Introdução – Modalidades da Experiência ............................................... 2
A modalidade tradicional da experiência .................................................. 2
A modalidade moderna da experiência ..................................................... 4
• A automatização dos domínios e das dimensões da experiência....... 4
• A institucionalização e a autonomização da modalidade disciplinar
do saber .............................................................................................. 5
• A emergência da questão do fundamento e da questão comunicacional
............................................................................................................ 6 Introdução – Modalidades da Experiência A investigação de Adriano Duarte Rodrigues defende que a experiência é um processo complexo com componentes que se relacionam entre si. Estas componentes podem ser agrupadas em três modalidades pragmáticas distintas que coexistem sempre em qualquer tempo e sociedade: as modalidades originária, tradicional e moderna da experiência. Cada uma destas modalidades referidas tem princípios e exigências diferentes, mas, neste trabalho académico, vamos focar-nos nas diferenças e semelhanças entre as duas últimas modalidades.
A modalidade tradicional da experiência
De acordo com Adriano Duarte Rodrigues, a modalidade tradicional da experiência trata os saberes, crenças e convicções transmitidos de geração em geração que nos são impostos de maneira indiscutível, pois não questionamos nem refletimos acerca destes ensinamentos. Assim, percebemos que esta é a modalidade referente ao senso comum que não se confunde com as normas sociais. A experiência tradicional é também indissociável daquilo a que o autor dá o nome de lógica da sociabilidade. Na origem destas convicções aceita-se que possa ter havido reflexão. Contudo, correntemente, não se tenta refutar, questionar nem encontrar uma explicação racional para aquilo que nos é dito, mas é possível adaptarmos estas crenças ao mundo atual. A este processo correspondem diferentes formas de mitificação que se aceitam simplesmente como uma verdade. É desta forma que nascem os mitos e rituais que sustentam e garantem a continuidade das tradições. Para ilustrar a sua tese, Adriano Duarte Rodrigues recorre à obra Ensaio Sobre a Dádiva, de Marcel Mauss. Através do exemplo que remonta ao potlatch e ao kula - duas tradições muito semelhantes praticadas em locais distantes - o autor conclui que os processos da modalidade tradicional da experiência são responsáveis por criar, manter e intensificar “os laços ou os vínculos de aliança entre os parceiros” (p. 81) de uma prática. Desta forma, percebemos que esta modalidade valoriza o estabelecimento de um compromisso. Uma ação que seja considerada desrespeitosa, como por exemplo recusar dirigir, receber ou retribuir a palavra, constitui uma rutura “de aliança e, por conseguinte, uma declaração de guerra” (p. 81). Conclui-se que a troca de palavra é a base estruturante da sociabilidade. Mauss também alerta para o facto de determinadas instituições compreenderem a totalidade dos domínios e das dimensões da experiência, atribuindo- lhes, assim, o nome de fenómeno social total ou de sistema de prestações totais. Contudo, não se encontra nas sociedades tradicionais uma questão comunicacional e uma problematização das relações sociais e dos quadros do sentido da experiência. De acordo com o autor, é na interação discursiva, ou seja, na oralidade, que se funda a tradição partilhada pelos homens. Posto isto, é possível concluir que nenhum indivíduo possui identidade autónoma visto que partilha uma sabedoria com a sociedade em que se insere. A tradição, que nos une enquanto comunidade, é o nome dado à maneira de sustentar a existência de crenças que nos transmitem saberes que já não sabemos de onde surgiram. É exatamente por não se saber de onde surgiram estas crenças e valores que os aceitamos sem questionar. “A modalidade tradicional da experiência não confunde os diferentes domínios e as diferentes dimensões da experiência, embora não institua a sua autonomia.” (p.84). Isto significa que embora não haja confusão entre os vários domínios e dimensões da experiência, estes não são independentes. Assim, continua a existir, na experiência tradicional, não só uma coexistência por parte dos três domínios (mundo natural, mundo subjetivo e o mundo intersubjetivo), como também uma correlação entre as três dimensões da mesma (juízos ontológicos, juízos éticos e juízos estéticos). É exatamente esta prevalência da tradição ao longo dos anos que garante a relação entre os diferentes domínios e dimensões da experiência e que, por sua vez, não deixa que do processo de distinção dos mundos da experiência se gere a problemática comunicacional. Nesta modalidade da experiência, a linguagem é encarada como necessária e “eficaz na intervenção sobre os diferentes mundos” (p.84), pois é nela e através dela que acontece a simbolização, sendo assim o meio de comunicação privilegiado. A esta modalidade de tecnicidade própria da experiência tradicional dá-se o nome de tecnicidade mágica. No texto, o autor refere que a língua materna é a que “melhor representa a modalidade tradicional da experiência'' (p.85). Desta forma, percebemos que a linguagem não requer uma aprendizagem rígida das suas regras, mas sim instintiva, dependendo apenas do funcionamento do nosso raciocínio lógico para a dominarmos. No entanto, Adriano Duarte Rodrigues afirma que ao recusarmos as regras do funcionamento da linguagem estamos a recusar não só a “experiência do mundo e de nós próprios” (p.85) como também as relações com os demais utilizadores da nossa língua materna. Para além disto, é através dela que recebemos todas as ferramentas de que necessitamos para compreender tudo o que nos rodeia e que, posteriormente, compreendemos todos os acontecimentos à nossa volta e o que pensamos sobre isso, ou seja, a nossa mediação do mundo. Também a experiência afetiva está relacionada com este conceito de experiência tradicional na medida em que não conseguimos fundamentar racionalmente o afeto, visto que nunca conseguiremos chegar a respostas concretas sobre o tema. “É da racionalidade da modalidade tradicional da experiência que podemos dizer, como Pascal, que «o coração tem razões que a razão desconhece.»” (p.85).
A modalidade moderna da experiência
Por sua vez, a modalidade moderna da experiência diz respeito a um processo de dissociação com a tradição e, simultaneamente, a uma autonomização dos diferentes domínios e dimensões da experiência. Isto leva a uma quebra entre a esfera da natureza e a esfera da cultura.
A automatização dos domínios e das dimensões da experiência
“A experiência moderna consiste na autonomização do mundo natural como domínio autónomo em relação aos domínios subjetivo e intersubjetivo” (p. 86). A implementação da modernidade é acompanhada pela aprendizagem de um complexo jogo de pronomes que é representado pela gramática. Ao adquirir o controlo sobre o domínio da gramática é possível obter condições que permitem acesso à modalidade moderna da experiência. A autonomização da experiência do mundo natural permite que exista um processo de instrumentalização do “mundo não humano” (p. 86). Um processo idêntico de instrumentalização pode chegar ao domínio intersubjetivo, onde a racionalidade moderna transforma esse domínio num “objecto de apropriação por parte de dispositivos institucionais” (p. 86). A partir do momento em que o processo de racionalização atinge eficácia suficiente, o outro deixa de ser considerado como interlocutor para se tornar objeto através da marca díctica da terceira pessoa gramatical: “ele”. A institucionalização e a autonomização da modalidade disciplinar do saber O processo de racionalização, que tem como objetivo tornar claro os mundos da experiência, está ligado à emergência de uma nova modalidade de saber: a do saber disciplinar. Como vimos anteriormente, a sabedoria tradicional é adquirida através do testemunho, ou seja, não provém da aquisição de um conhecimento discursivamente formulado. Sendo assim, é importante mencionar que se trata de “um processo que exige a inserção numa comunidade total de vida” (p. 87). Podemos assim referir que a aquisição do saber tradicional é muito diferente da do saber disciplinar moderno, já que este se adquire através da adoção de métodos de investigação dos fenómenos, ou seja, da aquisição de uma disciplina. Dessa forma, podemos dizer que a formulação feita através do saber disciplinar é predominantemente discursiva e especializada: “não envolve, (...) a totalidade dos domínios da experiência.” (p. 87).
Como Adriano Duarte Rodrigues refere, enquanto que a sabedoria tradicional se
assenta numa experiência mais particular, o saber disciplinar moderno pretende ser validado universalmente. Assim, o dizer e o fazer relacionado com os indivíduos começam também a desempenhar funções distintas: ao dizer, na sabedoria tradicional, atribui-se apenas uma função pragmática explícita; mas para o saber disciplinar moderno, as regras pragmáticas que fazem o nosso discurso acabam por se autonomizar em relação às regras do discurso em si. Isto acaba por fazer com que, no quadro da experiência moderna, exista uma clara separação entre “saber dizer” e “saber fazer” (p. 88).
Contudo, estas funções pragmática e discursiva nem sempre são exclusivas do
saber moderno, como diz o autor. A função pragmática muitas vezes é independente da função discursiva: a isto corresponde uma autonomização do campo científico relativamente ao campo técnico. Percebe-se assim que a experiência moderna não é propriamente exclusiva das sociedades modernas.
De facto, a rutura para com a modalidade tradicional da experiência resulta na
autonomização dos diferentes domínios da experiência, o que corresponde ao processo de secularização ou de dessacralização da experiência. Max Weber chama a este processo de “desencantamento”: a experiência moderna é desencantada na medida em que o homem percebe que o seu destino é traçado só e apenas por si, não dependendo de ninguém para além de si mesmo para tomar as suas decisões. Esta experiência, ou, por outras palavras, a modernidade, é também o processo onde o homem ganha consciência de que a experiência tradicional acaba por, de certa forma, impossibilitar a autonomização individual.
A emergência da questão do fundamento e da questão comunicacional
Para a experiência moderna, o traço que se reveste de maior importância é o da natureza específica da fundamentação e da legitimação da ação e do discurso. Isto significa que a modernidade se foca nos fenómenos pertencentes ao “mundo da experiência de si, ao mundo natural e ao mundo intersubjetivo” (p.92). Compreendemos assim que, ao contrário da experiência tradicional, a experiência moderna recusa qualquer preocupação com a tradição e com as crenças do passado.
No seio da experiência moderna destaca-se o ideal de racionalidade metódica. Este
ideal é responsável pela origem das dimensões da experiência e da diferenciação moderna dos domínios. O papel desta diferenciação reveste-se de uma vasta importância sendo que autonomiza e institucionaliza vários campos sociais.
Estando a experiência dividida em tantos campos diferentes, cada um com as suas
regras e ordens próprias, surge uma dificuldade em gerir todos estes campos e as suas necessidades distintas e, por vezes, contraditórias. Os vários campos sociais mostram-se, assim, difíceis de conciliar. Adriano Duarte Rodrigues atribui o nome de “questão comunicacional” a esta dificuldade típica do quadro da modalidade moderna da experiência.
A questão comunicacional debate-se igualmente sobre a própria natureza da
racionalidade que “serve de fundamento aos comportamentos e aos discursos” (p.92). O autor explica que, desta forma, esta questão é responsável por romper com o “desencantamento”: aquilo que antes era aceite por todos, sem qualquer tipo de discussão, passa agora a ser questionado, leva os indivíduos a formular hipóteses e a duvidar. Passam a seguir-se procedimentos metodológicos - já não se aceita, simplesmente.
Adriano Duarte Rodrigues apoia esta tese recorrendo a um excerto de Michel de
Certeau. O autor atribui a causa da imposição do problema comunicacional no mundo ao facto de o homem ter dificuldade em se impor como sujeito autónomo de enunciação no domínio da experiência tradicional. De Certeau atribui muita da culpa a uma “visão redutora da experiência”. A verdade é que os dois autores concordam em afirmar que a palavra foi fundamental para o homem, ao longo de várias épocas e culturas. Desta forma, começaram a racionalizar e a ultrapassar os pressupostos da modalidade tradicional da experiência.