamento, em Luors'24, 25-27. Jesus re~uscitado aparece:
e de juízos.
E, no entanto, Aristóteles teve razão ao situar o momento da ('1) Isto 6 uma fraqueza inerente ao, género critica, por exemplo àtra-
gédia. Há observaçõesbrilhantes sobre este tipo de critica, aplicadas a Ssquilo.
interpretação mais cedo do que os processos de análise lógica. Isto em H. D. F. Kitto. «Fama anã Meaning in D,.ama» e mais recentemente na
chama a atenção para um erro do pensamento moderno, que tende sua «l'oiesin.
J
32 ,33
E disse-lhes: «Ó homens loucos, lentos em acreditar no ·qae
os profetas disseram! Então não era necessário que Cristo
sofresse tudo isto antes de ser glorificado?» E começando
pelos livros de Moisés e por todos os profetas interpretou- nificadose inten~~.iá...aceites.~Em
mós-orrutuêi'ãíilénte per~tar
com,.pre,e.'~,.~ãO-,pres:', quehermenê or.e "esta__
ao:::;áI'eae.c.e~sAria
o.f.. ré-comPreensão.
pre-çom
U?"~.s.~,<.I_,,é~esi.'.in.-_~,ªa,.'.6,
,P,'
de_~l.lIJJa
P.O,d.?-\
-'lhes .(diermeneusen) tudo o que acerca dele se dizia nas para -Põdermos·'S~!l~~c~r.})t~!to. L~dô):
Escrituras. --~Jesus forneceu aos seus ouvintes 'às elementos necessários para
compreenderem os textos proféticos; isso fazia parte da explicação
Repare-se que Cristo apelou para as faculdades dos discípulos: necessária. Mesmo assim, tinha que assumir uma pré-compreensão
«Então não era necessário?» Depois desvendou o significado dos do que era a profecia e daquilo que ela poderia significar para eles
textos colocando-os no contexto do seu sofrimento redentor e colo,. antes de poder explicar-se perante os seus ouvintes. Poderíamos
cando esse sofrimento no contexto das profecias do Antigo Testa- perguntar qual o horizonte interpretativo que um grande texto
mento. Embora a utilização que o Novo Testamento faz do Antigo literário habita e, depois, como é que o horizonte do próprio mundo
Testamento tenha interesse em si mesma, deixemos de parte o de intenções, esperanças e pré-interpretações de um indivíduo se
\ problema teológico e interroguemo-nos sobre o que o exemplo sugere relaciona com ele. Esta fusão de dois horizontes deve ser consi-
sobre a interpretação enquanto explicação. A citação é nitidamente derada um elemento básico de toda a interpretação explicativa.
um exemplo de explicação, porque Jesus estava a fazer algo mais Uma forma de interpretação literária que, como foi sugerido,
do que repetir ou reafirmar os textos antigos; explicou-os e expli- tem como meta uma interpretação oral mais completa, não des-
cou-se a si mesmo em função deles. Aqui a interpretação envolve prezará as dimensões explicativas da interpretação. Longe disso, o
a busca de um factor externo, Cristo, para designar o «sentido» dos enquad~an:t,ep.!Q.'p-p
)lorizonte,,l1o qual StL.coloca a compreensão é
textos antigos. Só na presença deste factor é que os textos se tor- o fundamento de uma interpretação oral Y~r4~çiefrªmeP:t.e,_c9mu-
nam significativos. Por outro lado, Cristo é também visado para niCãtiVã.(Lembremos que interpretaç'ãôóÍ-ái é o que todos faZemos
mostrar que só à luz dos textos o seu sacrifício se toma significa-
tivo enquanto cumprimento histórico do profetizado Messias. seu significado; pode não ser em públi~o ou mesmo em voz alta.)
O que é que isto sugere do ponto de vista hermenêutico? Sugere i Para que o intérprete faça uma «performance» do texto tem que o
que o significado tem a ver com o contexto; o processo explicativo i compreender; tem que previamente compreender o assunto e a
quãIícIÕao ler de
situação antes umentrar
texto no
procuramos
horizonte fornecer todas as nuances
do.seu significado. do (
S~ quando
significativo dentro de um contexto específico. Mais ainda: Cristo ~nseg1lt:,_~~.ter-se no círcul0E.l.~gi,~_9.._~~~~º.tll~LtJill~~9-.
ao relacionar
fornece a sua
o palco da morte coril a esperança
compreensão. num Messias,
Um acontecimento só relaciona
se torna)1 \!1!§.ipretecorisegue~cõmpreeõder o seu signific~do. Esse é o tal
este acontecimento histórico com as esperanças pessoais e intenções 'misterlósõ~«cíicuiõhermenêuiic'õ»sêm-ô=-q:;âlô"'s~~tido do texto

pessoal e histórico. O significado está numa relação com os pró- rlãõ·põa-e eÍn~gU::-"fJas ha ai Ui1íacõiítrãélÍçaõ':--tõmo :póde~1
prios projectos e intenções dos ouvintes; não ~ algo que Jesus pos-
t,::~~~~~p~eel!didO;-qmmd'O'lCêõiidiÇãõ-Pâraâ sua=~_~§~~~,~~~~\
dos seus ouvintes. Ó seu significado toma-se o de um Redentor I e Ja ter perceoícI(1-de-~que~(}l1:dll.?"-A-·fesposta e que,
sua em si próprio, fora da história e fora da relação que tem com de--·certõ"~ríiooo;·pot'"·unr;pro-êêsS'd'·~fca;-1:1á uma compreensão
os ouvintes. Podemos dizer que um objecto não tem sentido fora parcial que é usada para compreendermoscadà vez mais,tal como
de uma relação com alguém e que a relação determina o signifi- ao manusear as peças de um «puzzle» adivinhamos o que dele
cado. Falar de um objecto independentemente de um sujeito que o falta. Uma obra literária fornece um contexto para a sua própria
perceba é um erro conceptual causado por um conceito realistica- .compreensão; um problema fundamental em hermenêutica é expli-
mente inadequado, quer da percepção quer do mundo; mas mesmo car como é que um horizonte individual se pode acomodar ao hori-
aceitando esse conceito,' será pertinente falar de sentido e de signi- zonte da obra. É necessário um certo conhecimento prévio, sem
fado fora de sujeitos que percepcionem? õ'q;i'.;r;ão haverá qualquer comunicação. No entanto, esse conhe-
Os teólogos gostam de realçar o aspecto pro nobis (para nós) cimento tem que ser alterado no acto de compreensão. A função
de Cristo, mas podemos afirmar que em princípio todas as expli- de uma Í1lterpretação explicativa na interpretação literária pode ser
cações são «para nós», toda a interpretação explicativa assume inten- vb'1anest'J confexto, 'como um esforço para colocar os fundamentos
ções naqueles a quem a explicação se dirige. numa pré-compreensão que permita compreender o texto;
Outro modo de dizer isto é afirmar: a interpretação explicativa A medida que consideramos estas duas orientações da interpre-
toma-nos conscientes de que a expucaçaoe conrextuaJ. é «horizon- tação (dizer e explicar), a complexidade do processo interpretativo t
taIii,-(lfõfz"toiiarr.-ueve processar-se dentro de um fionzonte de sig- e o modo como ele se baseia na compreensão começam a aparecer. ,
_ ••• _ ••.,, ._~ •• 4' ••• ""-,.,---
-------=:..::.:::!!:-
34 3S
A interpretação como «dizer», relembra a natureza da leitura como A tradução é uma forma especial do processo básico"interpre-"
«performance»; contudo, mesmo na «performance» que é ler um tativo de tornar compreensível. Neste caso, tornamos compreensível
texto literário, o actor tem que o «compreender». Isto implica expli- o que é estrangeiro,estranho ou ininteligível, utilizando como
cação; mas aqui, mais uma vez a explicação se fundamenta numa medium a nossa própria língua. Tal como o deus Hermes, o tradutor
pré-compreensão, de modo a que anteriormente a qualquer expli- é um mediador entre um mundo e outro. O acto de traduzir não
cação significativa ele tem que entrar no horizonte do tema e da é uma simples questão mecânica de encontrar sinónimos. Os resul-
situação. Ele tem que," na própria compreensão do texto, agarrar tados ridículos das máquinas tradutoras tomaram isso por de mais'
esse texto e ser agarrado por ele. A sua posição neste encontro, evidente. O tradutor é um mediador entre dois mundos diferentes.
a pré-compreensão do material e da situação a que tem que chegar, ~~t.cªJ;lJJç~?-
torn::-~<:~Q...l!§Çj~J:IJ~~.~2.","~cto
de que a própria língua
numa palavra, todo o problema da fusão do seu horizonte com- conté!!L.y.ma mterpretação. A traduçao torna-nos conscient;;s ae
preensivo com o horizonte compreensivo que vem ao encontro dele 'que-a própriaTí:Õiüãcõntém uma visãoenglobante do mundo, à
no texto, nisto consiste a complexa dinâmica da interpretação. qual o tradutor tem que ser sensível, mesmo quando traduz expres-
É o «problema hermenêutico». sões individuais. A tradução apenas nos torna mais totalmente
Considerar os elementos acima indicados do problema interpre- conscientes do modo como as palavras na realidade moldam a nossa
tativo, não é, como alguns poderiam pensar, cair no «psicologismo». visão do mundo, mesmo as nossas percepções. Não há dúvida de
Porque a perspectiva em que a acusação de «psicologismo» e a que a língua é um repositório de uma experiência cultural; existi-
atitude de antipsicologismo (pressuposta na acusação) ganham algum mos nesse medium e através dele; vemos através dos seus olhos.
sentido, pressupõe de base uma separação e um isolamento do A tradução da Bíblia pode servir de ilustração aos problemas
objecto e depois considera depreciativamente a reacção «subjectivu da tradução em geral eu). A Bíblia chega-nos de um mundo distante
como se ela estivesse no campo intangível dos «sentimentos». No no tempo, espaço e língua, um mundo estranho que temos que
entanto, a discussão aqui apresentada não lidou com sentimentos interrogar (e que nos interroga). De certo modo, o horizonte do
mas com a estrutura e a dinâmica da compreensão, com as condi- nosso universo compreensivo deve encontrar-se e fundir-se com o
ções em que o significado pode surgir na interacção do leitor com horizonte compreensivo do texto. Mediado não só. pela língua maS
o texto, com o modo como qualquer análise pressupõe já uma também pela história (um espaço de tempo de dois mil anos), o
definição formada da situação. Dentro do enquadramento destas Novo Testamento deve falar com palavras que sejam do nosso
considerações, vemos como é verdadeira a observação de Georges mundo, que constituam o nosso medium para ver o que existe.
Gurvitch - que objecto e método nunca podem separar-se r'). Como podemos esperar compreender acontecimentos que se passa-
É claro que isto é uma verdade estranha ao modo realista de ver. ram num contexto totalmente diferente da moderna cidade secular
de comunicação de massas, de conflitos mundiais, gás, napalm,
.•.
armas atómicas e guerra bacteriológica? Devemos manter a acção
Hermeneuein como «traduzir» literal do Novo Testamento ou apresentar o "que seria o seu equi-
valente nos tempos modernos? Eugene Nida, por exemplo, no seu
As implicações da terceira orientação do significado de henne- livro sobre ciência da tradução, cita o exemplo da frase caracte-
neuein são quase tão sugestivas para a hermenêutica e para a teoria rística de S. Paulo: ~(Cumprimentai-vosuns aos outros com um santo
da interpretação literária como as outras duas. Nesta orientação, beijo.» O beijo era o cumprimento habitual nos termos do Novo
«interpretar» significa «traduzir». Quando um texto é na própria Testamento mas não o é nos dias de hoje. Uma versão do século XX
língua de um autor, o choque entre o mundo do texto e o do seu deverá dizer: «Cumprimentai-vos uns aos outros com um caloroso
autor pode passar despercebido. Quando o texto é numa língua aperto de mão?»
estrangeira, o contraste de perspectivas e horizontes não pode ser Este exemplo é um problema menor, comparado com as ques-
ignorado. No entanto, como veremos, os problemas daquele que tões mais fundas do choque entre toda a visão do mundo do Novo
interpreta línguas não são estruturalmente diferentes dos do crítico Testamento e a visão do mundo moderno,: científica e pós-deística.
literário que trabalha com a sua própria língua. Permitem-nos ver ~ exactakenttresteoproblema que o teólogo alemão Rudolf Bult-
mais claramente a situação presente em qualquer interpretação mann tentou encarar com o seu projecto controverso de desmito-
de texto.
(13) Eugene A. Nida. tTowartl a Science 01 Translating: with special rele-
. "("')" Georges Gurvitch, «Diidectique et Sociologie:t>. renel! to Principies anil Procetlurez 11• ..,olved in. Bible Translatinp.
!
!J6 37
logização. Bultmann nota que a mensagem bíblica se coloca no na determinação de como é que uma coisa é significativa. Uma
contexto de uma concepção cosmológica em que os céus são colo- abordagem da interpretação literária que se concentre na enume-
cados em cima, a terra no meio e o mundo subterrâneo em baixo- ração de imagens de um ou de outro tipo, ou que se focalize na
é um universo de três níveis. A resposta a tal situação é afirmar forma de uma obra, ou que faça uma análise temática de uma
que a mensagem do Novo Testamento não está dependente da sua obra ou de várias, deixa passar de facto o problema da «signifi-
cosmologia. Esta é apenas o contexto de uma mensagem sobre a cação». Uma abordagem literária que encare a obra como um
obediência pessoal e a transformação num «homem novo». A desmi- objecto afastado dos sujeitos que a percepcionam, automaticamente
tologização é uma tentativa de separar a mensagem essencial da foge ao problema daquilo que na verdade constitui o significado
«mitologia» cosmológica na qual nenhum homem moderno pode humano de uma obra. No entanto, é possível que a crítica literária
acreditar. americana acorde uma manhã, descobrindo que, ao pôr de lado
Sejam quais forem os méritos teológicos da desmitologização a questão de tornar humanamente relevante uma grande obra atra-
enquanto solução para este dilema interpretativo, o próprio projecto vés da interpretação da mesma, os exercícios complicados que faz
aponta para um problema profundo: Como devemos «compreender» no domínio da imagem, da forma e da análise temática, acabaram
o Novo Testamento? O que é que estamos a tentar compreender? por se transformar num passatempo insípido para professores de
Até onde temos que penetrar no mundo histórico do pensamento inglês. As suas dissecações perderam interesse; tal como Deus, a
e da experiência próprios do Novo Testamento antes de o podermos «literatura morreu»; morreu porque os seus intérpretes estão mais
interpretar? Será de algum modo possível encontrar equivalentes interessados em conhecer a sua estrutura e a sua função autónoma
para a «compreensão» do Novo Testamento? Será que o nosso do que em mantê-Ia viva e humanamente significativa. A literatura
mundo mudará tanto num século que o Novo Testamento se tor- também pode morrer, morrer de fome pela ausência de uma rela-
nará ininteligível? Já hoje é mais difícil para os jovens dos centros ção com o leitor. As interpretações teológica e literária terão que
urbanos compreender Homero, devido aos componentes da vida ser humanamente significativas para os dias de hoje, caso contrário
homérica - barcos, cavalos, charruas, lanças, machados, odres de perderão todo o valor.
vinho - serem artigos que eles apenas conhecem de livros ou de Os professores de literatura têm que se tornar peritos em «tra-
museus. Isto não é sugerir que Homero esteja fora de moda mas i dução», mais do que em «análise»; a sua tarefa é transformar o
sim que o esforço para o compreendermos se torna cada vez mais }.: que é estranho, pouco comum e obscuro, em algo que tenha signi-
difícil à medida que mecanizamos o nosso modo de vida. ficado, que «fale a nossa língua». Isto não significa pressionar os
Desmitologizar não é um problema meramente teológico; ocorre clássicos e apresentar Chaucer num inglês do século XX; significa
com menos mas ainda significativa premência quando tentamos reconhecer o problema da existência de um conflito entre hori-
perceber qualquer obra antiga. A actual teologia da «morte de- zontes, significa prepararmo-nos para lidar com ele, mais do que
Deus» é uma outra forma de desmitologizar, mas clarifica um pouco varrê-Io para debaixo do tapete, concentrando-nos em jogos analí-
mais o problema da compreensão moderna da àntiga tragédia grega: ticos. A visão do mundo..·implícita num poema ou pressuposta por
Como é que por exemplo podemos considerar significativa uma ele e portanto essencial para a sua compreensão, não devia ser
peça de ::sofocles,se o antigo Deus da metaffSicâmorreu e se o tratada como uma espécie de falácia de uma crítica histórica ultra-
Dé-üs v!y~elãÇ~~~iiÜ:E,ª~·J-fi~men~2.ffiga!iiili~if~s.~erá passada.
é~ça de teatro um monumento a um Deus morto ou a um Por exemplo, um pré-requisito essencial para compreender a
conjunto de deuses mortos? Será, tal como disse o crítico Raleigh Odisseia é o reconhecimento básico de que as coisas naturais são
acerca do Paraíso Perdido, um «monumento a ideias mortas.? dotadas de vida e de intenções, de que o universo é uma questão
Como é que uma peça grega deverá ser traduzida para uma língua de terra e de água até onde o podemos enxergar, de que cada
moderna? Ou como é que devem ser compreendidos os antigos processo natural é o resultado da vontade de um ser sobrenatural,
termos? Como devemos evitar que as obras antigas se assemelhem e de que Os deuses são chefes sobre-humanos -com todas as fra-
a meras comédias? O que muitos professores de clássicas têm feito, quezas dos seres humanos, sendo, no entanto, seres queactuam
é verdadeiramente desmitologizar quando defendem - a relevância numa vetsão mais--erevá.dado código do herói grego, centrado na
de um trabalho na base do seu perene significado humano. honra. Só quando avançamos neste mundo que já não é o nosso
Mesmo assim este «significado humano. tem que ser interpre- mundo real, é que nos centramos no homem dos estratagemas ili-
tado' em termos de auditores modernos (a fase explicativa de inter- mitados, esse herói que se aventura arrojadamente nas garras da
pretação), e para proceder deste moci.o temos que ser mais precisos morte, esse inventor de contos que con~eguia contar uma história
;
38- 39
de modo a (quase) enganar a sua protectora Atena, esse pesquisador A hermenêutica moderna encontra na tradução e na teoria
insaciável de conhecimentos perigosos, Odysseus. Ogénio das aná- da tradução um reservatório imenso para explorar o «problema
lises textuais de Erich Auerbach (lidando por exemplo com a cica- hermenêutico». Na verdade, a hermenêutica no seu estádio histó-
triz de Odysseus) não reside apenas na sua lealdade e capacidade rico primitivo sempre implicou a tradução linguística, quer como
de resposta ao modo como a história é contada, mas também no hermenêutica filológica clássica quer como hermenêutica bíblica.
seu reconhecimento de que o sentida de realidade subjacente é uma O fenómeno da tradução é o próprio cerne da hermenêutica: nele
chave para a compreensão C'). Assim, o sentido· de realidade e o se confronta a situação básica da hermenêutica, de ter que compor
modo de estar no mundo patente na obra devem ser um ponto o sentido de um texto, trabalhando com instrumentos gramaticais,
central para uma interpretação literária «capaz», a base para uma históricos e outros para decifrar um texto antigo. E, no entanto,
leitura da obra que pode «agarrar-nos» (e «ser agarrada») pela sig~ tal como dissemos, esses instrumentos apenas são formalizações
nificação humana da sua acção. A metafísica (definição da reali- explícitas de factores implicados em qualquer confrontação com
dade) e a ontologia (característica de estar no mundo) de uma obra um texto linguístico, mesmo na nossa própria língua. Há sempre
são fundantes para uma interpretação que torna possível uma dois mundos, o mundo do texto e o mundo do leitor, e por conse-
compreensão significativa. quência há sempre a necessidade de que Hermes «traduza» de um
A tradução consciencializa-nos, pois, do· choque entre o nosso para o outro.
universo de compreensão e aquele em que a obra actua. Enquanto Esta discussão sobre a origem de hermeneueine hermeneia
que a barreira da língua toma mais visíveis estes dois universos e as três orientações significativas do seu antigo uso ocorreu no
compreensivos, eles estão presentes em qualquer interpretação de contexto do problema hermenêutico em geral. Assim serve de
uma obra escrita na nossa própria língua, e em qualquer diálogo introdução a alguns dos problemas essenciais e alguns dos conceitos
autêntico, especialmente· entre interlocutores separados por dife- de hermenêutica que aparecerão nos capítulos seguintes. As defi-
renças geográficas. Na literatura inglesa, mesmo um espaço de cem nições modernas de hermenêutica darão ênfase quer a uma quer
anos produz algumas transformações na língua, de modo que os a outra orientação do rico manancial de significado existente nas
problemas de interpretar Wordsworth, Pope, Milton, Shakespeare raízes gregas das quais derivou o termo «hermenêutica». É bom que
ou Chaucer implica o encontro de dois mundos contrastantes, no o campo da hermenêutica volte constantemente ao significado das
plano histórico e no plano linguístico, e para americanos que nunca três orientações significativas da interpretação como dizer, como
visitaram Inglaterra a separação é ainda maior. explicar e como traduzir.
É-nos necessário um esforço de imaginação histórica e de «tra- fi
I,
dução» só para considerarmos o mundo da Inglaterra de Words- t,
"
worth, na orla da industrialização mas ainda essencialmente rural. .!i

Ver a Itália de Dante e mudar-nos para esse mundo ao compreen..;


dermos à Divina Comédia não é só uma questito de mera tradução
linguística (embora a tradução nos diga muito); é uma questão de
tradução histórica. Mesmo com a melhor tradução inglesa, o pro-
blema da compreensão implicado no. encontro com um horizonte .
distinto da compreensão da existência humana está sempre presente.
A desmitologização é um reconhecimento deste problema em ter-
mos de interpretação bíblica; mas em princípio, como se observou,
a desmitologização deve Ocorrer com qualquer leitura de documentos
históricos ou textos literários, mesmo que a desmitologização não
tente roubar a originalidade da sua imediatez dramática. Resu-
mindo, uma explicação da visão do mundo implícita na própria
linguagem, e depois na utilização da linguagem numa obra literária, ;,
é um desafio fundamental para a interpretação literária.

(14) «OdY:fseu':f scar», Mimesis, págs. 1-20.

40 41
3

SEIS DEFINIÇõES MODERNAS DE HERMENÊUTICA

Porque evoluiu nos tempos modernos, o campo da hermenêutica


tem sido definido pelo menos de seis maneiras diferentes. Desde
o começo que a palavra significou ciência da interpretação, refe-
rindo-se especialmente aos princípios de uma exegese de texto
adequada. Mas o campo da hermenêutica tem sido interpretada
(numa ordem cronológica pouco rigorosa) como: lt._':l!!!ª-.,,!~~ria
gª exegese bíbli~a; 2) lJIDa metodologia filolõgica. ,~eral; l.L~§~a
bênciade 'to1a a' éõmpreensãg'lÚlguistTêâ;"'4)'ü;:n;' 'b~;-'metodo-
lÓ&Íca'•.dOs.·GeiSteswrsse;ls~h~fte~;'·55·üm.a·ie'íiori1enojõgi~ '-d~'-eXis-
tê.J.?.c::~a " edii' compreeÍl'sã6-'ex{ifêÍiêTàI;'6j' slstemâs'dé "iíitérpretação,

sImuliãneamenté ·····reêõlearvõs~·'e·"·m'êõiiõê1ãslfcÕiÇ·iíli1iZãd6s ....pelo


home::rTIpãta""3.1tânçar' "o"'sIgiilfíêadõ"siió~é~n:tt;,
..ªi5[mítos"e-síffi15õros.
",ceàda uma' destas defifiiçõe§'é':iíiâIsclo' que um esiádrô-hiSfÓrlcô;
cada uma delas indica um «momento» importante ou uma abor-
'dagem ao problema da interpretação. Podiam ser chamadas de
ênfase bíblico, filológico, científico, geisteswissenchaftliche, exis-
",tencial e cultural (1). Cada uma representa essencialmente um ponto
>de vista a partir do qual a hermenêutica é encarada; cada uma

(1) Todos estes adjectivos c1assificativos são de certo modo inadequados


e não satisfatórios; uso-os de um modo experimental e provisório para indicar
aaIteridade entre as seis diferentes abordagens. A hermenêutica bíblica tem
.muitas orientações diferentes; só no século dezoito incluía a gramática, a his-
. ,tória, .0 pietismo e outras escolas, e continuou a ser maximizada até aos dias
de hoje. A hermenêutica «Filológica» também gozou de um desenvolvimento
complexo no século dezoito. A «científica» é de certo' modo ilusória no que
. se refere a Schleiermacher pretendendo apenas sugerir a tentativa feita por este
.. autor de dar à hermenêutica uma base universal e sistemática. A geisteswissen-
. schaftliche refere-se ao projecto de Dilthey A «existenciab cobre as concepções
-hennenêuticas de Heidegger e de Gadamer. Por último a «culturab sugere
imperfeitamente a riqueza das aplicações que Ricoeur faz da hermenêutica
na sua procura. de uma filosofia mais adequada, centrada na interpretação dos
'símbolos. A hermenêutica jurídica é, de um modo geral, omitida.

43
quaisquer regras de uma hermenêutica sóbria e justa.» (') Um
esclarece aspectos diferentes mas igualmente legitimos do acto da século mais tarde, Longfellow, no Hyperlon, põe o Irmão Bernardo
interpretação, especialmente da interpretação de textoS. O próprio a falar sobre «os meus papéis e a minha grande obra de Herme-
conteúdo da hermenêutica tende a ser remodelado com estas mudan- nêutica Bíblica» (").
ças de perspectiva. Um esboço destes seis momentos ilustrará este Quando a utilização da palavra se alargou para se referir a tex-
tema e servirá de breve introdução histórica à definição da herme- tos não bíblicos, repare-se que os textos são obscuros, como se pre-
nêutica. cisassem de métodos especiais para deles extrair um significado
oculto. Por exemplo, a referência a uma «aprendizagem da musa
hermenêutica» num caso (W. Taylor, 1807) ('), sugere uma inter-
Hermenêutica como teoria da exegese bíblica venção deste género, tal como «o método hermenêutico de um
significado profundo e oculto» (D. Hunter, traduzindo a obra de
O<~s}gmf!(;_a.d.º!llaisantigo e talvez ainda o mais. dihlndido da Reuss, Historical Canon, 1884) ('). De igual modo, a firmação de
palav~ã .«herm~nêutica». refeI'e~se.aos ..piincípi?s da .'inteip'fétaçãO Edward Burnett Tylor em Primitive Culture (1871): «Nenhuma
-'"-~'
b1bÍica:Jiâ umâ'jusiifiéâi;ão' histórlCa para esta defiííiçãô, visto que
a palavra encontrou o seu uso actual precisamente quandO surgiu
lenda, nenhuma alegoria ou rima infantil está a salvo da herme-
nêutica de um teórico radical da mitologia» ("). Portanto, no seu
a necessidade de regras para uma exegese adequada das Escrituras. uso em inglês, a palavra pode referir-se a uma interpretação não
Provavelmente, o primeiro registo da palavra enquanto titulo de bíblica, mas nesses casos, o texto é de um modo geral obscuro ou
um livro foi a obra de J. C. Danhauer, Hermeneutica sacre sive simbólico, requerendo um tipo especial de interpretação para que
methodus exponendarum sacrarum litterarum, publicada em se alcance o seu significado escondido. A definição mais geral de
1654 (I). hermenêutica manteve-se corno sendo a de urna teoria da exegese
Mesmo só pelo título do livro, percebemos que a hermenêutica escrituras.
se diferencia da exegese enquanto metodologia da interpretação. Enquanto q~,e~_Q,..J21.;6priQ.~~LI!!Çl«hermenêutica»
ap.ena~_MçlJ.Jê-
A distinção entre o comentário real (exegese) e as regras, métodos
ou teoria que o orientam (hermenêutica) data desta utilização pri-
~~~?:!y~Í: a.s.OR~E~~§!~,-:<!~~~egéSe~it~~~:-cãs:!e:m
1,~:'EPE~~~~~o=.~~ll.s{o~~?
..l!!~nlpa.,.legar;;;... l!<mÓJ:lf.~IJ:!._r~.!itWl}..l~,~ª~.
mitiva e permanece fundamental para uma distinção da herme- J\sslm, urna vez aceIte a palavra corno designando urna teona da
nêutica, quer na teologia quer, quando a definição foi ulteriormente ,exegese, o campo que cobre estende-se geralmente (poderíamos dizer
alargada, relativamente à literatura não bíblica . . que retroactivamente) na exegese bíblica, aos tempos do Antigo
Depois do aparecimento da obra de Danhauer, o termo parece ; Testamento, quando havia regras para se interpretar adequadamente
ter surgidO cada vez mais frequentemente, especialmente na Ale- pa Torah ("). Existe urna relação hermenêutica importante entre O
manha. Aí, houve círculos protestantes que sentiram vivamente a ·~ovo e o Antigo Testamento pois Jesus explica-se à si próprio aos
necessidade de manuais de interpretação que ajudassem os sacer- . 'Judeus, em termos de profecia bíblica. Os estudiosos do Novo
dotes na exegese das Escrituras, dado que os sacerdotes estavam !estamento detectam nos Evangelhos (especialmente no Evange-
desligados de qualquer recurso à autoridade da Igreja para decidirem <lho de S. João) ('0) e nas epístolas de S. Paulo, operações para
sobre questões de interpretação. Assim houve um ímpeto forte no
desenvolvimento de padrões viáveis e independentes para interpretar
a Bíblia; entre 1720 e 1820, não passava um ano que não aparecesse «) v, 243.
algum noVO manual para ajudar os pastores protestantes ('). (') Henry Wadsworth Longfellow, «Prose Works» , II, 309. «Hyperion~ é
Na Inglaterra e mais tarde na América, a utilização da palavra um romance' em prosa, uma das duas únicas obras de ficção em prosa que
«hermenêutica» seguiu a tendência geral de referência a uma exe~ Longfellow pretendia conservar.
(") O E D V, 243.
gese especificamente bíblica. O primeiro uso registado no Oxford (') Ibid.
English Dictionary remonta a 1737: «Tomar tais liberdades com as

-
(') «Primitive Cu!ture», I, 319.
Sagradas Escrituras, que não são de modo algum permitidas por (') O artigo final de Ebeling, acima citado, divide o desenvolvimento da
hermenêutica bíblica em sete periodos históricos: Pré-cristão, Cristão Primitivo,
Patrística, Medieval, Reforma e Ortodoxo, Moderno, Contemporâneo. Também
'nos dá referências bibliográficas abundantes para cada período.
(") Ebeling, «Hermeneutib, R G G m, 243. \,,' '. (lC) Ver,Frederik W. Herzog, «Histotico-OntoJog1cal Hcrmeneútic ln the
(') Ver ibid., 242; Heinrlci, «Hermemeutib, R P T K VII, 719; e E. "'Fourth Gospeb, «Understanding God~, págs. 65-68.
Dobschütz, dnterpretation~, ERE VII, 390-95.
45
44
interpretar Jesus aos seus ouvintes de acordo com um certo sistema
de compreensão. A «teologia» já está em acção; num certo sentido, Isto aumenta grandemente o âmbito da hermenêutica bíblica, e
a própria teologia enquanto intérprete histórica da mensagem bíblica, de imediato a tarefa de escrever, por exemplo, uma história da
é já hermenêutica. A história da hermenêutica bíblica podia tra- hermenêutica bíblica alarga-se da consideração de fontes relativa-
çar-se: através da Igreja primitiva; dos patriarcas; da interpretação mente controláveis que discutem o problema hermenêutico, ao
medieval quadruplicada da Bíblia; da luta de Lutero contra os exame dos sistemas de interpretação implícitos em todos os grandes
sistemas de interpretação místicos, dogmáticos, humanísticos e comentadores da Bíblia, desde os tempos antigos até aos nossos
outros; do aparecimento do método histórico-crítico no século XYIII dias (13). da
Uma hist6ria deste tipo, transforma-se essencialmente em
história teologia (H).
e do complexo de forças em actuação durante este período, que-
rendo remodelar a interpretação das Escrituras; do contributo de Levando as implicações deste âmbito mais lato da hermenêutica
Schleiermacher; da escola da história das religiões relativamente (enquanto sistema simultaneamente implícito e explícito de interpre-
à interpretação; do aparecimento da teologia dialéctica nos anos tação) para uma definição de hermenêutica que se apliqul': à litera-
de 1920 e da Nova Hermenêutica na teologia contemporânea. Não tura bíblica e não bíblica, o perímetro da hermenêutica não-bíblica
podemos apresentar aqui uma história com tantos pormenores; torna-se historicamente tão vasto que fica incontrolável. Quem por
1imitar-nos-emos a apontar simplesmente dois pontos, um sobre exemplo poderia pensar em escrever uma história da hermenêutica
a natureza da hermenêutica indicada pelo exemplo da hermenêutica assim definida? O sistema interpretativo implícito em todo o comen-
bíblica, e outro sobre a questão do âmbito. da hermenêutica. tário de texto (jurídico, literário, religioso) no pensamento ociden-
Sem entrarmos em pormenores, será interessante notarmos a tal- de resto porque não incluir também os sistemas Orientais?-
tendência geral da hermenêutica bíblica de confiar num «sistema» teria que ser incluído. Na sua obra-prima de dois volumes (") Emilio
de interpretação a partir do qual as passagens individuais possam Betti deu uma contribuição essencial para a apresentação de um
ser interpretadas. Mesmo na «hermenêutica» protestante há uma cruzamento de várias disciplinas interpretativas numa perspectiva
procura de um «princípio hermenêutico» que sirva de guia ("). actual de interpretação; no entanto, este esforço possante é ape-
O texto não é interpretado em si mesmo; de facto, pode ser que nas urna fracção daquilo que uma tal «bistória da hermenêutica»
implicaria.
isto seja um ideal impossível. Por exemplo, no liuminismo, o texto
bíblico é um receptáculo de grandes verdades morais; no entanto, Podemo-nos ainda interrogar se, quer uma história completa da
essas verdades encontram-se nele porque se moldou um princípio hermenêutica quer uma síntese inclusiva das muitas diferentes teo-
interpretativo que as encontrasse. Nesse sentido, a hermenêutica rias disciplinares da interpretação (partindo do princípio que ambas
é o sistema que o intérprete tem para encontrar o significado oculto as perspectivas seriam possíveis) constituiriam, na verdade, uma res-
do texto. posta adequada ao problema bermenêutico actual. Ambos os pro-
A outra questão envolve o campo da hermenêutica. Mesmo se jectos olham para o que já foi realizado, no passado ou no presente,
assegurarmos a legitimidade de incluir retroactivamente na herme- e como tal, representam um esforço de conservação e de consolida-
nêutica bíblica toda a teoria da exegese do tempo do Antigo Tes- ção. Mas para inovar e para avançar com perspectivas ainda inexis-
tamento ao nosso tempo há sempre a questão de saber se a her- tentes, é preciso mais do qUe uma perspectiva histórica, ou científica.
menêutica inclui uma teorização explícita - regras de exegese niti- Tão necessário como cada uma das perspectiva referidas (e ninguém
damente expressas - ou uma teoria não formulada, implícita, da
exegese, revelada através de uma prática. O te6logo Gerhard
(13) . Há vários e excelentes estudos sobre hermenêutica bíblica que nos dão
Ebeling, por exemplo, fez um estudo sobre «a hermenêutica de pormenores históricos, como por exemplo; E. C. Blaakman, «Biblical Interpre_
Lutero» ("). Lidar-se-á aqui apenas com as afirmações de Lutero tation»; Frederic W. FaITar, «History of Interpretation»; Robert M. Grant,
no que respeita à interpretação bíblica, ou também com a sua «A Short History of the ]nterpretation of lhe Bible»; Stephen Neill, l<The Inter-
prática exegética revelada pela análise dos seus sermões e de outros pretation of lhe New Testament»; 186]-1961; B. Smalley, «The Study of the
Bióle in the Middle Ages»; e James D. Wood, «The lnterpretation of the Bible».
escritos? O estudo de Ebeling inclui ambas as perspectivas. Em alemão, há a obra recente de Lothar Steiger, «Die Hermeneutik aIs
dogmatische
teológica desde Prob/em» recomendável pelo tratamento que faz da hermenêutica
SChleiermacher.
(11) Ver «DlI8 hermeneutische Prinzip der theologischen Exegese», FH der Ver
gung (H) Gerhard
Hei/igen Ebeling, «Kirchengeschichte
Schrift». aIs Geschichte der Ausle-
111-118.
(1') «ElIangelische Evangelienauslegung: Eine Untersuchung .tu Luthers (1') T G I, traduzido para alemão pelo seu autor e reduzido a um terço
HermeneutikJ..
como AAMG. Ver· também o contributo de Joachim Wach para este projecto,
V. uma história da hermenêutica no século dezanove, em três volumes.
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47
não pudesse ter reconhecido pelo uso da razão. Trata-se apenas de
.nega o valor que têm) é uma compreensão mais funda do fen6meno uma verdade racional e moral, revelada antes de tempo. A tarefa
da. própria interpretação, uma compreensão que seja filosoficamente da exegese era pois entrar profundamente no texto, usando as fer-
adequada, quer epistemológica quer ontologicamente. As histórias ramentas da razão natural e encontrando aquelas grandes verdades
da teoria da interpretação em disciplinas específicas são certamente morais que os escritores do Novo Testamento pretendiam, verdades
vitais para a busca contínua de uma compreensão mais funda da escondidas sob diferentes termos históricos. Essas escrituras defen-
interpretação, como são as sínteses das várias abordagens discipli- diam a suficiência de uma compreensão histórica manifesta, sus-
nares; mas não são em si mesmas, suficientes. ceptível de captar o espírito (Geist) subjacente à obra e de o tra-
duzir em termos aceitâveis para uma razão esc1arecida. Podemos
chamar a isso uma forma esc1arecida de «desmitologização», embora
A hermenêutica como metodologia filológica o termo no século vinte signifique interpretar e não simplesmente
purgar os elementos míticos no Novo Testamento.
O desenvolvimento do racionalismo e, concomitantemente, o Para além da fé Iluminista nas «verdades morais» que levou ao
advento da filologia clássica no século dezoito teve um efeito pro- que hoje parece uma distorção da mensagem bíblica, de um modo ge-
fundo na hermenêutica bíblica. Surgiu então o método hist6rico-crí- ral, as consequências na hermenêutica e na investigação bíblica foram
tico na teologia (6); tanto a escola de interpretação bíblica «grama- salutares. A interpretação bíblica fez desenvolver técnicas de análise
tical» como a «histórica», afirmavam que os métodos interpreta- gramatical de grande requinte ('1), e os intérpretes compromete-
tivos aplicados à Bíblia, eram precisamente os que se aplicavam às ram-se mais do que nunca num conhecimento total do contexto
outras obras. Por exemplo, Ernesti, no seu manual de hermenêutica histórico das narrações bíblicas. J. S. Semler defende por exemplo
de 1761, defendia que «o sentido verbal das Escrituras deve ser que o intérprete «deve ser capaz de falar sobre esses temas (bíblicos)
determinado do mesmo modo como é considerado noutros de um modo adaptado às diferentes épocas .e às diferentes circuns-
livros» (17). Com o aparecimento do racionalismo, os intérpretes sen- tâncias» ("). A verdadeira tarefa do intérprete torna-se uma tarefa
tiram-se obrigados a tentar ultrapassar juiZOSprévios. «A norma da histórica.
exegese bíblica, segundo Spinoza, consiste na luz da razão, comum Com todos estes progressos, os métodos da hermenêutica bíblica
a todos os homens» C"). «As verdades acidentais da história nunca tornaram-se essencialmente sinónimos de uma teoria secular da
se poderão transformar em provas de verdades necessárias da razão» interpretação - isto é. da filologia clássica. E, pelo menos, desde
disse Lessing ('9); assim é um desafio à interpretação tornar a Bíblia . O Iluminismo até aos nossos dias os métodos de investigação bíblica
relevante para o homem racional do Iluminismo. têm estado sempre ligados à filologia. Assim a designação «Herme-
Este desafio, tal como Kurt Fror observoU no seu livro sobre nêutica Bíblica» substituiu a de hermenêutica enquanto referência à
hermenêutica bíblica, levou à «intelectualização das afirmações bí- teoria da exegese bíblica. O termo «hermenêutica», inalterável, tor-
blicas» CO). Porque as verdades acidentais da história eram encara- nou-se virtualmente idêntico a uma metodologia filológica. Num
das como inferiores às «verdades de razão», os intérpretes bíblicos outro capítulo exploraremos mais especificamente o' conteúdo da
defendiam que a verdade das Escrituras estava acima do tempo e ',<filologia no começo do século dezanove, discutindo dois grandes
da história; a Bíblia não diz ao homem nenhuma verdade que ele 'fiI610gos do tempo de Schleiermacher, Friedrich August Wolf e
Friederich Ast. Aqui basta-nos simplesmente dizer que a concepção
de. uma hermenêutica estritamente bíblica, se transformou gradual-
(lO) Ver Hans-Joachlm Kraus, «Geschichte der historisch-kritischen Er- lIlente na de uma hermenêutica considerada como conjunto de
forschung der A/ten Testaments von der Reformation bis tur Gegenwarth'll.
esp. capo 3, págs. 70-102. regras gerais da exegese filológica, sendo a Bíblia um objecto entre
(") F. W. Farrar, «History of Interpretation», pág. 402, citando Johan outros de aplicação dessas regras.
August Ernesti IINT. Fizeram-se duas traduções inglesas do tratado, no co-
meço do século XIX (Ver Bibliografia).
(l') «Tractatus theologico-jJolicitUS1l, (1670) capo VII; citado em Ebeling
«Hermeneutic'll, RGGlll, 245. cn) Ernestl, IINT, é um exemplo excelente.
("') Ver H.-I. Kraus, op. cit., págs. 93.102, sobre Sernler. O sentido das
(l9) Ober den Beweis des Geistes und der Kraft» (1777): «zufã/lige Ges-
chichtswahrheiten kõnnen der Beweis von notwendingen Vernuftswahrhelten
Escrituras é satisfeito, dizia Semler, quando «der hlstorlsch Verstehende nun
niewerden». citado em Kurt Fror, Bib/ische Hermeneutik: Zur· Schriftauslegung .auch imstande 1st, von dlesen Gegenstãnden áuf elne solehe Weise jetzt zit
.reden, aIs es dle verilnderte Zelt und andere Umstllnde der Menschen· neben
in predigt. und Unte"icht. pág. 26. Ver «On the Proof of the Spirit and of .uns ertordem.
power'/l, inLessing's Theological Writings, ed. Henry Chadwick, págs. 51-56.
C'°)lbld.
49
'48
texto - a base mais humana e histórica para o seu próprio esforço
Ahermenêntica como ciência da compreensão de formulação de uma metodologia verdadeiramente humanística
linguística das Geisteswissenschaften.

É característica de Schleierrnacher ter repensado a herrnenêu-


tica como «ciência» ou «arte» da compreensão. Visto que lhe dedi- A hermenêutica como fenomenologia do Dasein
câmos todo um capítulo, aqui apenas notaremos que uma tal con- e da compreensão existencial
cepção de herrnenêutica implica uma crítica radical do ponto de
vista da filologia, pois procura ultrapassar o conceito de herrnenêu- Martin Heidegger, ao tratar doprq!?Il:l:Da ontológicovoltoy-se
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tica como conjunto de regras, fazendo uma herrnenêutica sistemati- pa~a~··fuétódohpomenológrco,dof$eu.,m_epJ9r~:',f\âlTI~d :E:Iusserl.l .e.c
camente coerente, uma ciência que descreve as condições da com- empreendêüum" estudo fenomenológico da p~~;e~çi'quâtiaIãnâ'aõ"
preensão, em qualquer diálogo. O resultado não é simplesmente uma homem no munuo.'Esse"eslUdü'Ser
.,...••~>,"'~'?'".,.,q'"""~"'....:~;(",:.:;',.;,").'<'.:ri"
•..•• :,n:, ' ,
e 'Tempo (1927), é hoje reco-
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hermenêutica filológica mas uma «hermenêutica geral» (allgemeine n~êoníõ·â·sua obra-prima, como a chave para toda a com-
Hermeneutik) cujos princípios possam servir de base a todos os preensão adequada do seu pensamento, Chamou à análise apre-
tipos de interpretação de texto. sentada em Ser e Tempo uma «herrnenêu~é1if)5-:" --""..,.
Esta concepção de uma hermenêutica geral marca o começo da ,..~fecoiilêXfõ~-1l'nermén~ütíéà'nãõ-se·"i:ef~~--r'
..------.....-.-.._. __ ;__ .,._....•~_.~.~ ..••._ ,--"" ..•.~_ •••
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..~1ê;cia ou
....'••.•. .,,'~.·.~·,,'",··~:>~,_,",·"',~~}o",'
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às
'·'''I'ri''~'' !"'" •• _'-y •

«herrnenêutica» não disciplinar, tão importante para a presente regras da mterpretação textuãT nem a uma metodologia para as
discussão. Pela primeira vez a hermenêutica define-se a si mesma Gerstêswlssênsciiãftên~ mas-ãiitês~"â'"êX:'
•. ",.,,,, •.. ,,.,, •.. "-"· •.••... , .••~- .•""·,,.,,"--'"
'llcaça:õ'''fenomenô16glca,,'da
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como'estudo da sua própria compreensão. Quase podemos dizer que prõpfiâ existência humana. A análise de Heid.l:'g~ei.j!l.<!!.~9.\l",gue_,a
~"r _, •••.••_""'".,'",.~~.,~ .• '"',, •.•-., .•...,. -".-'_ - , •••."'."" '-'-'..;,o,.:: -,",0._.',,,'," •••• ' - _ ,_ .. " '_ .,', ,'_' ..,: ."_',' ..••..•.,:'-,'" .. '.0'_ - _o. \.1.1.,' ',-,., ,., .• " .., .•"-.-I ... -,,,".,.~).->:;I"

o que aqui é típico da hermenêutica emerge historicamente do seu «compreensão»' ea --«iiít~rpr~t.~ç~o~s~~lTIPdp~. J\lJ1d~me1!, a ),,~I~-
}~__
parentesco com a exegese bíblica e com a filologia clássica. fêiféiã'nutriãííã:"'Assiní" â, •.he~~~~ê~tica"6~i4~gieita~ª,',~,Q~:,Pg
transtõrmà::se-tambêm .emherIDê~êÍIticâ;" ~síX:~iàI~ê~ie"na ,'midida
e'm-·qüê-·âpfeséntallmatmtOlôgÜrda1:Õffil'reensãó~'-~ .. s.~~}~~~~!i~
A hermenêutica como base metodológica éõeéãrâêfeT'liertffénêmiêô;~quêr--nôS---corité~dôs",gl.l~.r~ ...
n.o",.~.§!g~P"
para as «geisteswissenschaften» '-"--O'--aptôfíiíldãm:eriIo"qUe-tréiaeggei'fâz' 'dil' hermenêutica e das
características hermenêuticas em Ser e Tempo é um outro ponto
Wilhelm Dilthey foi um biógrafo de Schleiermacher e um dos de viragem no desenvolvimento e na definição quer da palavra quer
grandes filósofos do século passado. Dilthey viu na hermenêutica a do campo da hermenêutica. A hermenêutica é relacionada de uma
disciplina central que serviria de base a todas as Geisteswissenscha- só vez com as dimensões -ontológicas da compreensão (e com tudo
ften (i. e. todas as disciplinas centradas na compreensão da arte, aquilo que isso implica) e simultaneamente com a fenomenologia
comportamento e escrita do homem). específica de Heidegger.
Dilthey defendia, q1Je _a interpretação. das expressões essenciais O professor Hans-Georg Gadamer, seguindo a liderança de
da vlaã' lluinana, ~ej~êfiCmraõmriiro--dâs-iêliÇ(íãlitératU"iã"õuaas Heideg~SêllvÕrvêu~ãsTmpliêãçõeSdo contributo de Heidegger
S-ãgradasEscritura~,iIIlplicâ ulTI.actodêéÓIIlPfl~ênsão1llst&ica,uma para a hermenêutica (tanto as do Ser e Tempo, como as de ulte-
riores obras) num trabalho sistemático sobre hermenêutica filosófica
;peraçãofundamentalmentedirerentê dâqriântifiêãçãõ;"ã.QõõmíÍllo (Wahrheit und Methode 1960), Gadamer traça detalhadamente o
éTéirtRIçQ do mundo natural; l'orqueneste' aCiódecomptéêiisâ<fllis-
desenvolvimento da hermenêutica de Schleiermacher até Dilthey
tfuica esiíCemcausa um cônhecimentõpessõ"al"dõ'que'.sigillflcílser-
e Heidegger, fornecendo o primeiro relato histórico adequado da
iD~s'HÍl1l1anos.Acreditava ser necessai!Qjfâs'Ciêiiéi!is.hUfiâíias'úma
"ó{;tra'«crItica~)rdaràzâô:'catfcâ-qú~'faria .para-~~~mpr~~Ilsão his- herrnenêutica englobando a perspectiva do contributo revolucionário
t6;i~1l'o "que ,acríticllI(ãnÜã.D~·da 'i-azãõ"pura fiiiha- feitõ"pâá. aS de Heidegger e reflectindo sobre ele. Mas Wahrheit und Methode
"~iênciãs'-nãtui:.a.1s _ «Uma crlticâ-dâ~ͪ:?~Q, histórica» .. '
d •• v""- é mais do que uma história ,.da ~~nn~utic~re--in-xi-~sforço--de
"'----'1'l"um "êsiâdioPÚrnifivo"dõ"'sêi:i"' pensamentõ;"'"[mthey procurou fe1ãcíOOaÇãõ---õá'· hérniéiiêudc~'··~~~'a.·e'stéiíca" e-c-;;~'â-fÚosofiil'õo
fundamentar a sua crítica numa versão transformada da psicologia; conneclmen fo'''liiStõi"lcô:'-Xjiresenlii'''dê''uma'''fórrna''oenf''estrufuradli.
ã'CiltiCãlielõeggerfâiiã' da hermenêutica, no velho estilo de Dilthey,
mas ,como a psicologia não era uma disciplina histórica, os seus e retrata parte do pensamento hermenêutico de Hegcl ede Hei-
esforços foram dificultados desde o começo. Dilthey encontrou na
hermenêutica- disciplina centrada na interpretação, e especifica- degger, no conceito de consciência «historicamente operatival),
mente na interpretação de um objecto sempre histórico, um
51
50
da lógica simbóIlca, enquanto os últimos são o verdadeiro centro
actuando dialecticamente com a tradição enquanto transmitida atra- da hermenêutica, Porque a hermenêutica tem a ver com teJr.tos
vés do texto. simbólicos com múltiplos significados; estes podem constituir uma
A hermenêutica avança ainda mais um passo entrando na sua
unidade semântica que tem (como os mitos) um significado super-
fase linguística, com a controversa afirmação de Gadamer de que ficial totalmente coerente, tendo ao mesmo tempo uni significádó
(mm ser que pode ser compreendido é ilnguagem.» A hermenêu- mais fundo. A hermenêutica é o sistema pelo qual <i significado
trcaTUm enêõntrôcõmo-s~;ãtrâvês~ãa'língÜ:ãgênt Ultimamente, mais fundo é reyelado, para além do conteúdo manifesto.
Gadamer defendeu o caracter linguístico da própria realidade hu-
Contudo, a operação de encontrar um sentido oculto em sonhos
mana, e a hermenêutica mergulha nos problemas puramente filo- e em lapsos de linguagem demonstra na realidade uma desconfiança
sóficos da relação da linguagem com o Ser, com a compreensão, a
na superfície, ou realidade manifesta; o empreendimento de Freud
história, a existência e a realidade. Ela coloca-se no centro dos
foi tornar-nos desconfiados do conhecimento consciente que temos
problemas filosóficos de hoje; não pode fugir às questões episte- de nós mesmos, e em última instância pedir-nos que destruíssemos
mol6gicas e ontológicas pois a própria compreensão é defendida os nossos mitos e ilusões. Mesmo as nossas crenças religiosas, como
como um tema epistemológico e ontológico.
Freud pretende demonstrar em O Futuro de uma Ilusão, são de
facto ilusões infantis. A função da hermenêutica freudiana é por-
tanto iconoclástica. ~""'""='--'~"""~""="'"'-"'~'~''~''''"~---''~'--''"''~'"'''".
A hermenêutica como um sistema de interpreta~: , '"' .,•..', •..;,:.;.••.••
";,,'_.;,....:~:",·.';!.::,r.·.to

;=~'"fSio1eva Ricoeur a sustentar que nos nossos dias há dois síndro-


recuperação de sentido «ver3US»'iconoclasmo
mas muito diferentes da hermenêutica; um, representado pela des-
mitologização de Bultmann, lida amorosamente com o símbolo esfor-
~liicoeuL~m ~12nterl!!éta~i;!!!..(1965) adopta uma defini- çando-se por recuperar o significado que nele se oculta; o outro
ção de hermenêutica que remonta a uma centração na exegese tex-
tual considerando-a o elemento distinto e central na hermenêutica, procura destruir o símbolo enquanto representação de uma reali-
«Por hermenêutica entendemos a teoria das regras que governam dade falsa. Destrói máscaras e ilusões num esforço racional e inces-
uma exegese, quer dizer, a interpretação de um determinado texto sante de «desmitificação». Ricoeur destaca como exemplo desta
ou conjunto de sinais susceptíveis de serem considerados como última forma de hermenêutic'i;tre§'gfáiiCiesaêSmItlfiêãõõreS':"'Màrx:"
textos» ('3). A psicanálise, e particularmente a interpretação dos :Nletzséne-e"'Preuc['" 'Câda'um"dêsles'"tfês''' hômens"oiÍÍtê'rpretôt{"como
sonhos, é muito obviamente uma forma de hermenêutica; todos os falsa a superfície da realidade e avançou com um sistema de pen-
elementos de uma situação hermenêutica estão nela contidos: o samento que destruiu essa realidade. Os três combateram activa-
sonho é o texto, um texto cheio de imagens simbólicas, e o psica- mente a religião; para os três, o pensamento verdadeiro era um
nalista usa um sistema interpretativo para produzir uma exegese exercício «de suspeita») e de dúvida. Minaram a confiança piedosa
que traga à superfície o significado oculto. A hermenêutica é o que o indivíduo depositava na realidade, nas suas próprias crenças
processo de decifração que vai de um conteúdo e de um significado e motivações; cada um defendeu uma transformação de pontos de
manifestos para um significado latente ou escondido. O objecto de .'vista, um novo sistema interpretativo do conteúdo manifesto dos
interpretação, i. e., o texto no seu sentido mais lato, pode ser cons- nossos mundos - uma nova hermenêutica.
tituído pelos símbolos de um sonho ou mesmo por mitos e sím- Devido a estas duas abordagens antitéticas da actual interpre-
bolos sociais ou literários. tação dos símbolos, Ricoeur defende que não pode haver regras
O estudo de Ricoeur distingue entre símbolos unívocos e equf- universais para a exegese, apenas teorias separadas e opostas, rela-
-vocos; os primeiros são signos de sentido único, como os símbolos tivas às regras de interpretação. A desmitologização trata o símbolo
ou o texto como uma abertura para uma realidade sagrada; os
desmitificadores tratam os mesmos símbolos (ou seja, os textos
bíblicos) como uma falsa realidade que deve ser destrufda.
('3) «Alnsi, dans Ia vaste sphere du langage, le lieu de Ia psychanalyse A abordagem que Ricoeur faz de Freud é ela própria um exer.
se précise: c'est à Ia foi le lieu des slmboles ou du double sens et celui ou
s'affrontent les diverses manieres d'interpréter. Cette clrconscription plus vaste cício brilhante do primeiro tipo de interpretação, pois recupera e
que lapsychanalyse, mais. plus étroite que Ia théorledu langage total qui lu! interpreta o significado de Freud de um modo inovador para o
sertd'horizon,nous l'appelieron désormais le 'champ herméneutique'; nous momento histórico actual. Ricoeur tenta contemplar tanto a racio-
entendrons toujou,rs par herméneutique. Ia théorie des rbgles qui président à nalidade da dúvida como a fé de uma interpretação passada, numa
uneexégese, c'est à dire à l'lnterprétatlon d'un texte slngulier oud'un ensemble
de slgnessusceptible d'êtreconsldéré comme un texte)l) (DI 18).
S3
sz
filosofia reflexiva que não se refugia em abstracções nem degenera
eIll simples exercício de dúvida uma filosofia que -aceita o desafio
herinenêutico de mitos e símb~los e que te matiza reflexivamente
ll.realidade que está por detrás da linguagem; do mito e do símbolo.
A filosofia hoje já se centra na linguagem; já é, num certo sentido,
hermenêutica; o desafio é fazê-Ia criativamente hermenêutica.

A LUTA CONTEMPORÂNEA SOBRE HERME~UTICA:


BETTI «VERSUS» GADAMER

As seis definições de hermenêutica atrás abordadas, inter-rela-


donadas e muitas vezes sobrepostas, transportam-nos de 1654 até
aos nossos dias. As seis ainda se encontram, em graus variáveis, no
spectrum do pensamento hermenêutico contemporâneo; no entanto,
hoje há uma nítida polarização. Temos, por um lado, a tradição de
Schleiermacher e de Dilthey, cujos partidários encaram a herme-
nêutica como um corpo geral de princípios metodológicos que
subjazem à interpretação. !L!~_~~J~! ..Q}.!.1r.g,,,-º§,.~çgwçlg!.~
...~~,!iei-
degger que vêm a he~mC::B$.Y!i!;,ª.",ç.QW.g~gmê=oex.l?J()[1!,ç.1i9."mQ
4'ãSCãfâcrensfiêãs-e'dosrequisitosn~cessáriosatoda a compreensão .
.····Os-fê·reséniãnié;'"m';l~'·~~h~~íd'6;·"d~;i~;·d{i""á;-poSfçÕes"-bâsi~as
são milio e I autor de uma obra sobre teoria da interpretação (')
.e ans- eorg ~ cuja Wahrheit und Methode foi breve-
JIlen e aíséUíiããnõcãpTIulo anterior. ~t~,.,,,!}~~JnIJI!ǪQ
.•çI.~.J~!l!~ex,
p.retende da~-~os uma teoria geral do modo como«asobjectiy~~,9és»

~~~]I1'1§~l~~~{~~~~~
«objectiyidade» _históriça ".11a,elabQração."de...interpretaçÕesyálidas.
"Gããam'er:·'ii.~-~~quêiiêfà'd~·H~id'~gger orienta o seu pensamento para
:.',.::".~~:I1:'r~~:'!
".-".,","'~ ·,_,••_,..h ";";~"'~,,",~,,h'"''''_'''
a 'questão mais filosófica
"""·;"~"""",··,,, ..•.
que é a interpretação enJ:" sI mesma'; do
,,.;t~':'.·~,,·I;:"N""-"
"_.,.. ,"'" ,··-.t~""~"':">".i"
~""'.""..,,,'''', ~"'-"I"~,-,'
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.ãefêríãêôé-umAm'ôdõ'Tiuãim,ênte·'convinêentê'qg~:!,[:s~w15.f~,~~~~,2J'
úiii;"iiêtõ:ª~loticô'ê'qiiê'cômõ" tiíl'esfá':sériípré .relacionada,W.m",g
:Prêse:iite~Sustenfique 'ê' irigéntÍo''fàiarmosde«lliferprêtã'ÇÕes 'objec-
ilVamente vaudas», -Põis'~fãZé-fô'-ifirpl1cãria-sêrPõssiVer'ümã"cõm-
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'preénsã'6 que 'páii:isse de 'um .-,Pôniõ"dê ..·ViStã'~éitêf1or'·Iw'hjst6~ià.


-OS"teõl0gos"aâ'''dêsmifôlõl~ffiiçãõ'''' :I{udôlf'Bultma,íID' eos ··.·dols
lídêreS11ãN'ova~1feti1ienêti(iC1ÇGeth~rdEb~i~g ,e .Enlst Fuchs-'
pÕêreiilãSSõcrãf~~~~~ª,(i:~arito
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'·âliãdos'(la.~íbôrdagem
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