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Gramsci e o Fascismo1

Gilberto Calil2

A experiência histórica não vale para os pequenos burgueses,


que não conhecem história.
A ilusão é o alimento mais tenaz da consciência coletiva.
A história ensina, mas não tem alunos.3

Entre 1921 e 1922, Antonio Gramsci escreveu um conjunto de artigos analisando a ascensão do
fascismo e a ineficácia das estratégias utilizadas pela organização majoritária da esquerda italiana no seu
enfrentamento. Parte destes artigos está reunida na segundo volume da coletânea de Escritos Políticos
publicada pela Civilização Brasileira, sob a rubrica geral “Socialismo e Fascismo”. 4 Como Trotsky
recordaria dez anos depois, Gramsci foi o único dirigente do PCI que antevia a possibilidade de uma
ditadura fascista. A reflexão de Gramsci é extremamente rica e pertinente para pensar contextos e
conjunturas distintos, ainda que com as devidas mediações e com a necessidade de evitar qualquer
transposição mecânica.
O contexto em que estes artigos foram escritos coincide com o progressivo avanço do fascismo,
tanto em termos eleitorais quanto – e sobretudo – das ações violentas perpetradas pelas milícias fascistas
contra as organizações operárias e camponesas. Gramsci fala desde a perspectiva de um Partido
Comunista recém constituído – o PCI foi criado em janeiro de 1921, a partir de uma cisão com o Partido
Socialista – e que era sistematicamente acusado de “divisionismo” pelos dirigentes do PSI, que
permanecia numericamente majoritário na esquerda italiana.

O fracasso da política de apaziguamento dos socialistas


Embora não deixasse de reconhecer a cumplicidade do Estado burguês e especialmente do
Judiciário, inteiramente complacente com os crimes fascistas, Gramsci avaliava que a esquerda
reformista, articulada no Partido Socialista, tinha enorme responsabilidade na criação das condições
favoráveis à ascensão fascista. O Partido Socialista sabotou as ocupações de fábrica em Turim durante o
Biênio Rosso (1919-1920), criticando o “radicalismo” da classe operária que se organizava para a
Revolução Social e apostou sistematicamente em uma política de apaziguamento com setores da classe
dominante e com os próprios fascistas, com drásticas consequências.
A política de apaziguamento dos socialistas atingiu seu ápice com a assinatura do Pacto de Roma,
em 3 de agosto de 1921, através do qual socialistas e fascistas acordaram “a imediata cessação de
‘ameaças, vias de fato, represálias, punições, vinganças, pressões e violências pessoais’ entre os
militantes socialistas e fascistas, bem como o respeito recíproco aos símbolos dos dois partidos.”5
Gramsci atacou violentamente este acordo e ironizou da confiança suicida dos socialistas, qualificando
o pacto como “orientação cega e politicamente desastrosa”.6

1
Este texto reúne, com algumas modificações, seis pequenos artigos publicados no sítio eletrônico Esquerda On
Line.
2
Doutor em História Social (UFF), com pós-doutorado em História (Universidade do Porto). Professor Associado
do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UNIOESTE. gilbertocalil@uol.com.br
3
GRAMSCI, Antonio. Itália e Espanha. In: Escritos Políticos. Volume 2, 1921-1926. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, p. 48.
4
GRAMSCI, Antonio. Socialismo e Fascismo. In: Escritos Políticos. Op. cit., 23-126.
5
Notas aos Texto. In: GRAMSCI, op. cit., p. 447..
6
GRAMSCI, Antonio. “Os partidos e as massas”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 91.
Também os acordos com setores tidos como “democráticos” da classe dominante, ao custo de
renúncia à perspectiva revolucionária e à autonomia política e organizativa dos trabalhadores eram
entendidos como uma forma de rendição. Apontando que os dirigentes políticos e sindicais do socialismo
“aproveitam-se da ocasião para concluir que é preciso colaborar com ‘as forças não rigidamente
revolucionárias e classistas que são contrárias ao golpe de Estado’”, Gramsci contrapunha as
experiências alemã e húngara. Na Alemanha de março de 1920, “os ‘colaboradores não rigidamente
revolucionários’, que em nada haviam contribuído para a resistência, opuseram-se à continuação do
movimento insurreicional”, impondo um recuo que tornou possível que “as forças reacionárias não
fossem reprimidas, que pudessem recuar em ordem, dispersar-se segundo um plano preestabelecido e
retomar o trabalho de armamento, de recrutamento, de organização, que hoje dá a Kapp e Lüttwitz uma
maior probabilidade de êxito”.7 Sua conclusão é que a política de apaziguamento é diretamente
responsável por permitir que a ameaça tenha subsistido e então se recolocasse com maior força.
A experiência da Hungria, onde em 1919 a República Socialista Húngara foi esmagada por uma
ampla coalizão de direita, igualmente é mencionada por Gramsci como expressão da miséria da política
de apaziguamento dos reformistas: “A experiência húngara deixou uma lição: os reacionários, para
derrotar os comunistas, primeiro acariciam os socialistas, assumem compromissos com eles, fazem
acordos de pacificação; depois, uma vez derrotados os comunistas, os compromissos e acordos são
ignorados e também os socialistas experimentam a forca e o fuzilamento”. Assim, as indecisões, a
inépcia e a incapacidade dos dirigentes socialistas em compreender as situações políticas agravaria o
“risco de [a Itália] ser arrastada num caos de barbárie sem precedentes na história de nosso país.8
A reflexão de Gramsci ao longo deste biênio é marcada pela angústia de quem via se desenvolver
o enredo de uma tragédia anunciada, não tendo como impedi-la a despeito de sua intensa militância, dada
a insuficiência dos instrumentos com que então contava a organização comunista para fazer frente à
ascensão fascista e barrar a barbárie que por eles seria perpetuada. Em março de 1921, frustrado com a
reafirmação de proposições burocráticas vazias no congresso da principal central sindical italiana,
registrava que “aumentou nosso pessimismo, mas é sempre viva e atual nossa divisa: pessimismo de
inteligência, otimismo da vontade”.9 A tragédia histórica que se seguiu confirma que sua inteligência
pessimista compreendeu o processo em curso.

A criminosa omissão da burocracia sindical


Uma das consequências da política de apaziguamento dos socialistas reformistas foi a direção por
eles imprimida à Condererazione Generale del Lavoro (CGdL), principal central sindical italiana. Esta
orientação, na visão de Gramsci, era marcada pelo reformismo e pela omissão frente aos crimes fascistas.
Em março de 1921, após a realização do Congresso da CGdL, Gramsci lamentava a opção das lideranças
sindicais pelo não enfrentamento à ameaça fascista, denunciando vigorosamente:

O Congresso não pôs e não resolveu nenhum dos problemas vitais para o proletariado no atual período
histórico: nem o problema da emigração, nem o do desemprego, nem o das relações entre operários
e camponeses, nem o das instituições melhor aparelhadas para expressar o desenvolvimento da luta
de classes, nem o da defesa material das sedes dos órgãos de classe e da integridade pessoal dos
militantes operários. A única preocupação da maioria congressual foi a de salvaguardar e garantir a
posição e o poder político dos atuais dirigentes sindicais, de garantir a posição e o poder (poder
impotente!) do Partido Socialista.10
Este “poder impotente” tornava possível a continuidade das agressões fascistas. Assim, “o terreno
da luta rapidamente se tornou trágico: incêndios, tiroteios, rajadas de metralhadoras, dezenas e dezenas
7
GRAMSCI, Antonio. “Golpe de Estado”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 78-79.
8
Idem, p. 79.
99
GRAMSCI, Antonio. “Burocratismo”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 43.
10
Idem, p. 41.
de mortos”.11 Agressões que se davam um ano e meio antes da ascensão de Mussolini ao poder, e com
total cumplicidade das instituições do Estado liberal. A indiferença dos dirigentes sindicais frente ao
fuzilamento de operários e camponeses cometido pelas hordas fascistas era explicada por Gramsci pelo
transformismo destes dirigentes, convertidos de trabalhadores em burocratas afastados das condições
concretas enfrentadas pela classe operária:
Esses homens não vivem mais para a luta de classes, não sentem mais as mesmas paixões, os mesmos
desejos, as mesmas esperanças vividas pelas massas: entre eles e as massas se criou um abismo
insuperável. O único contato entre eles e as massas é o registro das contribuições e o fichamento dos
filiados. Esses homens já não vêem o inimigo na burguesia, mas nos comunistas: têm medo da
concorrência, são líderes que se tornam banqueiros de homens em regime de monopólio.12

Ao invés de resistir ao fascismo, a burocracia sindical preferia oferecer seus serviços de


apaziguamento da luta de classes à burguesia italiana. Na visão de Gramsci, é sua impotência e
incapacidade política que levou à desastrosa tentativa dos socialistas de um entendimento com os
fascistas, concretizada no Pacto de Roma – cujo compromisso estabelecido jamais foi cumprido pelos
fascistas - que supostamente garantiria respeito mútuo aos símbolos e à integridade física dos militantes
de ambas organizações.13
Burocratizados, os sindicalistas socialistas já não mais exerciam liderança sobre os trabalhadores,
pois “as massas não mais obedecem aos líderes que as abandonaram covardemente no momento do
perigo e dos massacres”14.Portanto, também deixavam de ser úteis às classes dominantes, que sem
maiores remorsos descartavam os antigos aliados, já que “os líderes sindicais só são respeitados na
medida em que se crê que eles gozam de confiança das grandes massas trabalhadoras, na medida em
que possam evitar greves e convencer os operários a aceitar resignadamente a exploração e a opressão
do capitalismo”15.É por esta razão que, pateticamente, sem condições de atuar como efetivos
representantes dos trabalhadores, assumiam uma política errática e suicida, fragilizando a resistência ao
fascismo: A incapacidade de pensar a realidade a partir da luta de classes os levou a uma negociação com
os fascistas, no exato momento em que estes golpeavam e atacavam os trabalhadores e camponeses.
Poucos meses depois, Gramsci registrava que a atividade sindical estava inteiramente destroçada,
mas que nada disto preocupava os burocratas da CGdL:
Os Stenterellos16 da Confederação Geral do Trabalho estão permanentemente alegres. Inteiras regiões
são postas a ferro e fogo pela guarda branca, a atividade sindical está completamente destroçada, não
subsiste mais nenhuma garantia constitucional para os indivíduos e as associações, os operários e
camponeses são fuzilados impunemente por bancos armados mercenários que se deslocam livremente
de região a região – mas nem por isto os Stenterellos sindicais da Confederação perdem o apetite e o
bom humor.17

Frente à ascensão do fascismo e ao crescimento dos ataques propagados pelos fascistas, a reflexão
de Gramsci expressava enorme angústia com os resultados facilmente previsíveis da política de
apaziguamento e conciliação levada adiante pelos burocratas sindicais – bem como pelos dirigentes do
partido socialista. Em contraposição, propugnava a necessidade da organização política dos trabalhadores

11
Idem, p. 41.
12
Idem, p. 41.
13
Ver a respeito https://esquerdaonline.com.br/2018/09/17/gramsci-e-o-fascismo/
14
GRAMSCI, Antonio. “Os líderes e as massas”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 72.
15
Idem, p. 73
16
“Stenterello é uma máscara do teatro florentino, criada por Luigi Del Buono no final do século XVIII, que
representa o falso esperto”. “Notas ao Texto”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 447.
17
GRAMSCI, Antonio. “Golpe de Estado”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 77.
para a resistência, bem como o direcionamento da luta política para a construção de uma greve geral.
Neste sentido, enfatizou que foi a realização de uma exitosa greve geral na Alemanha que em março de
1920 permitiu a derrota de um golpe de estado reacionário18 e se entusiasmou com a greve geral dos
trabalhadores de Turim contra a condenação de operários injustamente acusados.19 Embora a organização
do Partido Comunista estivesse em crescimento, era ainda insuficiente para capitanear a resistência e
organizar uma greve geral de âmbito nacional, o que explica a angústia de Gramsci, que via o fascismo
crescer em organização e violência e – ao contrário da direção socialista – antevia a concretização de um
Golpe fascista.

Fascismo e pequena burguesia


Uma das características fundamentais do fascismo, em suas distintas experiências históricas, é o
fato de que embora se constitua como expressão dos interesses do grande capital (como as políticas
concretas dos regimes fascistas comprovam fartamente), sua ascensão é impulsionada fundamentalmente
por setores intermediários, muito especialmente a pequena burguesia. Esta característica, que hoje se
observa nitidamente nos dados das pesquisas eleitorais (ainda que diluídos nos critérios de “faixa de
renda” usados pelos institutos de pesquisa) e também na conformação de milícias e grupos de ação
violenta, foi observada também durante a ascensão do nazismo, por Wilhelm Reich, que observando os
dados eleitorais comprovou o apoio majoritário da pequena burguesia urbana e rural ao nazismo,20
enquanto os trabalhadores mantiveram-se majoritariamente fiéis à social-democracia ou aos comunistas.
Da mesma forma, esse fenômeno não passou desapercebido na análise de Gramsci.
O termo “pequena burguesia”, na tradição marxista, não designa uma burguesia de menor porte,
como o nome pode erroneamente sugerir, mas um estrato com características particulares que implicam
em uma contradição insanável: este vasto estrato social que reúne pequenos comerciantes, artesãos e
pequenos proprietários rurais tem em comum com a burguesia o fato de que são proprietários, e com a
classe trabalhadora o fato de que necessitam do próprio trabalho para sua subsistência. De um lado, eles
se identificam com a condição de proprietários, pois detêm o controle dos recursos produtivos do qual
depende seu negócio (seja ele uma loja, restaurante, serralheria, oficina ou uma pequena propriedade
rural). De outro, ao contrário da grande burguesia e assim como os trabalhadores, tiram a sobrevivência
do seu próprio trabalho (e na maior parte dos casos, também do trabalho de sua família). Seu negócio de
pequeno porte , mesmo que eventualmente conte com alguns trabalhadores assalariados, não tem escala
suficiente para que possam viver apenas da extração de mais valia alheia. Esta condição contraditória
determina a impossibilidade de sustentarem um projeto de sociedade próprio e autônomo (uma sociedade
de pequenos proprietários é de tal forma anacrônica que mesmo em termos ideológicos sua eficácia é
limitadíssima), e portanto sua ação política se dá necessariamente atrelada a uma das classes
fundamentais – burguesia e trabalhadores. O fascismo é relevante precisamente porque permite
historicamente colocar a pequena burguesia a serviço da grande burguesia, e mais ainda, por conformar
tropas de choque em defesa de seus interesses.
É impressionante a atualidade da definição gramsciana sobre o significado do fascismo em um
contexto de crise econômica e do papel da pequena burguesia nisto:
O que é o fascismo, visto em escala internacional? É a tentativa de resolver os problemas da produção
e da troca através de rajadas de metralhadoras e de tiros de pistola. (...) Criou-se uma unidade e
simultaneidade de crises nacionais, que fazem com que a crise geral seja extremamente aguda e
incontornável. Mas existe em todos os países um estrato da população – a pequena e média burguesia –

18
Idem, p. 77
19
GRAMSCI, Antonio. “Contra a magistratura”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 102.
20
REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
que considera ser possível resolver estes gigantescos problemas com metralhadoras e pistolas. É este
estrato que alimenta o fascismo, que fornece seus efetivos.21

Em janeiro de 1921, Gramsci observava o fenômeno então novo da realização de grandes


manifestações de rua reacionárias, e o relacionava à “perda de importância da pequena burguesia”,
“afastada de qualquer função vital no terreno da produção” e que tentando reagir a este processo “busca
de todos os modos conservar uma posição de iniciativa história: ela macaqueia a classe operária,
também faz manifestações de rua”.22
A referência ao “povo dos macacos”, na novela O Livro da Selva de Rudyard Kipling23 enseja uma ácida
analogia de Gramsci sobre o sentimento de superioridade de classe e brutal incoerência dos discursos moralizantes
da pequena burguesia: “o povo dos macacos, que acredita ser superior a todos os outros povos da selva,
que acredita possuir toda a inteligência, toda a intuição, todo o espírito revolucionário, toda a sabedoria
de governo, etc., etc. Ocorreu o seguinte: a pequena burguesia, que se pusera a serviço do poder
governamental por meio da corrupção parlamentar, modifica a forma de prestação de serviços, torna-
se antiparlamentarista e busca corromper as ruas”.24 Curiosamente, toda agressividade, violência e
militarismo de sua ação, que buscam expressar força e potência, na realidade expressaria justamente sua
incapacidade orgânica:
Depois de ter corrompido e arruinado a instituição parlamentar, a pequena burguesia corrompe e arruína
também as demais instituições, os sustentáculos fundamentais do Estado: o exército, a polícia, a
magistratura. Corrupção e ruína realizadas a fundo perdido, sem nenhuma finalidade precisa (a única
finalidade precisa deveria ser a criação de um novo Estado: mas o “povo dos macacos” se caracteriza
precisamente pela incapacidade orgânica de criar para si uma lei, de fundar um Estado.25

O artigo é escrito quase dois anos antes da Marcha sobre Roma, marco da ascensão do fascismo
ao poder, e por isto é particularmente interessante observar a clareza que Gramsci tinha sobre a verdadeira
impotência que movia a pequena burguesia, crescentemente subordinada subjetiva e objetivamente ao
grande capital, por mais que disfarçasse esta subordinação com tiros de pistola ou proclamações
pretensamente “contra a ordem”. Seu balanço é arrasador:
A pequena burguesia, mesmo nesta sua última encarnação política que é o “fascismo”, revelou
definitivamente sua verdadeira natureza de serva do capitalismo e da propriedade agrária, de agente da
contra-revolução. Mas revelou também que é fundamentalmente incapaz de desempenhar qualquer tarefa
histórica: o povo dos macacos enche as crônicas, não faz história; deixa traços nos jornais, não oferece
material para livros. A pequena burguesia, depois de ter arruinado o Parlamento, está arruinando o Estado
burguês: ela substitui, em escala cada vez maior, a “autoridade” da lei pela violência privada; exerce (e
não pode agir de outro modo) essa violência de modo caótico, brutal, e faz com que se ergam contra o
Estado, contra o capitalismo, segmentos cada vez mais amplos da população.26

Se a última frase expressava o “otimismo da vontade” de Gramsci em relação à possibilidade de derrotar


o fascismo através da concretização da revolução socialista, o restante assemelha-se assustadoramente com o
processo que estamos vivendo no Brasil. Até recentemente podíamos ressalvar que ainda não se evidenciava a
constituição de uma base militante organizada nos moldes de tropa de choque e a escalada da violência que a
caracteriza. Não é possível mais ter a mesma segurança, e portanto é urgente reconhecer o fenômeno do fascismo,
os elementos que o particularizam e a exigência imediata de seu enfrentamento.

21
GRAMSCI, “Itália e Espanha”. In: Escritos Políticos, op. cit.. p. 46-7. Grifo meu.
22
GRAMSCI, “O Povo dos Macacos”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 31.
23
RUDYARD, Kipling. O livro da selva: as histórias de Mogli. São Paulo: Scipione, 2009. A edição original é de
1894.
24
GRAMSCI, “O Povo dos Macacos”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 31-32.
25
Idem, p. 32. Grifo meu.
26
Idem, p. 34.
A cumplicidade do Estado e da Justiça
O período em que Gramsci escreveu o conjunto de artigos aqui analisados, que corresponde à
ascensão do fascismo (1921-1922) e prévio à efetiva tomada do poder estatal pelos fascistas, foi marcado
por centenas de ataques terroristas, atentados, assassinatos, massacres e incêndios de sede comunistas e
sindicais promovidos pelas milícias fascistas. A crescente violência fascista era explícita e evidente.
Neste contexto, enquanto os socialistas clamavam ao Estado para que contivesse a violência e chegavam
a negociar com os próprios fascistas um “pacto de não-agressão”, Gramsci tinha clareza da cumplicidade
do Estado liberal italiano – e em especial do Poder Judiciário em relação aos crimes do fascismo.
Pelas suas características constitutivas, o fascismo sempre se apresenta como “anti-regime” e
“anti-sistema”, de forma a poder captar a revolta social e imprimir a ela um sentido reacionário. Esta é
uma aparência necessária, sem a qual os fascistas não teriam êxito, e que se repete em movimentos
fascistas nos mais distintos contextos e temporalidades. Gramsci reconhecia a necessidade desta
aparência, mas apressava-se em denunciar que não correspondia ao processo concreto em sua essência e
que portanto “É preciso insistir para fazer compreender que o proletariado hoje não tem contra si apenas
uma associação privada, mas todo o aparelho estatal”27, considerando que “o fascismo está
organicamente ligado à atual crise do regime capitalista e só desaparecerá com a supressão deste
regime”.28 Confiar na tradição democrática do Estado – ainda mais em um contexto como o italiano onde
era bastante frágil – seria demasiado ingênuo. Ao contrário, considerava imprescindível reconhecer a
complementariedade entre a violência ilegal promovida pelo fascismo e a repressão legalmente
produzida pelo Estado, podendo-se mesmo prever uma crescente articulação entre ambas até que se
unificassem: "Existem hoje na Itália dois aparelhos punitivos e repressivos: o fascismo e o Estado
burguês. Um simples cálculo de custo e benefício leva a prever que a classe dominante, em certo momento,
buscará amalgamar também oficialmente estes dois aparelhos; para isto, tentará quebrar as resistências opostas
pela tradição do funcionamento estatal através de um Golpe de força contra os organismos centrais do governo”.29
A cumplicidade ativa do Estado, especialmente da parte ligada às funções repressivas e à Justiça
era para Gramsci uma das chaves explicativas imprescindíveis para a compreensão do fascismo, sem a
qual seu êxito não poderia ser compreendido:
Os fascistas só puderam realizar suas atividades porque dezenas de milhares de funcionários do Estado,
em particular dos organismos de segurança pública (delegados de polícia, guardas-régias, carabineiros)
e da Magistratura, tornaram-se seus cúmplices morais e materiais. Estes funcionários sabem que a
manutenção de sua impunidade e o êxito de suas carreiras estão estreitamente ligadas aos destinos da
organização fascista, e, por isso, têm todo interesse em apoiar o fascismo em qualquer tentativa que este
faça no sentido de consolidar sua posição política”30

É a cumplicidade estatal que explica a ampla liberdade com que os fascistas contaram enquanto produziam
incêndios, assassinatos e espancamentos à luz do dia e, mesmo, muitas vezes com a participação direta de seus
agentes integrando as fileiras do fascismo. Gramsci não pode deixar de observar que esta cumplicidade agrava a
crise do Estado liberal e favorece a imposição do fascismo, seus métodos e sua política, em um processo de
gradativa transferência das funções repressivas do aparato estatal ao aparato privado do fascismo:
Se o governo deixa que a Constituição seja impunemente violada; se permite a formação no país de
bandos armados, (...), isto significa apenas uma coisa: que o governo, responsável pelo soberano, violou
o juramento de fidelidade à Constituição. Significa apenas que está sendo preparado, por parte dos

27
GRAMSCI, Antonio. “Os Arditti del Popolo”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 75.
28
Idem, p. 74
29
GRAMSCI, Antonio. “Golpe de Estado”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 78.
30
GRAMSCI, Antonio. “Socialistas e fascistas”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 66.
organismos estatais que se agrupam no poder executivo, um golpe de Estado. Significa apenas que já
vivemos na Itália o ambiente do qual decorre necessariamente o golpe de Estado.31

Este lúcido alerta de Gramsci, um ano antes da Marcha sobre Roma dos fascistas, não era levado
a sério pela burocracia sindical e pelos dirigentes do Partido Socialista, que “chegam mesmo a rir diante
da simples hipótese do golpe de Estado”.32
No interior do aparato repressivo do Estado italiano, o Poder Judiciário ocupava um papel da
maior importância, e Gramsci não se cansou de lembrar o quanto as fragilidades da democracia burguesa
estabelecida na Itália conformaram uma Magistratura especialmente reacionária:
Na Itália – dado que jamais existiu um poder judiciário independente, mas apenas uma ordem judiciária
submetida ao poder governamental -, jamais existiu a democracia., mas só um regime paternal, adocicado
e mitigado. (...) Onde, como na Itália, a força armada depende do governo (que pode, quando assim o
desejar, dissolver a Câmara com as baionetas), não existe democracia: existe ditadura, isto é, a reação
permanente.33

São observações certamente pertinentes e que ajudam a pensar outras autocracias burguesas em
tempos distintos. Reafirmando que “a magistratura italiana não age contra os fascistas”,34 Gramsci
considerava imprescindível denunciar o caráter cúmplice e classista da justiça italiana, e por isto
entusiasmou-se com a greve geral ocorrida em Turim no final de 1921 contra a condenação de operários
acusados injustamente por um assassinato. Esperando que esta greve fosse o “primeiro episódio de uma
luta sem tréguas contra a organização da justiça burguesa”,35 Gramsci saudava a greve por permitir
explicitar e propagar às massas que, ao contrário do que proclamavam os reformistas italianos, não
podiam contar com a Justiça:
A greve geral de Turim, portanto, não representa nada de substancialmente novo: é um simples episódio
da luta geral que a classe operária trava contra os seus opressores e exploradores, contra todas as formas
de opressão e exploração exercidas pela burguesia sobre o povo trabalhador. Se há uma novidade nesta
greve, ela é de caráter ideológico. (...) A greve geral de Turim tem u grande valor e um grande
significado. ela significa que a classe operária libertou-se finalmente desta forma de opressão espiritual,
que a classe operária começa a ver nos tribunais nada mais do que uma arma da ditadura burguesa que é
preciso quebrar e destruir.36

Praticamente cem anos depois, lidas desde um país onde não apenas o fascismo constitui uma
ameaça concreta, mas onde também o caráter classista da justiça é inegável e sua função repressiva é
demarcada por monstruosidades como a Lei de Segurança Nacional e a Lei Antiterrorismo, é impossível
não perceber de imediato a pertinência e atualidade da reflexão gramsciana neste aspecto.

O comportamento da grande burguesia


Nos escritos de Gramsci é clara a compreensão de que o fascismo não surge como expressão
normal e direta da grande burguesia, mas ao contrário, como expressão política da pequena burguesia,
em seus primeiros estágios de desenvolvimento confronta o regime liberal em um momento em que ainda
é a forma de dominação burguesa em vigência. Daí coloca-se uma questão relevante: de que forma a
grande burguesia se relaciona com o fascismo durante sua ascensão até que chegue ao governo e
reconfigure o regime político destruindo as instituições liberais?

31
GRAMSCI, Antonio. “O sustentáculo do Estado”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 100.
32
GRAMSCI, Antonio. “Golpe de Estado”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 77.
33
GRAMSCI, Antonio. “Contra a Magistratura”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 104
34
Idem, p.105.
35
Idem, p. 102.
36
Idem, p. 104-105
O ponto de partida da reflexão gramsciana é o reconhecimento da fragilidade da democracia
italiana e seu entendimento de que esta fragilidade se explica pelas limitações de uma burguesia
reacionária, constituindo um regime autocrático onde jamais se deu o pleno desenvolvimento de uma
democracia liberal: “a ausência nos burgueses de todo espírito de civismo e lealdade em face das
instituições sempre impediram a existência de um Estado parlamentar bem organizado”.37 Em
consequência disto, frente ao desafio representado pela organização dos trabalhadores, não se poderia
esperar qualquer compromisso democrático da burguesia: “A realidade mostrou, de modo mais evidente
possível, que a legalidade é uma só, e existe somente enquanto se concilia com os interesses da classe
dominante”.38 Sua adesão ao liberalismo seria estritamente instrumental:
No dia em que o sufrágio e o direito de organização se tornaram meios de uma ofensiva contra a classe
patronal, esta última renunciou a qualquer legalidade formal e passou a obedecer apenas a sua verdadeira
lei, ou seja, à lei do seu interesse e da sua conservação. Uma a uma, as prefeituras foram sendo arrancadas
pela violência das mãos da classe operária; as organizações foram dissolvidas com o uso da força armada;
a classe operária e camponesa foi expulsa das posições conquistadas, a partir das quais ameaçava para
além da conta a existência da propriedade privada. Surgiu assim o fascismo, que se afirmou e impôs
fazendo da ilegalidade a única coisa legal. Nenhuma organização, salvo a fascista; nenhum direito de
voto, a não ser quando dado aos representantes dos latifundiários e dos industriais. É esta a legalidade
que a burguesia reconhece quando é obrigada a repudiar a legalidade formal39

Vale destacar que estes registros, indicando claramente a imposição das leis de exceção fascistas,
foram feitos mais de um ano antes da chegada de Mussolini ao governo, o que sublinha ainda mais a
capacidade de percepção de Gramsci, em sua compreensão de que “existe um momento na história em que
a burguesia é obrigada a repudiar o que ela mesma criou”.40 Acreditar na subsistência de uma burguesia
consistentemente liberal seria então um grave equívoco: “Chamar de liberais aos burgueses de hoje em dia, que
perderam a consciência do valor moral da liberdade, é algo muito pior do que apenas estranho, assim como é
falta absoluta de compreensão política acreditar que são liberais os partidos burgueses atuais ou, pior ainda, o
bloco no qual estes desapareceram”.41
Não havia, portanto, nenhum espaço para dúvidas ou esperanças em relação a qualquer compromisso
democrático ou legalista da burguesia, que abdica de qualquer veleidade democrática e adere alegremente à
barbárie proposta pelas tropas de choque que o fascismo coloca à sua disposição: “A classe proprietária repete,
em face do poder executivo, o mesmo erro que comete em face do Parlamento: acredita que pode se
defender melhor dos assaltos da classe revolucionária abandonando as instituições de seu Estado aos
caprichos histéricos do ‘povo dos macacos’, da pequena burguesia”.42
Mussolini, como a maior parte dos líderes fascistas, era um personagem caricato e
intelectualmente limitado, que pareceria incompatível com a orgulhosa burguesia italiana, pretensa
herdeira da tradição clássica. Aparecia portanto como uma espécie de “monstro”, fazendo com que
muitos acreditassem que seria repudiado pelos cultos burgueses italianos. Gramsci nunca compartilhou
desta ilusão:
Os burgueses hoje, meio amedrontados e meio estupefatos, encaram esse homem [Mussolini] que se
colocou a seu serviço como uma espécie de novo monstro, como alguém que revoluciona as situações
reais e cria história. Nada mais falso. A incapacidade de articular entre si os elos de uma construção
histórica é tão grande neste epiléptico quanto é no subversivismo malthusiano dos líderes burgueses
tradicionais. São todos uma só família. Representam, tanto um como os outros, a mesma impotência.

37
GRAMSCI, Antonio. “O Estado Operário”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 29.
38
GRAMSCI. “Legalidade”. In: Escritos Políticos, op. cit. p. 84.
39
Idem, p. 84-85.
40
Idem, p. 85.
41
GRAMSCI, Antonio. Liberalismo y bloques. In: Sobre el fascismo. México: Ediciones Era, 1979, p. 77. Tradução
livre.
42
GRAMSCI. O povo dos macacos. In: Escritos Políticos, op. cit. p. 33.
(...). A luta contra as reivindicações e a resistência contra a desforra operária partem de bases bem mais
concretas; mas é certamente significativo, para a seriedade da vida política italiana, que - no topo da
construção que se conserva de pé graças a um poderoso sistema de forças reais - encontre-se este homem
que se deleita proclamando sua própria força e se masturbando com as palavras.43

Desta forma, meses antes da chegada de Mussolini ao poder, Gramsci já via no fascismo a
expressão orgânica da burguesia, compreendendo que o processo de ajustamento entre o movimento e a
classe dominante já estava concretizado:
O fascismo é um movimento social, é a expressão orgânica da classe proprietária em luta contra as
exigências vitais da classe trabalhadora (...). Nesta luta a iniciativa pertence todavia à classe proprietária,
assim como ao fascismo pertence a iniciativa da guerra civil: a classe trabalhadora é a vítima da guerra
de classe e não pode haver paz entre a vítima e o verdugo.44

Tragicamente, a história italiana subsequente daria razão a Gramsci e, como um bloco, a grande
burguesia italiana em suas distintas frações apoiaria a ascensão e consolidação do fascismo, sem
vacilação ou crise de consciência. Acreditar nas convicções liberais da burguesia era para Gramsci, uma
perigosa ilusão análoga à crença nas instituições do Estado e da Justiça.

Eleição, governo e ditadura


A constituição dos regimes fascistas na Itália e na Alemanha passam por êxitos eleitorais dos
respectivos partidos, mas isto não significa que ela tenha sido resultado direto de processos eleitorais. A
consolidação de ditaduras fascistas se deu em três etapas sucessivas: a obtenção de um resultado eleitoral
expressivo (mas não majoritário); a chegada ao governo (ainda que sem maioria parlamentar) e o
fechamento progressivo do regime, com a destruição sucessiva das garantias e liberdades democráticas.
No caso alemão, o Partido Nazista (NSDAP) logrou eleger parlamentares na eleição de 1930, no contexto
de agravamento da crise econômica decorrente do crash de 1929. Dois anos depois, passou para 232
parlamentares, não atingindo, ainda assim, a maioria parlamentar. Foi na condição de força minoritária
no Parlamento que o Partido Nazista, em janeiro de 1933, foi alçado ao governo, e que rapidamente
passou a perseguir seus adversários visando estabelecer um regime abertamente ditatorial. Para isto,
utilizou como principal pretexto o incêndio do Reichstag (Parlamento alemão) em fevereiro de 1933,
pelo qual responsabilizou os comunistas.
Na Itália, o processo foi mais lento. O Partido Nacional Fascista foi constituído sob liderança de
Benito Mussolini em 1919, a partir de outra organização de menor relevância (o Partido Revolucionário
Fascista). Seu principal êxito eleitoral rumo ao poder se deu em maio de 1921, quando elegeu 35
deputados (pouco mais de 6% dos 535 deputados), integrando a coalizão conservadora Bloco Nacional,
que ao todo elegeu 105 deputados. Embora o centro-esquerda liderado pelo Partido Socialista (123
deputados) e o centro liderado pelo Partido Popular (108 deputados) somassem maior número de
parlamentares, a grande fragmentação do parlamento determinou uma crise política permanente que só
se agravou ao longo dos dois governos que se constituíram na sequência (Ivanoé Bonomi, socialista
reformista, julho 1921 a fevereiro de 1922 e Luigi Facta, liberal, fevereiro a outubro 1922).
Na eleição de 1921, o recém constituído Partido Comunista italiano elegeu apenas 15 deputados.
Às vésperas da eleição, Gramsci registrava a dramaticidade daquele processo, considerando que “a
guerra abriu a maior crise já ocorrida na história, crise que não é de um governo ou de um Estado, mas
de um regime e de um mundo”, e que portanto “a tática seguida nos anos da paz e da tranquilidade para
nada mais serve no momento atual”.45 A política de apaziguamento do reformismo seria particularmente

43
GRAMSCI. Subversivismo reacionário. In: Escritos Políticos, op. cit. p. 69-70.
GRAMSCI. “El verdugo y la víctima”. In: Sobre el fascismo, op. cit., p. 84. Tradução livre.
44
45
GRAMSCI, Antonio. Socialista ou comunista?. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 61.
ineficaz: “Tudo aquilo que antes podia parecer um passo à frente, toda ação que há algum tempo servia
para garantir um pouco de liberdade, para dar um pouco de justiça aos trabalhadores, hoje serve apenas
para aguçar ainda mais a crise, para enfurecer os inimigos, para provocar reações ainda mais fortes,
para tornar a vida mais dura e a batalha mais áspera”.46 Passada a eleição, Gramsci registrava que “os
comunistas foram derrotados” e que esta derrota era resultado de uma “formidável crise de
desencorajamento e de depressão”. Esta derrota se deu em um contexto de forte coação empresarial e
restrição às liberdades, mas tais dificuldades não impediram uma dura avaliação autocrítica de Gramsci:
Os comunistas são perseguidos nas fábricas; em cada seção, há dois terços de pessoas que sofreram
‘retaliações’. A luta eleitoral – em função da dimensão universal dada pelo sentimento popular – tinha
um significado de afirmação da legalidade burguesa contra a barbárie e a ferocidade fascistas. O
proletariado de Turim acreditou que podia não se interessar por esta afirmação. Esta apatia não é
indicador de capacidade política, mas, ao contrário, é sintoma de dissolução e de confusão mental. (...)
A abstenção jamais pode ser assumida como prova de capacidade política, mas é somente comprovação
de dissolução e de depravação moral.47

Da mesma forma, a responsabilidade do Partido Comunista Italiano não era mascarada, mas
proclamada explicitamente: “O pouco entusiasmo das massas se justifica em função do pouco entusiasmo
e da debilidade dos comunistas organizados. Deve ser feito um grande trabalho de reorganização dos
elementos melhores e mais conscientes. Mas os comunistas não devem se perder em processos de
responsabilidade formal. O melhor modo de julgar as responsabilidades é constituir uma organização
mais sólida”.48 Conforme já discutimos, Gramsci avaliava que a política de apaziguamento dos socialistas
conduziria ao desastre, e portanto, via como única alternativa o rápido e intenso fortalecimento da
organização dos comunistas, condição para que pudesse colocar em prática sua estratégia de
enfrentamento ao fascismo.
Em fevereiro de 1922, com a queda do governo Bonomi, a crise agravou-se e uma vez mais
Gramsci apontou a fragilidade das instituições do Estado liberal e sua completa perda de legitimidade,
registrando que “aos olhos do país, todo o Parlamento não passa de um corredor escuro e sem saída”.49
Neste contexto, a perda de identidade e combatividade do Partido Socialista o fazia ser identificado com
a carcomida ordem vigente: “em algumas zonas, sobretudo rurais e de pequenas regiões, há estratos
inferiores da população trabalhadora que não fazem mais distinção entre os dois partidos [Partido
Socialista e Partido Popular]”.50 Na sua avaliação, as tentativas de manter alguma aparência de legalidade
em meio aos ataques das classes dominantes, que permeavam a política de socialistas reformistas e
populares, conduziriam ao desastre: “O novo regime articulará as mais obscuras características de nossas
tradicionais camorras com os novos traços do Estado socialdemocrata, cínico, demagogo, hipócrita, corruptor e
corrupto. Bonomi, deste ponto de vista, foi um verdadeiro precursor”51. O fascismo, ainda que se apresentasse
como externo ao sistema, seria justamente ao contrário um instrumento de sua reconfiguração: “Para atingir
plenamente o objetivo, é preciso atravessar um período de ajustamento. Um deles foi atravessado pela crise de
violência do fascismo. (...) Uma outra fase do período de ajustamento é representada pelas crises parlamentares.
É no Parlamento que se deve efetuar a ligação entre os elementos dirigentes das velhas e novas camorras.”52
Quando Mussolini marcha sobre Roma com sua milícia fascista e com isto consegue a demissão do
governo Facta e sua própria nomeação como Primeiro Ministro, Gramsci encontrava-se em Moscou, tratando de
problemas de saúde, de onde enviou um artigo recapitulando os vários fatores que conduziram à constituição do
governo Mussolini: a fragilidade da burguesia italiana; sua completa falta de compromisso democrático; o

46
Idem, p. 61.
47
Idem, p. 64-5
48
Idem, p. 65
49
GRAMSCI, Antonio. “A substância da crise”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 111.
50
Idem, p. 112.
51
Idem, p. 113.
52
Idem, p. 113
agravamento da crise da dominação em virtude das tentativas de manter a estabilidade do sistema através de
concessões paternalistas; o impacto das greves operárias e das sublevações camponesas; a traição do PS à greve
do Piemonte em 1920 e a desmoralização das classe trabalhadora decorrente desta traição; e a articulação entre as
confederações empresariais, associações rurais e fascismo.53 Todos estes fatores tornaram o regime liberal
insustentável e conduziram à constituição do governo Mussolini, em um cenário no qual embora se mantivesse
uma formalidade legal, era diretamente decorrente de um ato de força – a Marcha sobre Roma.
Finalmente, é importante observar que a constituição do governo Mussolini não implicou de imediato na
constituição de um regime fascista. Entre novembro de 1922 e junho de 1926, a Itália tinha um governo liderado
por um fascista – tal como temos atualmente no Brasil – mas em uma condição de transição na qual subsistiam
determinadas liberdades. Neste contexto, Gramsci ao longo de 1923 fundamentou a proposta de investir na
articulação política entre o operariado do Norte e o campesinato do Sul como caminho para efetivar um processo
revolucionário e derrotar o fascismo. Em abril de 1924, em eleições que se realizaram ainda com certas condições
de liberdade, Gramsci foi eleito deputado e retornou à Itália para assumir seu mandato. Pouco depois de Gramsci
ter assumido como deputado, o deputado socialista Giacomo Matteoti foi assassinado por fascistas logo após ter
proferido um discurso denunciando fraude eleitoral e agravamento da violência política. Gramsci então defendeu
que a única alternativa de resistência seria a convocação imediata de uma greve geral, rompendo com o imobilismo
legalista e confrontando abertamente o governo fascista. Sua posição não se impôs e a escalada repressiva seguiu
seu curso, até que ao longo de 1926 completou-se a reconfiguração do regime italiano. Em novembro daquele ano,
Grasmci teve seu mandato cassado e sua prisão decretada. As estratégias de apaziguamento e conciliação, a crença
em que as instituições do Estado seriam capazes de conter o fascismo ou que ele seria destruído pelos seus próprios
erros, acabavam, enfim, por produzir o resultado tantas vezes antecipado por Gramsci.

53
GRAMSCI, Antonio. “As origens do Gabinete Mussolini”. In: Escritos Políticos, op. cit., p. 122-126.

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