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MEMÓRIA, HISTÓRIA E IDENTIDADE NA VIDA DE CINCO ITALIANOS E

SUAS VISÕES SOBRE A GUERRA.


Márcio De Carvalho e Silva1
RESUMO: Sobreviver a Guerra é uma experiência marcante na vida dos seres
humanos, produtora de memórias, relatos e vivências. Partindo dessa ideia, nosso artigo
lança mão das entrevistas organizadas nas obras de Alessandro Portelli com o objetivo
de analisar e identificar a relação entre memória, história e identidade nos testemunhos
de cinco italianos que sobreviveram a Segunda Guerra Mundial. Buscaremos também
problematizar diferentes modalidades de memória, como a memória dividida, memória
ressentida e a relação entre memória e esquecimento no contexto do Pós-Segunda
Guerra. Ao fim, nos dispomos a colaborar para a construção de uma memória pública a
partir do uso de narrativas não-hegemônicas por meio da História Oral.
PALAVRAS-CHAVE: Guerra; Memória, Alessandro Portelli; História; Identidade.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS:
No início do seu livro “A Era dos Extremos: O Breve Século XX”, o historiador
inglês Eric Hobsbawm comenta que não há como compreender o Breve Século XX sem
mencionar as Guerras Mundiais, pois se pensou e viveu em seus termos, mesmo quando
os canhões se calavam e as bombas não explodiam2. Levando em consideração que esse
passado ainda tem implicações no presente e que muitos sobreviventes desse processo
ainda estão vivos, faz-se necessário considerar as suas intepretações, suas memórias
desses acontecimentos, de modo a contá-las e inserir suas narrativas dentro da história.

Partindo dessa premissa, tomamos como escopo para análise, cinco pequenas
histórias da vida de italianos entrevistados pelo literato Alessandro Portelli com o
objetivo de analisar a relação entre memória, história e identidade a partir dos seus
testemunhos sobre a Segunda Guerra Mundial, privilegiando a ocupação nazista do
território italiano entre 1944 e 1945. Os critérios de escolha se deram por dois quesitos:
o primeiro diz respeito ao seu engajamento na resistência italiana, independente de
filiação político-partidária ao Partido Comunista Italiano. O segundo critério considera a
importância das memórias sobre a Guerra no feminino e masculino, pois entendemos
que as relações de gênero também fazem parte do processo ao considerar que a Guerra é
um momento que envolve homens e mulheres e ambos possuem protagonismo num
evento dramático e importante em suas vidas.

1
Mestrando em História Social do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Amazonas – UFAM. Bolsista/Fapeam. Membro do grupo de pesquisa Estudos Africanos: identidades,
dinâmicas sociais e cientificas da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
2
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1994-1991. Tradução de Marcos Santarrita.
São Paulo: Companhia das Letras. 1995, p. 30.

1
Escolhemos dois homens e três mulheres e assim buscamos discutir diferentes
modalidades de memória, a saber memória ressentida, memória dividida, memória
subterrânea e sua relação com a identidade e história. São eles, Mario Fiorentini, líder
partigiano3 entre 1943-44; Valtéro Peppoloni, trabalhador na aciaria e membro do
partigianato clandestino durante a ocupação nazista em Roma. As três mulheres
escolhidas foram Ada Pignotti, que perdeu seu marido no massacre de Fosse Ardeatine 4;
Lucia Ottobrini, esposa de Mario Fiorentini e participante das operações de guerrilha
durante a Resistencia e Mirella Casanica, sobrevivente do processo de ocupação aliada.

Nas memórias que nos propomos a analisar, buscamos demonstrar os impactos


humanos e não-humanos da Guerra, de modo a enquadrá-las dentro do processo de
construção da memória nos colaboradores entrevistados por Portelli.

Memória e esquecimento: o binômio existente nas memórias de Mario Fiorentini,


Lucia Ottobrini e Ada Pignotti.

Segundo Júlio Cláudio5, além dos acontecimentos vividos, a memória também é


construída por personagens e lugares da memória, que são ligados a lembrança. Sendo
assim, a memória apresenta caráter seletivo e se encontra em constante processo de
seleção que permite ocultações e ressurgimentos no ato de lembrar e consequentemente
no ato de contar.

Desse modo, iniciamos nossa conversa com Mario Fiorentini, antigo líder
partigiano entre 1943-44 e professor de matemática após o fim da Segunda Guerra.
Portelli6 conta que conheceu Fiorentini em 1997, após receber uma indicação do seu
amigo Leonardo Paggi que lembrava de sua participação no processo que resultou na

3
A palavra Partigiano (partigiani, no plural) diz respeito a combatentes que fizeram parte da resistência
italiana contra a ocupação nazista entre 1943-45, que não estavam necessariamente ligados a “partidos”.
PORTELLI, Alessandro. História, Memória e Significado – De um massacre nazista em Roma.
Oralidades/USP, 3, 2008, p. 156.
4
O Massacre de Fosse Ardeatine ocorreu em 24 de Março de 1944. Nessa ocasião, o Comando Alemão
executou 335 italianos em uma pedreira localizada na Via Ardeatina, nas proximidades de Roma. A ação
foi uma retaliação a um ataque feito a uma unidade alemã efetuado no dia anterior por um grupo da
Resistencia Italiana ligado ao Partido Comunista que resultou na morte de 33 pessoas. A ordem do
comando alemão entendeu que, para cada alemão morto deveriam morrer 10 italianos. Para Portelli,
tratou-se da única chacina metropolitana ocorrida na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Também
foi marcante no acontecimento a heterogeneidade das vítimas, demonstrando a complexa estratificação
social que existia naquele espaço. PORTELLI, Alessandro. História, Memória e Significado – De um
massacre nazista em Roma. Oralidades/USP, 3, 2008, p. 163.
5
SILVA, Júlio Cláudio da. Uma estrela negra no teatro brasileiro: relações raciais e de gênero nas
memórias de Ruth de Souza (1945-1952). Manaus: UEA Edições. 2017, p. 37.
6
PORTELLI, Alessandro. Para além da entrevista: Uma autoetinografia da minha prática. In:
PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo: Letra e Voz. 2016, p. 38.

2
retaliação dos alemães e consequentemente no massacre de Fosse Ardeatine. Durante a
entrevista, Mario conta sobre o início da ocupação nazista em Roma e percebemos
aquilo que representou para ele um lugar de memória, bem como a aparição de uma
memória subterrânea:

No dia 10 de setembro de 1943, eu testemunhei um acontecimento terrível e


chocante: a entrada do comboio alemão e o começo da ocupação de Roma.
[Minha futura esposa] Lucia Ottobrini e eu estávamos na Via del Tritone, na
Esquina da Via Zuchelli, a 100 metros da Via Rasella 7. Alguns diziam que o
comboio de tanques alemão era “prepotente”. Não – para mim, estava
acontecendo uma solenidade. E francamente, aquilo me deu calafrios, porque
eu lembrei das imagens que mostravam Hitler e seus generais ocupando
Paris. Foi para mim uma visão assustadora8.

Mesmo sendo um partigiani, percebemos que a memória de Fiorentini suscitou a


mista sensação de medo e perplexidade por reviver o processo de ocupação nazista de
Paris enquanto andava na Via del Tritone. Desse modo, podemos aferir que havia
preocupação entre os combatentes italianos que as mesmas atrocidades praticadas por
Hitler na capital francesa se repetissem em Roma, uma vez que era reconhecido o
poderio do exército alemão. Não à toa, Mario entende a entrada do comboio alemão na
sua cidade como uma solenidade, ainda que fosse um espetáculo perturbador
emocionalmente.

Todavia, Portelli nota que seu colaborador insiste em falar sobre outros aspectos
da sua vida. Embora ele sinta orgulho de sua participação na Resistência, ele também
quer ser lembrado como cientista e homem de cultura. Isso fica perceptível quando
Fiorentini fala com orgulho de si após conquistar seu diploma em Matemática, condição
que lhe permitiu lecionar após o fim da Segunda Guerra. Para ele “Revolução significa
colocar a matemática ao alcance de todos9”. Entendemos que para Mario, as lembranças
da Guerra lhe causam ressentimento e possivelmente como vimos fosse melhor lembrar
dos fatos da sua vida no Pós-Guerra.

Outro detalhe que nos chama a atenção é sua crítica velada aos direcionamentos
do Partido Comunista Italiano no uso do termo “Revolução”. Para o ex-combatente,
seus camaradas de esquerda deveriam priorizar a formação das pessoas na base, o que
7
Segundo Portelli, a Via del Trintone é uma importante rua que compõe o centro histórico de Roma, já a
Via Rasella foi o local escolhido pelo grupo da Resistencia Italiana que posteriormente efetuaria o ataque
a um comboio alemão, matando 33 militares. O Fato posteriormente seria tomado como justificativa para
o massacre de Fosse Ardeatine. PORTELLI, Alessandro. Para além da entrevista: Uma autoetinografia da
minha prática. In: PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo: Letra e Voz.
2016, p. 39.
8
Idem, p. 39.
9
Idem, p. 42.

3
revela um pensamento dissonante dentro do espectro político, visto que essa não foi
uma das preocupações da esquerda italiana, mais interessada em relembrar a luta e a
importância da Resistencia dos partigiani durante a ocupação nazista no Pós-Segunda
Guerra. Fiorentini não foi o único que lembrou da Guerra com pesar, sua esposa Lucia
Ottobrini conforme notamos em sua memória passou pelo mesmo processo.

Segundo Portelli10, Lúcia se recusou a ser entrevistada, mas ainda sim estava
interessada em contar suas memórias enquanto ex-combatente. Durante seus
testemunhos, ela aparentava ser uma pessoa muito espiritualizada e disse que “Durante
aqueles dois anos, eu nunca conversei com Ele 11”. Fazendo uma referência a Jesus
Cristo, Portelli lança mão da seguinte pergunta: “Não conversou porque você achava
que Jesus não iria entender o que você estava fazendo 12?”. E Lúcia responde: “É, eu não
achava que ele entenderia. Eu só comecei a falar com Ele depois que a Guerra
acabou13”. Entendemos que a Guerra é uma experiência-limite para as pessoas, mesmo
para uma religiosa como Lúcia. Desse modo, o acontecimento despertou sentimentos
ambíguos e ações que colocaram em xeque os seus ensinamentos cristãos que
precisaram ficar em segundo plano diante da luta pela sobrevivência.

Numa outra oportunidade, Lúcia aceitou ser entrevistada e comentou sobre a luta
contra os Aliados nas estradas que rodeavam a capital italiana, “Eu não tinha medo [dos
aviões], mas eu os odiava, porque eles atacavam as pessoas, os pobres diabos andando
na estrada, e eu não achava isso certo14.”.

Vemos aqui o surgimento daquilo que Portelli 15 nomeia como memória


ressentida diante dos bombardeios indiscriminados sobre alvos militares e civis
realizado pelos Aliados na luta contra os nazistas. Esses eventos produziram lembranças
que trazem consigo a indignação e o ressentimento das pessoas que não legitimavam
essas ações. Entretanto, mesmo que os sobreviventes consigam se expressar, ainda há
casos em que precisam recorrer ao esquecimento, ainda que ele suscite conflitos como
no caso de Ada Pignotti.

10
Idem, ibidem, p. 41.
11
Ibidem.
12
Ibidem.
13
PORTELLI, Alessandro. Para além da entrevista: Uma autoetinografia da minha prática. In:
PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo: Letra e Voz. 2016, p. 41.
14
PORTELLI, Alessandro. Um ônibus vermelho: vítimas inocentes de canhões libertadores. In:
PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo: Letra e Voz. 2016, p. 149.
15
Idem, p. 166.

4
Portelli conta que ela tinha 23 anos quando perdeu seu marido em Fosse
Ardeatine e outros três familiares. Mesmo que não se possa aferir seu engajamento na
Resistência, eles estavam próximos da Via Rosella no dia do ataque das tropas alemãs.
Ada conta que:

Naquela época, depois do que aconteceu, em 44 – não se falava sobre isso,


não se podia falar. Eu trabalhei por 40 anos e mesmo no meu trabalho, às
vezes, quando me perguntavam alguma coisa, eu não dizia nada – porque
sempre reagiam: pois bem, a culpa é de quem colocou a bomba. Diziam que,
se eles tivessem se apresentados, os outros não os teriam matado. Mas onde
foi escrita essa história? Quando disseram? Quando? Não disseram uma
palavra, não colocaram nenhum aviso – fizeram isso mais tarde, depois de já
terem matado os 335. Porque nós fomos atrás de tudo, dia após dia, a tragédia
toda: e, como eu disse, quando nós lemos sobre isso nos jornais, minha
cunhada e eu, eu quase desmaiei e ela também. Não se podia nem mesmo
discutir: porque vinha a história: o que? você está defendendo aqueles que
colocaram a bomba? Eu não estou defendendo ninguém, mas as coisas são
assim, é inútil querer modificá-las16.

A fala da colaboradora chama atenção por dois aspectos. O primeiro diz respeito
a memória dividida sobre o evento. Enquanto seus companheiros de trabalho culpavam
os partigiani por ter colocado a bomba e por não ter se entregado, Ada reclama que
precisava ficar em silencio, pois sua posição contrária incomodava seus detratores. O
segundo refere-se as relações de gênero que se imputam naquele espaço, pois o
posicionamento de Ada não tinha apenas o componente político, mas também os
ressentimentos de uma mulher que perdeu seu companheiro e seus familiares em Fosse
Ardeatine e ali estava, ainda que se tentasse seu silenciamento, defendendo seu lugar de
fala e sua interpretação acerca de um evento traumático na sua vida e de sua família.

Memória dividida: dissonâncias no ato de lembrar e contar.

Como nos lembra Portelli, para esses sobreviventes aceitar esses acontecimentos
exigiu um esforço psicológico longo e complexo. Desse modo, eles tiveram caminhos
diferentes após o fim da Segunda Guerra. Enquanto uns se engajaram na luta pela
memória, outros preferiram ficar em silêncio. Nisso reside a importância das entrevistas,
pois elas permitem lançar novos olhares sobre a vida diária a partir das classes não-
hegemônicas a partir das análises de suas memórias 17.

Todavia, também houve colaboradores que não demonstravam problemas em


falar de seu engajamento político. Dentre eles destacamos o trabalhador Valtéro
16
PORTELLI, Alessandro. História, Memória e Significado – De um massacre nazista em Roma.
Oralidades/USP, 3, 2008, p. 167-68.
17
PORTELLI, Alessandro. “O que faz a História Oral diferente”. Projeto História PUC/SP, São Paulo,
(14), fev. 1997, p. 31.

5
Peppoloni. Segundo Portelli18, Valtéro foi membro da juventude fascista e participou da
Guerra Civil Espanhola, todavia foi se desencantando ao descobrir a natureza do
fascismo enquanto trabalhava numa aciaria. Além disso, ele teve desentendimentos
como os membros do Partido Fascista Italiano. Ainda sim, no começo da Segunda
Guerra Mundial, Peppoloni lutou no front grego. Entretanto após se recusar a voltar ao
front, foi dispensando por invalidez. Ele então se recusa a integrar o exército
Nazifascista e se torna um partigiani. Após o fim da guerra, ele regressa ao seu trabalho
na aciaria. Peppolini relembra esse momento nos seguintes termos:

Quando eu comecei a trabalhar lá, em 1939, estava cheio de guardas da


companhia. Os guardas eram verdadeiros chefes na fábrica. Eles ficaram
parados atrás de você assistindo, mesmo que você estivesse fazendo seu
trabalho direito. Porque, naquela época, a gente trabalhava – t-r-a-b-a-l-h-a-v-
a. A gente trabalhava [depois da guerra, entretanto,] a fábrica estava cheia de
caras que, porque tinham sido partigiani, tinham ficado arrogantes. E eu dizia
pra eles: “não, isso não tá certo”. Eu tinha uma mentalidade diferente, certa
ou errada. Eles diziam: “Nós precisamos nos livrar dos chefes, matar todos
eles, não é por isso que lutávamos? Da minha parte, embora nunca tivesse
suportado os chefes, eu sempre tentei fazer o meu dever, onde eu estivesse.
Eu nunca fiz corpo mole. Troquei de chefe muitas vezes, me demiti algumas
vezes e fui demitido em outras. Mas no que diz respeito ao trabalho, eles
sempre tiveram na palma da mão. Eu sempre quis ter razão na frente do
patrão19.

Para Portelli, o comportamento de Valtéro é resultado de um processo linear de


amadurecimento pessoal20 que ainda não aceitava desaforos, mas que ao mesmo tempo
começava a tolhir seus impulsos após vivenciar as opressões sofridos na sua juventude e
durante a era fascista na Itália. Ainda no Pós-Guerra, Peppoloni faz duras críticas a
liderança do Partido Comunista, assim como demonstrou seu engajamento político:

As pessoas tiravam vantagem da situação, naquela época. Traziam jornais


para a fábrica, sentavam e liam [em vez de trabalharem]. Eu não aguentava
aquilo. Antes da guerra nos não eram livres. Mas depois da guerra nós
éramos, os patrões, de certa forma. Mas patrões não no sentido estrito do
termo: porque fazer só aquilo que nos agrada não era a coisa certa a fazer.
Quando tínhamos que lutar pelo nosso sindicato, quando era alguma coisa
que eu entendia e estava certa [eu estava lá]. Porque se não estava certa, você
não ia me ver lá. Nem agora você me vê. [Por outro lado], eu nunca tive
18
PORTELLI, Alessandro. O melhor limpa-latas da cidade: a vida e os tempos de Valtéro Peppoloni,
trabalhador. In: PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz. 2010, p. 163.
19
Idem, p. 163-64.
20
Segundo Portelli, os episódios na vida de Peppoloni lhe fizeram passar por três momentos distintos sob
uma linha de estabilidade e permanência: o primeiro na qual ele mesmo se definia como “ scavezzacollo”,
moleque travesso, na qual ele cometia pequenas traquinagens como depenar a damasqueira. O segundo
momento compreende o “spirito ribelle”, espírito destemido, onde se tomava posições contra os abusos
dos oficiais fascistas ou guardas de fabricas. Por último, o estado de “coscienza”, consciência onde
Valtéro participou das greves e tornar-se-á um trabalhador consciente dos seus direitos e da estrutura
injusta na sociedade a qual vivia. PORTELLI, Alessandro. O melhor limpa-latas da cidade: a vida e os
tempos de Valtéro Peppoloni, trabalhador. In: PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São
Paulo: Letra e Voz. 2010, p. 168-69.

6
medo. Eu fui um daqueles que participou de todas as greves – todas; todas;
todas, todas elas. Todas. Até aquelas erradas, talvez. Eu devo ter estado em
algumas das erradas. Tudo bem, tudo bem. Mas eu estava em todas elas21.

A insatisfação contada por Peppolini revela que ele havia se tornado um


trabalhador consciente e engajado. Observamos sua presença constante nas greves antes,
durante e depois da Guerra mesmo que nem sempre elas tenham correspondido a um
ideal positivo. Percebemos outra mostra desse processo quando ele narra sua
participação nas barricadas em 1953:

A polícia me bateu na cabeça, na rua. Mas outros, que tenham sido


demitidos, eu ainda falo para eles hoje: vocês estavam em casa chorando na
barra das saias das suas mulheres, enquanto nós estávamos nas ruas lutando
pelos seus empregos22.

As memórias combativas atravessam a vida de Peppoloni. Obviamente que esse


processo de lembrar e contar e aqui, nos passa a impressão da ocorrência do fenômeno
que Michel Pollak classifica como “depoimentos pré-construidos 23”. Valtéro se dizia
conhecido por todos na cidade devido ao seu trabalho como limpa-latas e percebemos
que ele apresenta uma tendência de formular respostas para eventuais perguntas a partir
da organização a partir de pontos fixos como as suas vivências combativas nas variadas
funções que desempenhou ao longo de sua vida.

Tal como Ada e Valtéro, a sobrevivente dos bombardeios aliados Mirella


Casanica também nos trouxe memórias conflituosas acerca da Guerra. Diferentemente
dos demais entrevistados por Portelli, Casanica não teve sua história de vida contada
com mais detalhes, apenas um testemunho do processo, conforme ela relata sobre as
operações americanas durante a Segunda Guerra:

Eles ficavam falando que os americanos salvaram a gente, e tudo mais – só


depois, porque durante, durante a guerra, não sei se você sabe disso, mas
tinha uma praça e as pessoas desesperadas, correndo de um lado pro outro, e
as fortalezas voadoras viam eles correndo, viam que não eram militares, e
mesmo assim eles voavam baixo e – tá, tá, tá, bombardeavam. Eu não gosto
muito dos americanos, pra falar a verdade. Eu lembro das meninas
aplaudindo [quando eles chegaram], mas eu não. Instintivamente, eu nunca vi
eles como libertadores. A gente não conversou muito, você sabe disso, mas
eles causaram muitas mortes, eles nem sempre atingiam o alvo porque eles
também atingiam lugares que não tinham nada a ver. Mas eu nunca achei que
eles fossem libertadores24.

21
Idem,, p. 164-65.
22
Ibidem.
23
SILVA, Júlio Cláudio da. Uma estrela negra no teatro brasileiro: relações raciais e de gênero nas
memórias de Ruth de Souza (1945-1952). Manaus: UEA Edições, 2017, p. 75.
24
PORTELLI, Alessandro. Um ônibus vermelho: vítimas inocentes de canhões libertadores. In:
PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016, p. 170.

7
Os excessos dos americanos descritos no testemunho de Casanica revela as
contradições da ocupação aliada e um fenômeno recorrente assinalado por Portelli, a de
que a memória da destruição obscurece a memória da libertação. Por isso, a imagem
negativa se sobrepõe a positiva no ato de lembrar e contar. Portelli 25 comenta que o caso
mencionado é um exemplo de memória dividida, onde há a memória de um
acontecimento dividida dentro de si mesma, dentro da consciência dupla e assim, não
conciliada de indivíduos e grupos sociais. Por isso que os americanos não são
visualizados como “libertadores” por Casanica.

Obviamente que as razões por trás disso extrapolam a dimensão micro do relato.
Segundo Portelli26, o clima político na Itália do Pós-guerra ficou polarizado em duas
posições bem definidas. Se por um lado, a esquerda insista no “legado do antifascismo”
e no reconhecimento da luta dos partigiani na opinião pública, havia também o centro e
a centro-direita, mais conservadora e de posição moderada que não fizeram críticas aos
excessos dos americanos e britânicos cometidos contra os civis inocentes, conforme
observamos no testemunho de Casanica.

De acordo com Portelli27, existe uma memória pública mais positiva da ocupação
dos aliados, uma vez que eles receberam muitos aplausos ao entrarem nas cidades
italianas, por serem os responsáveis por trazer o fim da Guerra, embora houvesse
também os excessos que são perceptíveis a partir dos testemunhos de uma sobrevivente.

Considerações finais.

Quando pensamos na produção desse artigo, as nossas primeiras iniciativas


foram trabalhar com os relatos dos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, uma vez
esse sempre foi um campo de interesse desde o início da nossa formação. Falar de
Guerra e dos seus impactos exige uma postura crítica e problematizadora do historiador,
pois atravessamos um momento crítico na história mundial com a ocorrência de
conflitos armados e o recrudescimento do neofascismo a nível internacional. Falando
especificamente da Itália, é necessário lembrar o atual avanço da Extrema-Direita no
país e concomitantemente o ressurgimento de posições radicais, materializadas nas
pautas anti-imigração e contrárias a União Europeia propaladas pelo primeiro-ministro

25
Idem, p. 171.
26
Idem, p. 172.
27
Ibidem.

8
italiano Matteo Salvini28. Entendemos que os problemas do presente juntamente com as
heranças do “Breve Século XX” assinaladas por Hobsbawm no início do trabalho foram
de grande valor e nos engajaram a buscar referências, de modo a discutir essa
problemática recorrendo as narrativas não-hegemônicas na historiografia das vítimas
desse processo.

Nesse sentido, seguimos as pegadas de Portelli, demonstrando que a história oral


e as memórias não nos oferecem necessariamente um esquema de experiências comuns,
mas sim um campo de possibilidades compartilhadas, presentes na memória e
consequentemente no imaginário das pessoas29.

Observamos que a memória dos sobreviventes apresentou uma tendência de


lembrar e contar com uma perspectiva dissonante, demonstrando poucos momentos de
convergência entre si. Acreditamos que isso seja reflexo das experiências diferenciadas
que um evento traumático como uma Guerra Mundial proporciona. O único ponto em
comum em grande parte das memórias analisadas diz respeito a ojeriza a ocupação
nazista em território italiano. Ficou perceptível em alguns casos a prática assinalada por
Michel Pollak dos “depoimentos pré-construidos” como no caso de Mario Fiorentini e
Valtéro Peppoloni, ação que opera a partir da seleção de memórias com pontos fixos
que reorganizaram suas vivências, formando assim uma identidade declarada na fala do
colaborador. Ambos igualmente fizeram críticas aos direcionamentos dados pelo Partido
Comunista Italiana ao fim da Segunda Guerra, ainda que tenham falado de modo
diferenciado.

No que diz respeito as memórias femininas da Guerra, percebemos que Lucia


Ottobrini e Mirella Casanica fizeram críticas aos bombardeios aliados. Esse ponto de
convergência manifestou aquilo que Portelli classifica como memória dividida,
produtora da diferença e dos contradiscursos, uma representação a contrapelo do
passado muitas vezes hegemônico que levamos a adiante conscientemente ou não. Essa
modalidade de memória ao nosso ver, guarda intima relação com a memória ressentida
materializada no relato de Ada Pignotti, uma mulher duramente atingida pelo massacre

28
Desde aprovou a nova política de imigração italiana no fim de 2018 com o aval do Parlamento Italiano,
o primeiro-ministro italiano e do Partido nacionalista “Liga”, Matteo Salvini declarou que os portos
italianos estão proibidos de receber qualquer navio estrangeiro com imigrantes resgatados no Mar
Mediterrâneo. Disponível em: https://www.msn.com/pt-pt/noticias/mundo/matteo-salvini-impede-
desembarque-de-140-imigrantes-em-itália/ar-AAETC1F. Acesso em 25/11/2019 as 12h06.
29
PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos – Narração, interpretação e significado nas memórias e
nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n°2, 1996. p. 8.

9
das Fossas Ardeatine, mas que não silenciava frente aos detratores da sua memória e de
seus familiares.

A guisa de conclusão, buscamos a partir dos relatos dos sobreviventes da Guerra


demonstrar que a memória, história e identidade são categorias que não se separam e
colaboram para a construção de uma memória pública, conforme assinalado por
Alessandro Portelli. Consideramos essa iniciativa como elemento fundamental de
combate ao negacionismo histórico e as demais formas de intolerância dentro da
academia e em nossa sociedade.

Referências bibliográficas:

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1994-1991. Tradução de
Marcos Santarrita. São Paulo: Companhias das Letras. 1995.

PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos – Narração, interpretação e significado


nas memórias e nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n°2, 1996.

____________________. “O que faz a História Oral diferente”. Projeto História


PUC/SP, São Paulo, (14), fev. 1997.

____________________. História, Memória e Significado – De um massacre nazista


em Roma. Oralidades/USP, 3, 2008.

____________________. O melhor limpa-latas da cidade: a vida e os tempos de Valtéro


Peppoloni, trabalhador. In: PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São
Paulo: Letra e Voz. 2010.

____________________. Para além da entrevista: Uma autoetinografia da minha


prática. In: PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo:
Letra e Voz, 2016.

____________________. Um ônibus vermelho: vítimas inocentes de canhões


libertadores. In: PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo:
Letra e Voz, 2016.

SILVA, Júlio Cláudio da. Uma estrela negra no teatro brasileiro: relações raciais e de
gênero nas memórias de Ruth de Souza (1945-1952). Manaus: UEA Edições, 2017.

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