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LEITURA LITERÁRIA

Os leões – Moacyr Scliar


Hoje não, mas há anos os leões foram perigo. Milhares, milhões deles corriam
pela África, fazendo estremecer a selva com seus rugidos. Houve receio de que eles
chegassem a invadir a Europa e a América. Wright, Friedman, Mason e outros lançaram
sérias advertências a respeito. Foi decidido então exterminar os temíveis felinos. O que
foi feito da maneira que se segue.
A grande massa deles, concentrada perto do Lago Tchad, foi destruída com uma
única bomba atômica de média potência, lançada de um bombardeiro, num dia de verão.
Quando o característico cogumelo se dissipou, constatou-se, por fotografias, que o
núcleo da massa leonina tinha simplesmente se desintegrado. Rodeava-o um setor de
cerca de dois quilômetros, composto de postas de carne, pedaços de osso e jubas
sanguinolentas. Na periferia, leões agonizantes.
A operação foi classificada de "satisfatória" pelas autoridades encarregadas. No
entanto, como sempre acontece em empreendimentos desta envergadura, os problemas
residuais constituíram-se, por sua vez, em fonte de preocupação. Tal foi o caso dos
leões radioativos, que tendo escapado à explosão, vagueavam pela selva. É verdade que
cerca de vinte por cento deles foram mortos pelos zulus nas duas semanas que se
seguiram à explosão. Mas a proporção de baixas entre os nativos (dois para cada leão)
desencorajou mesmo os peritos mais otimistas.
Tornou-se necessário recorrer a métodos mais elaborados. Para tal criou-se um
laboratório de treinamento de gazelas, cujo objetivo primário era liberar os animais do
instinto de conservação. Seria fastidioso entrar nos detalhes deste trabalho, aliás muito
elegante; é suficiente dizer que o método utilizado foi o de Walsh e colaboradores, uma
espécie de brain-wash adaptado a animais. Conseguido um número apreciável de
gazelas automatizadas, foi ministrado às mesmas uma forte dose de um tóxico de ação
lenta. As gazelas procuraram os leões, deixaram-se matar e comer; as feras, ingerindo a
carne envenenada, vieram a ter morte suave em poucos dias.
A solução parecia ideal; mas havia uma raça de leões (poucos, felizmente)
resistente a este e a outros poderosos venenos. A tarefa de matá-los foi entregue a
caçadores equipados com armamento sofisticado e ultra-secreto. Desta vez, sobrou
apenas um exemplar, uma fêmea que foi capturada e esquartejada perto de Brazzaville.
Descobriu-se no útero da leoa um feto viável; pouco radioativo, o animalzinho foi
criado em estufa. Visava-se, com isto, a preservação da fauna exótica.
Mais tarde o leãozinho foi levado para o Zoo de Londres onde, apesar de toda a
vigilância, foi assassinado por um fanático. A morte da pequena fera foi saudada com
entusiasmo por amplas camadas da população. "Os leões estão mortos!" - gritava um
soldado embriagado. - "Agora seremos felizes!"
No dia seguinte começou a guerra da Coréia.

SCLIAR, M. Os melhores contos de Moacyr Scliar. Seleção de Regina Zilbermann. 6


ed. São Paulo: Global, 2003.

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