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O médico perante a morte 2009 

Cuidados Paliativos

O médico perante a morte


Pablo González Blasco
Doutor em Medicina.
Diretor Científico da
SOBRAMFA- Sociedade Brasileira de Medicina de Família.
(www.sobramfa.com.br
Rua Sílvia, 56.
01331-010.
Sâo Paulo. SP.
pablogb@sobramfa.com.br

A nossa vida é feita de histórias. São as vivências que os médicos vivem de combinar a técnica com
as que marcam e definem o nosso perfil e alimen- o humanismo2, particularizando-o no momento
tam nossa existência. Somente depois vamos bus- da morte do paciente. No segundo, comenta-se a
car as idéias, o embasamento–o referencial teórico, função técnica do médico, que denominamos o
como dizem os pesquisadores- que sustenta e gerenciamento da morte.
ordena as vivências.
Talvez por isto, enquanto revisava os tópicos que 1. Delimitando a questão: Técnica,
aqui se recolhem e com os quais venho lidando há Humanismo e Ética
muitos anos1, uma história veio à minha lembran- O sofrimento humano e a morte são realidades
ça. Foi há anos atrás, conversando com um amigo do quotidiano do médico. Paradoxalmente, observa-
médico que se dedica aos Cuidados Paliativos num se um despreparo crescente do profissional em lidar
país da Europa. Perguntei-lhe como tinha decidido com estas situações. Por que este descompasso?
trabalhar nessa área. Ele sorriu e respondeu com
uma simplicidade esmagante: “Não pense você que Uma Realidade que transcende a
eu tinha vocação para fazer Cuidados Paliativos, ou técnica
que isto era o meu sonho. Na verdade, sou geriatra Uma primeira resposta a esta questão vem
de formação, e o que sempre fiz foi dedicar-me ao representada por uma postura que poderíamos
meu paciente com afinco. Com o tempo, reparei denominar o médico técnico, entendendo-se por
que ao cuidar do meu paciente até o final, olhei em tal aquele que perde a perspectiva humanística que
volta e todos os médicos que tinham participado a sua profissão traz implícita — verdadeira necessi-
na vida dos meus pacientes haviam desaparecido dade e não luxo — e reduz seu atuar profissional a
no momento em que eles finalizavam a vida. Fiquei simples técnica. É evidente que, em situações onde
sozinho. Na verdade me surpreendi praticando pa- a técnica não tem mais nada a fazer, esse médico se
liativos. Como você vê, foi apenas uma conseqüência verá despreparado para enfrentá-las, sentindo-se
da minha dedicação. E ver que ninguém estava lá impotente, como no caso da morte. Essa atitude de
para fazer isso. Mais nada”. despreparo provoca, se não se corrige, uma grave
A história é esclarecedora e serve de advertên- distorção da profissão médica. Quem atua apenas
cia. As considerações que aqui se expõem são uma como técnico, quando a técnica demonstra-se
reflexão sobre as vivências pessoais, no momento de insuficiente, inclina-se a procurar novos pacientes,
lidar com a morte dos pacientes que acompanha- deixando de lado aqueles com quem a técnica não
mos ao longo da vida. Não são fruto de um estudo funciona. Pode até parecer que existe maior preo-
teórico, e distam muito de querer ser a opinião de cupação com o desempenho profissional do que
um especialista no tema. São pensamentos em voz com o bem-estar do paciente, motivo e razão da
alta de quem teve o privilégio de ser testemunha profissão médica.
nessas circunstâncias tão especiais que fazem parte Não é supérfluo advertir que, curiosamente,
da vida de um médico. aqueles que tentam tecnicamente todos os recur-
Para ordenar esses pensamentos, parece con- sos para prolongar a vida, “mesmo contra o senso
veniente juntá-los em dois grandes grupos. No pri- comum”, são os primeiros a desistir do paciente
meiro, quer delimitar-se a questão, o eterno dilema quando este entra em fase terminal, e “passam o

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caso a algum outro colega”. Cada vez é mais raro dia- todos se admiravam do cadáver do Ferraz, como
ver “superespecialistas” junto do paciente mori- se estivessem a contemplar uma aurora boreal”.3
bundo, quando não há mais recursos terapêuticos Na realidade, o despreparo para a morte é um
a empregar. Pode se justificar esta atitude por sentir caso particular da falta de preparação para a vida.
certo incômodo de “não estar fazendo nada pelo Uma vida -a humana- sulcada de alegrias e realiza-
paciente”, o que não é verdade. Na realidade, com a ções, mas também de sofrimentos e dor, elementos
sua presença o médico está fazendo e muito. Ocor- presentes que tonificam o contraste vital. Numa
re que simplesmente faz-se algo que, não sendo sociedade que foge sistematicamente da dor, que
quantificável, parece não ser útil. Isto é lógico, já cultua o prazer como meta suprema, que esconde
que a utilidade avaliou-se, erradamente, com parâ- os doentes e os aleijados - se não fisicamente, apa-
metros puramente técnicos. Urge saber descobrir a gando-os quanto antes da memória-, não é de se
missão do médico quando a técnica é insuficiente; estranhar que o enfrentamento com a morte se dê
uma missão vital que transcende a técnica, e que no em inferioridade de condições. Sem contar com o
momento da morte do paciente assume proporções tabu que a morte parece desfrutar. Não se fala dela,
gigantescas. Deve possuir o médico um “saudável in- evita-se o tema com perífrases que são amálgama de
conformismo” com a técnica, atitude que o empurra medo, esoterismo e superficialidade. Esconde-se o
a procurar, na sua formação e atuação profissional, fato das crianças, que nada sabem da morte; e se lhes
outras dimensões que lhe serão imprescindíveis conta que aquele familiar “viajou para muito longe”.
para enfrentar situações que estão além das fron- Tudo de modo suave, soft, como se não fosse esta
teiras técnicas. É deste modo como se constrói a uma realidade que nos atinge a todos. Um exemplo
estrutura do profissional, técnico e humanista ao tão ilustrativo como preocupante: contaran-me de
mesmo tempo, capaz de assumir esses desafios. uma criança americana que quando lhe comunica-
Ao mesmo tempo, existe uma insensibilização ram que o avô tinha falecido, pergunto quem tinha
do médico perante a morte. A morte é um fenô- disparado nele. Tal a distância que se coloca entre a
meno que parece atrapalhar o exercício e o êxito morte e as crianças, hoje em dia.
profissional. Embora paradoxal, não é incomum Por isso, o que melhor prepara para a morte é
o fato de o médico não contar com a morte como uma postura realista, profunda, “transcendente”,
possibilidade real, que deve administrar. A morte para usar a linguagem filosófica, da própria vida.
não é apenas uma circunstância infeliz que surge e Quer dizer: é necessário balizar a vida em termos
dificulta sua “brilhante atuação”. Observamos hoje objetivos, contando com a limitação do tempo
médicos que praticam alta tecnologia, mas que, e da própria existência. Daí que para enfrentar a
explícita ou implicitamente, parecem abandonar morte com coragem, sem medo, enfim, para saber
os pacientes incuráveis, perante os quais os conhe- morrer com dignidade, seja preciso aprender a viver
cimentos técnicos não funcionam. São médicos pautado em valores perenes, que estruturem uma
de “carros 0 km”, corredores de prova a quem, no hierarquia sólida. Saber morrer é, antes de tudo, sa-
entanto, falta fôlego para administrar situações ber viver, pois a morte é um passo a mais — o último
prolongadas, incômodas, insolúveis do ponto de — no caminho da vida.
vista estritamente técnico. Estas considerações são de capital importância,
seja qual for a profissão que se desempenha. No
caso do médico, cuja matéria-prima de atuação é
A Morte na Sociedade Atual o ser humano, revestem-se de interesse particular:
Mas, justo é reconhecê-lo, não é tudo culpa da são condição necessária, imprescindível, de compe-
condição médica. Não é o médico um ser estranho ao tência. Não é possível ser médico à margem desta
seu meio cultural, e vivemos tempos em que a morte dimensão antropológica.
é elemento quase ignorado. Uma curiosa postura
que faz questão de esconder o que, na prática, é Por uma Medicina Plena: ciência e
a única coisa infalível na vida de um ser humano: arte, impregnados
sua limitação e sua morte certa. Algo parecido ao de postura ética.
avestruz que esconde a cabeça para não ver o leão A profissão médica supõe dedicação peculiar
que está prestes a devorá-lo. A morte, como fato ao ser humano, procurando a saúde e o bem-estar.
concreto, mesmo sendo um evento diário, torna-se Deve-se integrar aqui o progresso técnico, e todas
único quando nos atinge. Com acerto, comenta um as outras situações que, fugindo do âmbito técnico,
escritor que “o fenômeno mais trivial do universo, requerem estrutura humanística — ética e filosófica
personalizado, toma proporções de maravilha. E — para serem abordadas profissionalmente: a dor,
todos -uma gente cansada de ir a missas de sétimo o sofrimento, a vulnerabilidade humana, a digni-

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dade que o ser humano possui e a própria morte. sua conduta perante a morte. É gritante o absurdo
A insensibilização para a morte é reflexo de uma da situação, já que o que na verdade se exige é uma
insensibilização para a vida. Uma atitude irrefletida postura que ultrapassa a técnica. Elaborar um ma-
perante os valores humanos e transcendentes do ser nual de casuística — um Vademecum técnico para
humano, que teimosamente se vai alimentando com saber como comportar-se nestes casos — seria algo
elementos técnicos, deixando de lado os verdadeiros assim como confeccionar um manual de “sintomas
nutrientes: um matar a fome sem alimentar, uma e remédios” para um balconista de farmácia. Ob-
genuína subnutrição humanística. viamente, é preciso muito mais para diagnosticar
Hans Jonas, com a sua ética da responsabilida- e prescrever a terapêutica adequada. Semelhante
de4 adverte que o que nos distingue aos humanos desproporção existe quando se pretende “reduzir
dos animais e um tripé constituído pelo utensílio, à técnica as atitudes perante a morte”.
pela imagem e pelo túmulo. O utensílio é a técnica; O médico precisa, para abordar estes temas —
a imagen é a capacidade de representar a realidade que são ultra-técnicos, vão além da pura preparação
através das artes, e o túmulo é a consciência da científica —, de um embasamento ético, de formação
transcendência, a representação da morte que lhe e conhecimento humanístico e filosófico. Somente
situa numa dimensão que vai além da sua própria poderá se encontrar solução para os dilemas que nos
existência. Facilmente se conclui que embora no são apresentados, quando sintonizamos e falamos a
relativo á técnica a distancia com os animais é mesma linguagem. São dilemas de ordem filosófica,
notável, cada vez se freqüentam menos as artes que atingem o ser humano como um todo; como
–as humanidades- e o sentido da transcendência tal, devem ser respondidos, e isto orientará em cada
está quase abolido. As conseqüências são funestas, caso o médico no seu posicionamento. O problema
porque não se freqüentando “o túmulo”, porta da que nos ocupa — a morte — e todos os seus satélites
transcendência, é difícil manter o sentido de missão — a dor, o sofrimento, a dignidade de homem — são
e a necessidade de sentir-se útil neste mundo, como questões “insolúveis na técnica”. Como as vitaminas
parte da felicidade que perseguimos. e os remédios, precisam do meio adequado para
Esta preocupação humanística deveria ser diária dissolver-se e atuar com eficácia. No caso destas
no médico, e não apenas em circunstâncias finais, verdades, a solubilidade das mesmas deve ser ga-
perante a morte. Quem, no dia-a-dia, não sabe aten- rantida pelo meio que o médico possui: formação
der um paciente considerando a dimensão humana humanística. São, pois, verdades “humano-solúveis”
do mesmo — ponderando seu ser pessoal e único e nunca “técnico-solúveis”.
— também, no momento da morte, se encontrará A formação ética do médico é uma necessidade
desarmado. Quem tudo quer consertar com técnica imperiosa para construir sólidos alicerces sobre
— seja esta troca de medicamentos, solicitação de os quais se possa apoiar um modo coerente de
sofisticados exames ou terapêuticas revolucionárias atuação. Se carecer dela, o médico praticará uma
— também no momento final procederá de igual ética de ocasião, ignorando os fundamentos, e com
modo. Surge então a decepção de quem, prati- a possibilidade freqüente de errar, mesmo com a
cando uma fidelidade cega e irracional à técnica, melhor boa vontade. Para uma atuação ética, boa
verdadeiro fanatismo, repara que a técnica falha. vontade não é suficiente; é preciso conhecimento
Já disse alguém, em linguagem vital, que a parceria dos fundamentos, da natureza humana, da digni-
com a técnica muito tem de paixão arrebatadora, dade que dela decorre.
que, embriagando os amantes, conduz fatalmente Quando se possui esta base ética, muitos dos
à infidelidade com o passar do tempo. Quem não dilemas que a casuística traz resolvem-se com na-
cuida do seu paciente do dia a dia, com humanismo turalidade. O médico não se sente na obrigação de
e ciência, não saberá cuidar do moribundo. prolongar a vida, ou de causar a morte, porque sabe
Facilmente se entende como, neste contexto, o que sua função é atender o paciente de modo digno,
problema de como atuar perante um doente assim estar a serviço da vida e aliviar as dores e sofrimentos.
chamado terminal, -valha incluir aqui também a eu- Saberá rejeitar a tentação de erigir-se em senhor da
tanásia, distanásia, ortotanásia e todas as variações vida ou da morte, porque não este é seu papel. A
sobre o mesmo tema- gera perplexidades e discus- ética coloca-nos na dimensão certa, delimita nossa
sões infindáveis. É um diálogo de surdos, onde a função, amplia os horizontes da missão que vão
questão é acertar a sintonia, falar o mesmo idioma, o além da técnica, prepara-nos para desempenhá-la
que infelizmente não acontece. Os técnicos parecem com atitudes humanas.
solicitar soluções pré-fabricadas, também técnicas, Naturalmente, a questão ética é algo que com-
para atuar. Quem fez de tudo técnica — toda sua promete, e daí a dificuldade que estas realidades
atuação médica — pretende também tornar técnica apresentam na hora de serem vividas. O médico

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deve atuar com profissionalismo, saber guardar vamente curto, o médico deve levar em consideração
as distâncias sem envolver-se de modo desorde- mais uma vez que não é possível esperar da família
nado com a afetividade do paciente. O carinho, a uma reação profissional. Em questões de doenças
dedicação, a atenção privilegiada do médico não — e, portanto, de doenças graves, e de morte — o
implicam sucumbir aos emotivismos. Isso é norma único profissional é o médico; a família e o paciente
clássica da boa conduta médica. Mas, por outro lado, serão sempre “amadores”, já que se encontram nesta
o médico não pode prescindir da sua condição de situação circunstancial de modo compulsório, sem
homem, e muito menos da condição humana do nenhum preparo técnico. O médico deverá suprir
paciente. Por isso, tem de saber entrar nessa esfera com uma análise realista da situação, a falta de
que foge da técnica e que diz respeito às realidades serenidade familiar para tomar as decisões. Essa é
vitais, onde está incluída a morte, falando a mesma uma das suas principais funções neste momento:
linguagem, em sintonia de quem está no mesmo administrar o diagnóstico e tomar as resoluções
barco. Aqui é onde as coisas se complicam: ninguém competentes. Em momento nenhum deverá trans-
dá o que não tem. ferir para a família esta responsabilidade.
Quem nunca se preocupou com estes temas ou, Cabem ao médico, nestas circunstâncias peculia-
na prática e na sua vida pessoal pouco lhe afetam ríssimas, decisões em aspectos que beiram o limite
porque os estocou num recanto pouco freqüenta- da sua competência. Será sempre o médico quem
do da consciência, carecerá de recursos, nada terá deverá decidir, depois de entender os desejos da
a oferecer. Daí a insatisfação do paciente, quando família, onde o paciente deve permanecer nos seus
não a decepção, em receber conselhos standard, momentos finais: para isto levará em consideração a
plastificados, provenientes de quem patentemente situação familiar, a dinâmica e circunstâncias dessa
não os vive. A ética, quando se vive, acaba modifi- família, o suporte que deverá ser dado quanto à
cando a própria vida e daí vem a credibilidade, a terapêutica e cuidados de enfermagem. Isto deve
força do exemplo. Não há ética médica sem ética orientar sua decisão: é bom lembrar que até nos
pessoal, quer dizer, sem que a ética deixe de atingir casos finais, o profissional tem mais trabalho do que
plenamente o médico como pessoa. As estruturas habitualmente, pois deve gerenciar o caso, acompa-
são o reflexo do que os indivíduos levam dentro de nhar até o fim o paciente. Logicamente, não será a
si. Esse é o verdadeiro desafio que nos coloca a consi- comodidade do médico o que deverá nortear sua
deração da insuficiência técnica perante o paciente decisão: cuidar de um paciente terminal é sempre
que enfrenta o transe da morte. “Ser um profissional trabalhoso. Por outro lado, aqueles que tiveram esta
é mais do que ser um técnico. É algo enraizado na experiência sabem como é amplo e importante o
nossa consciência moral, pois somente quem tem papel do médico nestes momentos.
a vontade e a capacidade de dedicar-se aos outros, Um dilema que freqüentemente se apresentará
e procurar um bem mais alto, pode fazer profissão é se o paciente, que vai caminhando para um final
pública do seu modo de vida”.5 inexorável, deverá permanecer em casa, ser interna-
do no hospital, ou até, eventualmente, nas Unidades
2. Função Técnica do Médico: o de Terapia Intensiva. Temos de apelar, uma vez mais,
gerenciamento da morte. para o bom senso do profissional; bom senso este
O médico deve enfrentar com realismo o mo- que deverá ser orientado pela questão crucial: o que
mento da morte dos seus pacientes. Mas não basta é melhor para o paciente? E também perguntar-se:
realismo, é preciso também competência. E dentro tomada esta medida, o que estamos esperando dela?
da competência que supõe saber acompanhar medi- Qual é a expectativa que esta atitude concreta — in-
camente — profissionalmente — um paciente no es- ternação, UTI, permanecer no domicílio — oferece
tágio final da vida encerram-se aspectos que vão da ao paciente?
simples técnica (como, por exemplo, manipulação Combatendo a tendência, por vezes profética e
de remédios sedativos e o vasto campo da medicina sempre muito pouco profissional, que os médicos
paliativa) até atitudes que, sendo também técnicas demonstram em ocasiões para prever resultados
e profissionais, dizem respeito à postura médica: de fato imprevisíveis, bom será enfrentar estas
saber situar-se, tomar decisões, comportar-se com questões e respondê-las antes de tomar qualquer
profissionalismo. decisão. Dúvidas e respostas que deverão ser re-
solvidas primeiramente no foro íntimo do médico
Atribuições do médico. para, somente depois, serem levadas à família que,
A arte da prudência obviamente, gostará de participar na decisão. Não é
Já no momento do diagnóstico, quando se pode uma decisão conjunta, se por tal se entende dividir
prever um prognóstico reservado e em prazo relati- as responsabilidades. É, na sua essênca, uma decisão

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médica que, ponderada e refletida, comunica-se à que, embora não acrescente elementos para a sua
família, que pode aceitá-la ou não. Geralmente a decisão, é fundamental para o paciente. O paciente
família aceita o que o médico propõe, quando existe precisar sentir-se examinado. Igualmente, mesmo
confiança; e este elemento — confiança — é o que que o médico pense não estar fazendo nada de po-
não deve faltar na relação com a família, pois é a base sitivo assistindo um paciente terminal, sua presença
imprescindível de qualquer cuidado. A confiança é é importante.
como a credencial que a família confere ao médico. O tratamento paliativo, além dos benefícios
Por isso, o médico deve muito bem saber que suas imediatos que traz — alívio da dor, conforto — é
decisões não são “opiniões”, “palpites”, e que pesarão também uma desculpa técnica que permite a pre-
definitivamente no consentimento da família. Saber sença habitual do médico, para desempenhar essa
fazer jus a esta responsabilidade pressupõe que o outra função importantíssima: estar presente! É
médico possua uma estrutura que vai muito além necessário que o paciente se sinta acompanhado
do simples conhecimento técnico. medicamente, humanamente.
O bom senso de que o médico precisa para
tomar estas decisões é virtude que pode ser cons- O paciente centro
truída, susceptível de aprendizado. Saber observar, da atenção médica.
retificar os erros — que sempre haverá — solicitar No relacionamento que tem com o seu pacien-
conselho e opiniões de outros colegas com mais te, o médico deverá lembrar que tem de tratar o
experiência, projetar as dificuldades que surgirão paciente como tal, e nunca como um moribundo.
dessa decisão e o modo de contorná-las. Enfim, Esta disposição do médico é uma necessidade. Sa-
algo muito próximo do que tradicionalmente se bemos por experiência que tanto o paciente como
denomina virtude da prudência, com todos os seus o médico, e inclusive a família, conhecem a situação
elementos integrantes. Algumas considerações que real, constituindo-se uma espécie de segredo que
analisamos a seguir poderão ajudar na construção guardam a três, - não se fala dele, mas se entendem
do bom senso, da postura prudente que se espera perfeitamente-, e que deve permanecer assim para
do medico no gerenciamento da morte. que a relação médico-paciente-família seja frutuosa
e não se quebre. A esperança que o médico demons-
Mais elementos tra com sua dedicação é muitas vezes o melhor
para uma decisão remédio para o paciente, aquele que não pode faltar
A participação da família nos casos terminais e que lhe confere as forças necessárias para enfrentar
ajuda a “acostumar-se com o diagnóstico e com o o momento da morte com dignidade.
desenlace da doença”. É preciso tempo para digerir Comenta um conhecido professor, especialista
a situação difícil. Por isso, quando a família participa em oncologia e medicina paliativa: “Não devemos
nestes momentos, cuidando do paciente, estando esquecer que mesmo no meio do pior drama existe
em volta dele, nunca fica a dúvida tão freqüente em uma enorme reserva de esperança, de otimismo, de
outros casos: “Teremos feito tudo o que é possível?” A alegria no ser humano; saber despertar sentimentos
família que, por exemplo, acompanha no domicílio desta ordem é talvez o melhor remédio contra a tris-
o paciente terminal sob a supervisão do médico vai teza e contra a depressão”.6 O mesmo autor recolhe
se convencendo de que está sendo feito o que deve- um exemplo tocante. As palavras de um estudante
ria ser feito: administrar com bom senso, carinho e de terceiro ano de enfermagem que é um doente
dedicação a evolução natural da vida. oncológico: “O paciente moribundo não é contem-
A presença do médico é elemento imprescindí- plado pelos demais como uma pessoa, e, portanto,
vel, seja qual for a decisão tomada. Naturalmente a não se comunicam com ele adequadamente. É
sensação de “não estar fazendo nada” pelo paciente um símbolo do que todos têm e sabem terão de
costuma amedrontar o médico, deixa-o intranqüilo. afrontar algum dia [...]. Se pudéssemos ser sinceros
Deve entender que no fundo isto é um problema de admitiríamos nossos temores. Eu pergunto às vezes:
postura médica: a sua função nestes momentos não perderiam profissionalidade aqueles que tratam de
é fazer algo, desenvolver uma técnica mágica na ten- mim se falassem comigo como pessoa? Desse modo,
tativa desesperada — e falsa — de curar um paciente não seria tão duro morrer num hospital, rodeado
que se encontra na fase final, mas simplesmente sua de amigos”.
função é “estar lá”. Não é falta de profissionalismo: Esta dedicação médica é compatível com o
é uma nova função que deve ser encarada profissio- conhecimento que o paciente tem da sua situação,
nalmente. É algo análogo ao que acontece perante que variará de acordo com os casos. Em termos
um caso de diagnóstico evidente. Mesmo assim, gerais, parece importante que o paciente saiba da
deve o médico praticar um exame físico minucioso gravidade da sua situação. Não são precisos detalhes

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excessivos, mas, sim, convém que, com delicadeza, disto — quer sentir-se acompanhado: da família, e do
deixemos o paciente entrever que a morte é algo profissional que o assiste. É uma preparação à qual
próximo. Na verdade, todo paciente desconfia e o doente tem direito, para os momentos finais da
intuitivamente sabe disto. Mesmo assim espera do vida. Sentir-se amado, notar que é objeto da atenção
médico uma atitude positiva, terapêutica e realista profissional, funciona como autêntica terapia. Cola-
ao mesmo tempo. Na prática, não existe incompa- bora no equilíbrio psíquico, na serenidade anímica
tibilidade entre a dedicação médica ao paciente e do paciente e da família.
o “segredo” de que falávamos anteriormente. Um Uma questão importante e que justifica todo
paciente se desanimaria ao ver-se abandonado pelo o aprendizado do médico no bom senso e na pru-
médico, mas também não ajudaria observar que o dência para um correto gerenciamento da morte é
profissional que cuida dele não aceita a realidade a da dignidade do paciente, como pessoa humana.
dos fatos e parece querer iludir-se. Na verdade, o Uma morte realmente digna não consiste somente
médico somente conseguiria enganar-se a si mesmo, na ausência de tribulações externas. A dignidade
nunca ao paciente. Este balanço paradoxal requer, perante a morte não vem conferida por algo exterior,
como se vê, grandes doses de prudência. mas surge da grandeza de ânimo com que a pessoa
O princípio de aliviar a dor e o sofrimento deverá enfrenta essa situação única. Por isso, morrer com
nortear a atuação do médico nestes casos. O diálogo dignidade significa não ser paciente apenas, mas
e o trato afetuoso com o paciente mostram-se im- agente. Estar ativo, participar do processo, ser pro-
prescindíveis. O médico deve lembrar que o paciente tagonista da própria morte.
é pessoa, e não apenas um organismo doente. Esta A pessoa humana é sujeito de dignidade pelo
consideração antropológica é a raiz do bom senso fato de ser pessoa. Não apenas de compaixão ou
para não prolongar a vida, ou melhor, para não humanitarismo, como os animais. Vale ter isto pre-
empregar meios que somente prolongam a dor e o sente para afastar os argumentos que, veladamente,
sofrimento do paciente. defendem a eutanásia — matar o paciente — por
O distanciamento do moribundo é a reação compaixão. Na realidade, compaixão é o sentimento
natural de quem não suporta o sofrimento nos que em nós desperta um animal que sofre sem
seres queridos. Este distanciamento é uma das remédio, e sem saber que sofre ou morre. Uma pes-
principais causas que contribui para desumanizar soa tem dignidade, e como tal deve ser respeitada;
a morte: quantos familiares internam o paciente no parte importante dessa dignidade é a que se ganha
hospital somente porque não conseguem suportar afrontando com valentia e livremente o sofrimento
psicologicamente eles próprios a situação. O profis- e a morte. Sempre será mais fácil encurtar a vida de
sional deve ter presente que o trato com a família, alguém que sofre do que, com a nossa atuação dedi-
nos momentos finais, é um modo de humanizar a cada, estimular no paciente as reações de dignidade
morte, de facilitar a dignidade da mesma. Cabe ao humana que surgem quando, fruto desse clima
médico fazer com que a família ganhe a disposição humanizado da morte, existe serenidade de ânimo,
de ânimo para afrontar a situação nos moldes que paz interior, equilíbrio, e se apalpa a solidariedade. É
mais convenham ao paciente, às vezes até na pró- fácil concluir quão importante é o papel do médico
pria casa. Na verdade, se o médico for competente nestes momentos e, também entender que não é um
para gerenciar o caso, isto se torna possível. Talvez desafio para qualquer um.
a ausência desta competência médica nas últimas
décadas tenha sido em boa parte responsável pela Referências Bibliográficas:
1 Blasco PG. O médico de família, hoje. São Paulo, Brazil: SOBRAMFA,
morte que se desumaniza. Não poder contar com 1997.
um profissional que acompanhe o paciente até o 2 Blasco PG, Janaudis MA, Levites. Un nuevo humanismo médico: la
armonía de los cuidados. Atención Primaria. Barcelona, v. 38. N.4 p.
final causa desorientação na família que não en- 225-229, 2006
3 Gustavo Corção. Lições de Abismo. Rio de Janeiro, Agir. 1973. Pg 41.
contra outro recurso a não ser o distanciamento do 4 Citado em Jiménez Lozano, J. Cuadernos de Letra Pequeña. Ed. Pre Textos,
Valencia, 2003.
paciente. É normal que o ser humano goste de estar 5 Leon R. Kass. The Human Life Review, Aut. 1989.
acompanhado nos momentos importantes da vida. 6 M.G.Barón. Cuidados del paciente terminal em Oncologia Clínica.
Madrid, 1994.
Todo paciente que vai morrer — e ele tem intuição

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