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Gramsci de Camisa Negra

João Martins

Revista Finis Mundi nº 5 [Jul-Set 2012]

Dentre a literatura que tenho por costume adquirir, são diversas as temáticas
que me despertam interesse, ainda assim, confesso que a narrativa Histórica
é sempre aquela que mais me cativa a atenção, não tivesse sido este
fremente paroxismo pela compreensão do mundo actual por via do
conhecimento dos acontecimentos do passados o móbil para uma licenciatura
precisamente em História.

À margem das ideologias, admiro as mulheres e os homens que dedicaram


as suas vidas em prol de um ideal. Sem estas vidas, sem estas vivências,
sem determinadas tomadas de decisão ou atitude, qualquer forma de
conceber o mundo torna-se absolutamente desprovida de humanidade, de
rostos, de sentimentos e emoções, tantas vezes levados a impressionantes
níveis de exacerbação que resultaram frequentemente nos mais trágicos
dramas humanos. As guerras civis são precisamente o culminar desses
dramas, porquanto nenhuma família escapa a ver os seus membros nos
diferentes lados da barricada.

Recentemente, nas minhas deambulações pela História contemporânea


europeia, descobri um episódio deveras curioso e que muito me comoveu,
um episódio ocorrido na Itália durante a primeira metade do século XX, ou
para ser mais preciso, aquando daquela que foi designada pelo historiador
alemão Ernst Nolte como a II guerra civil europeia.

Ora, à parte de considerações ideológicas, que para o caso pouco ou mesmo


nada interessam, quero partilhar convosco o fado de um homem que
carregou um apelido sobejamente conhecido, mas que circunstancialismos
políticos fizeram cair no obscuro olvido da História. Aproveito assim o ensejo
para resgatar da penumbra dos tempos a memória de uma vida, uma
damnatio memoriae, traçando, injustamente em breves linhas, a sua
extraordinária biografia.

António Gramsci, conhecido pensador marxista, teórico da Hegemonia


Cultural, cativo de um regime Fascista que, não obstante, lhe permitiu
continuar a sua obra ideológica na prisão, faleceu há setenta anos. Podemos
nutrir alguma simpatia pelo homem, ou inclusive estudar o seu intrincado
pensamento, porém, nenhum biógrafo poderá atribuir-lhe aquilo que torna
mais bela e rica a vida de um ser humano; o espírito de aventura, de
abnegação, aquela atitude rebelde de marchar contra a corrente, ou
simplesmente ser “a ovelha negra” da família, expressão que poderiamos
aqui plasmar, muito a propósito, na cor negra da camisa dos esquadrões
fascistas, aquela camisa que o irmão de António, Mário Gramsci, envergou
orgulhosamente e com ela soube viver e morrer.

De origens humildes, Mário Gramsci, nasceu em 1893, sendo o mais novo de


uma prole de 7 irmãos. Não tendo vivido uma existência longa, Mário teve,
todavia, uma vida extremamente preenchida de sentimento e fervor
patriótico, uma vivência tão intensa que parece retirada do manifesto dos
futuristas italianos, o célebre requisitório contra a tibieza e o conformismo
redigido por Marinetti, no qual se exaltavam «o amor do perigo, o hábito da
energia e da temeridade (...) a coragem, a audácia, a rebelião.»

No fatídico ano de 1914 teve início a I Guerra Mundial, conflito que irá
encerrar sanguináriamente os delírios imperialistas do século XIX. Mário
Gramsci, contando à época 22 anos de idade, adere entusiasticamente à
entrada do seu país na contenda em 1915, voluntariando-se para a linha da
frente, onde combate com o posto de tenente. Terminado o conflito, a Itália
vê-se mergulhada numa profunda crise político-social. A chamada “vitória
traída” (1) e o aumento da agitação comunista, levam-no a aderir aos recém
formados Fasci di Combattimento, do veterano agitador socialista e também
ex-combatente Benito Mussolini. Depresse ascendeu à condição de secretário
federal do Fascio de Varese e nem os pedidos incessantes de António
Gramsci e dos restantes membros da família (Mário era o único fascista) o
demoveram no seu empenho... nem mesmo as selváticas bastonadas que os
companheiros comunistas de seu irmão lhe desferiram e o mandaram para o
hospital.
António corta relações com ele em 1921, ainda assim, no mês de Agosto de
1927, Mário, a pedido de sua mãe, faz uma aproximação a António, na altura
já encarcerado na prisão de San Vittore, numa tentativa de o ajudar a
resolver os seus problemas judiciais.

Em 1935 a Itália declara guerra e invade o reino da Abissínia. Mário Gramsci


voluntaria-se, uma outra vez, para fazer parte do corpo expedicionário
italiano que irá conquistar a Etiópia do imperador Hailé Selassié, numa
campanha militar que durou uns encarniçados 9 meses e que permitiu a
Mussolini proclamar desde o Palácio Veneza o nascimento do Império
Italiano.

No ano de 1941, já em plena II Guerra Mundial, impulsionado pelo vício


guerreiro, e com a idade de 47 anos, Mário, que concebia a vida como um
combate permanente, volta a África, desta feita para enfrentar os britânicos,
que ameaçavam as possessões italianas na Líbia e da chamada África
Oriental Italiana.

Com o decorrer da guerra as forças do Eixo foram perdendo a iniciativa e,


consequentemente, a sorte do conflito passou para o lado das forças Aliadas.
Em 1943, somando derrota em cima de derrota, com parte do território
metropolitano italiano invadido pelos anglo-americanos, o mal-estar instala-
se entre o Grande Conselho Fascista e Mussolini é destituído pelo Rei Victor
Emmanuel III e seguidamente detido. Acto contínuo, no dia 8 de Setembro,
dá-se a traição de Badoglio. A Itália rendia-se aos aliados e declarava guerra
ao Terceiro Reich.

No meio do turbilhão, Mário mostrou-se indefectível, mantendo inabalável a


sua convicção no credo fascista. Mussolini, libertado do cativeiro por um
esquadrão SS, declara a 23 de Setembro a formação da República Social
Italiana, a efémera, mas, não obstante, famigerada, República de Saló. Ao
invés de acolher os invasores com a bandeira branca, ou nalguns casos com
bandeiras vermelhas ou mesmo norte-americanas, Mário Gramsci adere ao
apelo fascista de continuar o combate, ingressando nas forças armadas da
RSI.

Feito prisioneiro pelos partigiani, o Gramsci fascista é entregue às forças


Britânicas e deportado para um campo de concentração na longínqua
Austrália. As duras condições a que foi submetido, obsequiando de um
tratamento desumano particularmente reservadado aos militares fascistas
irredutíveis, fez com que a sua saúde fosse ficando cada vez mais débil.

Libertado nos finais de 1945, regressa à Itália para morrer, visto as mazelas
contraídas no campo de concentração serem irreversíveis. Dá entrada num
hospital desprovido de quaisquer condições e aí veio a falecer com a idade de
52 anos, na presença da sua esposa Anna e os filhos Gianfranco e Cesarina.

Em jeito de curiosidade, refira-se que o seu irmão António Gramsci quando


adoeceu na prisão, devido a uma doença crónica contraída em juventude, foi
libertado e, homem livre, pôde tratar-se a expensas do regime fascista numa
clínica privada.

Não tendo o seu nome atribuido a qualquer rua, à semelhança do seu irmão
António, e praticamente olvidado nas iníquas páginas da história, Mário, o
Gramsci de camisa negra, é indubitavelmete o paradigma do aventureiro,
exemplo da coragem e da fidelidade, glorificação do soldado-político. Talvez
sejam as palavras de John M. Cammett, que melhor expressem a riqueza
emotiva da vida de Mário Gramsci: He was a volunteer in World War I, a
volunteer in the Ethiopian war, and again in World War II (at the age of 47!).
And in between these disasters he was an enthusiastic volunteer to the very
ideology which did him in! What a life!(2)

Notas:

(1) A Itália, nação vencedora, não viu cumpridos na íntegra os tratados


assinados e que lhe concederiam mais territórios e dividendos económicos).

(2)In http://www.internationalgramscisociety.org/igsn/articles/a07_16.shtml

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