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There’s Always a Puppy 1

Journal of Systemic Therapies, Vol. 35, No. 3, 2016, pp. 73–82

SEMPRE HÁ UM CÃOZINHO (E ÀS VEZES UM


COELHINHO):
UMA HISTÓRIA SOBRE UMA HISTÓRIA SOBRE
UMA HISTÓRIA

TOM STONE CARLSON1


EMILY M. CORTURILLO
North Dakota State University
JILL FREEMAN
Evanston Family Therapy Center, Evanston, Illinois

Já faz mais de 20 anos, mas eu ainda me lembro exatamente onde eu estava quando
ouvi a história de David Epston (Freeman, Epston, & Lobovits, 1997) sobre o
cãozinho pela primeira vez. Era 1996 e eu estava em uma conferência sobre terapia
da família em Toronto, Ontario, Canadá. Eu me aproximava do fim do meu
mestrado em terapia da família e recentemente havia aprendido sobre uma nova
abordagem de terapia chamada terapia narrativa. Aprender sobre terapia
narrativa não poderia ter vindo em melhor hora. Na verdade, é possível dizer que
isso salvou minha vida, ou pelo menos minha carreira. Sabe, quando eu decidi
que queria me tornar um terapeuta em meu primeiro dia como aluno de
graduação eu estava cheio de esperança e convicto de que a terapia poderia
trazer cura e transformação à vida das pessoas. Quando imaginava o trabalho
que faria com as pessoas que me procurassem como terapeuta, minha mente (e
meu coração) imaginava palavras como sagrado, beleza, amor, cura e magia
para descrever o que aconteceria.
Desde que consigo me lembrar, eu sempre acreditei em um mundo onde o
inacreditável era possível; um mundo onde a magia estava a nosso alcance; e um
mundo que poderia ser transformado pela esperança persistente na eventual
realização de nossos sonhos. Não tenho muita certeza a respeito da origem de
minha capacidade de acreditar no inacreditável, mas ela foi minha companheira
constante desde os primeiros dias da minha vida. Pouco tempo após iniciar meu
treinamento para me tornar terapeuta eu rapidamente descobri que esse modo de
pensar era considerado, na melhor das hipóteses, ingênuo, ou até potencialmente
perigoso, na pior delas. Me ensinaram que terapia não deveria ser nada além do
que alívio dos sintomas, e qualquer esperança por coisas como transformação ou
cura era tolice ou irresponsabilidade. Ainda que eu não estivesse pronto para
abrir mão de minha crença na magia, ela estava agora sob vigilância, conforme
1
Autor correspondente: Tom Stone Carlson, PhD, Couple and Family Therapy Program, North
Dakota State University, Dept. #2615, PO Box 6050, Fargo, ND 58105-6050. E-mail:
.tom.carlson@ndsu.edu
2 Carlson et al.
eu era encorajado a questionar a sabedoria do meu idealismo e a considerer
como o mesmo poderia ser uma possível barreira em meu trabalho com as
pessoas que se consultassem comigo. “Uma barreira!”, eu pensava comigo
mesmo, “Como a crença na trasformação de vidas e a esperança pela cura
podem ser algo que me impeça de ser um terapeuta bem-sucedido?”. Me fazia
essa pergunta repetidamente e, por hora, conseguia persistir em me convencer de
que não estava sendo ingênuo ou idealista mas, que de fato, minha crença era
muito mais substancial do que isso.
Então, certo dia, durante uma atividade em aula sobre o self do terapeuta, o
mundo mágico que eu havia nutrido e que me sustentara ao longo da vida
desabou ao meu redor. A aula tinha como foco abordagens da família de origem
na terapia da família, e estávamos estudando maneiras pelas quais nossas
experiências em nossas famílias de origem poderiam influenciar nosso trabalho
como terapeutas. É importante assinalar que a palavra influência sempre deveria
ser vista como negativa ou, na melhor das hipóteses, como uma barreira. Jamais
se considerava que nossas experiências em nossas famílias de origem, mesmo
que tenham sido difíceis, poderiam nos beneficiar positivamente em nosso
trabalho, que poderiam trazer consigo conhecimentos arduamente adquiridos
(White & Epston, 1990) sobre como cuidar e dar atenção ao sofrimento de
outras pessoas.
Para encurtar a história, eu sempre acreditei que as minhas experiências de
crescer na minha família haviam me ajudado a desenvolver uma capacidade para
sentir o sofrimento de outras pessoas e a trazer paz para suas vidas. Durante essa
atividade do self-do-terapeuta, minha própria imagem como o pacificador em
minha família foi problematizada e vista como uma barreira significativa em
meu trabalho com famílias. Esta pergunta feita por meu professor ainda ardia em
minha mente: “Como você pode trabalhar com famílias que estão em conflito se
você está preocupado em fazer a paz?”. Instantaneamente, a capacidade que eu
valorizava e acalentava há tanto tempo fora transformada em um problema que
poderia me impedir de fazer exatamente aquilo que eu me propusera fazer. Por
vários dos próximos meses me senti desolado. Eu tinha que reaprender tudo.
Minhas tendências a fazer paz estavam sob pesada autovigilância enquanto eu
constantemente lembrava a mim mesmo o que havia aprendido naquele fatídico
dia – que o meu desejo de trazer paz às vidas das pessoas não era nada daquilo
mas, sim, medo de conflito.
Daquele momento em diante, terapia se tornou algo muito mais difícil para
mim. Eu comecei a questionar tudo o que até aquele ponto havia sido tão
inspirador para mim quando eu decidi me tornar terapeuta. “Será que minhas
esperanças por cura e transformação eram muito grandiosas?’. Talvez eu fosse
realmente apenas um jovem terapeuta ingênuo que precisava aprender como era
o mundo real da terapia. Eu estava literalmente perdendo a esperança. Eu
lentamente comecei a aceitar um mundo em que a terapia era apenas sobre
ajudar as pessoas a manejar e lidar com suas dificuldades em vez de encontrar
formas de trasnformar suas vidas. Me tornei tão desesperado que questionava
seriamente se eu servia ou não para ser terapeuta. Eu precisava de um salva-vidas.
Esse salva-vidas surgiu na forma de um artigo de Bill O’Hanlon (1994) no
Family Therapy Networker, que contava a história de sua experiência ao passar
um tempo com David Epston e Michael White que estavam desenvolvendo
aquilo que se tornaria a terapia narrativa. O artigo contava a história de uma
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ousada nova abordagem terapêutica, em que os terapeutas ousavam acreditar que
vidas e relacionamentos podiam ser literalmente transformados. Bill O’Hanlon
chegava até a sugerir que o trabalho que ele testemunhava parecia magia:
No começo era como assistir a magia. Uma pessoa… entra, caminhando por uma
Estrada que parecia somente levar a mais sofrimento. Durante a conversa, uma
bifurcação aparecia, um caminho que sempre esteva lá, mas que de alguma forma
passara despercebido… Epston e White… conjuravam, aparentemente do nada,
novos portais para novas identidades. Parecia inexplicável, radical e elegante.
Quando as pessoas se encontravam acuadas, Epston e White pintavam uma porta na
parede onde era necessário e então, como o Pernalonga em um desenho animado, a
abriam e ajudavam a pessoa a atravessar. (O’Hanlon, 1994, p. 21)
Conforme eu lia histórias sobre o trabalho de David e Michael, eu podia
literalmente sentir a esperança de que eu abrira mão gradualmente se recuperar.
Talvez minha crença no inacreditável não fosse tão ingênua afinal.
E então surgiu outro salva-vidas. Pouco tempo após ler sobre o trabalho de
David e Michael, eu fui à conferência de terapia da família de 1996 em Toronto.
Graças à sorte ou ao destino, naquele ano havia uma linha especial da
conferência dedicada à terapia narrativa. Minha experiência de ir à conferência
parece um grande borrão. Ainda que eu sabia que eu fora profundamente
cativado pelo que ouvia a ponto de me sentir imediatamente em casa com as
ideias narrativas, eu realmente não me lembro bem do que eu aprendi durante
aqueles três dias. Na verdade, a única coisa de que me lembro é a história sobre
um cãozinho que literalmente salvou um menino cuja vida estava em risco. Jill
Freeman foi a narradora da história, que ouviu originalmente de David Epston.
Aqui está a história, nas palavras de Jill:

Anos atrás, David Epston contou essa história quando estava fazendo um workshop em
nosso centro e foi algo marcante para mim. Então esta é uma história que me vejo
contando e pensando a respeito com frequência. Na época a que David se referia, ele
estava desenvolvendo um extenso trabalho com jovens que tinham problemas médicos.
Então ele recebeu um telefonema de uma mãe que disse: “Meu filho está no
hospital e nos encaminharam a você.” Não consigo lembrar que tipo de problema
médico ele teve, mas o menino tinha algum tipo de problema clínico e uma das
consequências disso era não conseguir segurar nenhum alimento no estômago.
Quando comia alguma coisa, ele imediatamente vomitava.
Quando a mãe entrou em contato com David o problema já havia sido solucionado
medicamente. Mas, como é possível imaginar, o menino se recusava a comer. Ainda
que estivesse bem do ponto de vista médico, e que não houvesse mais uma razão
médica para isso, sempre que comia, ele vomitava. Então ele se recusava a comer.
O não comer estava ameaçando a saúde do menino, e por isso ele permanecia no
hospital. Estavam preocupados com ele. Então a mãe perguntou a David se ele
poderia ir conversar com seu filho. David concordou. Ele foi ao hospital. E pouco
depois de ser apresentado ao menino, ele descobriu que o menino tinha um novo
cãozinho esperando por ele em casa, que ele havia ganhando pouco antes de ir para o
hospital.
Quando David soube disso, ele perguntou: “Você acredita em amor à primeira
vista?” Vendo que o menino ficou intrigado, ele começou a fazer uma série de
perguntas, como: “Você amou seu cãozinho no instante em que o viu pela primeira
vez? Que qualidades do seu cãozinho fizeram com que você o amasse? Você acha
que seu cãozinho também o amou à primeira vista? Quais qualidades suas fizeram
com que seu cãozinho o amasse? Você acha que ele está esperando por você,
enquanto você está aqui? É uma espera diferente do que quando ele o espera voltar da
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escola todos os dias? Você acha que ele escolheu um lugar especial para ficar
esperando? Que tipos de aventuras você acha que vocês terão juntos? Vocês terão
lugares favoritos, ou descobrirão novos lugares para irem juntos?”.
David continuou a envolver o menino em perguntas como essas. Ao final de uma hora,
ele disse: “Foi um prazer conversar com você, eu realmente gostei”. E então se levantou
para ir embora. A mãe o seguiu pelo corridor do hospital e gritou: “Espere aí! Você não fez
nada! Você não falou com ele sobre o problema.” David disse: “Eu fiz o que achei que
ajudaria mais.” A mulher estava obviamente muito insatisfeita com ele.
Mas David voltou para casa e dois dias depois ele recebeu outra ligação da mãe. Ela
disse: “Eu não entendo. Na refeição seguinte meu filho comeu e não vomitou. Ele
está recebendo alta do hospital. Ele está bem. O que você fez?”
Então David contou essa história em nosso centro. E então, houve um longo
silêncio na sala. Finalmente, alguém perguntou: “O que você faria se não houvesse
um cãozinho?” E então vieram as palavras que eu nunca esquecerei…
David sorriu e disse: “Sempre há um cãozinho”.

Foi como se essas palavras saltassem para dentro do meu coração, e nele
encontraram um lar desde então. A crença de que há sempre um cãozinho, que
há sempre esperança, mesmo - não, especialmente – nos momentos mais
sombrios literalmente salvou a vida de muitas das pessoas com que meu
trabalhei ao longo dos anos.
Esta crença estava comigo quando eu recebi, no meio da noite, a ligação de
uma mulher que eu chamarei de Beth. “Eu não aguento mais, há dor demais,”,
ela disse. Beth havia sofrido as mais terríveis formas de abuso sexual que já
ouvi quando ela era criança, e ainda mais quando adulta. E, ainda que ela
tivesse conseguido escapar desses relacionamentos abusivos e encontrar um
parceiro gentil e carinhoso, e criado três lindas crianças, a torrente dessas
memórias se tornara grande demais para aguentar. “Onde você está?”,
perguntei. “Elton está com você?”. Elton era seu amoroso companheiro, mas
naquele momento ela não se lembrava dele. Vejam, a dor era tão insuportável
que ela aprendeu a escapar dela se transportando para outra época de sua vida,
quando era mais nova. “Eu não conheço nenhum Elton… Estou totalmente
sozinha… Está frio”, ela sussurou para mim entorpecida. “Estou em uma
espécie de floresta”. A casa de Beth ficava ao lado de uma área de floresta.
“Estou com uma faca. Dói demais”. Em perspectiva, eu deveria ter me sentido
apavorado.
Em vez disso, senti uma espécie de calma me tomar, porque eu podia
claramente ouvir a voz de Jill me dizendo: “Há sempre um cãozinho”. De
alguma forma eu sabia que encontraríamos uma saída dessa juntos. Eu sabia
que algo surgiria em meio à noite escura e fria que iluminaria o caminho para
casa para Beth. E, ditto e feito, após 30 minutos à beira da morte, um cãozinho
apareceu. Desta vez, surgiu um cãozinho metafórico, na forma de Kara, uma menina
de 9 anos que por acaso era filha de Beth. “Beth, você se importa se eu fizer
uma pergunta que pode parecer estranha?”, perguntei. Beth gentilmente
concordou com meu pedido. “Você poderia me contar quais sentimentos
surgem no seu coração quando eu digo o nome Kara?”. Não tenho certeza de
onde surgiu a pergunta. Eu ainda me agarrava a fiapos tentando encontrar um
caminho para trazer novamente luz à vida de Beth.
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“Calor… Eu me sinto aquecida”. E mesmo que eu não pudesse ver a reação


facial de Beth, eu podia sentir que ela estava sorrindo agora. Encorajado, segui
investigando: “Há outros sentimentos que surgem no seu coração quando você
pensa no nome Kara?” Beth respondeu imediatamente: “Sinto vontade de rir…
Sinto felicidade”. Na esperança de que Beth pudesse conhecer a si mesma através
dos olhos amorosos de Kara, perguntei: “Beth, mesmo que isso não faça sentido
para você no momento, que sentimentos o nome de Kara inspira em você?”
Mais uma vez, sem demora, Beth respondeu: “Ela inspira esperança em mim.
Como se eu pudesse fazer qualquer coisa que me propusesse a fazer, por mais
difícil que parecesse”. Sentindo-me cheio de esperança agora, continuei esta
linha de investigação: “Mais uma vez, Beth, mesmo que isso não faça sentido
para você nesse momento, você sabe como é que você conhece Kara?” Com
segurança, Beth declarou de maneira franca: “Ela é minha filha. . . minha linda
filha!” Soando assustada para mim, Beth perguntou onde ela estava e por que ela
estava no frio falando comigo ao telefone. Eu expliquei um pouco sobre as
circunstâncias que a levaram me ligar e como o amor dela por sua filha a
resgatou e lhe deu coragem para continuar lutando por uma vida que valeria a
pena. Beth voltou em segurança para casa naquela noite, mas desta vez ela não
estava sozinha, pois se encontrava no abraço carinhoso de sua filha Kara e na
inabalavel fé de Kara em sua mãe.
Embora houvesse várias outras ocasiões em que sua vida estava em perigo, Beth
de alguma forma (e eu diria milagrosamente!) encontrou seu caminho de volta para
casa. Para casa em uma vida em que ela podia sentir, aceitar, confiar e abraçar o
amor de seu parceiro e filhos. Mais tarde, em uma carta que ela escreveu para mim
depois que nosso trabalho terminou, ela disse:
Meu relacionamento com Elton é tão tranquilo. Ele é meu maior tesouro e agora eu
posso encarar os altos e baixos com calma. Eu posso aceitar o fato de que seu amor é
sólido e eternamente confiável. É tão libertador. O amor é o que eu sempre quis, mas
nunca senti e não pude aceitar quando era dado. Isso mudou absolutamente. Eu posso
me amar... é mais como se eu não pudesse parar.

Este é apenas um exemplo das muitas maneiras pelas quais essa crença me
sustentou nos momentos em que eu ou outros poderíamos ter desistido. E
mesmo sabendo que essa crença na certeza da esperança tem estado comigo
desde muito jovem, a história sobre o cãozinho me deu a coragem de trazer essa
crença de volta à vida em meu trabalho como terapeuta e continuar tendo
esperança no inimaginável. Olhando para trás agora, não foi a habilidade
excepcional de David em seu ofício (tão brilhante como foi) que salvou o
garoto, mas sim sua crença inabalável de que ele encontraria um cãozinho
metafórico que de alguma forma salvaria a vida daquele menino. E é essa crença
mais do que qualquer outra coisa que tentei transmitir aos meus alunos como
professor, supervisor e mentor.
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Nos últimos 15 anos, inicio todas as aulas inaugurais de terapia familiar


contando a história do cãozinho na esperança de que seja um conto exemplar
para a plateia, da mesma forma que foi uma história exemplar para mim e para
muitas das pessoas que tenho trabalhado ao longo dos anos.

À VEZES OS CÃEZINHOS VÊM SOB A FORMA DE COELHINHOS

Tony estava obviamente em dificuldades. Diante de nossos olhos, ele parecia estar
se afundando mais e mais nas garras do desespero. Sua terapeuta, Emily, tentou
engajá-lo, mas apesar de seus melhores esforços, Tony apenas continuou a deslizar
para baixo. Parecia como se ele estivesse de alguma forma ou de outra nos deixando
para trás contra nossa vontade. "Eu simplesmente não posso mais fazer isso". Sua
afirmação tinha um tom definitivo, quase como se ele tivesse vindo aqui hoje para
anunciar isso para nós. "Estou cansado demais para lutar", disse Tony enquanto se
encolhia em uma bola, colocando a cabeça sob os joelhos. “Eu só quero acabar com
isso. . . Quero levar uma faca à minha garganta e acabar logo com isso". Com essas
afirmações, ele se afundou ainda mais entre os joelhos. "Eu não consigo respirar. Eu
não consigo respirar". Ele começou a entrar em pânico. Ele desmaiaria? Como
recém-chegada à terapia em nosso programa de treinamento, Emily estava
lutando também. Compreensivelmente, ela não sabia o que fazer a seguir. Ela se
virou para o espelho unidirecional atrás do qual eu estava sentado, seus olhos
implorando por algum socorro, quanto mais cedo melhor. Eu respondi de
acordo. Com minha chegada, a sala ficou estranhamente silenciosa. Tony olhou
para cima e seus olhos me encontraram rapidamente antes de se fixarem
novamente em seus joelhos. “Oi, Tony. Meu nome é Tom. Eu sou o supervisor
de Emily. Está tudo bem se eu me juntar a você?” - falei com a voz mais calma
e gentil que pude invocar nessas circunstâncias. Um aceno peremptório indicou
que minha presença era aceitável para Tony, mas eu não podia ter certeza disso.
Olhando gentilmente em seus olhos, eu continuei: “Eu posso perceber que você
está passando por um momento difícil agora. Sinto muito por isso. Você se
incomodaria muito se eu fizesse algumas perguntas?" Enquanto esperava pelo
que parecia ser um tempo interminável por sua resposta, minha mente
relembrou as memórias das muitas pessoas com quem trabalhei ao longo dos
anos, cujas vidas estavam literalmente em perigo, assim como a de Tony estava
naquele dia. A partir de minhas memórias, Alice de repente veio à mente. Alice
veio me ver depois que uma recente enxurrada de lembranças do abuso que ela
sofreu nas mãos de seu avô resultou em uma longa internação hospitalar e em
deixar uma carreira como professora amada. Até mesmo as tarefas mais
mundanas pareciam insuportáveis para ela. Em nossa busca por histórias
alternativas que representassem a coragem de Alice em face da dificuldade,
Alice foi capaz de recordar uma incrível façanha de coragem que havia ficado
escondida nas profundezas de sua mente. Quando ela tinha apenas 16 anos de
idade e apenas um ano após se libertar do abuso de seu avô, ela decidiu colocar
um fim no controle e terror de seu avô sobre ela. Alice ganhara uma preciosa
cachorrinha de pelúcia quando era criança. Essa fiel companheira,
apropriadamente chamada de Coragem, esteve com Alice durante os melhores e
piores momentos. Durante uma das fatídicas visitas de Alice à casa de seu avô,
Alice conseguiu fugir enquanto ele dormia. Em sua corrida para a segurança,
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Coragem foi deixada para trás. Depois de dois anos tentando convencer outras
pessoas de que ela foi vítima do abuso de seu avô, Alice decidiu resolver o
problema com suas próprias mãos. Na tenra idade de 16 anos, Alice teve a
audácia de retornar à casa de seu avô para resgatar sua preciosa cadelinha de
pelúcia. "Onde está a Coragem?" Alice exigiu. Surpreendida pela força de sua
convicção, seu avô não conseguiu responder. “Eu sei o que você fez comigo. Eu
estou aqui para resgatar a Coragem. Eu não vou sair daqui sem a minha
coragem”. E ela a resgatou mesmo. Alice entrou no quarto, abriu a porta do
armário e, confiantemente, voltou para a sala onde encontrou seu avô sentado
com as mãos no rosto pedindo perdão através dos olhos cheios de lágrimas.
Inabalável, Alice continuou marchando porta afora, tendo resgatado sua própria
coragem no processo.
Também me lembrei de Sally, que se recusou a abandonar sua crença de que
uma vida de cura e alegria era possível, apesar de anos entrando e saindo de
hospitais após atentar contra sua própria vida. Aparentemente, seus médicos
tentaram convencê-la a renunciar à sua convicção de que a cura era possível.
Eles a aconselharam: “Você deveria concentrar sua energia em tentar
administrar e lidar com o abuso”. Minha mente rapidamente voltou para um
cartão postal que recebi de Sally logo após nosso último encontro, com a
imagem de um alpinista em pé à beira do precipício de uma montanha coberta
de neve com a legenda: “Eu finalmente cheguei ao topo da montanha! Eu estou
livre!".
Finalmente, Tony deu outro aceno de concordância, mas desta vez ele fixou os
olhos em mim, apesar de admitidamente não por muito tempo. Eu notei suas
respirações gradualmente desacelerando e se alongando. “Tony, eu ouvi você e
Emily falando brevemente sobre algo que você gosta de fazer quando está em casa
e precisa de um pouco de conforto. Era um ursinho de pelúcia ou um bicho de
pelúcia?” A cabeça de Tony se levantou levemente, mas ele parecia muito mais
alerta: “Sim, mas é um coelhinho de pelúcia”. Incentivado por sua resposta,
prossegui. "Você estaria disposto a me dizer o nome do seu coelhinho de
pelúcia?". Sua cabeça levantou um pouco mais, e um sorriso minúsculo, mas
distinto, se formou em seu rosto quando ele disse: "Bunners". Mais esperança.
"Você se importa se eu fizer algumas perguntas sobre Bunners?". Tony
assentiu afirmativamente com o que agora pode ser descrito como um sorriso no
rosto. Eu perguntei: "Você pode me ajudar a entender o que no seu
relacionamento com Bunners lhe traz conforto em tempos difíceis?". Tony,
agora sentado, mas ainda segurando os joelhos, relatou como Bunners tinha sido
seu companheiro desde que ele era uma criança muito jovem e durante os
tempos de sofrimento quase insuportável. "Você diria que Bunners, tendo estado
com você durante seus momentos mais sombrios, pode conhecê-lo melhor do
que ninguém e em particular o que você representa na vida?". Sentando-se
completamente agora, sua voz ficando mais firme: "Sim, sim, ele conhece".

Eu disse: “Tendo sido seu companheiro durante algumas das suas horas mais
sombrias, o que você acha que Bunners poderia me dizer sobre como você
conseguiu continuar lutando na escuridão e no desespero?”. “Bunners diria que
eu sou uma pessoa atenciosa. Que eu me importo com os outros, que eu me
importo com a vida”, Tony respondeu. “E por que é que Bunners pode dizer que
você se importa com a vida?”. “Porque Bunners me viu levantar vez após vez
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quando estou me sentindo pra baixo ou como se eu não pudesse continuar
mais”. Tony, que tinha se fechado firmemente em uma bola incapaz de respirar
apenas alguns minutos atrás, agora estava inclinado para a frente em sua cadeira
com um sorriso pequeno, mas consistente em seu rosto. “Você diria que
Bunners tem fé em você?”. Sem hesitar, Tony foi inequívoco em sua resposta.
"Sim! Sim! Bunners acredita e tem fé completa em mim”.
De fato, a fé de Bunners em Tony era inegável. Não havia espaço para
desespero agora. “Você pode sentir a fé de Bunners em você agora mesmo, aqui
mesmo?”, eu perguntei. Os olhos de Tony imediatamente se encheram de
lágrimas. Ele inspirou profundamente, como se estivesse se inspirando. Eu sei
que eu me inspirei.
"Sim eu posso... Bunners está sempre lá quando eu mais preciso dele". Não havia
espaço para a escuridão e o desespero agora, o que me deu a oportunidade de
conhecer um pouco mais sobre Tony através dos olhos de Bunners. Como me
acostumei a fazer em tais circunstâncias, fiz a Tony uma série de perguntas
semelhantes à que se segue, que podem implicar ainda mais a relação entre Tony e
Bunners. "Tony, o que você acha que Bunners poderia me dizer sobre você se eu
fizesse a ele essa pergunta: Bunners, Tony tem me contado sobre o apoio que você
tem dado a ele durante toda a sua vida e a fé que você tem nele; você estaria disposto
a me contar uma história sobre Tony que possa me ajudar a entender por que ele
sabe com tanta certeza que você tem uma fé tão profunda nele?". E não foi surpresa
alguma que Bunners estivesse bastante disposto a atender ao meu pedido.
“Tony”, disse Bunners, “é o tipo de pessoa que mantém suas convicções,
mesmo que isso signifique ir contra a corrente. Ele sabia desde muito novo que
ele não era como todo mundo. E mesmo que isso significasse sofrer implicância
e bullying dos colegas, ele não desistiu de suas convicções”. “Bunners, sabendo
o que você sabe sobre tudo que Tony sofreu como resultado de seguir suas
convicções, que tipo de convicção você diria que Tony tem? Você diria que a
convicção de Tony é comum ou extraordinária?". Bunners declarou:
“Extraordinária. Não há dúvida sobre isso”, sem sequer um momento de
hesitação em sua voz.
Tony, agora envolvido pela fé e crença que Bunners tem nele, repentinamente nos
anunciou: "Eu vou ficar bem agora!". Antes de terminar nosso encontro, perguntei a
Tony se ele estaria interessado em pensar em maneiras de levar consigo a fé e a crença
que Bunners tem nele todos os dias, entre aquele instante e sua próxima reunião com
Emily. Os olhos de Tony pareciam se iluminar com a perspectiva. "Eu sei . . . Vou
pegar um Bunners de bolso para que eu possa literalmente carregá-lo comigo todos os
dias. E eu sei exatamente onde encontrá-lo”. “Você pode nos dizer onde?”, eu
perguntei. Encerramos nossa reunião, mas não antes de Emily e eu compartilharmos o
quanto esperamos ouvir o que mais poderíamos aprender sobre a convicção de Tony de
continuar se importando com a vida através da companhia constante de seu
companheiro Bunners.

Depois que Tony saiu, eu me encontrei com Emily para falar sobre a
transformação que acabáramos de testemunhar e ver como ela estava. Afinal, foi
uma reviravolta muito dramática dos acontecimentos, pois estávamos
literalmente em uma situação de vida ou morte. Antes que eu pudesse pensar em
algo para dizer para nos ajudar a entender o que acabara de acontecer, Emily
perguntou: "Como você sabia por onde ir?". Lembrei Emily sobre a história do
cãozinho que compartilhei com ela em nosso primeiro dia de aula, que então
havia sido um ano atrás. “Eu não sabia por onde ir quando entrei na sala, mas
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acreditei, mais do que em qualquer outra coisa, que um cãozinho apareceria se
eu procurasse o suficiente”. Neste caso, não era um cãozinho, mas um coelhinho
de pelúcia que literalmente trouxe Tony de volta à vida naquele dia. Emily
sentou-se em silêncio com uma expressão em seus olhos que me disse que ela
estava em meio a uma lembrança. “Agora eu entendi. Agora eu entendo o que
isso significa. Há sempre um cãozinho!”, Emily declarou. “Eu sempre entendi
racionalmente o que era a história... que precisávamos ter esperança para nossos
clientes... mas agora eu sei disso no meu coração”.

A HISTÓRIA DE EMILY

Sentada no consultório de Tom, depois de me encontrar com Tony, me senti


um pouco em choque. Era como se eu tivesse testemunhado uma batalha dentro
de Tony, uma batalha que a princípio parecia ter apenas um final possível.
Exceto que meu choque foi o resultado do encontro que terminou de maneira um
tanto milagrosa, com Tony saindo com firme confiança em sua capacidade de
enfrentar os desafios da próxima semana. Mas a confiança que testemunhei
parecia ir muito além disso, como se ele tivesse experimentado uma revelação
de seu caráter moral como pessoa e, de repente, sua vida estivesse cheia de
possibilidades inimagináveis. Minha mente estava cambaleando. O que eu
acabei de testemunhar? Como Tom sabia em que direção seguir? Como ele não
ficou paralisado pelo medo, como eu?
Enquanto minha conversa com Tom continuava, fiquei pensando em como
nós, como terapeutas, não podemos nos conectar à esperança, a menos que
acreditemos que realmente haja esperança. Da mesma forma, não podemos
encontrar o cãozinho sempre presente (ou coelho) sem realmente ter fé de que
ele realmente existe. De repente, vi que havia dois desdobramentos possíveis o
tempo todo! A escuridão havia trabalhado muito para esconder esse fato de
mim, mas, agora armada pela fé de Bunners em Tony, eu sabia que seria capaz
de ver através dessas mentiras.
Sendo uma nova terapeuta, eu ainda estava procurando e desenvolvendo as
crenças e valores que queria que me orientassem. Naquele encontro com Tony, a
escuridão parecia abrangente, e lutei para encontrar esperança. Ao testemunhar a
transformação em Tony enquanto ele se relacionava com a história de si mesmo
como forte e resiliente, experimentei o poder da esperança que agora
intencionalmente trago comigo quando encontro outros clientes. Desde então,
reconheço a esperança como vital para minha história de terapeuta, e isso me
influenciou a continuar vasculhando qualquer sujeira que esteja presente para
meus clientes para ajudá-los a se conectar a uma versão melhor de si mesmos
que possa ter escapado à sua visão. A esperança se tornou uma companheira
para mim, uma companheira que intencionalmente trago para a sala toda vez que
encontro alguém. Dessa forma, ela nunca está longe; está ao meu lado sempre
que eu - ou meus clientes - precisarmos. Naquele dia com Tony, a história sobre
o cãozinho se tornou muito mais que uma história - ela ganhou vida e se tornou
minha. Para mim, a história do cãozinho será para sempre uma história não
apenas sobre um cãozinho, mas também sobre um coelho de pelúcia salvador de
vidas chamado Bunners.
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Tony chegou à nossa próxima sessão com uma ginga no andar que eu nunca havia
testemunhado antes. Ele trouxe todos os seus companheiros de pelúcia e
orgulhosamente me apresentou a cada um deles. Por fim, ele pegou o Bunners de
bolso, batizado com o nome Benny. Tony passou a me dizer que, após a sessão
anterior, ele foi procurar seu novo companheiro e encontrou um coelho de pelúcia
pequeno o suficiente para caber no bolso do casaco. Ele então me disse que havia
conversado sobre a nossa sessão anterior com o pai, que ainda está lutando com a
identidade de Tony como homem trans e de quem Tony deseja ter mais apoio em
relação à sua transição. Entusiasmado, Tony compartilhou que ele e seu pai
escolheram um nome juntos para seu mais novo companheiro, conjuntamente
escolhendo Benny, o que para ele representava uma expressão duradoura de amor e
apoio de seu pai.
Enquanto nosso trabalho continuava nos meses seguintes, Benny participava
de cada vez menos dos encontros. E, apesar de Tony nem ter percebido, ficou
claro para mim que ele havia encontrado um lar nos olhos amorosos de
Bunners. A escuridão, que ainda não estava pronta para desistir de sua presença
na vida de Tony, tentou vários esforços de última hora, mas Tony os afastou
para longe como insetos. Foi apenas em nosso último encontro que Tony
percebeu que Benny não comparecia a nossos encontros há algum tempo. De
fato, Benny não saía de casa há semanas! Foi nesse momento que Tony
reconheceu que sua vida agora estava cheia de luz suficiente para afugentar a
escuridão sempre que ela decidisse retornar. Na verdade, Tony pode concluir
com a ajuda de seu amigo de pelúcia, Bunners, [a luz] deve ter estado com ele o
tempo todo.

REFERÊNCIAS

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Narrative therapy with children and their families. New York, NY: W. W. Norton.
O’Hanlon, B. (1994). The third wave: The promise of narrative. Family Therapy
Networker,
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White, M., & Epston, D. (1990). Narrative means to therapeutic ends. NewYork, NY:
Norton.

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