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Griôs da Diáspora Negra

Editora | Griô Produções


Brasília | 2017
Organização | Ana Flávia Magalhães Pinto, Chaia Dechen e Jaqueline Fernandes

Griôs da Diáspora Negra


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Sumário
7. Apresentação – Griôs no feminino-plural: 63. Saberes “invisíveis” na cidade: da segregação
ensinamentos de mulheres negras. socioespacial étnica à construção da justiça
Ana Flávia Magalhães Pinto, Chaia Dechen ambiental
Ângela Gomes e Maria Lúcia Wakisaka
e Jaqueline Fernandes

77. Territórios negros em fronteiras Equador –


13. Badia: parteira de memórias
Colômbia
Inaldete Pinheiro
Inés Morales Lastra

19. Yo, Eva


83. Presença
Teresa Cárdenas
Carmen Faustino

21. Letras e vozes da diáspora negra


85. Pé no Quintal – ressignificando os nossos
Shirley Campbell Barr espaços de saberes, valores e partilhas
Débora Marçal
33. A identidade africana e as religiões mundiais
Paulina Chiziane 91. Baobás como marco territorial da militância
negra: poética, militância e educação
41. Ressurgir das cinzas Fernando Batista do Santos
Esmeralda Ribeiro
109. Interseccional
45. O fio d’água do quilombo: questões Monica Carrillo
antropológicas, resposta literária para o leitor
juvenil
113. Nós que acreditamos na liberdade não podemos
Heloisa Pires Lima descansar: lições do feminismo negro norte-
americano
55. O maracatu-nação do Recife: ardis de produção Patricia Hill Collins
da memória
Martha Rosa Queirós
133. Mulheres de terreiros: as griôs da Saúde
Integral
61. Quise
José Marmo da Silva
Shirley Campbell Barr
Griôs da Diáspora Negra
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141. Feiras de Saúde nos Terreiros de Candomblé da


Bahia: estratégias de diálogo entre o modelo médico
hegemônico e a medicina tradicional de matriz africana
Denize Ribeiro, Ordep Serra, Maria Cristina dos Santos
Pechine e Serge Pechine

151. Insistencia
Shirley Campbell Barr

153. Legados das Ialodês: samba e resistência feminina


negra
Jurema Werneck

169. O feminismo negro e as lutas por igualdade global


Angela Davis

181. Entre Cláudias e Carolinas


Nina Silva

183. Quadros – Recital Poético Musical em


comemoração ao Centenário de
Carolina Maria de Jesus
Vera Lopes e Jessé Oliveira

187. Café amargo


Carmen Faustino

189. Gyna sapiens


Mayra Santos-Febres
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Griôs da Diáspora Negra


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Apresentação

Griôs no feminino plural: ensinamentos de mulheres negras


Ana Flávia Magalhães Pinto1, Chaia Dechen2 e Jaqueline Fernandes3

Eu disse: o meu sonho é escrever!


Responde o branco: ela é louca.
O que as negras devem fazer...
É ir pro tanque lavar roupa4

Sábias artesãs das palavras, depositárias de heranças político-culturais, guardiãs das memórias
ancestrais, contadoras de estórias, aquelas que podem dizer de onde vieram nossas famílias e nos orientar
para onde vamos, historiadoras, guerreiras, mediadoras de conflitos, professoras, intérpretes, poetisas,
instrumentistas, compositoras... Ao contrário das imagens masculinas que comumente nos vêm à mente
quando pensamos a respeito dessas e outras habilidades e funções, muitas são as suas protagonistas, no
feminino, tanto no passado quanto no presente. As razões para a naturalização dessa invisibilidade podem
ser várias: convenções da língua, facilidades para identificar as ações de sujeitos masculinos ou mesmo a
força de ideias e práticas machistas e misóginas.
Se ressaltar o lugar de gênero é importante, tão indispensável é reconhecer a cor/raça dessas a quem
invocamos. Estamos falando aqui de Mulheres Negras! Sim, somos muito mais do que supomos, embora,
certamente, menos do que poderíamos ser. Vivemos o duplo desafio de dimensionar e desmontar o impacto
negativo de tentativas colonialistas de negação e rebaixamento da humanidade de grupos populacionais de
origem africana (e também ameríndia), bem como confrontamos costumes oriundos de diferentes sociedades
que sustentam o silêncio artificial das nossas vozes.
Mas um grande trunfo nisso tudo é que nosso ponto de partida não é o vazio. A subalternidade não é
a nossa origem; e o racismo e o sexismo não dão a nossa medida. Tanto que, seguindo pistas deixadas pelo
caminho, é mais que viável chegar a informações que remetem a muitas trajetórias de vida de mulheres negras
enriquecedoras, porque marcadas por acolhimentos, conflitos, alegrias, dores, esperanças, medos, falhas,

1 Doutora em História, jornalista e ativista do movimento do movimento negro e de mulheres negas. Atuou como coordenadora das
Atividades Formativas do Festival Latinidades 2014 – Griôs da Diáspora Negra. E-mail: anaflavia79@gmail.com
2 Diretora da empresa Griô Producões, diretora de Identidade visual do Latinidades, artista multimídia e produtora de mídias digitais.
E-mail: comvisual@latinidades.com
3 Jornallista, especialista em políticas públicas em gênero e raça, gestora cultural, estilista e ativista do movimento de mulheres
negras. Idealizadora do Festival Latinidades, atuou na edição 2014 como coordenadora geral.
4 JESUS, Carolina Maria. Quadros. In: JESUS, Carolina Maria. Antologia Pessoal. Organização de José Carlos Sebe Bom Melhy.
Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1996, 201.
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acertos, limitações e coragem. E isso está diretamente ligado ao que ressaltou a nossa hoje bem lembrada
Luiza Bairros na abertura do Festival Latinidades de 2013:
Eu tenho uma dificuldade muito grande de falar sobre mulheres desse lugar de vítima, da
oprimida, da mais explorada, etc. [...], porque eu não acredito mais nisso. Você pode me
mostrar todas as estatísticas e eu as consulto com certa frequência e vejo as mulheres negras
nos grandes números. Elas permanecem na situação de desvantagem total, mas isso não
é o mesmo que dizer que elas vivem uma situação de se deixar abater ou se deixar vencer
pelos obstáculos colocados pela sociedade. É por isso que, mesmo a partir da desvantagem
social, nós tivemos e temos as condições para criar novos rumos para as nossas vidas; e ao
criar rumos novos para as nossas vidas, nós criamos esses rumos também para o conjunto da
comunidade negra5.

Por isso também, mesmo em momentos de hesitação, precisamos buscar respostas para perguntas
como estas: A que e quem interessa a nossa fixação no lugar da impossibilidade? Qual o impacto de manter
as nossas imagens estranhas às representações de pessoas que sabem de si e atuam de modo consciente em
defesa do seu destino e da sua gente?
Este livro e a edição do Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha de 2014 – Griôs da
Diáspora Negra –, que lhe deu origem, nasceram justamente da necessidade de exercitar o nosso pensamento
e curiosidade acerca dos lugares de mulheres negras na formação de tradições de conhecimentos caros às
práticas culturais e políticas de populações de ascendência africana espalhadas pelas Américas e o Caribe.
Interessa-nos, de tal sorte, a superação da ideia de passado como o tempo em que nossas histórias se
resumiriam às reais violências instituídas via tráfico escravista, escravidão racial e seus desdobramentos. Por
conseguinte, defendemos o aproveitamento do presente como oportunidade para interromper desconexões
com o vivido por gerações anteriores e pessoas com experiências próximas, mas separadas por fronteiras
naturais ou convencionadas. Como mulheres afro-latino-americanas – ou “ladinoamefricanas”, para
referendar o pensamento de Lélia Gonzalez6 –, compartilhamos nessas páginas investimentos coletivos no
sentido de acompanhar e promover trânsitos e fixações alimentadas por sonhos e experiências de liberdade.
Nesse esforço de familiarização conjunta acerca de nossas possíveis raízes e rotas, promovemos uma
apropriação do termo griô no feminino plural – griôs ou griotes –, tanto a fim de contribuir para a visibilidade
de mulheres entre essas personalidades públicas tradicionais de sociedades da África Ocidental quanto para
chamar atenção para outras sábias de territórios negros dos dois lados do Atlântico na contemporaneidade.
Tal como sumariza Nei Lopes, o termo franco-africano griot foi criado no período colonial “para designar
o narrador, cantor, cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e
famílias importantes para as quais, em geral, está a serviço”. Presentes numa região que abrange sobretudo

5 BAIRROS, Luiza. Abertura. In: FERNANDES, Jaqueline; PINTO, Ana Flávia Magalhães, et alii (orgs.). VI Festival Latinidades:
Arte e cultura negra, memória afrodescendente e políticas públicas. Brasília: Griô, 2014, p. 18.
6 GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, n. 92-93, jan.-jun. 1988, p. 69-82.
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territórios do Mali, Niger, Gâmbia, Guiné e Senegal, recebem “denominações variadas: dyéli ou diali, entre os
bambaras e mandingas; guésséré entre os saracolês; wambabé, entre os peúles; aoulombé, entre os tucolores; e
guéwel (do árabe qawwal), entre os uolofes”7. O etnólogo malinês Amadou Hampaté Bâ, antes de apresentar
dados relevantes sobre as características dos griôs, faz questão de destacar que: “Contrariamente ao que
alguns possam pensar, a tradição oral africana, com efeito, não se limita a histórias e lendas, ou mesmo relatos
mitológicos ou históricos, e os griots estão longe de ser os únicos guardiões e transmissores qualificados”8.
Convém registrar que, se o verbete de Lopes oferece poucas possibilidades para informações detalhadas,
não foi por falta de espaço que Hampaté Bâ se limitou a fazer um único registro da palavra griote em seu
texto. Ambos os pensadores, portanto, acabam por alimentar a representação masculina de que falamos no
início deste texto, não oferecendo dados consistentes acerca de mulheres griôs na região. Elas, entretanto,
existiram e existem, conforme têm demonstrado pesquisadoras e pesquisadores como Thomas H. Hale e
Aissata Sidikou, em seus trabalhos sobre as griotes e outras mulheres que dominam a arte da palavra ali e em
locais próximos9.

7 LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004, p. 310.
8 HAMPATÉ BÂ Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (ed.). História Geral da África, I: Metodologia e pré-história da
África. 2.ed. rev. Brasília: Unesco, 2010, p. 169.
9 HALE, Thomas A. Griottes: Female Voices from West Africa. Research in African Literatures, v. 25, n. 3, Women as Oral Artists,
outono 1994, p. 71-91; SIDIKOU, Aissata. Recreating Words, Reshaping Worlds: The Verbal Art of Women from Niger, Mali, and Senegal.
Trenton, NJ: Africa World Press, 2001.

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Assim, nosso aproveitamento foi estimulado pela aproximação com referências a personalidades como
Nantenegwe Kamissoko (Mali), Kandia Kouyate (Mali) e Sona Jobarteh (Gâmbia). Esta última nascida numa
das cinco principais famílias de griôs do oeste africano que tocam o Kora. Neta do respeitado e influente
músico Amadu Bansang Jobarteh, ela é tida como a primeira mulher vinda de uma família griô a tocar
esse instrumento profissionalmente. E a partir daí, tomamos a liberdade de extrapolar algumas regras e
compor um corpo nosso de “griôs da diáspora negra”, incluindo até mesmo a iluminada Paulina Chiziane,
de Moçambique. Com elas10, primeiramente aprendemos por meio da oralidade e agora através da palavra
escrita.
Nas páginas seguintes, articulando prosas e versos, os textos atravessam uma ampla variedade de
temas, que vão dos caminhos das escritas da gente negra à crítica a modelos globais de dominação, passando
por saúde, educação, territorialidade e políticas de memória. Tendo sido a também griô Carolina Maria de
Jesus a homenageada do ano, em virtude das celebrações de seu centenário, desejamos a todas uma boa
leitura, a começar pela letra de sua música “O pobre e o rico”, gravada no disco Quarto de Despejo, de 1961:

É triste a condição do pobre na Terra


Rico quer guerra
Pobre vai na guerra
Rico quer paz
Pobre vive em paz

Rico vai na frente


Pobre vai atrás
Rico faz guerra
Pobre não sabe por quê
Pobre vai na guerra
Tem que morrer

Pobre só pensa no arroz e no feijão


Pobre não se envolve nos negócios da nação
Pobre não tem nada com a desorganização

Pobre e rico vencem a batalha

10 Entre as quais se incluem José Marmo da Silva e Fernando Batista.


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Na sua pátria rico ganha a medalha
O seu nome percorre o espaço
Pobre não ganha nem uma divisa no braço

Pobre e rico são feridos


Porque a guerra é uma coisa brutal
Só que o pobre nunca é promovido
Rico chega a marechal

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Badia: parteira de memórias1
Inaldete Pinheiro de Andrade2

Eu sou de uma geração que ouviu histórias de Trancoso. O que era Trancoso? Quem era Trancoso?
Ninguém ao redor da mesa de jantar sabia explicar e nem por isso elas eram menos interessantes. Ninguém
quer dizer Badia, a parteira que pegou ou aparou a mim e a minha irmã Ineide. Ela era presença cotidiana em
nossa casa desde sempre na minha memória. Era ao redor da mesa da sala de jantar porque somente à noite
papai nos dava o prazer da sua companhia no horário da refeição, haja vista que as duas primeiras ele as fazia
no trabalho, na base aérea, como funcionário civil e nós, as cinco mulheres da casa, comíamos na mesa menor,
na cozinha. Após o jantar ele ia ouvir rádio ou ler o livro do momento, enquanto a mesa permanecia com as
vozes femininas, findo o cenário do espaço de refeição. Agora a magia estava na voz, nos gestos, no olhar
de Badia e o encantamento acontecia das segundas às sextas-feiras, cada sábado e domingo eram longos,
o suficiente para as brincadeiras no terreiro com a meninada da minha rua: pular corda, esconde-esconde,
academia, tica-bandeira, cantigas de roda, passar o anel e o que mais aparecesse. Bons momentos aqueles
do terreiro em frente à minha casa, porém as viagens produzidas pela voz rouca e grave de Badia foram
incomparáveis e inesquecíveis, as mesmas adubaram a minha infância.
A partir dos onze anos de idade, fui estudar o curso ginasial, único turno à noite no Ginásio Augusto
Severo. Este patrono é um potiguar que criou um balão na tentativa de aperfeiçoar o que Ícaro pensou: voar,
voar, ir longe cortando os ares. Sem grande sucesso, Santos Dumont ganhou a fama no Brasil, porém no Rio
Grande do Norte é Augusto Severo que tem nome em praças, avenidas, aeroporto e, também, no Ginásio onde
eu estudaria. Ali eu encontrei uma biblioteca mais sortida do que a de papai e havia coleções de contos de
fadas. Folheei-as com o desejo de reencontrar as figuras que Badia me apresentara. Uma surpresa, porém, me
tomou: fadas, príncipes, princesas, Alice, Gata Borralheira, Chapeuzinho Vermelho, todo mundo era branco.
Eu nunca fiz esta imagem, tampouco Badia falou das tranças louras de Rapunzel e olhe que trança era um
penteado comum na nossa cabeça, arte de mamãe. Ao folhear Monteiro Lobato, encontrei gente parecida com
a minha gente, peguei os volumes disponíveis: Sítio do Pica-Pau Amarelo, O Saci, Histórias de Tia Anastácia, este
foi o eleito para a minha iniciação e não foi por acaso. O título me lembrou a minha vivência embalada com
as histórias de Badia.
No quintal da nossa casa havia uma goiabeira cujos galhos fortes se encontravam formando uma
cadeira, espaço para minhas leituras e outras divagações. Numa visão geral, identifiquei nas histórias seus

1 Dedico a Badia, hóspede da minha memória; e a Heloísa Pires Lima, cuidadora de Baobás.
2 Nascida em Parnamirim, Rio Grande do Norte, Inaldete mudou-se para Recife aos vinte anos para cursar Enfermagem na
UFPE. Nessa cidade, foi uma das responsáveis pela reorganização do Movimento Negro de Pernambuco no fim dos anos 1970. Escritora
especialmente dedicada à literatura infanto-juvenil, é autora de vários livros, entre os quais: Cinco cantigas para se contar (1989), A
Calunga e o Maracatu (2007) e Baobás de Ipojuca (2008).
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personagens: as crianças Emília, Narizinho e Pedrinho e os adultos Tia Anastácia e Dona Benta. Ciente de
que o título fazia jus ao conteúdo, com prazer iniciei a leitura, porém não demorou muito para eu ficar
impactada com os insultos que Emília iniciava e Narizinho e Pedrinho endossavam. Pela primeira vez, senti
desconforto no meu assento preferido, todo o meu corpo reagia com aquela maneira de as crianças tratarem
Tia Anastácia e estendia os desaforos a “todas as pessoas ignorantes”. Indiretamente Dona Benta permitira
aquele comportamento, preferindo explicar o que era folclore, norma culta e oralidade enquanto as crianças
mantinham os insultos como norma de conduta.
Eu sentia uma vontade de parar a leitura e ao mesmo tempo havia o impulso para ver até onde aquilo
ia dar. O prazer de ler o texto não era o mesmo e, decepcionada, consegui a custo manter às mãos aquele
objeto que desprezava o meu povo, vindo à lembrança algumas conversas dissimuladas que eu ouvia fora
de casa. Enquanto papai e mamãe nos chamavam “minhas negas” – somos quatro irmãs –, no ambiente
externo a palavra “negra” era negativa, desprezível, inferiorizada. Muito, muito cedo, compreendi a violência
com que nos atiravam a palavra “negra”. Uma das colegas mais próximas de mim no Ginásio, cuja relação se
dava para além da sala de aula, assistiu ao filme O Pagador de Promessas3 e comentou comigo que não gostou
mais do filme “porque havia muitos negros na filmagem, como se no Brasil só tivesse negro”. A contradição
era que essa pessoa adorava dançar com um rapaz baiano, negro! Isso não é um fato isolado nas nossas
relações sociais. O fortalecimento vinha de dentro de casa, quando ouvir a palavra “negra” me trazia a doçura
que só a memória pode reproduzir.
Os galhos fortes da goiabeira se mantiveram rígidos aguentando a inquietação do meu corpo, sem
deixar de pensar na diferença de tratamento que Badia recebia em minha casa e o tratamento que Emília,
Narizinho e Pedrinho davam à Tia Anastácia, tais: “coisa mesmo de negra beiçuda como Tia Anastácia!”;
“tudo bobagens de negras velhas!”; “se não eu cortava um pedaço desse beiço!”; “bem se vê que é preta e
beiçuda!”; “Não tem a menor filosofia esta diaba!”, entre outras violências verbais. E Dona Benta? Ah! É a
intelectual, não se preocupava com esses arroubos, principalmente de Emília, coisa de quem “está ficando
vaidosa”, argumentava e enaltecia o “rigor” literário da neta, cujas opiniões desclassificavam o povo na voz
de Tia Anastácia, tido como inculto, além de atingir diretamente a imagem física, ridicularizando a cor da
pele, o formato dos lábios grossos. Para endossar o desprezo ao conhecimento transmitido pela oralidade,
várias vezes as crianças e a avó evocavam os conhecidos escritores infantis, os irmãos Grimm, Lewis Carroll,
Christian Andersen, sem se darem conta que os primeiros colheram os contos populares e os colocaram na
escrita. E desde então correm o mundo e são apreciados.
Vencendo a resistência consegui ler os outros: Sítio do Pica-Pau, O Saci. Invariavelmente Tia Anastácia
e agora com a presença de Tio Barnabé eram tratados de “o negro” e “a negra”, perdiam o nome próprio,
significado pelo qual se distingue cada individualidade. Quem duvida que essas posturas não influenciaram
milhões de leitores e leitoras mirins que acessaram aquelas páginas? A banalização do trato racista é recorrente

3 Filme brasileiro de 1962, escrito e dirigido por Anselmo Duarte, baseado na peça teatral homônima de Dias Gomes. Estrelado por
Anselmo Duarte e Glória Menezes, o filme se passa no centro histórico de Salvador, BA, e venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes.
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no cotidiano da sociedade brasileira e, por extensão, a valorização da literatura escrita como fazia Dona
Benta, colocando em grau menor as histórias vindas do povo pela via oral. Visão semelhante atinge a música,
o teatro, a dança, a pintura, pondo em oposição o clássico e o popular, a academia e o conhecimento informal,
o erudito e o primitivo e para completar, o estrangeiro e o nacional.
Esse Monteiro Lobato! Precisaria ele repassar este comportamento opressivo, racista, para ser
referendado na sua escrita, sobretudo para crianças? Um recurso desnecessário de um homem que desbravou
caminhos com as suas ações. Como o racismo é ensinado e aprendido, saiu vitorioso nessa outra empreitada.
O ponto favorável é que ele não conseguiu me distanciar dos livros. Alguns clássicos nacionais e
estrangeiros me foram apresentados ao longo do tempo. Com a inserção no Movimento Negro, em 1979,
optei pela literatura infanto-juvenil como uma ação militante pensando no que eu vivi diante de leituras
tendenciosas. Como estaria a escrita ao longo desse tempo? Passei a buscar em cada livraria os livros com
ilustrações de personagens negros. A ilustração é uma vantagem comparativa no livro infantil. Durante sete
anos – não é conta de mentirosa! – acumulei 83 livros, lidos e analisados cuidadosamente, os quais me deram
oportunidade de perceber a disponibilidade de cada escritor para tratar suas criaturas pela pertença étnica,
no período de 1967 a 1987. O ano de 1967 foi a edição mais antiga que encontrei à venda e foi importante

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porque deu oportunidade de avaliar um período o qual cobria o tempo imediato ao golpe político e sua
censura às expressões artísticas até a pós-democratização.
Nas poucas publicações circulantes no auge da censura explícita, o racismo era tão permitido como as
demais torturas. E o sofrimento psicológico de quem era atingido não era menor do que as que atingiam o
físico dos presos políticos. A lição do “mestre” Monteiro Lobato era aplicada às expressões “o negro”, “a negra”,
“o negrinho”, “a negrinha”, acrescentando-se os apelidos: Tiziu, Tição, Negão, Mulata, Pelé, entre tantos e as
ilustrações eram caricaturas que nenhuma criança negra assimilava. Não faltaram as obras conciliadoras
paternalistas apelando para “pobre negrinho, o coitado, a pobrezinha, o coitado do negro, a infeliz negra, a
pobre empregada...” Às vezes, a independência do sujeito/objeto era uma benevolência de alguém generoso e
poucas vezes colocou-se o oprimido esboçando uma reação pró-ativa. Esse retrato reproduzia antiga relação
social, a condição da subordinação. Quantas empregadas domésticas não chegaram meninas nas casas e
cresceram cuidando das várias gerações da família, vivendo em função desta?
A partir da década de 1970, os ventos sopraram com um olhar crítico sobre as literaturas no Brasil e
o tratamento das relações étnicas4. Não sei se esses estudos tiveram alguma influência nos escritores desse
período, porém eis que surge progressivamente uma produção escrita com uma variação de temas com o
protagonismo negro incluindo a África sem Tarzan. Os anos 1980 consolidaram uma literatura negra infanto-
juvenil com uma gama de escritores/as negros/as a serviço de afirmar a vida como ela é na sociedade brasileira,
para todas as gentes, e, nela, múltiplas histórias com o universo da gente negra produtora de cultura. Nesse
engajamento escritores não-negros entraram com suas escritas acrescentando a oferta de livros à disposição
das bibliotecas que desejassem novos conteúdos, no momento da perspectiva das liberdades institucionais,
inclusive de repensar o racismo no Brasil.
Foi nesta leva que expus a minha escrita e particularmente fui bem acolhida pela novidade na cidade
em que vivo5. A opção de afirmar através da literatura as culturas pernambucanas com sua raiz africana é um
reforço diante da ausência desta referência a cada dia na linguagem dos formadores de opinião, omitindo a
história e, por extensão, quem a expressa. Até quando o efeito Monteiro Lobato através de Emília, Narizinho
e Pedrinho influenciará negativamente os saberes produzidos pelo povo negro? A absorção desses pelo
Estado transformou-se pura e simplesmente em cultura pernambucana, sendo até aclamado como símbolo(s),
enquanto seus fazedores continuam à míngua. Aparentemente isto é banal, porém nascer e crescer sem
referências marginaliza o sujeito deixando-o sem chão, sem história. A contribuição da reorganização do

4 QUEIROZ JR., Teófilo. Preconceito de cor e a mulata na Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Ática, 1975; BASTIDE, Roger.
Estereótipos de negros através da Literatura Brasileira. In: BASTIDE, Roger. Estudos Afro-brasileiros. São Paulo: Editora Perspectiva,
1972, p. 113-128.
5 ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Cinco cantigas para você contar. Recife: Produção Alternativa, 1989; Pai Adão era nagô.
Recife: Produção Alternativa, 1989; A calunga e o maracatu. Recife: Secretaria de Cultura de Recife, 2007; Baobás de Ipojuca. Recife:
Bagaço, 2008; A barriguda que é um baobá. Recife: Ed. do Autor, 2010 [Coleção Velhas histórias, novas leituras, 1]; Eu, o coco. Recife:
Edição do Autor, 2010 [Coleção Velhas histórias, novas leituras, 2]; A menina capoeira. Recife: Edição do Autor, 2010 [Coleção Velhas
histórias, novas leituras, 3]; Maracatu de Real Realeza. Recife: Ed. do Autor, 2010 [Coleção Velhas histórias, novas leituras, 4]; Biriba
Berimbau. Recife: Edição do Autor, 2010 [Coleção Velhas histórias, novas leituras, 5].
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Movimento Negro à literatura negra infanto-juvenil disposição desse público. Hoje pequenas editoras
veio promover o acesso de novas contribuições têm dedicado prioridade a esta produção, facilitando
nas prateleiras das livrarias embora nas lojas de a inserção da produção com esse recorte étnico, uma
departamentos as bonecas negras (no plural) vez que são poucas e poucos de nós que conseguem
continuem ausentes. Faltam professoras simpáticas a oportunidade de acolhimento nas grandes editoras
esta leitura. Como fazer? com sua rede de distribuição. Nada a reclamar,
Em 2001 lancei o resultado daquela pesquisa melhor será quando tivermos o mesmo acolhimento
autônoma com o título Racismo e antirracismo na por essas. Qualidade não nos falta!
Literatura infanto-juvenil6. Com o apoio dos teóricos Desde 2009, eu divido com minha neta Nyashia
pus em foco como os racismos se manifestam, do o mesmo que fiz com o seu pai, o meu filho Yorubá.
individual, passando pelo coletivo, ao institucional. Ofereço-lhe livros onde princesas são negras, cabelo
Senti-me respaldada a desmascarar Antoine de Saint- pixaim está à mostra, o negro velho e a negra velha
Exupéry, que, por meio de O Pequeno Príncipe, o livro têm conhecimento, menino brinca de boneca, boneca
campeão de edição, trata com desprezo os Baobás, pode ser negra, toda pessoa tem nome próprio, é sua
o maior tronco do mundo, em todos os sentidos. O primeira identidade.
medo do chicote bater de volta vem acompanhado Se as histórias de Trancoso saíram do meu
de metáfora, pelo autor. Com o mesmo interesse repertório, Badia deixou-me o gosto de contadora de
continuo acompanhando a produção ascendente
histórias e eu adoro fazê-lo.
infanto-juvenil e é louvável cada livro que está à

6 ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Racismo e antirracismo na Literatura infanto-juvenil. Recife: Etnia Produção Editorial, 2001.

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Yo, Eva
Teresa Cárdenas1

Yo
Soy
Negra
Dios moldeó mis labios gruesos
con sus dedos
ladeó sinuosamente mis caderas
miró en mis ojos
y le puso su luz
Yo
soy del color de la primera tierra del mundo
la más fértil, la más profunda
Fui amada desde el principio
y en mi vientre fue coronada
la Vida
Aqui están mis senos abundantes
mi boca llena de historias y cantos
Tengo constelaciones entre los dedos
Africa nació de mí.
Soy Eva
soy negra
Soy.

1 Escritora, roteirista, atriz, bailarina e ativista afro-cubana. Iniciou a publicação de seus livros em 1997, tendo recebido desde então
os Prêmios David, La Edad de Oro, Casa de las Américas, Prêmio Nacional da Crítica Literária de Cuba e o Concurso Hermanos Loynaz.
Em português, foram editadas as obras Cartas à Minha Mãe [Cartas al Cielo, 1997] e Cachorro Velho [Perro Viejo, 2005], pela editora
Pallas. E-mail: tetemacu@yahoo.com.
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Letras e vozes da diáspora negra1
Shirley Campbell Barr2

O conceito de diáspora afro-latino-americana adquiriu importância por volta dos anos 1980. Temas
relacionados à diáspora começaram a ganhar visibilidade a partir do reconhecimento, pelos nossos países,
da presença de grupos diferenciados em toda a América Latina. Houve igualmente um crescimento dos
movimentos sociais que assumiram a tarefa de dar visibilidade às precárias condições de vida de grandes
parcelas de população etnicamente distinta, forçando sucessivos governos a discutir a situação. Além disso,
com o processo de globalização3, têm-se aberto canais de comunicação, antes inexistentes, que facilitaram
a criação de redes multinacionais que têm permitido intensificar as discussões e nos aproximar de modo
conjunto em busca de respostas e soluções.
O termo diáspora é utilizado para se referir a grupos étnicos que foram deslocados de seus locais de
origem por várias razões, seja por migração, exílio, rapto, etc., reestabelecendo-se em outros territórios. Uma
das principais características dessas comunidades reside no fato de fundamentarem sua identidade a partir
do território original, convertendo-o em ponto de referência sobre o qual se constroem diferentes expressões
de sua etnicidade e identidade. Essa identidade é entendida como organização social da diferença e como
uma forma de identificação com o seu grupo étnico; percebida a partir das sociedades transplantadas e de
distintas conexões com a terra natal.
Ao falar sobre a diáspora africana ou afro-americana, fazemos referência a três elementos fundamentais.
O primeiro deles se refere à transferência forçada de milhões de africanos para o Novo Mundo, como
resultado do tráfico de escravos; o segundo, à formação de culturas afro-americanas a partir da reelaboração
das culturas africanas e da sua combinação com culturas europeias e nativo-americanas; e o terceiro, ao
surgimento de identidades culturais fundadas na origem racial, étnica e cultural (africana). As identidades
diaspóricas implicam uma autoexternalização, ou melhor, uma busca da identidade para além das fronteiras
que atualmente o grupo ocupa, resultante da experiência coletiva de discriminação, subordinação e estigma.
Foi por volta de 1965, durante o Congresso de Historiadores Africanos na Tanzânia, que se introduziu
esse conceito de diáspora africana no mundo acadêmico4. Esse foi um congresso histórico, no qual houve a

1 Tradução de Ana Flávia Magalhães Pinto.


2 Escritora e antropóloga afro-costa-ricense. Autora dos livros Naciendo (1988), Rotundamente negra (1994), Desde el principio fue
la mezcla (2007) e Rotundamente Negra y otros poemas (2013). E-mail: shirleycampbellbarr@yahoo.com.
3 É preciso explicitar que diáspora não é equivalente a globalização ou transnacionalismo, apesar do vínculo estreito existente. A
globalização representa a desagregação dos fatores que separam os grupos de pessoas e unidades políticas, como o Estado-nação, dentro
da comunidade internacional; refere-se à crescente interdependência entre os distintos atores sociais, à união de mercados e à facilidade
de interconexão ao redor do mundo pelo uso das novas tecnologias de comunicação. Cf. GOULBURNE, Harry. Caribbean Transnational
Experience. Londres: Pluto Press, 2002.
4 Nota de Tradução (NT): O Congresso Internacional de História Africana [International Congress of African History] foi realizado
Griôs da Diáspora Negra
22
participação de historiadores da África e do Ocidente. O uso e a nova definição do termo no que diz respeito
à Afro-América implicou conceber a experiência africana na América como um aspecto da história africana,
ao mesmo tempo em que tinha o caráter “reivindicatório”, e afirmar a capacidade e a dignidade desses grupos
africanos e o valor de suas culturas. E isso não pode ser separado da corrente de afirmação étnica e da luta
contra a discriminação que se desenvolvia naquele momento, no contexto do movimento dos direitos civis
nos Estados Unidos5.

A arte da diáspora

Para os povos negros, a arte sempre esteve ligada à própria vida, a nosso modo de ser cotidiano. Está
ligada à morte, à vida, ao existir e ao não existir, ao nascimento, a nossos povos, nossas comunidades, nossa
história e a outras histórias que se entrecruzam com a nossa.
De acordo com José Luis López:
Para entender a arte africana, há que se considerar que o africano concebe a vida e o cosmo
como uma energia universal que rege todas as coisas e da qual participam todos os seres. O
Ser Supremo, criador, todo-poderoso e onipresente, seria o princípio dessa energia, mas sua
relação com o mundo é nula, uma vez que foi limitado a proporcionar-lhe essa força vital
que, logo, cada ser, por seus próprios meios, deve se apropriar o máximo possível. Não é
um Deus encarnado que intervém nos assuntos humanos. Esse cuidado se deixa a alguns
intermediários entre Ele e os homens, que são os que verdadeiramente atuam na vida desses.

A arte negra cumpre uma função social e nunca individual, assim como o homem africano
não tem sentido se não for parte de um grupo. O artista não plasma nada fora do sentir
comunitário e, embora sua liberdade esteja firmada mais na perfeição objetiva e no acabado,
ele nunca tentará seu ideal de beleza ou sua interpretação do está fazendo, mas sim nos
oferece uma obra que todo mundo entende e compreende porque, em certa medida, é a obra
de todos. O artista não fez mais que interpretar o sentir e executá-lo com sua habilidade
característica6.

na cidade de Dar es Salaam, Tanzânia, em outubro de 1965. Para uma abordagem em português sobre a importância desse e outros
encontros sobre História da África, cf.: BARBOSA, Muryatan Santana. Eurocentrismo, História e História da África. Sankofa – Revista de
História da África e de Estudos da Diáspora Africana, n. 1, jun. 2008, p. 46-63. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/sankofa/article/
view/88723/91620. Acesso em: junho de 2015.
5 MARTINEZ, Gabriel Izard. Herencia, territorio e identidad en la diaspora africana: hacia una etnografia del retorno. Estudios de
Asia y África, v. XL, n. 1, jan.-abr. 2005, p. 89-115. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=58640103. Acesso em: junho de
2015.
6 LÓPEZ, José Luis Cortés. Arte negro africano. Madri: Ed. Mundo Negro, 1992, p. 92-95.
23
De que se trata a literatura da diáspora na América Latina

Se contamos a história da literatura na América Latina, veremos que há uma ausência da literatura dos
povos negros da diáspora no cânone literário da região. À literatura da diáspora, quando mencionada, é dada
uma importância marginal, apesar de ser uma literatura que, em geral, apresenta uma série características
particulares que, sem sombra de dúvidas, permitem agrupar autores de diferentes países a partir de temáticas
e estilos particulares.

É necessário entender também que a análise da literatura negra da diáspora não representa uma
ruptura com a literatura africana. Existe uma conexão entre ambas e para entendê-la é necessário reconhecer
que a literatura africana é única por estar construída a partir da memória. Para os diversos povos africanos,
a literatura tem uma função central na preservação da cultura e da história, e que a transmissão dos saberes
ancestrais e míticos sempre foi realizada de forma oral.
De acordo com Amadou Hampâté Bâ, escritor e etnólogo do Mali, a tradição oral é o reconhecimento
total, em que a relação dos povos tradicionais com o mundo é:
uma relação viva, de participação e não uma relação de pura utilização [...]. Aquilo que
se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre é vivido, enquanto o
conhecimento herdado da tradição oral encontra-se na totalidade do ser. [...] É, pois, nas
sociedades orais que não apenas a função da memória é mais desenvolvida, mas também a
ligação entre o homem e a Palavra é mais forte. Lá onde não existe a escrita, o homem está
ligado à palavra que profere. Está comprometido com ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra
um testemunho daquilo que ele é. [...] A própria coesão da sociedade repousa no valor e no
respeito pela palavra [...]. Nas tradições africanas, a palavra falada se empossava, além de
um valor moral fundamental, de um caráter sagrado vinculado à origem divina e às forças
ocultas nela depositadas. Agente mágico por excelência, grande vetor de “forças etéreas”,
não era utilizada sem prudência7.

A literatura dos povos negros, portanto, não se inicia no Novo Mundo. Está enriquecida por toda essa
tradição milenar, profundamente associada à memória. No processo de reconstrução da história negra como
um todo, além das manifestações escritas, se constrói o que Muniz Sodré caracteriza como uma “reelaboração
política do passado a partir da inteligência presente da vida social”. Ele afirma que a memória envolvida “não
é repetição do igual, e sim o reencontro de pontos críticos do passado por um sistema reinventivo de valores
que coincide com o quadro social presente, ele próprio uma recordação estável e dominante, porém aberto à
indeterminação da realidade”8.

7 HAMPATÉ BÂ, Amadou. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (org). História Geral da África, v. 1 – Metodologia e pré-
história na África. São Paulo: Ática/Unesco, 1982, p. 199.
8 SODRÉ, Muniz. Claros e escuros: Identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 211.
Griôs da Diáspora Negra
24
A literatura, como um todo, tem a característica de ser um espaço favorável ao diálogo simbólico
dos tempos, e permite refletir os conflitos e encontros entre posições particulares. Nesse sentido, tende a
mostrar não apenas grandes ausências históricas, mas também as presenças apagadas e maltratadas dos
africanos mundo afora. Essas imagens turvas e carentes de realidade se manifestaram por anos na literatura
do Ocidente. Imagens que ainda hoje persistem, embora em menor escala em algum de nossos países.
É necessário reconhecer dois momentos na história literária da diáspora em nosso continente. Primeiro,
a condição negra aparece como objeto literário e a partir de uma perspectiva externa, uma visão distanciada.
Em um segundo momento, aparece o negro como sujeito, como protagonista e contando a sua própria história,
que, consequentemente escreve de um lugar comprometido com a sua realidade.
O tema da presença negra na América Latina e no Caribe tem sido abordado por diversos autores.
Num primeiro momento, essa visão desde fora representou a construção de personagens estereotipados e
irreais, refletindo percepções formadas através de uma lente saturada de preconceitos. Imagens satíricas e
animalescas, figuras supostamente humanas. Negros e negras infantilizados, serviçais e subalternos com o
objetivo de consciente ou inconscientemente legitimar as condições existentes.
Os primórdios da literatura negra fazem parte de um complexo movimento da década de 1920, quando
a cultura ocidental começava a ser permeada pelo ficou conhecido como Negrismo9. Para esse momento, o
interesse pelas mais diversas manifestações do “Africano” se estendia da Europa para o resto do mundo. O
Negrismo, segundo alguns estudos, serviu de base para o Movimento da Negritude10, iniciado na Europa na
década de 1930 e que cumpriu um papel revolucionário, rompendo com os valores da cultura eurocêntrica.

9 NT: Tendo entre seus primeiros representantes homens brancos, conforme observa Luiz Henrique Silva de Oliveira, “a ideia de
negrismo surge nas Américas, principalmente nas Antilhas, como consequência das vanguardas europeias e latino-americanas, associadas
aos movimentos de abolição da escravatura, à emergência na cena pública do mosaico que representa a cultura popular e, consequentemente,
nacional, e, como não poderia deixar de ser, à possibilidade de os povos poderem assumir a liberdade e a igualdade de modo a adquirir
vozes próprias. No caso dos territórios americanos, este movimento implica imersão nos universos indígenas e afrodescendente, ficando,
portanto, de fora o branco, justamente por ser considerado o opressor – inclusive no campo cultural” (OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de.
O negrismo e suas configurações em romances brasileiros do século XX (1928-1984). Tese (Doutorado em Letras – Teoria da Literatura e
Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, UFMG, 2013, p. 44-45).
10 “Negritude foi um movimento literário e ideológico liderado por escritores e intelectuais negros francófonos. O movimento é
marcado pela rejeição da colonização europeia e do papel dessa na diáspora africana, orgulho da ‘negritude’ [de ser negro] e da cultura
e dos valores tradicionais africanos, misturado com uma corrente de ideais marxistas. Seus fundadores (ou os três pais), Aimé Césaire,
Léopold Sédar Senghor e Léon-Gontran Damas, encontraram-se enquanto estudavam em Paris em 1931 e começaram a publicar o primeiro
jornal dedicado à Negritude, L’Étudiant noir (O Estudante Negro), em 1934. O termo ‘Negritude’ foi cunhado por Césaire em seu Cahier
d’un retour au pays natal [Diário de um regresso ao país natal] (1939) e significa, em suas palavras ‘o simples reconhecimento do fato de
que se é negro, a aceitação desse fato e de nosso destino como negros, de nossa história e cultura’. Mesmo em seu início, a Negritude foi
verdadeiramente um movimento internacional – inspirando-se no florescimento da cultura afro-americana [afro-estadunidense] provocado
pelos escritores e intelectuais do Harlem Renaissance [Renascimento do Harlem], enquanto afirmava seu lugar no cânone da literatura
francesa, glorificando as tradições do continente africano, e atraindo participantes em países colonizados do Caribe, Norte da África e
América Latina” (A Brief Guide to Negritude. Disponível em: https://www.poets.org/poetsorg/text/sthash.rnMdgHnG.dpuf. Acesso em:
junho de 2015).
25
O negrismo se desenvolveu paralelamente ou um pouco antes ao Renascimento Negro do Harlem, nos
Estados Unidos11. O movimento da negritude, por sua vez, defendia, entre outras coisas, que o intelectual
negro devia assumir sua origem racial. Além disso, apostava na liberdade de estilo, forma e imaginação
frente aos modelos literários europeus.
Na América, o movimento chegava com grande força, gerando espaços para a criação de propostas
político-sociais para as grandes massas da população que batalhavam individual e coletivamente para ganhar
um lugar justo nas sociedades americanas.
A literatura negra não esteve à margem das mudanças em curso. Os Estados Unidos deram a pauta
junto de outras nações que começaram a descobrir que todos esses elementos de origem africana estavam
entre elas com toda essa força e júbilo que as caracterizavam. Começavam a brilhar autores como Langston
Hughes, Claude Mckay e Countee Cullen, para mencionar alguns.
Foi dessa maneira, dentro de um movimento amplo iniciado com elementos tendentes à curiosidade,
ao exotismo, ao folclórico e ao desconhecido, que uma série de poetas e escritores, assim como representantes
de outras correntes artísticas, encontraram terreno fértil para criar um espaço de denúncia, em sua luta por
reinvindicações político-sociais.
No Brasil, ao longo do século XIX e início do século XX, acredita-se que foram muito poucos os autores
e as autoras que chegaram a tocar no tema racial, e, quando o faziam, seria da perspectiva dos colonizadores.
À época, o número da população negra alfabetizada era tão limitado que o fato de tocar nesses temas era algo
extraordinário, e pensar em ser publicado era quase impossível. As dependências econômicas fundamentais
impediam até de pensar em outros termos que não fossem os eurocêntricos. Cruz e Sousa (1862-1898), em sua
prosa poética “Emparedado”, reclamava da intolerância dos círculos literários e da sua impossibilidade de
ingresso nesses espaços. Machado de Assis (1839-1908) foi um dos poucos autores que conseguiram sair das
camadas mais pobres e lograr de alguma maneira entrar nesses círculos.
No caso da América espanhola, Cuba teve um papel muito importante no que diz respeito à contribuição
com elementos definidores desse tipo de literatura. Isso em virtude do papel que essa nação teve durante
a vigência da escravidão. Juan Francisco Manzano12, que nascera escravo em 1797, Bartolomé José Crespo

11 “No início dos anos 1900, particularmente na década de 1920, a literatura, arte e música afro-estadunidenses começaram a
florescer no Harlem, um bairro de Nova York. Esse movimento cultural dos negros dos Estados Unidos se tornou conhecido como ‘The
New Negro Moviment’ [Movimento do Novo Negro] e mais tarde como Harlem Renaissance. Mais que um movimento literário, o Harlem
Renaissance redefiniu a expressão afro-americana. Afro-americanos foram encorajados a celebrar sua ancestralidade. Os principais fatores
que contribuíram para o desenvolvimento do Harlem Renaissance foram a migração urbana afro-americana, e a emergência de intelectuais
afro-americanos radicais. O Harlem Renaissance transformou a história e a identidade afro-americana, mas também transformou a cultura
americana em geral. Nunca antes tantos americanos tinham lido os pensamentos de afro-americanos, e adotado as produções, expressões e o
estilo da comunidade afro-americana” (Disponível em: http://www.mc.cc.md.us/Departments/hpolscrv/jinnocenti.htm. Acessado em: junho
de 2015).
12 NT: Recentemente traduzida para o português, a autobiografia desse autor pode ser acessada em: MANZANO, Juan Francisco. A
autobiografia do poeta-escravo. São Paulo: Editora Hedra, 2015.
Griôs da Diáspora Negra
26
y Borbón e o colombiano Candelario Obeso13, nascido este último em meados do século XIX, são alguns
precursores de uma poesia que, a princípio, não transcendeu à descrição de eventos ou situações particulares,
e que muito poucas vezes foi além da denúncia da situação da população negra14.
Essa primeira poesia negra se caracteriza por estar cheia de atividade, grande musicalidade e uma
imensa quantidade de palavras onomatopeicas e jitanjáforas15. A temática predominante nesse período
compreendeu uma série de descrições de povos e costumes negros, alusões e evocações às divindades
da mitologia africana, descrições de bailes, ritos, superstições mágicas, e com alguns elementos satíricos
em relação a eventos particulares da cotidianidade africana. Essa temática quase nunca transcendeu ao
questionamento da realidade que colocava as populações negras em situação de desvantagens e muito menos
à busca de reivindicações sociais e étnico-culturais.

Seria Nicolás Guillén (1902-1989), o grande poeta cubano, que com sua subversão linguística abriria
caminho para um enfoque diferente. Guillén, sem dúvida alguma, merece um capítulo à parte dentro da
literatura negra. Esse autor dá uma guinada de vital importância nessa corrente ao assumir uma posição
político-social-racial nitidamente definida, a partir da qual exorta, a princípio, a população negra cubana
e, depois, aos demais negros do mundo que enfrentem a si mesmos, a fim de romper com os estereótipos e
estruturas sociais que os limitam.
O orgulho racial desse poeta de Camagüey o converte em um dos primeiros autores da
poesia afro-hispano-americana que exalta conscientemente os valores da cultura neoafricana
e sua contribuição não apenas ao povo de Cuba, mas também a toda a América hispânica.
Sua afirmação racial, o reconhecido valor estético-musical da sua lira e o seu conceito poético
revolucionário se enquadram no critério do controvertido movimento sociopolítico e literário
da Negritude16.

Em 1977, o estudioso estadunidense Richard Jackson se perguntava se era possível uma literatura
“afro” no contexto hispânico. Em 1984, o trinitino Ian Smart propôs uma resposta: identificar e aglutinar os
autores em uma nova corrente literária, que denominou de Afro-Realismo.

13 NT: Sobre Candelario Obeso, cf. vídeo Invisibles − Candelario Obeso. Disponível em: https://youtu.be/AgouPgmeoLI. Acessado
em: junho de 2015.
14 Entre os iniciadores do movimento, alguns apontam o espanhol Alfonso Camín como o verdadeiro iniciador da poesia afro-
cubana. José Zacarías Tallet, que também desempenhou uma importância significativa, teve seu poema “La rumba”, publicado em 1928,
catalogado como um dos melhores do seu gênero. Regino Pedroso e o el panamenho Demetrio Korsi são autores negros que também
contribuíram para o início do movimento.
15 NT: Texto carente de sentido, mas dotado de valor estético em virtude da sonoridade e do poder evocador das palavras, já
existentes ou inventadas, que o compõem. Alfonso Reyes, escritor mexicano que cunhou o termo, a partir dos versos do poeta cubano
Mariano Brull, assim define jitanjáforas: “criações que não se dirigem à razão, mas sim à sensação e à fantasia. As palavras não buscam um
fim útil” (Cf. Etnologia de Jitanjáfora. Disponível em: http://etimologias.dechile.net/?jitanja.fora. Aceso em: junho de 2015).
16 GONZÁLES PÉREZ, Armando. Antología Clave de la Poesía Afroamericana. Madri: Ediciones Alcalá, 1976 , p. 89.
27
De acordo com Quince Duncan, escritor afro-costarriquenho, “os estudiosos parecem não ter captado
a gêneses de uma literatura afro-hispânica, com limites próprios, símbolos e mitos que não correspondem às
definições canônicas”17. Com efeito, autores como Pilar Barrios (Uruguai), Manuel Zapata Olivella (Colombia),
Quince Duncan (Costa Rica), Cubena (Panamá), Jorge Emilio Cardoso (Uruguai), Nelson Estupiñán Bass
(Equador), Cuti (Brasil), entre outros – e, a partir da década de 1980, a lista aumenta – têm definido essa
nova tendência denominada afro-realismo.
Conforme Duncan, “a partir de Nicolás Guillén, o ritmo e as terminologias africanas deixam de ser
elementos decorativos de nossa literatura latino-americana. Ele inicia essa corrente a partir de uma perspectiva
intraétnica, a visão desde dentro. ‘Motivos del Son’ constitui uma das maiores revoluções nas literaturas
hispânicas”18.
O afro-realismo para Duncan é uma nova expressão, que realiza uma subversão africanizante do
idioma, recorrendo a referentes míticos inéditos ou até então marginais, a reivindicação de deidades como
Iemanjá e ademais, em alguns casos, a incorporação de elementos em inglês crioulo-costenho.
Como argumenta: “Todos esses elementos não são decorativos na obra desses autores, mas centrais na
busca de identidade, reconciliação com sua herança cultural roubada, e promoção da sua etnicidade afro-
hispânica”. Trata-se de uma luta contra a ideia da diversidade étnica como um perigo nacional. Em vez disso,
essa é adotada como uma riqueza.
O afro-realismo, então, se caracteriza por pelo menos seis traços básicos:
• O esforço por restituir a voz afro-americana por meio do uso de uma terminologia afrocêntrica;
• A reivindicação da memória simbólica africana;
• A reestruturação informada da memória histórica da diáspora africana;
• A reafirmação do conceito de comunidade ancestral;
• A adoção de uma perspectiva intracêntrica;
• A busca e a proclamação da identidade afro.

O que Nicolás Guillén se atreve a fazer com a introdução de termos como “Mayombe bombe mayombé”
e “sensamayá”, defende o crítico, é uma verdadeira revolução linguística e poética nas literaturas hispânicas.
Conforme Duncan:
É um ato de subversão poética assumido por um bom número de autores a partir dos
anos 1940. Os falantes afro-latinos começam a restituir à comunidade afrodescendente a
sua própria voz. Esse novo significado transcende até mesmo o literário, quando Carlos

17 DUNCAN, Quince. El Afrorealismo: una dimensión nueva de la literatura latinoamericana (2005). Disponível em: http://istmo.
denison.edu/n10/articulos/afrorealismo.html. Acessado em: junho de 2015.
18 NT: GUILLÉN, Nicolás. Motivos del Son, 1930. In: GUILLÉN, Nicolás. Las grande elegias e otros poemas. Caracas: Biblioteca
Ayacucho, 1984. Disponível em: http://americo.usal.es/iberoame/sites/default/files/Guillen1.pdf. Acessado em: junho de 2015.
Griôs da Diáspora Negra
28
Guillermo Wilson, o romancista e poeta afro-panamenho, reclama: “Que desgraça. Ashanti
sou e me chamam Carlos” e escolhe como nome literário Cubena, na tradição Ashanti,
“homem nascido na terça-feira”.

Nesse sentido, a reivindicação da memória simbólica africana é um dos elementos mais importantes.
Ainda para Quince Duncan:
Uma parte importante da literatura latino-americana, em suas correntes tradicionais,
reivindica a perspectiva poética e narrativa eurocêntrica. Tem origem na dicotomia
civilização-barbárie, tão tradicional em nossa cultura. Essa dicotomia, herdada do sistema
colonial de castas, fortalecida e relançada pelo darwinismo social que cultivaram as elites
crioulas, chega até os nossos dias.

Como é bem sabido, o sistema colonial de castas hierarquizava por critérios étnico-raciais
aos habitantes das colônias. Inventou-se o negro para negar-lhe sua condição de iorubá,
ashanti, mandinga, bantu; e nesse ato, por contraponto, inventou-se o branco, que, apesar de
seguir sendo francês, alemão, inglês, português, tinha agora uma esfera de pertencimento
mais concentrada, já não na tradição greco-romana, mas numa categoria racial. E se deixou
bem estabelecida a ideologia do branqueamento, fazendo desejável a condição de branco e
desprezível qualquer outra. As castas não foram uma questão simbólica, definiam empregos,
a inserção de cada indivíduo na hierarquia colonial, e algumas vezes a diferença entre viver
e morrer.

Por sua vez, a reestruturação da memória histórica da africanidade da diáspora está baseada na
investigação. A memória histórica que se constrói é uma memória informada, orientada, por um lado, a
“elevar o nível de consciência histórica” e, por outro, a “desmitificá-la da grande cadeia de negociações, mitos,
omissões, vitimismos e descaradas mentiras que constituem a história oficial que se ensina em nossas escolas.
É história crítica e autocrítica, que busca humanizar e entender os fatos”.
Já a reafirmação do conceito de comunidade ancestral, o quarto elemento que caracteriza a corrente
afro-realista, é o que se pode chamar de “consciência negra universal”. “A consciência da comunidade ancestral
reivindica a totalidade tanto na dimensão geográfica quanto histórica. A comunidade não é só a nação, a
tribo ou o clã. A comunidade ancestral abarca toda a África, todo território habitado por afrodescendentes,
junto com seus feitos históricos, seus mitos e lendas”. Nesse sentido, os autores afro-realistas superam os
estereótipos para construir personagem verdadeiros. “A comunidade ancestral tem a dupla dimensão histórica
e geográfica, e abraça toda a diáspora temporal e espacialmente configurada”.
O elemento seguinte corresponde à adoção de uma perspectiva intracêntrica. “A voz que narra o faz a
partir do interior da comunidade. Não caricaturiza, conta. Não estereotipa, cria personagens”. Por fim, o afro-
realismo se dirige à busca e à proclamação da sua identidade. “De agora em diante me chamarei africano,
gritou o dominicano Blas Jiménez” – exemplifica Duncan.
29
O afro-realismo objetiva, pois, agrupar uma série de autores afro-latinos, considerando a evolução
dessa literatura, que tem em si mesma uma personalidade e uma dinâmica particulares, apesar de a academia
e os cânones tradicionais custarem lhes reconhecer. Enquadrados nessas características do afro-realismo, um
elemento de central importância é o compromisso consciente ou inconscientemente assumido pela literatura
como espaço de afirmação e singularização cultural e social.
Existe uma linha que demarca o fazer dos autores afro-latinos e que está determinada em grande
medida pelos movimentos de afirmação dos povos negros a partir da tomada de consciência de sua condição
sócio-histórica e conduz a essa preocupação com a singularização e afirmação da identidade. O resgate dos
mitos, a proximidade cultural com a África, o desejo de recuperar o valor e a marca que o continente africano
tem impresso em nossas culturas, a partir de uma perspectiva afro-latina.
No caso particular do Brasil, o discurso literário afro-brasileiro, ao tomar posição, nunca abandonou
os temas da exclusão e da marginalização. A marca da marginalidade, da linguagem fraturada, da “dupla
consciência”, nas palavras do pensador afro-estadunidense W.E.B. Du Bois19, persistiu e persiste na atual escrita
da academia, como um dos recortes mais prolíficos e controversos dos estudos literários afro-brasileiros. A
literatura afro-brasileira apresenta-se, na maioria das vezes, com um discurso que nos fala da experiência
específica dos negros no Brasil. Pode-se apontar como um grande mentor da literatura afro-brasileira o
poeta Solano Trindade (1908-1974), considerado pela crítica o primeiro autor que explorou deliberada e
sistematicamente o legado africano. Solano figura, de acordo com Nei Lopes, como “o primeiro autor negro
da poesia de temática e vivências negras no Brasil”20.
Cabe ainda registrar algumas das mulheres afro-latinas (para além das afro-brasileiras) que têm
explorado esses temas e que gostaria de destacar aqui: Cristina Ayala (Cuba, 1856-1936); Julia de Burgos
(Porto Rico, 1914-1953); Aida Cartagena Portalatin (República Dominicana, 1918-1934); Scherezada Vicioso
(República Dominicana, 1948); Angela Maria Davila (Porto Rico, 1944-2003); Mayra Santos Febres (Porto Rico,
1966); Marta Rojas (Cuba, 1931); Rafaela Chacon Nardi (Cuba, 1926-2001); Gerorgina Herrera (Cuba, 1936);
Nancy Morejon (Cuba, 1944); Excilia Saldaña (Cuba, 1946-1999).
Com efeito, a literatura dos descendentes de africanos tem se constituído como uma literatura com
características particulares e capazes de se consolidar com recursos para um novo padrão. Na América Latina,
a norma literária não reconhece numa justa medida os aportes dos escritores afrodescendentes aos cânones
literários vigentes. De fato, as antologias e os estudos de literatura latino-americana dificilmente incluem os
autores e muito menos os elementos determinantes da obra desses intelectuais.
Durante as décadas de 1970 e 1980, um crescente número de estudiosos dos Estados Unidos,
principalmente afro-estadunidenses, voltaram sua atenção para a experiência negra da América Latina.
Mesmo assim, centraram suas investigações no que eles consideraram a autêntica literatura latino-americana.
Poesia, romance e ficção de latino-americanos desses grupos marginalizados. Focando-se nos escritores

19 NT: Cf. DU BOIS, W.E.B. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda Editora, 1999.
20 LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2011, p. 658.
Griôs da Diáspora Negra
30
negros e no problema da literatura na América Latina, a crítica desses pioneiros facilitou a compreensão
da consciência negra em espaços geográficos do mundo em que a situação das comunidades negras era
silenciada ou invisibilizada na literatura.
Esse foi um período durante o qual nos Estados Unidos se abriam departamentos de Estudos Afro-
Americanos nas universidades21. Nos departamentos de espanhol, muitos professores e estudantes afro-
estadunidenses voltaram seus olhos para a América Latina. Como consequência, durante os anos 1900 e 2000,
a literatura afro-latino-americana rompeu as fronteiras nacionais e foi reconhecida muitas vezes antes nos
Estados Unidos que em nossos próprios países.

À guisa de conclusão

Se analisarmos a trajetória percorrida pela literatura escrita por descendentes de africanos na América
Latina, parece haver uma linha temática presente até hoje. A princípio, a maioria dos autores respondeu a uma
ordem de pensamento mais subordinada aos cânones eurocêntricos e tendeu em grande medida a legitimar
os padrões e cânones literários, assim como legitimar de alguma maneira a condição de subordinação das
populações afrodescendentes.

21 NT: Cf. MALDONADO-TORRES, Nelson. Pensamento crítico desde a subalteridade: os estudos étnicos como ciências
descoloniais ou para a transformação das humanidades e das ciências sociais no século XXI. Afro-Ásia, n. 34, 2006, p. 105-129. Disponível
em: http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia34_pp105_129_Maldonado.pdf. Acesso em: junho de 2015.
31
Um segundo momento é quando os autores começaram a questionar o status quo e passam a olhar para
sua própria experiência de subordinação, tratando de recuperar a identidade individual e de suas comunidades.
Isso se constituiu numa afronta às estruturas intelectuais vigentes, que lhes negam a possibilidade de entrar
nesses círculos e limitam suas possibilidades de publicação.
O terceiro momento vem de um despertar promovido em grande medida por movimentos que
transcendem as fronteiras nacionais e encontram nichos apropriados nas condições marginalidade e nos
incipientes movimentos regionais.
A história da literatura escrita por negros na América Latina é apenas a manifestação da história dos
povos negros na região. É um processo que implicou o despertar de uma consciência que havia se tentado
aniquilar por séculos. A literatura tem sido utilizada por povos da diáspora afro-latino-americana como um
instrumento de luta política e reivindicação histórica. Os autores negros, por toda a América Latina, têm
assumido um papel de porta-vozes da causa negra, como facilitadores e promotores da mudança social. Era
importante retomar a a autoestima, devolver a esperança e o autorrespeito.
Essa literatura tem estado enraizada e diretamente relacionada com valores, cultura, etnicidade dos
povos da diáspora. Esses autores entenderam que é sempre nossa responsabilidade contar nossa própria
história. Somos a voz de quem não a tem, e isso implica uma enorme responsabilidade. A restituição da
memória implica identidade. É a partir da memória e da construção da memória coletiva que poderemos
pouco a pouco devolver o protagonismo e a autoestima a nossos povos.

Griôs da Diáspora Negra


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A identidade africana e as religiões mundiais
Paulina Chiziane1

É com grande alegria que vos saúdo. Trago para vós uma grande saudação da mãe África. Vós,
afrodescendentes, sobreviveram à escravatura, enquanto nós, na mãe África, sofríamos o genocídio do
colonialismo. Hoje, nós africanos nos julgamos independentes porque o jugo colonial já não se encontra
presente de uma forma direta, mas continuamos ainda noutras lutas pela nossa libertação, tal como vós aqui
deste lado do Atlântico. A liberdade não é apenas palavra. É um ato que se vive e tem formas concretas. E nós
queremos que esse ato se concretize para todos os filhos de África, tanto para os afrodescendentes espalhados
pelo mundo.
Vim pois, de África, para dizer que A LUTA CONTINUA. Vim para debater convosco o lugar da nossa
Identidade Africana nas Religiões Mundiais, contrariando assim, a ideia colonial de que a África não conhece
Deus.

África, berço da humanidade e das religiões mundiais

Provam os cientistas que o continente africano é o único lugar do mundo onde se encontram todos os
indícios da evolução da espécie humana. Os avanços tecnológicos da humanidade começaram em África:
agricultura, pecuária, metalurgia, arquitetura, engenharia, urbanização, organização política, medicina,
intelectualidade entre outros2.
Abrindo o Antigo Testamento, da Bíblia Sagrada, a África é referenciada nas primeiras páginas do
livro de Gênesis, mostrando, de forma inequívoca, o lugar do continente africano no desenvolvimento das
religiões mundiais.
Foi no Egito que Abraão e a sua bela mulher Sara, ao fugir da fome do seu país, tiveram a generosa
oferta do faraó que os tornou ricos em rebanhos, ovelhas, bois, jumentos, servos, servas, camelos, prata e ouro
(Gênesis 12: 10-18). Foi no refúgio do Egito que os hebreus encontraram sobrevivência e escravatura.
Foi no Egito que nasceu Moisés, um dos maiores precursores da intelectualidade e da religiosidade
universais. Educado como um príncipe, pela filha do faraó, desenvolveu a sua personalidade e intelectualidade,
tornando-se o primeiro escritor da Bíblia Sagrada, o livro mais lido de todos os tempos. Foi em África, no

1 Escritora moçambicana. Autora de contos e romances, publicou entre outros livros: Balada de Amor ao Vento (1990), Ventos do
Apocalipse (1993), Niketche: Uma História de Poligamia (2002, publicado no Brasil em 2004), Por Quem Vibram os Tambores do Além
(2013), e Ngoma Yethu: O curandeiro e o Novo Testamento (2015). E-mail: chizianepaulina@gmail.com.
2 KI ZERBO, Joseph. História de África Negra, volume 1. Lisboa : Europa-América, 1972.
Griôs da Diáspora Negra
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Monte Sinai, no Egito, onde ele ouviu a voz de Deus, inspirando-o a escrever os Dez Mandamentos da Lei
de Deus, um dos maiores pilares do cristianismo. Portanto, a primeira grande aparição da luz de Deus foi no
continente africano. Isso nos leva a concluir: foi do ventre de África que nasceu o grande embrião de uma das
maiores religiões universais, o cristianismo.
Foi do ventre de uma africana de nome Agar, uma escrava egípcia, que nasceu Ismael, primogénito
de Abraão (Gênesis 25: 12), hoje conhecido como o pai da nação árabe, que muitos anos depois viria dar
linhagem ao surgimento de Maomé, profeta do Islã3. Isso também nos leva a concluir: do ventre da África,
também germinou o islamismo.
Depois de todas essas análises, resta-nos agora perguntar: o que é que aconteceu para a África ser
remetida às trevas? Como é que o mundo ignora hoje a contribuição africana no surgimento das Religiões
Mundiais?
O cristianismo em África não é um acontecimento recente, nem muito menos subproduto
do colonialismo – as suas raízes remontam ao próprio tempo dos apóstolos. […] A igreja já
tinha florescido na margem setentrional daquele continente, durante seiscentos anos antes
do nascimento do Islão. Naqueles dias, o Egipto e o norte de África, com os seus teólogos,
Santo Agostinho e Santo Atanásio eram os pilares da Igreja4

A diabolização dos africanos pelas religiões mundiais

Como vimos, as religiões mundiais tiveram a sua gênese no nosso continente. O cristianismo em África
tem mais de 2.000 anos, tendo começado no tempo dos apóstolos. De onde vem, então, a diabolização dos
africanos?
Durante a Inquisição Católica Romana, em nome de Jesus Cristo, a igreja matava e castigava os
considerados “hereges”, os judeus, as bruxas e os que praticavam a medicina pelas plantas. A inquisição
chegou à África com a invasão colonial e, a partir de então, todas as nossas práticas foram consideradas
heréticas. Para melhor compreender esse fenómeno, analisemos alguns casos.

O caso Simon Kimbangu

Nasceu em Nkamba, Zaire, em 12 de setembro de 1887 e morreu em 10 de outubro de 1951. Diz-se


que possuía dons espirituais semelhantes aos de Jesus Cristo. Não teve educação formal por ser africano.

3 AMINUDIN, Sheik Mohammad. Muhammad − O Mensageiro de Deus. São Bernardo do Campo: Editora Makkah, 2011.
Disponível em: http://www.islambr.com.br/index.php?option=com_docman&task=doc_details&gid=38&Itemid=125. Acesso em: junho de
2015.
4 BAUR, John. 2000 Anos de Cristianismo em África – Uma História da Igreja Africana. Lisboa: Paulinas, 2002.
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Recebeu apenas a catequese na Sociedade Missionária Batista, que o batizou em 1915. Viveu num ambiente de
colonialismo muito severo, que se assemelhava ao genocídio. Foi nesse tempo que teve o chamamento divino
para a cura e a pregação. Mesmo reconhecendo os seus dotes, foi rejeitado pela igreja por ser considerado
analfabeto. Perante a rejeição, abandonou a missão e fundou a Igreja Kimbanguista5.
Realizou prodígios. Tinha a fama de curar os doentes e ressuscitar os mortos. Por isso o povo o
chamou de o “profeta”. Na sua pregação, Kimbangu expressava amor a Deus através da mediação africana;
questionava a mediação e a autoridade dos missionários belgas. Rejeitava a violência contra a África e apelava
à consciência negra. Mostrou ao mundo uma nova forma de orar; mostrou que há um lugar para os africanos
no Reino de Deus. A polícia colonial considerou-o perigoso, seguindo o catálogo da inquisição europeia.
Para eles era um reformador, bruxo, um herege, que praticava o sincretismo e punha em causa o cristianismo
colonial, misturando a santa doutrina cristã com as práticas diabólicas africanas. Foi condenado à pena de
morte, comutada para trinta anos na prisão. Morreu no total isolamento, mas a sua doutrina vingou. Hoje,
conta com milhões de seguidores em vários países africanos.

O caso Arcebispo Milingo

Emmanuel Milingo nasceu em 1930, na Zâmbia. Aos 39 anos, foi consagrado pelo Papa Paulo VI como
Bispo da Arquidiocese de Lusaka. Na década de 1970, Milingo realizou serviços religiosos públicos de cura
e exorcismo que atraíram multidões. O clero europeu começou a criticá-lo por usar elementos da tradição
africana em suas sessões de cura. Em 1974, os missionários mandaram uma carta de queixas contra ele a
Roma, de onde ele recebeu ordens para parar essas atividades. Foi chamado a Roma e submetido a uma
longa inquirição e recebeu do Papa João Paulo II permissão para continuar suas sessões de cura na Itália,
onde se tornou uma celebridade. Em 1997, um arcebispo de Milão proibiu-o de fazer essas sessões dentro da
sua diocese. Gerou-se a desconfiança de que era possuído africano, e por isso, diabólico. Em 2009, o Vaticano
reduziu-o ao estado laico, ficando definitivamente afastado do clero católico6.
Com esse caso vemos como os espíritos africanos são associados ao diabo. A função do diabo é desviar,
matar, conduzir à perdição, mas Milingo curava e salvava. Teve o azar de ser africano. Se não fosse, os seus
espíritos poderiam até ter sido considerados santos.

5 Encyclopædia Britannica, verbete: Simon Kimbangu. Disponível em: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/317913/


Simon-Kimbangu. Acesso em junho de 2015. Cf. MAZRUI, Ali A. “Procurai primeiramente o reino político...”; e TSHIBANGU, Tshishiku;
AJAYI, J. F. Ade; e SANNEH, Lemim. Religião e evolução social. In: MAZRUI, Ali A. e WONDJI Christophe (eds.). História Geral da
África, VIII: África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010, p. 125-149 e p. 605-629.
6 Vatican Excommunicates Zambian Archbishop Emmanuel Milingo. Disponível em: http://www.religionnewsblog.com/16053/
emmanuel-milingo-excommunicated. Acesso em: junho de 2015. Cf também: Dom Emmanuel Milingo é demitido do estado clerical.
Disponível em: http://www.infosbc.org.br/portal/index.php/sancoes/1212-dom-emmanuel-milingo-e-demitido-do-estado-clerical. Acesso
em: junho de 2015.
Griôs da Diáspora Negra
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O Caso Shembe
Isayah Shembe viveu de 1870 a 1935. Nasceu numa família Zulu, na África do Sul. Em 1910, iniciou um
ministério focado em cura e profecia, e criou a Igreja Nazaretha. Além de ensinar e curar, ele foi compositor
dos hinos zulu e danças sagradas; criou trajes rituais, desenvolveu o seu calendário litúrgico; estabeleceu
normas dietéticas para os crentes. Não considerava a Bíblia como sua única fonte de sabedoria divina.
Criou uma versão africana da religião. Sobreviveu à perseguição do apartheid e de outros grupos
religiosos que tentaram silenciar o seu movimento. A sua religião, que continua a crescer, tem representações
na África do Sul, Swazilandia, Zâmbia e Moçambique. Só na África do Sul, possui mais de 4 milhões de
seguidores.
Diz um dos seus reverendos: “a nossa congregação é a primeira que, quando os missionários vieram
do exterior, tentando mudar e tentar forçar as pessoas a abandonar a sua cultura e tradição, nós resistimos.
Continuamos a adorar a Deus com nossa própria cultura e tradição”7.

***

Os três casos expostos levam-nos às seguintes reflexões:

• As religiões mundiais são intolerantes à identidade africana, que sempre combateram com a aju-
da dos regimes políticos. Dois mil anos de cristianismo em África não produziram figuras africanas de
relevo no clero em nenhuma das religiões mundiais.

• Milingo foi expulso do seio da igreja para impedir o desenvolvimento do profetismo africano.

• Kimbangu foi encarcerado por trinta anos até à morte pelos belgas. Precisou afastar-se da igreja
colonial para criar algo de novo e hoje é uma referência no apostolado africano.

• Shembe também se afastou da igreja formal e criou uma igreja com identidade africana. Deu ao
mundo o exemplo de que África tem muito para dar no desenvolvimento da teologia e da filosofia, e deve
lutar para conquistar um lugar de dignidade dentro da religião.

• Os grandes pilares das religiões universais tiveram gênese no continente africano, bastando fo-
lhear os primeiros capítulos da Bíblia Sagrada para confirmar que é em África onde tudo começa.

• Na chegada do colonialismo em África, houve uma repressão severa às instituições religiosas


tradicionais, bem como aos seus representantes, os curandeiros8 e os régulos, que resultou em mortes,
deportações e prisões.

7 Dicionário de Biografias Cristãs na África. Disponível em: http://www.dacb.org/stories/southafrica/shembe_isiah.html. Acesso


em: junho de 2015.
8 Curandeiros – oficiantes da religião tradicional, médicos tradicionais.
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Colonialismo e cristianismo

O espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a boa nova aos
pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da
vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do
Senhor (Lucas 4: 18-19).

Como podemos ver, os ideais de Jesus Cristo são de liberdade para todos os oprimidos e a restituição
da vista aos cegos. O que aconteceu então com a chegada do colonialismo em África? O cristianismo colonial
ignorou completamente as recomendações do mestre Jesus, de liberdade e bem-estar dos povos. No lugar da
liberdade proclamada por Jesus Cristo, a religião trouxe a cegueira, a opressão, a escravidão e a colonização.
Destruiu a identidade, o nome, a religião e a cultura dos povos africanos. Nas novas religiões, o divino, os
anjos e os santos eram representados com a raça branca e o diabo com a raça negra. Como consequência, o
negro começou a ver o diabo como a si mesmo. Batizado com os nomes dos opressores, deixou de ser ele
próprio.
A relação de dependência entre o evangelizador europeu e o evangelizado africano gerou inferioridade
espiritual dos evangelizados. Ainda hoje, as lideranças das igrejas em África continuam a vir dos países
poderosos, quase sempre de raça branca ou de pele mais clara, perpetuando a ideia de que, quanto mais clara
for a cor da pele, mais próximo está da perfeição divina. Uma das consequências disso é: um africano com
um diploma europeu tem prestígio e estatuto social. A sabedoria aprendida nas raízes africanas tornou-se
vergonha e desprestígio. Podemos dar o exemplo concreto dos curandeiros (aqui, pai ou mãe de santo), que
têm muitos anos de aprendizagem e experiência em academias africanas, e mais tarde são diabolizados e
marginalizados.
As igrejas mais antigas começam a compreender o erro histórico cometido contra a identidade africana,
mas as mais recentes chegam à Africa com o estigma colonial e intolerância, praticam um evangelização
agressiva, colonial, diabolizando e destruindo a identidade africana.

O que a África pode dar ao mundo?

A arte divinatória, cada vez mais marginalizada na era moderna, desempenhou um papel muito
importante em toda a humanidade. Muitas sociedades desenvolveram identidades, religiões, sabedoria e
filosofia a partir da linguagem dos oráculos. A China desenvolveu a sua filosofia a partir do sistema I Ching.
A sabedoria do povo yoruba reside nas tábuas de Ifá. A astrologia, os signos de Zodíaco, que nos trazem
os horóscopos que consultamos nas revistas, jornais e internet de todo o mundo. Foi dessa necessidade de
estudar a alma humana, e na crença do poder do sagrado número três que se desenvolveu a trigonometria,
tendo no matemático Pitágoras o seu representante máximo. A crença dos alquimistas contribuiu para o
desenvolvimento da química moderna.

Griôs da Diáspora Negra


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Entre nós, africanos e afrodescendentes, existem vários sistemas de adivinhação, usados para fornecer
respostas aos anseios mais profundos do ser humano. Uma sessão de adivinhação é um momento sagrado,
religioso, de arte, um ritual que se faz num ambiente requintado. Através do adivinho, o cliente escuta as
filosofias divinas. A linguagem do adivinho é complexa, densa, poética, metafórica. A sessão é intermediada
de sons e cantos. O adivinho fala e o paciente responde, numa linguagem ritmada.
Com essas referências, pretendo levantar os seguintes pontos de reflexão: se a arte divinatória
contribuiu para o desenvolvimento de várias ciências europeias, entra elas a filosofia, a psicologia, a química,
a matemática, com destaque para a trigonometria, por que é que as Igrejas Mundiais que operam em África
lutam por eliminar essas artes? Não estarão a matar esse embrião da sabedoria? Não estarão a temer o
desenvolvimento de novas ciências a partir da cultura africana?

Algumas conclusões

• A África é o berço das grandes religiões mundiais.

• O cristianismo colonial afastou-se dos ideais de Jesus Cristo, ao remeter a África à escravatura e
ao colonialismo, e a religiosidade africana ao diabólico. Através dos casos dos três profetas, Kimbangu,
Milingo e Shembe, pudemos ver como as igrejas mundiais reprimem a identidade africana.

• É preciso ensinar os africanos a ter orgulho do seu passado e da sua história, que é
propositadamente omitida no processo de evangelização. É preciso criar uma consciência africana da re-
ligião, para que sejam os próprios africanos a lutar para reconquistar o seu lugar que lhes foi usurpado na
história.

• É preciso reabilitar o saber das tradições africanas a fim de se criar uma teologia mais humana e
mais inclusiva, livre da intolerância trazida pelo cristianismo colonial.

• É preciso reanalisar as práticas do cristianismo atual, de modo a revolver os resíduos do colonia-


lismo, que afetam o desenvolvimento da identidade africana.
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Griôs da Diáspora Negra


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Ressurgir das cinzas
Esmeralda Ribeiro1

Sou forte, sou guerreira,


tenho nas veias sangue de ancestrais.
Levo a vida num ritmo de poema-canção,
mesmo que haja versos assimétricos,
mesmo que rabisquem, às vezes,
a poesia do meu ser,
mesmo assim, tenho este mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão”.
 
Sou destemida,
herança de ancestrais,
não haja linha invisível entre nós,
meus passos e espaços estão contidos
num infinito tonel,
mesmo tendo na lembrança jovens parentes que,
diante da batalha, deixaram a talha
da vida se quebrar,
mesmo tendo saudade cultivada no portão,
mesmo assim, tenho este mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão”.
 
Sou guerreira como Luiza Mahin,

1 Escritora, jornalista e integrante do Quilombhoje desde 1982. Tem atuado no sentido de incentivar a participação da mulher negra
na literatura. Publicou o livro de contos Malungos & Milongas, em 1988. Tem poemas e contos publicados em diversas antologias no Brasil
e no exterior. E-mail: blackesme@yahoo.com.br.
Griôs da Diáspora Negra
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Sou inteligente como Lélia Gonzalez,
Sou entusiasta como Carolina Maria de Jesus,
Sou contemporânea como Firmina dos Reis
Sou herança de tantas outras ancestrais.
E, com isso, despertem ciúmes daqui e de lá,
mesmo com seus falsos poderes tentem me aniquilar,
mesmo que aos pés de Ogum coloquem espada da
injustiça
mesmo assim tenho este mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão”.
 
Sou da labuta, sou de luta,
herança dos ancestrais,
trabalhar, trabalhar, trabalhar,
mesmo que nos novos tempos irmãos seduzidos
pelo sucesso vil me traiam, nos traiam como judas
sob a mesa, e tirem meu, seu, ganha-pão.
Mesmo que esses irmãos finjam que não nos vêem,
estarei ali ou onde ele estiver, estarei de corpo ereto,
inteira, pronunciando versos e eles versando sobre o poder,
mesmo assim tenho este mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão”.
 
Me abraço todos os dias,
me beijo, me faço carinho, digo que me amo, enfim,
sou vaidosa espiritual,
mesmo com mágoas sedimentadas no peito,
mesmo que riam da minha cara ou tirem sarro do
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meu jeito,
mesmo assim tenho esse mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão”.
 
Fortaleço-me com os ancestrais,
Fortaleço-me nos braços dos Erês.
Podem pensar que me verão caída ao chão,
saibam que me levantarei
não há poeiras para quem cultua seus ancestrais,
mesmo estando num beco sem saída,
levada por um mar de águas,
mesmo que minha vida vire uma maré,
vire tempestade, sei que vai passar.
porque são meus ancestrais que se reúnem num
ritual secreto para me levantar.
Eu darei a volta por cima e estarei em pé, coluna
ereta, cheia de esperança, cheia de poesia e com muito
axé.
Por isso, desista, tenho este mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão”.

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O fio d’água do quilombo
Questões antropológicas, resposta literária para o leitor juvenil
Heloisa Pires Lima1

Como cruzar três perspectivas – memória, política e sustentabilidade para uma reflexão acerca da
história afro-latina-americana e caribenha? O desafio foi lançado pelo Festival que elegeu o tema Sabedoria
Ancestral para uma mesa em sua sétima edição.
Para tentar respondê-lo não há como não prevalecer o ângulo de meu próprio percurso como
antropóloga na travessia entre o século XX e o XXI; e também de contadora de histórias, por escrito, que
prioriza o leitor criança e adolescente. É hora, então, de chamar a atenção para o momento anterior à escrita.
Alguns o nomeiam inspiração. O fenômeno é tão sutil que a explicação para a ocorrência alega a existência
de espíritos, revelação de ordem divina ou da alma e, quiçá, agudeza de entendimento.
Dias desses, em outra mesa com a escritora Heloisa Prietro, ela contribuía para escapar um pouco dessa
nuança, recolocando a inspiração como processo de conversa entre autores sobre determinado tema. Por esta
via, seria uma elaboração bem mundana, resultante da sensibilidade do captador que dá forma artística a
algum argumento cultural em circulação. Naquele momento achei melhor não cristalizar a percepção. Mas
logo tive um caso excepcional para aproximar as lentes. Ele inicia não sei bem se na escama do peixe que
seguiu para o quilombo da beira do rio no Amazonas. Ou, se nas folhas das tantas árvores que atraíam
minhas vistas ou me levavam com sua brisa para um tempo desconhecido e familiar. Talvez no som da roda
de dança da geração que estudava na escola amazônida. O calor era intenso e foi determinante para ocorrer
a aparição.
O fato é que eu estava ali encalorada quando a moça sentou ao meu lado. Após um tanto de conversa
esparsa, ela fala de pessoas levadas para o fundo do rio. O ouvido antropológico, que é curioso por ofício,
eriçou a atenção. A princípio, parecia mais uma narrativa sobre as iaras tão presentes no imaginário do norte
do país. Aliás, não somente. O conteúdo tem um quê de universal. As ninfas, parte humanas, parte seres
míticos, nadam, de braçada, na imaginação atraída por lendas perdidas em geografias. Dessa vez, no entanto,
a surpresa minha foi enorme por um detalhe no repertório. Águida, este é o nome da informante do acaso,
detalhou que, entre os desaparecidos, há os devolvidos. Eles são encontrados na margem cobertos por uma
folhagem. Então se tornam curandeiros extraordinários.

1 Doutora em Antropologia Social pela USP, escritora de livros infanto-juvenis e responsável pela criação da Selo Negro Edições,
do Grupo Summus Editoria. É autora de vários livros, entre os quais se destacam: Histórias da Preta (1998), A semente que veio da África
(2005), O marimbondo do quilombo (2010) e O coração do baobá (2014). E-mail: heloisapireslima@gmail.com.
Griôs da Diáspora Negra
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A notícia que chegava foi tão impactante, e conto logo por quê. Eu já conhecera uma narrativa muito
semelhante quando realizava pesquisas para o livro por mim organizado, A Mbira da Beira do Rio Zambeze2.
A proposta apresentava a sociedade Xona, ao sul do continente africano, para o leitor brasileiro. E, tanto lá
como cá, os devolvidos das águas vinham à tona com folhagens mágicas que fazem nascer o extraordinário
curandeiro.
Bem, em plena floresta amazônica, eu estava na Comunidade Quilombola de Nova Vista do Ituqui,
Santarém, Pará. E foi inevitável realizar uma ligação entre regiões tão distantes e de rara comunicabilidade.
Digo isso porque, mesmo quando referimos uma origem africana, cuja história quilombola imediatamente
alude, temos alguns vínculos mais assíduos: o universo iorubá, advindo do noroeste africano, e o banto, quase
sempre reduzido às lusofonias, em especial Angola e Moçambique. Todavia, o que é famoso ou popular no
Brasil acerca dos conteúdos culturais Xona?
A efêmera visita tinha provocado um insight fabuloso. Voltei a examinar as anotações da investigação
anterior, reconhecendo no material elementos, surpreendentemente, indicativos de mesma estrutura narrativa.
Em ambos, o nascer e renascer, o fim que faz surgir aquele que cura e as plantas são as partes relacionadas à
epifania. Na sociedade Xona, aquele que se tornará o curandeiro extraordinário traz o mushonga, uma cesta
cheia de folhagens medicinais mágicas. Todos esses conteúdos giram em torno da figura mítica denominada
Njuzu, figura tradicional da literatura oral Xona.
Além de assumir a aparência de seres humanos, disfarçada como mulher encantada, a Njuzu pode ter
a forma de uma cobra ou de um crocodilo. Porém, o Xona acredita ser um espírito das águas. Guardiã de
sua pureza, a Njuzu só habita as águas límpidas. Se deixam de ser é porque ela dali já se retirou. Seu zelo
pela limpeza é tanto que, se um ribeirinho for apanhar água com um pote sujo, pode ser engolido por ela.
Dizem que, da mesma forma, ela não gosta de barulho. Conforme os ruídos vão aumentando, chegando
perto, ela some e deixa de proteger o lugar. E quando isso acontece, o ar fica pesado e aparecem nuvens
escuras, ventos terríveis e uma chuva que destrói tudo pela frente. É esse espírito imaculado que faz com que
os riachos onde Njuzu costuma viver sejam consagrados. Mas a história continua. Aquele que é levado para
as profundezas a seguirá desejoso dessa espécie de sereia africana. Porém, logo ele conhecerá sua face dura e
rigorosa. Por semanas, o sujeito terá de comer lama escura, todo tipo de inseto aquático e o peixe cru que ela
oferecer. Sob suas ordens, terá de aprender tudo sobre pedras, animais ou folhagens submersos. Ela ensinará
e, se o aprendiz for educado e aplicado, conhecerá ainda outra face da Njuzu. É quando ela se tornará muito
gentil e trará iguarias das mais deliciosas para ele saborear. E assim o tempo passará, até o dia em que ela
devolverá para a beira do rio aquele que escutou seu canto e submergiu. O devolvido será visto flutuando
num entrelaçado de fibras na superfície. Logo ele poderá tomar o rumo de volta à sua antiga morada. Graças
ao poder das substâncias da cesta mushonga, aquele que conheceu Njuzu começará uma nova vida ajudando
muitas pessoas. Ele se tornará um grande n’anga, ou seja, o mais extraordinário dos médicos, um grande
curador ou curandeiro.

2 GIOIELLI, Décio e LIMA, Heloisa Pires (org.). A Mbira da Beira do Rio Zambeze: canções do povo Xona inspiram
crianças brasileira. São Paulo: Salamandra, 2007.
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Certamente, o caso instigava aprofundamento investigativo nas duas cenas culturais. Todavia, elaborar
um projeto antropológico, obter sua aprovação institucional, ir a campo, tudo isso demanda um tempo que
não é o mesmo da ansiedade revelada pela circunstância. Como dar sobrevida ao dado? Como não perdê-lo
de vez? O jeito é acreditar que disseminar a eventual possibilidade possa encontrar alguém que se empenhe
em persegui-lo.
Mas eu utilizei outro atalho tão bem conhecido por mim: a resposta literária. Fruto de uma súbita
percepção foi possível costurar o causo a uma rede de fatos, ideias e conexões na obra que recebeu o título
O fio d´água do quilombo: uma narrativa do Zambeze no Amazonas?3 Convidei, então, Águida Maria Araújo de
Vasconcelos para recontar o que havia narrado no quilombo da Amazônia enquanto eu comia o peixe. Ela
assina um dos capítulos, assim como a psicóloga paraense Willivane Ferreira de Melo, que apresenta os
quilombos nessa região.
A divisão da autoria sossega, um pouco, o coração. Ela é uma tentativa de realizar, de fato, a troca que
ocorre no encontro: um tanto de cá vai pra lá e outro vem pra cá sem a funesta hierarquização entre as partes.
E assim tínhamos um roteiro para falar sobre as memórias de certas Áfricas em circunscritas Américas.

Quilombo como olho d’água de memórias

Do episódio até a confecção do livro, a partir da relação complementar que fomos construindo,
perfilamos a categoria quilombo para ser percebida como presença africana na América. O tema carece de
produções voltadas para a juventude do país. E, já que a vida tem me colocado no coração de algumas
áreas quilombolas, no Brasil São Paulo, Goiás, Ceará, Pará e além de nossas fronteiras Guiana e Martinica e
Guadalupe , há como contribuir com a informação. Embora tenham sido vivências de passagem, o conjunto
de eventualidades assegura percebê-las como espaços para fazer lembrar a liberdade extraída da pedra dura.
Não importa quão difícil seja uma circunstância, a referência quilombo ensina sobre o desejo de romper,
mudar e criar estratégias para defender a esperança alcançada na reconstrução. O tratamento historiográfico
clássico tratou-o como “lugar de negros fugidos”, uma semântica que embute significados. Pois, quem foge
não enfrenta.
Hora de exercitar outras formas de perceber essa história, ou seja, de abordá-la. O motivo atrelado ao rio
Zambeze apontou para um breve repassar sobre o termo ainda em África e nessa região a grafia kilõbu aparece
como substantivo masculino no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, assinado pela Academia das
Ciências de Lisboa. O foco lexicográfico da língua portuguesa intencionado na obra indica que seria um
vocábulo quimbundo, uma das línguas banto em África, sendo traduzido como “povoação”.

3 LIMA, Heloisa Pires; MELO, Willivane Ferreira e VASCONCELOS, Águida. Maria. O fio d’água do quilombo: uma
narrativa do Zambeze no Amazonas?. São Paulo: Editora Prumo, 2012.
Griôs da Diáspora Negra
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O pesquisador português José Capela trata de povoamentos no vale do Zambeze (aringas, mussito)
caracterizados como fortificados em relatos a partir do século XVIII4. Ele os distingue de outros povoados. Tais
informações levam a pensar a respeito da dinâmica de ocupação e exploração da região africana. A violência
atribuída ao estrangeiro é bem conhecida, mas rara é a problematização quanto a sua unilateralidade. É
certo que o modus operandi europeu utilizou tecnologia armamentícia em relações de força nada equivalentes.
Sobretudo pela posição do estrangeiro súdito do rei que buscava a apropriação de territórios e a ampliação da
soberania. Porém, o ponto de vista de muitos contadores dessa história construiu a imagem do “conquistador”
que chegava ocupando o território e submetendo os que nele habitavam. Uma observação mais pausada, no
entanto, o avista submetido a uma série de circunstâncias políticas e de logística expedicionária, além de se
encontrar sob o olhar dos habitantes locais, com os quais teve de estabelecer negociações de toda a ordem. Na
profundeza do continente, a invasão inesperada ou ao longo de muito tempo também tinha suas lógicas de
defesa e reorganização dos locais. José Capela demonstra em seu trabalho que os quilombos fortificados do
Zambeze, durante décadas, resistiram à ocupação bélica dos estrangeiros.
Esse aspecto vem na perspectiva dos novos ângulos para perceber novas dimensões do problema. A
noção de quilombo, seus significados imbricados em outras terminologias, no tempo e ainda em África amplia
a vista para seu curso no continente americano. Chamando a atenção para os povoamentos fortificados, a
tecnologia da defesa direciona a compreensão se teriam deixado de existir após a travessia pelo mar. Então,
se no Zambeze há contornos do poderio de fogo e a capacidade de organização das povoações negras
fortificadas, por que o embate cessaria na inversão dos continentes? E quando atinamos sobre a entrada
de africanos na América, é preciso não esquecer que desde 1575 há notícias de mocambos no cenário da
instalação portuguesa nas praias fatiadas em capitanias. Isso quer dizer que o embate entre a prática de
escravizar e o de armar redutos para não se deixar escravizar foram estratégias de uma mesma dinâmica.
Basta rever na história brasileira o dado: onde tem engenho, tem quilombo.
Os então chamados mocambos oferecem o exemplo maior em Palmares. Essa sociedade floresceu entre
o final do século XVI e meados do XVIII, na capitania de Pernambuco, então pólo de engenhos de açúcar.
O pesquisador Flávio Gomes argumenta que os africanos recém-chegados que logo conseguiam escapar
já deviam ter ouvido falar de Palmares5. Na África centro-ocidental desse período, esse autor afirma que,
especialmente entre os reinos de Ndongo, Matamba e Cassange, diferentes grupos africanos podiam tanto
cooperar quanto guerrear com os portugueses e holandeses. Esse detalhe não apenas pressupõe a existência
de uma rede de comunicação entre a serra e o litoral, como também faz supor que as notícias de Palmares
deviam viajar de volta até a África.
Há muita informação sobre os palmarinos nos relatos dos próprios militares insistentes em desarticulá-
los. E Palmares não era uma localidade apenas. Ao longo dos anos foram sendo formados diversos núcleos que

4 CAPELA, José. Como as aringas de Moçambique se transformaram em quilombos. Tempo, v. 10, n. 20, jan. 2006, p. 72-
97. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tem/v10n20/05.pdf.
5 GOMES, Flávio. Palmares. São Paulo: Contexto, 2005
49
se articulavam entre si. No ataque derradeiro, foram relacionados dezenove deles. Cada um tinha um nome,
mas o conjunto era chamado Ngola Janga, e havia a capital, o centro político e administrativo onde residiram
seus famosos líderes: Ganga Zumba e Zumbi. E já apareciam mocambos palmaristas além do Sergipe, nas
capitanias da Paraíba e do Rio Grande do Norte.
Para compreender a habilidade em manter uma estrutura avessa à ordem da mais importante capitania
da época, é preciso considerar as estratégias de defesa, seja durante os deslocamentos de um mocambo para
outro, seja na manipulação do território ao redor. Fossos e estrepes, por exemplo, eram técnicas militares
africanas de defesa conhecidas pelos exércitos portugueses e por outros europeus ao longo dos séculos XVI,
XVII e XVIII ainda em África. Aqui, o estrepe era uma arma, uma espécie de estaca pontiaguda de madeira,
posta em fossos e que atravessava o corpo daquele que sobre ela caía de maneira fatal. Veja a descrição do
antigo manuscrito de Jean Blaer: “Chegamos à porta ocidental de Palmares, que era dupla e cercada de duas
ordens de paliçadas, com grossas travessas entre ambas, arrombando-a e encontramos do lado interior de um
fosso cheio de estrepes em que caíram ambos os nossos cornetas”6.
A demografia palmarina abarcou 50 mil habitantes com trajetórias culturais variadas, parte de um
quebra-cabeça ainda para os dias de hoje. Mas Palmares não é um caso isolado. A transferência africana
entre os séculos XVI e XIX tornou trágicas as indagações do tipo “de onde viemos?”, tão existenciais para
a humanidade negra descendente dessa história. Sobretudo por sua indeterminação, há um elo perdido
e incógnito nas procedências incertas dos afrodescendentes. Essa África genérica, tornada homogênea
pela nossa ignorância, necessita ser mais bem delineada no século XXI. É urgente dar contornos às faces
africanas, atribuir-lhes identidades em seu dinamismo e variedade. Sobretudo porque a origem continental
negro-africana é parte da identidade brasileira. E refletir sobre como a desqualificação que acompanha sua
invisibilidade impacta sobre todos nós. Somente a pesquisa que revele a densidade dos encontros culturais
que nos formaram poderia agir como um remédio para a memória de si mesmo.
E aí, os pequenos detalhes têm muito a revelar acerca de eventuais relacionamentos entre certas Áfricas
e certos Brasis. Um instrumento musical, uma receita de comida, uma forma de canto, uma arma de luta, um
vocábulo, um penteado, etc., e uma narrativa oral podem ser pontos de partida. Pequenos olhos d’águas que
em fios seguem para o mar aberto do saber.

A expressão literária politicamente dimensionada

A política como arte articula a esfera da nação com a dos nacionais. E a literatura como meio de
entendimento do mundo e da vida, ao criar pontos de vista para a mesma paisagem, nunca é neutra. Não é
o todo da confecção, mas o narrador que conduz as questões que a autoria decidiu embutir na abordagem
para o repertório. E a conversa com uma faixa-etária especial pede acerto. No raso é uma investigação com a

6 Diário da viagem do capitão João Blaer aos Palmares em 1645. In: CARNEIRO, Edison. O quilombo dos Palmares. São
Paulo: Cia. Editora Nacional, 1938 (Col. Brasiliana, v. 302.), p. 256.
Griôs da Diáspora Negra
50
linguagem, com a estética que estabelece a arquitetura da obra. Porém, a densidade se dá no vínculo interno
com uma verdade.
O caso do livro aqui apresentado, no fundo, mostra a forma literária encontrada pelas autoras para
mergulhar no assunto dos quilombos trocando a visão genérica pela observação de um pormenor caudaloso.
Por que duas narrativas resguardadas por dois rios tão distantes mantêm tanta semelhança?
Eu estava na comunidade. A visita acontecia por um motivo educacional literário acabando por
mediar o sotaque cultural na escuta da antropóloga. Mesmo não realizando pesquisa formal, eu estava ali
posicionada em meio aos processos de reconhecimento jurídico dos territórios quilombolas. Todavia, todo
esse espectro tinha sua dimensão no debate acerca do acesso à produção editorial para o público jovem.
Basta levantarmos quantas são as vozes quilombolas que circulam nos acervos que fazem parte de nossas
bibliotecas? Presença essa insuficiente nos circuitos dirigidos a crianças e adolescentes. Autorias, e não
apenas temáticas, dimensionam estratégias fornecedoras de elementos para o imaginário. O ponto de vista é
fundamental.
O tema quilombo também facilitou tratar a percepção do elo identitário com a África, tão perdido. Mas
a preciosidade literária estava na oralidade específica em duas regiões à margem de dois rios. Por isso, sem
a iniciativa de Águida Vasconcelos, que assina a obra O fio d´água do quilombo, não haveria obra alguma. Ela
é oriunda da Comunidade Quilombola de Nova Vista do Ituquí. Formada em Pedagogia pela Universidade
Federal do Pará, com especialização em História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, é militante do Movimento
Negro e atuou como professora entre 1991 e 2007. Hoje está fora da sala de aula e está na Coordenação de
Educação e Diversidade Étnico-Racial, na Secretaria Municipal de Educação. Também é Coordenadora do
Grupo de Mulheres Quilombolas das Comunidades Quilombolas de Santarém. Eu não a conhecia e muito
menos o seu currículo. Mas a descobri quando ela se revelou majestosa. E com que propriedade ela narra
a memória da menina que desapareceu e reapareceu curandeira. No detalhe, ela conta sobre o murare, a
vegetação que cobre o corpo do encontrado. A experiência é próxima, pois, a certa altura do texto, ela escreve:
“Eu, que escrevo esta história, levei minha filha mais velha para dona Tapuia benzer e curar de quebranto”.
Águida tem uma outra vivência com o quilombo, é quem sabe, é quem vive o lugar e é de dentro
daquele coração que ela fala. E me faz compreender que o direito de autoria, envolvido o conhecimento,
sobrepõe mais uma questão fundamental às anteriores. As comunidades mais isoladas culturalmente quanto
ao acesso à produção de livros possuem um patrimônio cultural. Houve um tempo em que se roubavam
imagens, histórias, sabedorias sem mínimas atitudes voltadas para informar a intenção. O registro é louvável,
mas a postura ética frente ao registro mais ainda. Essa sempre foi uma questão cara à Antropologia, cuja
área se edifica em torno do intercultural. Mas eu a mantenho na mochila quando o envolvimento se dá com
projetos literários. De alguma forma, a permuta com equidade é politicamente a perspectiva de garantir o
acesso à produção do livro com um saber local.
Por outra via, em minhas andanças por áreas quilombolas sempre me deparo com bibliotecas, que nas
últimas décadas tem sido disponibilizadas aos leitores. Por muito tempo, eu não encontrava ao menos um
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personagem negro no acervo. Ou, quando encontrava, podia elencar um conjunto de argumentos inadequados
que pouco valorizavam a referência. Hoje, a oferta já é bem mais qualificada. Porém, ainda carece da voz, da
autoria a dar forma aos conteúdos. A indústria da produção de obras juvenis é quantitativamente centralizada
no eixo Rio-São Paulo-Minas. A equidade entre regiões que não querem mais ser apenas importadores dessa
produção pode ser estabelecida.
Da mesma forma, a participação de Willivane Mello, psicóloga, especialista em Psicologia Educacional
pela Universidade do Estado do Pará, na época mestranda em Psicologia, pela Universidade Federal do Pará,
foi fundamental. Por conhecer bem as dez comunidades quilombolas do Pará que beiram o rio Amazonas, ela
guia o leitor dentro das discussões acerca da presença africana no norte do país. Essa é outra invisibilidade
historiográfica. Willivane não perde a oportunidade de puxar esse fio de memória que abre as vistas da nação.
Mas o que a reunião não perdeu mesmo de vista foi mistério das águas. O mais importante deles,
circunscrever uma conexão cultural em torno de dois rios distantes. Fios, pois carecem da pesquisa que
adense as informações. E assim, a obra procura mostrar ser possível desenvolver a percepção de um tema
por um fiozinho delicado, frágil.

Repertório cultural como fonte: renovável e sustentável

O fio d’água do quilombo recupera a surpresa de um acaso. Eu não conhecia ninguém dali e não havia
nenhuma intenção de pesquisa. Embora a emoção transbordasse o tempo todo. Afinal é um privilégio o meu
coração tão negro sentir o estranhamento da novidade de estar num quilombo em pleno século XXI, que é ao
mesmo tempo familiar. O instante é parecido com aquele velho puxar pela memória frente à mistura quase
onírica da realidade. É assim como a sensação trazida por um perfume, um som de felicidade, um toque de
mão que acalma a dignidade de um jeito de ser. Ali, eu me acho!
Por isso, o mérito do trabalho está mais para um súbito intuitivo, uma compreensão repentina que não
pode ainda ser demonstrada. Mas, é o olho-d’água que enche um rio e ambos sempre estarão lá para serem
observados.
Na sociedade Xona, os espíritos ancestrais são vivos e a relação com eles não é separada da materialidade
do dia-a-dia. Por conta da importância do espírito ancestral, as famílias valorizam os seus clãs alinhando a
ancestralidade até o totem que a originou. O mundo do além produz efeitos sobre o natural. O real está
investido de poderes espirituais. E o pilar dessa concepção é a noção de metamorfose.
O mito, ele mesmo, indica a via para reordenar um desequilíbrio ocorrido com a perda da regra. A
concepção ecológica de guardiã das águas límpidas, enquanto aspecto narrativo positivo, ressoa o alerta
de uma possível alteração do mundo imediato, indicando o distanciamento da pureza e do silêncio natural.
O curandeirismo pela via extraordinária, expressão de arte e tecnologia para promover saúde, alude uma
harmonização entre o sobrenatural e a natureza da natureza.

Griôs da Diáspora Negra


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Nas duas versões, o sequestrado é treinado e devolvido para a comunidade. Ele se torna um adivinho e
agente de cura. Este grande poder lhe é entregue pelo espírito das águas. E o sagrado é o avesso do mundano.
Esse, além do natural, estabelece o lugar consagrado dos rios.
A bacia hidrográfica devolve mais do que um bem social, uma proteção mágica, uma capacidade
de cura extensiva de uma perspectiva ecológica de comunicação entre os seres humanos e a natureza. Na
oralidade Xona, a regra da pureza nesse relacionamento é fundamental e exacerbada. A natureza da poderosa
Njuzu pode ser controlada se o que a regula não for negligenciado. Em Santarém, o respeito também é uma
exigência.
Essa ideia de fartura da vida simbólica em torno de qualquer hidrografia me fascina. Nesse episódio,
o encontro de pequenos detalhes culturais mediados por uma narrativa oral pode ser um curso eficaz a
recuperar uma identidade desaparecida. Há uma história Xona no Amazonas?
Volto ao ponto inicial, aquele que quer saber da inspiração para o livro. Nesse caso, ela foi súbita, mas
gerou uma demanda interna insistente para compreender a aparição. Não para explicá-la ou justificá-la.
Teoricamente sabemos que as diferentes populações advindas de diversas Áfricas chegaram e espalharam a
densidade das histórias que com elas vieram. Porém, ainda são muito desconhecidas.
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Mas, às vezes, em momentos precisos, em instantes imprevistos, o acaso se faz presente. Isso quer dizer
que os lugares entregam presentes para a sensibilidade. Podemos chamar as ocorrências, de inspiração? Ou
seria a plena harmonia entre os espíritos do lugar ?

Griôs da Diáspora Negra


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O maracatu-nação do Recife: ardis de produção da memória
Martha Rosa F. Queiroz1

Inicio discorrendo um pouco sobre o papel da experiência em nossa construção cotidiana de sentidos.
É sabido que ela tem sido renegada em muitos espaços de aprendizagem, especialmente os formais. Nesses,
marcados pelos pares ciência/técnica ou teoria/prática2, o par experiência/sentido não encontra acolhida.
Conforme Larrosa-Bondía: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se
passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase
nada nos acontece”3.
É baseada nessa noção de experiência que discutirei a articulação memória e política, com destaque
para as políticas públicas de cultura, a partir de uma experiência pessoal, quer seja a minha participação como
militante do Movimento Negro Unificado ‑ Seção Pernambuco (MNU-PE), quer a nos desfiles carnavalescos
do Maracatu Leão Coroado (LC) na cidade do Recife nos anos de 1986 e 1987.
Faço tal opção por acreditar que a parceria MNU/LC é rica em elementos vinculados ao campo da
memória negra e das políticas públicas para a cultura negra e também porque registrei – em formato de tese4
– a referida experiência, valendo-me das lembranças dos envolvidos, inclusive as minhas.
Para alcançar o intento, cerquei-me de teóricos que trabalham com a memória na perspectiva seletiva
e crítica, a exemplo de Fernando Catroga, ao asseverar que a memória “nunca poderá ser um mero registro,
pois é uma representação afetiva, ou melhor, uma re-presentificação, feita a partir do presente e dentro da
tensão tridimensional do tempo”5.
Assim, num jogo de rememorar e esquecer, construí minha narrativa que, como todas as outras, é
marcada pelo meu lugar de fala e por questões contemporâneas com as quais estou envolvida. A principal
delas, por que, a despeito da noção de neutralidade da narrativa histórica aceita por tantos6, persiste a
resistência com aquelas que identificam o lugar racial dos sujeitos?

1 Doutora em História, professora adjunta do Colegiado de História da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, ativista do
Movimento Negro em Pernambuco e editora dos jornais Negração e Omnira nos anos 1980 e 1990. E-mail: mrosaqueiroz@gmail.com.
2 LARROSA-BONDIA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, 2002, p.
20-29. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf. Acesso em: maio de 2014.
3 Idem, ibidem, p. 21.
4 QUEIROZ, Martha Rosa F. Onde cultura é política: Movimento Negro, afoxés e maracatus no carnaval do Recife (1979-1995).
Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília, 2010.
5 CATROGA, Fernando. Memória e história. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Fronteiras do Milênio. Porto Alegre: Editora
Universidade/UFRGS, 2001, p. 46.
6 Sobre os vínculos entre a pesquisa historiográfica e os lugares sociais, cf.: CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 66.
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Para responder à interrogação, destaco duas possibilidades candentes: a primeira é que, ao revelar o
lugar racial do sujeito de fala, rompe-se com a ideia de narrativas históricas dissociadas das identidades dos
seus produtores/as. O segundo aspecto é que, ao desmontar-se a estratégia de identificar um determinado
discurso como universal, qualificam-se outros como setoriais, minimizando-os. Assim, evidencia-se que
todas as narrativas portam as identidades de seus narradores.
É imperativo vincular essas questões ao jogo de rememorar/esquecer no trato com a memória, portanto,
aos processos que levam determinados aspectos a serem rememorados por alguns e esquecidos por outros. Por
essa via, é possível dimensionar o papel das rememorações na construção das representações e nos processos
de patrimonialização, ambos com relações intrínsecas (e de mão dupla) com as políticas públicas. Afinal,
bebem as políticas públicas de narrativas históricas e não restam dúvidas de que os recursos do poder público
– em especial no campo da cultura – são destinados às experiências representadas de maneira positiva,
ou seja, aqueles que são rememorados sistematicamente. Dessa forma, relega-se ao nada os esquecidos ou
lembrados e representados nas dimensões negativas, e nós, pessoas negras brasileiras, sabemos o que isso
significa.

Vamos à experiência

O ano era de 1986 e o líder do Maracatu Leão Coroado era o Sr. Luis de França. Homem negro, oluô,
mestre do maracatu e nascido em 1900. À frente do maracatu desde a década de 1950, Sr. Luis de França
vivenciou todo tipo de experiências com pessoas e grupos que se aproximavam do maracatu com intuito de
colaborar. A questão era que ao chegar ao Córrego do Cotó e encontrar um senhor negro de 86 anos, pobre
e com pouca educação escolar dirigindo a Instituição, as pessoas agiam como se o maracatu fosse acéfalo.
Comportavam-se como se estivessem em contato com um grupo sem liderança, que não sabia o que queria,
muitos menos como atingir seus objetivos. Desconsideravam as reivindicações e as necessidades do Leão
Coroado, acreditando que tinham os melhores planos para o grupo. Como resultado, eclodiam conflitos com
o Sr. Luis de França que deixava bem evidente que sabia dirigir seu grupo, quais eram suas prioridades e
necessidades.
O que estava subjacente aos desentendimentos entre o Sr. Luis de França e as pessoas e grupos
eurocentricamente referenciadas que chegavam ao maracatu era uma profunda diferença entre formas de
produção do conhecimento.
Para o Sr. Luis de França, sua longa trajetória na direção do maracatu, sua convivência e aprendizado
direto com líderes mais velhos, sua iniciação no campo religioso e a perenidade do maracatu Leão Coroado no
carnaval do Recife eram suficientes para legitimá-lo como líder do grupo, cabendo-lhe a palavra final quanto
às formas de condução. O que precisava, ele afirmava isso sempre, era que os homens de poder/governo
cumprissem sua palavra e garantissem a manutenção do LC, um dos fundadores do carnaval pernambucano,
inclusive doando uma sede própria para o grupo. Nada mais!
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Na opinião daquelas pessoas e grupos que queriam “colaborar” com o maracatu, esse precisava se
modernizar, melhorar, ter novos membros e para isso (no limite) o Sr. Luis de França precisava ser substituído.
Tal postura se baseava na premissa de que os conhecimentos que faziam do Sr. Luis de França oluô, mestre
de maracatu, líder comunitário, são inferiores a outros tipos de conhecimento, a exemplo do denominado
conhecimento culto, adquirido na educação escolar.
Eis porque algumas pessoas usam os termos sabedoria/saberes para os conhecimentos africanos,
indígenas, populares. Para essas pessoas, há uma polarização saberes/conhecimento que, fundamentada ou
não, hierarquiza formas distintas de conhecer, consequentemente hierarquiza seus agentes.
É nesse sentido que as relações de colaboração dos sujeitos eurocentrados com o Leão Coroado, em
geral, eram orientadas pela tutela. A ajuda deles deveria, necessariamente, implicar poder de definição quanto
ao melhor rumo a ser seguido pelo Grupo. Diante disso, perguntamo-nos como são tratadas as memórias dos
grupos e pessoas que têm suas formas de conhecer e de produzir conhecimento desqualificadas? Os fatos
vivenciados por eles, suas experiências, serão rememorados e/ou silenciados? Como serão remomorados ou
como serão esquecidos?
No que se refere ao Leão Coroado e ao seu Luis de França, a política de silenciamento não foi eficaz.
Impossível esquecê-los. A saída foi rememorá-los como grupo ligado a uma África distante no tempo e no
espaço. Dessa forma, poucas pessoas na década de 1980 desejavam desfilar no maracatu. Era coisa de velho,
de negro, de pobre... algo ultrapassado. Foi assim que encontramos o Maracatu Leão Coroado no ano de
1986. Com pouca ajuda governamental, com relações de colaboração fragilizadas por essa premissa da tutela
(mesmo que não revelada) e sem o brilho de outrora.
Se era assim, o que fez um grupo de jovens ligado a uma instituição fundada em fins dos anos 1970
se voltar para o Leão Coroado? Exatamente o entendimento de que a memória do Sr. Luis de França deveria
ser lembrada. Diferentemente dos colaboradores eurocentrados, entendíamos que o Leão Coroado e mais
ainda o seu líder maior eram um patrimônio da cultura negra pernambucana. Para nós, eles tinham muito a
nos ensinar com seu conhecimento, sua experiência, enfim, sua vivencia na condução de uma manifestação
cultural e religiosa. Para nós, os conhecimentos do Sr. Luis de França deveriam ser rememorados de diversas
formas, afinal graças a eles uma manifestação cultural estava em atividade há mais de cem anos e a religião
se mantinha viva, apesar das fortes perseguições, entre tantos outros aprendizados possíveis.
Existiam conflitos no trato cotidiano, por suposto. Afinal, estamos falando de uma parceria na qual os
envolvidos são de gerações bastante diferentes e transversalizados por dilemas sociais que atingem a todos.
No entanto, a nossa postura de reconhecimento incondicional da liderança do Sr. Luis de França – e seus
conhecimentos ‑ foi fundamental para o sucesso da empreitada.
Constituímos uma comissão com pessoas do grupo de mais idade e que eram respeitados pelo Sr. Luis
de França, afinal, ele não estava ali para conversar com “meninos/meninas”.
Buscamos a participação de membros antigos do Leão Coroado – à época, afastados – e novos
membros na comunidade. Sabíamos que nosso grupo não daria conta de um maracatu. Agimos em total
harmonia com as ordens do Sr. Luis de França, em especial no que se refere à priorização da estruturação (no
caso, compra de roupas e instrumentos) e apoio à reivindicação maior – aquisição de uma sede.
Griôs da Diáspora Negra
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Até cantar para princesa Isabel, cantamos. Afinal, a calunga do LC é denominada Isabel em homenagem
à princesa. Eles têm uma loa que saúda a calunga e por extensão a princesa. Fizemos pequenas investidas
sobre o tema, mas nisso o Sr. Luis de França foi enfático. Ele só nos disse uma coisa: “vocês, negros de hoje,
não sabem o que foi escravidão”. Pronto! Vamos cantar para a calunga Isabel e não se discute mais nada.
Em outra questão, ele foi mais flexível. Eu, à época, uma jovem de 21 anos, decidi desfilar no maracatu
como batuqueira. Isso ainda não tinha ocorrido no LC sob a coordenação do Sr. Luis de França. Ele resistiu,
argumentou que não tinha mulher tocando atabaque em terreiro de candomblé e que tocar no maracatu era
coisa para homem. No final, sem nenhuma explicação e/ou conversa, autorizou minha participação. É bom
lembrar que essa experiência aconteceu na década de 1980, quando os maracatus-nação passavam por uma
situação de abandono e desvalorização.
Na década seguinte, 1990, ocorreu uma mudança. Os maracatus-nação passaram da decadência
observada na década de 1980 ao status de símbolo da cultura pernambucana do período, valorizados tanto
no Recife quanto no Brasil e no exterior7. Estudos que tratam desse assunto apontam algumas configurações
que contribuíram para a valorização dos maracatus-nação e seus responsáveis. Em geral, consideram-se a
crescente valorização da cultura popular pela indústria cultural, o surgimento do movimento Mangue Beat,
a fundação do Maracatu Nação Pernambuco e a entrada de pessoas de classe média, em geral brancas e
universitárias, nos maracatus. Portanto, são poucas as pesquisas que fazem referência à atuação do MNU-PE
no Leão Coroado8.
Nesse jogo de lembrar e esquecer, a memória alimentada destaca o papel do movimento Mangue Beat
na ascensão e na visibilidade do maracatu, uma vez que o acesso aos meios de comunicação pelos mangueboys
levou a batida do maracatu para o mundo, ocasionando uma valorização local do maracatu e o aumento da
autoestima dos integrantes dessa manifestação.
Voltando à articulação memória e política, a representação do movimento Mangue Beat como
“valorizador” do maracatu-nação, certamente contribuiu para as narrativas justificadoras ao apoio a gestores
culturais (públicos e privados). Como exemplo, destaca-se a condução de um dos mangueboys (Renato L) à
Secretaria de Cultura da cidade do Recife no período de dezembro de 2008 a abril de 2012. Afinal, com o
Mangue Beat, a cultura pernambucana, representada pelo maracatu “ganhava o mundo”.
Mas convenhamos, a cultura pernambucana e o maracatu poderiam igualmente ser difundidos pelo
Leão Coroado, pelo Sr. Luis de França e tantos outros como eles. Contudo, experiências como a do MNU-
PE, a liderança do Sr. Luis de França e a perseverança dos LCs da vida são sistematicamente esquecidas. As
experiências desses protagonistas não são aproveitadas na formulação de políticas públicas, nem quando

7 OLIVEIRA, Deborah D. C. D. de. O maracatu e seus lugares: cultura, socialidade e configurações midiáticas do maracatu nação
(anos 90 – 2001). 2001. Dissertação (Mestrado em História) ‑ Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília
2001, p. 75.
8 Localizei dois registros imagéticos: o livro fotográfico da pesquisa de Raul Lody e o documentário dela resultante. No texto do
convite para lançamento da exposição e em matéria do Diário de Pernambuco, há depoimento do antropólogo Raul Lody sobre a presença
do MNU no Leão Coroado.
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destinadas às suas próprias agremiações. Afinal, persiste o entendimento de que aquelas pessoas não possuem
conhecimento suficiente para indicar caminhos/alternativas/ações que beneficiem a todos. Dessa forma, os
maracatus-nação periféricos e negros continuaram a viver com pouca verba para seus desfiles carnavalescos,
sem sede, sem contratos para shows nacionais e internacionais. Ao “valorizar” o ritmo do maracatu, num mix
com outros ritmos negros e populares, os que mais se beneficiaram foram os mangueboys, haja vista que os
negros e populares continuaram igualmente sem apoio para sua arte e cultura.
Para a indústria cultural pernambucana, está ótimo assim. A cada dia surge um novo grupo de maracatu
composto por jovens brancos, uma estatua de Chico Science foi erguida no centro do Recife Antigo, uma nova
via mangue que liga os bairros de Pina e Boa Viagem foi inaugurada. Tudo isso alimenta uma memória no afã
de que a qualquer momento surja outro Chico Science.
Poucos pesquisadores pernambucanos problematizam a centralidade do Mangue Beat na revalorização
do maracatu-nação. O protagonismo dos próprios maracatuzeiros e a circulação discursiva do Movimento
Negro pernambucano de valorização das manifestações culturais negras são, de um modo geral, esquecidas9.
Vejamos o depoimento do Ívano, cantor negro da década de 1980, que não teve o mesmo sucesso dos
mangueboys:
Quando estourou o Mangue – e graças a Deus deu tudo certo – não houve um
reconhecimento e alguns livros até não citam o pessoal dos anos oitenta, pulam, dão um
vácuo. Não se registrou, por exemplo, a questão da música negra, dos afoxés de Olinda, os
maracatus... Bombou depois, mas a base foi ali10.

Nas suas recordações, Ívano faz questão de situar a revitalização da cena cultural pernambucana na
década de 1980 com a explosão da música dos afoxés, dos maracatus.
Bem, se é correto, como afirma Catroga, que “recordar é, por isso e sempre, uma operação de resgate
(Ricoeur)”11, precisamos resgatar nossas experiências em um movimento que articule as memórias e seus usos
às políticas públicas como campo de disputa de poder e de memórias. Só assim poderemos escutar vozes
negras esquecidas que certamente têm muito a nos contar e entenderemos por que os recursos para cultura
são destinados majoritariamente para a manutenção dos bens culturais de matriz eurocêntrica, sempre
rememorados.

9 GUILLEN, Isabel C. Martins e LIMA, Ivaldo M. de F. Os Maracatus-nação do Recife e a espetacularização da cultura popular
(1960-1990). In: GUILLEN, Isabel C. Martins e LIMA, Ivaldo M. de F. Cultura afrodescendente no Recife: Maracatus, valentes e catimbós.
Recife: Bagaço, 2007; QUEIROZ, Martha Rosa F. Onde cultura é política...
10 Ívano: Cantor, compositor, com trajetória musical fortemente vinculada com o Movimento Negro. Entrevista com o cantor e
compositor. Depoimento na Agenda Cultural de Dezembro de 2009. Disponível em: http://www.recife.pe.gov.br/fccr/agenda. Acesso em:
20 de agosto de 2010.
11 CATROGA, Fernando. Memória e história. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Fronteiras do Milênio. Porto Alegre: Editora
Universidade/UFRGS, 2001, p. 53.
Griôs da Diáspora Negra
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61
Quise
Shirley Campbell Barr1

Quise arrancarme los ojos porque no me pertenecían


Quise borrar mis apellidos porque no eran míos
Quise aumentar el volumen de mis nalgas porque estas no correspondían
Quise olvidar mi lengua porque el acento me era ajeno
Quise oscurecer mi piel porque su tono no era lo suficientemente oscuro
Quise volver a casa porque en esta no me querían
Quise quemar la escuela porque yo no existía
Quise borrar los libros donde mi imagen estaba errada
Quise nacer de nuevo y descubrirme en otra historia
Yo quería que la realidad fuera distinta
Pero era esta
Entonces
me convertí en poeta.

1 Escritora e antropóloga afro-costa-ricense. Autora dos livros Naciendo (1988), Rotundamente negra (1994), Desde el principio fue
la mezcla (2007) e Rotundamente Negra y otros poemas (2013). E-mail: shirleycampbellbarr@yahoo.com.
Griôs da Diáspora Negra
62
63
Saberes “invisíveis” na cidade: da segregação socioespacial
étnica à construção da justiça ambiental
Ângela Gomes1 e Maria Lúcia Wakisaka2

Temas de discussão recente no Brasil, como direito à cidade, cidades sustentáveis, planejamento
estratégico, têm sido sublinhados nos debates relativos à problemática urbana. Nos séculos XX e XXI, a
questão urbana parece ter demandado um novo olhar sobre a espacialidade da exclusão social. A razão
dessa demanda pode tanto estar relacionada à concentração da população brasileira nas áreas urbanas como
pode, também, estar sinalizando que algumas bandeiras de luta, que até então se faziam isoladamente, hoje
se aglutinam pela necessidade de dar respostas aos processos de exclusão social e de produção de impactos
ambientais pela globalização. Merece atenção o fato de que essa aglutinação vem determinando a ampliação
das análises de diversos processos e instrumentos políticos, como é o caso do planejamento e da gestão
urbana.
Questões ainda não respondidas pairam diante desse quadro: quem tem direito à cidade? Se cidade
é espaço, a pergunta poderia ser feita de outra forma: a quais sujeitos sociais são negados o direito de ir e
vir, viver e reproduzir na cidade? Se considerarmos que as cidades pós-Revolução Industrial são planejadas,
outra pergunta se faz: a quem atende o planejamento urbano? Alguns autores, como Ermínia Maricato e
Heloísa Costa, reconhecem que algumas cidades planejadas reproduzem a segregação socioeconômica e
espacial, promovendo, assim, a violação de uma série de direitos3. Nessa perspectiva, parece difícil pensar a
cidade sem que se reflita sobre as questões relativas à justiça.

Justiça e planejamento

O conceito de justiça carrega em si a ideia de valores e direitos. O dicionário Housaiss ratifica a imagem
que aqui se constrói: justiça é a “qualidade do que está em conformidade com o que é direito, com o que é

1 Doutora em Geografia (UFMG), engenheira florestal (UFV), ativista do Movimento Negro Unificado de Minas Gerais e professora
do Centro Universitário de Belo Horizonte-UNI-BH. E-mail: angela.gomes@prof.unibh.br.
2 Mestra em Educação e graduada em Ciências Biológicas pela UFMG, professora do Centro Universitário de Belo Horizonte-UNI-
BH. E-mail: mlucia@acad.unibh.br.
3 MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In: ARANTES, Otília et alii. A cidade do pensamento único:
desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 121-192; COSTA, Heloísa S. de Moura. Entre a homogeneização e a diversidade:
segregação socioespacial na metrópole belo-horizontina e as especificidades do eixo sul. Espaço & Debates, v. 24, n. 45, jan.-jul. 2004, p.
75-86.
Griôs da Diáspora Negra
64
justo; maneira pessoal de perceber, avaliar aquilo que é direito, que é justo”4. As cidades, principalmente na
América Latina, talvez sejam espaço privilegiado para a análise dessa questão. Ressalta-se que, sendo um
tema que se torna tão amplo, um dos debates que mais têm se destacado no cenário urbano se refere à justiça
ambiental.
O movimento que se volta para a justiça ambiental aponta a ampliação das questões urbanas e ambientais.
Nele se incorporam debates sobre a segregação socioespacial e a problemática ambiental, associando, assim,
temas que dizem respeito aos direitos civis e aos direitos ambientais. Nesse sentido:
O conceito de justiça ambiental nasceu da capacidade inventiva dos movimentos sociais dos
Estados Unidos, especialmente das organizações forjadas nas lutas pelos direitos civis, das
populações afrodescendentes, a partir da década de 1960, em ouvir o clamor de cidadãos
pobres e grupos socialmente discriminados quanto à sua maior exposição a riscos ambientais.
Ele decorreu da percepção de que depósitos de lixos químicos e radioativos, ou de indústrias
com efluentes poluentes, concentravam-se desproporcionalmente na vizinhança das áreas
habitadas por estes grupos5.

Diante desse conceito, Bárbara Lynch julga necessário incorporar a ausência de direitos urbanos como
fator de risco ambiental6. Direitos básicos, relacionados às condições de habitabilidade, que expõem pobres e
negros a grandes riscos, como problemas de saúde, falta de saneamento básico, carência de moradia, aliados
a questões como poluição sonora e poluição hídrica. De acordo com Marcos Cardoso, o ambiente inabitável
imprime maiores velocidades e alcances sobre camadas mais baixas da sociedade, sobre étnico-pobres e negros,
se comparado aos ricos de pele-clara, à classe média, aos eurodescendentes nesse país7.
Cabe, então, pensar na difícil tarefa de compreender a dinâmica do planejamento e da gestão urbana
e refletir sobre suas interfaces política, econômica e cultural. Entender, assim, que em sociedades desiguais é
comum o planejamento esbarrar mais em questões de justiça do que de competência técnica. Significa, além
disso, refletir sobre como a falta de leitura histórica, política e crítica do planejamento urbano modernizante
favorecem os processos de exclusão social e segregação socioespacial e também étnica.
Apesar do conceito de justiça ambiental ser algo recente, é possível dizer que as raízes desse atual
cenário ambiental urbano vêm do acúmulo de séculos anteriores, que remete a ideologias de segregação que
têm assumido formas diferentes, mas que continuam se materializando de maneiras cada vez mais perversas.

4 Houaiss − Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Versão 1.0, 2003.


5 ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto. A justiça ambiental e a dinâmica das lutas sócio ambientais
no Brasil: uma introdução. In: ACSELRAD, Henri et alii (org.). Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p.
9-10.
6 LYNCH, Bárbara D. Instituições internacionais para a proteção ambiental: suas implicações para a justiça ambiental em cidades
latino-americanas. In: ACSELRAD, Henri (org.). A duração das cidades: a sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro:
DP&A/CREA-RJ, 2001, p. 36.
7 CARDOSO, Marcos. O movimento negro em Belo Horizonte 1978-1998. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2000, p. 32.
65
A partir de exemplos na literatura sobre cidades planejadas, como Belo Horizonte, capital de Minas
Gerais, do final do século XIX e percorrendo o século XX, conforme Heloísa Costa8, observa-se que, desde o
referencial teórico do planejamento até os seus planos de execução, há uma busca em atender aos interesses
de classes privilegiadas. A produção social de um espaço para a reprodução das elites e de eurodescendentes
não parecia estar muito distante dos objetivos desses planos, mesmo que os registros sejam mais orais que
escritos9. O ideal de cidade higiênica aparece com um conjunto de símbolos que terminam colaborando para
o fortalecimento do pensamento eugênico, como observa Lília Schwarcz – raça branca limpa e raça negra e
pobre, sujos e doentes10.
Segundo a autora, o Brasil de 1870 a 1930 é, assim, ao mesmo tempo liberal e racista: racismo de folhetim
conjugado à elaboração de teorias eugênicas plasmadas nos textos e romances naturalistas brasileiros. No
século XIX, aparecem imagens que associam negros e sujeira: um seria inerente ao outro. Por outro lado,
o racismo aparece na ordem do dia dessa cidade, coisificando os negros e a cultura de matriz africana:
manifestações de baderneiros e sujos.
Os excluídos, até mesmo, terminam por interiorizar essa condição, que se manifesta em estereótipos
de linguagens como: “Sou pobre, mas sou limpinho”, tão comuns nas falas das famílias pobres brasileiras.
Limpar a nova cidade assume, assim, um apelo científico – físico e biológico –, justificador dos processos
de segregação socioespacial, em busca do modelo de cidade que se quer, com o perfil dos sujeitos que devem
estar dentro dela: classe média e alta, funcionários públicos, preferencialmente brancos (eurodescendentes).
Não por acaso:
Diversos estudos que abordam a fase inicial de constituição da cidade apontam, nos discursos
da época, referências ao tipo de população que seria considerada adequada e condizente
com a imagem de cidade que se queria cunhar11.

Quando se analisa seu projeto inicial, percebe-se que Belo Horizonte seria, assim, um exemplo da
imagem que se espera da cidade moderna e de seus sujeitos.
Parece difícil pensar as cidades planejadas brasileiras sem analisar seu caráter eurocêntrico. A matriz
ocidental europeia redefiniu cidades, sua distribuição ordenada, sua forma e função. Durante o período
escravista, surgem as cidades construídas a partir dos valores do judaísmo cristão. Nas cidades coloniais e

8 COSTA, Heloísa S. de Moura. Entre a homogeneização e a diversidade: segregação socioespacial na metrópole belo-horizontina
e as especificidades do eixo sul. Espaço & Debates, v. 24, n. 45, jan.-jul. 2004, p. 78.
9 O Movimento Negro Unificado de Belo Horizonte recupera, através de reuniões, a história oral com moradores negros de Belo
Horizonte. Durante esses encontros, descrevem-se as práticas de segregação racial das quais as pessoas foram vítimas dentro dos limites da
Avenida Contorno, nas ruas ou em ambientes de lazer, no período posterior ao planejamento de Belo Horizonte.
10 SCHWARCZ, Lília Moritz. O espetáculo das raças-cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993, p. 58-66.
11 MOURA, Heloisa Soares de. Habitação e produção do espaço em Belo Horizonte. In: MONTE-MÓR, Roberto Luís de Melo et
alii. Belo Horizonte: espaços e tempos na construção. Belo Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte, Cedeplar, 1994, p. 51.
Griôs da Diáspora Negra
66
imperiais, a fé se monumentaliza nas grandes
igrejas, são expostos o alcance do poder do
clero, do Estado e a concentração da riqueza.
Em fins do século XIX, com o
planejamento elaborado a partir da lógica
moderna, reducionista e fragmentada,
aparecem as cidades com conjunto de
elementos organizados por partes (setores),
segundo função, tamanho, entre outros
aspectos. O objetivo dessa nova forma de
organização socioespacial era garantir
a reprodução da força de trabalho em
condições favoráveis ao processo de
acumulação de capital. O modo de produção
capitalista fortalece o pensamento que
transforma a natureza e os seres humanos em
fatores de produção, e o ambiente construído
em mercadoria. Essa lógica se apresenta
constitutiva e intrínseca ao planejamento
urbano moderno. O alcance da globalização,
nos séculos XX e XXI, imprime às cidades
um novo papel, dentro de uma nova lógica
que concebe a cidade como mercadoria.
Com um discurso de desenvolvimento
aparentemente renovado, o planejamento
estratégico e a gestão de cidades sustentáveis
tornam-se os instrumentos para alcançar
objetivos e legitimar práticas que já são
antigas: acumulação, reprodução do capital
e homogeneização cultural.
Entretanto, é importante considerar
os planejamentos com relação às escalas
de ação política. No caso do planejamento
da cidade de Belo Horizonte, a segregação
socioespacial da zona sul demonstra uma
escala de ação local em que são desenhados
os perfis dos moradores que devem habitar a
cidade. Nesse caso, os funcionários públicos,
67
até mesmo premiados com terras e lotes. Do outro lado do plano, em outra escala, cresce a cidade não
planejada, com vilas, favelas e cortiços, que, para Muniz Sodré, são as fronteiras das porteiras que terminam
sendo transpostas12.
Sem dialogar, ao longo do tempo, muitos planejamentos terminam alimentando, de maneira simbólica,
as fronteiras da desigualdade, de forma a evitar que classes e etnias diferentes estejam em um mesmo espaço
e no mesmo plano. A escala local do planejamento científico moderno pouco dialoga com a escala local do
planejamento possível frente à exclusão.
Os saberes acumulados, produzidos a partir de outras matrizes civilizatórias principalmente africanas
e indígenas (povos que inclusive já possuíam cidades antes das cidades ocidentais), presentes em vilas,
cortiços e favelas do Brasil, são desvalorizados pela ciência arquitetônica e urbanista moderna de base
ocidental. A riqueza cultural fica, assim, ofuscada no planejamento moderno, e até pós-moderno, pela busca
da homogeneização, pela monocultura do saber, para dialogar com Vandana Shiva13.
Diversos planejamentos urbanos se constituíram a partir desse paradigma, incluindo o de Belo
Horizonte e outras cidades brasileiras. Belo Horizonte, planejada dentro dos limites da Avenida Contorno,
para um tipo específico de público, segundo Heloísa Costa, não parece fugir da função da cidade pensada
como espaço de homogeneização cultural14.
A negação simbólica do “direito à diversidade para conviver e à igualdade para viver”, que permeava
sobretudo as cidades oitocentistas, com diferenciação de espaços destinados a monarquias, clero, senhores
e escravos, continua, com algumas novas configurações e novos símbolos, nas cidades mais recentes, com o
apoio da tecnocracia branca. Como observa Andrelino Campos:
O processo de construção espacial da cidade, em geral, não vem, ao longo da história,
contemplando os grupos denominados “minorias”. O fazer a cidade pertence aos grupos
socialmente mais representativos, que participam do processo como sujeitos históricos,
enquanto aos demais resta acompanhá-los como massa, sem nenhuma determinação, seja
qual for a instância analisada: política, econômica ou social15.

Ermínia Maricato, ao retratar os aspectos socioambientais da cidade, também reconhece que o urbanismo
brasileiro “não tem comprometimento com a realidade concreta, mas com uma ordem que diz respeito a uma
parte da cidade, apenas”16. Essa é a ordem da modernidade, construída a partir da racionalidade científica
cartesiana e mecanicista. Modernidade capitalista que se move pela ordem e a desordem: inclui uma minoria
(ordem) e, ao mesmo tempo, exclui econômica e culturalmente uma maioria (a desordem). Essa reflexão solicita,

12 SODRÉ, Muniz. Claros e escuros, identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 137-145.
13 SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 21-24.
14 COSTA, Heloísa S. de Moura. Entre a homogeneização e a diversidade..., p. 69.
15 CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do “Espaço Criminalizado” no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 2005, p. 19.
16 MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias. In: ARANTES, Otília et al. A cidade do pensamento
único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 122.
Griôs da Diáspora Negra
68
ainda, pensar que os sujeitos excluídos do período escravista continuam em condições similares no pós-abolição.
Os sujeitos estão no lugar e, ao mesmo tempo, seus saberes são tomados como invisíveis no próprio lugar pelo
saber dominante, de matriz ocidental moderna, que fundamentou o planejamento funcionalista.

De todo modo, é interessante perceber que a negação desses saberes subjugados, como denomina
Enrique Leff, não impede que esses se manifestem17. Aparecem no espaço, em outras formas de ambiente
construído, como os becos, vias, nos terreiros de candomblé, nos quintais, hortas, em lages, quintais
agroecológicos urbanos, construindo as cidades dos pobres. Como a maioria dos pobres no Brasil são negros,
poderia se pensar na cidade produzida a partir da cultura negro-africana e a cidade capitalista moderna
produzida a partir do pensamento antropocêntrico, mecanicista e europeu.

Planejamento moderno e planejamento possível: os saberes dos quintais

Através de uma experiência de trabalho em quintais de vilas e favelas de Belo Horizonte, durante dez
anos, Ângela Gomes, uma das autoras desse artigo, observou uma série de tecnologias desenvolvidas nesses
locais por seus moradores, desde o controle biológico de pragas, a medicina integral, o uso terapêutico dos
vegetais, a conservação de solos até as técnicas de edificações em áreas de encostas.
Os espaços denominados quintais representam unidades que no entorno da casa possibilitam
a convivência com plantas, pequenos animais e processos de socialização e relações de vizinhança. A
pesquisadora atentou-se, então, para a necessidade de aprofundar a reflexão sobre essa organização
socioespacial do quintal e sua contribuição para o planejamento urbano. Isso porque esse modelo de
planejamento e gestão espacial, antes comum nas áreas rurais, alcança as áreas urbanas, principalmente as
vilas e favelas.
Diversos quintais possuem plantas para alimentação, ervas medicinais ou usos diversos, o que torna
interessante uma leitura do papel da etnobotânica desses espaços para a sobrevivência e a vivência de saberes
sobre a saúde, gestão de áreas de risco, e da biodiversidade, em outras matrizes culturais, que não só a
europeia. Os saberes produzidos e guardados pela memória, reproduzidos pela oralidade, dão significação
aos espaços dos quintais e das plantas inseridas nesses. Os saberes etnobotânicos dos afrodescendentes,
indígenas, mulheres e pobres manifestados na gestão e no planejamento de seus quintais refletem os vínculos
rurais e urbanos que parecem abrir caminho para a compreensão de novas territorialidades e desses espaços
importantes para a construção de redes de solidariedade e trocas de saberes.
Percebe-se que essas práticas são produtos de múltiplos saberes – africanos, indígenas, europeus –
presentes no espaço urbano. Constata-se que muitas vezes se reduzem essas matrizes culturais a uma mera

17 LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidad, racionalidad, complejidad, poder. México: Siglo Veintiuno Editores, 1998, p.
56-57.
69
sobrevivência. Acaso, todo planejamento urbano não estaria comprometido com a sobrevivência, ao longo do
tempo e do espaço? Acaso, não estariam incluídas aí, nesses lugares, uma lógica de tempo, espaço e função?
Não são esses alguns dos elementos-chave do planejamento? “As ideias estariam fora dos lugares”, como
destaca Ermínia Maricato, ou não seria melhor questionar se estaríamos diante de outros planejamentos,
populares e possíveis, negados pelo planejamento moderno dentro dos lugares.
Os saberes dos lugares não só se expressam como desenham uma outra cidade, que não está extinta,
que se reproduz dentro e no entorno da chamada cidade legal moderna. Alguns temeriam conferir o
status de cidade a essas aglomerações, entretanto os números não permitem ocultar o que o planejamento
modernista tentou ignorar. Segundo Ermínia Maricato, somando os moradores de favelas com os moradores
de loteamentos ilegais, tem-se quase a metade da população do Rio de Janeiro e de São Paulo18.
Uma hipótese confirmada por alguns estudiosos, como Ermínia Maricato, Geraldo Costa e Andrelino
Campos, é a de que o planejamento moderno, sob as bases do modo de produção capitalista, construiu novas
formas de segregação socioespacial aliadas a novas formas simbólicas de exclusão social.
Do planejamento produzido para evitar a circulação de “vadios”, negros, estrangeiros, moradores de
rua, àquele que elabora os condomínios murados de hoje, a questão que aparece é a tentativa de ocultar
as evidências da dominação e da injustiça, produzindo socialmente o espaço. A homogeneização esperada
trouxe o não prometido, a miséria, resultante da mais valia, a partir do mito do progresso a qualquer custo, o
desencantamento de uma sociedade antropocêntrica, racionalista e mecanicista, acompanhada da banalização
da vida.
Em contraponto, parece importante reconhecer outras formas simbólicas que, frente à homogeneização
de saberes no tecido urbano, sobreviveram e construíram outros saberes “contramodernos”, saberes
resistentes e necessários, como exemplo da gestão de moradores em quintais urbanos: gestão do espaço e da
biodiversidade.
Do ponto de vista da ecologia, quanto maior a diversidade biológica de um ecossistema, maior a
capacidade dos sistemas de suportarem as pequenas perturbações, sem perderem o equilíbrio dinâmico, o
equilíbrio homeostático. Sem querer caminhar pelo darwinismo social da Escola de Chicago, e sim por uma
epistemologia ambiental da complexidade, citada por Boaventura de Sousa Santos, é possível afirmar que
quanto maior a diversidade cultural, maior a riqueza19. As leituras e olhares diversos contribuem para a
construção e a sustentabilidade da vida, como nos descreve Vandana Shiva20.
As cidades são, assim, complexas, os sujeitos e atores sociais também, e a teia ou o tecido que os une e
conecta é de uma complexidade ainda maior. Parece ser essa complexidade, esse espaço – a cidade/metrópole

18 MARICATO, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar..., p. 30-31.


19 SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004, p. 59.
20 SHIVA, Vandana. Biopirataria: a pilhagem da natureza e do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 26.
Griôs da Diáspora Negra
70
– que Milton Santos dizia ser o único possível para os pobres ocuparem21. E é desde aí que ele reconhece a
sua riqueza. A leitura das cidades demanda, portanto, uma compreensão de processos superpostos que não
se esgotam em leituras binárias dos atores e processos sociais que se manifestam nesses espaços, conflitos,
relações de poder. Essa leitura demanda novas abordagens do espaço, tempo e poder.

Territorialidades e direitos

Boaventura de Sousa Santos evidencia que o capitalismo, em seu processo de avanço, não conseguiu
reduzir a indignação e as práticas tradicionais ao seu processo civilizatório22. A modernidade tardia, comum
na América Latina, é uma mostra de que os processos são diversos e as resistências frente à exclusão são
constantes ao longo da história.
Ao imaginar e lutar por sociedades nas quais a exploração seja eliminada, ou pelo menos
drasticamente reduzida, as práticas e teorias críticas do capitalismo – acrescentadas a outras
cujo alvo é outras formas de dominação, como o patriarcado e o racismo – mantiveram viva
a promessa moderna de emancipação social23.

Com efeito, movimentos sociais têm se organizado ao longo da história brasileira, em busca da
construção do direito à diferença e à equidade social, formatando espaços de discussão mais amplos, que
levam em consideração o direito à cidade e à justiça ambiental. As leituras complexas alcançam, também, as
preocupações com o meio ambiente, no sentido de se redesenhar a distribuição espacial e social de fatores
ambientais positivos e negativos. Reconhecer os riscos ambientais é compreender que eles são consequências
de desigualdades econômicas mais amplas, como destaca Bárbara Lynch24.
A justiça ambiental segue, assim, o caminho da busca da distribuição do meio ambiente para os seres
humanos, que, para Bárbara Lynch25, pode ser concebida como a espacialização da justiça distributiva.
O acesso à propriedade e o direito a usufruí-la com qualidade se tornam desejos inadiáveis para os seres
humanos, como reflete o relato de uma moradora do bairro Havaí, periferia de Belo Horizonte:
Tive que dar o resto do terreno para meu filho construir. Eles não têm onde morar. Mas
este canto das minhas plantas ninguém mexe. Colho cebolinha, tenho várias qualidades de
espada de São Jorge (D. Diva, moradora do bairro Havaí, município de Belo Horizonte, 2006).

21 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 14.
22 SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente..., p. 23.
23 Idem, ibidem, p. 23.
24 LYNCH, Bárbara. Instituições internacionais para a proteção ambiental: suas implicações para a justiça ambiental em cida-
des latino-americanas. In: ACSELRAD, Henri. A duração das cidades: a sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. Rio de Janeiro:
DP&A/CREA-RJ, 2001, p. 14.
25 Idem, ibidem, p. 14-18.
71
Tentar compreender esses espaços físicos e simbólicos, que desafiam as fronteiras, e submeter a
interpretação a um “olhar geográfico” aparece como um instigante desafio, citado em Hissa26. Ou ainda,
construir uma ecologia de saberes, como nomeia Enrique Leff, que promova uma reflexão sobre as condições
de apropriação cultural – a partir de cada identidade étnica – da ciência e da tecnologia moderna, e sobre a
apropriação econômica de seus saberes tradicionais para suas próprias estratégias autogestionárias27.
A leitura dos saberes em quintais urbanos desloca o olhar das imagens hegemônicas. Nessas
territorialidades é possível valorizar uma série de tecnologias desenvolvidas nesses locais por seus moradores,
desde a revegetação agroecológica em áreas de risco, hortas orgânicas, uso litúrgico e terapêutico de vegetais
até a recuperação de áreas degradadas. Evidentemente, essas práticas possuem outras denominações, que
não as da ciência moderna, e levantam perguntas sobre os atores e espaços planejados da exclusão. Qual
sentido teria não reconhecer que esses planejamentos refletem as matrizes de outras racionalidades? O que
se percebe, efetivamente, é a necessidade e a importância do diálogo entre o conhecimento científico e o
conhecimento popular.
O direito à cidade é o direito de ir e vir com a cultura que cada sujeito carrega: os quintais agroecológicos
dentro da cidade, as praças dos punks e dos feirantes, lazer nos córregos de água limpa, e não de esgotos, o
soar dos tambores de candomblé e da guitarra do rock...
Quando ganho uma planta é o dia mais feliz da minha vida. Minha mãe era assim... Minha
família toda veio da roça, ainda busco muita coisa lá. Tô até torrando e moendo o café que
trouxe de lá. Aqui no quintal (Relato de D Maria Braz, quintal bairro Havaí, município de
Belo Horizonte, 2006).

Se por um lado a ciência racionalista-ocidental buscou construir um saber hegemônico que reduziu a
natureza a elementos desconectados, por outro, outros saberes, para além da mera resistência, produzidos
por outras culturas, indígenas, afrodescendentes, de mulheres sobreviveram em pequenos lugares (no
imaginário) ou nos territórios, como quintais, terreiros de candomblé e quilombos, estabelecendo uma relação
com a natureza de forma complexa e mais próxima do equilíbrio homeostático. Saberes invisíveis iluminam
as cidades modernas.
O planejamento dialógico ou participativo solicita um exercício de alteridade, na busca de pontes entre
essas cidades e os diferentes sujeitos que nela organizam socialmente o espaço. Planejar se torna uma ação
pedagógica, quando a versão técnico-científica encontra e dialoga com os saberes populares.
Nesse contexto a participação não pode ser tomada somente como a aceitação ou a rejeição do
planejamento oficial, produzido pelos arquitetos, urbanistas, possuidores do saber dominante ocidental.
Ela deve ser um constante exercício, em que os sujeitos porta-vozes do saber dominante necessitam

26 HISSA, Cássio Eduardo Vianna. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2002.
27 LEFF, Enrique. Saber ambiental…
Griôs da Diáspora Negra
72
reconhecer e aprender com o planejamento e a gestão dos “outros”. Isso significa, em síntese, aprender e
dialogar com e em outras matrizes civilizatórias. Dialogar como sujeitos sociais foram vítimas da segregação
simbólica do conhecimento. Os saberes se cruzam porque cada qual se apropria do conhecimento do outro,
não para a acumulação de capital ou poder, mas para a produção de um novo conhecimento, a partir de
complementaridades transdisciplinares, como explicita Cássio Hissa28. Talvez seja necessário, também,
produzir outras imagens urbanas, que vão além das aparências e do marketing urbano, onde o planejamento
se apoie em princípios de equidade social, dialogicidade, complexidade e ética. Como argumenta David
Harvey:
Considero importante distinguir o trabalho ideológico intenso em direção à produção
de uma imagem urbana que nos atrai em vez de nos causar aversão, da busca sincera
de soluções para o desafio de se criar algo novo de forma, socialmente responsável, sem
violentar o que foi feito antes. O problema dessa distinção é sondar além da aparência e
tentar definir o sentido profundo do processo urbano contemporâneo, construindo, a partir
dessa compreensão crítica, as escolhas reais do futuro29.

Essas são as imagens das cidades concebidas na sua diversidade plena ou na função social da cidade.
Contudo, como a diversidade não sobrevive em alicerces de desigualdade, em consensos fictícios, como
proposto nos discursos das cidades sustentáveis dos planejamentos estratégicos, onde os diálogos se iniciam
e finalizam sob relações de poder desiguais, caberia a pergunta: planejar as cidades para quem? A resposta só
se torna possível reconhecendo a necessidade de politização do planejamento e da gestão urbana.
Como exemplo do diálogo de saberes no planejamento urbano, tomou-se a gestão do espaço dos quintais.
Esse aparece representado como local de cruzamento entre diversos saberes: da tradição, espaços de trocas
de mudas de plantas, de histórias, espaços de cura. Ali vem se estabelecendo redes sociais de solidariedade,
rural-urbano, onde são trocadas mudas e sementes da área rural e estratégias de apropriação socioespacial.
Aparecem também redes de ajuda mútua, onde se trocam e doam ervas medicinais e/ou verduras e receitas,
e experiências de organização social, ou seja, rede de saberes.
Os desafios e os trajetos são, por óbvio, longos e necessários. Passam por problematizar e ir além da
cidade inserida no paradigma da modernidade e da injustiça, para construir e encontrar cidades planejadas
dentro da diversidade, sob valores, ética e garantia dos direitos. Construir ou produzir a cidade dos encontros,
de sujeitos silenciados que serão ouvidos, onde os saberes invisibilizados, rurais e urbanos, se descortinam
trazendo vida às ruas e praças adormecidas pelo medo. Cidades de saberes incompletos, porque reconhece
que a teoria explica uma parte do mundo, mas não é o mundo, por isso é importante manter as portas abertas
para novos conhecimentos. Cidades onde protagonizam a justiça e a equidade social e onde a felicidade e a
utopia não se separam e respiram.

28 HISSA, Cássio Eduardo Vianna. A mobilidade das fronteiras...p. 15.


29 HARVEY, David. Espaços urbanos na “aldeia global”: reflexões sobre a condição urbana no capitalismo do final do século XX.
1995. Mimeografado. (Transcrição de conferência proferida em Belo Horizonte), p. 10.
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Quilombo, terreiros e quintais: territorialidades da ecologia negro-africana

O debate sobre o racismo alcança a sociedade contemporânea e vem norteando uma série de análises
sobre as relações culturais e interraciais. Alguns autores, como Sérgio Costa, remetem-se às redes antirracistas
e racistas produzidas ao longo de décadas e séculos pelos novos mecanismos de homogeneização cultural da
globalização.
O racismo é, na verdade, tanto um suposto saber imediato sobre o outro (portanto, um sistema de
representações) quanto uma relação social concreta no interior de um território que se identifica como
nacional. Em tal relação, o outro aparece classificado por categorias histórica e hierarquicamente marcadas
como “raça”, “migrante”, estrangeiro e logo excluído (ou então incluído apenas como objeto de exploração)
da parceria social.

Griôs da Diáspora Negra


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Para além das leituras eurocêntricas, o processo de migração forçada de africanos não se fez meramente
com um deslocamento demográfico de pessoas para novos territórios, mas, sim, de culturas que compunham
etnias diversas. Para Judith Carney e Rosa Marin30, esse processo não se dá como uma mera escolha de mão-
de-obra, e, sim, de sujeitos com domínio de saberes necessários ao modo de produção que se instalava. Os
africanos eram agentes com capacidade cognitiva e mesmo com uma história intelectual, atributos negados pelo
racismo. Saberes que, segundo Carney e Marin, eram imprescindíveis para o processo de colonização; entre
eles, os saberes etnobotânicos: saberes das plantas, da agricultura tropical, da fitoterapia e da agroecologia.
O processo da escravidão nas Américas obrigou milhões de pessoas a emigrarem forçadamente de
suas terras africanas. Nos períodos colonial e imperial, o Brasil evidencia-se como um grande receptor de
mão-de-obra africana. Durante o período de 1600 a 1700, o Brasil se torna o país que mais recebia os africanos
com destino ao trabalho escravo. Estima-se que 40% do contingente de africanos escravizados vieram para
o Brasil. A província do Rio de Janeiro, por exemplo, foi um dos grandes receptores de população africana
escravizada. Parte disto pode ser testemunhada nas histórias do Cais do Valongo, localizado na cidade do Rio
de Janeiro. Segundo relatos e estudos arqueológicos recentes, esse cais deve ter sido o cais que recebeu maior
contingente de africanos da América Latina durante o período escravista.
Esses dados talvez expliquem parte da realidade atual, na qual o Brasil é o país com maior população
negra fora da África ou o segundo país em população negra do mundo. Essa população construiu e constitui
a chamada diáspora africana. As etnias africanas produziram novas manifestações culturais na forma de
resistência e de re-territorialização no Brasil. Construiu-se assim, o que o autor Paul Gilroy denomina de
“Atlântico Negro”, enquanto “espaço histórico que busca estabelecer conexões entre escravidão, colonialismo,
racismo e liberdade, a partir de experiências cruzadas e processos articulados”31.
Os terreiros de manifestações de religiões de matrizes africanas, os quilombos e quintais urbanos
representam um testemunho do passado da humanidade escravista e um legado da população africana para
além dessa barbárie escravista. Representa o patrimônio africano trazido às Américas. É preciso, portanto,
retomar os contextos desse aporte socioeconômico e cultural das etnias do continente africano neste país,
evidenciando o patrimônio ecológico-cultural negro-africano constituinte da sociedade brasileira. Ao mesmo
tempo, é importante construir políticas públicas que combatam o racismo, o etnocentrismo, a intolerância
religiosa e demais formas de discriminação étnico-racial que ameaçam a vida dos afrodescendentes.
Os emigrantes das áreas rurais do Brasil do século XX, por exemplo, migram e redesenham o urbano,
planejam os elementos e as funções; cultivam plantas em pequenos espaços, lajes, becos, vielas e mangues...
Como registrado na Imagem 1, entre boldos, couves, cebolinhas, salsinhas, espadas de são Jorge, arrudas
e maracujás, plantas coexistem nas lajes e becos, junto à roupa no varal e o pandeiro ritmando os nossos
territórios familiares.

30 CARNEY, Judith; MARIN, Rosa A. Saberes agrícolas dos escravos africanos no Novo Mundo, Revista de divulgação cientifica,
São Paulo, SBPC, v. 35, n. 205, jun. 2004.
31 GILROY, Paul. O Atlântico Negro. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes/Centro de Estudos Afro
Asiáticos, 2001.
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Imagem 1 – Quintal urbano em vila e


favela. Bairro Havaí. BH. Ângela Gomes,
2008.

Trata-se de territórios onde se praticam sistemas de curas através de uma medicina integral popular
milenar, contribuindo para uma política de saúde pública comunitária, participativa e solidária.
São cidades dentro de outras cidades, com os becos, vias, ruelas, escadas-vias, pinguelas-pontes, hortas
em lajes, quintais agroecológicos urbanos e roças de candomblé.
Quilombos, terreiros de candomblé, quintais urbanos agroecológicos ou os movimentos sociais negros
seriam exemplos de modos de apropriação territorial. Esse é um dos desafios da política pública que aqui se
enuncia: Desenvolver serviços públicos nesses espaços. Territórios de matriz africana, onde se constroem ou
forjam identidades locais, regionais, nacionais, fortalecidas não apenas pelos territórios de nascimento, mas
também por territórios simbólicos étnicos, frutos do diálogo de saberes.
A significação dessas territorialidades extrapola, em muito, seus limites físicos e sua utilização material.
As territorialidades negro-africanas reorganizam, assim, os territórios-rede. São leis, recortes territoriais e
redes que se organizam nos meios rural e urbano e, portanto, possibilitam a construção de outro modelo
democrático societário a partir de parâmetros como equidade social, pluralismo, justiça socioambiental e
direitos humanos e étnicos.

Griôs da Diáspora Negra


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Territórios negros em fronteiras Equador – Colômbia1
Inés Morales Lastra2

Quero valorizar especialmente o esforço de abrir espaços de discussão, análise e reflexão, principalmente
em torno desse tema, que situo no coração das comunidades dos territórios negros fronteiriços.
Quero valorizar também o esforço das representantes do Latinidades 2014, das participantes e, claro,
das anfitriãs irmãs brasileiras.

Para reflexão: Nosso silêncio duplica a dor de meus ancestrais.

Antecedentes

Desde 1560, milhões de homens e mulheres descendentes de africanos escravizados estamos vivendo
nas terras do Pacífico, em um vasto território que se estende desde o Departamento de Chocó, na Colômbia,
até a Província de Esmeraldas, no Equador3. Por conseguinte, são mais de quatrocentos anos que nós, Povos
afrodescendentes, alimentamos nossos corpos com os recursos naturais e fortalecemos nosso espírito de
forças telúricas desse território.
Escritores e pesquisadores, como Juan García Salazar, supõem que a Costa Pacífica Colombo-
Equatoriana, anteriormente a 1553, foi povoada por cimarrones e chimarronas4 que fugiam ou sobreviviam à
travessia em navios que trafegavam entre o Panamá e as terras ao sul de Lima e Callao, no Peru.
Os primeiros negros que tentaram forjar seu próprio destino na Costa Pacífica entre Equador e Colômbia
tinham como líder Antón e posteriormente o cimarrón Alonso de Illescas; os mesmos que sustentaram uma feroz
luta por sobrevivência, que despertou nos povos indígenas temor, proporcionando-lhes uma oportunidade de
dominação. Os espaços geográficos nos quais cimarrones exerciam sua liberdade foram chamados palenques5.
Então, a luta por vencer a escravidão criou espaços de liberdade conhecidos como palenques em nossa região.

1 Tradução de Paula Balduíno de Melo.


2 Palenqueira – Comarca Afro-Equatoriana do Norte de Esmeraldas. E-mail: fedoca2001@yahoo.com.
3 Nota de Tradução (NT): Na Colômbia as unidades político-administrativas são departamentos e, no Equador, províncias. São como
os estados no Brasil.
4 NT: Assim são chamados, no Equador, Colômbia e outros países de língua castelhana, os africanos e africanas escravizados, bem
como seus descendentes que fugiam do jugo dos colonizadores. Seriam como os quilombolas no Brasil.
5 NT: Análogos aos quilombos brasileiros.
Griôs da Diáspora Negra
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Ao mesmo tempo, venho recordar que nós, afrodescendentes do Pacífico, obedecemos aos mandatos
dos cimarrones, ancestrais e nossos mais velhos, de cuidar, defender e manter essas terras como único legado
que nossos povos têm e que podemos deixar às futuras gerações.
Também cremos que a apropriação das riquezas da América em benefício da Espanha, Itália e Inglaterra,
a marginalização dos crioulos no manejo dos assuntos coloniais e as diferentes formas de submissão dos
povos indígenas, negros e montubios6 são algumas das principais causas da deterioração deste território
herdado.
Entretanto, tais mandatos de nossos ancestrais – de conservar essas terras como uma herança coletiva
para nosso povo – são fielmente transmitidos de geração em geração pelos guardiões da tradição e são hoje
uma filosofia e uma doutrina. O mesmo que o governo está implementando agora, sob a denominação de
“restauração florestal e ambiental”.

A biodiversidade da região pacífica

Cremos que o uso e a gestão dos recursos naturais de um povo são a melhor maneira de ser diferente.
Um grupo culturalmente diferenciado tem direito a um espaço próprio, com vistas a viver de acordo com seus
próprios mandatos ancestrais.
Não cremos que o desenvolvimento seja destruir os bosques, o ecossistema úmido-tropical dos manguezais,
contaminar os rios, os estuários, o ambiente, desenraizar uma cultura de seus costumes e tradições, expropriar
de uma pessoa seus modos de vida. Na atualidade, seguem impondo-nos políticas econômicas, educativas, entre
outras, em desacordo aos nossos interesses.
Nós, negros, somos conscientes de que por centenas de anos nosso povo vive em terras desta Costa Pacífica,
alimentando nossos corpos, sem alterá-las e sem modificá-las substancialmente.
O controle dos recursos naturais diante da pressão dos megaprojetos e poderosos interesses político-
econômicos tornam evidente o deslocamento forçado7 das comunidades em áreas de influência, em consequência
da agroindústria, mineradoras, empresas de palma africana8 e o próprio conflito armado do lado colombiano.
Definitivamente, queremos que os Estados e as sociedades nacionais reconheçam que são as formas
ancestrais de vida as que permitiram que esse pedaço de terra seja o que é hoje: o último rincão verde da Costa
Pacífica.

6 NT: Os montubios são reconhecidos como um dos povos que compõem a nação equatoriana. A Constituição Política de 2008
reconhece 21 direitos coletivos às comunidades, povos e nacionalidades indígenas, ao povo afro-equatoriano e ao povo montubio.
7 NT: Desplazamiento é o termo usado pela autora, que designa a migração forçada no contexto das violências inscritas no conflito
político armado na Colômbia e na região fronteiriça.
8 NT: A palma africana é o mesmo dendezeiro, que se caracteriza como monocultivo nessa região, manejado por grandes empresas,
muitas delas multinacionais.
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O Povo Negro da Comarca do Pacífico considera injusto que, após viver tantos anos como guardiões
dessas terras com uma profunda consciência, hoje os Estados nacionais no Equador e na Colômbia pretendam
converter-se em ordenadores dessas terras, sem nos consultar.

O direito dos povos fronteiriços a essas terras

Os Estados do Equador e da Colômbia não podem nos negar o direito ancestral que, como Povos e
Nacionalidades Indígenas e Negras, temos sobre essas terras, porque nascemos aqui antes do nascimento dos
Estados nacionais e somos parte da construção e constituição dos Estados.
Os Estados, amparando-se em leis posteriores a nossos direitos territoriais, não somente nos negam
a propriedade como pretendem expropriar nossa única herança e nos violentam em nossa existência e
perpetuação como Povo.
É muito importante então que nossos Estados, ao tomar decisões, não se esqueçam de que nosso direito
é anterior aos direitos que outros membros da sociedade nacional reclamem em benefício próprio.

Nossa proposta binacional coletiva para os Povos do Pacífico

Nós, filhos e filhas de Povos Negros do Pacífico, recordamos que compartilhamos uma mesma cultura,
as mesmas histórias e um mesmo território. Se até agora estamos divididos em função dos interesses políticos
dos Estados, hoje devemos trabalhar pela reunificação social, econômica e política de nossos Povos.
No Equador e na Colômbia, a história e o aporte dos Povos Afrodescendentes emolduram-se em distintos
e contínuos cenários. Desde o século XVI, filhos e filhas da Diáspora Africana vivemos uma cimarronaje que
nos permitiu a construção de propostas próprias desde nossos territórios. Criamos e recriamos nossa cultura,
ao mesmo tempo em que estabelecemos um conjunto de relações entre comunidades e natureza, bem como
entre as comunidades e a sociedade englobante.
Os Povos afrodescendentes, indígenas e motubios, assim como as próprias comunidades que vivemos
e somos parte destes territórios fronteiriços estamos perdendo o controle de nossos territórios. Situação que
nos levou a reformular propostas políticas, econômicas, territoriais.
A partir de 1996, entre as comunidades afrodescendentes do corredor fronteiriço colombo-equatoriano,
no esforço de exercer o controle sobre o território comum, desenvolve-se uma série de encontros, intercâmbios,
festivais, colóquios, rodas de conversa, entre várias organizações e instituições sociais, dentro de algumas
conjunturas, marcadas basicamente pela difícil situação social, econômica e de seguridade que atravessa essa
zona em seus últimos anos.

Griôs da Diáspora Negra


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Muitas famílias fracionaram-se e segmentaram-se, tendo que se deslocar forçosamente de suas
comunidades para cidades ou até mesmo outros países9, principalmente para que seus filhos não sejam
vítimas de violências.
Na visão das comunidades negras, a deterioração acelerada das condições de vida pode ter sido uma
estratégia do poder neoliberal, com vistas ao esvaziamento dos territórios ancestrais, com a saída, primeiros
dos jovens, e paulatinamente das famílias como um todo.
Neste marco, o Processo de Comunidades Negras da Colômbia e do Equador, por meio de uma série
de eventos culturais e sociais, incube-se da construção da Proposta da Grande Comarca Afro-Pacífica, como
um projeto político de vida. O que foi dividido por uma fronteira como política de Estado, para nós não passa
de uma linha.

Para que queremos a Grande Comarca Afro-Pacífica?

O Povo afrodescendente do Pacífico exige aos dois Estados o estabelecimento de uma Comarca Afro-
Pacífica que deve ser entendida como um espaço físico para se viver de acordo com nossas tradições e
costumes, que nos permita ademais garantir nosso futuro como Povo.
Para desenvolver autonomia, que nos permita incorporar processos políticos, culturais, econômicos,
produtivos e pedagógicos que envolvam a família, para estabelecer e fortalecer as relações sociais,
comunitárias, com a autoridade local, nacional e internacional.
Que os Conselhos Comunitários10, Palenques
e organizações étnico-territoriais ponham em marcha um Plano de Etnodesenvolvimento que se fundamente
na tradição oral contada pelos mais velhos e em acordo com modelos verdadeiros de desenvolvimento, com
enfoque de gênero.
Um espaço espiritual para exercer nossa identidade cultural, porque a cultura disso necessita para sua
recriação, animação e reafirmação.
Para o desenvolvimento de nossas próprias capacidades locais, como Povos culturalmente diferenciados.

Como queremos

Sendo um espaço territorial com autonomia e garantindo às comunidades o acesso a serviços básicos
em uma perspectiva própria, respeitando as tradições e reafirmando a identidade sociocultural.
A Comarca Afro-Pacífica, sendo um projeto étnico de construção coletiva, avançou com a elaboração
de um Plano de Vida, considerado um “Plano de Etnodesenvolvimento Binacional”, cuja primeira versão se

9 NT: Novamente a autora usa o conceito de desplazamiento.


10 NT: Forma de reconhecimento jurídico de territórios étnicos da coletividade negra/afrodescendente na Colômbia.
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concretizou por meio de mesas de trabalho, das quais derivaram também algumas alianças com diferentes
entidades ambientais e da cooperação internacional.
Entendemos o etnodesenvolvimento como a capacidade social de um Povo para transformar o presente
e construir seu futuro, sem esquecer nosso passado, a partir das potencialidades de sua cultura.

Quem faz parte

O processo de desenvolvimento dos Povos necessita da presença e da consolidação de suas organizações;


da participação, motivação e compromisso de seus líderes e de suas bases; da vontade política dos governos
em curso; do exercício dos direitos dos cidadãos e das comunidades afrodescendentes.
Formaremos parte da Grande Comarca Afro-Pacífica as comunidades afrodescendentes, os povos e as
nacionalidades indígenas e todos aqueles que promovam a vida em harmonia entre ser humano e natureza.

Para reflexão

Na memória coletiva das comunidades afrodescendentes pensamos que: O homem se transforma quando a terra se
transforma e esse território já se transformou.

Conclusões e considerações

Os indicadores socioeconômicos que caracterizam nossa situação de Povos fronteiriços falam por si só,
tornando evidente a situação histórica de marginalidade e exclusão à qual estamos submetidos.
Os Estados dessas duas nações precisam entender que, na atualidade, mais de 60% das terras ancestrais
que outrora pertenceram ao nosso Povo (Comarca Afro-Pacífica) foram adjudicadas por organismos oficiais
que manejam as políticas territoriais, estão em posse de companhias madeireiras, mineradoras e empresas de
criatório de camarão, bem como nas mãos de colonos que chegaram ontem à região.
Nesse contexto de construção coletiva, no território do Pacífico, a mulher afrodescendente tem sido e
é símbolo de resistência, de modo que é importante reconhecer os aportes e avanços significativos que nós
mulheres damos à construção de nossa sociedade.
Exercemos um papel de protagonismo como mulher, mãe, e ao mesmo tempo promovemos processos
organizativos e propostas políticas que dia a dia fortalecem a participação cidadã e o exercício de seus direitos,
sendo geradoras de uma cultura de paz.

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Presença
Carmen Faustino 1

Sou exatamente como você vê...


Não sinta vergonha
Em afirmar a cor da noite
Coroada de cabelo crespo
Embaraçados de resistência africana
Sou exatamente como você vê...
Não estranhe o corpo
Legado em cada curva
Beleza que não tem cópia
Poros que transpiram vida
Sou exatamente como você vê...
Entenda a força da realeza
Sorriso que ilumina o dia
Olhos de lince a cada gingada
Fala afiada, revide e defesa
Sou exatamente como você vê...
Não negue meu ser mulher negra
Não omita meu valor ancestral
E nunca,
Nunca mais ouse me fazer invisível!

1 Poeta, escritora, educadora e articuladora cultural. Integrante do Mjiba − Coletivo de Mulheres Negras da Zona Sul de São Paulo,
organizou juntamente com Elizandra Souza a coletânea Pretextos de Mulheres Negras (2013). E-mail: carmen.faustino@hotmail.com.
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Pé no Quintal – ressignificando os nossos espaços de saberes,
valores e partilhas. Uma breve história da Capulanas – Cia de Arte
Negra
Débora Marçal1

Onde tudo começou...

Em 2009, fomos contempladas pelo edital do ProAC de Teatro – Circulação de Espetáculo de Teatro,
da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo. A ideia era bem simples: circular com o espetáculo “Solano
Trindade e suas Negras Poesias” em cinco cidades do estado de São Paulo. E foi exatamente o que fizemos2.
Na escolha das cidades um amigo, Allan da Rosa, nos convidou para apresentar na cidade de Taboão
da Serra. Nós de pronto aceitamos, acreditando que ele arrumaria um teatro para que nossa apresentação
acontecesse.
Para nossa surpresa e posteriormente nossa alegria, ele nos convidou para que nos apresentássemos
na sede das Edições Toró, editora independente que ele criou junto com Matheus Subverso. Só que a sede era
a casa deles, um quintal cheio de casas, gatos e plantas, em uma das ruas que circunda o cristo redentor do
Taboão da Serra, cidade vizinha a São Paulo. O quintal era bem típico de periferia: uma escada, um corredor,
um tanque coletivo, um jardim com algumas plantas misturadas com mato, uns varais e alguns gatos. Até aí,
tudo normal.
Quando chegamos e vimos o espaço, constatamos que teríamos um grande pepino para resolver,
e realmente tínhamos. Como seria descer o público no decorrer do espetáculo naquelas escadas, já que o
espetáculo se inicia do lado de fora do “teatro”? Como dançar e nos equilibrar nessa parte do quintal em que
o chão é bem inclinado? O que fazer com tantos gatos? Por onde entrar e sair? Como montar a luz? As pessoas
se sentariam onde? Não havia cadeiras para todo mundo, e mesmo se tivesse não caberia nesse corredor
estreito. E se chovesse? Onde passar as projeções que constituíam o nosso cenário? Não havia parede branca,
não dava para colocar um telão. Definitivamente, não era um teatro, e estava muito além do que chamávamos
de espaço alternativo.
Ao final da apresentação percebemos que o nosso espetáculo naquele momento tomava um outro
rumo. Na verdade, naquele exato momento nosso fazer artístico ganhava sentido naquele cenário. A nossa
fala se tornou mais potente, nossos corpos mais presentes, nossa estética encontrou força e sentido para

1 Atriz integrante da Capulanas − Cia de Arte Negra, dançarina, arte educadora, coreógrafa, figurinista, designer e proprietária da
empresa Preta Rainha. E-mail: deboramarcal@gmail.com.
2 Capulanas − Cia de Arte Negra é formada por Adriana Paixão, Débora Marçal, Flávia Rosa e Priscila Obaci.
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existir. Encontramos nosso lugar, ou melhor reencontramos nosso lugar. Aliás, lugar de onde nunca devíamos
ter saído, nosso quintal.
Quando resolvemos fazer arte, montar um grupo de teatro, foi justamente para falarmos de assuntos
que nos interessavam e nos diziam respeito, nós mesmas. Mulheres, negras e periféricas, cujas histórias de
vida se entrecruzam sempre nos mesmos pontos: a falta ou pouca referência e representatividade positiva nas
artes, de assistências, sejam elas psicológicas, sociais, afetivas, estruturais, entre outras. Entre essas faltas que
nos preenchiam, estava a falta de acesso a espaços como salas de teatro, cinema que encontramos facilmente
em bairros mais centrais por exemplo.
Por muitas razões, não ocupamos esses espaços. São distantes, caros e na maioria das vezes, o que está
sendo oferecido, dito, veiculado não nos acessa, não cria qualquer diálogo com nossas experiências de vida e
muito menos com as nossas expectativas. Não nos representa. São só mais um monte de espaço onde as ações
que acontecem são para perpetuar a invisibilidade que nos acomete.
Essa experiência no Taboão foi um divisor de águas. Já sabíamos o que queríamos falar, como queríamos
falar e para quem. Só faltava onde. Quando esse espaço nos abraçou, tudo o que dizia respeito à nossa forma
de agir, de pensar e de estar no mundo se tornou fomentador da nossa expressão artística.
Falar dos nossos cabelos crespos, das formas que têm nossos corpos e traços negros, falar dos diferentes
tons e texturas da nossa pela preta, de nossos anseios, percepções e descobertas, falar de nós utilizando
ferramentas artísticas como o teatro negro, a dança negra contemporânea, em um espaço físico onde dizer
sobre questões negras faça sentido... Com certeza, isso fez toda a diferença na nossa existência como coletivo
artístico negro.
A representatividade que buscávamos fazia sentido mais de uma vez na mesma ação. Primeiro porque
queríamos histórias negras em cena. Depois, queríamos que fossem interpretadas por corpos negros, que
tivessem elementos negros. Esse, por sinal, é a premissa do teatro negro: corpo negros interpretando questões
negras, com elementos negros em cena. E o quintal, portanto, trouxe a “cereja do bolo”.
Nesse contexto estavam nossas mães, tias, primas, vizinhas, amigas que, como nós, buscavam essas
formas de se verem no mundo. Elas, assim como nós, não estavam em espaços de teatro convencionais, onde
a arte contemplada é uma arte elitista, branca e indiferente às nossas questões. Estavam e estão nas periferias.
Muitas dessas mulheres, até mesmo, nunca tinham ido ao teatro.
No ano seguinte, fomos contempladas com o edital de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo e
realizamos o projeto “Pé no quintal”, que consistia na apresentação do espetáculo “Solano Trindade e suas
Negras Poesias” em trinta quintais das periferias de São Paulo. E lá fomos nós.
Chegávamos cedo, um pouco antes do almoço. Passávamos o dia inteiro com a família que sedia o
quintal para receber o espetáculo. Éramos interrogadas, auxiliadas e acompanhadas por todas as crianças da
casa e muitas crianças do bairro. Aquilo era realmente um evento na comunidade.
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Apresentávamo-nos em qualquer lugar que fosse considerado quintal. Podia ser um terreiro, uma
pracinha em frente à várias vielas, a beira de uma represa, chegando a acontecer de ficarmos dentro de uma
nuvem de pernilongos.
Espaços precários, lugares onde puxávamos a luz do poste e derrubávamos a energia elétrica do bairro
inteiro, às vezes por horas. Fazíamos a apresentação à luz de velas, lanternas. Se era difícil acolher bem
uma família, imagina acomodar uma peça de teatro, com seis artistas em cena e mais uma equipe de quatro
pessoas, cenário, iluminação, projeção? Mesmo assim, qualquer espaço de comunhão era uma possibilidade
para receber nosso espetáculo.
No meio de tudo isso, íamos revivendo nossas memórias de infância. As vivências com nossos mais
velhos eram lugares de conforto. Mesmo dentro de uma precariedade, aquilo nos alimentava de muitas
formas. Tudo acontecia nesses lugares muito familiares para nós.
Essa é a função do quintal: comungar o alimento, os afetos, o samba rock, a dança, os ritos de passagem,
como batizados, festas infantis, as dificuldades, a infância, o adolescer, o envelhecer. Muitos momentos de
nossas vidas passamos em quintas com as nossas famílias e com a nossa comunidade.
Os quintais para nós, quando crianças, eram espaços mágicos entre a rua e a casa, às vezes demarcado
por cercas, portões, grades, paredes de madeira, onde o mais importante era a brincadeira, as descobertas
que esses espaços nos permitiam fazer com toda a segurança e a privacidade que uma criança necessita para
desbravar seus mundos.
Estávamos realizando uma volta ao passado, tornando real uma reparação em nossas histórias, em
nossos espaços potenciais de vida, relembrando memórias perdidas, revivendo situações que nos constituíram
como pessoas, como, por exemplo, o dividir.
Circular pelos quintais falando para mulheres negras sobre a construção de identidade negra positiva
nos permitiu perceber que era necessário muito mais que a beleza e a representação por meio da imagem. O
que estávamos falando exigia outros suportes e referências, como a saúde.
Nesse mesmo projeto “Pé no Quintal”, através de nossos ciclos de palestras ONNIN, tivemos contato
com o professor Marcos Ferreira, da Faculdade de Educação da USP, que em seus muitos estudos, fala sobre
o Espírito Sangoma3.

Sangoma, goma sã – São Paulo, Zona Sul, Jardim São Luís

Nas comunidades Zulus, Sangoma é a pessoa incumbida ancestralmente de cuidar da saúde cultural,
física, psíquica e espiritual da aldeia/comunidade. Existem homens Sangomas, mas em sua grande maioria
são as mulheres que recebem um recado por meio de sonho dizendo que herdaram essa função.

3 FERREIRA-SANTOS, Marcos. Sangoma: um presente sagrado da tradição Zulu. In: CATANI, Afrânio Mendes; PORTO, Maria
do Rosário Silveira; PRUDENTE, Celso; GILIOLI Renato (orgs.). Negro, Educação & Multiculturalismo. São Paulo: Editora Panorama,
2002, p. 23-50.
Griôs da Diáspora Negra
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Para essas comunidades, nosso corpo possui cinco líquidos sagrados: o suor, o sêmen, a lágrima, a
saliva e o sangue, mais precisamente o fluxo menstrual. Esses líquidos sagrados só são trocados com quem
nos relacionamos e com quem amamos.
No projeto “Pé no Quintal”, tínhamos no orçamento uma verba destinada a alugar uma casa. Essa casa
seria nossa sede administrativa e espaço onde reproduziríamos nosso quintal para apresentarmos a peça, tal
como fizemos nos trinta quintais por onde passamos.
Talvez tenhamos sido um pouco ingênuas, porque, para a nossa surpresa, nós, quatros jovens negras
solteiras, sem emprego fixo, altivas e artistas, não conseguimos alugar uma casa na periférica Zona Sul de
São Paulo. E por motivos óbvios... Ligávamos, acertávamos tudo pelo telefone, na hora de ver a casa... Com
certeza boa coisa não saía.
Na maioria das imobiliárias por que passamos, as perguntas via de regra eram: “Quantas pessoas
vão morar na casa?”; “Mas vocês terão dinheiro para pagar o aluguel?”; “Vocês vão receber homens?”. Ou
recebíamos respostas do tipo: “Já alugamos”. E não adiantava questionar: “Mas acabamos de confirmar pelo
telefone”. Com isso, passaram-se dezoito meses de projeto e tivemos que remanejar o dinheiro destinado para
pagar o aluguel.
Na segunda tentativa, fomos menos ingênuas, procuramos casas, espaços que já tivessem sido ocupados
com atividades nesse sentido. Conseguimos uma casa antiga no Jardim São Luís, onde funcionava uma ONG
que oferecia atividades artísticas e sociais a crianças e jovens do bairro.
Alugada a casa, mãos, pés, cabeça, corpo inteiro à obra. Iniciamos as atividades imediatamente,
reformamos e fomos dando uma cara mais aconchegante para o espaço, que antes da construção do espetáculo
era simplesmente nossa sede administrativa e local de encontros e de nossas atividades de formação, os
ONNIMs. Depois, com a construção do espetáculo foi ganhando outras caras e finalidades.
Temos uma gíria aqui na Zona Sul que consiste em chamar a casa de goma. Então, quando queremos
convidar alguém para ir à nossa casa dizemos: “Cola lá na minha goma”. Nesse projeto, falando sobre saúde,
sobre a possibilidade de ter um corpo saudável, nosso corpo como nossa casa, nossa goma, goma sã, casa sã,
chegamos a Sangoma, um trocadilho que conseguia dar conta dos significados implícitos na ação de falar
sobre saúde de mulheres negras na periferia da Zona Sul de São Paulo.
A princípio, a ideia era ocupar o quintal da casa para construir esse espaço a partir da experiência que
vivemos nos quintais que passamos com o projeto Pé no Quintal. Durante a montagem da peça, o diretor
Kleber Lourenço sugeriu muitas experiências, inclusive a de ocupar a casa inteira. A ideia foi muito feliz.
A casa foi ressignificada e cada cômodo ganhou uma personagem, e cada personagem representa um
líquido sagrado do corpo. São seis mulheres que transitam entre o sagrado e o mundo real e vão contando suas
histórias de vida, suas doenças e suas possibilidades de cura. Nesse trânsito, essas seis mulheres Sangomas
dividem com o público suas experiências de vida, histórias que dialogam com problemas enfrentados pela
população negra, mas com um foco sobre as mulheres negras.
89
Esses problemas passam pela precariedade no atendimento e na estrutura no sistema público de saúde,
pela dificuldade de construir e vivenciar relacionamentos afetivos, pelos impactos do racismo que afetam
diretamente nossa saúde espiritual, social e, portanto e principalmente, a nossa saúde física. Entre algumas
outras questões, estão também a violência contra a mulher, a desvalorização e a sexualização do corpo negro
feminino. Todos esses aspectos sociais acabam por contribuir com o adoecimento de milhares de mulheres
negras e todas as partes deste país.
Um dos objetivos do espetáculo é contar um pouco sobre como essas mulheres se curaram, e dividir
com o público algumas possibilidades de cura, fugindo é claro de uma postura arrogante, como se fossemos
detentoras de uma fórmula que impeça que milhares de mulheres adoeçam. Em vez disso, a ideia é
compartilhar pequenas formas que descobrimos ao longo de nossas pesquisas, e por que não dizer de nossas
vidas também, que nos proporcionaram um olhar para nós mesmas mais atencioso, amoroso e por isso com
mais possibilidade de vida e de curas. Afinal, a casa está aberta e os ambientes precisam ser visitados.

Griôs da Diáspora Negra


90

Figura 1 – Folha do baobá acolhida por Ekedy Sinha. Olinda,


novembro/2012. Foto: F. Batista

Aguardando fotos originais


incluir gráficos
91
Baobás como marco territorial da militância negra:
poética, militância e educação1
Fernando Batista dos Santos2

Figura 1 – Folha do baobá acolhida por Ekedy Sinha. Olinda, novembro/2012. Foto: F. Batista

Laroyê, Exu!

1 Dedico este trabalho a Inaldete Pinheiro de Andrade, diva do Movimento Negro Pernambucano, por conceder licença a minha
fala; Martha Rosa Figueira Queiroz, que traz espiritualmente a imponência e a resistência das velhas figueiras, por legitimar o meu ser e
estar na construção desse saber; Gersonice Ekedy Sinha de Azevedo Brandão, que, como uma das guardiãs daquele território-mito que
é o Terreiro da Casa Branca, simboliza todo um povo que não deu as costas para a sua religião, enfrentando crueldade, rejeição, tirania,
machismo e outros maléficos elementos que dão forma ao preconceito, para que a história e a memória do Candomblé nesse país não fossem
subjugadas, muito menos preteridas por outras histórias e memórias; por justificar o meu amor pela Bahia. Agradeço especialmente a Ana
Flávia Magalhães Pinto e às idealizadoras do Festival Latinidades, Jaqueline Fernandes e Chaia Dechen, pelo convite e pela oportunidade
da fala.
2 Mestre em Antrolopologia e em Gestão Pública para o Desenvolvimento do Nordeste pela UFPE, idealizador do Roteiro dos
Baobás no Recife, e pesquisador-colaborador do projeto (Im)Plantando Morada dos Ancestrais em Salvador, Projeto do CEAO/UFBA e
SEMUR. E-mail: fbatistape@gmail.com.
Griôs da Diáspora Negra
92
24 de julho de 1908. Das entranhas do bairro de São José, palco da Noite dos Tambores Silenciosos3, lá
no Recife, nascia, antes mesmo do frevo, um garoto que mais tarde assim lamentaria:
Procurei no Terreiro
os santos d’África
e não encontrei.
Só vi santos brancos,
me admirei!

Que fizeste dos teus santos?


Dos teus santos pretinhos?
Ao negro perguntei.

Ele me respondeu:
meus pretinhos se acabaram.
Agora,
Oxum, Yemanjá, Ogum,
É São Jorge,
São João
e Nossa Senhora da Conceição.
Basta, negro!

Basta de deformação! 4

3 Atualmente, uma grande congregação dos Maracatus de Baque Virado que ocorre no Pátio do Terço – palco, também, dos afoxés
pernambucanos –, na segunda-feira do carnaval recifense, cujo ápice se dá à meia-noite, quando as alfaias silenciam e as luzes se apagam,
para que se ecoem cânticos em homenagem aos ancestrais yorubanos. Campos nos oferece um significativo panorama do evento desde
o princípio, quando assumia cunho exclusivamente religioso e nem sequer contava com a presença dos Maracatus, até a midiatização
dos tempos atuais; e Queiroz nos oferece a visão da militância negra pernambucana. Cf. CAMPOS, Zuleica Dantas Pereira. Das tias
do Pátio do Terço à Noite dos Tambores Silenciosos: espetacularização dos Xangôs do Recife pelos Maracatus e Afoxés. XI Congresso
Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais, 2011. Anais. Disponível em: www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1307109390_
ARQUIVO_zuleicaCONLAB.pdf. Acesso em: jan. 2015; e QUEIROZ, Martha Rosa Figueira. Onde cultura é política: Movimento
Negro, afoxés e maracatus no carnaval do Recife (1979-1995). Tese (Doutorado em História) − Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade de Brasília, Brasília, 2010.
4 TRINDADE, Solano. Deformação. In: TRINDADE, Solano. Poemas Antológicos de Solano Trindade. Seleção e introdução de
Zenir Campos Reis. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2008.
93
Aquele garoto encontrou na poesia uma forma de expor a realidade sociocultural dos afrodescendentes
e, sobretudo, combater práticas racistas que historicamente marginalizaram o povo negro e suas crenças.
Como no poema, onde o lamento se transforma num brado, Solano Trindade se insurge contra o sincretismo
religioso enquanto deturpação da religiosidade que nos foi legada pelos povos africanos e negação da nossa
negritude5.
Assim, Exu acompanha as minhas palavras iniciais não apenas por representar aquele ao qual devemos
as primeiras reverências, mas como símbolo da própria religião e do povo negro. Ao se ver sincretizado (por
que não falar vilanizado?) como o Diabo dos cristãos, Exu se revela a principal vítima da crueldade e da
rejeição, exemplo emblemático da vilania e inferioridade – contra as quais aquele garoto cedo se rebelou –
atribuídas historicamente pela sociedade brasileira ao povo negro e às religiões de matrizes africanas. Isso
porque compreendo esse Orixá como guardião não apenas de nossas porteiras e cidades, mas sobretudo de
nossa dignidade e autoestima, pois sendo Ele o elo entre o ayê e o orun, o vínculo entre nós e todas as forças
da natureza simbolizadas nas figuras dos demais Orixás, a destruição desse elo nos deixaria à deriva: sem
chão, sem fé, sem ancestralidade, sem ser.
Daí a importância daquele garoto para a produção literária afro-brasileira, pois segundo Souza, a
produção daquele recifense, na primeira metade do século XX, reconfigurava a história e a memória dos
afro-brasileiros6. Isso porque “interfere nos modos de pensar da sociedade e intervém nos sistemas de
representação”, complementa a pesquisadora, que o identifica como “mediador cultural que forja lugares
de diálogos através de sua atuação pessoal, através dos textos que produz e das atividades culturais que
organiza”7.
Não obstante o ambiente politicamente desfavorável vivenciado pela cultura afro-pernambucana
nos anos 1930, multiplicam-se e fortalecem-se naquele momento estratégias de inserção do negro na vida
sociopolítica do país. É assim que o homem um dia garoto se torna, no século XX, um dos ícones da militância

5 Parece-me que no momento histórico de produção do poema “Deformação”, nos anos 1930, auge da perseguição às religiões de
matrizes africanas no Recife como evidencia Queiroz, o sincretismo religioso era visto como expressão da violência cometida contra os
afro-religiosos, embora alguns o qualifiquem como estratégia do povo de santo visando à sobrevivência de suas crenças. Não refutamos
essa possibilidade, desde que não se pretenda, assim, “suavizar” o sincretismo, descontextualizando-o intencionalmente (Cf. QUEIROZ,
Martha Rosa Figueira. Religiões Afro-Brasileiras do Recife: Intelectuais, Policiais e Repressão. Dissertação (Mestrado em História) −
Programa de Pós-Graduação em História, UFPE, Recife, 1999). Em tempos mais recentes, embora o Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador, BA,
tenha banido as figuras católicas; o fato é que o Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Terreiro da Casa Branca), considerado o mais antigo Terreiro de
Candomblé do Brasil; e o Ilê Axé Iyá Omin Iyamassê (Terreiro do Gantois), ambos na capital baiana também, preservam imagens e até atos
católicos, como a missa realizada na Igreja de Sant’Ana, do Rio Vermelho, constante no calendário anual de festividades promovidas pelo
Gantois, como extensão da festa da Orixá Nanã. Portanto, não há por que falarmos, na atualidade, de sincretismo religioso como tentativa
de embranquecimento da religiosidade afro. O que ocorre é a manutenção de práticas aprendidas (e apreendidas) com os ancestrais mais
próximos, não os tão longínquos que se encontram numa memória que se construiu em torno da África que aqui nos chegou há 500 anos.
6 SOUZA, Florentina. Solano Trindade e a produção literária afro-brasileira. Revista Afro-Ásia, n. 31, 2004, p. 277-293.
7 SOUZA, Florentina. Intelectual negro e mediações culturais: Solano Trindade. Scripta, v. 8, n. 15, 2004, p. 228.
Griôs da Diáspora Negra
94
negra brasileira, em especial da pernambucana. E, embora já houvesse falecido no período de reorganização
do movimento negro – nos anos 1970, como argumenta Queiroz8 –, Solano Trindade se vê associado em
1988, num ato político-cultural, ao Baobá, árvore protagonista deste artigo, que:

No Senegal
é a grande árvore maternal
de corpulência de matrona.
De dar sombra, embora incapaz,
pois o ano todo vai sem folhas.
Pela bacia d-e matriarca,
pelas portinarianas coxas,
pela umidade que sugere
a sua carnadura,
aliás seca e oca;
vem dela um convite de abraço,
vem dela a efusão calorosa,
que vem

das criadoras de raças e das senzalas sem história9.

Os versos de João Cabral de Melo Neto nos dão pistas do porquê essa árvore se encontrar no brasão
daquele país da África ocidental (Figura 2), valendo refletir, preliminarmente, acerca do papel e do lugar da
flora, especificamente a africana, na toponímia e natureza brasileiras.


Figura 2 – Brasão do Senegal
Fonte: Google

8 QUEIROZ, Martha Rosa Figueira. Onde cultura é política... Solano Trindade faleceu em 1974, cinco antes da fundação do
Movimento Negro Recifense por Inaldete Pinheiro de Andrade e Edvaldo Ramos.
9 MELO NETO, João Cabral de. “O baobá no Senegal”. In: MELO NETO, J. C. de. Agrestes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 123.
95
Da praça à escola: qual o lugar da África no Brasil?

Conforme Fonseca, “a natureza incrustou-se na toponímia municipal brasileira de uma forma


avassaladora”. Daí “as cidades-terra (inspiradas na corografia), as cidades-bicho (na fauna), as cidades-árvores
(na flora)”, aludidas pelo autor10, mérito que não se restringe apenas às “cidades”, a considerar o topônimo
atribuído ao próprio país, inspirado na flora nativa11, e a estados como Pernambuco, onde a flora nativa
batizou e/ou inspirou o nome de cidades12 e bairros, como os da capital13. Nesse universo toponímico – onde
a contribuição indígena é significativa –, encontramos, igualmente, várias referências à flora14, embora a
contribuição africana, se comparada à indígena, é “quase nula à toponímica brasílica, mal chegando a duas
dezenas de nomes no universo de municípios brasileiros”15; a apontar “a mão pesada do estigma social”
que atingiu os afrodescendentes, “impedindo, também nesse campo, o aproveitamento de um número mais
expressivo de vocábulos de origem africana”, a evidenciar que “durante anos a elite brasileira uniu esforços em
busca de mecanismos que negassem nossa condição de país negro”16.
O mesmo não ocorre em relação ao verde de nossas cidades, onde a África se mostra onipresente17.
Entre as africanas aclimatadas ao arboreto urbano recifense, destacamos a protagonista deste artigo. Embora
não seja identificável pelos cidadãos com a mesma facilidade com que identificam uma mangueira ou uma
jaqueira, ambas asiáticas, e não domine a paisagem da capital pernambucana como essas e outras exóticas,
paradoxalmente a nossa protagonista se sobressai em relação às demais, ao assegurar lugar de destaque no
universo cultural pernambucano.
Assim, para além das praças e parques recifenses, essa árvore que “nos chegou de muito longe, do lado
de lá do mar; lá das terras africanas, das planuras e savanas para aqui se aclimatar”, como proclamam os versos
do cordelista Ernando Carvalho18, enraíza-se em nós não apenas mediante a nossa poesia, mas também via o

10 FONSECA, Homero. Pernambucânia: o que há nos nomes das nossas cidades. 2. ed. Recife: CEPE: FUNDARPE, 2008, p. 45.
11 Ibirapitanga: pau-brasil (Idem, ibidem, p. 48).
12 Algumas das citadas por Fonseca: Jataúba; Jatobá; Jucati; Jupi; Jurema; Ouricuri.
13 Buriti; Cajueiro; Espinheiro; Guabiraba; Mangabeira; Córrego do Genipapo; Pau-ferro.
14 No âmbito estadual: as cidades de Angelim, Cedro, Jaqueira, Limoeiro e Orobó. No âmbito municipal: os bairros da Jaqueira,
Tamarineira, Mangueira e Coqueiral.
15 Para Fonseca, Orobó, município do agreste pernambucano, seria um dos poucos casos toponímicos afro-brasileiros, embora haja
controvérsias. No sítio da Prefeitura do Município atribui-se a designação ao rio homônimo.
16 FONSECA, Homero. Pernambucânia..., p. 27; e SILVA, Claudilene. O processo de implementação da Lei n. 10.639/03 na Rede
Municipal de Ensino do Recife. In: AGUIAR, Marcia Aangela da Silva et alii (orgs.). Educação e diversidade: estudos e pesquisas, v. 2.
Recife: Gráfica J. Luiz Vasconcelos Ed., 2009, p. 9-38.
17 Onipresença assumida, em fragmentos de mata atlântica, pelo Ricinus communis (Mamona) e pelo Elaeis guineensis (dendezeiro);
nos canteiros recifenses, pelas ornamentais Delonix regia (flamboyants) e Spathodea campanulata (espartódeas), ambas produtoras de
vistosas flores vermelhas; e na paisagem do agreste e sertão, pela Euphorbia tirucalli (aveloz).
18 CARVALHO, Ernando. Bê-a-bá do baobá. Cordel. Recife: Coqueiro, 2008, p. 4.
Griôs da Diáspora Negra
96
teatro19, devendo ser ressalvado o papel e o local que o Baobá, em tempos recentes, vem assumindo no âmbito
educacional pernambucano, mesmo em experiências pontuais.

Da poesia à política

Cientificamente identificado como Adansonia digitata20, o baobá africano ultrapassa as fronteiras do


ambiental por onde se dissemina21. Em vários países africanos, além de alimentar seres humanos e animais,
alimenta mitos e lendas, fortalecendo a identidade e práticas culturais africanas como se depreende da leitura
do conto O embondeiro que sonhava pássaros, do moçambicano Mia Couto, no qual se evidencia o vínculo da
árvore com os chamados griôs, figuras da sociedade africana sobre as quais discorre Bá22. Atravessando
séculos e alcançando milênios, essa prática serviu como uma estratégia do povo senegalês de preservar vivos
os seus griôs na memória das várias gerações.
Ana Virgínia França, farmacêutica e homeopata antroposófica, em entrevista por e-mail, diz que o
que lhe chama atenção é a relação desta árvore “com o tempo e quantas vivências históricas ela já assistiu,
podendo em silêncio fazer as transformações para as décadas seguintes, purificando e mantendo viva a
história”. A homeopata complementa: “dentro da antroposofia chamamos a isto de seres que foram redimidos
através dos tempos por uma espécie, neste caso vegetal”. Assim, para os “grupos de visão ampliada de cura
ou cura vibracional”, como define França, a árvore, da qual se extrai o floral Boab, revela-se, também, um elo
entre gerações.
Graças à longevidade e às suas dimensões colossais, além desse vínculo com os mais velhos, elo entre
vida e morte, a árvore se vê apoderada como símbolo de força e resistência da militância negra. Em Pernambuco,

19 Refiro-me à peça “A árvore de Júlia”, da companhia pernambucana de teatro Duas Companhias, cuja estreia ocorreu em 2008, no Teatro
de Santa Isabel, em Recife. Por iniciativa de Fabiana Pirro, “uma” dessas Duas Companhias, toda a equipe de produção do espetáculo legou à
cidade do Recife uma muda da árvore, plantada em 25 de setembro de 2008, na parte posterior da praça que circunda a Faculdade de Direito do
Recife.
20 Há oito espécies adansônicas: além da Adansonia digitata comum à grande massa continental africana (África austral e central),
daí ser identificado como baobá africano, que se disseminou pela Índia e pela América, conforme Rashford (Africa’s baobab tree: why
monkey names?. Journal of Ethnobiology, v. 14, n. 2, 1994, p. 173-183); seis espécies são endêmicas da Ilha de Madagascar: Adansonia
grandidieri, Adansonia madagascariensis, Adansonia perrieri, Adansonia rubrostipa, Adansonia suarezensis e Adansonia za; e uma da
Austrália: Adansonia gregorii, conhecida como boab (WICKENS, Gerald E. The Baobab: Africa’s Upside-Down Tree. Kew Bulletin, v. 37,
n. 2. Springer on behalf of Royal Botanic Gardens, Kew, 1982, p. 173-209. Disponível em: www.jstor.org/stable/4109961. Acesso em: 15
jan. 2015).
21 SANTOS, Fernando Batista dos. Baobás em Pernambuco: Patrimônio político-cultural afro-pernambucano. XI Congresso Luso
Afro Brasileiro de Ciências Sociais, 2011. Anais... Salvador, 7 a 10 de agosto. Disponível em: www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/
anais/3/1307455594_ARQUIVO_BAOBASEMPERNAMBUCO.pdf. Acesso em: 21 jan. 2015
22 COUTO, Mia. O embondeiro que sonhava pássaros. In: COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1999; BÂ, Amadou Hampaté. A tradição viva. In: História Geral da África I: Metodologia e Pré-história da África. São Paulo: Ática, 1982,
p. 181-218.
97
onde baobás vicejam do litoral ao sertão pernambucano, embora o mais conhecido esteja localizado na Praça
da República, área central do Recife, a militância negra pernambucana começa a se apropriar politicamente
da árvore mediante as ações promovidas pelo jornalista Paulo Viana.
Assim, numa época em que o 13 de maio ainda dispunha de fôlego para rivalizar com o 20 de novembro,
encontramos Viana reunindo negros e negras, no ano de 1983, em torno de um baobá localizado no litoral
sul de Pernambuco. Não para “louvar” a Santa Princesa Isabel, mas para declamar “banzo, a dor que mata o
negro”, de autoria daquele jornalista e poeta.
Logo, no momento de retomada da consciência negra em Pernambuco, a árvore se apresenta como
forte aliada da militância que buscava conquistar e delimitar um território numa arena em que, politicamente,
disputa-se voraz e ferozmente a tríade formada pela memória, a identidade e o patrimônio23.
Vínhamos de um longo período em que nos impunham como herói Domingos Jorge Velho, enquanto
vilanizavam Zumbi dos Palmares; em que nos impunham como patrimônio e sacralizavam apenas as
igrejas barrocas lá do centro do Recife, enquanto demonizavam e perseguiam os ilês da periferia; em que
nos impunham crença, respeito e reverência apenas às Nossas Senhoras (mais deles que nossas!), enquanto
trucidavam as yabás24.
O baobá encontrava-se inserido, portanto, no rol dos bens patrimoniais mediante os quais a militância
buscou assegurar não apenas visibilidade política, mas sobretudo tomar as rédeas da construção da própria
memória numa época em que os critérios para a escolha do patrimônio nacional não levavam em conta a
representatividade social, como ocorre atualmente. Portanto, o patrimônio exótico aos olhos do consagrado,
mas perfeitamente inserido nas demandas dos que fazem a história anônima, como ressalva Gonçalves,
começava a reivindicar espaço25.
No entanto, para os grupos política e historicamente invisibilizados na arena do patrimônio, tão difícil
quanto conquistar é manter as fronteiras territoriais, sobretudo se levarmos em conta aquilo que o francês
Maurice Halbwachs constata num estudo sobre memória coletiva26. Halbwachs afirma que as memórias são
construções dos grupos sociais e são esses grupos que determinam o que é memorável e os lugares onde essa
memória será preservada.
Não à toa, Oliveira associa o que chama de “processos de territorialização” a “contextos intersocietários”
de conflito, e embora o autor aplique a noção de territorialização às questões étnicas, parece-me caber àquelas

23 DANTAS, Fabiana Santos. Direito fundamental à memória. Curitiba: Juruá, 2010.


24 Infelizmente ações contra os Orixás não se limitam ao período histórico delimitado por Queiroz, em Religiões Afro-Brasileiras
do Recife. Um exemplo é o ato cometido contra a estátua de Iansã, em 20 de novembro de 2014, nas dependências da Faculdade de Direito
do Recife – FDR. Cf.: www.leiaja.com/carreiras/2014/11/20/imagem-de-iansa-e-quebrada-na-faculdade-de-direito/; blogs.ne10.uol.com.br/
jamildo/2014/11/20/no-dia-da-consciencia-negra-imagem-de-iansa-aparece-degolada-na-faculdade-de-direito/. Acesso em: 26 jan. 2015.
25 GONÇALVES, Cláudio do Carmo. Ficções do patrimônio: raízes da memória em Gustavo Barroso e Mário de Andrade. Rio de
Janeiro: Ágora da Ilha, 2002.
26 HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.
Griôs da Diáspora Negra
98
raciais e sociais27. Isso porque o autor afirma que, como processo de reorganização social, essa noção implica
quatro fatores básicos: (1) criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma
identidade étnica diferenciadora; (2) construção de mecanismos políticos estabelecidos; (3) redefinição do
controle social sobre os recursos ambientais; e (4) reelaboração da cultura e da relação com o passado.
Logo, território resulta na construção de um domínio ou da delimitação do vivido territorial, mediante
múltiplas formas de determinações: da econômica à jurídica, perpassando a administrativa e cultural. É a área
demarcada onde o individual ou o coletivo exercem o poder. Segundo Raffestin, não podemos negligenciar
a totalidade das relações efetivadas na formação do território, que compreende a noção de territorialidade
definida pelo autor, a qual “reflete o multidimensionamento do vivido territorial pelos membros de uma
coletividade”28
Em suma, não dá para nos descuidarmos de territórios já conquistados, até mesmo na arena do
patrimônio cultural, pois como alerta Fabiana Dantas:
Essa afinidade do grupo com determinados bens culturais constitui a sua identidade, que,
aliada à sensação de continuidade de valores transmitidos pela tradição, faz com que
se perpetue o seu patrimônio cultural. Esse acervo perpetuado, o passado comum dos
indivíduos, lhes dá um sentido de identidade, de pertença, e torna-os conscientes de sua
continuidade, enquanto grupo, através do tempo29.

Assim, o ato político-cultural que unificou, em fevereiro de 1988, ambos os patrimônios – o poeta
recifense e o baobá – dava visibilidade, também, a uma série de bens patrimoniais afro-brasileiros de
natureza imaterial que iam ao encontro do que afirma a autora. Merece ressalva, no entanto, que o ato
ocorria meses antes da promulgação da nossa atual Constituição, quando só então passamos a contemplar a
patrimonialização para além da pedra e cal, privilegiando a representatividade social na escolha do patrimônio
cultural brasileiro. Refiro-me ao patrimônio que se convencionou conceituar imaterial, contemplado pelo art.
216 da Constituição de 1988, apenas regulamentado, no entanto, doze anos depois pelo Decreto n. 3.551/2000.
Ao atribuir ao baobá status de patrimônio cultural, a militância negra pernambucana antecipava, também,
uma discussão que passaríamos a ter tempos após a promulgação da Carta Magna de 1988, que à primeira
leitura parece dicotomizar o patrimônio material do imaterial. No entanto, a partir da patrimonialização do
baobá, refletimos que a distinção entre bens materiais e imateriais não deve ocorrer de forma tão dicotômica,
pois “os bens culturais só o são porque guardam uma evocação, representação, lembrança [como é o caso],
quer dizer, por mais materiais que sejam, existe neles uma grandeza imaterial que é justamente o que os faz
culturais”30. Daí, concluir-se que essa é a “razão pela qual se pode afirmar que os bens culturais, enquanto

27 OLIVEIRA, João Pacheco. Uma Antropologia dos “Índios Misturados”? Situação Colonial, territorialização e fluxos culturais.
Mana, v. 4, n. 1, 1998, p. 47-77.
28 RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993, p. 158.
29 DANTAS, Direito fundamental à memória..., p. 115.
30 SOUZA FILHO apud DANTAS, Direito fundamental à memória..., p. 116.
99
suporte, são apenas a memória externa, que depende da memória interna (dos membros e dos grupos) para
obter o significado”31.
Assim, a unificação das duas figuras – a árvore e o poeta – naquele ato de protesto ocorreu porque
ambas se encontravam desenraizadas, naquele momento, naquela Terra, pelo descaso e a negligência, como
se depreende da fala de Inaldete Pinheiro de Andrade.
Atribuída à negligência municipal, a queda do baobá na
praça do Campo Santo agiu na militância com a força de um
facão tentando decepar-lhe a memória

Figura 3 – Baobá “tombado” na Praça do Campo Santo.


Recife, 1987. Foto: Arquivo pessoal de Osvaldo M. F. de Souza.

Após aquele ato, a Prefeitura do Recife patrocinou


um inventário de modo a identificar e catalogar as árvores
centenárias espalhadas pela cidade, das quais seis foram
identificadas como baobás32, os quais são apresentados a
você, leitor e leitora, por significativas figuras da militância
negra nas Figuras de 4 a 8:

Figura 4 – Ekedy Sinha, do Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Terreiro da Casa Branca, Salvador, BA), compartilhando axé
com o baobá localizado às margens do rio Capibaribe, no bairro das Graças. 28 nov.2012. Foto: F. Batista

31 DAVALLON apud DANTAS, Direito fundamental à memória..., p. 117.


32 Atualmente a lista de baobás protegidos oficialmente pela Cidade do Recife somam trezes exemplares identificados em: SANTOS,
Baobás em Pernambuco... No entanto, é bem superior o número de espécimes dessa árvore que encontramos em praças e canteiros recifenses,
em virtude da propagação que se deu com grande ênfase a partir do final dos anos 1980.
Griôs da Diáspora Negra
100
Figura 5 – Baobá na rua Coronel Urbano Sena, no bairro
do Fundão, zona norte do Recife. Referência para o bairro, ali
não procurem por um baobá, mas por uma barriguda, como a
árvore é conhecida pelos moradores, o que inspirou Inaldete
Pinheiro de Andrade a escrever A barriguda que é um baobá. 20 jul.
2014. Foto: F. Batista.

Figura 6 – Vera Baroni, líder da Rede de Mulheres de


Terreiros de Pernambuco e o baobá da Praça da República, centro
do Recife. A história da presença dos baobás em Pernambuco
passa necessariamente por essa árvore. É a partir dela que outros
se revelam. Ali plantado no início do século XX, esta árvore
alimenta mitos como o de ter sido plantada pelo governador
Maurício de Nassau, no século XVII; e ter inspirado Saint-
Exupèry em O Pequeno Príncipe. 20 jul. 2014. Foto: F. Batista.

Em 2005, o antropólogo John Rashford afirmou ser


Recife “a cidade dos baobás” e Pernambuco, “o coração da
espécie no Brasil”33, o que fez com que fosse reservada à
árvore, na capital pernambucana, uma data (19 de junho)
no calendário oficial do município (Lei n. 17.099, de 22
jun. 2005), por ser “considerado um receptáculo de valores
sagrados por parte dos cultos afro-brasileiros, a exemplo
do Ilê Axé Oyá Bery34, do Movimento Negro Unificado e
demais núcleos espalhados pelo Recife”, constatando-
se “ser este gigante um importante vetor de identificação
antropológica para uma parte importante da população
recifense”35. Vislumbrando a atratividade turística dessas
árvores por conferir peculiaridade ao nosso arboreto
urbano, é que idealizei um roteiro turístico incluindo quatro
dos exemplares acima36.

33 Em carta à então vereadora Luciana Azevedo, autora do Projeto de


Lei propondo o “dia do baobá” no Recife.
34 No entanto, não há baobá nesse Terreiro recifense, localizado à rua
Antônio Viçoso, 200, no bairro do Barro.
35 Como consta das justificativas do Projeto de Lei elaborado, em
2004, pela então vereadora Luciana Azevedo (PT).
Figura 5 36 Cf. LEANDRO, Marcos. Baobá: árvores centenárias valem roteiro
turístico. Jornal do Commercio, Recife, 13 jul. 2006. Caderno Turismo, p. 6.
101
Dantas reconhece a importância da “transmissão
eficiente de conhecimentos entre gerações” como uma
necessidade de sobrevivência, não obstante o conflito que se
verifica quando as gerações tentam reproduzir o modo de ser
ou se emanciparem em busca da própria identidade37.
Embora reconheça a fragmentação do passado em
decorrência da velocidade das mudanças sociais e do
dinamismo cultural, a comprometer a funcionalidade do
modelo proposto por Marcel Mauss38, a autora ressalva a
importância da educação e da valorização do patrimônio para
aquilo que qualifica como perfeita construção da identidade39.

O papel da Lei n. 10.639/2003

No Brasil, apenas ao alvorecer do século XXI, que o


Governo brasileiro se predispôs a enfrentar, de maneira formal,
a brutalidade racista que impunha desprezo e esquecimento
aos santos pretinhos, como lamenta o garoto recifense no
poema com o qual eu principiei este texto.
Refiro-me à Lei que torna obrigatório o ensino da história
e cultura africanas e afro-brasileiras “sem um ranço colonial e
diminuidor das culturas africanas”, como reconhecem Botelho
e Nascimento40.
Silva corrobora ressaltando que o aludido diploma
legal “busca desconstruir estereótipos a respeito do continente
africano e dos afro-brasileiros”, pois impõe “o reconhecimento
e a valorização de culturas e identidades historicamente
discriminadas e invisibilizadas pelo desejo de branqueamento
do Brasil”41.

37 DANTAS, Direito fundamental à memória..., p. 115. BORDIEU, Pierre.


As contradições da herança. In: A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1998.
38 MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Ed. 70, 2001.
39 DANTAS, Direito fundamental à memória..., p. 115.
40 BOTELHO, Denise e nascimento, wanderson flor do. Educação e
religiosidades afro-brasileiras: a experiência do Candomblé. In: SILVA FILHO,
Geraldo e LOPES, Maria Aparecida de Oliveira (orgs.). Fragmentos de diásporas
africanas no Brasil. São José: Premier, p. 90. Figura 6
41 SILVA, Claudilene. O processo de implementação..., p. 33.
Griôs da Diáspora Negra
102
Ousa-se, assim, enfrentar e afrontar o racismo antinegro – como elemento estruturador das relações
sociais que foram estabelecidas no Brasil, fundamentando-se na ideia de inferioridade do negro e superioridade
do branco – no útero da sociedade, seu campo mais fértil, ao qual cabe importante papel social “nos processos
de construção de identidades sociais”42: a escola, de onde esse racismo parte fortalecido, tal como um câncer
em metástase, para outros campos da sociedade brasileira.
Isso porque, aqui no Brasil, o ambiente escolar ainda se mostra em sintonia com o projeto colonial que
instituiu o racismo e as práticas discriminatórias em nossas instituições e que, ao reproduzir as estruturas
da sociedade, alimenta esse racismo “como ideologia e como prática de relações sociais que invisibiliza e
imobiliza as pessoas, inferiorizando-as e desqualificando-as em função da sua raça ou cor”43, pois:
ao longo da história identificamos que a raça negra vem sendo vítima de estereótipos,
preconceitos e discriminações no cotidiano da escola, expropriada de apreender sobre a
história e a cultura dos afro-brasileiros e africanos pela negação desse conteúdo no currículo.
Tais aspectos interferem para os processos de empoderamento e afirmação da identidade
étnico-racial daquela população44.

Daí as dificuldades vislumbradas por Botelho e nascimento visando à implementação da Lei n. 10.639,
pois fazer com que essas Leis quimioterápicas que nos chegaram com o governo Lula – acrescento a Lei n.
11.645 de 2008 – transitem do campo da formalidade para o campo da prática, assegurando-lhes eficácia,
implica, sobretudo, o resgate da autoestima de povos que não só se viram rejeitados, mas vilanizados e
inferiorizados pela história desse país durante muito tempo.
Assim, entendendo território como uma arena de poder político, e a educação representa aí um dos
fatores de maior disputa, dada a sua capacidade de modificar não apenas comportamentos, mas sobretudo
consciências. Não à toa, é aí onde o racismo luta para se manter intocável.
Em Pernambuco, para não deixar a Lei n. 10.639 virar letra morta e dada a vinculação do baobá com
os processos identitários locais, temos exemplos pontuais de como a negritude vem delimitando o seu
território no campo educacional, ambientando essa árvore à realidade curricular de um estabelecimento
escolar recifense, como mote para o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira. No entanto, vale
salientar, preliminarmente, o papel da Militância Negra pernambucana nos anos 1980, visando a assegurar
um protagonismo na história do Brasil.

42 MOURA, Dayse Cabral de. O processo de implantação da Lei n. 10.639/2003: práticas discursivas na Educação de Jovens e
Adultos − Reflexões sobre a construção de identidades étnico-raciais. In: AGUIAR, Marcia Angela da Silva et alii (orgs.). Educação e
diversidade: estudos e pesquisas, v. 2. Recife: Gráfica J. Luiz Vasconcelos Ed., 2009, p. 40.
43 SILVA, O processo de implementação..., p. 12.
44 MOURA, O processo de implantação..., p. 61.
103
O papel da Militância Negra Pernambucana na implementação da Lei n. 10.639

No processo de construção da Lei n. 10.639/2003, Silva aponta a contribuição do Movimento Negro


Pernambuco, destacando-se a atuação da idealizadora daquele Ato político-cultural que vinculou aquele
garoto ao baobá:
Discussões realizadas por vários artistas e educadores do Estado resultaram numa
primeira versão do projeto de lei que, por meio da articulação da escritora e ativista
negra Inaldete Pinheiro, foi apresentado e discutido com o então Deputado Estadual
de Pernambuco Humberto Costa45.

1988 se revela como um dos mais profícuos para a militância negra pernambucana, pois enquanto
envidava esforços visando à visibilidade político-cultural mediante uma gama de patrimônios vinculados à
tradição afro-brasileira, como já mencionado, recepcionou o VIII Encontro de Negros do Norte e Nordeste.
Realizado pelo Movimento Negro Unificado, em julho daquele ano, na capital pernambucana, o Encontro
teve como tema “O Negro e a Educação”, podendo ser considerado como uma das sementes que, anos mais
tarde, germinaria como a Lei n. 10.639/2003, como se depreende do trecho abaixo:

De acordo com o relatório da atividade, o encontro teve como preocupação central


“questionar a negação da importância do negro na formação social brasileira, através
dos meios oficiais de educação do país”. As proposições que resultaram dos debates
realizados no encontro apontam para a necessidade de introduzir o estudo da História
da África nos currículos escolares; discutir o papel da professora e do professor na
descolonização do ensino; e considerar a aprendizagem pela prática cultural, como
elementos importantes para o sucesso do processo de ensino/aprendizagem da
população negra46.

Assim, a promulgação da Lei se revela como uma conquista histórica do Movimento Negro Brasileiro,
por se tratar da primeira (e significativa) mudança no sistema educacional brasileiro das últimas décadas,
pois nos encoraja a enfrentar o racismo antinegro na escola, cujo currículo e práticas curriculares se prestam
a mediar a invisibilidade da população negra e de sua cultura47.

Diante do exposto por Silva, o ambiente escolar, quando se predispõe a “se reeducar”, figura como um
valioso instrumento visando a alicerçar a mobilização afetiva em torno do Baobá, porque “ao ser incorporada
pela escola, uma ação por mais ingênua e despretensiosa que possa parecer, tem força pedagógica”48.

45 SILVA, O processo de implementação..., p. 18-19.


46 Idem, ibidem, p. 16-17.
47 Idem, ibidem, p. 17.
48 GONÇALVES apud SILVA, O processo de implementação..., p. 15.
Griôs da Diáspora Negra
104
E se Inaldete Pinheiro de Andrade, nos anos 1980, atua como elo entre a militância negra pernambucana
e o baobá, reforçando laços identitários, e concomitantemente se destaca, em âmbito estadual, no processo
embrionário da Lei n. 10.639, hoje contribui para estreitar a relação baobá-escola, graças à produção literária
voltada ao gigante africano (embora esta produção ainda não seja adotada oficialmente pelas redes municipal
e estadual de ensino)49. Evidencia-se, assim, a contribuição inaldetiana não apenas à materialização da Lei
n. 10.639/2003, mas, também, à implementação do aludido diploma legal. Não à implementação, pura e
simplesmente, mas, sobretudo, à ressignificação da Escola como espaço pedagógico (des)construtor de
ideologias.
Vale salientar que a opção pelo baobá não ocorre aleatoriamente. Trata-se de uma estratégia que
alguns/mas educadores/as pernambucanos/as encontraram para introduzir ao currículo escolar a temática
recomendada pela Lei n. 10.639, dada a curiosidade que o exemplar adansônico desperta no corpo discente
infanto-juvenil, quando a este é oportunizado o contato com a árvore, como se percebe quando das visitas de
escolas públicas e particulares ao Palácio do Governo Pernambucano. Por outro lado, o baobá favorece uma
africanização das nossas práticas educacionais ao oportunizar a utilização dos mitos afro-brasileiros como
ferramenta educacional, assegurando, portanto, a eficácia do diploma federal.
Como nos lembra Machado, para quem “os mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser
humano”, os mitos greco-romanos é que se veem privilegiados pela nossa Escola, silente no que diz respeito
à mitologia reinventada no Brasil50. De fato, a nossa Escola não nos impõe um “monotonoteísmo”, quando
permite que dela os mitos greco-romanos saiam para, por exemplo, nomear as nossas fraquezas. Quem nunca
ouviu falar do “calcanhar de Aquiles”? A “nossa” escola não nos impõe um “monotonoteísmo” quando nos
orienta a facultar a palavra final em nossas decisões jurídicas, caso não cheguemos a um consenso, a um
mito greco-romano: quem nunca ouviu falar do voto de Minerva? Assim nos cotidianizam esses mitos greco-
romanos, os quais da escola passam à praça, materializando-se em estátuas, eurocentrando-nos sem disso
muitas vezes nos darmos conta.
De tal sorte, (re)construir um modelo pedagógico à luz do que recomenda a Lei n. 10.639/2003, exige o
despertar para práticas educacionais que vão além da letra fria da norma, exigindo o buscar de ferramentas que
favoreçam, por exemplo, a introdução dos mitos afrobrasileiros no ambiente escolar, pois, como argumenta
Machado:
trabalhar como os mitos, como prática educativa, pode se constituir em uma das possibilidades
de se fazer configurar, finalmente, a identidade e a consciência pluricultural na escola, que
atingirá seu objetivo de construir cidadãos autônomos e coletivos.

49 Cf. O Bê-a-bá do Baobá. In: Revista Palmares, ano I, n. 1. Brasília: Fundação Palmares, p. 29-31 (conto); Baobás de Ipojuca.
Recife: Bagaço, 2008; e A Barriguda que é um Baobá. Recife: Edição do Autor, 2010.
50 MACHADO, Vanda. Mitos afro-brasileiros e vivências educacionais. Disponível em: educacao.salvador.ba.gov.br/adm/wp-
content/uploads/2015/05/mitos.pdf. Acesso: 14 jul. 2015.
105
Assim, opto por demonstrar como o baobá se insere no contexto educacional pernambucano, utilizando
dados que foram coletados em 2011 junto a uma escola pública pernambucana, visando à participação no III
Congresso Baiano de Pesquisador@s Negr@s e III Seminário Internacional Áfricas: Historiografia e Ensino de
História da África, realizados entre os dias 12 e 16 de outubro de 2011, no campus de Santo Antônio de Jesus
da Universidade Estadual da Bahia.

Escola Estadual Mariano Teixeira

A Escola Mariano Teixeira foi fundada em março de 1970, na avenida Capitão Felipe Ferreira, s/n, “numa
comunidade construída especificamente para funcionários públicos, a Vila Cardeal Augusto Álvares e Silva”,
sendo “o único estabelecimento de ensino do governo estadual na comunidade”, conforme João Monteiro,
historiador e morador do bairro há mais de quarenta anos51. Conforme a professora Célia Cabral da Costa
Arruda, que leciona História e Sociologia, desde fevereiro de 1994, em turmas do ensino fundamental e do
ensino médio, a disciplina História e Cultura Africana e Afro-Brasileira se encontra incorporada ao currículo
daquela escola desde 2005, ressalvando que se tratou “de uma iniciativa isolada de alguns professores”.
Nesse contexto, segundo a docente em entrevista por e-mail, o baobá assume “papel socioeducativo, visto
que conseguimos realizar no dia 18 de novembro de 2005, um plantio de um baobá [...] dentro da escola, onde
acompanhamos [professora e alunos] o seu desenvolvimento”.
O plantio, que marca o início do Projeto “A Semente que veio da África”, idealizado pela socióloga,
ocorreu em comemoração ao Dia da Consciência Negra, e celebrou, também, como se observa na placa
posteriormente confeccionada, o Dia do Baobá, instituído pela Lei Municipal n. 17.099/2005. Em 2007, a
docente destaca a criação do Teatro de fantoches Baobá, “com 6 alunos (Wil, Steffane, Thales, Elaine, Vanessa
e Alan) e mais 4 capoeiristas”, quando foi apresentado o espetáculo homônimo ao Projeto “Baobá: A Semente
que veio da África”, em menção ao livro de Heloísa Pires de Lima52. Há uma rotatividade entre os membros
do grupo em decorrência da conclusão do ensino médio. No entanto, observei que em 2011, quando coletei os
dados aqui expostos, o grupo se mantinha em atividade e apenas um dos alunos (Alan Cavalcanti da Silva, à
época com 17 anos, no último ano do ensino médio), participava do grupo desde a criação. Outros dois: Elias
Pereira de Amorim Júnior (16, 2º ano) e Glaudson Jorge da Silva, “Maninho” (19, 3º ano), participavam desde
2008. Também observamos que o número de participantes nunca se manteve inferior a seis alunos (2007,
2009 e 2010), chegando a sete (2008) e, no primeiro semestre de 2011, a nove; e no segundo semestre com oito
integrantes.
Em 2011, além do espetáculo com o qual o grupo foi inaugurado, são apresentados: “Malunguinho, o
Herói Pernambucano”, “O legado dos povos africanos”; e “As manifestações da Cultura Africana e Indígena”,
tendo sido realizadas apresentações na UFRPE, na Universidade Católica de Pernambuco, na Casa da
Cultura de Pernambuco, na UFPE, no remanescente quilombola Kipupa Malunguinho, na Bienal do Livro

51 Cf. blog do Quilombo Cultural Malunguinho Histórico e Divino: qcmalunguinho.blogspot.com.br. Acesso em: 26 jan. 2015.
52 LIMA, Heloísa Pires. A Semente que veio da África. São Paulo: Salamandra, 2005.
Griôs da Diáspora Negra
106
de Pernambuco, e em outras escolas públicas estaduais e municipais no Recife, em Jaboatão dos Guararapes
e São Lourenço da Mata. Os espetáculos do Grupo de Fantoches Baobá surgem como consequência dos
Projetos que sucederam ao “Projeto Baobá”, citados por Arruda: “A participação africana na formação cultural
brasileira”; e, mais relacionados à realidade cultural pernambucana, “O Engenho Massangana e Joaquim
Nabuco”; e “Malunguinho no imaginário dos Pernambucanos”. O Projeto “O Engenho Massangana e Joaquim
Nabuco” surgiram por ocasião das comemorações do centenário de morte de Joaquim Nabuco, em 2010 −
“Ano Nacional Joaquim Nabuco”, conforme Lei n. 11.946/2009. As ações da professora Célia Arruda, em prol
da implementação das Leis n. 10.639 e 11.645, tem se disseminado por outras escolas da Região Metropolitana
do Recife, como evidencia uma notícia constante no blog do Fórum Afro PE, postada em agosto de 201153.

A fala dos educandos

No blog do Kipupa Malunguinho, encontram-se manifestações de alunos e alunas da Escola Mariano


Teixeira, em referência ao vídeo “Um Pé de Quê? Baobá”54. Em entrevista, Tarciana da Silva Quintino (17,
3º ano), afirmou que o baobá não é apenas uma árvore, “porque pra mim ele faz parte da cultura Africana”.
Glaudyson Jorge da Silva (19, 3º ano), afirmou que o contato com as culturas africana e afro-brasileira se deu
por via de Célia Arruda. O aluno afirmou, ainda, ter interesse em aprender mais sobre a cultura e a religião
afro-brasileiras, sentindo-se “no dever” de mostrar a importância do baobá. Para Elias Pereira de Amorim
Júnior (16, 2º ano), que antes de Célia Arruda só havia estudado sobre o “mapa e as línguas da África”, o
trabalho com o baobá “pode deixar um legado para a Escola, que não tinha nenhum [trabalho] parecido”.
Amorim Júnior ressaltou, ainda, em relação às aulas de Arruda, a “dinâmica diferente de outros professores”,
por conta das “aulas legais e as pessoas aprendem fácil”. Alan Cavalcanti da Silva (17, 3º ano), que se declarou
evangélico, de pais católicos, afirma ter tido contato com a cultura afro-brasileira pela primeira vez quando,
cursando a 5ª série com a docente, estudou sobre o Quilombo dos Palmares. O educando que se utiliza da
palavra “orgulho” para descrever o trabalho com o baobá, informou que representou o Orixá Xangô numa
peça teatral e que, mesmo sofrendo preconceito pelo trabalho no grupo de fantoches – os outros o chamavam
“macumbeiro”, “Pai Alan” –, não o largou.

Palavras finais

24 de julho de 2014. Data em que essas histórias foram contadas para a plateia presente no Museu Nacional,
em Brasília-DF, durante o Festival Latinidades. Se vivo estivesse, Francisco Solano Trindade, nascido no bairro de
São José, no Recife, estaria completando 106 anos. Em reverência a Solano, permitam-me registrar minhas palavras
finais.

53 Cf.: Amigos do Baobá. Disponível em: forumafrope.blogspot.com/2011/08/amigos-do-baoba.html. Acesso em 26 jan.2015.


54 Um Pé de Quê? Baobá. Prod. Pindorama Filmes/Canal Futura; Dir. de Estevão Ciavatta. Rio de Janeiro: TV Globo, 2006, 25 min.
107
O principal mito relacionado ao baobá – o mito da árvore de cabeça para baixo – dá conta de que o “valor
se encontra na diferença”. Logo, a árvore se revela um eficaz instrumento ao favorecer a abertura da sala de aula
para que ali adentrem outros bens patrimoniais afro-brasileiros, favorecendo a heterogeneidade, contribuindo,
assim, para africanizar as práticas educacionais arraigadas no nosso cotidiano escolar, as quais buscamos combater
com o advento da Lei n. 10.639. Estimula, sobretudo, a autoestima de quem sempre se penalizou por não atender
aos padrões eurocêntricos louvados pela nossa sociedade.
Ao reconhecer que a “África tem uma importante fonte de sabedoria, fundamental para o reconhecimento
da densidade humana”, a antropóloga Heloísa Pires de Lima admite que falar do baobá, “árvore generosa, repleta
de simbolismos”, em torno da qual nasceram muitas cidades africanas, é “despertar nas crianças questões como
botânica, cultura e educação”55.
O trabalho desenvolvido por Célia Arruda na Escola Mariano Teixeira se revela louvável porque a
educadora, visando a fazer sua parte na implementação da Lei n. 10.639/2003, buscou elementos da cultura local,
de modo a fortalecer os processos identitários – o ser e pertencer a algum espaço – dos educandos envolvidos.
Mas a opção pela Adansonia digitata, ainda que à primeira vista pareça ocorrer por se tratar, única e
exclusivamente, de um símbolo propagativamente africano ao alcance das vistas e do contato do alunado recifense,
justifica-se no fato de que a árvore nos africaniza, enraizando-se a nós pela via do afeto, ao mesmo tempo em que
se beneficia das (propagadas, mas falaciosas) preocupações ambientais dos vários segmentos da atual sociedade.
Logo, não se defronta com a resistência legada a outros bens patrimoniais afro-brasileiros. Ao contrário, torna-se
modismo.
Desse modo é que, posteriormente à promulgação da Lei do Baobá, os vínculos da árvore com a cultura
local foram reforçados mediante a exacerbação do plantio em toda a Região Metropolitana do Recife, de mudas
em homenagem a ícones culturais, natos ou naturalizados pernambucanos – como Ariano Suassuna –; não
obstante, salvo engano, a nula ou tímida contribuição, de muitos desses nomes, à causa negra. No entanto, dentro
do conceito que nos oferece Bâ acerca dos griôs, são figuras que, como aquelas de lá, aqui atuam no fortalecimento
da identidade e memória locais.
Assim é que percebo se fortalecer uma memória afetiva em torno da árvore, que se legitima como guardiã
de ancestralidades quando se vincula (e a vinculam) aos portadores do saber. Por isso, no mundo, onde quer seja
e esteja, essa é a arvore que impõe e exige respeito aos que antes de nós vieram, às nossas raízes, aos que nos
sustentam identitariamente. E isso me faz acreditar que a história dessa árvore nunca será a história de um ser
humano só. Principalmente em Pernambuco, onde baobá tem nomes e sobrenomes, como, por exemplo, Francisco
Solano Trindade, o garoto e homem recifense mencionado desde o primeiro parágrafo deste texto. Como exclamou
a militância negra pernambucana em 1988, ano nacional da luta contra o racismo: “Solano Vive! Axé Baobá!”

55 Na matéria “Soltando a imaginação com os baobás”, publicada pelo Diário de Pernambuco, em 12 out. 2005.
Griôs da Diáspora Negra
108
109
Interseccional
Monica Carrillo 1

Será posible ser más que las comillas?


el objeto de análisis, de intersección
lo curioso que excita por la artesanía de sus rulos y
el supuesto laberinto del pubis ondulante?
 
Ser más que negra, que acrobática danzante,
defensora de un discurso con un vaho enmohecido,
profesora de consejos con remedios,
misteriosa, hechicera,
erótica, casi-puta,
rítmica, complaciente, 
resentida,
predispuesta, promovida?
Dejo que el sexo me oprima,
resisto,
pujo,
aguanto,
subvierto.
 
Mientras fantasea en su nebuloso chorro le hago creer que seré libre para él
que los románticos no tienen como propiedad a sus amantes,
que su poder se mostrará cuando por decisión propia, yo rechace mi libertad
a pesar de que me la ofrezca.

1 Jornalista, poeta, cantora e ativista afro-peruana. Fundadora e diretora da ONG Lundu − Centro de Estudios y Promoción
Afroperuano de Lima. E-mail: monica.carrillo.zegarra@gmail.com.
Griôs da Diáspora Negra
110
Rezo.
Abasikiri osario saiko
mientras hay dios hay diablitas.

Resisto un poco − “tú eres la deidad” − le digo,


no se cuándo dejé de ser como mi madre:
una cosa que trajeron en el bodegón
y me convertí en humana
no recuerdo en qué momento mi virginidad corrompida
por sus asquerosos dientes partidos,
atorados en su cara rosada
se volvió en algo parecido al cariño
 
tampoco cuándo me volví calculadora
y se me olvidaron las náuseas
al ver esa piel casposa y sin tonalidad alguna
encima
de mis noches.

A pesar de que me fui luego de ser libre


no pude evitar ser una quilombola
dejé como rastros
el olor a guanábana madura
que nunca quise que sintiera,
pedacitos de mis callos en las sábanas,
es decir, retazos de mi piel.
111
No puedo escapar aún de la intersección que me dejó el cruce de caminos
dejar de estar reducida a lo que él quiso que sea,
no voy a ser como él, no quiero que me miren como a ellas

Abasikiri, abasikiri,
no me importa ser diosa o diablita

haré cualquier cosa para


dejar de estar reducida a su categoría
rezaré el Padre Nuestro en Congo,
puedo adorar a la culebra con el rito del mayombé
bombé,
del mayombé
bombé
nunca me olvidé del
vudú,
tampoco de la ceremonia de iniciación de los
Endécemes,
aún recuerdo la Regla del Palo Monte
que las marcas blancas son símbolo de fatalidad
y cómo se adivina en el Tablero de Ifá
Abasikiri osario saiko
Abasikiri osario saiko
diosa o diabla
lo mismo da.

Griôs da Diáspora Negra


112
113
Nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar:
lições do feminismo negro norte-americano1
Patricia Hill Collins2

À medida que as/os participantes da sessão adentravam o auditório, um vídeo do YouTube do grupo Sweet Honey
in the Rock cantando “Ella’s Song” [Canção de Ella] foi exibido em um telão. O vídeo foi repetido duas vezes para permitir
que os participantes vivenciassem a performance, desfrutassem a música e, quando possível, acompanhassem a letra.
Para sensibilizarem-se em relação ao assunto, talvez queiram assistir ao vídeo antes da leitura do artigo. Disponível em:
www.youtube.com/watch?v=U6Uus--gFrc.

Durante o Freedom Summer de 1964, a ativista americana afro-americana Ella Baker estava diante de
um público enlutado, formado por 800 pessoas em Jackson, Mississippi. A Sra. Baker enfrentou um desafio
formidável naquele dia. Ela estava agendada para proferir um discurso diante da convenção para a nomeação
do Partido da Liberdade Democrática do Mississippi (Mississippi Freedom Democratic Party − MFDP), uma
organização de base que havia diligentemente organizado negros pobres em todo o estado do Mississippi
para exigir seus direitos ao voto. No entanto, dois dias antes do discurso da Sra. Baker, os corpos de James
Chaney, Andrew Goodman e Michael Schwerner, três trabalhadores dos direitos civis desaparecidos, dois
brancos e um afro-americano, haviam sido encontrados enterrados na cidade da Filadélfia, no Mississippi.
O que a Sra. Baker poderia dizer às famílias enlutadas e aos líderes comunitários atordoados reunidos nesse
encontro? Em seu discurso, a Sra. Baker enunciou as seguintes palavras: “até que a morte dos filhos de mães
negras seja tão importante quanto à morte de filhos das mães brancas, nós que acreditamos na liberdade não
podemos descansar”3. O que significam essas palavras neste contexto?
***
A morte de Trayvon Martin ocorrida em 12 de fevereiro de 2012, aos 17 anos, em Sanford, Flórida,
poderia facilmente ter sido esquecida como mais uma perda de um jovem afro-americano para a violência
armada. Nós nos Estados Unidos ouvimos essa história muitas e muitas vezes, especialmente quando jovens
negros matam uns aos outros, o que raramente é notícia de primeira página. No entanto, essa morte em

1 Este ensaio é uma versão revisada da conferência proferida no Festival Latinidades em de 2014. Tradução de Raquel Luciana de
Souza e Ana Flávia Magalhães Pinto.
2 Referência nos estudos sobre feminismo negro, é professora de Sociologia da Universidade de Maryland, College Park, EUA;
e autora de Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment (1990), Black Sexual Politics: African
Americans, Gender, and the New Racism (2005), On Intellectual Activism (2012), entre outros livros.
3 RANSBY, Barbara. Ella Baker and the Black Freedom Movement: A Radical Democratic Vision. Chapel Hill: University of North
Carolina Press, 2003, p. 335.
Griôs da Diáspora Negra
114
particular se tornou notável por duas razões. Em primeiro lugar, os detalhes desse tiroteio foram diferentes da
norma. Embora Zimmerman não fosse um policial, defendeu seu direito de disparar em Martin fundamentado
na controversa lei “Stand Your Ground”4, vigente na Flórida. Desarmado e carregando um pacote de doces,
Martin estava a caminho de casa, vindo de uma loja, quando Zimmerman o matou. Em segundo lugar, quando
a grande mídia ignorou a morte de Martin, os jovens lançaram uma eficaz campanha na mídia social, que
impulsionou o caso da morte de Martin à mídia nacional. Para os que apoiavam Martin, os fatos eram evidentes
− Zimmerman era culpado de ser justiceiro5. Ainda mais importante, a morte de Trayvon Martin sugeriu que
a eleição de Barack Obama em 2008 foi mais um retrato da dita sociedade pós-racial, ou democracia racial, do
que a sua realização de fato. Os defensores indignados de Martin percebiam-no como uma vítima inocente
de um racismo dito mais gentil, “cego à cor” [colorblind racism], no qual até mesmo falar sobre raça de alguma
forma promovia o racismo, ou que, ao mencionar a negritude, os/as negros/as chamavam a discriminação
racial para si próprios/as. O caso foi levado a julgamento, sendo Zimmerman acusado de assassinato em
segundo grau e homicídio culposo, e um ano depois, ele foi absolvido. O veredito chocou jovens ativistas que
esperavam que o sistema de justiça penal pudesse reparar esse erro. O que significaria “nós que acreditamos
na liberdade não podemos descansar” neste contexto?
***
Na noite de 14 para 15 de abril de 2014, 276 meninas foram acordadas no meio da noite e sequestradas
do Colégio de Ensino Médio do Governo em Chibok, Nigéria. O Boko Haram, uma organização jihadista
islâmica, assumiu a responsabilidade pelo sequestro. O grupo Boko Haram acredita que a raiz dos problemas
econômicos e sociais da Nigéria está em suas relações com o Ocidente, especialmente os efeitos da educação
ocidental sobre as jovens. No entanto, ao longo dos anos, o Boko Haram tem se tornado cada vez mais
violento, matando milhares de cidadãos nigerianos que aparentemente se oponham ao grupo. Em maio de
2013, o governo nigeriano reagiu, capturando ou matando centenas de integrantes do Boko Haram, sendo
que os membros restantes recuaram para áreas remotas. A partir daí, o grupo continuou a atacar civis em
investidas cada vez mais virulentas, como, por exemplo, o assassinato de 59 rapazes, em fevereiro de 2014, no
Colégio do Governo Federal. Em um cenário global, a violência do Boko Haram contra homens, mulheres e
crianças recebeu cobertura esporádica da mídia. No entanto, o sequestro das garotas atraiu a atenção global
de maneira sem precedentes. O envolvimento da mídia social, que começou na Nigéria, através da hashtag
#BringBackOurGirls no Twitter, atraiu o apoio de celebridades, como a atriz Angelina Jolie, Michelle Obama,
a primeira-dama dos Estados Unidos, e Malala Yousafzai, a jovem paquistanesa de 17 anos, ativista em defesa
dos direitos humanos, que sobreviveu ao ser baleada na cabeça pelo Talibã, por fazer campanha em prol
da educação de mulheres jovens. A despeito das críticas em relação à forma como o governo nigeriano

4 Nota de Tradução (NT): Nos Estados Unidos, as leis Stand Your Ground autorizam ao indivíduo proteger sua vida ou integridade
física quando se considerar em situação de ameaça, podendo usar qualquer tipo de força, até mesmo letal, para se defender. Variações desse
princípio legal estão vigentes em 23 dos 50 estados estadunidenses.
5 NT: Vigilante justice: Pessoa que não pertence a uma corporação policial ou militar, mas que vai ao encalço e pune pessoas
suspeitas de terem infligido a lei.
115
gerenciava a situação, propostas de ajuda vindas do exterior, e uma campanha das mídias sociais em escala
mundial, até julho de 2014, a maioria das meninas permanecia desaparecida. O que significaria “nós que
acreditamos na liberdade” neste contexto?
***
O desafio político para as mulheres afro-americanas e todas as outras que estão envolvidas em trabalhos
semelhantes de justiça social encontra-se na manutenção de um delicado equilíbrio entre ou desistir em face
de tais decepções, ou perseverar dentro dos estreitos espaços de vitórias limitadas e fracassos frequentes.
Sabemos que as lutas por justiça social, lutas pela liberdade, especialmente lutas afro-americanas em prol da
liberdade, são marcadas por mortes físicas, como a dos três trabalhadores dos direitos civis assassinados no
Mississippi ou Trayvon Martin. Também testemunhamos as mortes sociais de tantas crianças pretas, pardas
e pobres que são tomadas de nós pelas drogas, pelo tráfico sexual e pelo crime de rua, ou aquelas que, como
as estudantes nigerianas sequestradas, simplesmente desaparecem.
Sabemos que, não interessa o quanto amamos nossas/os filhas/os, vejamos sua beleza e nos preocupemos
com o seu futuro, as suas vidas permanecem sem importância para as elites do mundo. Crianças negras como
as estudantes nigerianas que tentavam obter uma educação, ou meninos afro-americanos que se aventuram
fora de suas casas para comprar doces, ou a juventude politicamente ativa de diversas raças, etnias, gêneros
e orientações sexuais que participam de movimentos de justiça social podem encontrar-se no lugar errado
na hora errada. Nossas crianças e jovens podem almejar um futuro melhor, mas inúmeras vezes elas/es
encontram as portas da oportunidade fechadas para elas/es. Quando o dano causado à juventude negra

Griôs da Diáspora Negra


116
se eleva ao nível de espetáculo dos meios de comunicação de massa – como ilustrado nos meus exemplos
introdutórios –, esperamos que as coisas possam ser diferentes. No entanto, esses surtos periódicos de
interesse por parte do público em geral em âmbitos nacional e global, e de figuras públicas e celebridades
pode diminuir muito rapidamente, deixando-nos potencialmente com uma percepção ainda mais desgastada
no que tange às possibilidades de alteração do status quo.
Quando se trata de trabalho da justiça social, o verdadeiro teste não se encontra na forma como
celebramos vitórias, mas sim em como nós respondemos à derrota. Nesse sentido, temos muito a aprender com
o feminismo negro norte-americano, a inabalável coletânea de ideias e práticas em constante evolução que
caracterizam o trabalho da justiça social das mulheres afro-americanas. Como mães, amantes, amigas, filhas,
irmãs, colegas e advogadas de nós mesmas, mulheres afro-americanas frequentemente têm se deparado com
diversas expressões de violência que sustentam o racismo, o sexismo, a exploração de classe, o imperialismo
e o heterossexismo. Em público, mas mais frequentemente no âmbito privado, lamentamos a perda de jovens
mulheres negras e homens negros para as ruas, as drogas, as prisões e a polícia. Estamos entristecidas por
conta da diminuição dos horizontes dos nossas/os filhas/os, quando passaram a acreditar que elas/es são
quem a sociedade americana diz que elas/es são. Sabemos que elas/es não vêm a este mundo como bebês
bandidos, bebês prostitutas, bebês ladrões, bebês trabalhadoras domésticas. Nós também lamentamos a perda
dos nossos próprios sonhos no âmbito dos sistemas de poder que desacreditam em pessoas de ascendência
africana. Muitas de nós testemunham a violência direcionada a jovens de forma bem próxima e pessoal, um
ponto de vista que torna esta injustiça social ainda mais palpável e pessoal. Infelizmente, muitas de nós já
experimentamos violência pelas mãos dos mesmos homens que amamos, e que trazem a raiva e violência para
nossas casas. No entanto, em algum nível, cada uma de nós compreende que não causamos a violência que
nos afeta como indivíduos, e que os problemas pessoais que encontramos exigem ação coletiva. O feminismo
negro vem assinalando há bastante tempo as conexões entre grupos de pessoas de diferentes raças, gêneros,
classes, etnias, sexualidades, idades, habilidades e nacionalidades que enfrentam desafios semelhantes com
a violência expressa de maneiras diferentes. Desde o nível individual até o global, longe de ser um artefato
histórico, para muitas mulheres afro-americanas, o pessoal ainda é profundamente político.
O refrão de “Ella’s Song”, “nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar”, fundamenta-se
na especificidade dessa luta contínua na vida das mulheres afro-americanas, tão pungentemente expressa
por Ella Baker, em 1964. No entanto, também sinaliza lições que podemos aprender com o feminismo negro
norte-americano. Eu escolhi essa música como inspiração para a minha fala porque eu necessito ouvi-la e
a sua mensagem nesse momento. Em um contexto acadêmico que se apropria, reinterpreta e empobrece o
significado do feminismo negro para agendas neoliberais, eu preciso ser lembrada das palavras proféticas
de Ella Baker. Em uma sociedade onde vidas negras parecem não ter importância, eu preciso de pontos de
referência como Ella Baker para me ajudar a navegar pela loucura do racismo, do sexismo e da exploração de
classe. Eu necessito de meios que me lembrem por que o que faço é importante, e por que continuar a fazê-lo,
apesar das probabilidades desfavoráveis, continua a ser válido. Eu suspeito que muitas/os de vocês se sintam
da mesma forma.
117
Nesta conferência, eu esboço três concepções ou “lições” selecionadas a partir da rica trama de ideias
do feminismo negro nos EUA que podem ter um significado especial para projetos contemporâneos de justiça
social. Inspirando-me no refrão “nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar”, da “Ella’s Song”,
eu examino três dimensões da execução do trabalho de justiça social. Em primeiro lugar, acadêmicas/os-
ativistas da justiça social precisam de uma linguagem mais sofisticada do coletivo, uma percepção revitalizada
do “nós”, que seja apropriada para projetos contemporâneos de justiça social. Para esse fim, sugiro que o
conceito de interseccionalidade do feminismo negro norte-americano constitua um marco analítico que possa
nos ajudar a entender melhor como nós podemos nos engajar no mundo.
Em segundo lugar, as lutas por justiça social são pautadas em princípios que não visam o ganho
pessoal imediato, mas sim o fortalecimento do bem social coletivo. Para os afro-americanos, as lutas em
prol da liberdade têm almejado tanto capacitar as pessoas negras como uma coletividade quanto fomentar
o respeito da sociedade por cada indivíduo no singular. Nesse contexto, “acreditar na liberdade” tem um
significado especial para as mulheres negras. Muito simples, se você acredita na liberdade, não só acredita
que a mudança é possível, mas busca desempenhar um papel no sentido de alcançá-la.
Terceiro, o feminismo negro norte-americano e as lutas semelhantes por justiça social requerem uma
concepção mais ampla de ativismo cotidiano. Muitas pessoas são politicamente ativas em sua vida diária,
mas podem interpretar erroneamente o seu próprio comportamento como não político. Sojourner Truth, Ida
Wells-Barnett, Angela Davis e outras mulheres afro-americanas que são legitimamente reconhecidas por sua
coragem em resistir publicamente à injustiça racial simbolizam o ativismo “real”. No entanto, uma vez que
muitas de nós somos bem mais comuns do que essas mulheres negras famosas, deixamos de perceber como
nossas ações individuais contribuem para nossa força coletiva. A liberdade é impulsionada por uma massa de
indivíduos íntegros, cuja ação coletiva confere vida a conceitos éticos como a liberdade. Não é suficiente falar
por falar de liberdade − temos também que trilhar o caminho, especialmente quando estamos cansadas/os.

Expandindo o “Nós”: o feminismo, a política de identidade e o coletivo


Até que a morte de homens negros, filhos de mães negras
Seja tão importante quanto a morte de homens brancos, filhos de mães brancas,
Nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar até que ela ocorra.
“Ella’s Song”, Bernice Johnson Reagon

“Ella’s Song” evoca um momento histórico específico das lutas em prol da liberdade negra nos
Estados Unidos (1950-1980) no qual a arte, a produção acadêmica, a oratória e o ativismo explicitamente
se informavam entre si. Faz sentido, portanto, que Bernice Johnson Reagon, cuja compreensão do poder da
música se aprofundou durante o seu envolvimento nas lutas pelos direitos civis, tenha composto a “Ella’s
Song”. Também é digno de nota que a interpretação da canção idealizada pelo grupo Sweet Honey in
the Rock tenha a tornado popular. Para mim, “Ella’s Song” significa a sinergia criativa que ocorre em um
Griôs da Diáspora Negra
118
movimento social quando artistas, ativistas, acadêmicas/os, mães, professoras/es, vizinhas/os e pessoas de
todas as esferas da vida se reúnem em torno de uma causa comum.
Visto que tenho escrito extensivamente sobre feminismo negro norte-americano como um projeto
de justiça social em outras publicações6, resumirei nesse texto três características seletivas distintas. Em
primeiro lugar, o feminismo das mulheres negras afirma a autoridade da experiência, argumentando que as
experiências individuais e coletivas com as injustiças sociais de raça, classe, gênero e sexualidade catalisam
perspectivas necessárias e importantes no mundo. As experiências de mulheres negras nas relações de poder
moldam nossas identidades pessoais e coletivas, bem como os problemas sociais com os quais nos deparamos.
Posicionando nossas experiências no centro da análise, argumentamos que, como mulheres negras, somos
eminentemente capazes de nos expressarmos por nós mesmas. Em segundo lugar, o feminismo negro norte-
americano constitui a produção intelectual de mulheres negras que reivindicam esse espaço analítico. Não
se pode separar a substância das ideias feministas negras do contexto social em que elas são concebidas,
contexto esse que as mulheres negras buscam modificar. Por exemplo, o feminismo negro norte-americano
certamente abraça a base dos direitos individuais em defesa do “mantenha suas mãos longe do meu corpo”,
mas também busca um fortalecimento coletivo e uma mudança estrutural que elimine essas violações de
direitos na sua fonte. Aliadas/os são bem-vindas/os nesse espaço, mas as mulheres negras devem estar no
centro. Em terceiro lugar, o feminismo negro não é apenas um sistema de ideias: mais especificamente, exige
ação. Dito de outra forma, o feminismo negro norte-americano é uma política de identidade negra feminista
que utiliza ações pautadas em princípios como resposta à injustiça social.
Embora esses temas raramente tenham recebido o rótulo de “feminismo” ou “feminismo negro”, as
mulheres negras têm os expressado consistentemente em diferentes épocas históricas. Durante as décadas
de 1950 e 1980, período no qual o feminismo negro norte-americano se tornou visível e identificado no seio
das comunidades afro-americanas, bem como na sociedade mais ampla, essas ideias borbulhavam em vários
locais. As mulheres negras utilizaram panfletos, ensaios, livros, apresentações musicais, ficção e poesia para
contar as verdades sobre suas vidas e analisar o seu significado. Essa disseminação da produção intelectual
das mulheres negras, por sua vez, promoveu o aumento da visibilidade do feminismo negro.
Nesse contexto intelectual e político, o manifesto do Coletivo Combahee River (1977) proporciona uma
das declarações mais precisas do feminismo negro, demonstrando a importância de uma política de identidade
de um “nós” coletivo7. O Coletivo evitou a autoria individual de seu manifesto, e em vez disso assinou como
um “coletivo”. O manifesto das autoras expressa em um lugar e por uma linguagem comum muitas ideias
importantes que permeavam o movimento. Por um lado, elas abraçaram uma política de identidade coletiva
que situava a singularidade das experiências de cada indivíduo dentro de um conjunto mais amplo de desafios

6 Ver, por exemplo: Collins, Patricia Hill. Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness, and the Politics of Empowerment.
New York: Routledge, 2000.
7 COMBAHEE-River-Collective. A Black Feminist Statement. In: GUY-SHEFTALL, Beverly (ed.). Words of Fire: An Anthology
of African-American Feminist Thought. New York: The New Press, 1995, p. 232-240.
119
que as mulheres negras enfrentam como classe. Ao reivindicar uma identidade coletiva, elas identificaram
padrões estruturais de injustiça social nos âmbitos da habitação, do sistema de saúde, da educação, do
emprego e dos locais públicos como fatores que influenciam as experiências de mulheres negras como
grupo. Por outro lado, o Coletivo fomentou uma linguagem de “opressões interligadas” para explicar esses
padrões estruturais, um conceito que precedeu o termo contemporâneo “interseccionalidade”. Finalmente,
por meio de organização e intervenções, o Coletivo moldou uma práxis que compreendia ideias e ações como
interconectadas. Para as mulheres afro-americanas, o ativismo no contexto da sua vida cotidiana foi crucial
para a elaboração de uma agenda feminista negra. Em outras palavras, o Coletivo fomentou um feminismo
negro que valorizava uma política de identidades coletivas que respeitavam a experiência, prescrevia a
análise dessas experiências em um contexto histórico e político mais amplo das opressões entrecruzadas, e
insistia na ação política.
O trabalho de indivíduos e grupos como o Coletivo Combahee River reflete ações tanto de mulheres
negras dentro do contexto das lutas negras pela liberdade quanto as formas de feminismo negro engendradas
por essas batalhas. Deve ser ressaltado que tal período marca o surgimento de um “nós” no espaço público
que refletia uma identidade coletiva de mulheres afro-americanas que era ao mesmo tempo intelectual e
política. Outro documento importante reflete a tendência desse período é o volume Black Woman, editado por
Toni Cade Bambara, que reuniu as vozes heterogêneas e as experiências de mulheres negras em um local de
fácil acesso8. Sem expressar nenhum ponto de vista homogêneo ou linha partidária, esse volume ilustra um
momento em que as mulheres negras se uniram para descobrir o que elas tinham em comum, bem como em
que diferiam. Dito de outra forma, essa coletânea exemplifica a natureza do trabalho em constante processo
de aprimoramento da agenda de justiça social fomentado por mulheres afro-americanas dentro do contexto
de políticas de identidade coletiva emergentes.
Apesar das experiências, análises e ações heterogêneas de mulheres afro-americanas, uma lista de
pontos em comum ganhou forma. Esses pontos eram (1) preocupações em relação ao local e ao mercado
de trabalho, a exemplo de desemprego, luta contra a discriminação no trabalho e salário, e assédio sexual
no serviço doméstico e no local de trabalho; (2) família e relacionamentos, remetendo a uma preocupação
com o bem-estar financeiro, emocional e/ou espiritual de seus entes queridos, bem como consigo próprias;
(3) comunidade e meio ambiente, ou seja, a necessidade de habitação segura e acessível, transporte, bem
como bairros que oferecessem acesso a oportunidades; (4) educação, a saber, escolas de qualidade e acesso
a oportunidades educacionais; (5) controle de imagens no âmbito da mídia e da produção acadêmica, a
exemplo de soluções para os persistentes estereótipos de mulheres negras retratadas como excessivamente
sexualizadas, pouco inteligentes e adequadas para o trabalho doméstico; e (6) violência e segurança, dizendo
respeito à preocupação de longa data das mulheres negras em relação à sua própria segurança contra a
violência doméstica, estupro e agressão sexual, bem como a segurança de seus entes queridos, filhos, amigos
e vizinhos.

8 BAMBARA, Toni Cade (ed.). The Black Woman: An Anthology. New York: Signet, 1970.
Griôs da Diáspora Negra
120
Cada um desses temas tem uma longa história para as mulheres afro-americanas e, apesar das
experiências heterogêneas com cada um deles, as mulheres negras, como coletivo, confrontaram os efeitos
de cada um. Tomemos, por exemplo, as análises históricas e contemporâneas de violência feitas por ativistas
acadêmicas afro-americanas. No início do século XX, Ida Wells-Barnett foi uma ativista incansável contra os
linchamentos9. Em seu trabalho sobre estupro, prisões e encarceramento em massa, décadas depois, Angela Y.
Davis baseou-se nos argumentos de Wells-Barnett contra o linchamento para ampliar uma análise feminista
negra da violência10.
Nem a noção de uma experiência coletiva das mulheres negras, tampouco o comportamento político
em prol dessas como coletividade era algo novo no âmbito do pensamento político das mulheres afro-
americanas. No entanto, três características do feminismo negro dos EUA dos anos 1960 e 1970 são instrutivas
para que possamos expandir a compreensão coletiva do “nós” na frase “nós que acreditamos na liberdade não
podemos descansar”.
Primeiro, grupos como o Coletivo Combahee River promoveram agendas explícitas de
autorrepresentação [self-advocacy] que romperam com o legado de lideranças masculinas na comunidade
afro-americana. Ou seja, ocorreu uma mudança visando complementar o serviço abnegado dentro e para as
comunidades negras que tinha por muito tempo estado profundamente arraigado ao trabalho comunitário
das mulheres negras, num senso de autorepresentatividade por parte delas mesmas. Elas exigiram uma maior
visibilidade, ou mesmo a equidade no âmbito do “nós” das agendas políticas afro-americanas. Essa demanda
não foi bem recebida à época, e continua a ser mal recebida por muitos homens e mulheres afro-americanas.
Confundindo autorrepresentação com egoísmo, a resistência ao feminismo negro norte-americano refletiu uma
falsa suposição de que o empoderamento dos homens beneficiaria automaticamente as mulheres e crianças
negras. No entanto, autorrepresentar-se sob o termo “feminismo negro” não prejudicou ou suplantou as
formas tradicionais de ativismo político; em vez disso, complementou-as por meio da crítica e da organização
paralela em torno das questões de raça, gênero e classe que puderam ocorrer dentro de espaços de mulheres
negras. As mulheres negras puderam suscitar um discurso crítico importante dentro das comunidades negras
– dentro do “nós” coletivo negro –, a fim de reforçar projetos afro-americanos de justiça social.
Uma segunda característica de feminismo negro norte-americano diz respeito aos efeitos de sua
visibilidade no espaço público para além das fronteiras das comunidades negras. Essa visibilidade promoveu
uma identidade coletiva das mulheres negras mais abertamente politizada, um novo “nós” politizado,
que as inseriu em um espaço público distinto da identidade política coletiva anterior dessas mulheres no
âmbito político da comunidade negra. A visibilidade pública que adquiriram entre as décadas de 1950 e
1980, inicialmente como agentes sociais e depois como feministas, difundiu o reconhecimento da análise

9 WELLS-BARNETT, Ida B. On Lynchings. Amherst, NY: Humanity Books, 2002.


10 DAVIS, Angela Y. Rape, Racism and the Capitalist Setting. Black Scholar, v. 9, n. 7, 1978, p. 24-30; Race and Criminalization:
Black Americans and the Punishment Industry. In: LUBIANO, Wahneema (ed.). The House That Race Built: Black Americans, U.S. Terrain.
New York: Pantheon, 1997, p. 264-279.
121
das opressões interligadas de raça, classe, gênero e sexualidade, como suscitada pelo Coletivo Combahee
River. As principais ideias do feminismo negro sobre trabalho, família e relacionamentos, comunidade e
meio ambiente, educação, controle de imagens e violência não eram mais assuntos privados a serem tratados
somente dentro limites das comunidades afro-americanas.
Em terceiro lugar, as mulheres afro-americanas que eram associadas ou que haviam trabalhado
nos movimentos de justiça social perceberam que apenas em coalizões com outras/os poderiam obter sua
liberdade. Assim, houve o reconhecimento de que o termo “comunidade negra” não poderia por si só satisfazer
as necessidades das mulheres negras. Quando muito, o legado da segregação racial nos EUA demonstrou
as limitações da análise e da prática política que fossem muito restritas somente a um grupo. Em 1983,
discursando num festival de música de mulheres, Bernice Johnson Reagon formulou a questão da seguinte
maneira:
O problema desse experimento é que não há ninguém lá a não ser pessoas como você...
Agora, isso é o nacionalismo..., estimula, mas também é nacionalismo. Em um determinado
estágio, o nacionalismo é crucial para um povo, se você quer causar impacto como grupo em
interesse próprio. O nacionalismo, por outro lado, torna-se reacionário, visto que é totalmente
inadequado para sobreviver no mundo com muitas pessoas11.

Essencialmente, Reagon argumenta tanto pela manutenção do “nós” do feminismo negro no contexto
do trabalho comunitário das mulheres negras quanto pela expansão dessa identidade negra coletiva para um
“nós” de coalizão. Ou seja, o feminismo negro precisava estar em diálogo direto com projetos de justiça social
semelhantes, e poderia ser uma força na esfera pública sem ter que confinar sua agenda dentro dos limites da
sociedade civil afro-americana. Tais formulações, somadas ao arcabouço do “nós” coletivo, possibilitaram o
potencial para novas coalisões: alianças entre mulheres e homens negros permeando diferenças de gênero e
sexualidade; alianças entre negros e negras heterossexuais e negros e negras membros da comunidade LGBT,
e pessoas LGBT de diferentes sexualidades; a continuação de alianças amplas de classes entre pessoas pobres
e através de sindicatos, permeando diferenças de raça, gênero e sexualidade. O ponto-chave para as mulheres
afro-americanas foi insistir em seu direito de se autorrepresentar e rejeitar todos os conselhos para que elas
“esperem a sua vez” enquanto a liberdade de outra pessoa vinha em primeiro lugar.
A visibilidade do “nós” como identidade coletiva das mulheres negras teve um custo. Quando a academia
incorporou o rico arcabouço feminista negro que abordei brevemente sob a designação de interseccionalidade,
as coisas mudaram. Por um lado, a robusta compreensão de política de identidade coletiva das mulheres
negras, que era inseparável da interligação das opressões de raça, classe, gênero e sexualidade, foi abalada
pela incorporação acadêmica. O entendimento do feminismo negro sobre políticas de identidade coletiva
foi atacado durante os anos 1990, em favor de uma análise do discurso descontextualizada que desconstrói

11 REAGON, Bernice Johnson. Coalition Politics: Turning the Century. In: SMITH, Barbara (ed.). Home Girls − A Black Feminist
Anthology. New York: Kitchen Table Press, 1983, p. 358.
Griôs da Diáspora Negra
122
conceitos como identidade, política, raça, gênero e sexualidade, em termos que esvaziam o poder político do
feminismo negro. As palavras permanecem, mas seus significados foram alterados. As maneiras pelas quais
a academia norte-americana incorporou o feminismo negro em seu cânone empobreceu a nossa compreensão
do compromisso das mulheres negras com a liberdade, seus amplos entendimentos sobre justiça social, e a
centralidade da interconectividade entre trabalho intelectual e político, bem como a compreensão tanto sobre
a experiência quanto o coletivo. Nesse contexto, as lutas atuais a respeito das definições de interseccionalidade
são semelhantes aos desafios enfrentados por projetos de justiça social no âmbito do ensino superior12.
Por outro lado, entendimentos sobre interseccionalidade que incorporam sensibilidades feministas
negras fornecem um grande guarda-chuva para uma coalizão fundamentada no “nós”, na qual todos os tipos
de pessoas possam dar uma pausa, dizer: “Ah! Isso é o que eu vivencio também. Essa análise soa verdadeira para
mim. Eu entendo meu passado e as ações em potencial de forma diferente”. Por exemplo, Kimberlé Crenshaw
é frequentemente creditada como aquela que “cunhou” o termo interseccionalidade, e uma leitura cuidadosa
da produção acadêmica de Crenshaw aponta para elos analíticos importantes entre interseccionalidade,
políticas de identidade e projetos de justiça social, como o feminismo negro dos EUA. Em seu artigo inovador,
“Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence against Women of Color” [Mapeando
as margens: interseccionalidade, política da identidade e violência contra as mulheres de cor], Crenshaw
argumenta que a interseccionalidade constitui uma forma tanto de conceber quanto de abordar a violência
contra as mulheres de cor13. Significativamente, ela desenvolve uma discussão sobre o pequeno “nós” de
grupos homogêneos paralelamente ao mais amplo “nós” da política de coalizão. Ironicamente, grande parte
da produção acadêmica que reconhece Crenshaw como uma “precursora” da interseccionalidade minimiza
as nuances de sua análise da política de identidade, bem como as nítidas ligações entre a interseccionalidade
e a justiça social.

“Que acreditamos na liberdade”: ser parte de algo maior do que si mesma


Lutar por mim mesma não significa muito, passei a perceber
Que ensinar a outras/os a se levantar e lutar é a única maneira da minha luta sobreviver
Sem precisar me apegar ao poder, sem necessitar que a luz brilhe somente sobre mim
Eu necessito ser apenas um/a na multidão, à medida que nos posicionamos contra a tirania.
“Ella’s Song”, Bernice Johnson Reagon

As lutas em prol da justiça social não almejam ganhos pessoais imediatos, mas sim o fortalecimento
do bem social coletivo. O feminismo negro norte-americano se delineou a partir de uma história específica de

12 ALEXANDER-FLOYD, Nikol G. Disappearing Acts: Reclaiming Intersectionality in the Social Sciences in a Post-Black Feminist
Era. Feminist Formations, v. 24, n. 1, 2012, p. 1-25.
13 CRENSHAW, Kimberlé Williams. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of
Color. Stanford Law Review, v. 43, n. 6, 1991, p. 1241-1299.
123
lutas negras pela liberdade como uma pedra de toque para essas ideias e ações. As lutas negras pela liberdade
encorajaram as mulheres afro-americanas a trabalhar individualmente em prol do bem-estar de seus filhos,
famílias e comunidades, muitas vezes a um custo elevado para si próprias. Ao adicionar a autorrepresentação
e o autocuidado a esse contexto, o feminismo negro norte-americano entre as décadas de 1950 e 1980 expandiu
a noção de liberdade e luta pela liberdade. De tal sorte, para as mulheres afro-americanas, a frase “acreditar
na liberdade” passa a sugerir um quadro mais amplo para o comportamento individual e coletivo, que
fundamenta e também expande a luta pela liberdade negra.
O que significa acreditar na liberdade? Antes de analisarmos como o acreditar em liberdade constitui
uma pedra de toque para o feminismo negro, permitam-me compartilhar algumas palavras sobre o significado
de “acreditar” e a sua conexão com a ação. Acreditar em algo – neste caso, na liberdade – significa identificar
uma ideia ou princípio que dá sentido à nossa vida cotidiana. Esses princípios podem conectar convicções
individuais às crenças comuns. Através de nossas crenças, podemos nos imaginar como parte de um “nós”
coletivo que é maior do que os nossos “eus” individuais. Crenças raramente são simples ideias − acreditar em
algo toma forma tangível por via do que dizemos e fazemos na vida cotidiana. As comunidades formadas por
aquelas/es que acreditam transcendem o tempo − elas existiam antes de nossa chegada e persistirão depois
que partirmos. As comunidades daquelas/es que acreditam transcendem também o espaço geográfico. Essas
comunidades imaginadas dependem de conexões forjadas com pessoas que nunca encontraremos, mas com
as quais nos sentimos compromissadas/os e conectadas/os.
Acreditar na liberdade exige fé em um ideal, mas que não deve ser confundido com fé cega. Vemos ao
nosso redor exemplos de pessoas que expressam uma equivocada fé cega − os falsos profetas da prosperidade
rápida dos grupos evangélicos, ou as religiões leigas do patriotismo nacionalista, ou o simples culto do
dinheiro em uma sociedade consumista global. A fé cega caracteriza as pessoas que rotineiramente seguem
as ordens dos governos, de seus pais, dos mais velhos da comunidade, de seus estimados antepassados
ideológicos, do marxismo, do feminismo ocidental, do afrocentrismo, ou do liberalismo, jamais questionando
suas próprias ações, porque elas/es creem que a obediência é uma prova de fé. A fé cega é hierárquica − ela
suprime o individualismo que sustenta o “nós” coletivo que sustenta as diferenças de raça, classe, gênero e
sexualidade e pode reproduzir as desigualdades que o feminismo negro norte-americano visa desestabilizar.
A fé cega é uma coisa. As crenças que orientam as pessoas a pensar por si mesmas são inteiramente
diferentes. Diferenciar as duas questões apresenta desafios especiais para pessoas de ascendência africana, que
tradicionalmente têm se fundamentado na religião e na espiritualidade diante da escravidão, do colonialismo,
do apartheid e outras formas de opressão racial. Porém, seria bom para as mulheres afro-americanas se
lembrarem de que a fé cega de seguir ordens e ser obediente a quem parece estar no comando das coisas
raramente fornecem soluções duradouras. Acreditar que você é parte de algo maior que você mesma/o, e
que, como indivíduo, deve interrogar continuamente suas próprias ações em relação àquilo que você diz e
que você representa demanda inspiração de fé, mas essa não é nem cega nem obediente.

Griôs da Diáspora Negra


124
O que significa acreditar na liberdade? Pessoas cuja liberdade é negada têm interesse em acreditar
nessa possibilidade, especialmente quando é difícil imaginá-la a partir de uma posição de subordinação. O
cativeiro evoca todos os tipos de reações individuais – fugir; cometer suicídio; fingir estar de acordo; matar
o captor; falar com alguém sobre o cativeiro; ajudar outras/os a escapar; chorar sozinha/o na escuridão;
conduzir outras/os à liberdade; conduzir-se à liberdade. O cativeiro caracteriza todos os sistemas de opressão
– pessoas pobres que são mantidas em cativeiro dentro da nova escravatura da dívida global; mulheres e
meninas que são mantidas em cativeiro e traficadas por sexo ou dinheiro; pessoas que não pertencem a
Estados nação e que vivem em territórios ocupados ou que pertencem a outras pessoas; pessoas LGBT que
permanecem no armário na esperança de que o seu silêncio as proteja; a juventude afro-americana e latina,
cujo encarceramento em massa tem sido chamado de “Novo Jim Crow”14. A exploração econômica, o racismo,
o sexismo, o nacionalismo e o heterossexismo possuem diferentes formas de cativeiro, que são controladas
por diferentes formas de violência. Acreditar na liberdade a partir do cativeiro é um ato de coragem.
Quando se trata de acreditar na liberdade, negras e negros nos Estados Unidos têm se posicionado na
frente de batalha, principalmente porque a própria liberdade tem um significado especial para um grupo de
pessoas cujos ancestrais foram mantidos em cativeiro legal. As pessoas que veem os efeitos intergeracionais
da escravização em suas realidades sociais contemporâneas têm uma relação palpável com formas passadas
e atuais de cativeiro. A luta pela liberdade tem um significado palpável dentro das comunidades afro-
americanas, adquirindo forma ideológica na frase “eu serei livre quando nós formos livres”, e uma forma
política por meio do ativismo negro pautado no “nós” coletivo. Para os afro-americanos, acreditar na liberdade
significa crer na possibilidade de um mundo onde a humanidade plena da juventude negra seja reconhecida:
um mundo onde você não tenha que se preocupar se o seu filho voltará ileso da loja; ou se sua filha não será
estuprada por um colega de classe debaixo da escada da escola. Acreditar em liberdade não é uma escolha de
consumidor que as/os negras/os podem fazer e desfazer quando não estiver mais em voga. Em vez disso, nos
Estados Unidos, a luta pela liberdade constitui uma realidade fundamental, existencial da experiência negra.
Acreditar na liberdade tem sido o catalisador para muitas das ideias e práticas do próprio feminismo
negro. Tomemos, por exemplo, a forma pela qual a poeta, ativista, professora e ensaísta June Jordan se baseia
em uma análise interseccional para explicar o significado de liberdade: “A liberdade é indivisível ou nada
além de slogans temporários, míopes e realizações de curta duração somente para alguns. A liberdade é
indivisível, e assim sendo, ou estamos trabalhando em prol da liberdade ou você está promovendo seus
próprios interesses, e eu estou promovendo os meus”15.
Acreditar na liberdade tem duas implicações importantes para feminismo negro. Primeiro, conceituar
o feminismo negro como parte de uma luta negra pela liberdade, que por sua vez está ligada a iniciativas
mais amplas de justiça social que imbuem o feminismo negro com um ethos de esperança. É preciso acreditar
que se é parte de algo maior que você mesma para prosseguir. Você deve acreditar na possibilidade de uma

14 ALEXANDER, Michelle. The New Jim Crow: Mass Incerceration in the Age of Colorblindness. New York: The New Press, 2010.
15 JORDAN, June. Some of us did not die: new and selected essays. New York: Basic Civitas Books, 2002.
125
vida melhor, se possível para si, mas, se não, que seja para suas/seus filhas/os e aquelas/es que vêm depois.
A esperança não é um delírio, a que se chega de forma cega seguindo uma receita ideológica para atingir um
objetivo. Pelo contrário, a esperança vive na interseção do pensar, sentir e fazer. A esperança não é apenas
um sentimento. Diferentemente, acreditar que a liberdade é possível pode catalisar um comportamento que,
embora não explicitamente identificado como política, expressa esse ethos de esperança. Aqui as lições de
vida das mulheres negras são profundas e não podem ser desenraizadas. Por que as pessoas trazem os bebês
a um mundo que é tão obviamente falho? Elas/es estão sendo irresponsáveis, ou são irremediavelmente
esperançosas/os? É difícil ser mãe ou pai de uma criança ou manter uma comunidade de crianças quando
se é profundamente niilista. O trabalho comunitário das mulheres negras há muito tempo sinalizou uma
política vibrante de esperança.
Em segundo lugar, as mulheres negras não podem confundir emancipação com liberdade. Mulheres
afro-americanas agora têm direitos legais que nossas mães, avós e bisavós não poderiam imaginar. No entanto,
essa liberdade curiosamente não livre significa que novos desafios intelectuais e políticos se encontram
diante das lutas pela liberdade negra contemporânea. O que significa acreditar na liberdade em novas
configurações de racismo “cego à cor” [colorblind racism] do capitalismo global, que continuam a desvalorizar
vidas negras? A bala de George Zimmerman pode ter tirado a vida de Trayvon Martin, mas uma sociedade
injusta organizada via interseções de relações de poder estruturadas por raça, classe, gênero e sexualidade
criou as condições que tornaram esse tiro possível e compreensível. O Boko Horam pode ter sequestrado as
estudantes, mas um sistema global injusto pautado em grandes diferenças entre riqueza e pobreza, privilégio
masculino e subordinação feminina, supremacia branca e desvantagem negra propicia esse contexto social,
embora sejam indesculpáveis esses atos terroristas. De alguma forma, acreditar na liberdade significa nos
engajarmos nessas questões.
É importante conceituar as ideias como um terreno de luta política, sem necessariamente assumir que
o conteúdo do trabalho intelectual incidirá sobre temas explicitamente políticos. Às vezes, é simplesmente
demasiado perigoso expressar ideias radicais. Outros momentos são propícios para análises radicais. Assim,
o ativismo intelectual assume muitas formas, dependendo de quando é necessário desafiar o poder e quando
o melhor caminho se encontra em desafiar as pessoas16. Como eu trabalho na academia, vejo o significado do
ativismo intelectual nessa arena. Quando se trata do estudo de mulheres e jovens afro-americanas, continuo
motivada por uma sensibilidade feminista negra que molda a produção intelectual de um grupo emergente
de mulheres negras acadêmicas. Muito do que se faz pode não parecer explicitamente político, mas seus
efeitos abordam experiências, análises e ações do arcabouço feminista negro. Tomemos, por exemplo, três
pesquisas sobre juventude negra publicadas por acadêmicas afro-americanas. Em seu estudo etnográfico
sobre adolescentes negras em Between Good and Ghetto: African American Girls, and Inner-City Violence, Nikki
Jones demonstra as estratégias que as meninas utilizam para transitar em meio à violência que as cercam17.
Em Prophets of the Hood: Politics and Poetics in Hip Hop, a jurista Imani Perry examina as dimensões filosóficas e

16 COLLINS, Patricia Hill. On Intellectual Activism. Philadelphia, PA: Temple University Press, 2012.
17 JONES, Nikki. Between Good and Ghetto: African American Girls and Inner-City Violence. New Brunswick, NJ: Rutgers
University Press, 2010.
Griôs da Diáspora Negra
126
estéticas do hip hop como uma filosofia criada por jovens negras18. Contrapondo-se à ideia de que a juventude
negra é apática, a obra da socióloga Andreana Clay, The Hip Hop Generation Fights Back: Youth Activism and
Post-Civil Rights Politics analisa o ativismo político das/os jovens negras/os19.
A esperança ressurge nesses e outros estudos, revitalizada por mulheres jovens que entendem a cultura
como um espaço político. As artes também podem promover um espaço de esperança para o “nós” que
somos suas praticantes. Por exemplo, a tese de doutorado de Valerie Chepp sobre um grupo de jovens poetas
que declamam na região de Washington, DC defende que a arte é ativismo. Os jovens poetas que ela estudou
praticavam política de formas novas que dialogavam com os contextos sociais em que se encontravam. O
que se destaca na obra de Chepp é que, a despeito da tristeza das experiências de abusos, baixa escolaridade,
adultos apáticos, pobreza e desrespeito da sociedade, os jovens poetas estão construindo uma comunidade
em que proclamam a sua própria humanidade através da voz e apoiam um ao outro em um contexto de
conectividade. Chepp não se propôs a concluir que o “pessoal é político”. Mas ela encontrou uma política
de identidade que se assemelhavam à do Coletivo Combahee River e das mulheres afro-americanas artistas,
ativistas, estudiosas do feminismo negro. Ela não encontrou o desespero, mas sim um ethos de esperança.

“Não podemos descansar até que ela ocorra”: ativismo cotidiano e a luta pela liberdade

Quanto mais velha fico, melhor eu sei que o segredo do meu prosseguir
É quando as rédeas estão na mão dos jovens que se atrevem a correr contra a tempestade
Nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar até que ela ocorra.
Nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar até que ela ocorra.
“Ella’s Song”, Bernice Johnson Reagon

A história das mulheres afro-americanas vem de uma longa linhagem de mulheres bem conhecidas que
se comprometeram com uma luta pela liberdade que era maior do que elas mesmas. Sojourner Truth, Harriet
Tubman, Ida Wells-Barnett, Angela Davis e muitas outras mulheres conhecidas não fizeram vista grossa ao
racismo, ao sexismo, à exploração de classe e ao heterossexismo, nem tinham a fé cega de que alguém tomaria
alguma providência a respeito dessas questões. Ao contrário, elas agiram de forma a modificar suas vidas
e as de outras pessoas. Apesar de suas contribuições, temos que ter cuidado para não elevar as realizações
dessas mulheres negras ao ponto de seu heroísmo as tornar maior que a vida e, portanto, diferentes de nós.
Eles fazem parte do “nós”.
Em face da natureza contínua da luta pela liberdade, considero importante termos outro ponto
de vista sobre o que ela significa, para testar crenças por meio da ação. Muitas pessoas compreendem a

18 PERRY, Imani. Prophets of the Hood: Politics and Poetics in Hip Hop. Durham: Duke University Press, 2004.
19 CLAY, Andreana. The Hip Hop Generation Fights Back: Youth, Activism and Post-Civil Rights Politics. New York: NYU Press,
2012.
127
política em uma escala tão ampla − incluindo a de cunho feminista negro, com suas excepcionais referências
– que nos esquecemos que a política importante para a maioria das pessoas é muito menor. Ela existe na
micropolítica da vida cotidiana: modificando uma pessoa de cada vez, mediante ações como cuidar da
sobrinha, sobrinho ou netos de quem os pais não sejam capazes de cuidar; prestando assistência a um vizinho
idoso que mora sozinho; sendo atento a uma/um amiga/o lutando contra o vício, a violência doméstica ou
outros problemas sociais, apoiando uma igreja ou centro comunitário que conceda às pessoas um espaço; ou
oferecendo um simples abraço quando menos se espera. Por meio dessas ações cotidianas, estabelecemos
pilares institucionais e organizacionais para os movimentos sociais mais amplos. Mulheres afro-americanas
podem ter individualmente escolhido ou foram compelidas à política de confrontos públicos, mas o trabalho
de organização comunitária tem sido muito mais comum entre a maioria delas. Esse tipo de trabalho
das mulheres negras está não apenas oferecendo apoio para uma ação política maior, mais visível e mais
significativa. Mais do que isso, essa micropolítica de organização comunitária constitui o alicerce da política.
Em outras palavras, a inserção das mulheres negras na micropolítica da vida cotidiana constitui o terreno de
luta negra pela liberdade.
Isso me remete a música “Ella’s Song”, ouvida na voz do grupo Sweet Honey in the Rock. Quem era
a Ella da canção, e por que devemos considerar entoá-la? Bernice Johnson Reagon, uma ativista dos direitos
civis e co-fundadora da Sweet Honey in the Rock, compôs “Ella’s Song” em tributo a Ella Baker (1903-1986).
Ella Baker foi bastante comum no que ela acreditava e tentava fazer cotidianamente. Assim como muitas/os
de vocês, ela se levantava todos os dias e fazia o que achava que era certo. E, no entanto, ao mesmo tempo, ela
foi extraordinária em nos deixar um legado concreto de uma mulher afro-americana que cria na liberdade e
tentou viver aquilo em que acreditava todos os dias.

Griôs da Diáspora Negra


128
O trabalho comunitário de Ella Baker ilustra um compromisso de vida para com a luta negra pela
liberdade: suas raízes de mulheres negras fundamentadas em tradições missionárias batistas do Sul; sua
formação política como jovem ativista na década de 1930 em Nova York; seus anos de serviços prestados
à NAACP como secretária executiva; e sua importância no movimento dos Direitos Civis, primeiro como
organizadora para a SCLC e mais tarde para a organização estudantil SNCC20. Sua crença na liberdade estava
em suas ações e suas ações demonstram que ela persistiu “sem descanso”.
Ella Baker é uma inspiração para mim, porque suas ações cotidianas me são familiares. Visto que não
sou especialista em sua vida e obra, encorajo-vos a ler o livro precursor de Barbara Ransby, Ella Baker and the
Black Freedom Movement: A Radical Democratic Vision21. Ransby também é uma eminente intelectual feminista
negra que utiliza suas habilidades intelectuais para conferir ao trabalho de Ella Baker o reconhecimento que
merece. Gostaria de sugerir o website do Ella Baker Center for Human Rights, cujo lema é “Ela liderava,
você também é capaz”22. Neste site, você pode encontrar, entre outras informações, um pequeno clip de um
discurso de Ella Baker falando sobre liberdade.
Ella Baker nunca publicou livros, romances, artigos de jornal ou músicas, que são os materiais de
pesquisa acadêmica ou cultura pop. Você não vai encontrar a Autobiografa de Ella Baker arquivada ao lado da
Autobiografa de Malcolm X. A Sra. Baker não tinha nem o tempo, tampouco os recursos ou a inclinação para
registrar seus pensamentos dessa forma. Em vez disso, ela falava com as pessoas, tanto em discursos públicos
quanto em conversas diárias, deixando-nos um legado que engloba muitas das ideias que aqui expresso.
Quero agora destacar quatro facetas de como as ideias e ações de Ella Baker lançam luz sobre o significado
do ativismo cotidiano, de forma a ajudar-nos a compreender por que “nós que acreditamos na liberdade não
podemos descansar”.
Primeiro, a liberdade está sempre sendo construída pelas próprias pessoas que são mais afetadas
pela sua ausência. Para Ella Baker, a própria ideia de conduzir as pessoas à liberdade foi uma contradição
em termos. A liberdade requeria que as pessoas parassem de depender de líderes e desenvolvessem a
capacidade de analisar a sua própria posição social e compreendessem sua habilidade coletiva de mudar as
circunstâncias de suas vidas. Grande parte de sua vida foi gasta cultivando a liderança, especialmente por

20 NT: A sigla NAACP corresponde a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor [National Association for the
Advancement of Colored People], organização fundada nos EUA em 1909. SCLC é a sigla da Conferência da Liderança Cristã do Sul
[Southern Christian Leadership Conference], organização não governamental fundanda em 1957, com foco na defesa dos direitos civis dos/
as cidadãos negros/as dos EUA. O SNCC Comitê Não Violento de Coordenação Estudantil [Student Nonviolent Coordinating Committee]
foi uma das mais importantes organizações negras de defesa dos direitos civis nos EUA na década de 1960. Para uma abordagem em
português sobre o tema, cf. AUGUSTO, Geri. Luz e canções de liberdade: reflexões sobre o legado do Comitê Não-Violento de Coordenação
Estudantil (SNCC) para o internacionalismo negro. Revista da ABPN, v. 1 n. 2, jul.-out. 2010, p. 85-102. Disponível em: http://abpn.org.br/
Revista/index.php/edicoes/article/view/85/60. Acesso em: mai. 2015.
21 RANSBY. Ella Baker and the Black Freedom Movement…
22 O web site do Ella Baker Center for Human Rights é: http://ellabakercenter.org/. Há também uma página no Facebook: https://
www.facebook.com/ellabakercenter.
129
meio da educação crítica para os jovens, e dedicando-se ao bem-estar e as perspectivas de futuro deles. A Sra.
Baker argumentava: “As pessoas fortes não precisam de líderes. Minha compreensão sempre foi fazer com
que as pessoas compreendam que, a longo prazo, elas mesmas são a única proteção que têm contra a violência
ou a injustiça... As pessoas devem compreender que não podem procurar a salvação em nenhum lugar a não
ser em si mesmas”23. A riqueza das concepções de Baker e sua crença na liberdade refletiam uma elaboração
desse conceito feita de baixo para cima, um entendimento democrático do que a liberdade significará.
Em segundo lugar, a democracia participativa requer a construção de comunidades através de todas as
diferenças de poder. Ella Baker desestabilizou hierarquias de poder duradouras, pautadas em classe, idade
e gênero dentro das comunidades afro-americanas, que impediam lutas eficazes pela liberdade. Ao olhar
para os negros pobres com interesse em suas ideias, incentivar os jovens a “tomar as rédeas do poder”, e
ouvir as mulheres, Ella Baker virou de cabeça para baixo as ideias sobre hierarquias de liderança dentro das
comunidades afro-americanas. Especificamente, apesar de ser uma mulher com alto nível de educação para a
sua época, Ella Baker não se tornou uma professora da classe média defendendo as normas de sua classe, mas
inverteu hierarquias de classe tradicionais em favor de alianças entre lideranças de base e especialistas. Ela
buscou nas massas a liderança, argumentando que o aprimoramento da alfabetização política entre os afro-
americanos era essencial. Da mesma forma, Ella Baker estendeu a mão para jovens e encorajou-os a se tornarem
líderes em seu próprio direito. O trabalho de Ella Baker no sentido de apoiar o SNCC ilustra sua percepção
sobre como prestar apoio aos jovens era algo essencial nas lutas em prol da liberdade. Libertar as crianças
negras, uma de cada vez, através de uma vagarosa assimilação, não só era muito lento, mas profundamente
injusto. Que jovens negros seriam soerguidos em detrimento de outros? Quem decidiria? A Sra. Baker
percebia a comunidade como um modelo para o poder, uma perspectiva que compreendia a organização da
comunidade como um espaço fundamental da política24. Coalizões de conveniência organizadas em torno
de uma questão social particular podem ir e vir, mas comunidades de ação impulsionadas pelas pessoas que
são mais afetadas pelo cativeiro são mais duradouras. Ainda que construir comunidades de ação requeresse
confrontar relações de poder preponderantes no âmago das comunidades afro-americanas.
Em terceiro lugar, no cenário mais amplo de cultivo da liderança para uma democracia participativa, a
educação constitui um espaço de empoderamento. No contexto dessa luta contínua pela liberdade, a educação,
definida de maneira ampla, tem sido um espaço central do ativismo político, especialmente para as mulheres
afro-americanas, como mães, mães de outrem, professoras e intelectuais. A educação, amplamente definida,
ajuda-nos a imaginar possibilidades e nos ensina a conhecer o nosso lugar e seguir adiante com disposição.
A importância da educação no âmbito da luta pela liberdade negra se assemelha ao tipo de educação crítica
para a alfabetização proposta na obra Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire25. Como a composição de Reagon,
em “Ella’s Song”, que dá voz a Ella Baker nos faz lembrar:

23 COLLINS, Patricia Hill. Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and the New Racism. New York: Routledge, 2004.
24 COLLINS, Patricia Hill. The New Politics of Community. American Sociological Review, v. 75, n. 1, 2010, p. 7-30.
25 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Disponível em: www.dhnet.org.br/direitos/
militantes/paulofreire/paulo_freire_pedagogia_do_oprimido.pdf. Acesso em: mai. 2015.
Griôs da Diáspora Negra
130
Lutar por mim mesma não significa muito, passei a perceber,
Que ensinar a outras/os a se levantar e lutar é a única maneira de minha luta sobreviver

A educação crítica requer ensinar os outros a “ler” as relações de poder de sua própria sociedade,
imaginar novas possibilidades e tomar atitudes. As relações entre diferentes gerações, professoras/es e suas/
seus alunas/os, com aquelas/es que ensinam e as/os que aprendem não correspondiam necessariamente
à idade cronológica. Uma vez que as mulheres negras têm sido as principais interventoras políticas no
âmbito das lutas pela liberdade mais amplas das comunidades afro-americanas, elas têm sido as principais
protagonistas a impulsionar uma educação crítica de empoderamento, precisamente porque isso propicia as
ferramentas para que novas possibilidades sejam imaginadas.
Finalmente, ações e ideias moldam-se mutualmente. Ella Baker não falava sobre feminismo − ela o
vivenciava. Em vez de discutir sobre se as mulheres negras poderiam tornar-se líderes, ela se tornou. Ella
Baker nunca reivindicou ser uma “feminista”, mas que diferença teria feito em seu trabalho se assim o fizesse?
O trabalho intelectual e político de Baker permaneceu radical porque não poderia ser circunscrito a qualquer
categoria. Ela tinha perguntas que eram maiores do que o vocabulário que estava disponível para ela e cujas
respostas transcendiam qualquer ideologia. Seu trabalho refletia uma “imaginação radical”, que estava
fundamentada na prática26.
Não faremos justiça a Baker escolhendo a dedo aspectos da sua obra de vida, visando atender às
nossas sensibilidades intelectuais e/ou políticas contemporâneas. Ela defendia um ponto de vista distinto
que colocou diversos níveis de ênfase no racismo, no sexismo, no heterossexismo, na exploração de classe
e nas deficiências como pontos focais de seu trabalho intelectual e político. Baker apoiou o feminismo, se o
compreendemos como emancipação das mulheres. No entanto, seria errôneo descaracterizar a liderança de
Ella Baker, como uma mulher negra forte dentro da política afro-americana, como a fé cega que promovia a
obediência à dominação masculina. O livro de Ransby meticulosamente documenta a capacidade de Baker
em exercer liderança através de diferenças de poder de gênero que a posicionavam em desvantagem, mas
que, no entanto, não foram capazes de prejudicá-la. A política de Baker foi uma expressão do feminismo
negro. Ela promoveu a análise interseccional mediante seu trabalho de organização comunitária. Além disso,
Baker posicionou seu trabalho a serviço da justiça social como algo que refletia através da linguagem e dos
desafios da luta negra pela liberdade.
Ativistas negras/os como Ella Baker nos proporcionam um modelo para a luta política comprometida
ao longo de uma vida inteira. A forma que a luta adquiriu, bem como as questões substantivas que as
preocupavam certamente mudaram, mas Baker e muitas outras mulheres ativistas negras demonstraram um
firme compromisso com a justiça social. Ella Baker entendeu que, provavelmente, durante sua vida jamais
veria o tipo de justiça social expansiva que visualizava como panorama. No entanto, ela levantou-se todos os
dias e fez o que acreditava ser certo.

26 KELLEY, Robin D. G. Freedom Dreams: The Black Radical Imagination. Boston: Beacon, 2002.
131
***
Nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar: a canção de Ella, em seu refrão que ecoa
permanentemente, foi inspiração e texto para essa conferência. Ela diz respeito a questões que muitos de nós
encontramos como pessoas atuantes na linha de frente das lutas em prol da liberdade de vários tipos. Nós
trabalhamos em diferentes terrenos, o que pode tornar mais difícil ver o ativismo cotidiano de cada um/a.
Somos transformadas/os por nossas ações e ainda assim permanecemos as/os mesmas/os. Eu sei que eu
não tenho a mesma aparência. No entanto, eu ainda tenho respostas emocionais semelhantes aos repetidos
incidentes de injustiça social que se assemelham a padrões estruturais de desigualdades sociais. Tendo em
vista que costumava perceber as lutas pela liberdade como primordialmente externas, sempre me blindava
para travar a batalha em muitos locais onde eu era a primeira ou uma das primeiras a chegar. Eu também
estive envolvida em incansáveis esforços de organização comunitária, tentando construir os tipos de escolas
que a juventude negra deve ingressar. À medida que envelheço, tenho percebido como a organização da
comunidade e as lutas pela liberdade também exigem uma vigilância interna − a luta para evitar ficar cansado,
obstrucionista, ou simplesmente desistir em face da fadiga crônica por ter que lutar por tanto tempo.
Nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar: Seria tão bom não ter que viver minha vida
real, mesmo que apenas por um curto tempo. Certamente eu gostaria de descansar. Mas onde podemos ir
para escapar e “descansar” do racismo, do sexismo, do heterossexismo e da exploração econômica? Passei a
entender que, quando se trata de injustiça social, não há lugar permanente para descanso. Há apenas lugares
de descanso que permitem temporariamente que você recupere o fôlego. A minha luta é resistir a ficar fatigada
a respeito das possibilidades de mudança, enquanto quero saber quem vai arrebatar as próximas estudantes
nigerianas; ou assassinar o próximo menino negro; ou tentar matar o espírito do meu jovem neto.
Nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar: Esses são tempos desafiadores para fazer trabalho
crítico intelectual, político e de base. Eles não são nem mais nem menos difíceis do que no passado, apenas
diferentes. Estudar o feminismo negro norte-americano me ensinou que, ao nos comprometermos com o
ativismo intelectual, devemos abandonar a crença de que a utopia da justiça social será alcançada amanhã ou
na próxima semana, ou no próximo ano, ou até mesmo em nossas vidas. O trabalho de justiça social recomenda
um modo de viver pautado em princípios, de nos movimentar pelo mundo não baseadas em receber prêmios
ou medalhas de ouro ou reconhecimento público ou até mesmo o trabalho constante. A grande maioria
das ativistas cotidianas permanece tipicamente despercebida sem nome ou sem reconhecimento por suas
contribuições. Como tantas mulheres afro-americanas que trabalharam incansavelmente visando criar as
condições que nos permitiram imaginar novas possibilidades para a justiça social, elas se levantam todos os
dias e fazem o que precisa ser feito, porque é a coisa certa a se fazer.
Elas que acreditaram na liberdade não descansaram. Nós que acreditamos na liberdade não podemos descansar
até que ela ocorra.

Griôs da Diáspora Negra


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133
Mulheres de terreiros: as griôs da Saúde Integral
José Marmo da Silva1

Elas são arquivos vivos de uma tradição de repasse dos conhecimentos de geração a geração, pois guardaram a memó-
ria de histórias vivenciadas ou que foram contadas por outras mulheres como elas. E ainda hoje continuam repassando
acontecimentos, lendas ou experiências de vida para as pessoas e para suas comunidades na perspectiva da manutenção
do sagrado compromisso de cuidar de vidas.

Sabem que esses conhecimentos que foram preservados ao longo dos séculos são instrumentos vitais para a
manutenção de uma tradição deixada em terras brasileiras por seus ancestrais. E todas elas conhecem o dom da palavra,
sabem que a palavra é carregada de energia, e que tem o poder de realização.
Utilizam desses ensinamentos nas negociações com a finalidade de garantir a continuidade da magia da vida do
povo negro. Reconhecem a importância do corpo e que todo o conhecimento nessa tradição é vivenciado e incorporado.
E a elas eu agradeço, pois sei que são arquivos vivos do saber da tradição, são as nossas griôs da saúde e nos ensinam a
arte de cuidar.

Os terreiros como espaços de promoção da saúde

Mesmo com os avanços de políticas afirmativas e de promoção de equidade racial, podemos constatar
que as ações e políticas governamentais no campo da saúde ainda se mostram insuficientes para a redução
das desigualdades raciais, por conta do racismo e das diversas formas de intolerâncias em nosso país. E no
caso dos iniciados na tradição religiosa afro-brasileiras, os impactos do racismo e da intolerância religiosa
podem ser percebidos na falta de acesso à saúde e a cuidados de qualidade, assim como na negação de
direitos conquistados e garantidos na Constituição Brasileira e no Estatuto de Igualdade Racial.
Em contrapartida, ao lado da desatenção e do descuido a que está submetida grande parte da população
brasileira, é nos terreiros, comunidades religiosas afro-brasileiras, que vamos encontrar um espaço de
sustentação e apoio para os grupos historicamente excluídos, constituindo-se como espaços de acolhimento e
aconselhamento. As práticas rituais e as relações interpessoais que são construídas nesses locais possibilitam
as trocas afetivas, produção de conhecimentos e promoção da saúde.
É importante perceber que o terreiro além de ser um espaço religioso e de manifestação do sagrado,
é também lugar onde os/as iniciados/as ou simpatizantes encontram no acolhimento praticado uma forma
mais duradoura e eficaz de apoio para as contradições diárias vivenciadas pelo povo de terreiro, seja no que
diz respeito a desqualificação dessa tradição pela sociedade, nas situações de preconceito e racismo e nas
diversas formas de práticas de intolerâncias que dificultam o acesso desse grupo às políticas públicas2.

1 Ogan, dentista e coordenador da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro). E-mail: mguimar@uol.com.br.
2 SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade. Petrópolis: Vozes, 1988.
Griôs da Diáspora Negra
134
Para a população de terreiros, o corpo é a morada dos deuses e deusas e, por esse motivo, precisa estar
bem cuidado. Nessa perspectiva, a saúde possui significado especial para esse grupo que tem no corpo um
dos caminhos pelo qual os caboclos, pretos-velhos, pombagiras, voduns, inkisses, orixás e encantados se
comunicam com a comunidade, se manifestam, aconselham e são reverenciados. É por essa razão que o corpo
precisa estar preparado e em equilíbrio, pois é um elo importante entre dois mundos, o mundo dos humanos
e o mundo onde vivem os deuses e as deusas.
Os terreiros como espaços promotores de saúde, de preservação da cultura, da educação e de identidade
têm uma função colaborativa na luta por políticas públicas, uma vez que possuem a experiência da escuta e
das demandas da população. E as formas de lidar e encaminhar os problemas das comunidades, as estratégias
de preservação do grupo, a resolução dos problemas de saúde, a solidariedade, as trocas geracionais entre
os mais velhos e os mais novos, o compartilhar de conhecimentos e as relações afetivas estabelecidas para
dentro e fora das comunidades de terreiros são importantes instrumentos para a promoção da qualidade de
vida e também da luta pela garantia dos direitos humanos.
Um levantamento do Projeto Ató-Ire: Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, realizado pelo Centro de
Cultura Negra do Maranhão e a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, nas cidades de São
Luís e Rio de Janeiro, mostrou que são vários os motivos pelos quais as pessoas procuram ou se integram aos
terreiros. Entre essas razões, podemos destacar: a busca espiritual, a tradição familiar, a dificuldade financeira
e os problemas amorosos. No entanto, vale ressaltar que ao indagar essas mesmas pessoas se esses motivos
tinham alguma relação, influência ou repercussão no seu estado de saúde, 80% das pessoas responderam que
sim. A partir dessas respostas, verificamos que a saúde é um bem importante para as pessoas que estão nos
terreiros. Ao aprofundarmos o levantamento, descobrimos que os 20% que responderam não apresentaram
como motivo o pertencimento ao terreiro em razão de tradição familiar − ou seja, independentemente de
quaisquer outros motivos, são de terreiros por conta de suas famílias3.
O mesmo levantamento apresentou que grande parte dos problemas de saúde nos terreiros são as
doenças psicossomáticas, tais como: dor de cabeça, desmaio, depressão, taquicardia, doenças de pele, febre
reumática, convulsões, alcoolismo, insônia, doença dos nervos, doenças da barriga, doenças desconhecida
pelos médicos, etc. E em alguns depoimentos, no mesmo levantamento, aparecem agravos como: quebrante,
peito aberto, rasgadura, espinhela caída, ventre virado, nervo torcido, mau olhado, susto, cobreiro e mal de
míngua. Grande parte desses agravos é desconhecida pelos médicos, mas é entendida e tratada dentro dos
terreiros.
Para o tratamento das diversas doenças ou dificuldades que aparecem no cotidiano dos terreiros,
suas lideranças possuem um modelo de lidar com a saúde por meio do qual a escuta, o acolhimento, o
cuidado, a integralidade, a perspectiva individual e coletiva e as redes de solidariedade são fundamentais.

3 SILVA, José Marmo da (org.). Religiões afro-brasileiras e saúde. São Luís: Centro de Cultura Negra, 2003; SILVA, José Marmo
da. Religiões e Saúde: a experiência da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Saúde e Sociedade, v. 16, n. 2, 2007, p.171-
177.
135
Exemplo disso podemos verificar em diversas falas das mães de santo, como as de Mãe Beata de Iemanjá,
que diz: “A pessoa fragilizada precisa de carinho, precisa de família, precisa de cuidado”. Em outra fala, Mãe
Meninazinha diz: “Em determinadas situações, a pessoa tem que se sentir abraçada e não excluída. Faço o
que o orixá determina, é um ebó, como já disse várias vezes, é um banho”.
Na perspectiva dos terreiros, as práticas de saúde são consideradas cuidado e zelo. Entre essas práticas
de cuidados nos terreiros, podemos destacar: o jogo de búzios, os ebós, o bori, as iniciações, o uso das ervas
e das folhas, os banhos, as benzeduras, as beberagens, as rezas, o aconselhamento e a orientação para os
serviços de saúde.
As práticas rituais de cuidados com o corpo e a preservação de saberes ancestrais nos terreiros pelas
mulheres vêm ao longo dos anos sendo abordadas por diversas pesquisadoras e pesquisadores, contribuindo
para afirmar a marcante presença da figura feminina nesse espaços. Estudos revelam e reafirmam o que
o povo de terreiro já sabia sobre as contribuições das mulheres na manutenção do legado dessa tradição
religiosa e a participação política das mulheres negras em nossa sociedade4. Senhoras de grande saber como
Mãe Andressa, no Maranhão; Mãe Aninha, na Bahia; Iyá Davina e Tia Ciata, no Rio de Janeiro; Mãe Esperança,
de Porto Velho; Mãe Menininha do Gantois, Dona Olga de Alaketo, Mãe Stella de Oxossi, Mãe Meninazinha
de Oxum, Mãe Beata de Iemanjá, Ekedi Sinha e Makota Valdina são retratadas em livros e artigos como
figuras importantes no cenário brasileiro, onde suas histórias de vida são exemplos de um feminismo negro
e de resistência do povo negro e do povo de terreiro.

A sabedoria das mulheres de terreiro e suas histórias de vida

A pesquisadora Rita Amaral, ao abordar o papel das mães de santo na sociedade brasileira, relatando
com detalhes a vida de diversas lideranças religiosas no artigo “Mães de santo e mães de tanto”, desconstrói
a submissão dessas mulheres e mostra como elas com sua sabedoria, força e independência fortalecem a
imagem do feminino5. Amaral registra que “a cultura afro-brasileira foi sustentada, em grande parte, pela
força feminina nos terreiros e irmandades, de onde se espraiou pela sociedade, passando a constituir alguns
dos mais marcantes valores da cultura nacional”. Relata também que:
enfrentando violências extremas, as comunidades negras organizadas em torno das mães-
de-santo (as famílias-de-santo) foram capazes de resistir e de preservar seus valores. Estas
mulheres souberam, ainda, abrir espaço na cultura que lhes negava o direito à diferença,
sem deixar de receber entre os seus quaisquer pessoas que a elas recorressem em busca de
conselhos e ajuda espiritual, não discriminando, por sua vez, raça, cor, gênero, ideologia,
religião ou classe social6.

4 Cf. JOAQUIM, Maria Salete. O Papel da liderança religiosa feminina na construção da identidade negra. Rio de Janeiro: Editora
Pallas, 2001.
5 AMARAL, Rita. Mães-de-Santo, mães de tanto: o papel cultural das sacerdotisas dos cultos afro-brasileiros. Os Urbanitas −
Revista de Antropologia Urbana, ano 4, v. 4, n. 6, dez. 2007.
6 AMARAL, Rita. Povo-de-santo, povo de festa − um estudo antropológico do estilo de vida dos adeptos do candomblé paulistano.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – FFLCH, USP, São Paulo, 1992.
Griôs da Diáspora Negra
136
Da mesma forma Ruth Landes, na década de 1930, em A Cidade das Mulheres, fala sobre a presença
dessas mulheres negras de terreiros na cidade de Salvador7.
Ao nos debruçarmos nas histórias de vida dessas grandes senhoras, vamos encontrar relatos que
demonstram a sagacidade política e estratégica dessas mulheres negras para lidar com situações conflitantes e
a capacidade de resolução de conflitos, como no caso de Mãe Aninha, ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, que, para
garantir as condições do livre exercício do candomblé, foi encontrar o presidente da época, Getúlio Vargas,
com o objetivo de garantir que os terreiros continuassem tocando e realizando suas festas sem a intervenção
policial e a invasão dos terreiros. Mãe Aninha influenciou na promulgação do Decreto Presidencial n. 1202,
no primeiro governo Vargas, pondo fim à proibição aos cultos afro-brasileiros em 1934.
Outra história que considero interessante é a de Tia Ciata no Rio de Janeiro, que mostra como no
cotidiano as mulheres negras conseguiam agregar as pessoas e juntar o povo de terreiro e o povo do mundo do
samba. Tia Ciata, segundo estudiosos, teve participação no primeiro samba gravado em 1917, de nome “Pelo
Telefone”, que suscita várias controvérsias e questões, principalmente no que diz respeito à sua contribuição
nesse samba que acabou ficando em nome de Donga. Podemos perceber pela história contada sobre a vida de
Tia Ciata que ela foi uma grande articuladora política e suas contribuições para a resistência cultural negra
no Rio de Janeiro foi muito além, pois também contava com a participação de um grupo de mulheres negras
de terreiros como Iyá Davina, Tia Sidata, Tia Carmen do Xibuca e muitas outras mulheres negras da tradição
religiosa afro-brasileira que contribuíram para alicerçar valores da arkhé negra e dar identidade a uma região
do centro do Rio de Janeiro que Heitor dos Prazeres denominou de “A Pequena África”.
Contam os mais velhos que Tia Ciata, filha de Oxum, além de ser dona de uma casa onde se reuniam
os sambistas no Rio de Janeiro, também tinha dons de cura e conseguiu curar um problema de saúde do
presidente Wenceslau Brás com uma pasta de ervas. O fato é que o presidente ficou lhe devendo favores e ela
soube bem utilizar essa situação para sua comunidade.
E nos dias atuais podemos perceber que vem crescendo o número de mulheres negras de terreiros
que escrevem, contribuindo para a construção de uma literatura que representa um importante legado para
o nosso país. Podemos citar várias escritoras negras de terreiros como Mãe Val, do Terreiro do Cobre; Mãe
Beata de Iemanjá, do Ilê Omi Ojuarô; Mãe Stella de Oxossi, do Ilê Axé Opô Afonjá; Mãe Meninazinha de Oxum,
do Ilê Omolu e Oxum; Makota Valdina, do Tanuri Junçara; Ekedi Sinha, do Ilê Axé Iya Nassô Oká; Egbome Vanda
Machado de Oxum e tantas outras mulheres negras que colocam suas palavras no papel, expondo suas ideias
e mostrando a visão de mundo da tradição religiosa afro-brasileira como importante instrumento de luta pela
garantia dos direitos da população negra e de valorização dos saberes e fazeres da tradição. Além disso, elas
vão nos lembrando e reafirmando o legado ancestral deixado por outras mulheres negras que as antecederam
nesse processo.
Podemos constatar que a contribuição dessas mulheres é resultado de uma construção coletiva de
saberes ancestrais, que vem sendo reatualizada e provocando tensões para conquista de novos espaços. O
fato é que o saber dessas mulheres não foram somente percebidos pelo povo de terreiro, mas sim por toda a

7 LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002 [1932].
137
sociedade, como aconteceu com Mãe Stella de Oxóssi, que ocupa hoje a cadeira n. 33 da Academia de Letras
da Bahia, lugar ocupado no passado pelo poeta Castro Alves. E o mais interessante é que elas nem precisam
desse reconhecimento, pois pertencem a uma tradição em que o aprendizado é permanente, o repasse de
conhecimentos não finaliza e que o reconhecimento é feito pelos deuses e deusas.
Muitas dessas mulheres contribuíram em outros espaços fora do terreiro como ilustra a trajetória de
vida de Celina Vieira, mais conhecida como Mãe Obassy, no Rio de Janeiro, que foi compositora de samba,
porém antes teve que superar várias dificuldades para abrir caminhos para outras mulheres negras que
vieram depois; e, mais do que isso, provocou mudanças em um contexto de domínio dos homens, incluindo
seu nome na história do mundo do samba. Mãe Obassy, muito nova ainda trabalhou na casa da família em
que sua mãe também foi empregada durante dezenove anos. Ficou neste emprego dos 14 aos 23 anos, quando
saiu para se casar. Iniciou-se no candomblé e ganhou o nome de Obassy, por ser filha do orixá Obá. Ela dizia
que “só começou a viver aos 42 anos quando se separou do marido e conheceu o presidente da Escola de
Samba Unidos de Rocha Miranda, que se tornou um amigo e a convidou para ser a presidenta da ala das
baianas”. Foi na escola de samba que Mãe Obassy descobriu que era poeta e sambista. Apesar de participar de
concursos para a escolha de samba enredo como compositora, experimentou as dificuldades que as mulheres
passavam nesse espaço do mundo do samba, mas continuou e conseguiu que um dos seus sambas fosse um
dos quatro finalistas na Escola Mocidade Unida de Jacarepaguá.
São muitas as histórias que vão desvendando os caminhos e as trajetórias que as mulheres negras de
terreiros percorreram para assegurar sua voz, seus direitos e garantir o exercício de sua capacidade criativa,
apesar das adversidades de viver em uma sociedade onde o racismo, o machismo e as intolerâncias se fazem
presentes. Suas experiências de vida mostram que, mesmo dentro dos terreiros, sempre estiveram atentas às
questões sociais e políticas de suas épocas, e que cada uma a seu modo soube explorar sua sabedoria e sua
força espiritual para mudar o rumo de suas vidas e das comunidades de que faziam parte, fazendo com que
as impossibilidades se tornassem possibilidades de estabelecer provocações ao mundo que as cercava e de
negociações que as permitiram adentrar em espaços que não eram permitidos para as mulheres, em especial
as mulheres negras e de terreiros.
Com Mãe Beata de Iemanjá, filha de Dona Olga do Alaketo, não foi diferente, pois, saindo da Bahia com
seus filhos, fundou o terreiro Ilê Omi Ojuarô na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro e passou a defender os
direitos do povo negro, tornando-se importante ativista do antirracismo. Mãe Beata soube juntar a sua tarefa
de chefe de família e à de liderança religiosa para potencializar sua vertente de escritora, dando corpo a sua
capacidade criativa que resultou no livro O Caroço de Dendê, uma das mais importantes obras de contos afro-
brasileiros8. Com falas eloquentes e quebrando paradigmas constituídos em nossa sociedade, mostrou que o
saber pode estar em muitos lugares e que existem outras formas de lidar e fazer saúde, como por exemplo na
forma de acolhimento e nas lutas contra o sexismo e o racismo empreendidas pelas mulheres de terreiro. Mãe
Beata de Iemanjá foi reconhecida também publicamente pelo Ministério da Saúde durante a realização do I
Seminário Nacional Saúde da População Negra em agosto de 2006, em Brasília, fato que contou também com
a participação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (Seppir).

8 Mãe Beata de Yemonjá. Caroço de Dendê: a Sabedoria dos Terreiros. Rio de Janeiro: Pallas, 2008.
Griôs da Diáspora Negra
138
Mãe Meninazinha de Oxum, neta de Iyá Davina de Omolu, e ialorixá do Ilê Omolu e Oxum, no Rio de
Janeiro, também possui uma trajetória importante de lutas políticas no campo de combate à intolerância
religiosa e no campo da promoção da saúde. Foi em seu terreiro que aconteceu o I Encontro da Tradição
dos Orixás, com o objetivo de combater a intolerância religiosa e pautar questões centrais de preservação da
tradição e dos saberes ancestrais no Rio de Janeiro. Foi ela que também encabeçou o processo de juntar o povo
de santo para negociar com a Polícia Militar e Polícia Civil do Rio de Janeiro a visita à Coleção “Magia Negra”
de objetos e adereços de candomblé e umbanda que foram retirados nas invasões a terreiros pela polícia.
Da mesma forma, também solicitou a retratação do governo brasileiro pelos atos de invasão dos terreiros
e violação de direitos do povo de santo. Por sua atuação, recebeu a Medalha Pedro Ernesto na Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro.
Na Bahia, Ekedi Sinha vem desenvolvendo uma experiência interessante, denominada Feira da Saúde,
que aproxima o Sistema Único de Saúde, pesquisadores, estudantes e lideranças de terreiros para novas
abordagens em promoção da saúde a partir do imaginário afro-brasileiro e também respeitando as práticas
de saúde do SUS. Ekedi Sinha da Casa Branca do Engenho Velho possui grande atuação em ações de cuidados
da natureza, do meio ambiente e na realização das Feiras de Saúde no espaço da Casa Branca. É interessante
perceber nas Feiras de Saúde a presença marcante das crianças e dos jovens, e a atuação de Ekedi Sinha nas
brincadeiras e nas atividades voltadas para a juventude. Em uma dessas Feiras para a qual fui convidado,
fiquei admirado certa hora de ver os meninos tocando atabaques e chamando Ekedi Sinha, que é uma das
mais velhas do terreiro, para dançar. E ali o alujá de Xangô tomou conta da Feira e a meninada feliz por ter
essa senhora dançando para eles. E é essa capacidade de juntar todas as pessoas e gerações que faz o trabalho
político-social de Ekedi Sinha uma experiência de saúde exitosa.

Saúde do corpo e da natureza

As experiências de vida das mulheres de terreiros mostram que os saberes das mulheres da tradição
religiosa afro-brasileira foram o alicerce de várias lutas políticas do povo negro e que elas também deram
continuidade às lutas pelo direito à saúde, pois entenderam que a saúde vai muito além dos cuidados com
o corpo e do tratamento de doenças. Essas senhoras sabiam que a falta de emprego, falta de lazer, a falta
de cuidado e carinho, a baixa autoestima, a desagregação familiar, etc. contribuem para o adoecimento da
população e lá estavam elas atuando para restabelecer o equilíbrio das pessoas com seus banhos de ervas,
os aconselhamentos, as intervenções em situações de conflitos, e a participação nas decisões políticas em
suas comunidades e cidades. Elas são cuidadoras, ervateiras, parteiras, amigas, confidentes, conselheiras,
parceiras e mães. Possuem um conceito de saúde ampliado onde o corpo, o espírito, a natureza e a comunidade
precisam estar em harmonia.
Elas também mostram que esses saberes sobre saúde dialogam com outros saberes como pode ser
observado no depoimento de Mãe Euzita, do Terreiro Fé em Deus, em São Luís, Maranhão, durante as
filmagens do vídeo O Cuidar nos Terreiros9. Ela diz que “uma dona de terreiro é uma mãe, mas é um coração

9 As versões resumida e integral do documentário estão disponíveis em: renafrosaude.com.br/o-cuidar-nos-terreiros/. Acesso em:
dezembro de 2015.
139
de mãe que é para todos, aqueles que mais precisam, que vêm o doente, que precisam de um apoio, de
acolhimento. Então é isso o que a gente faz”. Quem vê o vídeo percebe que o jeito e a fala simples e ao mesmo
tempo forte de Mãe Euzita nos lembra que a primeira fase do cuidado é o acolhimento e ela nos alerta sobre
a importância de abordar assuntos que são estratégicos para a promoção da saúde, como a inclusão de
todas as pessoas que precisam de cuidados. O depoimento dela serve para ilustrar a Política Nacional de
Humanização do SUS, que tem como base o acolhimento. Desse modo, a fala de Mãe Euzita, mãe de santo e
curadora, é bastante atual e mostra que um saber não é mais importante que o outro, e que a complementação
de saberes pode ajudar o SUS, pois um saber não anula o outro, complementam-se.
Makota Valdina, no mesmo vídeo, enfatiza que os rituais da tradição religiosa afro-brasileira para a
manutenção do equilíbrio são práticas de cuidados em saúde e lembra que “nós de terreiros temos de lutar
pelo nosso direito de saúde integral para que o SUS seja o que ele deve ser, [mas] que ele ainda não é. O SUS
ainda não dá o atendimento que nós merecemos ter”. Makota Valdina vai mostrando que as práticas rituais
dos terreiros são práticas e procedimentos para a promoção do equilíbrio das pessoas, para a promoção da
saúde. Ela também convida as pessoas de terreiro para lutar pelos direitos à saúde integral e faz uma crítica
positiva ao SUS, alertando que o atendimento precisa ser cuidadoso e respeitoso para com o povo de terreiro
também.
As griôs da saúde vão tecendo redes de solidariedade e de repasse de ensinamentos para as iniciantes
mais novas com a finalidade de perpetuar essa tradição da arte de cuidar. Em cada história, fica evidenciado
que foram os saberes dessa tradição guardados em suas memórias que fizeram com que o povo negro e o
povo de terreiro criassem condições de sobrevivência. Para cada uma delas, cuidar da saúde não significava
somente lidar com as doenças do povo, mas sim com todas as situações conflitantes e todos os acontecimentos
que causam desequilíbrio nas pessoas. Cuidar significa também lidar com as estratégias políticas que garantam
o bem-estar e a qualidade de vida de sua comunidade e de seu povo.
E são elas que com sua sabedoria vão nos contando e reinterpretando histórias milenares como uma
das lendas de Oxum, que mostra a importância da luta das mulheres por seus direitos.
Conta a lenda que Oxum era uma jovem trabalhadora na cidade em que vivia e nunca conseguia
melhorar de vida. Um dia resolve consultar o adivinho que a aconselha a preparar uma oferenda e entregar
no palácio do rei. O adivinho mandou colocar as coisas num balaio, fazer todos os seus pedidos e ofertar ao
rei. Chegando ao palácio, Oxum começa a dizer: “Mas que rei maldito. Que rei terrível. Sou uma mulher que
trabalha muito, me esforço e não consigo melhorar de vida. Esse rei é injusto, porque tem tudo só pra ele.
Olha o palácio dele”. Oxum continua xingando e rogando pragas para o rei enquanto entrega a oferenda. O
povo começa a se juntar em volta dela. O rei pergunta o que estava acontecendo e o que poderia fazer para
que Oxum ficasse quieta. Um conselheiro diz para o rei presentear Oxum para que se calasse. Então, o rei lhe
dá um agrado. Oxum agradece e diz merecer o presente porque trabalha bastante. Mesmo assim não para de
falar e praguejar. E o rei dá mais um presente. E ela continua recebendo e xingando. O final da história é que
Oxum é dona de todo ouro e de toda a riqueza.
Por que conto essa história? Porque disseram para Oxum pedir e ela fez o contrário. Ela exigiu o que
lhe era de direito e ganhou tudo que merecia. Essa é uma história de tradição que nos provoca a lutar pelos
nossos direitos. Que nos faz repensar que temos de dar continuidade pois os “nossos passos vêm de longe”.
Griôs da Diáspora Negra
140
141
Feiras de Saúde nos Terreiros de Candomblé da Bahia: estratégias
de diálogo entre o modelo médico hegemônico e a medicina
tradicional de matriz africana
Denize de Almeida Ribeiro 1
Ordep Serra2
Maria Cristina dos Santos Pechine3
Serge Pechine4

Introdução

Que os Terreiros de Candomblé são importantes espaços onde muitos cuidam da saúde, pois são
núcleos com diversas ações sociais que repercutem sobre segmentos consideráveis da sociedade, muita gente
sabe. Mas esta compreensão nunca se impôs de imediato no plano prático das políticas públicas, nas esferas
de governo – onde apenas começaram a fazer-se valer recentemente –, por conta da discriminação racial
e do racismo institucional. Na área da saúde, dentro do atual modelo de atenção centrado na figura do
médico e em uma medicina baseada em conhecimentos acadêmicos europeus, fica difícil compreender e
aceitar outros modelos de saúde, particularmente a partir do reconhecimento de uma medicina tradicional
de origem africana.
Do nosso ponto de vista, para a construção de uma política de saúde que contemple tais saberes, seria
preciso investir em muitas ações, a fim de introduzir nas políticas públicas atuais a noção de promoção da
saúde a partir de conhecimentos múltiplos, de respeito à diversidade cultural brasileira e que contemple
essa diversidade como um valor a ser considerado na multiplicidade de significados que os sujeitos possuem
sobre saúde.
Na Bahia temos, entre outras referências, elementos originários da religiosidade de matriz africana.
Alguns de seus símbolos são reverenciados como peculiares da comunidade negra. No entanto, tais valores
simbólicos que se traduzem ou se evidenciam no cotidiano da vida dos terreiros não repercutem em bens

1 Docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Área: Saúde Coletiva, Coordenadora do NEGRAS – Núcleo de Estudos
em Gênero, Raça e Saúde. Ekedi do Ilê Axé Iyá Nassô Oká (Casa Branca), em Salvador, Bahia. E-mail: ialode28@hotmail.com.
2 Docente do Departamento de Antropologia da FFCH/UFBA. Secretário Adjunto da Associação Brasileira de Antropologia. E-mail:
ordepserra@terra.com.br.
3 Doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia. E-mail: cristinapechine@ hotmail.com.
4 Doutor em Sociologia, em co-tutela pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS Paris) e pela Universidade Federal
da Bahia − in memorium.
Griôs da Diáspora Negra
142
que possam contribuir para a manutenção de cada casa, das suas práticas e de suas rotinas. O Candomblé
procurou preservar alguns elementos simbólicos das culturas africanas nos seus mais variados aspectos,
através da sacralização dos costumes, saberes e práticas dessa matriz cultural, inclusive sobre a saúde.
Nessa religião, geralmente as mulheres negras, em grande maioria, administram o espaço mítico,
sagrado e social, tendo em conta que o terreiro é, ao mesmo tempo, templo e espaço de socialização, e hoje
um território historicamente reconhecido de resistência política negra. Essa resistência pode ser registrada
em todo o processo histórico de luta para a manutenção de seus cultos e até se tornou objeto de estudos de
muitos pesquisadores.
Nos terreiros, os idosos (os seniores) têm um papel relevante na hierarquia de cada casa: os mais
velhos são doutores nos saberes que resguardam cifrados e preservados através dos símbolos sagrados da
religiosidade. Entretanto, o Candomblé continua a ser discriminado e várias vezes nem sequer é visto como
religião. Apesar do relevante trabalho de inclusão de negros/as, das mulheres e idosos e também da sua
reconhecida atuação em prol do fortalecimento da identidade e da cultura negra no Brasil, muitos adeptos do
Candomblé são invisibilizados e excluídos como sujeitos de direitos.
Através do seu trabalho, na Secretaria Municipal de Saúde de Salvador no período de 2005 a 2009,
quando esteve a frente da implantação da Política de Saúde Integral da População Negra, Denize Ribeiro
conheceu inúmeras casas de Candomblé do município e pôde testemunhar diversas atuações de seus
representantes em defesa de uma série de questões políticas como: no combate à intolerância religiosa; na
defesa do meio ambiente e das águas; por suas terras e territórios; contra a violência; pela saúde da população
negra; em defesa das mulheres; dos direitos da comunidade LGBT, entre outras lutas.
Neste trabalho de gestão política, pôde contar inúmeras vezes com o apoio dos terreiros de Candomblé
da cidade, que a procuravam na Secretaria de Saúde, ou muitas vezes, mandavam recados de que queriam
lhe falar.
Como gestora, foi possível perceber, neste período, que os terreiros desenvolvem variadas práticas
de saúde e funcionam como espaços de cuidados tanto para adeptos quanto para pessoas de diferentes
classes sociais, raça/etnia e religiões. Mas tais práticas foram postas à margem do sistema oficial de saúde,
deslegitimadas por serem práticas da medicina tradicional africana e ditas sem comprovação “científica”.
Meneses faz esta mesma observação quando analisa a situação de Moçambique5. Ao se referir à construção
do conhecimento científico moderno na Europa, ela afirma que este se deu como sinônimo da missão de
organizar e disciplinar as populações autóctones por todo o território colonizado. Em suas palavras:
O moderno empreendimento colonial português começou numa altura em que a ciência
deu uma nova força e legitimidade à política pública e colonial. De repente, o conhecimento
científico emergiu como um instrumento de afirmação da superioridade portuguesa

5 MENESES, Maria Paula. Corpos de violência, linguagens de resistência: as complexas teias de conhecimentos de Moçambique
contemporâneo. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p.
177-214.
143
(branca), uma mudança que transformou os saberes do “outro” (negros), com quem tinham
estado em contato durante séculos, em formas inferiores e locais de interpretar o mundo. As
fronteiras da civilização tornaram-se as margens de um sentido de ordem social europeia;
consequentemente, os nativos tornaram-se a própria encarnação da desordem, simbolizada
pelo seu sofrimento moral, degradação física e mundo desordenado.

Esta negação da diversidade das formas de perceber e explicar o mundo é um elemento


constitutivo e constante do colonialismo. No entanto, e muito embora a dimensão política
da intervenção colonial tenha sido amplamente criticada, o ônus da monocultura colonial
epistêmica ainda é amplamente aceito como um símbolo de desenvolvimento e modernidade6.

No presente artigo, apresentamos o relato de uma experiência relevante para a construção da Política
de Saúde da População Negra no município de Salvador, que foi a da realização de Feiras de Saúde nos
Terreiros de Candomblé. Tal atividade teve exatamente o objetivo de aproximar diferentes práticas de saúde,
linguagens e formas de cuidado, para que a partir dessa interação os sujeitos experienciassem outro olhar,
que desconstruíssem preconceitos e viabilizassem a descolonização epistemológica dos saberes sobre saúde.

Breve histórico das feiras de saúde nos terreiros

Inicialmente é importante salientar que no plano conjuntural, no ano de 2003, foi criada pela Presidência
da República a Secretaria Especial de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (Seppir) e no ano seguinte,
por ocasião do Primeiro Seminário Nacional de Saúde da População Negra, foi instituído um comitê técnico para
a implementação de suas propostas, integrado por membros da Seppir e do Ministério da Saúde. Já em 2006,
no contexto do Segundo Seminário sobre o tema, oficializou-se a Política Nacional de Saúde da População Negra.
No mesmo ano, o Conselho Nacional de Saúde lançou o Programa de Combate ao Racismo Institucional na Saúde7.
Nessa altura, já existia uma ampla mobilização do povo de santo, um movimento expressivo de
comunidades religiosas afro-brasileiras empenhadas em garantir direitos à saúde. Assim é que no ano de
2003 realizou-se em Salvador, na chamada Praça de Oxum do Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho (de
nome litúrgico Ilê Axé Iyá Nassô Oká), a I Feira de Saúde do Terreiro da Casa Branca, promovida pela Associação
São Jorge do Engenho Velho (que representa, no plano civil, o Egbé Iyá Nassô, ou seja, a comunidade do
referido templo), pelo Movimento Negro Unificado (MNU) e pelo Grupo Hermes de Cultura e Promoção
Social, com apoio da Secretaria de Saúde da Prefeitura Municipal de Salvador (PMS), do Centro Ecumênico
de Serviços (Cese) e de Koinonia − Presença Ecumênica e Serviços8.

6 Idem, ibidem, p. 181.


7 MONTEIRO, Simone e MAIO, Marcos Chor. Cor/raça, saúde e política (1995-2006). In: PINHO, Osmundo e SANSONE,
Lívio. Raça: novas perspectivas antropológicas. Salvador: EdUFBA, 2008, p. 121-149; MAIO, Marcos Chor e SANTOS, Ricardo Ventura.
Qual retrato do Brasil? Raça, biologia, identidades e política na era da genômica. In: PINHO, Osmundo e SANSONE, Lívio. Raça: novas
perspectivas antropológicas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 83-119.
8 SERRA, Ordep et alii. Farmácia e cosmologia: a etnobotânica do Candomblé na Bahia. Etnoecológica, México-DF, v. 4, n. 6, 2000,
p. 11-32.
Griôs da Diáspora Negra
144
O evento teve lugar no contexto do I Seminário de Saúde da População Negra, organizado, em 2003,
promovido pelo MNU, em articulação com outras instituições e com significativa participação do povo de
santo. O sucesso da iniciativa – que viabilizou o encontro entre lideranças das religiões de matriz africana,
militantes, pesquisadores e técnicos em saúde da Bahia e de outros estados – levou à realização do I Seminário
Nacional de Saúde da População Negra, o qual teve lugar no ano seguinte, em Brasília, com a participação de
gestores de diversos municípios de todo o país. A II Feira de Saúde da Casa Branca, realizada em novembro de
2004, na mesma Praça de Oxum, de novo mobilizou não só o Egbé Iyá Nassô e a população das vizinhanças,
como também o povo de santo de vários outros templos de culto aos orixás, além de muitas entidades
representativas da população negra soteropolitana, de ONG’s e de agremiações diversas, com apoio da PMS
e de diversos patrocinadores.
Paralelamente a isso, em março de 2003, durante o II Seminário Nacional Religiões Afro-Brasileiras e Saúde,
realizado em São Luís, Maranhão, foi criada a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro),
que associa adeptos de diferentes cultos de matriz africana (Candomblé, Umbanda, Encantaria, Batuque,
Xangô, Xambá, etc.), interagindo com gestores e profissionais da área de saúde, integrantes de ONG’s e de
órgãos de governo, pesquisadores e lideranças do movimento negro. Atualmente, a Rede conta com vinte e
três núcleos espalhados pelo Brasil e tem representações em doze estados, na Bahia inclusive9.
Ainda nesse período, verificaram-se, no particular, mudanças significativas na Bahia, com o acolhimento,
no plano governamental, de reivindicações importantes do movimento negro: já em 2003, deu-se a criação da
Secretaria Municipal da Reparação (Semur), da Prefeitura Municipal do Salvador; em fevereiro de 2005, foi
constituído o Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra (GTSPN/PMS), em que colaboram a Semur e
a Secretaria Municipal da Saúde (SMS)10; esta última passou, então, a contar com uma Assessoria de Promoção
da Equidade Racial em Saúde (Aspers). Ainda em 2005, a SMS promoveu um encontro de que participaram,
além de membros de sua Coordenação de Saúde Ambiental e do Grupo de Trabalho de Saúde da População
Negra (GTSPN), lideranças de doze terreiros soteropolitanos, dirigentes de destacadas organizações do povo
de santo e representantes da Pastoral Afro da Igreja Católica. Iniciou-se, assim, oficialmente o diálogo.
No ano de 2005, a Secretaria Municipal de Saúde de Salvador assumiu a implantação da Política de
Saúde da População Negra, que entre suas atividades propunha a realização de ações de saúde junto às
religiões de matriz africana do município.
Prosseguindo nessa busca de entendimento, nos dias 14 e 15 de setembro de 2007, as Secretarias de
Saúde de Salvador e do município vizinho de Lauro de Freitas promoveram o I Seminário de Religiões de
Matriz Africanas e Saúde, com a participação de destacados representantes de comunidades do Candomblé
e equipes técnicas não só de órgãos dos referidos municípios, mas também do governo do Estado da Bahia,
principalmente de sua Secretaria da Promoção da Igualdade Racial (Sepromi). Proclamou-se a necessidade de
diálogo franco entre as lideranças do Candomblé e os agentes de saúde dos órgãos governamentais; tratou-se

9 SILVA, José Marmo da. Religiões e saúde: a experiência da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Saúde e
Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 2, 2007, p.171-177.
10 SALVADOR / Secretaria Municipal da Saúde. Diagnóstico de Saúde da População Negra de Salvador. Grupo de Trabalho de
Saúde da População Negra, Salvador, 2006.
145
de refletir sobre o impacto do racismo e da intolerância religiosa na saúde da população negra e um plano
de ação foi traçado. Na Carta, que resumiu as conclusões do encontro, deu-se grande ênfase à necessidade de
sensibilização e formação tanto de lideranças do povo de santo quanto de profissionais de saúde atuantes nos
órgãos governamentais, com vistas a garantir-lhes a possibilidade de uma eficaz colaboração. Reclamou-se o
apoio dos sistemas de saúde estadual e municipal à ensejada tarefa de organização de uma “rede integrada
distrital de terreiros de Candomblé”, a ser acionada com vistas ao desenvolvimento de ações em saúde nos
municípios de Lauro de Freitas e Salvador. Insistiu-se, ainda, na importância de “estimular a participação de
representantes das religiões de matriz africana nos espaços de controle social [dos serviços de saúde]”.
Como não podia deixar de ser, a problemática do racismo e da intolerância religiosa constituiu um
foco destacado de discussão: mobilizou todo um grupo de trabalho que fez uma série de propostas objetivas,
reclamando, por exemplo da capacitação da ouvidoria da saúde (do estado e do município) para atender
adequadamente às queixas e denúncias relativas a problemas dessa ordem e a “educação dos profissionais
de saúde” com o mesmo fim. Chegou-se a sugerir uma “articulação com universidades e [outros] centros
de formação com vistas a inserir [nos currículos dos cursos que formam os peritos nessa área] disciplinas
como antropologia cultural e outras que abordem a temática racial e a da diversidade religiosa”. A Secretaria
Municipal de Saúde de Salvador assumiu como tarefa sua a realização dessas propostas no município.
Entre os obstáculos que enfrentou, merecem destaque a falta de recursos e as deficiências crônicas de um
serviço municipal precário, mal equipado, carente de meios. Quando postos de saúde ficam sem água ou
têm cortado o telefone por falta de pagamento, quando as equipes técnicas carecem de apoio logístico e de
material indispensável para seu trabalho, quando os funcionários são mal remunerados, permanecem pouco
equipados e se sentem desestimulados, não é fácil implantar programas novos, some-se a tudo isso o racismo
institucionalizado mediando todas as relações e realizações11.
O ideal seria que os terreiros, com seu prestígio e capilaridade, viessem a constituir-se em centros de
atenção nos quais, sem prejuízo do exercício de suas práticas tradicionais (religiosas e terapêuticas), também
apoiassem o serviço público de saúde; onde, por exemplo, como já ocorre em templos de outras religiões,
exerça-se vigilância sobre a mortalidade materna e infantil, reúnam-se para mútua ajuda e recebimento de
orientação mulheres grávidas e lactentes, idosos, grupos solidários empenhados em compartir o cuidado do
diabetes, da hipertensão, da anemia falciforme e de outras síndromes de significativa incidência na população
negra; em que membros da comunidade do terreiro e de seu entorno tenham acesso a orientações sobre DST’s
e AIDS e se procedesse à distribuição de preservativos; onde, mediante o treinamento de agentes comunitários
recrutados nesse meio e capacitados por quem de direito, tenham uma preparação especial para tratar da
problemática específica da saúde da população negra, possam se efetuar, quando necessário, os devidos
encaminhamentos para serviços médicos do Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, que a medicina tradicional
praticada nesses espaços também seja respeitada e exercida sem discriminação.
Chegar a isso demanda, certamente, tempo, recursos e uma estratégia de vigilância e combate ao racismo
constante.

11 SERRA, Ordep; PECHINE, Maria Cristina dos Santos e PECHINE, Serge. Candomblé e políticas públicas de saúde em Salvador,
Bahia. Mediações, Londrina, v. 15, n.1, jan.-jun. 2010, p. 163-178.
Griôs da Diáspora Negra
146
Intolerância religiosa, violência e saúde

Mas não é só a falta de meios (financeiros e de infraestrutura) que se põe como obstáculo para a
consecução de objetivos que os órgãos de governo em tese consagraram. Há outros óbices muito graves a ser
vencidos. Um deles tornou-se a causa principal da preocupação manifesta em todos os diálogos entre o povo
de santo e as autoridades responsáveis pela saúde pública em Salvador: a intolerância religiosa.
Durante as feiras de saúde, esse problema foi explicitamente colocado: muitos agentes comunitários
de saúde e de zoonoses se negam a realizar ações de saúde nos terreiros, por medo, preconceito ou por
serem evangélicos. Em suma, quando se trata de atender aos Candomblés, eles negligenciam o desempenho
de ações rotineiras que são de sua incumbência normal. Reiterou-se isso com muita ênfase na II Oficina,
também realizada em maio de 2008, reunindo os distritos de Centro Histórico, Itapuã e Pau da Lima. Isso
significa que o povo de santo é diretamente marginalizado na provisão da saúde pública, em Salvador. E essa
discriminação dificilmente é coibida. A discriminação tem por base primeira um preconceito sedimentado:
a convicção a priori de que o povo de santo é ignorante, supersticioso, portador de ideias “atrasadas”, dado
a práticas irracionais, incompatíveis com o ideal de saúde. Combinam-se para alimentar essa convicção o
racismo, que perpassa a sociedade brasileira (nutrido por deficiências da educação básica e pelos reflexos
ideológicos de uma desigualdade crônica) e a formação profissional precária de muitos agentes de saúde.
Essa má formação inculca em muitos o sentimento de que práticas inspiradas no ideário de uma camada
“inferiorizada” vêm a ser, por força, inconciliáveis com a verdade médica, incompatíveis com uma verdadeira
cultura “cientificizada” da saúde. Mas não é tudo. Além disso, há o preconceito cultivado, estimulado,
construído de forma doutrinária, alimentado por intolerância religiosa ensinada e pregada sistematicamente12.
A “guerra santa” movida por igrejas neopentecostais de missão contra as religiões de matriz africana
tem tido uma propagação extraordinária em todo o Brasil e é cada vez mais acirrada na Bahia. Os agentes
de saúde do aparelho de Estado que aderiram às novas igrejas fundamentalistas sentem verdadeira repulsa
pelos Candomblés, que consideram “casas do diabo”. Ódio e temor juntam-se em sua atitude para com o povo
de santo e os levam a excluí-lo de seu cuidado, do horizonte de sua prática profissional.
Então, o povo de santo é duplamente atingido nesse processo. A intolerância religiosa afeta os fiéis do
Candomblé ao infligir sobre eles vexames (agressões e calúnias) que geralmente ficam impunes; por outro
lado, produz um cerceamento de seus direitos, quando leva profissionais a marginalizá-los e mesmo a excluí-
los da prestação de serviços públicos a que fazem jus. Os interessados em estabelecer uma nova aproximação
entre os órgãos incumbidos do cuidado da saúde pública e o pessoal dos terreiros têm sempre de começar
o diálogo abordando esse difícil tema, que desperta os mais vivos debates e é um prelúdio inevitável a
qualquer proposição de trabalho conjunto.
Uma constatação se impõe: a intolerância religiosa que se espalha na Bahia é causa de privação e
sofrimento para um segmento importante da população do estado, em particular de sua capital, a saber, o

12 Idem, ibidem.
147
povo de santo, os sacerdotes e os adeptos do culto dos orixás. Produz, assim, efeitos negativos sérios. Por um
lado, embaraça o desempenho de um sistema tradicional de ação para a saúde que efetivamente socorre as
aflições de muitos; por outro, impede uma ação mais efetiva do poder público nesse campo, na medida em
que tolhe uma colaboração de cuja importância não é possível duvidar.
Numa reunião de que participamos recentemente com expressivas lideranças do povo de santo, entre
os temas discutidos como os mais preocupantes para o Candomblé, tiveram destaque: (1) a intolerância
religiosa; (2) o crescimento da violência em Salvador; (3) a perda de espaço (e em particular de área verde)
pelos terreiros. Está claro que eles se interligam e se relacionam todos com a problemática da saúde da
população negra.
O povo de santo tem uma clara percepção de que a violência crescente é uma doença terrível do
coletivo. As redes de solidariedade que se entretecem nos terreiros são um fator de coesão muito poderoso.
Como se sabe, o tecido social se esgarça quando organizações populares desse tipo são ameaçadas. Elas são
um obstáculo ao domínio da violência.
A abertura do diálogo e a busca da colaboração (ainda incipiente) entre os Candomblés baianos e os
órgãos de saúde pública atuantes em Salvador se devem à iniciativa de organizações da sociedade civil:
a lideranças dos terreiros, a ONG’s ligadas aos egbé e aos movimentos negros. Militantes que assumiram
cargos na estrutura do governo municipal deram impulso a essa tentativa, mas ela não avançou muito. Foi
travada pela falta de recursos e pelas limitações de poder que esses novos agentes de mudança sofrem no
seu trabalho. A adesão dos principais gestores à proposta de uma política de saúde para a população negra
é muito mais retórica do que efetiva. E o quadro de desorganização interna do serviço de saúde municipal é
de fato muito grave. Há também a barreira das resistências internas que se verificam nos quadros técnicos.
Até o momento, a iniciativa mais exitosa em termos de aproximação entre o Candomblé e o serviço
de saúde do município é a promoção das feiras de saúde nos terreiros, de acordo com um modelo que a
Prefeitura Municipal de Salvador adotou, mas foi criado nos próprios egbé. Essas feiras têm características
próprias, que as singularizam. Têm muita coisa em comum, é certo, com as que são realizadas em diferentes
espaços comunitários, mas têm algo a mais, além da prestação de serviços e informações ao público
(vacinação de pessoas e animais domésticos, pequenas conferências com esclarecimentos sobre problemas
de saúde de diversas ordens, distribuição de preservativos, controle de hipertensão, pesagem de crianças,
breves consultas, orientação didática odontológica etc.). Todavia, como logo percebemos em nossa pesquisa,
nenhuma feira de saúde que se limitar a essas atividades terá êxito em um terreiro de Candomblé baiano.
Evidência disso já existe. Há cerca de duas décadas, ensaiou-se fazer uma “feira-padrão” no Terreiro
da Casa Branca – e o resultado foi sofrível. Tempos depois, com o protagonismo do próprio pessoal dos
terreiros, a feira de saúde que se realizou nesse mesmo Candomblé teve um sucesso inegável, produzindo o
modelo que se difundiu pelas Casas de Santo baianas.
No evento assim reestruturado, há sempre espaço para cantos e danças; há barracas onde se vende,
além de artesanato relacionado com “coisas de santo”, comida e bebida. Não raro, sucedem nessas feiras
exibições de grupos de teatro juvenil e de capoeira; cantores populares às vezes comparecem. Frequentemente,
Griôs da Diáspora Negra
148
tudo acaba em samba de roda. As crianças da redondeza são mobilizadas através de gincanas e participam
com grande entusiasmo. Há também mesas redondas nas quais se discutem assuntos diversos, de interesse
do pessoal dos terreiros. Mas seja qual for o temário escolhido, um assunto sempre retorna: a intolerância
religiosa.
Na IV Feira de Saúde do Terreiro da Casa Branca, que teve lugar em setembro de 2008 na Praça de
Oxum do Engenho Velho, o temário escolhido por lideranças da Casa anunciava: “A saúde da população
negra de Salvador, a violência urbana e políticas públicas para os terreiros de Candomblé”. Isso não impediu
que a intolerância religiosa também fosse abordada e discutida. E deu-se uma novidade: estando próximas
as eleições para prefeito da cidade, os “prefeituráveis” foram convidados a participar, sendo que apenas dois
compareceram. A iniciativa desse convite foi também de lideranças do terreiro. A singularidade das feiras de
saúde realizadas nos egbé tem a ver com o ideário do povo de santo. O nome “feira” sugere movimentação,
diálogo e comércio; “saúde”, no entendimento desses grupos de culto, por força, implica alegre expansão.
Uma feira de saúde em que não se coma bem, em que falte bebida e animação, sem risos, danças e brincadeiras,
seria fraca, desanimada. Para ser feira, também precisa incluir algum movimento de compras e vendas, mesmo
em pequena escala. Em suma, dá-se que, para os devotos dos orixás, a vida saudável se manifesta como
alegria, exige dança e canto. Só assim pode a saúde ser promovida.
Os orixás também devem ser homenageados nesses contextos: segundo o povo de santo, são eles que
garantem o bem-estar de todos. Geralmente, cada feira tem um patrono divino. Ainda que não aconteçam
atos litúrgicos como os que os terreiros celebram no curso de sua atividade religiosa comum, sempre alguma
cantiga de santo deve ser entoada, alguma oração feita, pois se tem consciência de estar em território
sagrado. Esquecer os orixás não seria saudável. Ao mesmo tempo, o novo interesse pelas mesas redondas
e debates mostra uma crescente politização do povo de santo, ou melhor, de um segmento desse cada vez
mais empenhado em discutir sua situação e os problemas da cidade. Isso, sem dúvida, é um bom sinal para
a saúde dos baianos.

Considerações finais

Do ponto de vista das políticas governamentais, a principal estratégia voltada para as comunidades de
terreiro tem sido o mapeamento e o levantamento socioeconômico das comunidades tradicionais de terreiro
em sua diversidade, como também a realização e o apoio a estudos e pesquisas relacionados à situação de
saúde e segurança alimentar; o levantamento da demanda por serviços e programas sociais nas comunidades
tradicionais, bem como o apoio a ações de desenvolvimento sustentável nessas comunidades.
Dessa forma, o governo parece assumir seu desconhecimento com relação à realidade de tais
comunidades, mas manifesta seu interesse em conhecer e em apoiar as ações desenvolvidas para esse público.
149
Nesse contexto, vale destacar o papel das mulheres negras. Esse papel é, de fato, marcante, pois mesmo
nas casas lideradas por homens esse aspecto é reconhecido e a elas é atribuído não só o domínio das cozinhas
e a sabedoria em torno da utilização mágico-religiosa dos conhecimentos sobre saúde, mas muitos outros
fundamentos.
Tais mulheres encontram-se extremamente vulnerabilizadas, vivenciam interseccionalidades de
categorias que as colocam em lugares subalternizados. Isso pode ser observado quando analisamos toda essa
luta por saúde a partir do ponto de vista das mulheres negras. Para tais mulheres, quando se entrecruzam
as varáveis raça, gênero e classe, isso geralmente as subposicionam por serem alvo de estereótipos negativos
em nossa sociedade: mulheres, negras e pobres. Enquanto que para as mulheres brancas essas mesmas
variáveis as sobreposicionam por serem mulheres, brancas e, geralmente, com condições socioeconômicas
mais favoráveis.
Tal situação se torna mais agravada quando acrescentamos as variáveis sexualidade e religiosidade.
As mulheres negras de Candomblé percebem que isso as coloca em uma condição de maior vulnerabilidade
social, num contexto sexista, machista e lesbofóbico, onde as práticas religiosas de matriz africana são vistas
como folclóricas e/ou demoníacas.
Assim, consideramos que se esta iniciativa de promoção sistemática de feiras de saúde em terreiros de
Candomblé baianos tem tido êxito, se os seminários, encontros e debates sobre o assunto “saúde da população
negra” têm prosperado e gerado novas propostas, o fato é que o quadro de saúde dessa população ainda não
mudou. Os terreiros continuam sofrendo discriminação e a nova política de colaboração entre os órgãos
de saúde pública e o Candomblé continua valendo quase somente no papel e na voz entusiasmada de seus
defensores. Mas a esperança permanece. E não há dúvida de que já se deu um grande avanço, agora que o
povo de santo se faz ouvir no cenário das discussões sobre saúde pública em Salvador e no Brasil.

Griôs da Diáspora Negra


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151
Insistencia
Shirley Campbell Barr 1

Insisto en renegar de todo cuanto me incomoda y en religiones


en querer seguir siendo la parte más oscura e y acentos que yo ni siquiera entiendo.
incómoda de este continente En colocarles nombres en lenguas extrañas
en querer hablar la lengua heredada de mis y educarlos para la irreverencia.
antepasados, tan presentes
Insisto en ser la parte más incómoda de este
y en seguir danzando al pie de la letra la canción de continente
mis abuelas.
en querer ser la porción más oscura y altiva de esta
Insisto en tararear las notas de canciones que ya ni tierra
recuerdo
En vestirme de gala para las guerras y de luces en
en cantar las canciones que casi fueron borradas de los velorios.
la memoria
En reírme a carcajadas a pesar de las penurias
el mismo día en que aprendí canciones de otras
lenguas. y en cantar canciones de victoria a pesar de los
reveses.
Insisto en tener la voz más gruesa y sonora de todos
en la América.
En vestirme de colores rimbombantes Porque aun soy

y en colocar collares coloridos alrededor de mi la piedra que incomoda en el zapato


cuello, y el número más notable entre las cifras.
aretes musicales en mis orejas. Aun soy la luz relegada a la parte postergada de la
casa

Insisto en llevar tambores a la iglesia pero que alumbra insistentemente el jardín de


enfrente
y en adorar Dioses y Diosas con nombres
que grita con muchas voces la palabra cierta,
impronunciables
y pelea con muchas manos la guerra más humana
En recrear ceremonias e inventar rituales que me
dignifiquen y aguarda irreverente

en bautizar a mis hijos bajo las estrellas y en los ríos por su justo homenaje.

1 Escritora e antropóloga afro-costa-ricense. Autora dos livros Naciendo (1988), Rotundamente negra (1994), Desde el principio fue
la mezcla (2007) e Rotundamente Negra y otros poemas (2013). E-mail: shirleycampbellbarr@yahoo.com.
Griôs da Diáspora Negra
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Legados das Ialodês: samba e resistência feminina negra1
Jurema Werneck2

Nossos passos vêm de longe!

As mulheres negras têm sido definidas nas últimas décadas como produto de superposição ou
coexistência de muitos “ismos”. Esses atuariam sobre cada uma e sobre todas, definindo e explicando
não apenas o que somos, mas também o que fomos ou seremos. Tais superposições foram chamadas por
diferentes autoras/es de discriminações múltiplas ou interseccionalidades e buscam explicitar o conjunto
de forças que incidem sobre nós – racismo, patriarcalismo, lesbo/transfobias, disparidades geracionais e
territoriais, disparidades de renda, entre outras –, produzindo subordinações, destituições, aniquilamentos.
Os resultados da ação dessas forças são visíveis a olho nu: pobreza, sofrimento, desemprego ou inserção
precária no mercado de trabalho, solidão, isolamento político, baixa autoestima, etc.
Temos feito o que é preciso: mostrar amplamente o complexo sistema de exclusões que nos atinge, as
marcas e as cicatrizes que produzem, as derrotas que temos enfrentado. Esta explicitação é condição necessária
para descrever nossa experiência como sujeitos, nossa trajetória, nossa resistência. Mas é insuficiente; mulher
negra é mais do que isso. Somos também – e antes de tudo − expressão das singularidades humanas.
Somos eus e nós, aglutinadas a partir das diferenças reunidas sob a marca do sexo/gênero e da raça. Somos
capazes de emitir vozes e discursos que informam o que somos, dentro e fora dos sistemas de poder que nos
confrontam. Somos seres capazes de persistência, de elaborar formas próprias de luta e autoafirmação. Temos
sido figuras centrais na (re)composição e na (re)criação de comunidades e culturas que ajudam a dar sentido
ao que somos. Temos feito escolhas e ações para nos afirmar e manter, em qualquer época, em patamares de
dignidade. Apesar de todas as barreiras, conseguimos seguir em frente – certamente porque pulsam em nós
outras forças capazes de nos sustentar. De onde vêm? Como defini-las? Para onde nos dirigem?
Temos, ao longo da história e através de diferentes processos e perspectivas, lutado bravamente para
superar formas políticas, culturais e sociais que buscam nos destruir ou inferiorizar. Temos emergido de cada
processo com muitas marcas, porém capazes de seguir em frente. Lutar é uma constante em nossa experiência
diaspórica; é uma constante em nossa vida no pós-abolição, da mesma forma que precisou ser a base de nossa
sobrevivência no período colonial e escravocrata3. Como disse Fernanda Carneiro, nossos passos vêm de

1 WERNECK, Jurema. O Samba Segundo as Ialodês: Mulheres negras e acultura midiática. Tese (Doutoramento em Comunicação
e Cultura) − Escola de Comunicação, UFRJ, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: criola.org.br/criola/?page_id=144. Acesso em: dez. 2015.
2 Médica, mestre em Engenharia de Produção pela Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia, UFRJ e doutorada
em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ, fundadora da ONG Criola e atualmente diretoria executiva da Anistia
Internacional no Brasil. E-mail: juremawerneck@criola.org.br.
3 LANDES, Ruth. Escravidão negra e status feminino. In: LANDES, R. A cidade das mulheres. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002,
p. 347-352.
Griôs da Diáspora Negra
154
longe!4 Então, talvez seja interessante voltar sobre esses passos e buscar, neles, os elementos que nos ajudem
a enxergar um pouco melhor o que somos. Nomear é um ato de poder: e temos o dever de exercer esse poder
em favor do que somos.
Portanto, interessa trazer para o centro dos debates nossa própria história de luta e os elementos
sobre os quais se fundamenta, para superarmos o simples empilhamento de algumas categorias ou a
importação acrítica de outras. O que nos envolve é complexo, múltiplo, um conjunto de forças que vai
além das definições de raça, classe e gênero – os eixos de subordinação. Chamo a esta complexidade, este
sistema de poder, de racismo patriarcal heteronormativo, reconhecendo a necessidade de explicitar nele sua
perspectiva capitalista geracional regionalista5. É contra ele e seus efeitos que lutamos em diferentes arenas: no
movimento de mulheres negras, no movimento negro, no feminismo, no antirracismo, nas lutas LGBT, nas
lutas comunitárias, quilombolas e ribeirinhas, nas lutas contra violência e extermínio, nas lutas sindicais, nas
lutas contra intolerância religiosa, em defesa das religiões e da cultura afro-brasileiras, nas lutas por direitos
humanos e políticas públicas adequadas, nos movimentos de juventude, e muitas mais.
Temos sido definidas ou nos definimos como militantes do movimento de mulheres negras ou do
movimento negro, feministas, feministas negras, como militantes do movimento quilombola, do movimento
LGBT, do movimento comunitário, como mães contra a violência, e muitos outros. Nas diferentes
definições, nossa singularidade reivindica o reconhecimento da presença e/ou liderança feminina negra, e
a responsabilidade de apontar e representar coletivos maiores de mulheres negras, aglutinadas a partir da
experiência comum da diáspora e do racismo patriarcal heteronormativo capitalista geracional regionalista.
Mas, como disse, o recurso a tais classificações expõe não apenas o vigor de nosso ativismo, mas também
hegemonias de raça, de classe, de identidade de gênero, de geração, de região e território e outras. Uma vez
que muitas dessas categorias, criadas por e para outros sujeitos e articulações, muitas vezes invisibilizam
ou excluem a complexidade da nossa experiência como mulheres negras; e, principalmente, tais categorias
tendem a reificar hegemonias, contribuindo para nossa inferiorização; nomear, como sabemos, é um ato de
poder!
Temos lutado todo o tempo e por muito tempo, mas apontar as arenas em que lutamos ainda não
responde à questão sobre o que nos autoriza ou obriga a produzir e/ou aderir a essas lutas. Não revela
que visões sobre nós mesmas nos amparam, inspiram e fundamentam nossas ações. Diante do terror que
o racismo patriarcal heteronormativo representa, ao invés de recuar, temos dado um passo à frente. O que
motiva essa decisão?
Trata-se de uma ação afirmativa, uma enunciação, em favor do que somos e do que queremos ser.
Avançamos, certamente, inspiradas e movidas pelas visões que temos de nós, e possivelmente aprendemos

4 CARNEIRO, Fernanda. Nossos Passos Vêm de Longe. In: WERNECK, Jurema; MENDONÇA, Maisa; WHITE, Evelyn. C. O
Livro da Saúde das Mulheres Negras: nossos passos vêm de longe. Rio de Janeiro: Pallas/Criola, 2002.
5 bell hooks vai mais além e reúne um conjunto mais amplo de categorias (“neo colonial white supremacist patriarchy” ou
“imperialist white supremacist capitalist patriarchy”), reforçando a ideia de que não há uma hierarquia entre elas.
155
e herdamos de outras mulheres negras que nos antecederam . Temos sido aquelas que nossas mais velhas
6

enunciaram. Suas visões sobre nós são nossa principal fonte de afirmação e reconhecimento, contra os demais
discursos de reafirmação de supremacia masculina e branca. O olhar dessas mulheres negras sobre nós nos
ofereceram (e oferecem) os filtros analíticos e de contestação que contrapõem estereótipos, sustentando o que
somos profundamente, confrontando os discursos de inferioridade e impotência que o sistema, reiteradamente,
arremessa em nossa cara.
É importante enxergar e visibilizar esses nossos processos de autoenunciação, as nossas escolhas acerca
do que devemos ser. Precisamos reconhecer este movimento interno, individual e coletivo, de potência. Ele
é resultado de nossa aprendizagem na convivência com as mulheres negras próximas a nós ou nem tanto;
desses momentos, gestos, jeitos de corpo e outros discursos que nos apresentam a nós mesmas, como um
espelho criativo e reparador. Busquemos, então, em nossa própria trajetória histórica seus fundamentos.
Como tenho exposto em diferentes momentos, optei por recorrer à Ialodê.
Para quem não sabe, tomei emprestada essa designação da tradição afro-brasileira de origem ioruba.
Segundo diferentes autoras/es7, ela designa tanto organizações quanto mulheres emblemáticas, cujas trajetórias
são definidas por sua capacidade de liderar e representar outras mulheres nas diferentes lutas sociais que se
apresentam8. Gosto particularmente desse termo, ou melhor, desse título, porque ele sintetiza a capacidade
de articulação, liderança, responsabilidade e poder das mulheres negras, bem como sua capacidade de
produzir movimentos coletivos de transformação. Ialodê significa o poder e a responsabilidade de colocar-
se ativamente frente às coisas e aos processos da vida, de modo a fazer acontecer o que se busca ou o que
se considera necessário; confrontando passividades e vitimizações: falar e agir por si e para si, individual e
coletivamente.
Um aspecto importante relacionado à Ialodê é a constatação de que o termo e seu sentido têm
atravessado séculos e desafios que a história nos impôs, conservando vitalidade e validade entre nós no século
XXI. Ter ultrapassado diferentes e incomensuráveis barreiras, como as guerras no interior do continente, a

6 Cf. THEODORO, Helena. Mito e Espiritualidade: mulheres negras. Rio de Janeiro: Pallas, 1996.
7 VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. 2.ed. Salvador: Corrupio, 1997, p. 174; SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a Morte –
Pàde, Asèsè e o Culto Égun na Bahia. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 116; BERNARDO, Teresinha. Negras, Mulheres e Mães: lembranças
de Olga de Alaketu. Rio de Janeiro: Pallas; São Paulo: EDUC, 2003, p. 35. Vejam também as narrativas tradicionais do Candomblé de Ketu
acerca de Oxum e Nanã, Ialodês primordiais.
8 Na África: “Ialodê é um título de dirigente comumente concedido às mulheres em Iorubalândia. Tradicionalmente, Ialodê significa
‘rainhas de mulheres’ e é dado à mais proeminente e distinta mulher na ou da cidade. Como muitos outros títulos de dirigente notável dados
pelo Obá, a Ialodê tem assistentes como o Otun Ialodê, Osi, e Ekerin. Em muitas cidades e vilas tradicionais iorubas, algumas Ialodês
costumavam comandar um grupo de guerreiras e ela também é a principal representante das mulheres no conselho tradicional, onde as
vozes das mulheres são ouvidas. Na Oyo antiga, Ialodê era a mulher mais velha na hierarquia dos chefes [...]. Em Oió e Ifé, durante o
século XVIII, as mulheres do palácio passaram a desempenhar um papel mais poderoso em suas políticas. Após o colapso do império Oió,
e as guerras civis subsequentes, uma nova geração de mulheres líderes que eram ao mesmo tempo astutas e empreendedoras em Abeokuta
e Ibadan tornaram-se Ialodês, redefinindo seus papéis e competindo com os chefes do sexo masculino em mercadorias e escravos”. Fonte:
http://nigerianwiki.com/wiki/Iyalode. Acesso em: julho de 2015.
Griôs da Diáspora Negra
156
invasão europeia no continente africano, a travessia transatlântica em condições sub-humanas, a escravidão,
o racismo no pós-abolição, os violentos processos de apagamento da memória ancestral e a desestruturação
de nossas condições materiais e simbólicas de vida, permanecendo vivo entre nós e para nós certamente
quer dizer alguma coisa. A que endereçar essa persistência, senão à necessidade de continuarmos afirmando
nosso engajamento, nosso protagonismo e a aliança entre mulheres negras, frente aos diferentes desafios e
lutas fundamentais que enfrentamos ao longo dos últimos seis séculos?
A partir das múltiplas perspectivas de luta e resistência que a Ialodê expõe, é possível ampliar
a compreensão do que nos move, revelando articulações, recolocando nossa autonomia e poderes de
autodefinição e de agenciamento no centro dos processos políticos e culturais nas sociedades da diáspora e da
sociedade brasileira em particular. Trata-se de uma perspectiva que afirma a anterioridade do protagonismo
feminino negro em relação aos diferentes desafios e movimentos em que nos engajamos; e mesmo em relação
às diferentes categorias contemporâneas com que nos identificamos ou somos identificadas.
Não busco essencializar identidades ou posicionamentos de mulheres negras, mas apenas vislumbrar
a persistência de modelos de atuação ao longo da história, que nos permitem (re)inventar formas de inserção
nas arenas sociais e políticas das diferentes épocas e demandas. A partir da Ialodê, é possível constatar
também que nossa expressão como sujeito político singular vem de longa data, enunciando o que queremos
e devemos ser frente aos desafios que se apresentam. O que está em franca contradição com as diferentes
teses que circulam entre nós e que nos definem o sujeito político mulher negra como resultante da falta
– de reconhecimento, de liderança, de poder − nas diferentes arenas (especialmente no antirracismo e no
feminismo).
O que quero dizer é que, ao contrário do que afirmam, não são a subordinação e a ausência o ponto
fundador de nossas articulações e lutas. Não porque algo não nos contempla no interior do feminismo ou
do antirracismo ou em quaisquer outras lutas, movimentos ou causas, que nos colocamos como sujeito
político na esfera pública. Antes mesmo de nos posicionarmos em reação a ideologias, culturas de violência
e subjugação, temos sido ou nos tornamos Ialodê, aprendendo com mulheres negras que vieram antes de nós
ou nossas contemporâneas formas de engajamento na vida e, a partir daí, nas lutas por transformação social,
investidas de protagonismo e autodeterminação.
É preciso reconhecer nessas formas ativas e ativistas de estar no mundo traços fundamentais das
identidades que herdamos9. Temos que (re)visitar seus elementos, cuja memória guardamos em nossos
corpos, jeitos de ser e fazer, modos que reinventamos para nós mesmas, em diálogo próximo com o legado
de nossas antepassadas. Mas também precisamos observar e explicitar formulações e projetos de futuro, que
vamos criando e disseminando para nós mesmas, seus diferentes instrumentos e faces. É preciso honrar a
herança vigorosa que recebemos – e passá-la adiante.
Aqui, proponho um (re)encontro com as Ialodês através do samba.

9 Cf. DAVIS, Angela Y. Blues Legacies and Black Feminism: Gertrude “Ma” Rainey, Bessie Smith, and Billie Holiday. New York:
Pantheon Books, 1998.
157
Vozes Ialodê: representação e afirmação identitária na esfera pública

A ordem do dia era o silêncio, emanando e rodeando o assunto. Alguns dos silêncios foram
rompidos, outros mantidos por autores que viveram e conviveram com as estratégias
civilizatórias. A mim, o que interessa são as estratégias para romper com isso10.

É disso que tratarei aqui: o momento em que o silêncio se rompe e o sujeito político se coloca, se afirma.
Como? Quando? De que maneira?
São diferentes os processos e momentos em que buscamos afirmar as singularidades das mulheres
negras, em contraposição ao apagamento, às estratégias de subjugação e mesmo às homogeneizações que
muitas vezes nos propõem. Da mesma forma, têm sido múltiplas as formas como nos inserimos e participamos
das disputas em curso na sociedade, nas diferentes épocas. Para isso, sempre foi necessária a ocupação da
esfera pública, dos espaços de representação e afirmação identitárias e de luta política. Isso tem sido feito em
diferentes momentos e espaços da história, a partir de diferentes perspectivas, por mulheres negras como nós
mesmas, mas que se tornaram, ao mesmo tempo, singulares, especiais, por sua capacidade de angariar espaços
de maior visibilidade e expressão. Especiais também por reunir, representar e disseminar, em seus fazeres,
nossos pontos de vista, interesses e necessidades. Essas mulheres negras atuaram e atuam em diferentes
espaços e de diferentes maneiras, tanto através de múltiplas formas políticas, culturais e religiosas, fincadas
na tradição, em que expõem sua força, sua capacidade de articulação e liderança; quanto nas diferentes
formas de expressão da indústria cultural.
No caso da diáspora africana e afro-brasileira, chama atenção a grande participação e expressão
de mulheres negras na cultura popular, em especial na música. De fato, a música popular brasileira vista
como esfera pública, de forte marca negra, tem reunido um amplo contingente de mulheres negras que
alcançaram notoriedade e capacidade de impulsionar seus discursos para além das comunidades imediatas a
que pertencem. Podemos constatar que o samba, expressão cultural de origem africana que assumiu grande
importância como modo de afirmação da brasilidade, é o ambiente musical que reúne o contingente mais
expressivo de mulheres negras notórias. Tal fenômeno instiga meu olhar para ver mais de perto, para buscar
entender as razões, os modos de atuação, as mensagens veiculadas por essas mulheres negras. E, sobretudo,
para desvendar de que modo seus discursos e performances nos alcançam e alcançam o restante da sociedade.
Em que medida tais discursos e performances atuam como elementos importantes das nossas lutas por
afirmação e por transformação social? É preciso reconhecer, para dar este passo, o papel que a cultura tem de
retratar realidades e experiências, e também de expor as apostas e projetos dos sujeitos que a produzem e que a
consomem. Cultura é, portanto, um ambiente fascinante de descrição do passado e do presente, bem como dos

10 MORRISON, Toni. Playing in the Dark: whiteness and the literary imagination. Cambridge, Massachusetts/ London, England:
Harvard University Press, 1992. p. 51: “Silence from and about the subject was the order of the day. Some of the silences were broken, and
some were maintained by authors who lived with and within the policing narrative. What I am interested is are the strategies for breaking
it.” A tradução aqui utilizada está em SAID, W. Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 33.
Griôs da Diáspora Negra
158
cenários futuros a que se busca alcançar.
Indo além do explícito e literal, o olhar
sensível sobre a cultura nos permite
compreender os diferentes paradigmas,
processos e horizontes éticos e políticos
que permeiam a experiência de pessoas
e grupos, nos diferentes contextos e nas
diferentes épocas.
Tendo Ialodê como chave de
leitura, poderemos verificar como as
mulheres negras atuaram e atuam como
protagonistas nas disputas no terreno da
cultura, por melhores posicionamentos,
para si, para a população negra como um
todo e para as mulheres em geral. Entre o
grande contingente de mulheres negras
atuantes no samba e na música popular
brasileira, destaco cinco mulheres
negras contemporâneas nossas, cujas
trajetórias percorrem diferentes
momentos das mobilizações negras e
das mulheres em geral. São elas: Alcione,
Elza Soares, Leci Brandão, Jovelina
Pérola Negra e Mart’nália. Através
da leitura dos conteúdos veiculados
em seus trabalhos, que inclui a análise
das músicas (principalmente letras e
ritmos), da iconografia e também suas
performances, podemos (re)conhecer
e analisar as formas de representação
racial, de gênero, de identidade nacional
ou local, bem como os discursos de
luta que trazem e disseminam. Trata-
se de um vasto material, mas aqui vou
abordar de modo breve apenas alguns
de seus aspectos. Vejamos:
159
Alcione

Nasceu no Maranhão em 1947, iniciou-se profissionalmente na música aos doze anos de idade
substituindo o cantor da Orquestra Jazz Guarani, que tinha seu pai como regente. Em 1967 mudou-se para
o Rio de Janeiro como forma de investir na carreira, tornando-se cantora de boate, principal ambiente para
cantoras profissionais à época. Além de cantar com voz potente e em diversos idiomas (apesar de falar apenas
português), tocava trompete (instrumento que escolheu inspirada em Louis Armstrong ainda na infância), o
que lhe dava certo ar de exotismo. Frequentou, na televisão, programas de grande audiência, como janelas
de oportunidades para mostrar seu talento para um público maior, tornando-se conhecida. A partir de 1975
conquista grande sucesso com a gravação de “Não Deixe o Samba Morrer” e “O Surdo”. Desde então, é
reconhecida como um dos grandes nomes da música popular brasileira e do samba.
Um aspecto importante e pouco destacado no trabalho de Alcione é a opção por retratar mulheres, seus
interesses, visões e necessidades, em sambas cantados a partir do ponto de vista feminino. Trata-se de uma
ação deliberada (influenciada por sua mãe), que tem grande repercussão entre seu público. Esse processo se
iniciou em 1978 com a gravação do samba de enorme sucesso “Pode Esperar”, de autoria dos compositores
Roberto Correra e Sylvio Son. Esse samba integrou o no LP Alerta Geral, cuja letra veremos a seguir:

Nada como um dia atrás do outro


Tenho essa virtude de esperar
Eu sou maneira, sou de trato, sou faceira
Mas sou flor que não se cheira
É melhor se prevenir pra não cair
Sou mulher que encara um desacato
Se eu não devolver no ato
Amanhã pode esperar
Estrutura tem meu coração
Pra suportar essa implosão
Que abalou meus alicerces de mulher
Mas a minha construção é forte
Sou madeira, sou de morte
Faça o vento que fizer

Nessa música, a mulher retratada está tomada pela dor, porém mantendo sua capacidade de falar em
seu próprio nome e por seus interesses, capaz de luta e de revide às agressões que sofre. A primeira leitura

Griôs da Diáspora Negra


160
pode identificar a canção como uma mensagem de amor mal atendido, uma canção romântica de acordo
com a tradição da canção popular brasileira. Importante destacar que, no Brasil do final do século XX e início
do século XXI, a sexualidade é lugar privilegiado de disputas e controles fundados no racismo patriarcal
heteronormativo e a cultura popular tem sido uma arena importante de disseminação de suas prescrições.
Para as mulheres negras, as disputas e prescrições em torno da sexualidade incluem também a objetificação
de seu corpo e experiência, a busca por retirá-la dos espaços públicos, para o desenvolvimento de atividades
domésticas em padrões de exploração destituídos de direitos e para a construção de sua identidade a partir
da subordinação e da inferiorização. Ou seja, a cultura popular tem sido um importante meio de apagamento
da trajetória histórica de protagonismo e/ou capacidade de escolhas das mulheres negras e das mulheres em
geral. Portanto, a escolha de Alcione, de trazer a mulher negra para o centro do discurso, como protagonista
da fala e das denúncias das agressões sofridas contraria a proposta de subordinação posta, recuperando sua
possibilidade de agenciamento e a capacidade de tomada de decisões amorosas.
Num segundo nível de análise, precisaremos extrapolar o âmbito das relações sexuais ou amorosas
e trazer para análise a condição da mulher negra como um todo, os diferentes desafios e violências que
enfrenta cotidianamente. Podemos acreditar que essa segunda camada inclui a vida cotidiana, as forças que
a influenciam ou determinam, reconhecendo aí a presença atuante do racismo patriarcal heteronormativo.
Vamos perceber tais desafios e barreiras na dor, na desestrutura provocada por essa força aniquiladora que
a atinge, forte o suficiente para abalar seus “alicerces de mulher”, como diz a canção. No entanto, a mulher
fragilizada reconhece que há chances de superação: “nada como um dia atrás do outro/ tenho essa virtude de
esperar”; reconhecendo principalmente seu poder, capacidade e propósito de reação: “Sou mulher que encara
um desacato/ Se eu não devolver no ato/ Amanhã pode esperar”. Poder e capacidade sublinhados no trecho:
“Mas a minha construção é forte/ Sou madeira, sou de morte/ Faça o vento que fizer”. Eis que se descortina
a dimensão Ialodê de Alcione, ao trazer a centralidade da mulher negra, como sujeito cujos sentimentos,
direitos e projetos são desrespeitados, agredidos e violados de modo intenso, profundo. Mas principalmente,
como alguém capaz de confrontação, inconformismo, de agir para que as coisas mudem e para destituir as
forças que buscam sua destruição. Alcione, ao entoar a canção em alto e bom som, fala de nós, para nós, o
que aprendeu com as mulheres negras que vieram antes dela, especialmente sua mãe, que recomendou a
escolha desse tipo de discurso e postura. E passa adiante a recomendação da atitude combativa, a partir do
reconhecimento de que mulher negra tem a capacidade e a responsabilidade e “encarar” os desacatos da vida.
O samba “Pode esperar” teve grande circulação, atrelada não apenas ao LP de sucesso, como também
por fazer parte da trilha sonora da novela Espelho Mágico, da TV Globo. Para além dele, diferentes canções
com a mesma perspectiva povoam a obra de Alcione, dando voz e protagonismo às mulheres negras, mesmo
diante de condições adversas, reafirmando sua capacidade de luta e resistência.
161
Elza Soares

Nasceu numa favela do Rio de Janeiro em 1937, experimentando desde o princípio os limites e desafios
impostos pelo racismo patriarcal heteronormativo: extrema pobreza, casamento forçado ainda muito jovem,
morte prematura de filhos e maridos/companheiros, discriminações a partir de sua aparência e história
familiar, da profissão e das escolhas sexuais. Entrou na vida artística através de um programa de calouros, em
que se inscreveu na tentativa de conseguir dinheiro para salvar a vida de seu filho, que estava morrendo em
consequência da fome e desassistência. No programa de rádio de Ary Barroso, sua figura raquítica vestindo
roupa e sapatos emprestados maiores que o seu tamanho, provocou reação do apresentador: “Minha filha, de
que planeta você veio?”. A resposta, rápida e certeira: “Do planeta fome!”.
Lutou muito para conquistar o reconhecimento ao seu talento incomum: gravou vários discos,
desenvolveu carreira fora do país, ganhou prêmios, foi a primeira mulher “puxadora”11 de samba-enredo
em desfile de Escola de Samba, tendo trabalhado também como compositora, dançarina, atriz e modelo. Sua
experiência de vida, especialmente os desafios e sofrimentos, tem sido narrada repetidamente em diferentes
veículos e traz sempre a história de uma mulher negra favelada, miserável, cuja sensualidade é reconhecida
e condenada publicamente, mãe de muitos filhos de pais ausentes, que enfrenta e supera tragédias. Os
comentários midiáticos que essa narrativa angaria costumam expressar surpresa, tanto pela intensidade do
sofrimento, pela capacidade de superação expressa, mas, principalmente, como forma de individualizar e
afirmar como incomum e invisível esse tipo de experiência. Ao contrário, sabemos que a vivência de múltiplas
tragédias, violências e violações pertence à trajetória comum de um amplo contingente de mulheres negras
no Brasil e em toda a diáspora africana. Incomum talvez seja o modo como essa experiência é relatada. Neste
caso, a voz potente, o corpo torneado, forte e hábil de bailarina, o talento incomparável que ocupa espaço
na indústria cultural através do samba e do canto. Mas o que está sendo narrado, em forma de performance
vigorosa, é uma perspectiva de mulher negra para além das vitimizações: é a que possui e utiliza das
ferramentas a seu alcance para contestação dos estereótipos e violências e para sua superação.
Ao interpretar as canções, Elza Soares retoma essas narrativas e perspectivas, como um segundo plano
nas letras, melodias e ritmos que entoa. Um exemplo contundente está em sua interpretação da canção de
Chico Buarque, “Meu Guri”. Composta em 1981, essa canção traz a história de jovem negro favelado que é
morto possivelmente pela polícia após a realização de furtos na cidade. A história é narrada através da voz de
sua mãe, uma mulher negra favelada, que assume contornos patéticos: incapaz de compreender a dimensão
dos atos que atravessam a vida de seu filho. Inconsciência que prossegue mesmo diante da morte desse: “O
guri no mato / Acho que está lindo/ Acho que está rindo / De papo pro ar”.
Na composição e na voz de Chico Buarque, a mulher negra representada na canção parece traduzir
o estereótipo racista da mulher negra parideira inconsequente, geradora e responsável pelas tragédias que
enfrenta e que é incapaz de compreender. Na interpretação de Elza Soares a narrativa assume um contorno
diferente. O que vemos e ouvimos é a voz da mulher negra atravessada por uma tragédia incomensurável,

11 Termo utilizado para descrever o/a intérprete do samba enredo das Escolas e Blocos de samba nos desfiles.
Griôs da Diáspora Negra
162
capaz de enxergar a dimensão dos desafios que implicou e implica a maternidade, a aposta orgulhosa no
sucesso do filho. Sua voz, entoada como um urro profundo, que exprime toda a dor que a tragédia traz
é, ao mesmo tempo, afinada, consciente, sob controle. Na performance, o corpo encurvado da cantora é
simultaneamente potente para narrar toda a dimensão da aposta que implicava a maternidade e a vida do
filho: “E na sua meninice / Ele um dia me disse / Que chegava lá / Olha aí, olha aí”.
A mulher negra que narra a história de vida e morte de seu filho o faz, antes de tudo, a partir da
perspectiva de alguém que lutou por ele e manteve o vínculo de afeto até o fim. Apesar de estar diante da
derrota de seu projeto de vida, não é possível afirmar que, para essa mulher, se trata do fim da luta, pois
voz e corpo, sua entonação e movimentos exprimem a potência da mulher derrotada. Isso, paradoxalmente
e afirmativamente, expõe capacidade de persistência e de luta, o que pode produzir superação. Não é à toa
que, ao cantar, Elza Soares extrai de sua voz todo o virtuosismo de que é capaz. Mostra que é possível ir além.
Reafirma a força, mesmo diante da queda profunda que forças contrárias são capazes de produzir.

Leci Brandão

A cantora, compositora, ativista e parlamentar Leci Brandão nasceu no Rio de Janeiro em 1944, filha
única de família pobre, vivendo seus primeiros anos numa casa de cômodos (cortiço) no Centro do Rio
de Janeiro. Aos treze anos, a família passa a residir em escolas, em decorrência do emprego de sua mãe
como merendeira. Trabalhou como operária, iniciando-se na carreira de compositora a partir da televisão,
participando e vencendo programa de calouros. Desenvolve seu talento participando de festivais, retratando
os dilemas cotidianos de comunidades e mulheres pobres.
Seu trabalho busca retratar a história, o cotidiano, a cultura e as lutas negras. Em seu primeiro disco
lançado em 1975, Antes Que Eu Volte a Ser Nada, que traz seu primeiro grande sucesso (o samba de mesmo
nome), já prenuncia seu engajamento a partir dos elementos iconográficos: na fotografia de capa (do fotógrafo
Clóvis Scliar), importantes símbolos da identidade e das lutas negras são expostos. Na capa, Leci Brandão
aparece em primeiro plano com ombros desnudos e rosto maquiado reforçando os traços afro-brasileiros.
Ao fundo da imagem há um quintal e uma casa onde se pode vislumbrar vultos humanos – enxergo aqui
referência direta à família e à comunidade negra, tantas vezes negadas nas narrativas midiáticas sobre nós.
Seu braço direito está erguido, mas não completamente, talvez numa referência incompleta (é tempo de
ditadura militar) ao gesto popularizado pelo grupo político norte-americano Panteras Negras: o punho
levantado como afirmativa de luta contra o racismo. O dorso de sua mão direita está apoiado na cabeça, na
testa, no pulso se destaca um fio de contas. Talvez haja aí um diálogo entre matrizes da cultura negra e da
luta antirracista, onde o nacionalismo e o poder negros expressos pelos Panteras Negras (o cabelo black power,
o braço direito estendido) teriam, na versão brasileira, sua base no Ori, a cabeça definida segundo preceitos
rituais, onde a iniciação tem lugar. A imagem recorre também à ideia de natureza, de naturalidade: os ombros
estão desnudos, o cabelo natural, que atende à nova estética black, ao mesmo tempo em que o mato, o quintal,
163
remetem a uma brasilidade africana e ao terreiro, território do ritual e do samba. As imagens dialogam
diretamente com a experiência e os símbolos da resistência negra, trazendo a mulher negra no centro, em
primeiro plano.
A busca de representar os interesses negros nas diferentes disputas políticas é um traço marcante da
trajetória de Leci Brandão, com grande expressão em suas composições e performances. Um dos exemplos
mais importantes é o seu samba “Zé do Caroço”, composto em 1978 e lançado somente em 1985. Dedicado
a retratar a forte mobilização política dos moradores das favelas da época, na gravação de 1985, o samba
se inicia com referências ao funk afro-americano através de um primeiro plano percussivo tocado com
instrumentos elétricos, especialmente o baixo e o piano. Essa percussão elétrica e suingada vai dar lugar ao
instrumental e a forma de percussão característica do samba da época, com tamborim, pandeiro e cavaquinho.
A forma como o samba é cantado e tocado permite também um tipo de atualização das formas antigas de
música africana e afro-brasileira, das formas coletivas de canto de chamada e de resposta, mas que em “Zé
do Caroço”, a chamada traz voz límpida e forte de Leci Brandão, demandando a resposta coletiva convocada
pela percussão intensa e sincopada do samba, num chamado veemente à dança. É o corpo inteiro que deve
responder, o corpo negro, individual e coletivo, em sua plenitude.
Reconhecida como produtora e guardiã da tradição negra e favelada do samba, como representante e
defensora legítima dos interesses da comunidade negra nas disputas desenvolvidas no interior da indústria
cultural, através de Zé do Caroço, Leci Brandão afirma também a abertura para a modernidade como elemento
importante da tradição que se quer preservar (a percussão eletrificada explicita isto). Ao mesmo tempo em
que traz a perspectiva diaspórica, no diálogo explícito entre formas culturais e políticas negras ao norte e ao
sul das Américas, do funk, do black power, com o fio de contas, o Ori e o fundo de quintal; dos instrumentos
elétricos e a “cozinha” percussiva do samba.
Ao ocupar espaços na indústria cultural, desde o primeiro momento, como compositora de samba, Leci
Brandão permite afirmar também a ocupação de espaços vedados a mulher negra. Verbaliza e representa
diferentes causas em nome da justiça e da igualdade, seja para a população negra, para as mulheres, para
a população LGBT, indígenas, quilombolas, nordestinos, trabalhadoras e muitos outros. A se contrapor às
injustiças através do samba com grande sucesso, expressa a capacidade das mulheres negras em transcender
limites dentro dos parâmetros da tradição, extraindo dela possiblidades de ir além dos privilégios masculinos
na cultura e na política. O que afirma também a necessidade e o sentido do engajamento nas disputas contra
os poderes patriarcais onde quer que se estabeleçam.

Jovelina Pérola Negra

Nasceu no Rio de Janeiro em 1944, vivendo grande parte de sua vida na Baixada Fluminense. Faleceu
no Rio de Janeiro em 2 de novembro de 1998. Trabalhou como doméstica, lavadeira e vendedora de linguiça.
Integrou a Escola de Samba Império Serrano, onde desfilou na Ala das Baianas e foi uma das artistas que
se apresentavam no Botequim do Império. Iniciou a carreira cantando em clubes, agremiações de samba

Griôs da Diáspora Negra


164
e pagodes no subúrbio do Rio de Janeiro e gravou seu primeiro disco em 1980, em um projeto coletivo
denominado Raça Brasileira. A partir daí, seu talento como sambista e partideira, já notado nas rodas de
samba, passa a ser conhecido do público mais amplo. Para quem não sabe, partido-alto é uma forma especial
de samba só alcançada e desenvolvida por aqueles considerados como elite, por seu talento superior e
antiguidade no mundo do samba, homens na grande maioria. O talento, a inteligência, a rapidez são postos
à prova no improviso de versos, evidenciando a excepcionalidade de seus autores. Foi a partir dessa elite de
sambistas que Jovelina Pérola Negra se destacou e seus improvisos se tornaram conhecidos entre sambistas
e, posteriormente, pelo grande público.
Ao conquistar sua notoriedade como integrante do grupo seleto do partido-alto, capaz de contrariar as
regras da tradição que reservava esse lugar para poucos homens, ampliando assim as possibilidades para as
mulheres negras, Jovelina ingressa na indústria cultural de forma contundente. Isso pode ser visto no disco
coletivo de estreia, Raça Brasileira, onde duela com o também estreante Zeca Pagodinho, num samba versado
que traduz uma disputa de gênero. Trata-se do grande sucesso Bagaço da Laranja, onde os versos de improviso
traduzem uma disputa entre um homem e uma mulher, onde o homem busca afirmar o lugar subordinado
dessa: “Me disseram que no céu a mulher do anjo é anja / Eu já disse à você / Sobrou pra mim o bagaço da
laranja”; e desqualificar a autodeterminação com que a mulher se coloca. Já a mulher, ao recuperar o poder de
voz e improviso, contrapõe expressando seu poderio financeiro e capacidade de agenciamento: “Não lhe dou
mais um tostão / Vê se você se arranja / Eu falei pra você / Sobrou pra mim o bagaço da laranja”.
Já em seu primeiro disco individual, Jovelina se lança na mesma linha contundente. Já na capa está uma
grande fotografia colorida do seu rosto, aparentemente sem qualquer retoque, onde estão bastante visíveis a
pele bem escura e a cabeça protegida por um lenço branco, que destacam o rosto registrado em diagonal, com
o olhar distante. Um leve sorriso encerra o retrato, de modo a afirmar a sua não excepcionalidade. De fato, a
imagem remete às mulheres negras comuns, aquelas que se pode encontrar nas ruas do subúrbio, a caminho
de seus muitos afazeres. O que difere essa imagem das demais está no seu contexto: a capa de um disco e essa
expõe a centralidade, o protagonismo da mulher negra. Junto, está o fato de ter, sobre a fotografia, palavras
escritas na cor azul para o nome “Jovelina” e, mais abaixo, em branco e em destaque, o título do disco, “Pérola
Negra”, ou seja, ação afirmativa, explicitação de pertencimento e orgulho.
A fotografia, a imagem de mulher negra, traduz duas perspectivas diferentes − e opostas. A primeira
refere-se à vigência, nas sociedades racistas, de uma esfera de representação do negro, mulheres e homens
de formas diferentes, que os reitera na posição do “outro”, de subordinação e inferioridade. Essa posição
implica, sobretudo, o recurso à produção de estereótipos que aprisionem a negritude que representam numa
categoria de alteridade inferiorizada: a mulher negra simples, de pele escura e pano na cabeça, representaria
de forma radical esse ser subordinado, inferior, menor. A segunda esfera de representação se dá no momento
em que a imagem de Jovelina confronta radicalmente o estereótipo: a centralidade do rosto familiar e
próximo de mulher negra traz afirmações de valor, de beleza, de importância. É a protagonista da obra.
É o centro do discurso. Expõe-se aí a capacidade de contestação às regras do jogo do racismo patriarcal
heteronormativo, contestação que se aprofunda em sua trajetória de partideira, sambista, compositora ciente
165
de suas potencialidades expressas no bordão que sempre a acompanhou e com que iniciava seu canto e
improvisos: “deixa comigo!”.

Mart’nália

Nasceu no Rio de Janeiro em 1965, filha de pais ligados à música e ao samba: Martinho da Vila, artista
famoso por seus sambas, escritos e atuação política, e a cantora Anália Mendonça. Mart’nália esteve ligada
ao samba desde sempre. Sua carreira tem início aos dezesseis anos, quando passou a integrar o grupo que
acompanhava seu pai, atuando na percussão e nos vocais. É cantora, compositora e percussionista.
Sua figura de mulher negra percussionista, sambista e artista, ainda que esteja de acordo com o que a
tradição do samba produz, a expõe a confrontos e disputas em torno de diferentes temas, seja em relação aos
significados do samba e de suas possibilidades de modernização; seja em relação ao padrão de feminilidade
esperado dentro e fora do mundo do samba. Protagonizou uma interessante divergência com os músicos
atuantes nos bares da Lapa do Rio de Janeiro em 2004, espaço apropriado pela classe média branca, que passa
a recuperar formas de samba antigas e tocá-los em diferentes bares e casa de show no bairro, para um público
predominantemente branco. Na ocasião, houve uma discordância acerca das formas legítimas de se tocar a
percussão de samba naquele ambiente, situação assinalada pelo jornalista e crítico musical Arthur Dapieve,
numa crônica no jornal O Globo12. Segundo esse autor, os músicos locais, “tradicionalistas” (ou “talibambas”,
como os denominou outro jornalista) teriam pedido a Mart’nália para tocar mais baixo seu pandeiro numa
roda de samba na Lapa.
A divergência entre Mart’nália e os tais “talibambas” (sic) da Lapa adquire importância quando
consideramos que seus protagonistas eram, de um lado, uma mulher negra nascida de uma família diretamente
vinculada ao samba autêntico e de qualidade, e, de outro lado, jovens de classe média, brancos em sua
maioria, integrantes de um movimento de “revitalização” do samba, também identificado pela indústria
cultural como “samba de raiz”. Note-se que disputas em relação a como definir o “verdadeiro” samba, ou o
samba “autêntico” ou “de raiz” fazem parte da trajetória dessa forma cultural e musical desde sua inserção na
indústria cultural, marcadas por diferentes interesses13.
O ineditismo da disputa envolvendo Mart’nália e os músicos da Lapa se refere a algo que não acontece
– ou não acontecia - no território do samba propriamente dito. Ou seja, o que está em jogo é principalmente
o privilégio de tocar (e de definir formas de tocar) a percussão do samba - privilégio que assentava-se, numa
espécie de consenso social, nas mãos de negros, principalmente dos homens negros, uma vez que remetem às

12 DAPIEVE, Arthur. A resistência do samba: todo clichê imobiliza o pensamento. O Globo, 24 fev. 2006.
13 Sobre esse exemplo, ver as disputas entre o grupo baiano e o do Estácio, onde se destacou Ismael Silva, nas primeiras décadas do
século XX; entre esses últimos e os sambistas brancos da zona norte, especialmente entre Wilson Batista e Noel Rosa; e também entre os
tradicionalistas do final do século XX e a juventude paulista que produziu o samba chamado pejorativamente de “pagode mauricinho”, entre
outros. Note-se que esses debates se deram fundamentalmente entre homens negros ou entre estes e homens brancos.
Griôs da Diáspora Negra
166
práticas religiosas e às funções masculinas nas religiões afro-brasileiras e que foram perpetuadas no samba.
Na situação apontada, a forma de percussão de Mart’nália foi vista como transgressora, o que indica que
sua forma rompia com algum cânone (local) da percussão do samba, em que as formas menos ruidosas
seriam privilegiadas, como acontecia nos tempos da bossa nova14. Interessante destacar que a participação de
uma mulher negra na disputa acerca de formas percussivas contra um grupo de homens brancos expõe não
apenas o grau de apropriação da cultura negra pelos brancos, mas também, e principalmente, a conquista
desse espaço por mulheres negras, fortalecidas o suficiente para disputar e angariar apoios e legitimidade
nessa contenda.
Um outro aspecto importante da carreira e notoriedade de Mart’nália refere-se à sexualidade. Não se
trata de afirmar aqui que a presença de mulheres lésbicas e bissexuais seja algo novo no mundo do samba.
Ao contrário, a forma como a artista expressa abertamente sua sexualidade, através das músicas, das formas
de dança e atitudes no palco e na relação com seu público, carreia a mensagem pública acerca da pertinência
da homossexualidade nesse ambiente em condição de protagonismo e centralidade explícitos. Seu público,
especialmente as mulheres nas plateias, respondem de forma (ruidosamente) assertiva.

Ialodê, Iyalode: resistência e luta no passado e no presente

Busquei apresentar até aqui a Ialodê como metáfora e emblema da liderança feminina negra; como um
modo de agenciamento e de superação das condições adversas que enfrentamos. Essas condições adversas
envolvem iniciativas de deslegitimação dos aportes negros e das mulheres negras nas sociedades sob o
racismo patriarcal heteronormativo. Desse modo, o recurso à Ialodê permite a valorização de elementos da
cultura afro-brasileira, buscando atualizar sua utilidade, demonstrando sua persistência entre nós. É, ainda,
um modo de recolocar a contribuição das mulheres negras em patamares adequados a sua visibilização
e afirmação como protagonistas na sociedade brasileira. Recorrer à figura da Ialodê significa dirigir um
olhar específico para as mulheres negras – as ações, os contextos diferenciados, as trajetórias individuais e
coletivas – e, entre essas, para aquelas capazes de romper a “ordem de silêncio” e falar de si e de nós. E esse
olhar está imbuído de uma afirmação de anterioridade de seu engajamento nas lutas por transformação.

Visitar a Ialodê e seus feitos através da cultura popular é um modo de reconhecer também a importância
que a música teve e ainda tem como um dos principais instrumentos de propagação das tradições afro-
brasileiras; como forma de expressão da oralidade e da centralidade do corpo; como pedagogia, proposta
e processo de enraizamento e produção de identidade, na geração e na manutenção de comunidades, de

14 A bossa nova pode ser vista, até mesmo, como uma forma de apropriação da música negra, do samba, pelos brancos da elite
financeira, mantendo a exclusão dos negros de seu ambiente e modos de fazer e propagar. Ela seria, então, menos jazz − forma negra
aceitável à elite branca, porque ancorada na indústria cultural do país hegemônica, os Estados Unidos –, mas um samba de brancos, para
consumo exclusivo desse grupo.
167
conexões entre indivíduos e grupos dispersos nos processos da diáspora. E mais, é uma forma de destacar
a importância que as mulheres negras tiveram e têm no ambiente musical, no samba e na indústria cultural
como um todo.
A música, como produto cultural, tem veiculado as mensagens necessárias nos diferentes momentos
da história negra e das mulheres negras, acerca das ferramentas de resistência e de liberdade; propagando
mensagens de oposição a paradigmas e estereótipos que buscam nos inferiorizar e aniquilar. A música negra,
ao mesmo tempo em que remete às formas tradicionais africanas, dialoga profundamente com a geografia
local, buscando forma de enraizamento para povos desterritorializados15.
Como vimos, é na música popular que encontramos a maior participação pública das mulheres
negras e não apenas no Brasil. Reconhecendo a importância que a música tem na veiculação de discursos
e ferramentas de liberdade, pode-se afirmar, então, que a música tem sido o espaço privilegiado de ação
para as Ialodês. E essa função (e responsabilidade) tem sido exercida por mulheres negras contemporâneas,
a exemplo das sambistas apresentadas neste texto, da mesma forma como nossas ancestrais o fizeram.
Ou seja, as mulheres negras têm ocupado espaços na música popular e no samba, de modo a fazer dessa
ocupação uma alavanca de propagação de discursos e projetos, que têm resultado em muito mais do que o
simples entretenimento. A partir daí, podemos reconhecer que a ação política das mulheres negras é ampla e
assume formas diversificadas, para romper restrições e contingenciamentos, porém engajadas no propósito
de oposição aos estereótipos e preconceitos. Principalmente, tais formas de expressão e representação têm
afirmado a potência, as capacidades e responsabilidades das mulheres negras como sujeitos sociais e políticos.
E cujas iniciativas de longo alcance têm sido capazes de engajamento nas lutas por dignidade e liberdade até
os dias de hoje.
Desse ponto de vista, poderemos considerar também a possibilidade de encontrarmos esse mesmo
padrão de engajamento em outras formas de ocupação do espaço público (ou mesmo do espaço privado).
Escravas, libertas, quilombolas, trabalhadoras domésticas, mulatas, vendedoras ambulantes, prostitutas,
professoras, capoeiras, religiosas nas diferentes matrizes e tradições, escritoras, donas de casa, bordadeiras,
escritoras, e muitas mais. Em cada uma e em todas as formas de identidade e/ou ocupação do espaço público
pelas mulheres negra, é possível e desejável buscarmos os modos como essa ocupação é feita e buscarmos nela
a presença da Ialodê. Como forma de honrar as lutas travadas por nossas antepassadas que nos trouxeram
até aqui. Como forma de traduzir, de modo mais profundo e preciso, o que somos. Como forma de deixar
de herança a potência e o orgulho do que nos constitui como sujeitos capazes de delinear projetos de futuro
a que poderemos lançar mão a todo momento que estiver em jogo nossos desejos de seguir e nos levar mais
adiante.

15 GILROY, Paul. Atlântico Negro – Modernidade e Dupla Consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: UCAM, 2001;
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações culturais. Liv Sovik (org.). Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília, Unesco, 2003.
Griôs da Diáspora Negra
168
169
O feminismo negro e as lutas por igualdade global1
Angela Y. Davis2

É uma grande honra participar do Latinidades 2014. Quando recebi o convite para participar deste
festival, eu soube imediatamente que seria impossível responder com uma negativa. Quem poderia dizer
não a um convite para visitar o Brasil, especialmente para participar de um festival celebrando as mulheres
de ascendência africana nas Américas no ano do centenário do nascimento de Carolina Maria de Jesus e
honrar essas figuras fenomenais como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, e, claro, Luiza Bairros3, que agora
é ministra da Promoção da Igualdade Racial?
Eu visitei o Brasil pela primeira vez nos anos 1990, quando Dulce Maria Pereira me convidou para
participar de um seminário de mulheres afro-brasileiras em São Luís, Maranhão, em que a Fundação Palmares
estava tratando da titulação de terras para os descendentes de quilombolas. Eu me lembro como me senti
revigorada pela energia das mulheres negras brasileiras, e hoje me sinto revigorada por ter podido encontrar
um número significativo de mulheres neste festival que estavam presentes naquela reunião há vinte anos e
ainda estão envolvidas na luta pela igualdade. Eu conheci Luiza Bairros em São Luís e tive a sorte de seguir
sua carreira política deslumbrante ao longo das duas últimas décadas. Ela nunca se esquece e nunca desiste!
Eu também tive a honra de falar sobre feminismo negro em três ocasiões na Bahia − em Salvador,
Cachoeira e Cruz das Almas. Ângela Figueiredo, que me convidou para a Bahia, está presente neste festival.
Obrigada, Ângela. Quando eu soube que Raquel de Souza seria minha tradutora, alegrei-me não somente
porque ela é uma excelente tradutora, mas também por causa de sua pesquisa muito importante sobre as
mulheres brasileiras de ascendência africana.
Agradeço, também, às intérpretes de Língua de Sinais, que têm um trabalho desafiador para executar.
Obrigada por tornar este evento acessível às pessoas surdas.
O Brasil é o meu lugar favorito no planeta, sobretudo pelo ativismo sustentado por mulheres afro-
brasileiras. Obrigada por manter o legado do feminismo negro vivo.
Finalmente, eu gostaria de agradecer a Patricia Hill Collins. Temos falado e estado juntas em muitos
eventos e conferências, mas esta é a primeira vez em que fomos capazes de compartilhar tanto tempo. É

1 Este texto é uma versão revisada da conferência proferida no Festival Latinidades em de 2014. Tradução de Ana Flávia Magalhães
Pinto e Gilza Mercês.
2 Ativista, filósofa, professora emérita da Universidade da Califórnia – Santa Cruz, e escritora dedicada à luta contra o racismo e
outras formas de opressão nos EUA e em perspectiva mundial. Integrou o Partido dos Panteras Negras e o Partido Comunista dos EUA.
Como feminista negra, tem se dedicado ao debate sobre liberdade, abolição das prisões e crítica ao capitalismo. Autora de vários livros, entre
os quais estão disponíveis em português: A democracia da abolição: para além do império, das prisões e da tortura (2009) e Mulheres, raça
e classe (2016).
3 Nota de Tradução (NT): Luiza Bairros, referência do Movimento Negro e do Movimento de Mulheres Negras, faleceu em 12 de
julho de 2016.
Griôs da Diáspora Negra
170
significativo, creio que tivemos de vir ao Brasil para realmente nos conectar. Obrigada, Patricia Hill Collins,
pelo Black Feminist Thought e por todas as suas obras − e agradeço a sua intervenção perspicaz e inspiradora
no festival ontem à noite.
Pediram-me para falar sobre feminismo negro e luta pela igualdade global. Este é um tema perfeito,
porque as mulheres negras de toda parte há muito perceberam que sua liberdade está intrinsecamente ligada
à liberdade de homens e mulheres que sofrem opressão racial, econômica, sexual e de gênero em todo o
planeta. A grande marca do feminismo negro sempre foi a sua capacidade de acolher a diferença e descobrir
conexões entre as questões que podem parecer, à primeira vista, bastante distintas. Este é o significado, penso
eu, da categoria interseccionalidade, que Patricia Hill Collins amplamente discutiu ontem à noite.
Portanto, eu quero enfatizar os caminhos por meio dos quais os feminismos negros (penso ser mais
preciso falar no plural) e os feminismos das mulheres de cor incorporaram uma consciência profunda sobre
capitalismo global e guerra, estruturas transnacionais de supremacia branca e opressão de gênero, bem como
acerca das repercussões contínuas do heteropatriarcado e do colonialismo em todo o mundo. O feminismo
negro demanda por justiça racial em todos os lugares com a mesma determinação que exige a igualdade de
gênero. No processo de reivindicar liberdade sexual – a faculdade de escolher os/as próprios/as parceiros/as
íntimos/as –, nós também alertamos acerca da assimilação em estruturas heteronormativas. De tal sorte, ao
passo que evocamos os direitos civis de LGBTs – casamento igualitário, por exemplo –, nós simultaneamente
insistimos nas críticas ao casamento como uma instituição burguesa capitalista, cada vez mais legitimada por
ideologias neoliberais individualistas, baseadas em hierarquias de classe, raça e gênero. O feminismo negro
radical nos encoraja a desafiar essas ideologias neoliberais e continua a explorar alternativas – alternativas
socialistas – ao capitalismo.
Antes de apresentar algumas ideias sobre feminismo negro e lutas globais por igualdade, sinto-me
obrigada a dizer que, como uma pessoa que vive nos Estados Unidos, sempre tento estar especialmente
consciente do impulso colonizador que muitas vezes se afirma no nosso pensamento, mesmo quando
presumimos estar expressando solidariedade em formas não hierárquicas. Isso geralmente acontece quando
presumimos que nós – mulheres de cor feministas estadunidenses – desenvolvemos teorias e práticas que
deveriam viajar para lugares do mundo sobre os quais temos pouco conhecimento. Esse impulso colonizador
também se afirma quando presumimos que as análises de questões que são peculiares a contextos específicos
dos EUA são aplicáveis a todos os lugares, independentemente de condições sociais, econômicas e culturais
particulares. Essa tendência ideológica em direção ao domínio pode ser percebida no fato de que muitas
vezes acreditamos que, por sermos dos EUA, provavelmente, não podemos aprender algo importante com
as feministas do Hemisfério Sul. Assim, frequentemente, nós falhamos em reconhecer as lições cruciais a
serem aprendidas dos diálogos Sul-Sul, entre as feministas que não são orientadas pelo Hemisfério Norte. Há
também muitas outras maneiras que nós inconscientemente expomos essa tendência colonizadora.
Eu introduzi minha fala com essas observações porque estou absolutamente certa de que às vezes eu
sou uma transmissora involuntária do imperialismo dos EUA, embora faça o meu melhor para constantemente
questionar as minhas próprias abordagens, tal como questiono o impacto do racismo, do capitalismo e do
171
heteropatriarcado nos nossos mundos. Parece-me que essa é também uma marca do feminismo negro: a
insistência na autocrítica, mesmo quando nós criticamos e tentamos transformar radicalmente as condições econômicas,
políticas e sociais ao nosso redor.
Podemos nem sempre possuir as ferramentas que nos permitem exercer essa crítica. Ademais,
tendências ideológicas poderosas muito frequentemente nos impedem de ver com nitidez nossos mundos
e nossas histórias. As ideologias muitas vezes nos compelem a ver certas coisas com alguma clareza, nós
pensamos, nós presumimos, mas elas nos levam a ignorar outras coisas, que podem ser mais importantes
do que aquelas que pensamos ter identificado. Todavia, uma vez que as autocríticas ficam disponíveis, não
podemos varrê-las para debaixo do tapete − mesmo que isso signifique que tenhamos de repensar as nossas
histórias, refazer a nós mesmas e remodelar nosso entendimento do que significa lutar para ser livre.
Eu apresento, então, três exemplos históricos que enfatizam como é crucial repensar, refazer e remodelar
nossas trajetórias em direção à liberdade. O primeiro tem a ver com a raça e o fracasso em reconhecer o
significado da Revolução Haitiana como a primeira democracia não racial no mundo. O segundo aborda
a “genderização” [gendering] da raça e a importância das análises interseccionais a esse respeito. O terceiro
exemplo aborda a necessidade constante de rever e expandir nossa própria noção do que significa ser livre.
É sempre dado como certo que os Estados Unidos da América são a democracia mais antiga do mundo
e que a França é a segunda. Porém, como sabemos, tanto a democracia americana quanto a francesa não
admitiram qualquer contradição entre o apoio dado à escravidão e ao tráfico escravista, por um lado, e as suas
proclamações de igualdade humana, por outro. A Revolução do Haiti, liderada por Toussaint L’Ouverture,
deu origem à primeira democracia não racial do mundo4. Em 1805, a constituição haitiana concebida por
Jacques de Dessalines, designava todos os cidadãos, independentemente da sua origem “racial”, como negros.
“Dessa maneira”, de acordo com o cientista político Siba Grovogui, “‘negro’ se tornou um símbolo para em
torno do qual se organizar a solidariedade nacional e a vida pública. Como resultado “negro, não era uma
categoria de exclusão [...] Por esse gesto constitucional, a maioria negra acolheu todos os outros na identidade
da maioria”5.
Contudo, desde o início, o sujeito dos direitos humanos tem sido clandestinamente disputado como
branco. Grovogui pergunta por que não podemos imaginar a humanidade exemplificada por aqueles que
foram mais reprimidos, a exemplo daqueles que tiveram de se fiar em sua própria luta coletiva por liberdade
para definir o seu sentido de humanidade? Por que é tão difícil vislumbrar a humanidade negra como
representante de toda a humanidade, que pode aspirar a um universal?

4 NT: Cf. JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo Edi-
torial, 2000. Em 1938, Cyril Lionel Robert James, historiador, jornalista e teórico marxista de vertente trotskista, natural Trinidad e Tobago,
publicou esta obra que permanece ainda hoje como uma referência nos estudos sobre os conflitos e os sujeitos envolvidos no processo de
fim da escravidão e da independência de São Domingos/Haiti do domínio francês.
5 GROVOGUI, Siba. To the Orphaned, Disposesssed, and Illegitimate Children: Human Rights Beyond Republican and Liberal
Traditions. Indiana Journal of Global Legal Studies, v. 18, n. 1, inverno de 2011, p. 58.
Griôs da Diáspora Negra
172
A constituição do Haiti proclamou todos os cidadãos como negros. Se nossos sonhos de liberdade,
para usar a maravilhosa frase de Robin Kelley6, podem ser enriquecidos por essa proposição, o que
acontece se imaginarmos as mulheres negras como a medida da humanidade? As hierarquias raciais foram
temporariamente derrubadas pela Revolução do Haiti, estabelecendo uma meta pela qual nós continuamos a
aspirar ainda hoje. Se hierarquias raciais precisam ser superadas, hierarquias de gênero também. Zora Neale
Hurston nos lembrou que a mulher negra é a mula do mundo. E se as mulas do mundo se tornassem o ponto
alto da humanidade? Rainha Nanny, a heroína nacional da Jamaica, provou que isso era possível. Carolina
Maria de Jesus demonstrou que, pela pura força de sua vontade, poderia tornar-se uma escritora, a despeito
dos obstáculos do racismo, da violência e da pobreza extrema.
Sabemos que mulheres lutaram na Revolução do Haiti, mas os poucos nomes específicos que
foram registrados − como o de Jeanne Marie Lamartiniere − são das mulheres casadas ou que mantinham
relacionamento com militares proeminentes. Temos esquecido do papel das mulheres haitianas na formação
de histórias democráticas, bem como do papel fundamental desempenhado pelo Haiti ao demonstrar que
outras democracias eram possíveis. Em vez de o Haiti ser reconhecido como a primeira democracia não
racial do mundo, sua proeminência reside no fato de ser uma das áreas mais empobrecidas do planeta. No
filme Bamako, a escritora e ativista do Mali Aminata Traoré contesta a noção de que o principal problema
da África é a sua pobreza, invocando o papel do Banco Mundial no que ela chama de um processo contínuo
de pauperização. Da mesma forma, a pobreza do Haiti não deve ser considerada como um simples “fato”,
pois tem sido produzida historicamente. O fracasso do Haiti em se desenvolver é em grande parte devido
à insistência da França, em 1825, para que os proprietários de escravos fossem indenizados no valor de 150
milhões de francos de ouro (o equivalente a 21 bilhões de dólares hoje). O Haiti não terminou de pagar essa
dívida até 1947. Esse foi o preço exigido pela liberdade negra. Se o Haiti é frequentemente apontado como o
país mais pobre do mundo, deve-se agradecer a França por isso.
Permanecendo com o exemplo do Haiti em mente, podemos perguntar: O que muda na nossa visão de
futuro quando reconhecemos que a democracia não tem de ser branca e que as mulheres negras não têm de
“se tornarem brancas” para ascender no mundo? O que acontece quando definimos democracia de modo que
não seja racializada como branca e “genderizada” como masculina? Ou, em outras palavras, o que implicaria
uma concepção feminista negra de futuros democráticos?
Essa é uma questão que certamente deve ressoar no Brasil, onde mais da metade da população é
negra, mas apenas 3 dos 81 senadores são negros7. Não tenho a pretensão de falar com autoridade sobre o
Brasil porque não é meu campo de estudo, mas posso dizer com segurança que não é preciso ser especialista
para perceber que algo está terrivelmente errado em um país que é reconhecido como de maioria negra, mas
cujo rosto público continua a ser branco. A cultura brasileira é determinada por suas raízes negras e seus

6 KELLEY, Robin D. G. Freedom Dreams: The Black Radical Imagination. Boston: Beacon Press, 2003.
7 NT: Dados da 54ª legislatura, teve início em 1º de fevereiro de 2011 e se encerrou em 31 de janeiro de 2015. Na eleição de 2014,
dirigida à formação da 55ª legislatura, dos 27 novos senadores, cinco se declararam pardos, nenhum se declarou preto, segundo dados do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
173
trabalhadores culturais negros – samba, Clara Nunes, Clementina de Jesus, Margareth Menezes –, mas a
preferência é para que essa cultura seja representada por brasileiros brancos. Durante sua primeira visita
ao Brasil, o então presidente George W. Bush perguntou ao presidente Fernando Henrique Cardoso: “Vocês
também tem negros?”. De acordo com o relato no jornal Der Spiegel, Condolezza Rice, “notando o quão
atônito estava o brasileiro, salvou o dia dizendo a Bush: ‘Sr. Presidente, o Brasil provavelmente tem mais
negros do que os EUA. Alguns dizem que é o país com mais negros fora da África’. Mais tarde, o presidente
brasileiro Cardoso disse que, sobre a América Latina, Bush ainda estava em sua ‘fase de aprendizagem’”8.
Se ele fizesse essa pergunta hoje, seria dito a ele que, finalmente, foi reconhecido que os negros
constituem a maioria numérica no Brasil. Podemos especular que um número crescente de pessoas incorporou
“negro” como uma identidade política (de um modo que lembra a formulação de identidade negra e cidadania
revolucionária no Haiti). Assim, se a luta pela liberdade dos negros tem fundamentalmente moldado as
histórias do Caribe e das Américas Central, do Sul e do Norte, a liberdade negra também representa o futuro
das Américas. A população negra representa o futuro do Brasil e, como indicado por todas as perspicazes e
inspiradoras apresentações deste Festival, as mulheres negras estão em ascensão!
Passando ao segundo exemplo, quando reconhecemos que nossas formas herdadas de entender a
democracia e a liberdade são não apenas completamente impostas e infectadas pela supremacia branca,
mas também pelo sexismo e pelos modos machistas de compreensão, nós não podemos fingir que antigas
concepções de liberdade ainda funcionam. Não podemos fingir que a liberdade para as pessoas negras de

8 Gibt es Schwarze in Brasilien?. Der Spiegel, 19 mai. 2002. Disponível em: http://www.spiegel.de/panorama/bushs-allgemeinbil-
dung-gibt-es-schwarze-in-brasilien-a-196865.html. Acesso em: dez. 2015.

Griôs da Diáspora Negra


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todos os gêneros é a “liberdade para o homem negro”. De tal sorte, não podemos concordar com estratégias
que supõem que nossa tarefa fundamental é apoiar os homens negros, presumindo que, como consequência
natural, tão logo os homens estejam livres, as mulheres e pessoas de outros gêneros serão beneficiadas.
Como Patricia Hill Collins apontou ontem à noite em sua discussão sobre as contribuições de Kimberle
Crenshaw para o feminismo negro dos EUA, a iniciativa de Obama My Brothers’ Keeper está sendo contestada
por feministas negras precisamente por adotar essas premissas gastas9. Nós não estamos contestando que é
importante observar as condições que conspiram para criminalizar, encarcerar e matar os homens negros.
Mas também sabemos que essas mesmas condições afetam as mulheres, tanto de forma semelhante quanto
diferente. Se excluirmos as mulheres de nossas análises do racismo, privamo-nos da imagem completa.
Além disso, o racismo é “genderizado” de maneiras que são mais complexas do que geralmente
reconhecemos. Sabemos que nem todos os seres humanos correspondem às ideologias de bipolaridade de
gênero. Assim, nós usamos o termo “transgênero” como uma forma de reconhecer a inadequação das nossas
ideologias dominantes a respeito. É evidente que, mesmo havendo um número crescente de pessoas que
se identificam como mulheres trans e homens trans, outras resistem inteiramente à rotulação de gênero ou
se identificam dentro da não conformidade de gênero. Para uma discussão mais completa dessas questões,
especialmente em relação à atual crise prisional, ver o livro de Stanlely e Smith, Captive Genders: Trans
Embodiment and the Prison Industrial Complex10.
Não podemos focar nos homens, na exclusão dos homens, e assumir que estamos nos movendo em
direção à igualdade global. A feminista negra estadunidense Audre Lorde certamente reconheceu isso
quando, em uma conversa de 1984 com James Baldwin, evocou os circuitos da violência que vai das ruas
às relações íntimas. Ela destacou que “os policiais estão matando os homens e os homens estão matando as
mulheres. Estou falando de estupro. Estou falando de assassinato”11.
Muitas pessoas estão conscientes da morte de Trayvon Martin na Flórida pelas mãos de um vigilante
branco em 2012, mas quantas pessoas estão acompanhando o caso de Marissa Alexander, também na Flórida,
que disparou um tiro para o ar para impedir que seu companheiro abusivo a atacasse12? George Zimmerman,

9 NT: Cf. CRENSHAW, Kimberle W. The Girls Obama Forgot. The New York Times, 26 jul. 2014. Disponível em: https://www.
nytimes.com/2014/07/30/opinion/Kimberl-Williams-Crenshaw-My-Brothers-Keeper-Ignores-Young-Black-Women.html?_r=0. Acesso em:
dez. 2015.
10 STANLEY, Eric A. e SMITH, Nat (eds.). Captive Genders: Trans Embodiment and the Prison Industrial Complex. Oakland: AK
Press, 2011.
11 Revolutionary Hope: A Conversation Between James Baldwin and Audre Lorde. Disponível em: http://mocada-museum.tumblr.
com/post/73421979421/revolutionary-hope-a-conversation-between-james. Acesso em: dez. de 2015.
12 NT: Em 2012, Marissa Alexander foi acusada de agressão agravada por uso de arma de fogo, tendo sido sentenciada, a princípio,
a vinte anos de prisão, num julgamento de doze minutos. Em janeiro de 2015, tendo passado três anos presa, sua pena foi revista para dois
anos de prisão domiciliar e uso obrigatório de uma tornozeleira, com custos pagos por ela. Cf.: http://www.freemarissanow.org/. Acesso em:
dez. 2015.
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o assassino de Trayvon Martin foi absolvido, enquanto Marissa Alexander recebeu uma sentença de vinte
anos de prisão. O fato de George Zimmerman ser um homem branco e Marissa Alexander, uma mulher negra
ilustra a grande disparidade em suas punições.
Nós sabemos os nomes de homens negros – de Trayvon Martin a Jordan Davis – que foram mortos
na Flórida por estar tocando música alta. Nós sabemos a respeito de Amarildo de Souza, que foi torturado,
assassinado e desaparecido pela polícia no Rio de Janeiro durante o dito programa de pacificação antes da
Copa do Mundo.
Mas e quanto aos circuitos de violência que interligam a morte nas ruas à agressão no quarto? Audre
Lorde insistiu com James Baldwin que os homens negros têm uma responsabilidade especial – trabalhar
contra a violência que é pandêmica – que se desdobra todas as noites, que reivindica a vida das mulheres,
seu senso de si, seus futuros. O feminismo negro exorta os homens a assumir a luta contra a violência de
gênero na África do Sul, onde o HIV é galopante; na Índia, onde o estupro é legitimado; no Brasil, onde
mulheres como Beatriz Nascimento são mortas a tiros; e nos EUA, onde há proporcionalmente mais mulheres
e mais pessoas trans na prisão do que em qualquer outro lugar do mundo. Sabemos que há uma ligação entre
a violência institucional e a violência doméstica. Sabemos que o “Heteropatriarcado Mata” [Heteropatriarchy
Kills]13 – como aponta Angela Harris –, que a violência pelas mãos da polícia, a violência na prisão muitas
vezes se torna violência contra mulheres, gays, lésbicas, pessoas trans e intersexuais.
Se estamos na África do Sul, na Índia, no Brasil ou nos EUA, não podemos fingir que não percebemos
essas conexões. Efetivamente, a luta global pela liberdade exige tais entendimentos.
Meu terceiro e último exemplo vem de esforços históricos de liberdade dos negros na América do
Norte. Em sua obra monumental Black Reconstruction in America, W. E. B. Du Bois repetidamente salientou
que a liberdade significava mais do que a quebra das correntes da escravidão14. A Abolição seria mais do
que o processo negativo de desmantelar a escravidão. Significaria também liberdade econômica, política e
educacional. Gostaria de acrescentar que também significaria liberdade sexual, a possibilidade de escolher os
próprios parceiros sexuais, em vez da obrigação de subordinar a sexualidade à procriação − submetida aos
interesses de reproduzir a população escravizada.
Durante e após a Guerra Civil, um dos lemas da liberdade negra era “40 acres e uma mula”. Vocês
devem reconhecer essa frase, porque é também o nome da produtora de Spike Lee. A população negra
precisava não apenas quebrar as correntes da escravidão, mas reivindicar os meios para sustentar a vida
livre. Os negros precisavam de reforma agrária. Eles precisavam da terra, bem como dos meios para trabalhar
aquela terra.

13 HARRIS, Angela P. Heteropatriarchy Kills: Challenging Gender Violence in a Prison Nation. Washing University Journal of Law
and Policy, v. 37 − Access to Justice: Mass Incarcerfation and Masculinity Through a Black Feminist Lens, jan. 2011, p. 13-65.
14 DU BOIS, William Edward Burghardt. Black Reconstruction in America: an essay toward a history of the part which black folk
played in the attempt to reconstruct democracy in America, 1860-1880. Nova York: Atheneum, 1979 [1935].
Griôs da Diáspora Negra
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177
Esse slogan, “40 acres e uma mula”, ainda hoje ressoa entre pessoas negras. Algumas delas ainda
estão pleiteando seus 40 acres e talvez até a mula. Mas – e este é o meu ponto – de quem era essa terra? Já
paramos para pensar sobre o fato de que, embora nossos ancestrais tenham sido trazidos para este hemisfério
como escravos, isso por si só não nos absolve da responsabilidade de refletir sobre nossa parte no processo
de colonialismo? Esta terra pertencia aos povos indígenas que habitavam as Américas muito antes de os
colonizadores espanhóis, portugueses, franceses ou britânicos pensarem em viajar para esta parte do mundo.
As histórias negra e indígena estão entrelaçadas de modo complexo. Se levarmos a sério essas conexões,
nós teremos de repensar toda a história da nossa luta pela liberdade, reconheceremos que a escravidão dos
nossos antepassados em terras indígenas significou que nós também fomos implicados no colonialismo.
Assim, quando imaginamos o que significa ser livre, não podemos fingir que os povos indígenas não existem.
Desse modo, na tradição feminista negra, vamos ter de rever e repensar as nossas histórias. Na Colômbia, por
exemplo, as pessoas afrodescendentes estão lutando para manter suas terras e sua cultura − especialmente
contra as incursões de corporações globais de mineração. Os povos indígenas também estão defendendo
seu direito ao subsolo de suas terras, assim também lutando contra desterritorialização. Não podemos fingir
que essas são lutas separadas. É por isso que é essencial ver as lutas pela igualdade global da perspectiva do
feminismo negro e saudar sua insistência em continuamente revisar, repensar e relançar.
Essa consciência sobre o papel do colonialismo – nos EUA, no Caribe, no Brasil e em outros lugares
– também cria um mandato para enfrentar o colonialismo hoje. Isso significa solidariedade com as lutas
dos povos indígenas na América do Sul, América do Norte, Austrália e em todo o mundo. Além disso, não
podemos compreender de forma eficaz as implicações do colonialismo histórico sem também reconhecer o
fato de que o Estado de Israel é o único estado colonial existente no século XXI que insiste em se expandir
agressivamente hoje.
Assim como o mundo desafiou o Apartheid da África do Sul durante as últimas décadas do século
XX, somos chamados atualmente a nos levantar contra o Apartheid de Israel. Como nos encontramos hoje,
as vidas das crianças em Gaza estão sendo consumidas pela violência vingativa e desenfreada do Estado
de Israel. Aquelas de nós que trabalhamos contra o complexo industrial das prisões global reconhecemos
que a Palestina ocupada é uma vasta prisão a céu aberto e que, se quisermos avançar nossas lutas contra o
encarceramento em massa e as tecnologias carcerárias que migraram dos EUA para praticamente todas as
partes do mundo, temos também de expressar a nossa solidariedade para com o povo palestino.
Uma vez que minha fala enfatizou o impulso interseccional do feminismo negro num contexto
internacional, concluirei prestando homenagem a uma das nossas mais importantes internacionalistas
feministas negras. Refiro-me a Audre Lorde, que nasceu na ilha de Granada, chegou à maturidade em
Nova York, e viveu na Alemanha quando estava sendo tratada contra um câncer de mama. Durante seu
tempo na Alemanha, ela continuou a escrever e organizar, incentivar e trabalhar com as mulheres negras no
desenvolvimento de uma manifesta identidade afro-alemã. Esse foi o trabalho fundamental para o ativismo
feminista negro-alemão hoje. Pouco antes de sua morte, Audre Lorde e sua companheira Gloria Joseph

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estavam vivendo em Santa Cruz, Ilhas Virgens, onde elas criaram uma organização de solidariedade com as
mulheres do sul-africanas.
Em seu ensaio “Age, Race, Class, and Sex”, Audre Lorde enfaticamente nos lembrou que “a necessidade
de unidade é, com frequência, erroneamente nomeada como uma necessidade de homogeneidade”15. De
fato, ela trabalhou assiduamente para desmantelar a presunção de que a uniformidade seria sempre um
pré-requisito para a unidade; e vinte anos após sua morte, continuamos a confiar em suas percepções − quer
reconheçamos ou não − sempre que tentamos imaginar e organizar movimentos radicais que unam as pessoas
atravessando fronteiras raciais, de gênero, sexuais e nacionais.
Nos Estados Unidos, uma crença amplamente difundida define a diversidade como a condição social
primária que levará ao fim do racismo. Ou seja, incorporar pessoas racialmente diferentes em um processo
que se mantem inalterado. Como eu já disse muitas vezes, isso equivale a uma diferença que não faz a menor
diferença. Tal abordagem da diversidade a torna inofensiva ao status quo. Desse modo, a diversidade tornou-
se rapidamente uma estratégia corporativa amplamente adotada: Não reorganize o caráter exploratório da
produção capitalista, apenas se certifique de que mais pessoas negras, mais mulheres, mais latinos podem
participar e lucre com essa exploração. Essa abordagem envolve o que Audre Lorde chamou de “tolerância
da diferença” ou “o mais grosseiro reformismo”16. Em seu ensaio germinal, “The Master’s Tools Will Never
Dismantle the Master’s House”, Lorde insistiu que: “A diferença não deve ser meramente tolerada, mas vista
como um fundo de polaridades necessárias, entre as quais a nossa criatividade pode disparar como uma
dialética”. Ela, então, enfatiza o que chama de “uma interdependência de forças diferentes, reconhecidas e
iguais”, que pode ajudar a gerar novas formas de estar no mundo17.
Esse conceito de diferença como geradora, produtiva e criativa milita contra alguns dos fundamentos
básicos da lógica ocidental, que se tornaram estruturas ideológicas da normalidade. A noção do potencial
criativo em oposição ao potencial destrutivo da diferença; a insistência na interdependência em vez da
hierarquia; e a ideia de mundos desconhecidos, novas formas de ser − esses continuam a ser absolutamente
essenciais para o pensamento e a ação feminista internacionalista radical no século XXI.
Audre Lorde constantemente nos instou a pensar para além do habitual, para além do aceitável.
Ela enfatizou a dimensão crítica, questionadora e iconoclasta do feminismo negro. O fato de ela sempre
se apresentar como uma “feminista negra, lésbica, poeta, guerreira e mãe fazendo o meu trabalho” foi um
esforço para desmistificar suposições de que esses termos não poderiam habitar o mesmo espaço: negra e
lésbica; lésbica e mãe; mãe e guerreira; guerreira e poeta. Ela insistiu em uma política de articulação que se
tornou a própria base do que veio a ser considerada a abordagem feminista central da interseccionalidade.
As abordagens feministas negras das lutas pela igualdade global, de tal sorte, sempre enfatizaram as
interseccionalidades das lutas.

15 LORDE, Audre. Age, Race, Class, and Sex: Women Redefining Difference. In: LORDE, Audre. Sister Outsider. Freedom, CA:
The Crossing Press, 1984, p. 119.
16 LORDE, Audre. The Master’s Tools Will Never Dismantle the Master’s House. In: LORDE, Audre. Sister Outsider…, p. 111.
17 Idem, ibidem.
179
No epílogo de suas reflexões sobre viver com câncer em “A Burst of Light”, Audre Lorde escreve:
Às vezes eu sinto como se estivesse vivendo em uma estrela diferente da que estou acostumada
a chamar de casa. Não tem sido uma progressão constante. Eu tive de examinar, nos meus
sonhos e nos meus testes de função imunológica, os efeitos devastadores da superextensão.
Superestender a mim mesma não é me esticar. Eu tive que aceitar o quão difícil é monitorar
a diferença. Tão necessária para mim quanto reduzir o açúcar. Crucial. Fisicamente.
Psiquicamente. Cuidar de mim mesma não é autoindulgência, é autopreservação, e isso é
um ato de guerra política”18.

Eu tomo isso como um desafio para feministas negras internacionalistas hoje: incorporar o autocuidado
em nossa prática política, o autocuidado como uma prática coletiva, e não individualista. Assim, quando nós
conscientemente cuidarmos do nosso corpo, comemos conscientemente sabendo do papel que a produção
capitalista de alimentos tem sobre a terra, os animais e sobre os nossos corpos. Nós conscientemente
incorporamos a espiritualidade em nossa prática, reconhecendo que a saúde é sobre corpo, mente e espírito.
No parágrafo final desse epílogo, ela escreve − e esta será a palavra final:
Eu trabalho. Eu amo, eu descanso, eu vejo e aprendo. E eu relato. Esses são os meus dons.
Sem certezas, mas com uma firme convicção de que viver ou não com alegria prolonga
minha vida, isso certamente me permite perseguir os objetivos dessa vida com uma clareza
mais profunda e mais eficaz19.

Obrigada.

18 LORDE, Audre. A Burst of Light. In: LORDE, Audre. A Burst of Light. Ithaca, Nova York: Firebrand Books, 1988, p. 131.
19 Idem, ibidem, p. 134.

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Entre Cláudias e Carolinas
Nina Silva 1

São milhares delas em mim São porta-bandeiras, passistas


São Carolinas São lavadeiras que não cansam jamais
São Aqualtunes São pretas como nossas iabás
São pretas como mainha São retintas
São Anastácias São lindas, cicatrizes em memórias
São Clementinas São pretas como nossas histórias
São pretas como minhas primas De vida
São Marias Congas De morte em vida
São Luislindas São pretas como minha escrita
São pretas como minhas sobrinhas São mães da Candelária
São Rosas Parks São mães como Cláudia
São também Chicas da Silva São pretas como todas as Silvas
São pretas como minhas tias São pretas como eu
São Anas ou seriam Anjas? São pretas como Carolina
São Angelas Davis São pretas como essas Marias
São Nzingas São pretas como Carolina,
São pretas como minhas amigas Cláudias, Silvas, Carolinas, Marias,
São quituteiras Cláudias, Marias, Carolinas, Silvas,
São domésticas, candaces rainhas pretas, pretas, retintas,
São pretas como minhas filhas minhas, minhas, minhas ...
São guerreiras, Elas permanecem. Em Sujeito e não objeto. A
São quilombolas, todas elas em uma só contar e serem donas de suas origens e trajetórias. E
seguem. Essas que em mim residem poderiam ser
São pretas como minhas avós quaisquer uma dessas!

1 Escritora e poetisa, publicou em parceria com Akins Kinté o livro de poemas eróticos InCorPoros – Nuances de Libido (2011),
bem como integra outras coletâneas poéticas. E-mail: marinabarbosa@gmail.com.
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Quadros Recital Poético Musical em comemoração ao
Centenário de Carolina Maria de Jesus
Vera Lopes 1

Encontrei minhas origens


[...] enfim
Me encontrei.
Oliveira Silveira

A pesquisa na obra poética de Carolina Maria de Jesus nos proporciona uma viagem de muitos
encontros. Encontro com uma mulher forte, doce, inquieta, romântica, decidida, que, por meio de uma escrita
contundente e profunda, demonstra seu inconformismo com as desigualdades sociais, raciais e de gênero. Em
Antologia Pessoal2, encontramos uma negra com sonhos, desejos, medos, amores, raivas, enfim, uma mulher
com história de vida semelhante à de tantas outras negras mulheres que fizeram esse Brasil “no braço”, com
alma, com sangue, lágrimas, prazer, generosidade, amor e ódio.

Carolina Maria de Jesus, em seu poema “Quadros”, avisa: “tenho muita consciência, tenho senso e
tenho noção”. Por isso mesmo, não aceitou os muitos e muitos “não” que recebeu, nem tão pouco sucumbiu
diante da afirmação: “o que as negras devem fazer é ir para o tanque lavar roupa”. Ela foi, lavou muita roupa,
mas também escreveu, catou papel, mas escreveu, foi trabalhadora doméstica e escreveu. Escreveu todos os
dias, diários, peças, provérbios, romances, contos, letras de músicas, poemas.

Na poesia, nos legou “QUADROS”, poema com muitas estrofes, algumas inquietantes, outras
contemplativas, outras ainda reivindicativas. Aparentemente, não guardam relação uma com a outra. No
entanto, são estrofes instigadoras e inspiradoras, tanto que, para além de dar nome a este trabalho, as estrofes
do poema “QUADROS” perpassam o recital do início ao seu final, de forma descontinua, como a Vida.

O presente Recital Poético Musical inicia com um breve diálogo entre Carolina e sua filha Vera Eunice,
criado a partir do livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada3. Os poemas e fragmentos de poemas que

1 Atriz, com experiência de mais de trinta anos em teatro, cinema, recitais poético-musicais, etc.; integrante fundadora
do Caixa-Preta, grupo de teatro negro em Porto Alegre. E-mail: velopesl@yahoo.com.br.
2 JESUS, Carolina Maria de. Antologia Pessoal. Organização José Carlos Sebe Bom Meihy. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
3 JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada. São Paulo: Ática, 1998.
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apresentamos estão divididos em cinco blocos temáticos: Poesia, Mãe, Constatações, Amor e Maturidade. Para
este trabalho, algumas estrofes do poema “Quadros” e o poema “O colono e o fazendeiro” foram musicados
por Pâmela Amaro, atriz, cantora, compositora, instrumentista, múltipla em sua arte, como Carolina Maria
de Jesus na escrita.

“Quadros” tem direção do experiente Jessé Oliveira, diretor, iluminador, professor, escritor. Contamos
ainda, com a “luxuosa” participação de Irene Santos nas imagens.
Tenhamos um BELO espetáculo!

Carolina recicladora da vida


Jessé Oliveira 4

Carolina, a nossa Carolina Maria de Jesus (1914-1977), não pode ser enquadrada em categorias
sociológicas e estéticas. Cada quadro de sua existência representa uma faceta da mulher negra brasileira e
um olhar crítico e dialético do Brasil.

Dizer que Carolina de Jesus foi uma ex-catadora de papéis seria uma visão limitadora, o mesmo que
negar a capacidade transformadora de uma mulher com poucas oportunidades que conseguiu produzir
uma profícua obra em diversas modalidades com eficiência em todos os discursos estéticos com os quais se
aventurou. Carolina criou poesia, prosa, composição musical em diversos estilos. Era, de certa forma, uma
artista multidisciplinar, antes de esse termo se tornar comum.
Com certeza sua obra prima foi Quarto de Despejo, obra que ultrapassou todas as fronteiras, sendo
reconhecida em dezenas de países e sobreviveu ao tempo como uma obra ainda atual e provocativa.

Carolina produziu uma poesia plural em termos de estilo, linguagem e temática. Por vezes em rimas
bastante tradicionais, noutras em tom prosaico, confessional e causal, mas sempre com a mesma verve
crítica e ácida. Sua música, talvez a faceta menos conhecida, foi também uma dimensão onde conjugava a
musicalidade popular e certo viés de cronista da vida e suas mazelas5.
Pode-se dizer que teve um papel de espontâneo ativismo feminino, uma vez que estava em sua obra a
questão da independência da mulher num tempo de absoluta submissão. Carolina foi uma mulher à frente

4 Diretor teatral formado pela UFRGS, esteve à frente de mais de quarenta espetáculos de teatro, dança e música. É diretor fundador
do Grupo Caixa, de teatro negro em Porto Alegre. Em 2015-2016, dirigiu o espetáculo O Cavalo de Santo, de Viviane Juguero, traduzido
como Das Pferd der Heiligen, como diretor estrangeiro convidado no Theater Krefeld Und Mönchengadbach, na Alemanha.
5 Em 1961, Carolina gravou o LP Carolina Maria de Jesus – Cantando suas Composições. As doze faixas que compõem o
disco podem ser ouvidas pelo site: http://www.radiobatuta.com.br/episodes/view/563. Acesso em: junho de 2015.
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do seu tempo. Como catadora, foi uma recicladora da vida e da pulsão transformadora, construiu sua casa e
sua obra artística utilizando aquilo que o mundo não via utilidade. Guardava as revistas e livros descartados
e mesmo papel para sua escrita. Sua obra, portanto, foi responsável ambientalmente.

Cada quadro de Carolina nos revela as muitas Carolinas do país.

Ficha técnica
Direção e ambientação técnica: Jessé Oliveira
Pesquisa e roteiro: Vera Lopes
Elenco: Pâmela Amaro e Vera Lopes
Direção musical: Pâmela Amaro
Imagens: Irene Santos
Estreia: Festival Latinidades, Brasília-DF, 23 jul. 2014.

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Café amargo
Carmen Faustino 1

A Claudia Ferreira da Silva, mulher negra e invisível aos olhos do poder público

Naquela manhã, Foto e abraço na criança


O gole de café desceu queimando Gosto gol, caipirinha e cerveja
Ardendo no sol
Gosto forte, de sangue e asfalto... Discurso bonito, santinho na mão
Na favela, o tiro nunca é perdido Mantém a imagem, garantem a eleição...
Achou a Mulher Negra Mas lá no Morro da Congonha, é ano de luto
Que deixou de alimentar seus filhos O coração da família partiu
Para virar saco, pelas ruas do cartão postal Seu corpo e sua vida banalizados na tela
Tudo gravado, a cena é forte, põe no ar! Feridas gritando, vozes se calando
Porém, se a cor da pele é quase a cor do chão Mulher negra, racismo e invisibilidade social...
Não desperta sentimento algum E agora, o gole de café
Nem de justiça, nem comoção Na boca dos filhos de Cacau
O choro profundo da família Desce amargo como fel
Não derramou no horário nobre da novela Gosto forte, de saudade e de sal.
O grito de dor dos seus filhos
Não ecoaram nos casarões da zona sul
A notícia segue...
Dizem que é ano bom por aqui
Bola no pé, dedo na urna
Turista e candidato subindo o morro

1 Poeta, escritora, educadora e articuladora cultural. Integrante do Mjiba − Coletivo de Mulheres Negras da Zona Sul de São Paulo,
organizou juntamente com Elizandra Souza a coletânea Pretextos de Mulheres Negras (2013). E-mail: carmen.faustino@hotmail.com.
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gyna sapiens
Mayra Santos-Febres1

lo primero que hay que hacer es respirar


entender que el aire
corre por los pulmones
sale por las comisuras de la nariz
relaja los músculos, los tensa, cae en la sangre
susurra al oído:

no estás sola

aquí también están todos los que han respirado antes que tú

todos los que insistieron segundo a segundo en palpitar


para que tú llegaras.

tómate tu tiempo
haz tu trabajo
inhala, exhala
para los que necesitan que el aire nutra a la sangre
desde el inicio
hasta el principio.

1 Natural de Carolina, Porto Rico, é escritora e professora da Universidade de Porto Rico, tendo sido professora visitante nas
universidades de Harvard e Cornel. Começou a publicar seus poemas em 1994 em revistas e periódicos internacionais como Casa de las
Américas (Cuba), Página doce (Argentina), Revue Noir (França) e Latin American Revue of Arts and Literature (EUA). Publicou os livros
de poema e prosa literária: Anamú y manigua e El orden escapado (1991); Pez de vidrio (1995), Oso Blanco (1996), Tercer Mundo e
Sirena Selena vestida de pena (2000), Cualquier miércoles soy tuya (2002), Sobre piel y papel e Boat People (2005), Nuestra Señora de la
Noche (2006), Fe en disfraz (2009) e Tratado de Medicina Natural para Hombres Melancólicos (2011). Por sua produção recebeu diversos
prêmios.
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ellos requieren sus sonidos
vastas cantidades de éter. despiertan y cargan hacia el aire
tú tan sólo eres una instancia en la infinita cadena las puertas de la pregunta.
de la respiración.
las sabias de la estirpe dicen que escribir
respiras es cantar
porque viniste a hacer lo que te toca. contar las cosas que la sangre marca en el tiempo.

que nadie te quite el aire ¿es eso escribir?


que no se estacione en ti, esas rayitas sobre las paredes de la piedra
que no se enquiste en tí las marcas de la ausencia
todas las noches
que el aire en la sangre que le toma al cazador regresar con su alimento?
abra cauce
¿es la pregunta?
que te traspase ¿o es el canto que nace del regreso
como una espada. la piel enloquecida que se vierte
para olvidar en otro cuerpo?
***
¿es la búsqueda, la partida, el inmenso deambular,
¿qué es esto de marcar? − pregunta la mujer que luego la cueva?
escribe ¿todos esos trabajos?

¿qué es esto de señalar la puerta de la casa con la ¿o es esto?


caza el imaginar que una también parte a enfrentar los
con la sangre de la caza y del misterio? monstruos del afuera
para olvidar los monstruos del adentro?
la luna brilla solitaria en el cielo
en medio de lo inmenso que es la noche ***
mientras
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a las guerreras las marca siempre la renuncia
− enseñan las viejas de la estirpe. una no se mide con las bestias
no sale a cazar
las marca la luna solitaria una no mata para traer el sustento.
que vierte su luz
ancha y amarilla por más que lo intenta,
desde el firmamento. tampoco puede una convertirse
en presa de la depredación.
todos la desean y le temen
pocos se aventuran a tocarla ¿es a eso a lo que se renuncia la mujer que escribe?
− cuentan las sabias de la estirpe. ¿a la permanencia en el país que son los cuerpos
de los trabajos y de la depredación?
las viejas guerreras
lo cantan. así lo escriben en sus cortezas ¿acaso se puede entrar y salir de ese país?
sobre las piedras. ir de la caza a la casa, de los campos
al solitario abrazo de los signos
la luna es la reina guerrera − cuentan. a los brazos del amado y a su ausencia
para que, aunque también él parta, logre retornar
a quien ella selecciona al menos en canción?
se le llena la cabeza de preguntas
pero una sola es la respuesta: ¿ese amado que es un cíclope y un ciclo
que camina por los valles,
la renuncia. batallando por la pregunta y el sustento?

*** ¿será eso posible? – se pregunta la mujer que escribe,


cuestiona la mujer que escribe
¿a qué renuncia la mujer que escribe toma nota.
porqué es guerrera la mujer que escribe,
qué batalla es la que hay que enfrentar?

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