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Partindo dessa premissa, tomamos como escopo para análise, cinco pequenas
histórias da vida de italianos entrevistados pelo literato Alessandro Portelli com o
objetivo de analisar a relação entre memória, história e identidade a partir dos seus
testemunhos sobre a Segunda Guerra Mundial, privilegiando a ocupação nazista do
território italiano entre 1944 e 1945. Os critérios de escolha se deram por dois quesitos:
o primeiro diz respeito ao seu engajamento na resistência italiana, independente de
filiação político-partidária ao Partido Comunista Italiano. O segundo critério considera a
importância das memórias sobre a Guerra no feminino e masculino, pois entendemos
que as relações de gênero também fazem parte do processo ao considerar que a Guerra é
um momento que envolve homens e mulheres e ambos possuem protagonismo num
evento dramático e importante em suas vidas.
1
Mestrando em História Social do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Amazonas – UFAM. Bolsista/Fapeam. Membro do grupo de pesquisa Estudos Africanos: identidades,
dinâmicas sociais e cientificas da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
2
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1994-1991. Tradução de Marcos Santarrita.
São Paulo: Companhia das Letras. 1995, p. 30.
1
Escolhemos dois homens e três mulheres e assim buscamos discutir diferentes
modalidades de memória, a saber memória ressentida, memória dividida, memória
subterrânea e sua relação com a identidade e história. São eles, Mario Fiorentini, líder
partigiano3 entre 1943-44; Valtéro Peppoloni, trabalhador na aciaria e membro do
partigianato clandestino durante a ocupação nazista em Roma. As três mulheres
escolhidas foram Ada Pignotti, que perdeu seu marido no massacre de Fosse Ardeatine 4;
Lucia Ottobrini, esposa de Mario Fiorentini e participante das operações de guerrilha
durante a Resistencia e Mirella Casanica, sobrevivente do processo de ocupação aliada.
Desse modo, iniciamos nossa conversa com Mario Fiorentini, antigo líder
partigiano entre 1943-44 e professor de matemática após o fim da Segunda Guerra.
Portelli6 conta que conheceu Fiorentini em 1997, após receber uma indicação do seu
amigo Leonardo Paggi que lembrava de sua participação no processo que resultou na
3
A palavra Partigiano (partigiani, no plural) diz respeito a combatentes que fizeram parte da resistência
italiana contra a ocupação nazista entre 1943-45, que não estavam necessariamente ligados a “partidos”.
PORTELLI, Alessandro. História, Memória e Significado – De um massacre nazista em Roma.
Oralidades/USP, 3, 2008, p. 156.
4
O Massacre de Fosse Ardeatine ocorreu em 24 de Março de 1944. Nessa ocasião, o Comando Alemão
executou 335 italianos em uma pedreira localizada na Via Ardeatina, nas proximidades de Roma. A ação
foi uma retaliação a um ataque feito a uma unidade alemã efetuado no dia anterior por um grupo da
Resistencia Italiana ligado ao Partido Comunista que resultou na morte de 33 pessoas. A ordem do
comando alemão entendeu que, para cada alemão morto deveriam morrer 10 italianos. Para Portelli,
tratou-se da única chacina metropolitana ocorrida na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Também
foi marcante no acontecimento a heterogeneidade das vítimas, demonstrando a complexa estratificação
social que existia naquele espaço. PORTELLI, Alessandro. História, Memória e Significado – De um
massacre nazista em Roma. Oralidades/USP, 3, 2008, p. 163.
5
SILVA, Júlio Cláudio da. Uma estrela negra no teatro brasileiro: relações raciais e de gênero nas
memórias de Ruth de Souza (1945-1952). Manaus: UEA Edições. 2017, p. 37.
6
PORTELLI, Alessandro. Para além da entrevista: Uma autoetinografia da minha prática. In:
PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo: Letra e Voz. 2016, p. 38.
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retaliação dos alemães e consequentemente no massacre de Fosse Ardeatine. Durante a
entrevista, Mario conta sobre o início da ocupação nazista em Roma e percebemos
aquilo que representou para ele um lugar de memória, bem como a aparição de uma
memória subterrânea:
Todavia, Portelli nota que seu colaborador insiste em falar sobre outros aspectos
da sua vida. Embora ele sinta orgulho de sua participação na Resistência, ele também
quer ser lembrado como cientista e homem de cultura. Isso fica perceptível quando
Fiorentini fala com orgulho de si após conquistar seu diploma em Matemática, condição
que lhe permitiu lecionar após o fim da Segunda Guerra. Para ele “Revolução significa
colocar a matemática ao alcance de todos9”. Entendemos que para Mario, as lembranças
da Guerra lhe causam ressentimento e possivelmente como vimos fosse melhor lembrar
dos fatos da sua vida no Pós-Guerra.
Outro detalhe que nos chama a atenção é sua crítica velada aos direcionamentos
do Partido Comunista Italiano no uso do termo “Revolução”. Para o ex-combatente,
seus camaradas de esquerda deveriam priorizar a formação das pessoas na base, o que
7
Segundo Portelli, a Via del Trintone é uma importante rua que compõe o centro histórico de Roma, já a
Via Rasella foi o local escolhido pelo grupo da Resistencia Italiana que posteriormente efetuaria o ataque
a um comboio alemão, matando 33 militares. O Fato posteriormente seria tomado como justificativa para
o massacre de Fosse Ardeatine. PORTELLI, Alessandro. Para além da entrevista: Uma autoetinografia da
minha prática. In: PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo: Letra e Voz.
2016, p. 39.
8
Idem, p. 39.
9
Idem, p. 42.
3
revela um pensamento dissonante dentro do espectro político, visto que essa não foi
uma das preocupações da esquerda italiana, mais interessada em relembrar a luta e a
importância da Resistencia dos partigiani durante a ocupação nazista no Pós-Segunda
Guerra. Fiorentini não foi o único que lembrou da Guerra com pesar, sua esposa Lucia
Ottobrini conforme notamos em sua memória passou pelo mesmo processo.
Segundo Portelli10, Lúcia se recusou a ser entrevistada, mas ainda sim estava
interessada em contar suas memórias enquanto ex-combatente. Durante seus
testemunhos, ela aparentava ser uma pessoa muito espiritualizada e disse que “Durante
aqueles dois anos, eu nunca conversei com Ele 11”. Fazendo uma referência a Jesus
Cristo, Portelli lança mão da seguinte pergunta: “Não conversou porque você achava
que Jesus não iria entender o que você estava fazendo 12?”. E Lúcia responde: “É, eu não
achava que ele entenderia. Eu só comecei a falar com Ele depois que a Guerra
acabou13”. Entendemos que a Guerra é uma experiência-limite para as pessoas, mesmo
para uma religiosa como Lúcia. Desse modo, o acontecimento despertou sentimentos
ambíguos e ações que colocaram em xeque os seus ensinamentos cristãos que
precisaram ficar em segundo plano diante da luta pela sobrevivência.
Numa outra oportunidade, Lúcia aceitou ser entrevistada e comentou sobre a luta
contra os Aliados nas estradas que rodeavam a capital italiana, “Eu não tinha medo [dos
aviões], mas eu os odiava, porque eles atacavam as pessoas, os pobres diabos andando
na estrada, e eu não achava isso certo14.”.
10
Idem, ibidem, p. 41.
11
Ibidem.
12
Ibidem.
13
PORTELLI, Alessandro. Para além da entrevista: Uma autoetinografia da minha prática. In:
PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo: Letra e Voz. 2016, p. 41.
14
PORTELLI, Alessandro. Um ônibus vermelho: vítimas inocentes de canhões libertadores. In:
PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo: Letra e Voz. 2016, p. 149.
15
Idem, p. 166.
4
Portelli conta que ela tinha 23 anos quando perdeu seu marido em Fosse
Ardeatine e outros três familiares. Mesmo que não se possa aferir seu engajamento na
Resistência, eles estavam próximos da Via Rosella no dia do ataque das tropas alemãs.
Ada conta que:
A fala da colaboradora chama atenção por dois aspectos. O primeiro diz respeito
a memória dividida sobre o evento. Enquanto seus companheiros de trabalho culpavam
os partigiani por ter colocado a bomba e por não ter se entregado, Ada reclama que
precisava ficar em silencio, pois sua posição contrária incomodava seus detratores. O
segundo refere-se as relações de gênero que se imputam naquele espaço, pois o
posicionamento de Ada não tinha apenas o componente político, mas também os
ressentimentos de uma mulher que perdeu seu companheiro e seus familiares em Fosse
Ardeatine e ali estava, ainda que se tentasse seu silenciamento, defendendo seu lugar de
fala e sua interpretação acerca de um evento traumático na sua vida e de sua família.
Como nos lembra Portelli, para esses sobreviventes aceitar esses acontecimentos
exigiu um esforço psicológico longo e complexo. Desse modo, eles tiveram caminhos
diferentes após o fim da Segunda Guerra. Enquanto uns se engajaram na luta pela
memória, outros preferiram ficar em silêncio. Nisso reside a importância das entrevistas,
pois elas permitem lançar novos olhares sobre a vida diária a partir das classes não-
hegemônicas a partir das análises de suas memórias 17.
5
Peppoloni. Segundo Portelli18, Valtéro foi membro da juventude fascista e participou da
Guerra Civil Espanhola, todavia foi se desencantando ao descobrir a natureza do
fascismo enquanto trabalhava numa aciaria. Além disso, ele teve desentendimentos
como os membros do Partido Fascista Italiano. Ainda sim, no começo da Segunda
Guerra Mundial, Peppoloni lutou no front grego. Entretanto após se recusar a voltar ao
front, foi dispensando por invalidez. Ele então se recusa a integrar o exército
Nazifascista e se torna um partigiani. Após o fim da guerra, ele regressa ao seu trabalho
na aciaria. Peppolini relembra esse momento nos seguintes termos:
6
medo. Eu fui um daqueles que participou de todas as greves – todas; todas;
todas, todas elas. Todas. Até aquelas erradas, talvez. Eu devo ter estado em
algumas das erradas. Tudo bem, tudo bem. Mas eu estava em todas elas21.
21
Idem,, p. 164-65.
22
Ibidem.
23
SILVA, Júlio Cláudio da. Uma estrela negra no teatro brasileiro: relações raciais e de gênero nas
memórias de Ruth de Souza (1945-1952). Manaus: UEA Edições, 2017, p. 75.
24
PORTELLI, Alessandro. Um ônibus vermelho: vítimas inocentes de canhões libertadores. In:
PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte de escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016, p. 170.
7
Os excessos dos americanos descritos no testemunho de Casanica revela as
contradições da ocupação aliada e um fenômeno recorrente assinalado por Portelli, a de
que a memória da destruição obscurece a memória da libertação. Por isso, a imagem
negativa se sobrepõe a positiva no ato de lembrar e contar. Portelli 25 comenta que o caso
mencionado é um exemplo de memória dividida, onde há a memória de um
acontecimento dividida dentro de si mesma, dentro da consciência dupla e assim, não
conciliada de indivíduos e grupos sociais. Por isso que os americanos não são
visualizados como “libertadores” por Casanica.
Obviamente que as razões por trás disso extrapolam a dimensão micro do relato.
Segundo Portelli26, o clima político na Itália do Pós-guerra ficou polarizado em duas
posições bem definidas. Se por um lado, a esquerda insista no “legado do antifascismo”
e no reconhecimento da luta dos partigiani na opinião pública, havia também o centro e
a centro-direita, mais conservadora e de posição moderada que não fizeram críticas aos
excessos dos americanos e britânicos cometidos contra os civis inocentes, conforme
observamos no testemunho de Casanica.
De acordo com Portelli27, existe uma memória pública mais positiva da ocupação
dos aliados, uma vez que eles receberam muitos aplausos ao entrarem nas cidades
italianas, por serem os responsáveis por trazer o fim da Guerra, embora houvesse
também os excessos que são perceptíveis a partir dos testemunhos de uma sobrevivente.
Considerações finais.
25
Idem, p. 171.
26
Idem, p. 172.
27
Ibidem.
8
italiano Matteo Salvini28. Entendemos que os problemas do presente juntamente com as
heranças do “Breve Século XX” assinaladas por Hobsbawm no início do trabalho foram
de grande valor e nos engajaram a buscar referências, de modo a discutir essa
problemática recorrendo as narrativas não-hegemônicas na historiografia das vítimas
desse processo.
28
Desde aprovou a nova política de imigração italiana no fim de 2018 com o aval do Parlamento Italiano,
o primeiro-ministro italiano e do Partido nacionalista “Liga”, Matteo Salvini declarou que os portos
italianos estão proibidos de receber qualquer navio estrangeiro com imigrantes resgatados no Mar
Mediterrâneo. Disponível em: https://www.msn.com/pt-pt/noticias/mundo/matteo-salvini-impede-
desembarque-de-140-imigrantes-em-itália/ar-AAETC1F. Acesso em 25/11/2019 as 12h06.
29
PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos – Narração, interpretação e significado nas memórias e
nas fontes orais. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n°2, 1996. p. 8.
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das Fossas Ardeatine, mas que não silenciava frente aos detratores da sua memória e de
seus familiares.
Referências bibliográficas:
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1994-1991. Tradução de
Marcos Santarrita. São Paulo: Companhias das Letras. 1995.
SILVA, Júlio Cláudio da. Uma estrela negra no teatro brasileiro: relações raciais e de
gênero nas memórias de Ruth de Souza (1945-1952). Manaus: UEA Edições, 2017.
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