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Henri-Pierre Jeudy

ESPEL H O D A S CI D A D ES

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N Ã O DANIFIQUE ESTA ETIQ U ETA

CASA D A P AL AV R A
Copyright © 2005 Henri-Pierre Jeudy
Copyright © 2005 desta edição, Casa da Palavra

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PA OLA BEREN ST EI N JA CQ U ES

Tradução
REI A N E JA N O W I T Z ER

Revisão
M I CH EL L E STRZ O D A

BIBLIOTECA UNÏVEP«TTaj?js
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Di agramação
LEA N D RO CO LL A RES

Produção editorial 1 9 7 5 9 0 8 -Q8


D A N I ELLA RI ET

CI P-BRA SI L. CA TA LOGA ÇÃ O N A FO N TE - SN EL, R).


J56e

Jeudy, H enr i -Pier r e, 1945-


Espelho das ci dades / H enri -Pierre Jeudy ; t r adução Rejane Janow itzer. — Rio
de Janeiro : Casa da Palavra, 2005
Tradução de: Critique de Vesthetique urbaine, e La machinarie patr i monial e
Conteúdo: A maqui nar i a patr i m oni al - A crítica da estéti ca ur bana

I nclui bi bl i ogr afi a


I SBN 85-87220-88-8

1. Planejamento urbano. 2. A rquitetura - Estética. 3. Embelezamento urbano. 4.


Patri mónio cultural. I. Ti tulo. II . Título: A maqui nár i a patr i monial . II I. Título:
Crítica da estética urbana.

05- 1311. CD D 711.4


CD U 711.4
27.04.05 29.04.05 009983

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SUMÁRIO

Prefácio 9
Paola Berenstein Jacques

Primeira parte
A M A Q U I N A RI A PA TRI M ON I A L 13

O processo de reflexividade 15
Um espelho de cotovias 19
Os novos patrimónios j á antigos 25
A introversão patr i m oni al dos etnólogos 33
O pictograma das etnias 39
A desforra do objeto 45
Os distúrbios da atualização 51
Património e catástrofe 57
O futuro giratório 67
O futuro do homem 73
N otas 77

Segunda parte
A CRI T I CA D A E ST É T I C A U RBA N A 79

Representação simbólica das cidades 81


A cidade, constelação de imagens 85
A cidade, trajetória da escrita 88
A cidade, entre a metáfora e o conceito 92
A cidade, morfologia de um território 98
Tempo e território da estética urbana 107
O gênio maligno da intervenção 110
Quando o museu f az da cidade uma obra 118
A recomposição da pai sagem urbana 122
A cidade sem qualidade 129
A cidade é um millefeuille 132
O estetismo do social 138
A cidade e as singularidades “quaisquer” 143

A clonagem das cidades 149


N otas 155
A H enry Lefevbre
PREFÁCIO

Espelho dascidadesreúne doislivros distintos de Henri-Pierre Jeudy. A decisão dejun


tá-los em um só volume deveu-se à sua evidente complementaridade. La machinerie
patrimoniale (A maquinaria patrimonialI) é uma análise crítica da questão patrimo
nial urbana atual, e Critique de l’esthétique urbaine ( Crítica da estética urbana), um
questionamento sobre a representação simbólica das cidades contemporâneas.
O autor trata de processos distintos, que podem ser chamados de patrimonia-
lização e estetização urbanas, mas que fazem parte de um mesmo processo con
temporâneo e mais vasto que chamo de espetacularização das cidades. Este pr o
cesso, por sua vez, é indissociável das novas estratégias de marketing, ou m esm a—
branding urbano, ditas de revitalização, qu_ebuscam construir uma nova imagem
para ãs cidades œntemporâneas que lhe garantam um l ugar ji a noya.geojjohtiça_
das redes internacionais. Na lógica contemporânea de consumo cultural urbano,
a cultura passou a ser concebida como uma simples imagem de marca ou grife
de entretenimentp,_a ser^OJlsumida rapidamente. Com relação às cidades^ o que
ocorre não é muito diferente: a competiçãojprincipal mente por turistas e investie
mentos estrangeiros, é acirrada, e os políticos se empenham para melhor vender
a imagem de marca de suas cidades.
Nas políticas e nos projetos urbanos contemporâneos, principalmente dentro
da lógica do planejamento estratégico, existe uma clara intenção de se produzir^
uma imagem singular de cidade. Essa imagem, de marca, seria fruto de uma cul
tura própria, da dita “ identidade” da cidade. Paradoxalmente, essas imagens de
marca de cidades distintas, com culturas distintas, se parecem cada vez mais. Essa
contradição pode ser explicada: cada vez mais, as cidades precisam seguir um m o
delo internacional extremamente homogeneizador, imposto pelos financiadores
multinacionais dos grandes projetos urbanos. Este modelo visa basicamente ao
turista internacional - e não o habitante local - e exige um certo padrão mundial,
um espaço urbano padronizado. O modelo de gestão patrimonial mundial, por
exemplo, segue a mesma lógica de homogeneização. Ao preservar áreas históri
cas, de forte importância cultural local, utiliza normas de intervenção interna
cionais que não são pensadas nem adaptadas de acordo com as singularidades
locais. Assim, esse modelo acaba tornando todas essas áreas - em diferentes paí
ses, de culturas das mais diversas - cada vez mais semelhantes entre si. Seria um
processo de museificação urbana em escala global: e os turistas acabam visitando
as cidades do mundo todo como se visitassem um único e grande museu.
Para Jeudy, a cidade se tornou o principal alvo dos cuidados patrimoniais
e por esta razão passou a sofrer cirurgias plásticas ou liftings. Sua restauração
permanente é o espelho atual do porvir das sociedades contemporâneas. A con
servação patrimonial, muitas vezes obsessiva, corre o risco de petrificar a própria
cidade^que se transforma assim em um museu de si mesma. E prevalece o jjnncí^
pio da reflexividade: princípio por excelência da gestão urbana, baseado na idéia
de que uma sociedade tem melhores condições de gestão quando se vê refletida
em seu próprio espelho. Espelho este que seria tanto das cidades quanto das so
ciedades contemporâneas.
A noção de reflexividade é, para o autor, um modo determinante de preserva
ção da ordem simbólica de uma sociedade. M as essa preservação se tornou mun
dial, “ globalizada”. O que interessa é a forma pela qual um certo enquadramento
simbólico assegura a trasmissão de sentido. A questão patrimonial se torna cada
vez mais um_problema de transmissão_de sentido. O enquadramento simbólico
supõe uma determinada gestão das representações comuns de uma sociedade ou
de uma cultura. E a transmissão de sentido se vê, por vezes, representada como
uma ordem de transmissão. E esta ordem de transmissão, por sua vez, está cada
vez mais integrada a um processo que seria o próprio processo de reflexividade.
A lógica patrimonial conduz a uma apologia da reflexividade, ou seja, a um estí
mulo contínuo de se olhar no próprio espelho. O princípio de reflexividade, um
dos motores da lógica patrimonial, pode evidentemente provocar efeitos de satu
ração, como toda longa observação no espelho, pois a reflexividade patrimonial
se desenvolve a partir de um certo exibicionismo cultural. Tudo está à mostra,
tudo se tornou visível, até mesmo supervisível, o especular passou a ser espetacu-
lar, principalmente nas cidades contemporâneas.
Torna-se, pois, de fato, cada vez mais urgente, a respeito das cidades contem
porâneas, um questionamento mais complexo e crítico da noção de património
cultural e das práticas de intervenção urbanas que lhe são tributárias. Henri-
Pierre Jeudy busca nos dar ferramentas teóricas para refletir sobre questões bem
atuais. O que são exatamente os patrimónios urbanos, ou os ambientes culturais
contemporâneos? Em que medida estes devem ou não ser preservados, ou ainda,
como se diz, “ reviltalizados” ? Qual o sentido da atual patrimonialização ou da
museificação (transformação da cidade em museu) das cidades? E o que pode
mos dizer do uso contemporâneo que se faz da cultura como estratégia principal
dos novos projetos ditos de revitalização urbana?
Nas últimas décadas, vêm se acentuando em todo o mundo iniciativas que
podem ser classificadas como “culturalização” ou “musealização” (construção de
vários novos museus) das cidades contemporâneas. Essas intervenções muitas
vezes se iniciam com uma patrimonialização das próprias cidades, com vistas a
uma revitalização urbana que possibilite sua efetiva inserção na competitiva rede
global das cidades turísticas.
A noção de património cultural urbano - e seus conceitos correlatos, histo
ricamente construídos - é hoje tratada como se fosse algo natural, como se a
conservação patrimonial se desse quase por instinto, e esta “ naturalização”, ini
cialmente conceituai, se rebate nos próprios procedimentos técnicos e práticos
de intervenção e preservação dos patrimónios urbanos. Assim se dá uma “ natu
ralização” dos procedimentos técnicos, decorrente da naturalização das noções
conceituais, que se tornou tão intensa a ponto de contruir um pretenso consenso
entre os discursos teóricos, práticos, institucionais e políticos sobre a questão:
“A preservação é uma prioridade da gestão urbana”.
A preservação do património urbano destaca-se hoje como uma das princi
pais estratégias para a revitalização de certas cidades. Os casos orientais, principal
mente das cidades japonesas - nas quais a questão do património não tem tanta
importância, uma vez que as tradições ancestrais se mantêm vivas no cotidiano
da população - , poderiam ser vistos, como sugere Henri-Pierre Jeudy, como um
contraponto aos casos europeus, ou seja, à atual museificação e petrificação das ci
dades européias, que chegam a ser consideradas cidades mortas. O caso brasileiro
parece estar entre esses dois “modelos” : patrimonialização (européia) e inexistên
cia da noção de património (oriental), muito embora os procedimentos técnicos e
práticos sejam, em sua maioria, uma simples importação do savoir-faire europeu.
Pensar em outra forma de intervir torna-se, então, urgente, diante da tensão
atual entre as forças de preservação e de destruição, que têm como principal pal
co de batalha as cidades contemporâneas globalizadas.
No Brasil, os projetos de revitalização urbana de caráter patrimonial, realiza
dos por intermédio da conservação do património cultural, vêm se multiplican
do em diferentes cidades consideradas históricas. A maior parte desses projetos
repete a mesma fórmula, sem questionamento crítico: patrimonialização, esteti-
zação, espetacularização, padronização dos espaços, e o que é o pior, gentrifica-
ção (expulsão dos moradores mais pobres das áreas de intervenção, que recebem
moradores mais abastados ou novas funções elitizadas).
O projeta, dito de revitalização, do Centro Histórico de Salvador (Pelourinho),
por exemplo, literalmente “limpou” o sítio histórico ao expulsar seus habitantes e
suas respectivas práticas cotidianas populares e substituí-las por simulacros cultu
rais turísticos. O antigo centro, tombado pela Unesco como património mundial
da humanidade, vem sendo restaurado desde 1992 (hoje na sétima etapa, com au
xílio do BID, programa M onumenta), por meio de um processo de patrimonializa
ção - restauração de fachadas, do espaço público (muitas vezes criados em antigos
pátios internos coloniais) - de mudanças de uso e de gentrificação, com a remoção
de mais de 2 mil famílias para dar lugar a restaurantes, bares e lojas de suvenires pa
ra turistas - que faz parte de uma agenda maior, de um plano estratégico da agên
cia estadual de turismo. O plano, que visa vender o produto cultural “ Pelourinho”
para turistas, conta ainda com uma programação de animação cultural nas praças
criadas (usando os antigos quintais das casas coloniais) - “ Pelourinho Noite &
Dia” - que visa exatamente dar “vitalidade” ao local. A nova vitalidade inventada
para turistas, com baianas fantasiadas para fotos e rodas de exibição de capoeira
regional, é totalmente artificial, cenográfica. O projeta faz parte de um contexto
político específico, mas se insere em uma estratégia de marketing genérica que visa
construir uma nova imagem urbana (no caso, da primeira capital do país), a prin
cípio ancorada na valorização da sua “ identidade” cultural singular.
Espelho das cidades é uma excelente contribuição no sentido de tentar desna
turalizar algumas noções e conceitos ligados tanto ao processo de patrimonializa
ção quanto ao de estetização das cidades contemporâneas, cidades globalizadas,
cada dia mais padronizadas e uniformizadas. A maior contribuição deste livro es
taria portanto no questionamento dos atuais projetos urbanos contemporâneos,
ditos de revitalização urbana, que vêm sendo realizados no mundo inteiro segun
do uma mesma estratégia - genérica, homogeneizadora e espetacular - de mar-
kenting ou branding (mais recente substituto contemporâneo do planejamento)
urbano. Henri-Pierre Jeudy busca ir além da simples crítica à espetacularização
urbana contemporânea e, ao homenagear seu mestre, Henri Lefebvre, nos indica
uma pista para sair deste ciclo vicioso contemporâneo - do especular que se tor
na espetacular - que seria de se vislumbrar na própria vida cotidiana das cidades
contemporâneas, e de seus cidadãos, caminhos alternativos a este processo.

Paola Berenstein Jacques


Faculdade de A rquitetura Universidade Federal da Bahia
PR IM E IR A PARTE

A M A Q U I N A RI A PA T RI M O N I A L
0 P R O C E S S O DE R E F L E X I V I D A D E

Ainda se ouve falar que a conservação patrimonial assegura, de alguma maneira,


o trabalho de luto. Trabalho que se torna necessário_para que possamos suportar
o desaparecimento. Bastaria conservar tudo para que a mente se mantivesse tran-
qüila? A conservação patrimonial se encarrega do depósito das lembranças e nos
libera do peso das responsabilidades infligidas à memória^ A profusão de locais
de memória oferece uma garantia real contra o esquecimento. M as esse trabalho
de luto, se exercido em demasia, não corre o risco de provocar excesso de tranqui
lidade nas memórias coletivas? O “dever de memória” que hoje nos é imposto ins
taura um estado culpabilizante estimulado pela necessidade moral da rememora
ção. Não temos mais a liberdade de esquecer, pois isto seria um crime. “ Esquecer
é ocultar”, tal seria a nova regra de uma boa gestão de memórias. Censuramos as
gerações que nos precederam por terem tão facilmente esquecido. É provável que
elas tenham achado possível viver o tempo presente tal como ele era. A partir de
agora é necessário que a lembrança nos faça sentir culpados, que ela nos provo
que vergonha, vergonha causada pelo simples desejo de esquecer.
Se o risco do esquecimento engendra a culpa e legitima os projetos de revisi-
tação da história, a conservação patrimonial nos dá como compensação a nostal
gia. Mas_o gozo da nostalgia se transforma depressa em morbidez. A repulsão ins
pirada pela exibição dos vestígios conservados, da sua teatralização excessivamen
te despropositada, pode da mesma maneira engendrar o ódio ao património.
E somos tomados por ele quando o excesso de conservação, o poder infernal das
raízes anulam a vida presente, destituindo-a de seus encantos. Quando não supor
tamos mais viver com o que já passou, insurgimo-nos contra esse espelho das m e-
mórias bem-conservadas demais, que nos sitia e nos impele a contestar qualquer
afastamento do presente. M as é impossível praticar uma lobotomia da memória.
Os diferentes momentos vividos ao longo de uma existência representam, como
cartões-postais, atmosferas da vida cotidiana que não poderemos jamais esque
cer. Este jogo infernal da memória é controlado pela ordem patrimonial, que o
solidifica ao lhe impor um sentido de espetáculo. O prazer da restituição “viva”
nos faz viver como “neomortos”, como seres já mortos que continuam em estado
de sobrevida. A exibição patrimonial imobiliza a própria nostalgia e anula a aven
tura da transmissão. Prevalece o princípio da retroação perpétua. É difícil acredi
tar em uma incerteza aventurosa daquilo que pode ser conservado e transmitido,
uma vez que a própria ordem precede, determinando-a, a lógica da transmissão.
A organização patrimonial do final do século XX não conseguiu até abolir o ato
de transmissão, suprimindo-lhe a possibilidade de ser acidental?
“ O espírito patr i moni al ” reina sem ter necessidade de ser reconhecido como
tal. Ele impõe uma finalidade à própria criação: o que é criado no tempo pre
sente pertence ao registro da conservação presumida para os tempos futuros.
O destino de toda obra artística é assegurado pela transmissão museográfica. Um
artista pode perfeitamente resguardar-se de ter intenções “patrimoniais”, pois sa
be que a exposição, por menor que seja, é o fato consumado da transmissão.
“ O espírito patrimonial” é proteiforme: entre o etnólogo que ajuda o conserva
dor a preservar um savoir-faire local, o artista que prepara sua entrada no museu
e as pessoas que juntam suas fotografias de família para expô-las na antiga sacris
tia do vilarejo transfor mada em centro cultural, não existe grande diferença.
O que prevalece é o engodo de uma atualização do que se guarda e se transmite.
A regra é clara: para que o passado não seja abolido é preciso que tudo o que se
vive seja atualizado. As diferenças temporais entre o passado, o presente e o futu
ro são aniquiladas graças aos simulacros dessa atualização. O passado e o futuro
parecem se conjugar no presente, ao passo que o próprio presente se torna o tem
po da reprodução antecipada do passado.
A lógica da conservação patrimonial exclui o acidente de transmissão. Como
se fosse uma peça faltando em uma coleção, o que foi esquecido pode ser desco
berto a qualquer momento, para entrar de imediato em procedimento de con
servação patrimonial. Assim, não se trata mais de acidente, mas do “ eterno es
quecido”. Se a lógica patrimonial fosse confrontada com outra coisa que não ela
mesma, é certo que perderia seu poder de transmitir, uma vez que se chocaria
com a incongruência de um presente que não tem futuro. M as o que permanece
inacreditável é a própria evidência do objeto de transmissão. Um savoir-faire,
um moinho ou uma cabana de pescador não devem mais desaparecer. Entre o
gesto, a construção, a linguagem, não há espaço para escolha, tudo deve ser trans
mitido graças a uma operação prévia de conservação. Para além de seu objeto,
trata-se, pois, do princípio da transmissão em si, transmitido como um ato e um
dever coletivos que ninguém tem o direito de contestar. Este formalismo da trans-
missão acentuou-se a ponto de tornar puramente maquinal o ato de transmitir,
concedendo-lhe um valor simbólico enunciável, que pode ser gerado e indefi
nidamente reproduzível. Não há mais segredo. A transparência do que é trans
missível anula a possibili dade de imaginar o que poderia até ser ocultado da
memória. A criança se torna o receptáculo desse fenómeno automático da trans
missão. A conservação patrimonial lhe dá a certeza de uma ordem do mundo e
de uma organização do sentido. Contudo, essa ordem simbólica é impregnada de
arcaísmo, a ponto do objeto da transmissão lhe parecer sempre antigo e já deslo
cado. As imagens estereotipadas de um mundo passado, que a criança não pode
ter conhecido, são-lhe apresentadas como um outro mundo, da mesma maneira
que o mundo futuro e desconhecido é para ela o objeto de uma ficção. E as ima
gens desse mundo passado não têm o poder de fantasmas e espectros, e mesmo
sua inquietante estranheza se tornou algo trivial. Ao permanecer detentora única
da lógica de reprodução das sociedades, a transmissão se torna puro artifício.
A melhor testemunha desse fato é o “ tesouro vivctLaquele cuja totalidade .
do corpo nunca deixa de se representar como tópico da transmissão de um sa
voir-faire; um corpo maquinal. O conjunto de seus gestos precisos, repetidos,
tornados visíveis para um público suscetível de se emocionar e se admirar, con-
fere-lhe a majestade e o torna quase atemporal. Ele é uma engrenagem mágica
dentro da herança cultural de uma sociedade. Antes de morrer, ele cria esse
efeito de eternidade garantido pelo mais alto grau da tradição. E venerado como
um deus e todos tremem ao vê-lo, como tremiam ao olhar o avô trabalhando
em seu ateliê de ferreiro. Este avô que, se ainda estivesse vivo, também poderia
adquirir o status de “ tesouro vivo”. Para se chegar a esse ponto, é necessário cons
tatar que a ruptura precisou ser violenta no universo da produção industrial.
Tantos avôs e avós poderiam ter sido “ tesouros vivos” ! Todo savoir-faire, mesmo
tratando-se, em uma época pouco longínqua, de uma série banal de gestos, foi
transfigurado em uma verdadeira arte consagrada e protegida para ser admi ra
do pelas gerações futuras. Como e por que se lembrar de uma arqueologia de
gestos em vias de desaparecer? Previsão de uma catástrofe planetária? Os relatos
de ficção científica nos revelam freqüentemente a maneira de viver dos sobrevi
ventes após um desastre total, e não deixam de exibir o retorno de práticas anti
gas que permitem melhor assegurar a sobrevivência. A conservação patrimonial
teria como fi nal idade secreta pr eparar-nos par a situações pós-catastróficas?
E por que censurá-la por isso? Nossos antepassados não guardavam tantas coi
sas que não serviam mais para nada, prevendo tempos futuros? Tempos que, em
suas mentes, anunciavam-se como mais difíceis de viver que o tempo presente.
O património: um gigantesco potencial de meios de sobrevivência após o desas
tre. Os “ tesouros vivos” têm um tal treinamento que poderão servir de líderes
junto aos que serão incapazes de reencontrar a boas e velhas práticas de outrora.
Acontece que eles também vão morrer. Para lhes dar uma certa eternidade, é pre
ciso torná-los virtuais. Continuaremos a vê-los em imagens digitais ou ern fitas
de vídeo que servem de arquivos.
UM E S P E L H O D E C O T O V I A S 1

As estratégias da conservação caracterizam-se por um processo de reflexividade


que lhes dá sentido e finalidade. A si gni fkação contemporânea do^conceito de pa
trimónio, cultural vem de uma reduplicação museográfica do mundo. Para que
exista património reconhecível, é preciso que ele possa ser gerado, que uma socie
dade se^veja o espelho de si mesma, que considéré seus locais, seus objetos, seus
monumentos reflexos inteligíveis de sua história, de sua cultura. É preciso que
uma sociedade opere uma reduplicação espetacular que lhe permita fazer de seus
objetos e de seus territórios um meio permanente de especulação sobre o futuro.
Estamos longe das idéias que W alter Benjamin expressou no Exposé de 1935, no
qual incluiu esta frase de M ichelet como epígrafe da seção I: “ Cada época sonha
com a época seguinte. Futuro! Futuro!” W alter Benjamin, em Livres des passages
mostrou como as fantasmagorias de um “ sonho coletivo” antecipam o futuro,
mas somente na medida em que “ cada época, de uma forma inversa, procura
em seu sonho desprender-se do sono”. Como escreveu M iguel Abensour: “ Está,
pois, terminada, a representação sorridente, que chega ao entorpecimento de tão
repousante, de uma viagem onírica em direção ao futuro próximo, de uma suave
entrada, sobre águas sem ondas, na enseada do futuro; que seja substituída a par
tir de agora pela idéia, pela exigência, pelo imperativo de um trabalho dificultoso
- quão incerto é o resultado! - para escapar desse estado no qual, sob máscaras se
dutoras, ronda a morte”.2M as não se sonha maisjcom a época seguinte. O sentido
mais corrente atribuído à conservação patrimonial é o da manutenção da ordem
simbólica das sociedades modernas. A dinâmica de seu objetivo político e social
vem de uma resistência que se manifesta pela consagração cultural dos vestígios
da H istória contra os riscos de desestruturação. O processo de reflexividade, que
incita toda estratégia patrimonial, consiste em promover a visibilidade pública
dos objetos, dos locais, dos relatos fundadores da estrutura simbólica de uma
sociedade. Alguns etnólogos nos informam que a ordem simbólica é anterior ao
funcionamento de uma sociedade, e que ela o teria estruturado, mas o desenvol
vimento patrimonial contemporâneo revela como essa mesma ordem simbólica,
representada por objetos, monumentos e locais, impõe-se como a aventura de
nossa própria inteligibilidade. Produzimos, damos forma, vendemos representa
ções de ordem simbólica, uma vez que o valor simbólico e o valor de mercado
do objeto se confundem. Este é um dilema da gestão contemporânea dos patri
mónios: se o património não dispõe de um estatuto “ à parte”, se ele se torna uma
mercadoria como as outras (os bens culturais), perderá seu poder simbólico.
É necessário que, de alguma maneira, o património seja excluído do circuito dos
valores mercadológicos, para salvar seu próprio valor simbólico. De imediato a
prospectiva patrimonial se vê confrontada com uma contradição: por um lado,
os patrimónios não podem ser tratados como produtos de marketing, mas, por
outro, não existe desenvolvimento cultural sem comercialização. Presentemente,
as estratégias mais correntes orientam-se na direção de uma combinação que
contenha esta contradição: o que é tido como sagrado não impede a circulação
de valores materiais.3
Esse processo de reflexividade não é universal. No Japão, por exemplo, falta
sentido, a priori, à reflexão sobre os patrimónios, porque tudo pode ser conside
rado símbolo patrimonial. A palavra “património” não existe na língua japonesa.
A própria ausência desta palavra poderia significar que a sociedade japonesa não
tem necessidade de se olhar no espelho para assegurar a perenidade de sua ordem
simbólica? Existe, entretanto, aos olhos de um ocidental, uma atmosfera patrimo
nial de fato, a qual seria sustentada pela presença contínua do religioso na vida
cotidiana. M as o princípio de consagrar um local, de designá-lo como sagrado
a fim de atribuir-lhe um valor patrimonial não teria sentido, uma vez que bom
número de locais (e sobretudo os inumeráveis templos) já são sagrados. Tudo
funciona da mesma forma como paisagem. Tanto os exíguos jardins diante das
casas quanto os inúmeros conjuntos urbanos cujo emaranhado cria um efeito de
paisagem, ao menos para o olhar de um estrangeiro. Contudo, quando se pensa
na paisagem, de um ponto de vista ocidental, fala-se do que se concebe como tal.
Trata-se de um arranjo reflexivo de um espaço determinado. No Japão, o patrimó
nio ]á_está lá, não tem necessidade de ser refletido. É sob pressão dos ocidentais
que osjaponeses são levados a pensar sobre seupajrimôni o.
Quando os japoneses vão às capitais européias e tiram milhões de fotogra
fias de monumentos históricos, parecem expressar uma admiração pelo passado
dessas grandes cidades. Sua paixão pela fotografia, com freqüência resumida a
uma simples gestualidade automática, satisfaz-se com um “estado de petrificação
monumental”, uma vez que tudo o que foi visto se torna arquivo. Essa riqueza
simbólica dos centros históricos, mesmo que se apresente ainda bem viva, graças
à massa de turistas que sobre eles se precipita sem cessar, entra, apenas por sua
presença, por meio da fotografia, na ordem serial das imagens de objetos patr i
moniais. E podemos imaginar que um bom número desses monumentos já po
dem agora, e seguramente nos tempos futuros, ser reconstituídos em outro lugar,
longe de seus locais de origem. A exemplaridade de um património apresenta a
vantagem de ser “ sem fronteiras”. Ao mesmo tempo, a concepção contemporânea
do património continua sendo uma questão ocidental que, uma vez integrada à
cultura nipônica, não pode ser tratada senão no “ segundo grau” da reflexividade:
a conservação patrimonial é tida como um modelo pronto, como um produto
de importação, como se o processo de reflexividade já tivesse ocorrido e estives
se, por assim dizer, incorporado ao próprio produto. A sociedade japonesa não
teria ela mesma necessidade de refletir em sua própria construção patrimonial.
Contentar-se-ia em responder a um “dever patrimonial” que passou a adquirir
uma dimensão universal.
Na cidade de Osaka - curiosamente considerada de pouco interesse pela
maior parte dos guias turísticos - existe um local mais particularmente simbóli
co, ojEbisu bashi. É a ponte da “ azaração”, a ponte dos encontros. A noite, quan
do todos os anúncios luminosos cintilam com suas múltiplas cores, esse local se
torna futurista, tal qual um local de ficção científica. O prédio das cervejas Kirin,
projetado pelo arquiteto Shin Takamatsu se parece com uma fábrica dos tempos
futuros, e sua silhueta imponente e pesada, em uma das extremidades da ponte,
causa a impressão de uma estranha ameaça. Do outro lado da ponte, um antigo
prédio construído provavelmente no começo do século foi conservado em seu
estado um tanto decadente, com a fachada protegida por um revestimento verde
de malha, que permite entrevê-la na sombra. Pode-se pensar que a decisão de
conservar essa construção foi tomada já há um certo tempo, mas que persiste
uma incerteza a respeito de sua restauração e de seu uso. Quando se observa o
conjunto do local, constata-se que esse ato de conservação permanece arbitrário
e corresponde a uma necessidade bem recente, como se fosse preciso salyar do_
desaparecimento o último traço deum edifício do tempo passado, do qual quase
todo mundo ignora a função original.
Na Europa, pode-se interpretar o fervor contemporâneo pelo culto do passa
do como um meio de conjurar essa ameaça que pesa permanentemente sobre o
homem moderno: a possibilidade de perder o sentido de sua própria continui
dade. A conservação se torna uma “ questão urgente” e sua aceleração tende a fa-
zer do próprio presente um património potencial prioritariamente percebido na
perspectiva de sua perda. O património diz respeito, pois, tanto a uma “ história
longa”, aquela que dá sentido à continuidade, quanto a uma “ história imediata”,
relacionada à experiência dos indivíduos ameaçados pela perda de sentido de sua
própria continuidade. O que predispõe à seleção na conservação patrimonial?
O princípio de reflexividade permite acreditar que, contra o risco do esqueci
mento, as escolhas da conservação patrimonial não podem mais ser arbitrárias.
Tudo concorre virtualmente para produzir um efeito de espelho salutar para a
preservação da ordem simbólica de uma sociedade. A produção atual de “ lugares
memoráveis”, locais e monumentos, tende a provar que seu aspecto simbólico é
“ gerável”. Os organizadores do património podem assim acreditar que detêm os
meios de tratar as representações comuns desses “ lugares memoráveis” como um
capital simbólico. As memórias são “ colocadas em exposição” para que o reconhe
cimento de sua singularidade seja igualmente assegurado. O testemunho tem que
ser exemplar. A idéia de “ reviver o passado”, de lhe restituir vida, é confirmada
por um bom número de antropólogos, de conservadores e mesmo de políticos
eleitos que crêem no real poder, social e cultural, da atualização. A gestão contem
porânea dos patrimónios só tem finalidade se estiver referida a uma vontade su-
postamente coletiva de reatualização permanente do passado. Inserido em uma
atmosfera de resistência comum ao esquecimento, esse trabalho de rememora
ção impõe-se como um dever cívico e como uma fonte moderna de satisfação
para as massas.
Um dos primeiros objetivos da ordem patrimonial é o de expressar a identida
de de uma região, de uma nação, de um acontecimento histórico... Essa referên
cia obrigatória à identidade, transformada ela mesma na origem dos procedimen
tos de reconstituição do passado, ou de sua preservação museográfka, parece
se opor ao fenómeno da globalização, funcionando como uma defesa contra a
perda das identidades culturais. O que parece evidente para um ocidental é que,
no Japão, um risco desse tipo não é decisivo. A identidade cultural não tem neces
sidade de ser representada ou reivindicada, ela está lá, e manifesta-se de maneira
soberana. O princípio da atualização do passado não vem salvar as identidades
ameaçadas, ou de uma ordem simbólica que é suscetível de se desestruturar sob a
pressão da globalização. As tecnologias mais modernas da comunicação não obs
truem o exercício cotidiano das práticas simbólicas, mesmo as mais tradicionais.
Devemos daí deduzir que, em um país onde a expressão viva da cultura persiste
no cotidiano graças a uma multiplicidade de trocas simbólicas que envolvem o
próprio corpo, a referência ao património não tem sentido? Para os ocidentais,
a originalidade do Japão está relacionada ao fato da figuração da alteridade não
estar ameaçada pela globalização, levando a que o sentimento de pertencimento
cultural não tenha de fato necessidade de ser protegido. Curiosamente, o Japão
que se interroga desde algum tempo sobre a existência e a gestão de seu próprio
património é considerado, do ponto de vista ocidental, o perfeito modelo de ma
nutenção da integridade territorial das identidades culturais. O processo de refle-
xividáde impõe a seguinte regra: a identidade bem-preservada continua sendo o
signo futuro de uma alteridade inalterável. Como imaginar então que os turistas
japoneses possam procurar, sobre seu arquipélago, os mesmos efeitos de fascina
ção provocados pela monumentalidade das capitais européias? A vontade de ré
plica patrimonial não decorre na verdade de uma ironia objetiva? Em suma, uma
caricatura involuntária, ou não, do processo de reflexividade.
OS N O V O S P A T R I M Ó N I O S J Á A N T I G O S

Quem não sente ainda grande emoção ao passear por áreas industriais abando
nadas, fábricas desocupadas, ou portos onde gruas enferrujam, ou por estações
desativadas? Uma emoção estranha, uma vez que não está necessariamente re
lacionada, como freqüentemente se acredita, à nostalgia de uma outra época.
Nossa “ boa” consciência, por outro lado, nos coloca em estado de alerta: como
podemos sentir saudade de um tempo em que nossos antepassados eram conde
nados a horas de trabalho intensivo, em condições sanitárias difíceis? O silêncio
desses territórios abandonados, dessas construções desmoronadas, nos coloca,
contudo, em um estado de alucinação, uma vez que podemos ver os corpos, es
cutar vozes e gritos, ter a sensação de uma atmosfera de vida comum que a lite
ratura e o cinema nos sugerem o tempo todo. Um estado visionário, retrospecti
vo, que nos incomoda. Nenhuma sombra de inquietação, apenas a irrupção de
imagens de uma infância sempre sonhada, em meio à doçura de seus sofrimen
tos. Prosseguindo nossa caminhada, vemos erguer-se um edifício inteiramente
reconstituído, bem limpo, bem distinto dos terrenos vazios, porque parece ocu
pado. Êj3 museu. Sabemos que, ao entrar nele, não experimentaremos as mesmas
emoçõès. Aprenderemos coisas, veremos que ali tudo está correto, em ordem,
que as máquinas parecem prontas para funcionar, e que nenhum detalhe esca
pou à reconstituição do que foi o local de trabalho. Terminaremos até sabendo
“ como tudo se passou”. Se nossas imagens eram algumas vezes confusas enquan
to caminhávamos pelos terrenos abandonados, no museu elas recuperaram a apar
rência de_ordem, Como não apreciar essa ordem do museu? Ele preenche bem
sua função: é a evocação maquinal do que foi. Os últimos operários ainda vivos
na ocasião de sua criação talvez tenham se revoltado, dizendo que foram tratados
como mortos, e sobretudo alegando o tratamento “excessivamente cor-de-rosa”
dispensado às suas “ memórias operárias”. Terminaram cedendo. ErajD museu ou
o esquec im en to. Então cumpriram a tarefa da transmissão, comunicando aos
encarregados da “ etnologia de urgência” tudo que sabiam, tudo que pensavam
ter vivido. Fizeram a apologia desse templo de suas memórias que muita gente
iria visitar. Também pensaram que nem todas essas pessoas seriam turistas igno
rantes, que muitas delas compreenderiam, e que as crianças não podiam ignorar
como tinham trabalhado em um tempo que, para elas, já era tão longínquo que
dele não mais existia nenhuma representação.
O amor coletivo ao património, nos anos 1980, foi despertado pelo desmoro
namento dos modos de produção industrial. Qual foi então o interesse dos políti
cos? Naquela época, a cristalização coletiva em torno da defesa dos patrimónios
permitia dar uma certa consistência social aos programas políticos. A crise pr o
vocada pela transformação dos modos de produção era tratada dentro de uma
perspectiva de proteção e preservação dos vestígios e da parte ainda viva de toda
história social de uma região. Era preciso que os signos monumentais represen
tativos das memórias coletivas persistissem, assegurando a visão comunitária de
uma transfiguração possível para o futuro, sem produzir o mínimo repúdio ao
que havia sido. O que estava em jogo não era a transmissão patrimonial tradicio
nal, mas uma “transmissão em ato”, da qual o conjunto da comunidade deveria
participar. Ao invés de ser imposta como uma escritura da história da qual as pes
soas estavam excluídas, uma escritura feita sem elas, da qual contudo ainda eram
as testemunhas vivas, essa construção da transmissão tornara-se, na época, uma
questão de todos. Para os políticos, era óbvio que o ganho era considerável,
uma vez que podiam fazer vibrar as emoções coletivas e eles pr ópri os parece
rem absolutamente sinceros. E foi a par tir da constituição do património indus
trial que uma propensão pela defesa dos “ novos” patrimónios propagou-se.
A arma do património faz afluir atrás de si uma forma humanista universal
que permite ao poder político conseguir o assentimento geral. Uma dinâmica da
reapropriação legítima, ao se opor tanto à ameaça de desaparecimento quanto
à de “ despossessão”, provoca a mobilização social em torno da defesa comum
das identidades. Podemos nos perguntar de que maneira as diferentes regiões da
França, no momento em que se realizava a descentralização, se sentiam ameaça
das de perder sua identidade. Essa reivindicação identitária, que respondia a um
instinto de sobrevivência da comunidade, parece ter sido exibida de maneira des
proporcional em relação à realidade da ameaça. A função identitária concedida
ao património parece ter caído ainda na armadilha da evidência de sua necessida
de. Ao dar esse sentido identitário à preservação das memórias coletivas, a lógica
da conservação cumpre sua função social e política: todo sírnbolo patrimonial
vem conjurar a “ morte das antigas trocas simbólicas” cobrindo, por intermédio
da nostalgia compartilhada, o déficit de sentido induzido. O que está em vias de
desaparecer deve ser magnificado. O espírito patrimonial oculta, pela imposição
de uma conduta retrospectiva, o trabalho arqueológico da memória, essa recons
trução incerta do que foi, e que supõe uma destruição parcial do que nos é dado
ver. A predação arqueológica ou a busca infinita. Os usos culturais dos espaços
industriais não impedem o jogo das memórias e esse jogo se torna às vezes ele
mesmo arqueológico quando, nas sinuosidades da percepção dos lugares, advém
da visão incongruente dos vestígios. O elo entre a memória e a imaginação se
nutre dessa incongruência das antecipações invisíveis, como se fossem provas fic-
cionais do que foi vivido nesses lugares. É curioso constatar o quanto a própria
memória se sustenta com a oposição entre o patrimonial e o arqueológico. A ati
tude arqueológica da memória provém de uma aventura, e não de uma vontade
de se precaver contra as ameaças de um desaparecimento que, ao contrário, con
tinua sendo a origem de sua estimulação. Ela não mergulha na procura de uma
identidade que se tornou fraca demais.
O património industrial impôs-se como uma novidade porque permitiu,
essencialmente, legitimar as reivindicações de uma identidade considerada
oculta, até mesmo culpada. Era preciso que o “ mundo operári o” apregoasse
a soberania de sua identidade diante das identidades das outras classes sociais
proprietárias das grandes riquezas culturais e que as usufruíam de maneira
elitista. O etnólogo de plantão nas áreas industriais desativadas era, nos anos
1970 e 1980, um verdadeiro missionário, ocupando seu tempo em descobrir e
defender identidades operárias não reconhecidas. Ele pode se orgulhar de ter con
seguido devolver a dignidade patrimonial às fábricas, mesmo continuando a se
queixar do interesse limitado manifestado pelas coletividades públicas. De fato,
o património industrial foi banalizado, mas ele requer tamanho investimento pa
ra sua conservação e manutenção que as coletividades públicas não conseguem
participar. A Inglaterra é sempre citada como a referência ideal em matéria de
património industrial, porque numerosos locais foram conservados, no campo
da metalurgia, já há muito tempo. Na França, os escolhidos não questionam a im
portância do património industrial, mas raramente estão dispostos a assumir o
custo de sua manutenção. Se a conservação patrimonial das áreas industriais fosse
estabelecida em escala européia, ela poderia ser mais bem repartida. Bastaria que
os locais preservados servissem de exemplo para todos os países da Comunidade,
o que limitaria o custo económico bastante elevado de sua manutenção. Aceitar
a hipótese de uma repartição, em escala européia, dos locais e das construções
escolhidas como testemunhas da produção industrial do século XI X e da primei
ra metade do século XX, implicaria o término da competição das reivindicações
identitárias locais. Se os ingleses já há muito tempo mantêm os altos fornos, os
franceses também têm de fazer o mesmo? Deve-se seguir a regra que diz “ a cada
um seu património” ou se pode cogitar de uma distribuição européia dos mode
los de património industrial? Se a referência identitária continua sendo a razão
principal, a divisão territorial dos modelos de conservação patrimonial tem pou
ca probabilidade de ser aceita. Contudo, a configuração dos locais e a transmissão
dos savoir-faire são geralmente idênticas. A reivindicação identitária traduz-se de
fato pela repetição idêntica dos modelos conservados. Considerar que os altos
fornos ingleses possam ser testemunhas das memórias operárias da produção
siderúrgica de uma determinada região da França poderia ser interpretado como
uma traição se comparada ao respeito inspirado pela singularidade, ao menos
ilusória, das identidades locais. Entretanto, é possível imaginar que no final do
século XI X a comunidade operária era muito mais unida, e que a apropriação
identitária e local dos modos de produção não faria nenhum sentido. Desse m o
do, a conservação patrimonial teria imposto uma visão identitária que não é de
nenhuma maneira constitutiva das memórias coletivas operárias.
É claro que a reivindicação das identidades não tem a mesma força e a mesma
legitimidade “vital” numa situação em que sua expressão passa pelo espetáculo
de um chauvinismo consensual animado pelo prazer do folclore.
Os signos identitários não expressam uma soberania que lhes seja própria,
funcionam neste caso como “ marcadores”, índices de uma singularidade cultural
mantida e exibida.
O valor patrimonial que lhes é concedido faz um papel de “ marca” - ele é
a garantia de sua autenticidade. A totalidade da maquinaria patrimonial que
é apresentada segue apenas uma única via: a do reconhecimento institucio
nal que o património confere a qualquer forma de reivindicação identitária.
O equilíbrio político e social que resulta disso parece ter sido alcançado. A “pa
trimonialização”, poder-se-ia dizer, permitiu, em um período de vinte ou trinta
anos, resolver boa parte da violência das metamorfoses locais, regionais, ur ba
nas, pela assimilação de um “ dever de memória” em relação à reivindicação iden
titária. O “ é preciso não esquecer” pôde suportar o entusiasmo coletivo porque
se transformou em prazer de reconhecimento de si mesmo naquilo que estava
em vias de desaparecer. No exercício dessa psicanálise social e cultural, podemos
sempre dizer a nós mesmos que os excessos de exploração de uma identidade
reivindicada e exibida não são senão resíduos de um chauvinismo inofensivo, e
que a lobotomia das memórias coletivas teria com toda certeza provocado um
desastre coletivo.
Passado o tempo das energias reunidas para defender todo o poderio das
identidades culturais, para provocar um sobressalto nas memórias coletivas, so
mos forçados a reconhecer que a petrificação patrimonial já concluiu sua obra.
Passou-se para o estágio da “ manutenção patrimonial”. A encenação de grandes
projetos de preservação prosseguirá, uma vez que o ato de consagração patrimo
nial continua a desempenhar um papel salvador, mas o apreço coletivo que lhe
deu origem diminuiu sensivelmente. Pelo fato de haver fundado sua dinâmica
no princípio da revelação do que estava escondido, o empreendimento patrimo
nial primeiramente exibiu uma certa violência, cujo objetivo era tornar visível
ao público todos os “ instrumentos de tortura” da vida operária. Seu campo de
investigação tinha que se impor como uma verdadeira e perigosa anamnese. Um
eminente professor da matéria dizia que a arqueologia da indústria encontrava-
se na mesma situação de um pintor em uma construção, ao ter que arrancar sete
camadas sucessivas de papel pintado. Essa idéia, tão cara ao arqueólogo, de que
ele sempre tem alguma outra coisa a descobrir sob o que já foi descoberto via-
se confirmada, por intermédio do poder exercido pelo próprio ato de desvenda-
mento. Como um verdadeiro revelador, o património industrial visava mostrar
aquilo que nunca ninguém quisera ver: como se passara a exploração do homem.
O propósito era tornar objetiva a total ambivalência, com referência aos “ instru
mentos de trabalho”, entre a representação da tortura e da grandeza da humanida
de. Exibida, colocada no museu, passada pelas mãos dos arqueólogos, etnólogos
e conservadores, essa ambivalência que se manifestou cada vez que se pensou
em conservar ou destruir os “ instrumentos de trabalho”, por ocasião de revoltas
e de insurreições, desapareceu: foi inteiramente esvaziada de sua intensidade vi
vida, para se tornar o resumo objetivo de uma história de bravura. Para dizer a
verdade, ela foi cindida em dois modos de representação: de um lado, a estética
populista da transmissão dos savoir-faire, de outro, a lembrança dos sofrimentos
do “ mundo operário”.
Desse modo, toda criança é induzida, quando visita uma fábrica transfor
mada em museu, a compreender que a grandeza do homem é proporcional à
veneração secreta que ele chegou a manifestar pelos instrumentos de sua tortura.
E para convencê-la da surpreendente riqueza humana da vida industriosa, é-lhe
demonstrado como seus antepassados utilizavam com discernimento, com uma
singular habilidade, instrumentos técnicos que constituem hoje restos de um ar
tesanato em vias de desaparecimento. O que deve se inscrever em sua memória é
a imagem ao menos estética das relações entre o homem e o instrumento, entre
o homem e a máquina. O património industrial parece ter conseguido impor sua
própria estética. O valor do objeto industrial ou artesanal não tem mais necessi-
dade de ser comparado ao da obra de arte. Ele adquiriu sua legitimidade estética,
sua função não mais aparece com a mancha de uma desconsideração induzida
pela categoria exclusiva de utilitário. Se antes o reconhecimento da qualidade
estética de um objeto tinha relação com sua inutilidade presumida, a partir de
agora ele mudou sua razão de ser: a função do objeto consagra seu valor estético
porque traduz a beleza retrospectiva de um savoir-faire. Essa admiração retros
pectiva pelo trabalho, reclamada pela disposição do objeto, surgiu do intenso
interesse do património industrial em se fazer reconhecer do mesmo modo que
qualquer outro património. O valor do trabalho foi assim reabilitado, tornando-
se componente de uma qualidade estética do objeto. O que chamamos de obra
é também um trabalho. E, curiosamente, os próprios artistas vêm reivindicando
incessantemente, e já há algum tempo, que seu trabalho seja levado em conside
ração, mais até do que sua obra. O valor do trabalho tornou-se equivalente a um
valor estético.
A encenação pública das “ memórias operárias” teria sido, de alguma maneira,
perturbadora para os capitães da indústria? M ostrar os “ instrumentos de traba
lho” que fizeram os homens sofrer nada tem de vergonhoso para um patronato
que não pára de provar o quanto as altas tecnologias permitem cada vez mais evi
tar essa “exploração física”. M esmo que a exploração persista, não é mais visível,
ela está dentro da cabeça, na verdade não está mais nos braços. E se está dentro
da cabeça, é uma questão de cada um, e não de quem poderia ser considerado o
explorador. Vê-se perfeitamente como o património das “ memórias operárias” é
salvador. Ele permite simultaneamente dizer que esse género de exploração física
terminou seu ciclo e que, apesar de tudo, na época desse “ universo industrioso” a
vida não era tão triste e negra como nos disseram.
O património industrial opera uma “metamorfose catártica” : a visão retros
pectiva da “vida operária” tornou-se tão estética que as lembranças de explora
ção e dominação terminam constituindo quadros de um “outro” mundo que
nunca mais será o nosso. Sempre que reaparecer em filmes (como Existenz, de
Cronenberg), será apresentado como se fosse um cenário arqueológico em meio
à ficção, para demonstrar todo o poder exercido sobre o corpo por um universo
de produção sem fim. Essa representação arqueológica de sujeição a um trabalho
coletivo injusto serve de enquadramento simbólico anacrónico a um universo fu
turista que, assim, demonstra sua inacreditável capacidade de se imaterializar.
Estamos longe, muito longe dessas imagens emocionais que surgem nos ca
minhos de uma memória errante, e que nos colocam às vezes por um instante
diante de um avô falecido que lembramos ter visto em pleno trabalho na forja
ou na floresta... Essa forma acidental da memória, essa forma incongruente que
contudo persiste como um elo afetivo de transmissão, prescinde de objetivação.
M as está condenada ao desaparecimento. Ela só pode continuar secreta, pois a
menor eventualidade de sua enunciação a submete ao poder da reflexividade
patrimonial. Ela não tem nenhuma possibilidade de apregoar sua autonomia.
A resistência ao esquecimento impôs uma objetivação racional da memória indi
vidual e coletiva. Toda imagem mnésica se vê, desse modo, presa na armadilha de
um cenário patrimonial que lhe impõe o sentido de sua manifestação. Resta-lhe
apenas o segredo. Enquanto o património dizia respeito à história tradicional
das igrejas e dos castelos, ele deixava a memória totalmente livre de seus recortes
e de seus retornos. A partir do momento em que incluiu a vida social em seu
conjunto, passou a impor um arcabouço semântico prévio às manifestações da
memória individual. E, sobretudo, parece ter realmente liquidado a conivência
implícita que animava e fundava a memória coletiva. Esse arranjo era necessário?
Dentro da perspectiva do dever de não esquecer, uma tal necessidade obteve for
ça de lei. É preciso de fato admitir que a organização patrimonial coincide com
“uma regulação ética” do tratamento reflexivo das memórias coletivas.
Na França, os ecomuseus que se desenvolveram a partir de 1970 em territó
rios onde as mutações industriais provocaram o fechamento de minas e fábricas,
terminarão, algumas dezenas de anos depois, fechando suas portas? Eles não apre
sentam mais a aparência de novidade. Não representam mais a época gloriosa da
reconquista das “ memórias operárias”. Além disso, a geração dos “velhos operá
rios” está em vias de extinção... Curiosamente, no Japão, o modelo de ecomuseu
francês foi retomado muito mais tarde. No Norte do arquipélago, na região de
A omori, criou-se um ecomuseu dentro das antigas minas de prata. Como na
França, as regiões mais decadentes do ponto de vista económico, devido à reestru-
turação da produção industrial, transformam-se em ecoterritórios cuja vocação
é fazer reviver as atividades de antigamente. Atitude que não poderia ser mais
clássica, excetuando-se o fato de que a cenografia adotada faz uso de robôs. Em
Osarizawa, dentro do dédalo de caminhos subterrâneos da mina, mais de uma
centena de robôs estão em ação, uns atrás dos outros, para lembrar como era
praticada a extração da prata e como viviam os mineiros. A mina se parece com
uma “casa noturna” com seus raios laser, suas células fotoelétricas que permitem
controlar o movimento dos robôs. Os visitantes pouco numerosos percorrem as
galerias, enquanto os robôs repetem a seu lado, com absoluta autonomia, os gestos
programados. O “ tesouro vivo”, o representante da “ memória dos mineiros” é um
robô! Note-se, contudo, que em Osarizawa a visita inclui uma seção de teatro po
pular e um almoço, que acontecem dentro de um prédio cuja arquitetura não foi
modificada. Essa cena teatral é realizada dentro das regras da tradição, não tem
nada de kitsch, uma vez que, muito pelo contrário, é uma repetição exata dos dr a
mas ou das tragicomédias que sempre foram encenadas nesse local.
Em geral, a reconstituição integral dos habitats japoneses, em um ecomuseu,
é executada de tal maneira que a representação do passado parece satisfazer a
um prazer coletivo de certo modo kitsch. Poderíamos pensar que o kitsch não é
redutível à réplica pouco natural das antigas construções e práticas ancestrais, já
que leva em conta o próprio aspecto do desaparecimento. Os locais de restitui
ção de diferentes habitats vindos de países europeus, presentes em quase todo
Japão, oferecem uma figuração abrandada do estrangeiro e da lembrança de sua
presença passageira pelo arquipélago. Assim, a representação tranqüila da “passa
gem dos estrangeiros” é reiterada pela própria conservação. Faz parte da arte do
kitsch japonês preservar, na encenação, a repetição do sentimento dessa passagem
sem contudo provocar uma nostalgia que, aos japoneses, não convém que seja
manifestada. A reconstituição kitsch aparece então como uma paródia implícita
das influências estrangeiras. No Japão, essas reconstituições podem coexistir sem
contrastar com o que decorre da mais “pura” tradição. É a própria idéia de recons
tituição patrimonial que não tem mais sentido? É provável que o sentimento de
perda não seja tão obsessivo quanto na Europa, onde os espetáculos patrimoniais
são sempre apresentados como “ reconstituições vivas”, cujo modelo predominan
te na França continua sendo o Puy du Fou.4 Cada vez que os habitantes de um
conjunto de pequenas cidades participam da construção de um espetáculo como
esse, está garantida uma “nova encenação” das memórias coletivas. Trata-se de
uma situação ideal para conciliar a preservação do património e o desenvolvi
mento cultural de uma região. Essa participação dos habitantes nos faz acreditar
que não se trata apenas de um espetáculo imposto, mas também de uma recons
trução cênica à qual as pessoas têm apreço e pela qual se cria uma renovação da
sociabilidade. A reconstituição kitsch apresenta-se no mínimo como uma seduto
ra projeção de diapositivos da grande paródia das memórias.
A I N T R O V E R S Ã O P A T R I M O N I A L DOS E T N Ó L O G O S

Ao voltar de terras longínquas, o etnólogo encerrou-se em sua terra natal achan


do que ali ainda descobriria riquezas simbólicas? Acreditou que não era tarde
demais para se interessar pela modernidade? Então será que pensou que sua posi
ção correta seria debruçar-se, com toda a acuidade do olhar, sobre as formas des
sa modernidade que continuavam primitivas? Saído de seu passado colonial, era
imprescindível que se reinserisse ali mesmo onde se imaginava necessário. Seu
confrade, o sociólogo, já havia determinado para si um bom posto e acreditava
ser detentor do conhecimento das sociedades modernas, inacessível àquele que se
comprometera com a colonização dos bons selvagens. M as o retorno do etnólogo
anunciava-se promissor, pois parecia ter chegado o momento das sociedades m o
dernas se olharem no espelho de suas origens. O património: era este o grande
ganho. Não a conservação maníaca dos museólogos, mas uma visão indulgente
e viva das tradições e dos ritos. Não somente o etnólogo encontrava uma função
social definida, trabalhando localmente na reconstituição patrimonial das tradi
ções, dos savoir-faire, restituindo uma certa atualização às memórias coletivas
regionais, como também satisfazia, particularmente na França, os objetivos da
descentralização, dando às políticas públicas uma arma que lhes permitia evitar
o saudosismo da conservação. Grande parte da etnologia concentrou-se então
nos estudos dos espaços locais, desenvolvendo o que se criou o hábito de chamar
de uma etnologia “ não exótica”.
Por que a etnologia conseguiu desempenhar esse papel? O que estava em jogo
não era a renovação do conjunto da disciplina? Trabalhando como arqueólogos
da vida cultural e social, os etnólogos adotaram uma atitude militante nos anos
1980. Faziam da defesa das identidades um princípio de reivindicação e esse en
gajamento político se traduzia, além disso, no trabalho que tinham sido chama-
dos a executar numa determinada região, trabalho justificado pela amplitude do
“património rural” e do “ património industrial”. Ao esgotamento dos campos
seguia-se a decadência das jazidas industriais, e o etnólogo podia se dedicar à
missão de fazer reviver os vestígios inscritos nas memórias coletivas, reanimando
as tradições, combatendo, por meio da energia de suas investigações, aquilo que
em determinada região aparentava estar morto ou arruinado. Ele assegurava o
famoso trabalho de luto de que políticos eleitos não podiam se encarregar, sob
pena de manchar a própria imagem. Essa missão ficava “ acima de qualquer sus
peita”, uma vez que os eleitos e seus eleitores encontravam nela os meios de fazer
funcionar um “espelho” vivo de sua própria região. Foi, por sinal, nessa mesma
época, que o património se tornou uma “ questão da esquerda”, um combate pela
democracia. A ssumindo seu papel de missionário, ou seja, de proteger, preservar
as “ riquezas simbólicas” das sociedades modernas, o etnólogo podia assegurar a
resistência aos riscos de uma desintegração do “ simbólico”, provocado pelos “ex
cessos da modernidade”.
A riqueza das pesquisas etnográficas confundiu-se com a multiplicação de
seus objetos, o que foi feito em detrimento de uma interrogação epistemológica.
Investir em um “ novo” objeto já passa como método epistemológico e o próprio
trabalho de descrição funciona, mais do que nunca, como método. Depois da
expansão do estruturalismo, as pesquisas teóricas foram abandonadas, substituí
das por uma arte da descrição que impôs sua própria finalidade. A etnologia da
França, vista e praticada sob o ângulo da patrimonialização, instaurou-se como
uma verdadeira máquina de investir e estudar tudo que compunha a riqueza
identitária das regiões. Por que esse mecanismo funcionou tão bem? A ausência
de resistência do objeto ao modo de investigação é com certeza uma razão impor
tante. Qualquer objeto em princípio considerado patrimonial teria que necessa
riamente responder de forma ideal às boas intenções do etnólogo. A apresenta
ção teórica e metodológica da imagem não era e nunca poderia ser questionada
por qualquer tipo de resistência do objeto. E a menor questão epistemológica
aparecia como uma ameaça, pois teria necessariamente englobado uma interroga
ção a respeito das próprias finalidades da pesquisa. As controvérsias que podiam
surgir do estudo desse ou daquele objeto se limitavam a “querelas internas” sobre
a distribuição dos territórios e dos objetos. Era suficiente que cada um encontras
se seu lugar sem perturbar os demais. Na época da criação dos primeiros ecomu-
seus, os etnólogos deram a entender que seus métodos eram agressivos, que iriam
provocar resistências e entusiasmos, porque reanimavam as memórias coletivas.
M as esse jogo de desvelamento não correspondia a uma interrogação teórica,
era apenas um meio de seduzir habilmente as comunidades envolvidas. M ostrar
o que não se mostra... Isso foi provavelmente o cavalo de batalha da “exposição
organizada” das memórias operárias.
A museografia provocou a perda dos objetivos teóricos da etnologia? A ex
posição museográfica oferece a garantia de um sentido preliminar às pesquisas
etnográficas. E a perspectiva epistemológica que ela pode ensejar diz respeito às
etapas da disciplina em si, à apresentação retrospectiva de seus campos e de seus
modos de investigação. A teoria não é exposta, mas em compensação o que con
tinua possível de ser exposto é o “olhar” que ela induziu, ou o modo de observa
ção que ela conduziu. Freqüentemente houve distinção entre o pesquisador e o
conservador, uma vez que pesquisar e conservar são atividades diferentes, mas a
relação de implicação recíproca entre a pesquisa e a conservação nunca foi ques
tionada. A conservação museológica surge como uma finalidade epistemológica
para a etnografia, uma finalidade a partir da qual qualquer reflexão permanece
puramente técnica e científica. A exibição das riquezas simbólicas regionais, l o
cais ou nacionais, só pôde ser feita em detrimento da completa “ aventura teóri
ca”. E o etnólogo se tornou ele próprio um “tesouro vivo”.
Essa etnologia não exótica, voltada para dentro e exibida no próprio território
francês, não soube competir com a modernidade. Separou-se dos grandes debates
filosóficos, encerrando-se em seu próprio campo de investigação a tal ponto que
os antropólogos americanos ainda se perguntam o que teria se passado na França
para se ter chegado a tamanha introversão. A etnologia francesa contentou-se com
acreditar em seu poder mágico: observar e descrever o não-exótico a partir de um
olhar habituado ao exótico. Utilizou seu próprio saber como um verdadeiro patri
mónio. Tudo o que acontece em uma sociedade moderna pode ser revisto pelo
olhar do etnólogo. Graças a seu conhecimento empírico, que lhe vêm da lembran
ça de suas ligações com os primitivos, o etnólogo se deixa tomar por sua própria
crença, no mínimo vertiginosa, na novidade inestimável de seu olhar. Nenhum
objeto lhe resiste, todo objeto está, pois, destinado a reaparecer de acordo com o
que o etnólogo diz sobre ele. Apesar das precauções que toma para que a singulari
dade seja respeitada, o objeto está desde já destinado a ser o fruto do discurso que
o põe em cena graças à “ escritura etnográfica”. E é esta que lhe confere o sentido.
O objetivo é tornar exótico o que nos é familiar demais? Praticar a “inquietante
estranheza” em que tudo nos parece tão familiar. Em suma: apresentar a perspec
tiva de um olhar que faz surgir o enigma do que nós acreditamos conhecer muito
bem. A estranheza não vem mais do objeto em si, das comunidades observadas,
mas tão-somente do olhar capaz de produzir efeitos de estranheza.
Prática adotada, tática repetida como um novo meio de investigação destinado
a demonstrar o potencial simbólico das sociedades modernas. Potencial sempre
revelado pelos estados de crise. M as a banalidade daquilo que é revelado ao olhar
pode parecer tão previsível que temos certeza de já o termos visto. Os ritos que
parecem próprios da “ modernidade” das sociedades aparecerão como uma subs
tituição analógica de ritos mais antigos. Eles se reproduzem sob modalidades nas
quais apenas a aparência é diferente, mas sua persistência impõe-se como garantia
da transmissão de uma coesão cultural relacionada à riqueza simbólica inesgotá
vel das sociedades. O etnólogo nos tranqüiliza: a “ modernidade” não é uma fonte
de rupturas, apesar de suas extravagâncias, e ela sobrevive de suas raízes. Uma vez
que a ameaça de destruição dos marcos simbólicos das sociedades modernas não
pára de aumentar, sob a pressão das tecnologias da informação e da comunicação,
o etnólogo atribui a si a missão de ser o guardião de todas as riquezas simbólicas,
da mesma maneira que, para Heidegger, o homem é o “pastor do Ser”. A conserva
ção patrimonial impõe-se, pois, como a via real de proteção do simbólico.
Quando se lê um texto que fala de uma “ antropologia de...”, quer se trate da
morte, das identidades, do sexo, do silêncio, nos vemos obrigados a constatar
que a evidência da análise descritiva proposta reproduz o mesmo saber sobre
o objeto tratado. O mistério do objeto pode ser restituído pelo virtuosismo de
sua descrição? O objeto parece estar sempre ali, mas sua lembrança se constitui
justamente no processo infinito da interpretação das interpretações - ou seja, na
garantia certificada conforme à sua objetivação. A riqueza simbólica das socieda
des está em toda parte, ela se manifesta na multiplicação inacreditável dos ritos.
Os conceitos de “ rito” ou de “tribo” indicam mais do que nunca o quanto seu uso
é um combate para conservar um modo de interpretação simbólica. Poder-se-ia,
aliás, considerar muitos outros conceitos - como o de “ não-lugar” - que tentam
manter uma certa nostalgia do exotismo in vitro. Os etnólogos se tornarão os cria
dores de ritos, novos especialistas solicitados a preencher um déficit de rito, pois
o rito é tratado como um produto cultural cujo uso tem por finalidade a restitui
ção de um poderio simbólico que estaria em falta. O rito é, pois, objetividade, e
gerado como produto exclusivo da reflexividade. É-lhe atribuída uma qualidade
terapêutica com a mesma natureza de um remédio, sempre segundo a perspecti
va de reforço necessário do simbólico. Tornada objetivável e manipulável, a for
ma simbólica contém virtualmente o reflexo do que oculta. Ao demonstrar a
presença “ainda viva” do simbólico, ou ao restituir seu poder que parece estar
desaparecendo, o etnólogo tranqüiliza porque adota o próprio simbólico como
objeto implícito dessa ocultação. Ele não estuda mais as estruturas simbólicas das
sociedades, pois cuida da manutenção de ordem simbólica.
Lévi-Strauss estudou e mostrou a função essencial da ordem simbólica de
qualquer sociedade, desvendando as estruturas que a constituem e lhe dão a dinâ-
mica, mas, por outro lado, jamais cogitou da perspectiva pragmática da manuten
ção de uma certa ordem simbólica. O etnólogo adotou como vocação implícita a
defesa e a promoção das “ riquezas do simbólico” contra os perigos dos excessos
da “supermodernidade”. Curiosamente, a expansão das pesquisas patrimoniais
provocou esse fato novo, e muito contemporâneo, da patrimonialização genera
lizada transformada na própria expressão da modernidade. Talvez tenhamos di
ficuldade de percebê-lo, mas nos encontramos em uma nova situação na qual
a etnologia estaria de alguma maneira incitada a estudar aquilo que ela mesma
produziu. O que, afinal, não está muito afastado do que os etnólogos dos “ países
exóticos” chegavam a experimentar cada vez que tentavam voltar aos seus “ an
tigos” territórios. Lembremos que seus guias, para escarnecê-los, começavam a
recitar de cor páginas inteiras das “estruturas de parentesco” (Lévi-Strauss), a fim
de demonstrar o quanto eles tinham sido “estruturalizados”. Essa “ reviravolta de
situação” é comparável ao que, na pintura de Paul Cézanne, se chama de “perspec
tiva invertida” ? O “ ponto de fuga” não está mais no quadro, mas no olho de quem
o olha. O mesmo acontece com o olhar etnográfico: não pode mais ser exercido
sem levar em conta o que ele próprio produziu. A partir de agora, a perspectiva-
ção de seu objeto começa a ser restituída.
De tanto viver no ritmo da patrimonialização, os habitantes dos campos se
habituaram a viver sob esse “olhar etnográfico”. Não apenas se tornaram os obje
tos patrimoniais da modernidade, como, ainda mais, sentiram-se compelidos a se
comportar aos olhos dos outros como o espelho das riquezas simbólicas da região
rural, da qual são os representantes ativos. São esses novos “atores retroativos” que
deveriam ser, a partir de agora, os objetos vivos da etnologia. Pois, como genuínos
produtos da etnologia regional, transmissores obrigatórios dos savoir-faire, ainda
não organizam belas paródias patrimoniais. Será preciso esperar até que, dentro
de algum tempo, se sintam tentados a caricaturar o que assumiram como destino,
da mesma maneira que os africanos praticaram e ainda praticam um mimetismo
irónico da cultura ocidental. Em vez de ainda nos interrogarmos a respeito da
eterna relação entre as tradições e a modernidade, seria mais apropriado ver de
que maneira a conservação da tradição, ao proliferarem os signos da modernida
de, provoca efeitos reversíveis e paródicos de “ reflexividade patrimonial”.
0 P I C T O G R A M A DAS E T N I A S

O termo “etnia”, introduzido em 1896 por Vacher de Lapouge, embora designasse


o objeto fundamental da etnologia, continuou pouco discutido e pouco teoriza
do. Em seu livro Economia e sociedade, M ax Weber, depois de ter mostrado que
o grupo étnico se distingue da raça, indicando que ele se funda na crença em
uma origem comum, declara ser preferível, tendo em vista sua indeterminação
conceituai, “ atirá-lo pela janela”. A definição de grupo étnico, inicialmente tenta
da pelos russos, apresenta-se como uma taxonomia de índices que permitem
designar o que é o Outro em relação a Si. O destino desse termo torna-se desde
então ligado à gestão contemporânea da alteridade. O Outro tornou-se uma
sigla, da mesma maneira que um pictograma exerce sua função de índice em
um campo visual. É perfeitamente possível imaginar que nas placas das estradas
européias possam estar indicados os grupos étnicos das regiões atravessadas, em
vez de apenas os símbolos gastronómicos, históricos, vernaculares... Então avista
ríamos a cabeça de um auvérnio com seus bigodes e seu chapéu preto, com perfil
trabalhado de tal maneira que pudesse representar a singularidade do estereóti
po étnico da região designada. A experiência poderia ser levada até mais longe
e representar a parcimónia do auvérnio, a doçura angevina, a determinação do
bretão... A vantagem incontestável do pictograma étnico se traduziria pelo reco
nhecimento universal das distinções morfológicas e culturais que dariam a cada
território a confirmação de sua identidade marcante. Segundo a mesma perspec
tiva, a fim de demonstrar o quanto cada região é também uma terra de acolhida
para outras etnias, um logotipo de tamanho variável definiria as capacidades mul-
ticulturais desenvolvidas. Esta lógica do pictograma já foi posta em prática. No
que diz respeito à imigração, a pregnância da sigla depende das circunstâncias e
das campanhas de mediatização: no momento da “ guerra de Kosovo”, algumas
aglomerações e algumas regiões aceitaram de boa vontade receber imigrantes
com a condição de serem kosovares. Os demais imigrantes deviam ficar fora das
fronteiras porque sua situação não parecia tão desesperadora. A urgência, culti
vada por ela mesma, é deter o infortúnio sempre que ele emergir para renovar
a siglação étnica. Os pictogramas de duração determinada poderiam então apre
sentar o mesmo auvérnio tendo um kosovar sofredor a seu lado. Na medida em
que um certo chauvinismo é reconhecido como de utilidade pública, a região
pode se tornar uma terra de asilo.
Na Dordonha,5 berço da humanidade, durante as férias de verão, uma cam
panha publicitária conclamava os turistas a proteger o chauvinismo, considera
do um valor dos mais elevados. Os cartazes mostravam que, além dos atributos
regionais e da qualidade monumental dos locais, também existiam ali, em seus
soberbos vales, todos os valores da civilização nascente. E se um número cada vez
maior de turistas voltava, era para encontrar o que haviam perdido, ou seja, a so
berania da integridade original. Os pictogramas jamais conseguiriam transmitir
uma mensagem como essa, era preciso substituí-los por uma boa campanha pu
blicitária para reforçar a convicção. “Você que não é daqui, você que está de volta,
compreenda bem a oportunidade excepcional que está tendo, que é a de ser aco
lhido em nossas terras! Se nos desprezar, estará desprezando ainda mais você mes
mo! Pois não deixará de usufruir de nossa soberba integridade!” Os regionalistas
podem oferecer a si próprios a ilusão da autopatrimonialização, uma vez que ela
é uma resposta à demanda dos “estrangeiros”. As representações da alteridade são
geradas como produtos de marca.
A exaltação da identidade étnica funda-se em uma consagração patrimonial.6
Tal qual um monumento histórico, a raça, o povo, a nação tornaram-se objetos
patrimoniais. E a arma da gestão dessa transmissão é a museografia do vivo. Os po
vos que foram colocados em reservas, na América ou na África, têm como destino
representar aos olhos do mundo inteiro a conservação cuidadosa das etnias e das
raças em vias de extinção. Do parque natural à reserva de índios, o princípio per
manece idêntico: as etnias, assim como as espécies em vias de extinção, devem ser
protegidas, a fim de que a humanidade conserve o espelho de sua própria história.
A demarcação da reserva e o museu respondem a essa mesma vontade de controlar,
em nome da preservação dos traços identitários, e graças à “polícia patrimonial”,
o que já é dado por morto mas que ameaça desaparecer. Nas antigas colónias, o
reconhecimento das identidades culturais passa cada vez mais pela criação de m u
seus que permitem expor e fazer viver uma cultura já morta. É o caso do projeta
do M useu da Guiana, claro exemplo de construção de imagens étnicas, realizado
com fins políticos de integração: o “primitivismo” no museu se tornou o melhor
meio de consagração da riqueza inestimável das diferenças étnicas. Sempre have
rá ilusionistas que, de boa fé, tentarão nos fazer crer que se trata, nesses casos, de
uma “ segunda via”, mas o culto dos neomortos continua sendo a conseqíiência do
ditado bastante comum “ um índio bom é um índio morto”. A ordem patrimonial
consuma a pacificação dos conflitos étnicos no tempo presente, prosseguindo em
sua lógica de reservas e de limitação dos territórios. Qualquer diferença cultural
se tornará aceitável somente na medida em que for musealizada. Como um valor
flutuante que responde às necessidades da moda, a etnicidade permanece uma refe
rência estável, uma vez que é a condição básica da museificação das culturas.
Seria decerto inconveniente imaginar que o que é designado como “ limpeza
étnica” possa ter qualquer relação com a preservação patrimonial das identidades
culturais. O exercício humanitário surge então como uma fase intermediária en
tre o horror da depuração e a restauração identitária folclorizada, esta última re
presentada em muitas regiões da Europa por um habitat vernacular especialmente
cuidadoso, que designa a integridade patrimonial do território. M as é igualmente
duvidoso considerar que uma operação humanitária tenha por única finalidade a
demonstração da solidariedade internacional. Trata-se de uma fase intermediária,
que revela como o humanitarismo só adquire sentido se for combinado com estra
tégias militares e políticas, apesar da pureza das intenções que parece lhe conferir
sua total legitimidade. O mesmo acontece com o próprio tratamento da etnicida
de: os refugiados perdem a identidade (seus documentos lhes foram tirados) e
se vêem imediatamente “ etnicizados”. A supressão de suas identidades consagra
a unidade de um povo em sofrimento, passível de ser gerada como uma massa
de sobreviventes, enquanto que o engodo do reconhecimento étnico se realiza
graças à expansão da solidariedade humanitária. O acampamento de trânsito é
o local onde são conservados, na escala da globalização, os resíduos étnicos que
são chamados a se reunir. Por sua vez, esse resíduo é adotado pela mídia como
um objeto promocional cuja singularidade continua sendo exibida no cotidiano
graças às imagens escolhidas de rostos de refugiados. Essas imagens emblemáticas,
retiradas da massa anónima, são utilizadas como representações da alteridade,
para encenar os efeitos da dignidade humana em estado de sobrevida. As mídias
preservam o princípio da individualização e se desdobram para exaltá-lo por inter
médio da virtualização de uma catástrofe étnica generalizável (“Nós somos todos
kosovares” ). Com a apresentação cotidiana de situações cuja exemplaridade tem
por função desfazer as suspeitas a respeito das operações humanitárias, as mídias
se passam por protetoras de todas as etnias em perigo.
O poder humanitário é, assim, soberano, não tem nenhuma necessidade de
justificação e governa o destino da globalização ao preparar a recomposição da
“paisagem étnica” sobre as bases da “ limpeza étnica”. O que é importante é a
maneira pela qual as sociedades que continuam na modernidade dão a si mes
mas a prova visível da capacidade que têm de gerir o sofrimento que produzem.
Durante muito tempo se acreditou que a “ sociedade do espetáculo” era um prin
cípio de prazer especular, mas ele se tornou um procedimento de legitimação
para todas as operações paliativas que exibem o entusiasmo pela solidariedade.
A encenação de um Bem universal fundamenta-se na representação pública da
boa gestão da sobrevivência aos desastres. O apelo à comiseração, que parece
sempre fazer brotar a coesão social, não seria ouvido se não descobrisse sua fi
nalidade imediata na demonstração da eficácia das medidas relacionadas a uma
perturbação recente. A luta contra o abandono durante a desgraça é uma garan
tia de imunidade ética. E o dever de etnicidade se torna condição indispensável
à gestão humanitária do mundo como infelicidade perpétua. O humanitarismo
reproduz, aparentando estar do lado certo, um estado de exceção, uma vez que
sua razão de ser, de se manifestar, relaciona-se à repetição de situações extremas
que consagram o poder soberano de seu exercício. A evidência de suas boas ações
paliativas parece livrá-lo de qualquer suspeita que possa causar a impressão de
que tal exceção seja a réplica cínica de um totalitarismo neoliberal. Enquanto se
espera que seja revelada alguma modificação, vai se tornando cada vez mais difí
cil esconder de que maneira a produção e a gestão do exilado, do sobrevivente,
do neomorto, se desenvolvem oferecendo o espelho da conjuração objetiva do
horror provocado, num mundo em que o destino obrigatório dos povos poderia
ser o de se autoproclamarem “etnias em desastre”.
O humanitarismo consuma o “ espírito patrimonial” da globalização. A alte-
ridade preservada em nome da identidade reconhecida conjuga-se com a iden
tidade derrotada em nome de uma alteridade mediana e bem-conservada. Na
Europa, o património é apresentado como uma “ questão de identidade cultural”,
cada região dispondo de “ seu” património e, ao mesmo tempo, demonstrando
sua capacidade “multicultural”, para satisfazer o imperativo ideológico da glo
balização. O turismo cultural europeu é realizado dentro de uma “perspectiva
identitária”, que pode chegar até a defesa das “ diferenças étnicas” para preservar
a imagem mais comum da alteridade. Hoje em dia, o património representa si
multaneamente duas perspectivas não contraditórias: a globalização cultural e a
heterogeneidade cultural, expressas por referências étnicas ou identitárias. M as
o turismo cultural baseia-se, em escala mundial, na manutenção de uma hete
rogeneidade cultural garantida pela museografia. O mundo deve se tornar um
grande museu para que a identidade, a etnicidade, a alteridade não sejam mais
do que rótulos, e que a invocação destas últimas sirva sobretudo para o comér
cio turístico mundial. Três etapas são necessárias: a primeira é a da extinção das
culturas vivas, já realizada desde o começo do século; a segunda é a da “ passagem
ao museu” dessas mesmas culturas, de uma homogeneização do espetáculo; e
a terceira corresponde à reabilitação da heterogeneidade cultural ensejada pela
“ guerra cirúrgica” e pelos movimentos humanitários, preparando a conservação
patrimonial e da museografia.
A D E S F O R R A DO O B J E T O

Que criança não brincou de esconder objetos debaixo da terra à espera de que ou
tros os descobrissem mais tarde? Em alguns “ museus ao ar livre”, objetos foram
enterrados com a intenção de provocar a surpresa dos etnólogos um ou mais
séculos depois. O que supõe o desaparecimento da função presente do objeto ou
a incongruência futura de sua forma. Se o tempo da descoberta do objeto não
for muito longo, este que será retirado da terra aparecerá como um ancestral
de um outro objeto que ainda não existe. Se o tempo for muito mais longo, o
mesmo objeto terá todas as possibilidades de ser um elemento arqueológico que
justificará pesquisas e suscitará controvérsias quanto a sua origem e sua função.
Acredita-se normalmente que o próprio enigma do objeto se aprofunde com o
tempo. Tomemos por exemplo o “ Celeiro do Século”. Esse “ Celeiro”, instalado na
ex-usina LU (Lefebvre Utile), em Nantes, foi lacrado no dia 31 de dezembro de
1999 à meia-noite. Ele será aberto no dia I a de janeiro de 2100, às 17 horas. Todos
foram convidados a depositar nesse “ Local Único” um objeto representativo de
sua vida, ou um emblema de seu século. Qualquer objeto, contanto que não fosse
perecível, podia ser depositado lá como a consumação de um ato simbólico, sério
ou mesmo sem importância. Também era possível depositar o mesmo objeto vir
tualmente, em sites da internet. O “ Celeiro do Século” reúne desse modo objetos
diferentes para uma arqueologia do futuro, constituindo uma estrutura especí
fica para a transmissão. Pouco importa o que irá acontecer até o ano de 2100,
uma vez que, de um modo ou de outro, os habitantes conservarão no mínimo a
preocupação de recolher os traços do que se passou antes deles. Com um pouco
de sorte, talvez uma menininha, presente na ocasião do evento, esteja ainda viva
em I a de janeiro de 2100 para reencontrar o que ela ou sua mãe depositaram
cem anos antes. O “ Celeiro do Século” nada tem de ficção, ele é um depósito que
garante a conservação da perenidade de sua representação. A mesma operação
será repetida em 2100, de tal maneira que não haverá mais do que “ surpresas
organizadas”.
Esse jogo de vai-e-vem no tempo pode parecer estranho, ao indicar em que
medida o controle da antecipação visa reduzir o poder enigmático do objeto.
E de fato curioso organizar antecipadamente essa arqueologia dos objetos.
Provavelmente é o efeito de uma lógica patrimonial que não se contenta mais
em conservar o passado, em escavar à procura dos vestígios, mas que não pára
de imaginar como os objetos de hoje poderão servir de signos para as gerações
futuras. Dada a quantidade considerável desses objetos, chega-se pensar que, ao
contrário, o signo identitário do objeto se torna ele próprio confuso, a ponto de
qualquer classificação antecipada se revelar impossível. O mais impressionante é
constatar em que nível uma sociedade chega a pensar na conservação do que pr o
duz para os seres humanos que viverão dentro de um século ou mais. Acreditam
ingenuamente que esses mesmos seres humanos serão incapazes de escolher o
que querem conservar da nossa sociedade presente?
O que estaria impulsionando a conservação para o futuro não é mais a angús
tia da perda dos vestígios, mas sim o medo de não se ter nada para transmitir.
É claro que toda reflexão excessiva sobre o objeto da transmissão conduz a que
se entreveja a ausência de qualquer objeto de transmissão. A questão não é mais
saber o que vale o esforço de ser conservado para ser transmitido, mas imaginar o
que nos conservará na memória dos que ainda não nasceram. O mais razoável é re
meter-se à transmissão por acidente, que consiste em pensar que não nos compete
escolher os vestígios que permanecerão. Essa atitude que parece tão sensata ainda
preserva a idéia de uma transmissão possível. Ela somente permite que não nos
obstinemos em construir o objeto da transmissão. M as a obsessão patrimonial
nos coloca diante deste fato consumado: são os próprios objetos que nos conser
vam. Somos nós os reféns de uma transmissão governada pelos objetos.
“ É o objeto que nos pensa”, adora dizer Jean Baudrillard. Nós acreditamos
dar vida ao objeto, mas é ele que nos possui. Como o homem primitivo, vivemos
na magia dos objetos? Nós nos recusamos, em nome da razão, a acreditar nesse
antropomorfismo dos objetos e não batemos na cadeira na qual nosso joelho es
barrou, como uma criança faria. A esses objetos que conservamos com respeito
dentro de locais privados ou públicos, nós atribuímos entretanto um poder si m
bólico especial. Quer sejam “bens de família” ou “ bens comuns”, nós colocamos
esses objetos “ fora do tempo” e chegamos a lhes dar como função a representação
do tempo. Quando, em um acesso de cólera, os destruímos para nos provar que
não somos fetichistas, imaginamos que conseguiremos viver sem eles. Esse ato de
desapossamento nos oferece momentaneamente a ilusão da liberdade absoluta.
M as os objetos insistem em ficar lá, jamais desaparecem porque não estão em
nosso poder. Achamos que vamos submetê-los criando coleções, conservando-os
e expondo-os, para olhar para eles como signos imorredouros do que nos prece
deu, do que permanecerá depois de nós. É nossa maneira de venerá-los, dando-
lhes esse papel privilegiado de transmitir o que nós fomos, conferindo-lhes uma
certa imortalidade. Contudo, tudo aquilo que nós projetamos sobre os objetos,
os próprios objetos parecem já ter previsto. Da sua docilidade a respeito de nos
sas projeções brota uma estranha ironia.
“É o objeto que nos pensa” não tem, de forma alguma, o mesmo sentido que
“ é Deus que nos pensa”, ou “ é o sistema que nos pensa”. Trata-se claramente de
uma relação mágica que contém o reverso de nossas projeções. O objeto absorve
todas as posições do sujeito, para devolvê-las como espelho de suas intenções.
E, para nos resguardar dos eventuais sortilégios do objeto, nós o botamos no m u
seu. O antropólogo americano Clifford, em seu livro The predicament of culture,
menciona que os zunhis7 se recusaram a confiar aos conservadores ocidentais
um objeto sagrado (imagem de uma divindade), sob o pretexto de que uma expo
sição não seria um lugar apropriado para ele. Compreende-se que o uso profano
de um objeto sagrado nem sempre é apreciado, dado que desnatura o próprio
objeto. Esta razão não é suficiente. Pode-se supor também que os zunhis queriam
evitar problemas para os conservadores por ser impossível prever as reações do
objeto sagrado. A divindade exposta continua sendo antes de tudo uma divinda
de, ela é suscetível de exercer seu poder seja lá onde for. O deslocamento a que foi
submetida não limita o risco. Nesse sentido, os zunhis podem, com sua recusa,
ter feito um favor aos antropólogos, que teriam tido muita dificuldade em conju
rar, no local da exposição, as manifestações intempestivas da divindade. Quem
poderia além disso presumir, em tais circunstâncias, intenções maléficas ou be
néficas do objeto sagrado? Essa crença no irredutível poder do sagrado é curiosa
mente encenada em “ Sete bolas de cristal” por Hergé.8A múmia de Raspar Capac
- “ aquele que desencadeou o fogo do céu” - é colocada dentro de uma vitrine, em
casa de Hippolyte, um amigo do professor Tournesol. Tintin, o capitão H addock
e Tournesol fazem uma visita a esse amigo no exato momento em que desaba um
temporal. Na casa reina uma atmosfera de ameaça: os pneus do carro estouram
por causa do calor, um postigo bate no rosto do capitão Haddock, os relâmpagos
riscam o céu e nossos célebres amigos se refugiam em uma pequena sala para 1er
a tradução das inscrições que estavam gravadas nas paredes do túmulo de Raspar
Capac. Desgraça para os profanadores, a maldição vai persegui-los... O raio cai
em cima da lareira, a bola de fogo atravessa a peça, projeta Hyppolite para fora
da poltrona, suspende Tournesol e termina seu percurso volatilizando a vitrine
onde se encontrava a múmia. Ela desapareceu. Voltará mais tarde, no meio da
noite, trazendo nas mãos uma bola de cristal que quebrará diante da cama onde
Tintin está dormindo. Tournesol e o capitão terão o mesmo sonho. Pois se trata
apenas de um sonho. Podemos imaginar que em um museu etnográfico a maior
parte dos objetos reunidos recupera seu poder mágico e perturba o espaço “ onde
foram feitos reféns”. A fantasia tão comum da estátua que se mexe, do rosto pi n
tado que nos espia, do crânio que nos segue soltando gritos roufenhos não nos
envergonha. Sem essa fantasia não teríamos senão uma monótona percepção dos
objetos que observamos. O futuro dos museus está “nas mãos dos espectadores”,
é o que adoram achar os cenógrafos que conduzem os visitantes com uma preo
cupação didática, dando-lhes cada vez menos liberdade. Nunca esgotaremos, por
intermédio dos nossos conhecimentos, esse enigma do objeto; ele nos permite
acreditar num poder mágico que negamos por pura conveniência, para nos per
suadirmos de que nada é exterior à nossa própria inteligibilidade.
Em princípio, um valor simbólico permanece um valor ativo, situando-se,
por seu caráter sagrado, fora do “ tempo humano”. M as o que é tido como sagra
do não impede a circulação dos valores materiais. Um dos melhores exemplos
foi a exposição “ Os mágicos da terra” apresentada no Beaubourg em Paris, em
1994. Ela foi concebida implicitamente como um meio de desestabilizar o mer
cado da arte, cristalizando a atenção do público no valor artístico dos objetos de
“arte primitiva”. Ao trazer inúmeros objetos de todos os países do mundo, alguns
organizadores aproveitaram para constituir coleções privadas. Afinal, nos anos
1930, todos os etnólogos da missão Dakar-Djibouti tinham feito a mesma coisa.
A questão não é desaprová-los em nome da transparência ética, mas reconhecer
simplesmente que essa paixão pela coleção se apresenta como uma aposta no
futuro, uma aposta feita sobre o valor de mercado desses objetos. Não se trata
mais de conservar por conservar - o que decorre de um princípio teleológico im
possível de se evitar - , mas sim de conservar prevendo uma “ alteração do valor”.
Apoiando-se na garantia de duração simbólica que o objeto representa - e mais
particularmente o objeto primitivo - é de certo modo possível preservar o valor
material como “ horizonte de um futuro”. A vantagem do objeto primitivo é esca
par à referência obrigatória ao passado, ou pelo menos à idéia excessivamente
histórica que se possa fazer dele. Digamos que o valor do objeto já tira proveito
de seu “caráter primitivo”. O objeto primitivo contém sua referência à origem,
seja como origem das origens, seja como origem ausente ou perdida, o que, se
refletirmos bem, vem a dar no mesmo. Essa circularidade da origem confirma a
idéia de uma origem sempre fantasiada.
Em úm artigo intitulado “ L’horreur du pr imitif”,9 Pierre Fedida mostra em
que medida a escultura primitiva nada tem a significar, que ela existe em toda
sua soberania e que o fato de ser apresentada sobre um pedestal já é uma contra
dição, uma vez que, assim se fazendo, é-lhe atribuído o poder de representar. Ela
nada tem a representar, ela é por si mesma, fora de qualquer manifestação espeta
cular. A escultura primitiva não tem um referencial comum com a organização
reflexiva própria à museografia: “Aquilo que ‘o civilizado europeu tentaria, desse
modo, produzir, seria uma tal coerência do objeto em sua objetividade formal
que, precisamente, a presença não mais prevaleça sobre a aparência e o tempo
não mais exista como alteração de forma na matéria da criação”.10A matéria do
primitivo não deixa o tempo ser percebido, ela nos faz entrar numa conivência
sem fim com os mortos. É a entrada na noite eterna dos mortos vivos. A expres
são rígida do rosto morto (ou da máscara), com sua imobilidade em êxtase, m os
tra-se atemporal. O “primitivo” não pode mais ser considerado apenas do ponto
de vista do que retorna ou do que funciona como origem na vida psíquica, “ ele
desempenha precisamente o papel de nos proteger contra o que o estado de civili
zado comporta de destrutividade”.11O que no sonho, na alucinação ou no delírio
advém como visão do não-humano, revela como a “primitividade” não é uma
ameaça de desestruturação, mas, ao contrário, é a expressão do elo atemporal
com os mortos. Contudo, a esse poder do não-humano esforçamo-nos para con
ferir um sentido simbólico preliminar, inscrevendo-o em uma ordem discursiva
que o aniquila.
Na cultura ocidental, o “ primitivo” parece significar o que torna possível um
pensamento experimental de alteridade. O Outro não é apreendido como “ Outro
de Si mesmo”, senão no confronto com uma arqueologia do homem, ela mesma
colocada na categoria de a priori universal. O Outro jamais é apreendido como
uma representação da alteridade radical. O pensamento evolucionista, caracterís
tico do século passado, levava a que se pensasse que o “ primitivo” era uma etapa
dentro da história da humanidade. Etapa que não deixava de se manter dentro
da psique sob a forma de rebentos mnemónicos, a fim de provar a arqueologia
sempre “ viva” de alguns de nossos comportamentos. O homem ocidental podia
então se considerar uma representação ideal da evolução da espécie. O que resta
do evolucionismo é a crença persistente em que o “primitivo” está em nós. Se ele
está fora de nós, é apenas na qualidade de objeto vivo da etnologia, na medida
em que ele já está em nós. O homem permanece sempre pensado por aquilo que
o precedeu, e que, eventualmente, pode voltar para ele.
A representação do “ primitivo” é agora utilizada como efeito previsível e aguar
dado de uma estética da estranheza. Esse artifício da estranheza permite confir
mar que o que se parece conosco passa a ser a mesma coisa. O olhar do etnólogo
serve para produzir um trompe-l’oeïl da estranheza, para melhor sobressaírem
as semelhanças destinadas a garantir a repetição do mesmo. Trata-se, a partir
do conhecimento do “ primitivo”, de revelar o que já sabemos a respeito de nós
mesmos, como se fosse uma cópia com certificado de autenticidade. A represen
tação do “ primitivo” apenas consagra o processo de reflexividade que mantém
as sociedades modernas na sua fruição do M esmo. Não se trata mais de um jogo
de comparação entre estruturas de organização de diferentes sociedades, mas, na
verdade, de um procedimento de redução à equivalência do olhar voltado às cul
turas. Estamos numa posição antípoda do período em que os surrealistas procu
ravam na “arte primitiva” o que poderia excitar seu desejo de subversão. A busca
da dessemelhança provocadora sucede a conquista eterna da semelhança. Uma
vez que o Outro já é nós, o Outro nos confirma que somos exatamente como nós
mesmos. Nada virá mais perturbar essa circularidade que garante a reprodução
do M esmo. A inquietante estranheza se transformou em um verdadeiro clichê
da metodologia antropológica: o que é mais familiar em nossas maneiras de ser,
em nossos funcionamentos institucionais, deve nos parecer de repente estranho
a nós próprios a fim de que possamos em seguida usufruir dessa familiaridade,
como um espelho apaziguador de nós mesmos.
A relação de espelho, por intermédio da qual o homem ocidental faz do Outro
“ primitivo” a representação estranha de si próprio, prossegue com a consagração
de um “primitivismo” que não o deixou e que o protege, sem que ele saiba, dos
excessos de sua própria racionalização. O espelho pode ser ainda deformante,
mas essa alteração que ele tem a capacidade de produzir já é esperada, prevista,
nada tem de acidental. Devolvida ao estado de objeto cultural, exposta no museu,
a máscara (ou tantos outros objetos) não conserva, especificamente, seu poder
intrínseco de alteração, o que, em outras palavras, o professor Otto chamava de
“ numinoso” (o “outro” ). O olhar voltado para ele está predestinado a sofrer al
terações programadas, emoções no mínimo consentidas. O “primitivismo” não
mais nos protege do poder de destruição da civilização porque ele passou ao esta
do de objeto exibido. É preciso que, de alguma maneira, as figuras representativas
da origem dos homens e da contemporaneidade do “ primitivo” sejam conserva
das para assegurar a transmissão de todas as culturas, e mais ainda, a da espécie
humana. Esculturas e máscaras são cunhadas com o selo da singularidade cultu
ral, ao passo que, justamente, sua característica essencial era não possuí-la. E por
serem designadas como atemporais, tornam-se as promotoras dessa perenidade.
OS D I S T Ú R B I O S D A A T U A L I Z A Ç Ã O

Ao olhar as fotografias de pessoas falecidas, vejo as formas juvenis de seus corpos


e já as imagino em movimento. Quer conheça ou não suas histórias, a visão da
viva beleza delas me chega aos olhos como um volta da representação de suas
mortes. Pois é a morte em si que torna possível uma tal “parada sobre a imagem”.
Eu não olharia do mesmo modo essas fotografias se as pessoas que estão lá não
estivessem mortas. A visão do corpo perfeito dessa mulher jovem que viveu no co
meço do século e que talvez tenha sido a mãe da minha tia-avó, retirada da morte
e que não tem por suporte material senão o papel fotográfico seguro entre meus
dedos, é uma visão de trompe-Voeil do tempo. Não podemos tornar presente o
que não é mais, pela simples vontade de rememoração. A atualização do que foi
permanece acidental como a visão da morte.
O adjetivo “ atual” tornou-se muito ambíguo. Ele designa ao mesmo tempo
o que está em ato e o que caracteriza nossa época. Nem por isso podemos nos
ater ao significado mais usual: “Atualizar é tornar atual”. Atualizar o que perten
ce ao passado não seria mais do que uma maneira de tornar presente, na apa
rência, o que não está mais. O historiador refere-se a um período preciso a fim
de realizar comparações e projetar seus efeitos sobre o presente. Este género de
exercício pressupõe uma ausência de temporalidade que é específica da exempla
ridade requerida (a do período escolhido). Atualizar significa primeiro subtrair
a temporalidade habitualmente atribuída ao passado, para torná-lo atemporal e
conferir-lhe ao mesmo tempo um “poder de contemporaneidade”. Este jogo com
o tempo, que passa obrigatoriamente pela etapa da ausência de temporalidade, o
único capaz de produzir o efeito antecipado do atual e do contemporâneo, nada
tem de aventuroso, de acidental, ele é o fruto de uma estratégia que visa desesta-
bilizar nossas representações do tempo presente. Um jogo que, em resumo, não
seria deplorável se não adotasse ares de complacência moral, que consiste em
repetir que “ o passado ilumina o presente”.
Como escreveu Clifford, “ o momento surrealista da etnografia é o momen
to em que a possibilidade de comparação fica em tensão direta com a absoluta
incongruidade”.12 Nos anos 1930, a arte e a etnografia viram-se numa situação
de fusão e de confrontação, sendo que as criações dos surrealistas evocavam
mais do que simples comparações com os objetos primitivos, considerados por
eles verdadeiros objetos de arte. M ais ou menos na mesma época, o movimen
to antropofágico no Brasil (Osw ald de A ndrade), seguindo a mesma via dos
surrealistas, lançava o grande desafio de uma absorção recíproca das culturas.
Se “os mitos pensam-se entre si ”, não seria pelo fato de as culturas “ comerem
umas as outras” ? Não se trata de um sincretismo cultural que supõe uma certa
duração, mas sim de “ aproximações incongruentes” entre modos de criação ar
tística e tradições culturais muito antigas. Diz-se de uma imagem incongruente
que ela parece não estar em seu lugar, segundo a ordem presumida por nossas
representações. A incongruidade pode ser buscada por ela mesma, a fim de pr o
vocar voluntariamente efeitos de estranheza. Os surrealistas parecem ter abusa
do algumas vezes desse género de efeito estético excessivamente buscado, como
no caso da escrita automática. M as a incongruidade nem sempre é controlável,
pois, felizmente, conserva algo de inesperado. Quando não se torna fruto de
uma convenção estética, ela exerce um poder de atualização surpreendente, da
mesma natureza que o sonho. A imagem dos objetos, dos lugares, dos corpos, se
superpõem de uma maneira inesperada, produzindo um efeito de simultaneida
de temporal que torna ainda mais atual o momento de irrupção do efeito incon
gruente. O que advém como imediatismo do real está freqüentemente relaciona
do a essa incongruidade da situação. Contrariamente, a organização cenográfica
de um museu passou a fazer das “ aproximações incongruentes”, no presente, um
exercício tão previamente refletido que a estranheza possível das associações
permanece induzida, sobrepondo-se à percepção. A pós ter utilizado a arte primi
tiva como um meio de exacerbar seu próprio modo de subversão, os surrealistas
se separaram dos etnólogos, os quais, de seu lado, deixaram de tratar os objetos
das civilizações primitivas como obras de arte. “ O que está em questão [escreve
Clifford] é o desaparecimento do jogo perturbador e criativo com as categorias
e as diferenças humanas, uma atividade que não se contenta com apresentar e
compreender a diversidade das ordens culturais mas que, abertamente, espera,
permite e, evidentemente, deseja sua própria desorientação.” 13H oje em dia, com
o museu de “ Primeiras artes e civilizações”, reencontra-se a reconciliação ideali
zada entre a arte e a etnologia. É a comemoração da belle époque, a do retorno
da missão Dakar-Djibouti. Atualização que não poderia ter sido mais bem-su-
cedida. Por intermédio de suas obras que se tornaram exemplares, a sociedade
primitiva radicalmente atemporal foi imergida na temporalidade presente. Sem
escrita, não pôde sustentar-se com sua própria projeção mnemónica ou com
seu destino histórico. Ao colocarmos “seus” objetos dentro de um museu, não
estamos lhe conferindo uma história, mas sim seu lugar de origem na história.
Sua ausência de temporalidade é preenchida com a representação patrimonial
de sua transmissão duradoura e universal.
A respeito da V Bienal de Arte de Lyon, intitulada “ Partilha de exotismos”,
o antropólogo M arc Augé denunciou dois clichés: o que consiste em acreditar
que certas sociedades não estavam preocupadas com a estética, e o que insiste
em fazer pensar que as “obras primitivas” não têm autor. Ele substitui estes dois
clichés por dois novos clichés: a perenidade de uma finalidade estética da comuni
dade humana por todos os tempos e por todas as sociedades e o reconhecimento
atemporal da singularidade individual dos objetos criados. Em suma, M arc Augé
nos incita a crer que a estética foi, desde suas origens, uma preocupação essen
cial em qualquer forma de sociedade e que sempre houve artistas. M ais ainda:
graças ao olhar etnográfico, a ligação entre a estética dos “ tempos passados” e a
criação artística contemporânea pode finalmente ser realizada! Como operação
de integração absoluta, é difícil fazer melhor. Na nossa época, em que a estética
generalizada invade tanto os modos de vida quanto os territórios das cidades,
não se poderia esperar menos dos antropólogos preocupados em mostrar o fu
turo da modernidade por intermédio dos grandes valores estéticos que honram
as sociedades primitivas. Estremecemos de alegria quando ficamos sabendo que
o artista, mesmo que as representações atuais que temos dele permaneçam dife
rentes, esteve presente sobre a terra desde o alvorecer da humanidade! Não pre
cisamos mais esperar que os arqueólogos descubram finalmente os signatários
dos afrescos de Lascaux! Assim, o circuito completo patrimonial estará comple
tado graças à nomenclatura dos mais majestosos representantes da arte, os quais
transcendem toda a história da humanidade. Podemos até nos perguntar se as
sociedades primitivas e seus artistas desconhecidos não teriam preparado incons
cientemente esse advento extraordinário de uma estética transtemporal que nós
seríamos finalmente capazes de apreciar e de pôr em prática em escala mundial.
A aliança entre a arte e a antropologia corresponde a uma verdadeira missão, que
consiste em fazer com que se admita que a arte ocidental não é a única arte no
mundo. Os museus de arte moderna são racistas, irão dizer, por não mostrarem
consideração pelas artes que vêm de práticas religiosas. Contudo, esse apelo ao
reconhecimento das riquezas da arte africana, e de toda arte que não seja ociden
tal, tira proveito da simplicidade reacionária de seus opositores. A demonstração
veemente das equivalências através do tempo torna o processo de atualização
ilimitado. E o convencionalismo multicultural termina consagrando essa verda
deira organização da atualização.
Atualizar é conferir uma função temporal ao que está “fora do tempo”.
Tomada como uma finalidade determinante da museografia, a atualização é uma
maneira de compensar o intemporal. Ora, o tempo é inatual. É transformado
em atual pelo efeito desejado de uma simultaneidade temporal produzida pela
miragem de uma equivalência representativa entre o passado e o presente, na fu-
turação da transmissão. Essa gestão antecipada do tempo, desenvolvida pelo tra
tamento patrimonial do porvir das culturas, anula toda possibilidade de acidente
da transmissão. Antecipar o que deve ser transmitido é governar o processo de
atualização suprimindo o poder do inatual. Dentro do sonho, a simultaneidade
temporal ou a condensação dos tempos provocam de fato o efeito de uma figura
de destino. Concedido tradicionalmente ao sonho, esse poder não poderia ser
um poder do destino se não obtivesse o efeito de real de uma colisão temporal
como essa. A crença em uma organização prévia e refletida do destino nos faz
esquecer que toda “ figura de destino” surge por acaso ou por acidente. M esmo
que a transmissão do sentido pareça de fato se construir (e o museu seria uma
das provas disso), ela permanece ainda assim imprevisível, ela é um apelo ao
desconhecido. O sonho demonstra que o poder da atualização depende antes de
mais nada da incongruência das imagens que a provoca. O incongruente não é
decerto uma figura do tempo, mas está ligado aos fenómenos da continuidade e
da descontinuidade, na sucessão das imagens ou na ruptura de seu encadeamen
to. As lembranças não são mais bem classificadas do que os objetos de um museu.
A memória é insensata, caprichosa, suas voltas para trás tornam o tempo cativo,
mas dessa catividade nascem as projeções atuais, esse jogo do presente fugidio.
Sempre em situação de perigo, a ordem do tempo traça apenas a via frágil da or
dem mnemónica. A confusão dos tempos nos fascina por perturbar a repetição
prévia de nossas percepções. Ela é marcada pela interdição por ser a porta aberta
às alucinações, a um tipo de patologia da visão que seduz bastante o ritmo infer
nal da memória.
Quando estamos com febre e os objetos começam a dançar, quando nosso
corpo flutua no espaço e nós perdemos o pé, o mundo que nos cerca se torna ir-
representável, e então tentamos, para nos estabilizar, interromper tal movimento
fixando o olhar sobre um objeto a partir do qual esperamos o restabelecimento
da ordem visual. O tempo se turva como o próprio espaço, tornando-se estra
nhamente “visualizável”, mesmo que não se veja o tempo. As imagens surgem,
engavetam-se, separam-se, as imagens criam impressões de tempo. Elas seguem o
ritmo de um encadeamento sem cronologia, sua incongruência é simultaneamente
visual e temporal. Colocamos ordem nessa procissão de imagens, a fim de mostrar
que não perdemos a cabeça e sobretudo que permanecemos capazes de dominar
a lógica aparente de sua sucessão. M as a capacidade de atualização das imagens
obtém toda sua pregnância do inatual, do que poderia ter tido tempo e não tem
mais. Então nada é inatual, mas não porque a ordem do tempo permite dar sen
tido à procissão de imagens, mas, ao contrário, porque a forma insensata de seus
encadeamentos persiste e não se dobra senão parcialmente, no sentido que dese
jamos lhe dar. Não existe passagem do inatual ao atual. Contudo, insistimos em
acreditar em tal passagem, pela obsessão de selecionar o que parece determinar
essa ordenação temporal necessária à memória operacional. A atualização seria,
dentro da lógica da reflexividade patrimonial, fruto da crença no trabalho eficaz
de seleção de imagens inatuais. A organização contemporânea das memórias co
letivas, em resposta a esse imperativo de eficácia, burla o jogo da memória e se
realiza no mesmo estado de espírito que a ordem mnemotécnica requerida para
o bom desenvolvimento das atividades cotidianas.
PATRIMONIO E CATASTROFE

A catástrofe da memória passa por um signo do envelhecimento, da degradação


mental. A conservação patrimonial apresenta-se como o efeito conjuratório de
uma catástrofe da memória sempre possível. M as a própria catástrofe não é um
objeto patrimonial? De que forma a lembrança coletiva de uma catástrofe pode
se tornar memorável? Ninguém tem dúvida de que as imagens de um desastre
permanecem na memória, mesmo que o acontecimento termine sendo esqueci
do depois de ter saído das manchetes dos jornais. Os vestígios do sinistro serão
pouco a pouco apagados e os locais reencontrarão sua configuração anterior, m o
dificada por algumas novas construções. As vítimas se lembrarão durante muito
tempo do que aconteceu, falarão disso, repetirão uma porção de vezes o que lhes
aconteceu, o que assistiram, mas à medida que o tempo vai passando os efeitos
do traumatismo desaparecem. Os mortos continuarão presentes nas memórias e,
apesar das polémicas levantadas pelas deficiências eventuais de certas responsabi-
lidades públicas, eles se tornarão as vítimas de uma fatalidade contra a qual não
é possível se revoltar. A fim de conservá-los na memória e manter a lembrança
da catástrofe, uma comunidade pode tomar a decisão de erigir um monumento,
como se faz para os soldados mortos no campo de honra. O morto não pode ter
morrido “por nada”. Os que morreram durante uma catástrofe foram, sem saber,
objeto de um sacrifício, e a comunidade parece se organizar para, com a criação
de uma obra solene no local do sinistro, garantir a representação de uma morte
que não foi inútil. É, por sinal, uma prática freqüente no mundo inteiro colocar
os túmulos na beira das estradas para conservar publicamente a memória dos
acidentados. A presença deles invoca o mesmo reconhecimento coletivo de um
sacrifício. A lembrança da vítima desconhecida é oferecida ao olhar da comunida
de para que esta possa ter a esperança de modificar-se, respeitando as regras de
segurança necessárias à sua sobrevivência. Não se trata apenas de lutar contra o
esquecimento, mas de dar um sentido póstumo à memória do morto, um senti
do que continue sempre suscetível de ser atualizado.
Em seguida à catástrofe do túnel que atravessa o M ont-Blanc, um artista es
cultor foi convidado a realizar um memorial. A lembrança das vítimas foi repre
sentada por uma obra de arte para não desaparecer no esquecimento. A vítima
ascende, por assim dizer, à categoria de sacrificado. Ao lembrar à comunidade
o que ela deve considerar memorável, esse memorial instalado na entrada do
túnel do M ont-Blanc é apresentado como garantia visível da mensagem transmi
tida para os tempos futuros. Tal processo de comemoração é comparável ao dos
monumentos aos mortos, que evocam o quanto a guerra é propícia a esses sacri
fícios, quanto mais não seja por perpetuar a crença na morte oferecida à pátria.
M esmo que as vítimas de uma catástrofe não sejam idênticas aos mortos que a
guerra provoca, seu tratamento a posteriori apresenta bom número de semelhan
ças. O morto é único, por seu próprio nome, mesmo estando perdido no meio da
massa. A exemplaridade representada por uma escultura comemorativa pretende
não abolir a singularidade individual do morto, acalentando a idéia de que ela a
contém e a exalta, ao mesmo tempo que se apresenta como o espelho público de
um destino coletivo. O que se tornou memorável não foi o acontecimento pr o
priamente dito, foi o reconhecimento do sacrifício involuntário. Compreende-se
como um dever moral pedir aos artistas para representar com sua obra a ampli
tude dos acontecimentos que abalaram as comunidades, consagrando o sentido
sempiterno do sacrifício. E, uma vez que a arte oferece a certeza de exprimir a
transcendência, a soberania da obra une idealmente sua função de rememoração
coletiva à sua própria configuração plástica. Da precária tumba erguida na beira
da estrada até o memorial, a lógica patrimonial permanece idêntica: o acidente,
a catástrofe e a guerra estão representados pelos símbolos que asseguram a reme
moração. Em torno do museu de Hiroshima, esculturas em bronze representam
corpos irradiados pela bomba atómica. A figuração plástica do morto não exerce
somente um papel comemorativo, ela pretende atualizar o momento em que o
corpo se encontra numa postura “ viva” da morte, imóvel pela eternidade. Ela
ultrapassa a simbólica do desastre monstruoso impondo ao olhar público a ir
rupção do cadáver. Torturar a memória do ato radical: este seria o seu destino.
Essa figuração do “corpo da guerra” ou do “corpo da catástrofe”, ao exacerbar o
princípio da visão realista, parece exercer a função social da transcendência estéti
ca da memória coletiva. A representação artística e realista do horror serve, pois,
apenas de ritual de entronização da ordem da rememoração. Em H iroshima, o
corpo desfigurado, invocado pela presença imutável da escultura, é transfigura
do, entra na lógica da transmissão de mensagens pacíficas lançadas às gerações
futuras. É o apelo à vocação conjuratória de um “nunca mais”. Essa ordem da
transmissão exemplar consagra uma das funções sociais da arte que, assim, parti
cipa da reprodução do sentido da história.
A encomenda pública de uma obra de arte impõe-se desde logo como um ato
político ou social para a comunidade, e seu sentido é predestinado pelo impera
tivo daquilo que é considerado memorável. Sendo ela mesma um objeto que se
inscreve em um tempo indefinido, um objeto que impõe por si só a lembrança,
a obra de arte impõe desde logo essa garantia de transmissão. Os homens pú
blicos esperam das esculturas instaladas em praças públicas que exaltem a ima
gem pública de uma cidade, que produzam uma “ memória da cidade”. M esmo
que a obra encomendada não tenha por função representar a memória de uma
tragédia coletiva, ela sempre exerce um papel comemorativo. Essa utilidade pú
blica da arte nunca teve necessidade de ser reivindicada. Ela é óbvia. E tão óbvia
que é negada quando exagera em seu significado, uma vez que, neste caso, esta
rá confessando a vassalagem da arte às intenções do poder político. O objeto
monumental, necessariamente reconhecido como de utilidade pública, confere
à obra em si um papel federalizador na produção do coesão social. Nada escapa
a essa eterna confecção da coesão social. Basta constatar em que medida o culto
contemporâneo do memorável atravessa todos os empreendimentos culturais,
mesmo os mais efémeros. Essa multiplicação das representações do memorável
não teria como única perspectiva a exibição de uma certa monumentalidade dos
elos comunitários? Pois a catástrofe ativa essa coesão social e estimula uma maior
solidariedade, encontrando sua representação durável, em um momento poste
rior, em um monumento. O que é negado pelo mecanismo da comemoração é
a degradação do sentido engendrada pelo desastre. O que permanece como um
não-dito é a memória da morte absurda. Pois esta nada tem de cívica. É preciso
que o próprio morto seja chamado para sustentar os elos da comunidade, para
conjurar a irrupção de um contra-senso. E mesmo que a obra de arte tente repre
sentar o que pode parecer absurdo em um desastre, o simples fato de ela ser uma
obra assegura mais do que nunca a transmissão do sentido memorável atribuído
a qualquer catástrofe.
Em H iroshima, a cúpula de um edifício comum que resistiu parcialmente a
deflagração provocada pela bomba atómica tornou-se um património mundial.
Um pouco mais longe, o museu de Hiroshima, local de “peregrinação” maciça
mente freqüentado pelas crianças, é objeto de sérias controvérsias quanto às m o
dalidades de exposição pública das memórias de guerra. Os efeitos da bomba ató
mica parecem apresentados como conseqüências de um cataclismo, e essa oculta
ção de qualquer ressentimento em relação aos americanos é reforçada por uma
invocação universal da paz. A própria lembrança da deflagração é representada
pelos resíduos de objetos, que evocam insistentemente a desintegração do corpo
(fragmentos do vestido de uma menininha, triciclo calcinado...). M as a transmis
são da mensagem proposta, mesmo que fundada na situação de guerra, orienta
ainda assim o olhar do visitante na direção da constatação trágica de uma fatalida
de do destino. Sabe-se muito bem que a gestão contemporânea dos patrimónios
impõe um sentido da H istória às memórias coletivas. Cada “ museu de guerra”
apresenta uma mensagem determinante a partir de uma reconstituição dos fa
tos e, ao mesmo tempo, focaliza a atenção pública, atribuindo um sentido no
mínimo unitário à atualização dos afetos. As emoções provocadas pelo “ museu
de guerra” descobrem sua razão de ser nessa mensagem unitária. E se restam ou
tros vestígios, seu poder simbólico pode parecer inútil. Na cidade de Hiroshima,
completamente reconstruída, uma parede ainda em ruínas constituía uma outra
lembrança do desastre que a prefeitura queria destruir por razões de segurança.
Por intermédio da voz de movimentos associativos, a população colocou-se con
tra, manifestando sua firme intenção de manter esse resto simbólico que não
tinha sido classificado como “ monumento histórico”. As memórias coletivas nem
sempre seguem a ordem da gestão político-administrativa dos patrimónios. Ao
apelar para as instituições do Estado, com o objetivo de proteger os objetos e os
locais representativos das memórias coletivas, as associações locais, em muitos
países do mundo, terminam contudo consagrando o controle institucional das
emoções coletivas.
No Japão, a classificação dos vestígios da cúpula de Hiroshima como patrimó
nio mundial anuncia o começo da nova organização dos patrimónios culturais.
Até então, a Era M eiji tinha sido uma linha de demarcação simbólica entre o que
pertencia à tradição e o que dizia respeito à modernidade. Foi a partir de uma
ruína provocada pela primeira guerra nuclear que nasceu a concepção moder
na de patrimonialização no Japão. A própria idéia de tradição teria se tornado
equívoca? Por um lado, o ato de consagração patrimonial é orquestrado pelas po
tências estrangeiras, e, por outro, a mais trágica das catástrofes transforma-se na
origem simbólica de uma nova ordem de transmissão. A resistência moral invo
cada contra os riscos do esquecimento coletivo das devastações provocadas pela
guerra atómica parece ser, em escala planetária, uma função delegada aos japone
ses pelos ocidentais. E foi a partir desse novo espaço que a concepção moderna
dos patrimónios encontrou, sem jamais expressá-lo, sua atual legitimidade. Em
suma, no Japão, a idéia contemporânea de património baseia-se em uma dupla
catástrofe: a da primeira bomba atómica e a que é produzida pelos estrangeiros
ao imporem uma ruptura radical na própria concepção da tradição. De uma
maneira implícita, a modernidade patrimonial, sob a pressão dos estrangeiros,
faz-se significar a priori por intermédio de uma catástrofe constitutiva da trans
missão. No Japão, muitos templos são regularmente reconstruídos sem qualquer
cuidado com a preservação da autenticidade original.14A concepção ocidental de
uma conservação monumental que resista às metamorfoses temporais não tem
razão de ser: o que se faz de forma idêntica pode se refazer indefinidamente. Em
Tóquio, quando se decidiu fazer, no terreno onde havia um templo, uma grande
central de distribuição de energia elétrica, o edifício foi construído sob a terra, e
o templo foi desmanchado para permitir as obras, mas reconstruído no local que
tinha sido dele. O desaparecimento em si não tem, pois, sentido, uma vez que o
que dura só pode durar na medida em que retoma sua própria forma. O ritmo
da desconstrução e da reconstrução anula simultaneamente as representações da
modificação e do desaparecimento. As ruínas são muito raras, elas não inspiram
a nostalgia.
O desmoronamento da baía de Kobe, no dia 17 de janeiro de 1995, foi inespe
rado. A representação coletiva da eventualidade de um terremoto era mais con
centrada na região de Tóquio. A cidade de Kobe, construída sobre uma ilha, jóia
da expansão marítima japonesa, não previra assistir um dia à irrupção de suas
próprias ruínas. Tal tremor de terra provocou a interrupção das formas de fun
cionamento dos serviços públicos. A distinção entre a esfera pública e a esfera
privada tornou-se tão incerta durante vários meses que mesmo as referências
existenciais e cotidianas da vida citadina foram abaladas. Os habitantes de Kobe
viram-se entregues a si próprios, apesar dos esquemas de socorro, uma vez que
a força pública não era mais representativa da ordem urbana. Os sobreviventes
fragilizados, à procura de seus desaparecidos, queimando seus próprios mortos,
depois recolhidos em acampamentos, foram vítimas de uma segunda catástrofe,
a das instituições. M as a utopia é tenaz, as autoridades se serviram do drama para
acelerar a reconstrução da cidade, e fazer crer na emergência de uma nova urbani-
dade, deixando na sombra a lembrança da “ grande rachadura”.15A partir do dia
17 de janeiro de 1995, os vestígios do tremor de terra de Kobe foram sendo apa
gados no ritmo de uma reconstrução cada vez mais rápida. A “paisagem das ruí
nas” aparece sempre como conseqüência desastrosa do terremoto ou da guerra.
Parece inconcebível que as ruínas possam “ ser uma paisagem”. Alguns fotógrafos
ocidentais afirmaram, observando fotos da catástrofe, que era preciso conservar
a memória coletiva do terremoto e expô-la, considerando que os japoneses têm
tendência ao esquecimento. Esse estado de espírito aproxima-se do contra-senso,
trata-se de uma projeção cultural mantida pelo culto contemporâneo e universal
do “memorável”, pois as memórias coletivas não têm obrigatoriamente necessi
dade de serem confrontadas com a objetivação patrimonial dos afetos que as
animam. O que persiste é o fato surpreendente de os ocidentais pretenderem ser
os responsáveis pelas memórias coletivas, em escala planetária. Quando essas fo
tos dos efeitos desastrosos do terremoto de Kobe foram apresentadas na Escola
de Belas Artes de Paris, os textos que as acompanhavam afirmavam claramente
que era preciso ajudar os japoneses a não esquecer! Essa maneira de se responsa
bilizar pela memória dos outros, como se fosse a aplicação de uma regra moral
universal, confirma o totalitarismo patrimonial.
Em 1999, um “ museu de falhas geológicas” foi aberto e todos os visitantes
podem desde então ver as conseqüências do terremoto. Na entrada do museu,
uma instalação cenográfica foi montada como se fosse uma cena inesquecível:
a estrada está fendida, levantada de um lado, e os restos de um semi-reboque
localizado ma extremidade são precedidos por uma série de cadeiras de rodas pa
ra deficientes físicos. A cena está ali para representar toda a extensão do drama.
Visita-se em seguida uma casa cujas paredes estão rachadas, e depois se entra em
uma cozinha devastada, com a louça quebrada amontoada no chão, no meio de
móveis derrubados. Finalmente, chega-se a uma parte da área que foi conservada
“no estado”, e é ali que se pode ficar sabendo das causas do terremoto, analisa
das e apresentadas por especialistas. Em suma, o percurso é bastante clássico: o
visitante é convidado primeiro a se dar conta dos efeitos da irrupção do desastre
na vida cotidiana, recebendo em seguida uma boa lição didática que lhe dá as in
formações científicas necessárias para compreender o que se passou e que pode
acontecer novamente. A “ lógica fria” desse tipo de apresentação evita qualquer
exibicionismo de sentimentos, cada um pode seguir livremente os caminhos de
suas fantasias e de sua imaginação. Nessa “ memorização” da catástrofe não se ape
la para o uso abusivo da fotografia. As raras fotografias utilizadas têm sobretudo
uma função de chamada, não estão ali para “ avivar” a lembrança do drama. O que
não é apresentado são as conseqüências sociais e políticas do terremoto. Este con
tinua sendo tratado como um fenómeno natural. Esse “ museu de abalos sísmicos”
é uma verdadeira inovação, mas seu objetivo talvez não seja conservar a memória
coletiva de uma catástrofe. Um museu assim poderia ter sido realizado em CD-
ROM , sem que fosse necessário conferir-lhe essa “ inscrição territorial original”.
Pois a implantação do museu corresponde perfeitamente a essa escolha do local
onde o abalo efetivamente ocorreu. A preocupação com a autenticidade original,
que não parecia ser uma preocupação maior para os japoneses, está bem visível.
M as essa conservação do local não faz parte de uma lógica patrimonial, ela diz
respeito mais à manutenção mnésica cotidiana da ameaça sísmica. A eventuali-
dade de um cataclismo urbano não resulta na ocultação mais ou menos volun
tária de um terremoto passado, ela incita a viver no ritmo de uma metamorfose
implícita, fruto de uma colisão repetida entre o durável e o efémero. Em todos
os hotéis japoneses há textos informativos que descrevem as condutas a seguir
em caso de sinistro, com a rubrica “ terremoto” presente. O que significa que ne
nhuma pessoa jamais esquece que o solo pode desabar sob seus pés a qualquer
momento. A eventualidade da catástrofe está inscrita na memória. Apesar da
aplicação de regras anti-sísmicas na construção urbana dar uma representação
pública da conjuração possível dos efeitos desastrosos de um terremoto, ela não
provoca o esquecimento do risco sempre presente. O ritmo da memóri a segue
o da catástrofe, provocando ao mesmo tempo os efeitos constantes da simulta
neidade entre o passado, o presente e o futuro, que perderiam o próprio sentido
ante a idéia de ocultação.
A estratégia do património contemporâneo japonês parece corresponder à
vontade de “memorização” de certas catástrofes. Em M inamata, onde o excesso
de mercúrio dentro da água do mar provocou a morte lenta e horrível de um
grande número de pessoas, a área litorânea foi reformada, as casas dos pesca
dores foram reconstruídas, as pessoas que estavam agonizantes e cujos corpos
sofriam os terríveis efeitos da devastação física morreram, a taxa de mercúrio
caiu e os peixes voltaram a ser comestíveis. Os turistas podem vir (eles são ainda
muito pouco numerosos), mas não mais verão os deficientes físicos, nem nos
hospitais nem nas praias... Em memória do que se passou, restam dois lugares:
um é um pequeno museu, um tanto pobre, e o outro é uma construção recente
que abriga um museu muito moderno, um centro de pesquisas e arquivos. No
primeiro museu, a reconstrução dos fatos pode parecer indigente, por falta de
meios, mas a emoção provocada é ainda assim bastante forte, devido aos objetos
e às fotografias reunidas, a evocarem o presente da tragédia. Já dentro do luxuoso
centro, o tratamento e a apresentação científica dos distúrbios de comportamen
to, da devastação física provocados pelo mercúrio dentro do corpo humano assim
como no corpo animal, permitem que o público compreenda o que aconteceu,
ao mesmo tempo impondo uma reflexão didática sobre o drama propriamente
dito. O que importa não é a escolha entre esta ou aquela representação “patrimo
nial”, mas a conjunção de alternativas como organização possível do olhar e do co
nhecimento. Tornar mais “moderno” o pequeno museu, alterando sua confecção
museográfica, careceria de sentido tanto quanto abandoná-lo. A eventualidade da
catástrofe, fundada na garantia de que já aconteceu mas pode se repetir, represen
ta a fatalidade. A conservação patrimonial só adquire um sentido ao configurar
de forma global essa representação da fatalidade. O que perdura é uma aliança de
contrários, entre a precariedade e a duração, entre a repetição das tradições e a
inovação tecnológica. E esta aliança de contrários não se resolve como um movi
mento dialético, mas sim é exacerbada pela própria eventualidade da catástrofe.
O controle político do memorável (em outras palavras, a gestão dos mortos
pela M ãe Pátria) baseia-se na conservação do sentido da História, cujas come
morações, à medida que o tempo passa, continuam trazendo consolo ao assen
timento público, com a anulação do absurdo da guerra. Quando se comparam
os museus da guerra, em Hiroshima e em Nagasaki - sendo o primeiro o mais
antigo - , é obrigatória a constatação de que a mensagem dominante não é a de
algum sentido específico da H istória, mas a de um apelo à reflexão coletiva sobre
os riscos de destruição da humanidade provocados pelo mau uso da energia nu
clear. A bomba atómica é primeiramente apresentada como uma fatalidade que
atinge um povo provocando a morte simultânea de um grande número de indi
víduos e a decomposição progressiva e inelutável de sobreviventes. No museu de
Hiroshima, o pequeno pedestal de mármore no qual foi traçada com giz a forma
de um corpo desaparecido, transformado em poeira, provoca uma emoção que
ultrapassa qualquer reconstrução da memória e que torna praticamente irrele
vante a vontade de musealizar, própria da transmissão patrimonial e histórica.
Também não se trata de uma atualização brutal do que se passou. O vestido que
se desfez invoca (e não evoca) o corpo desaparecido da menininha, seu corpo vo
latilizado. M as essa emoção tão viva, causada pela presença do vazio provocado
pela irradiação, também não é a condição primordial da rememoração. A ceno
grafia museotécnica banaliza a morte inscrevendo-a na lógica da guerra, depois
na da destruição nuclear. No museu de Nagasaki, construído mais tarde, os vestí
gios de decomposição provocados pela bomba atómica servem como provas, não
estão mais ali para emocionar, apresentam-se como indicadores definitivos das
conseqüências desastrosas da irradiação.
H á no presente, para a comunidade, duas tendências dominantes na gestão
museográfica dos mortos durante a guerra: a “ historicização” e a “cientifização”.
A “ morte pela pátria” entra na ordem da História, e sua lembrança, na qualidade
de elemento da comunidade, é assegurada pela comemoração. O sentido de sua
morte se torna inabalável e o absurdo das circunstâncias nas quais ela sobreveio
desaparece em favor da restituição memorável do sacrifício. No Japão, se tomar
mos como exemplo o tratamento da morte sacrificatória na guerra atómica, cons
tatamos que o desaparecimento dos corpos se vê rematado por uma interrogação
científica comum sobre a catástrofe nuclear. A massa dos corpos volatilizados
sugere a questão fundamental à humanidade, que é a da construção de seu desti
no pelo exercício de suas responsabilidades éticas e científicas. A ssimilada a uma
catástrofe, a guerra atómica não entra na lógica da História, pelo contrário, ela
desvela sua insensatez. Enquanto os objetos cotidianos irradiados continuarem
atrás da vitrine, como no museu de Hiroshima, a guerra atómica ainda não se tor
nará uma abstração formal, pretexto para levantar uma interrogação coletiva m o
ral e científica. Quando desaparecem, como no museu de Nagasaki, o tratamento
das memórias de guerra torna-se comparável às estratégias contemporâneas da
“guerra cirúrgica” : o que se apagou foi o próprio cadáver.
0 FUTURO GIRATÓRIO

Na França, um homeless, considerando que sua casa de papelão era digna do


maior interesse arquitetônico, apresentou um dia o pedido de sua tombamento
na categoria de M onumentos Históricos. Não é difícil imaginar que, caso obtives
se ganho de causa, demandas do mesmo tipo iriam se acumular. E, para coroar
essa antecipação patrimonial, no verão de 2000, no átrio da Notre-Dame, no
coração da capital francesa, alguns homeless foram convidados por um artista a
se instalar ali como uma comunidade nómade. Não estavam fazendo greve. Eles
receberam um salário, pago pela prefeitura de Paris, para realizar uma performan
ce pública apenas com sua presença. Os turistas de todos os países do mundo pu
deram contemplar seus habitats precários e seus modos de vida. Puderam fazer
perguntas sobre seu futuro patrimonial, e obtiveram, com alguma comiseração,
dados precisos sobre sua vida íntima. A paisagem familiar da miséria das ruas
recebeu o selo da singularidade estética. Os homelesstornaram-se artistas da vida
social em situação pós-catastrófica. Eles constituem um património universal e
salutar, uma vez que exibem os meios indispensáveis à sobrevivência dos homens
no caso de acontecer um desastre. Exibir-se como obra para constituir-se em um
modelo para as boas ações da humanidade é um costume de nossa modernidade.
Tal fato tem antecedentes: os índios eram antigamente exibidos para o prazer dos
olhos ávidos de curiosidades exóticas. M orreram por causa disso. Seus cadáveres
algumas vezes foram recolhidos e instalados atrás de vitrines, em um museu de
história natural, como em Nova York. Com os patrimónios da humanidade, nada
se perde.
A exclusão continua sendo uma questão da administração social, mas a sin
gularidade do indivíduo marginalizado é o objeto privilegiado de um empreen
dimento de gestão cultural, da mesma maneira que a singularidade do indivíduo
bem-integrado. A identidade cultural vem compensar as debilidades da identi
dade social. Em nome do multiculturalismo de vocação ecuménica, todos os
signos de distinção cultural estão destinados a ser reconhecidos e conservados.
O aspecto cultural, como outra fonte inesgotável das identidades, serve de “ válvu
la de segurança” para a gestão do social. Atribui-se a essa singularidade cultural
um valor estético positivo, uma vez que se pode encená-la e mostrá-la em públi
co. O mesmo acontece com a restituição das histórias individuais em vídeo, em
fotografia, relatos de trajetórias de vida que oferecem a certeza de conservação
de uma identidade cultural. Os itinerários individuais ou comunitários são “ me
morizados”, expostos como fragmentos de uma estética existencial pelos “ artistas
plásticos da vizinhança”, que pretendem dar a palavra aos habitantes das cidades.
Os homeless são também cada vez mais fotografados por antropólogos, artistas e
jornalistas, em todos os países do mundo. O retrato do homeless é tratado como
o de um “ ser singular” por excelência. Trata-se de escolher rostos que não possam
ser esquecidos, rostos que traduzam toda a profundeza existencial de quem é
“sem-teto”, entregue às ruas. No espaço público indiferenciado, o rosto do home
less se torna comparável ao do “ último dos moicanos”, do índio que sobreviveu
no meio de um mundo dominado pelo culto do consumo. Esse primitivo dos
tempos modernos apresenta o rosto da liberdade radical. Oferece uma imagem
pública da soberania conquistada a partir do nada. A fotografia de um homeless
em Tóquio é particularmente significativa: a cabeça para fora de um amontoado
de papelão que lhe serve de moradia é absolutamente magnífica, ela representa
o orgulho absoluto e a sua soberania parece transcender a realidade de sua condi
ção. O design dos homeless representa a assunção de uma harmonia natural entre
o homem e seu meio: o homem com tão poucos recursos revela-se mais inventi
vo do que os designers da produção industrial. Diante das extravagâncias do con
sumo, o homeless mostra como é capaz de ultrapassar a pressão das necessidades,
assegurando a construção de seu próprio habitat. Assim, multiplicam-se as foto
grafias das invenções realizadas pelos homeless no mundo inteiro, para provar
que o “ design minimalista” continua, mais do que nunca, presente nas sociedades
pós-industriais, como representação de uma estética da sobrevivência.
Essas fotografias das invenções realizadas por homeless no mundo inteiro,
reunidas em livros de arte (para presente de Natal), apresentam as imagens in
teressantes de uma estética da sobrevivência. Não existe efeito “ hiper-realista”,
eventualmente produzido pela fotografia ao apresentar uma “ realidade excedida”,
uma realidade que exacerbe sua própria maneira de ser apresentada. A conotação
estética limita desde logo a possibilidade de ostentar, como na pintura america
na hiper-realista, uma “ outra” realidade que nasça do poder da própria imagem.
A regra deontológica que consiste em negar em nome de uma boa consciência
é, justamente, constitutiva dessa estética da realidade social. E quando os antro
pólogos ou os jornalistas propõem aos homeless que eles mesmos se fotografem
ou filmem, o resultado é igual: o auto-estetismo continua sendo sempre a conse-
qiiência do estetismo. Isso explica porque muitos homeless pedem dinheiro para
se deixar fotografar, como faziam os índios quando os antropólogos vinham tirar
fotos ou filmá-los. E essa exigência é perfeitamente legítima, tanto mais que as fo
tografias serão utilizadas em livros de arte. Em certas comunidades de homeless,
a possibilidade de tirar fotos ou de fazer uma reportagem depende de uma regra:
o jornalista ou o antropólogo deverão permanecer durante um mês nos locais e
compartilhar a vida dos pobres. O estetismo da miséria não tem possibilidade
de desaparecer. As fotografias não circulam livremente mesmo entre os antropó
logos de diferentes países. Todos os fotógrafos terminam exigindo seus direitos,
considerando que “ sua” coleção já tem um certo valor.
O exemplo do homeless pode parecer exagerado quando se fala em patrimó
nio, mas ele é, contudo, significativo do processo atual de antecipação da prote-
ção patrimonial. Nas mentalidades coletivas - de uma maneira universal - a idéia
de património se torna um princípio teleológico. Sendo tudo virtualmente um
património futuro ou imediato, não há outra alternativa para obter a “ consagra
ção cultural”. Todo artista preocupado com a transmissão de sua obra, não pensa
senão na proteção patrimonial, e a entrada no museu se torna sua única finalida
de. Entrar na ordem patrimonial - como “entrar no museu” para um artista - é
o melhor meio de ligar o passado ao futuro, ou seja, de assegurar sua inserção na
lógica de uma continuidade histórica. Desde logo, a antecipação patrimonial fica
suscetível de redobrar a velocidade e de se estender por toda parte. Na França,
conjuntos habitacionais construídos nos anos I960, na periferia de Paris, são ho
je demolidos porque eram chamados de “ tocas de coelhos”. M as, em decorrência
dos movimentos de proteção das memórias urbanas, algumas dessas “torres” es
tão sendo conservadas como locais de memória, para mostrar às novas gerações
como seus pais ou avós viviam nessas “ tocas de coelhos”. Da mesma maneira que
as catástrofes podem ser tratadas como objetos museográficos, também a “ misé
ria social” pode ser um objeto patrimonial.
Essa expansão patrimonial ilimitada obriga que se coloque a questão sobre o
que será necessário destruir um dia: “ Começa-se então a compreender que uma
sociedade que se recusa a levar em conta as destruições necessárias à sua evolução
é uma sociedade morta... Aprender a destruir, determinar com a máxima sensibi
lidade o que é preciso ‘destruir’, no sentido de não levá-lo em consideração como
referência, será o ensinamento de base que os arquitetos deverão receber em suas
escolas...” 16Como fazer da destruição um ato que não seja negativo, uma vez que
a lógica patrimonial já é em si um empreendimento de destruição? Conservar
já não é uma maneira de pôr fim a algo que ainda está vivo? Isso pode ser visto
perfeitamente em cidades onde a reconstrução “ museográfica” de um bairro é a
assinatura de sua condenação à morte. O que mostra a vida de um bairro anti
go é a sua indeterminação, o jogo das tensões que o percorrem no ritmo de um
perpétuo reajustamento vivido do espaço. A conservação patrimonial petrifica
o bairro, paralisa-o em uma imagem inalterável. M as existem também maneiras
de autodestruição de patrimónios. Na Europa, fazem parte de uma “ estética do
abandono”, e constituem-se em “ paisagens de ruínas”. A ruína antiga já tem um
status patrimonial. Quando é atual, em vias de se transformar sob nossos olhos,
dá déia de abandono, de degradação, é um testemunho da incapacidade de pre
servar. Entretanto, o património não é em si mesmo o fruto de uma “ simbólica
das ruínas” ? Uma estética contemporânea do abandono permitiria considerar as
“ruínas da modernidade” algo diferente de um desastre. No Japão, essa questão
não é colocada nestes termos: a idéia de “património negativo” anula qualquer
referência a uma “ estética de ruínas”. A ruína provocada por uma catástrofe é
uma prova exemplar, ela não pode inspirar um sentimento estético. O abandono
propriamente dito não tem sentido, e não tem, aliás, sequer lugar nos ritmos da
metamorfose territorial. No Japão, o movimento perpétuo de reconstrução impe
de qualquer representação da desolação. Contudo, as formas de decomposição
não são necessariamente trágicas, elas não traduzem a impotência do homem
em preservar “ seus” patrimónios, elas manifestam o que pode ser a soberania de
uma autodestruição “natural”, que se consome sem a menor intervenção do ho
mem. Se fosse verdadeiramente necessário escolher o que seria preciso destruir,
os critérios seriam os mesmos que os da conservação. Pensar a destruição como
o futuro da conservação não é tão paradoxal, uma vez que se pode imaginar que
a expansão dos patrimónios, inclusive seus excessos contemporâneos, terminará
ela mesma engendrando suas próprias “ ruínas do futuro”.
Imaginemos agora que os objetos não nos digam mais nada. Terminaram de re
presentar o que nós queríamos que representassem - são provas definitivas de
nossa história e de nossas idéias. Neste caso, os objetos seriam apenas cópias con
formes a um original que não teriam mais razão de ser. Como nós atribuímos
ao objeto autêntico uma “ vida” que estaria faltando à sua cópia, nós esperamos
do objeto original que ele continue a expressar-se, que prossiga sua existência e
que nos ofereça a ilusão de estar sempre presente, mesmo que já seja muito ve
lho. Quanto mais antigo, mais ele representa o “velho” mundo, e mais nós acredi
tamos poder fazê-lo falar, como se esperássemos dele uma cumplicidade fiel. M as
existe no mundo um imenso santuário da cultura ocidental em que a sensibilida
de de nosso olhar se tornou para sempre o exclusivo produto de nossa inteligibili
dade. É o museu de cópias no Japão. As mulheres da limpeza passam seus panos
úmidos e suas escovas sobre as mais belas pinturas da história das artes. Até o ros
to da Gioconda recebe um jato de produto de limpeza antes de ser esfregado com
uma mão enérgica (e bem viva). M useu do falso? M ilhares de quadros mais céle
bres estão reunidos dentro de uma imponente construção arquitetônica que está
parcialmente encravada na montanha. Todas as precauções anti-sísmicas foram
adotadas: o santuário da arte não pode ser destruído em caso de tremor de terra.
The Otsuka M uséum Art é o exemplo megalomaníaco da reconstituição histó
rica de toda cultura artística ocidental. Um número considerável de pinturas,
desde a Idade M édia até os nossos dias, foi reproduzido sobre placas de cerâmica,
com molduras douradas. Vasos gregos, mosaicos romanos, pinturas murais de vá
rias igrejas, pórticos, a própria Capela Sistina estão lá apresentados “ em tamanho
natural”. Esse templo das artes reconstituídas expõe a pretensão de representar,
como em um verdadeiro bunker, toda a história ocidental das artes. Trata-se de
um ato de apropriação fantástico, diante do qual a distinção usual entre o verda
deiro e a cópia não tem mais sentido. O “ falso” não é mais verdadeiro ou menos
verdadeiro do que o original autêntico, ele se impõe por si mesmo. Esse museu
da cópia “ tomou como refém” a cultura ocidental para salvá-la dos riscos de des
truição por ela incorridos, caso um dia o Louvre pegue fogo...
A fascinação pelo que “ serve de signo” dispensa-se de agora em diante de
qualquer reverência obsequiosa em relação à autenticidade original do objeto.
Na era da reprodutibilidade infinita, o falso se impõe por si mesmo, uma vez
que não entra mais nas categorias da cópia, da réplica, mas, sim, nas do virtual
e da clonagem. O “ falso” nos protege da fraqueza do “verdadeiro” e do risco de
seu desaparecimento? O que é autêntico (o verdadeiro do verdadeiro) estaria en
tão destinado a desempenhar o papel de réplica. Na França, a gruta de Lascaux,
um dos berços da humanidade, foi fechada ao público, e uma segunda gruta,
integralmente reconstituída foi aberta para substituir a primeira, cujas pinturas
murais corriam o risco de se degradar. Temos o hábito de considerar que a pr i
meira gruta é a original, por ser a autêntica, mas está se tornando cada vez mais
freqúente considerar a segunda como a original. Com efeito, já se cogita elaborar
outras cópias de Lascaux, e de transportar réplicas similares para outros lugares
do mundo. Imagina-se desse modo que um certo mercado do módulo da “gruta
de Lascaux” possa começar a existir, mas já há um CD-ROM que permite visi
tar, em casa, a gruta nos seus menores detalhes. As tecnologias da imagem de
síntese nos habituam a não mais opor o “verdadeiro” e o “ falso” em seu uso mo-
ral. O que se passa no “mundo virtual” acontece da mesma maneira no “ mundo
real” : o “ verdadeiro” ainda tem alguma relação com a verdade? Trata-se de agora
em diante de uma verdadeira “ clonagem visual” que não teria mais relação com a
imitação? Por não derivar mais da relação entre o modelo e a cópia, a clonagem
abole o espelho. Não sabemos mais quem é o duplo do outro. A clonagem anun
cia a condenação à morte da conservação patrimonial?
0 F U T U R O DO H O M E M

O futuro do homem continua sempre pensado em referência a seu passado. Ele


não é imaginado como o que ainda não é. A penas a ficção científica nos oferece
uma visão possível e futurista das metamorfoses do homem e das sociedades.
Essa antecipação ficcional busca seus recursos nas descobertas científicas e mais
particularmente na genética. Além disso, ela provoca o prazer de um certo medo
do futuro, ao encenar o desaparecimento dos traços originais do comportamen
to humano, e tranqüiliza quando faz reaparecer, em seguida a uma gigantesca
catástrofe, uma arqueologia do comportamento humano. M as revela sobretudo
em que medida a alteridade do objeto e do homem pode se tornar um produto
analisável, classificável e passível de ser gerado. Assim, acreditamos captar o que
nos é estranho, pela simples construção de um espelho de nós mesmos. Essa
dinâmica da ordem especular abole as diferenças de temporalidade e anula o
que resta da estranheza das civilizações, através do conhecimento de suas singu
laridades culturais. A antropologia contemporânea provoca e gera a estranheza,
para torná-la ainda assim familiar ao nosso olhar. É graças a essa maquinaria
que o processo de reflexividade não pára de se desenvolver por absorção das
diferenças. É preciso admitir: o que é objetividade, o que é designado e reco
nhecido como tal, nada tem de estranho. Na qualidade de guardião ideal das
riquezas simbólicas, o antropólogo assegura o reconhecimento público da ne
cessidade absoluta de reflexividade. M as não pode fazê-lo senão na medida em
que continue seu trabalho de levar à morte o que está vivo. Exclusivo produto
de nossa reflexividade, a “ coisa patrimonial” funciona por ela mesma, não estan
do ameaçada por nenhuma espécie de incerteza a respeito de seus próprios fins.
Ela adquire uma autonomia tal que a finalidade de sua gestão não mais precisa
ser legitimada.
O princípio de reflexividade, devido ao fato de criar uma equivalência geral
entre as singularidades culturais, e de provocar uma mortificação do que está
vivo com finalidades gerenciais, admite mesmo assim uma alternativa: a da “es-
tetização universal”. Se a reflexividade se tornasse absoluta, ela daria impressão
de morta, da mesma maneira que o conceito mata o afeto. Se vivêssemos em um
mundo que não mais se oferecesse senão como espelho de si mesmo, em meio
à mais absoluta objetivação de seus objetos e suas relações, experimentaríamos
apenas um sentimento coletivo de mortificação. Só teríamos para olhar a vida
já vivida, reproduzida em imagens dela mesma, sem jamais ter a percepção do
imediatismo do que está vivo. Felizmente, o princípio de reflexividade não pára
de encenar sua própria estética. O “espelhamento” dos objetos, dos lugares, dos
territórios que decidimos conservar, proteger para os tempos futuros, pressupõe
uma “ estética refletida”. Esta nada tem de imediata, de espontânea, ela não passa
de uma construção que continua capaz de simular sua própria naturalidade. No
ritmo da patrimonialização geral, a estética não é um “ adicional”, ela é uma finali
dade essencial, uma vez que permite ver e representar tudo aquilo que nos cerca,
bem como o meio dentro do qual vivemos, como a configuração de uma pai sa
gem. Apresentando a inegável vantagem de dar a forma imediata de “quadro” a
qualquer ato de percepção, a paisagem subsume os diferentes conceitos do patri
mónio. O princípio de reflexividade alcança então o mais alto grau de realização
e, a partir da estética geral, como resultado de sua atuação, tem a possibilidade
de restituir a naturalidade do que destruiu. O natural, o primitivo, o selvagem, o
original, todas estas categorias que designam o que está aquém da reflexividade,
reaparecem como os signos de uma autenticidade redescoberta. A natureza con
servada, cuidada, livre da impureza dos homens, está destinada a se tornar nova
mente uma natureza selvagem. No cerne da estetização generalizada espirala-se o
retorno do natural purificado das escórias de sua própria representação. M as esse
retorno só se tornou possível devido à exacerbação do próprio trabalho de refle
xividade. Na conquista patrimonial, o que nos é oferecido como espelho de nós
mesmos é a utopia da naturalidade absoluta do espírito.
A assunção presente do virtual não modifica os prazeres propiciados por essa
naturalidade reconquistada. O mundo virtual, mesmo admitindo-se que não po
de mais ser equiparado ao real e que adquiriu autonomia, não se separa de nossa
organização simbólica tradicional. A ruptura que ele introduz - e que não é das
menores - deve-se ao fato de que esta mesma organização simbólica, ao se tor
nar fruto de nossa inteligibilidade, pode ser tomada pelo objeto de nossa gestão
mental. Então ela não corresponde mais à antecedência dos comportamentos cul
turais e sociais, ela não é mais vivida de uma maneira inconsciente, torna-se sus-
cetível de ser tratada como um sistema do qual se conhecem bem os mecanismos
e do qual se podem prever os efeitos. As tecnologias do virtual são na maioria das
vezes tidas como meios complementares de visualização dos objetos. Contudo,
toda composição museográfica passou a ser vista sob o ângulo da virtualidade.
Não se trata de uma questão tecnológica, mas de um verdadeiro “estado de espí
rito”. O objeto, quando está exposto sobre um pedestal, com sua própria magni
ficência, parece sair de sua virtualidade. Ele é apresentado “ como uma pré-exis-
tência”. Esperamos dele que ultrapasse a virtualidade de sua conservação e que
sua visibilidade nos alucine. Buscamos ainda uma interação corporal entre quem
observa e o objeto em si, o objeto já apreendido como um olhar. Essa maneira de
acreditar que a virtualidade tecnológica em nada mudou nossas formas clássicas
de percepção nos parece, no mínimo, ingénua. Ela nos incita a permanecer em
um enfoque fenomenológico protegido dos “ mundos virtuais”. I nterrogando-se
sobre as maneiras de expor o sentido, os antropólogos Jacques M ercier e Andras
Zampléni apresentam estas questões: “ Como acrescentar à faculdade que todos
têm de criar e modificar constantemente seu espaço corporal, as espacialidades
singulares dos objetos tradicionais e, especialmente, dos objetos rituais? Como
fazer ressurgir no museu a experiência de corpos originalmente ligados a esses
objetos?” 17Haveria então duas esferas: a dos objetos expostos com os quais ain
da poderíamos ter relações corporais “ vivas”, e a dos objetos virtuais, sendo esta
pertencente ao domínio da pesquisa e da compilação. M as o mundo dos objetos
e das relações simbólicas já foi virtualizado. O símbolo é tratado como um arte-
fato sempre suscetível de ser atualizado. Ao suprimir a dimensão do inatual que
caracteriza o símbolo, o virtual abole a “consistência do tempo”. Dentro de um
museu dotado de tecnologias de síntese, predomina uma equivalência temporal
que permite acreditar em uma produção inteligível do imediatismo do atual. Este
seria, aliás, o objetivo da gestão da atualização. A “relação vivida” com o objeto
está destinada a desaparecer em favor da relação virtual, que é uma maneira de
conjurar definitivamente seus sortilégios.
Toda a história contemporânea da patrimonialização é a da passagem do sim
bólico ao virtual. Não se trata de passar de um mundo para outro. O mundo
simbólico transformou-se na arqueologia do virtual. E foi em boa parte graças
à conservação patrimonial. Não existem dois mundos lado a lado: o da ordem
simbólica protegida e o da fluidez de uma ordem virtual dificilmente controlável.
As riquezas simbólicas das sociedades já foram virtualizadas antes mesmo do
desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação. Os próprios etnólogos
foram seus artesãos. Desde os índios em suas reservas, até os últimos operários
dentro de suas minas preservadas, passando pelas tradições conservadas, as me
mórias reatualizadas, as lembranças tratadas pela museografia, nada mais escapa
à virtualização das riquezas simbólicas das sociedades. De fato, as tecnologias do
virtual não são senão meios. M as talvez permitam ainda assim imaginar outros
mundos. Seu uso, no entanto, requer a arqueologia dos elementos simbólicos
que constituem todas as culturas. Não podemos considerá-los unicamente uma
alternativa técnica à gestão futura dos patrimónios. A lógica patrimonial é por si
só uma arma essencial para a virtualização das sociedades.
NOTAS

1 Espelho de cotovia: artifício enganador, por analogia ao dispositivo para apa


nhar cotovias, guarnecido de espelhos, com que se atraem essas aves. (N. T.)
2 M iguel Abensour, L’utopie de Thomas More à Walter Benjamin. Paris: Sens &
Tonka, 2000. p. 147.
3 Ver Jean-Paul Curnier, Henri-Pierre Jeudy, Le développement culturel. Relatório
para o Senado, 1992.
4 Parque Puy du Fou: parque temático na França, onde são recriados mundos e
épocas antigas. (N. T.)
5 Região francesa famosa por registros pré-históricos como as Grutas de Lascaux.
(N.T.)
6 Paolo Fabbri: “ Nós estamos diante de uma tradição sem arcaísmo. É um simu
lacro, evidentemente. M as alguém vai ter a coragem, em nome da globalização,
de chamar esses países, que antigamente eram considerados subdesenvolvidos,
de ‘primitivos da globalização’, como eu já cheguei a 1er? Não estaria havendo
alguma astúcia por parte deles, uma astúcia de guerra, uma astúcia oblíqua da
parte deles para conseguir dinheiro? Antigamente o Estado tinha o monopólio
das comunicações. H oje em dia seu papel é o de regulador das diferenças que
foram colocadas como simulacros”. Conferência pronunciada em 16 de junho
de 2000, pavilhão francês, Bienal de A rquitetura de Veneza.
7 Zunhis: grupo indígena norte-americano, habitante do Oeste do Novo M éxico
(Estados Unidos). (N. T.)
8 Georges Hergé (1907-1983): com o relato, a partir de 1929, das aventuras de Tintin
e M ilou, foi um dos mestres da “escola belga” de desenho animado. (N. T.)
9 Pierre Fedida, “ L’horreur du pr i mi ti f”, revista L’Inactuel. Belval: Circé, p. 101,
outono de 1999.
10pierre Fedida, id., ib.
n pi erre fedi da, id., ib., p. 102.
12 Clifford, The predicament of culture. Harvard: Harvard University Press, 1998.
13 Clifford, op. cit., p. 142.
14 M asahiro Ogino, “ La logique d’actualisation, le patrimoine et le Japon”. In:
Ethnologie française, “ Le vertige des traces”, direção Henri-Pierre Jeudy, Paris:
Armand Colin, 1955/1.
15 M asahiro Ogino, La fissure. Paris: éd. La Villette, 1998.
16 Claude Parent, “Création et tradition”, Le patrimoine face à la création, 1987.
17 Jacques Mercier, Andras Zempléni, “ Exposer le sens”, revista Le Débat. Paris:
Gallimard, n. 108, fev. 2000.
S E G U N D A PARTE

A CR Í T I CA DA EST ÉT I CA U RBA N A
R E P R E S E N T A Ç A O S I M B Ó L I C A DAS C I D A D E S

A cidade excede a representação que cada pessoa faz dela. Ela se oferece e se retrai
segundo a maneira como é apreendida. Uma certa nostalgia parece nos fazer acre
ditar que a cidade não corresponde mais ao signo porque se teria tornado exces
sivamente percebida graças aos símbolos de sua monumentalidade exibida. Nos
centros históricos, os bairros restaurados e as fachadas rebocadas com suas velhas
insígnias evocam a cidade perdida, uma cidade mítica da qual não mais encontra
remos, olhando ao acaso, os poucos vestígios ainda escondidos, pois foram todos
recuperados. A limpeza dos monumentos, desses edifícios urbanos que represen
tam a história da cidade e sua inscrição no tempo, não faz senão consagrar o po
der da uniformização patrimonial. Contudo, a proliferação dos signos em uma
cidade permanece vertiginosa. Os signos se multiplicam e se fazem signos. Apesar
da obsessão da restauração, uma certa desordem visual persiste e convida o cida
dão a criar seus próprios modos de leitura da cidade. Como disse Jean-Luc Nancy,
“nós somos todos urbanistas sem emprego, todos temos urbanidades sem perfil”.1
No ritmo de nosso assombro, de nosso entusiasmo ou de nossa desaprovação,
construímos de forma imaginária uma cidade dentro da cidade, que temos a opor
tunidade de ver ou de morar nela. A cidade permite uma aventura da imaginação
como essa somente, na medida em que o que dela se exponha demonstre imedia
tamente ter capacidade de absorver o novo. Com as operações de urbanismo rea
lizadas, os projetos de arquitetura concretizados se transformam, após um tempo
relativamente curto, em expressões de uma urbanidade integrada. Esse poder de
assimilação, todas as cidades detêm, sendo ele seu próprio enigma.
Estamos de acordo que uma arquitetura ou uma obra de arte considerada
feia termina dando um certo sabor à cidade. O que é decretado publicamente
signo de feiúra, ao adquirir valor patrimonial, impõe-se algum tempo mais tar
de como um símbolo da cidade. Os gestores do urbano podem exercer suas es
colhas arbitrárias; sofrerão eventualmente uma chuva de reprovações coletivas.
M as, ao longo do tempo, têm todas as possibilidades de acabar vitoriosos, uma
vez que o fruto de suas decisões se integrará ao território da cidade como o signo
patrimonial de uma época. As maneiras de apreensão da cidade têm a estranha
faculdade de tirar proveito tanto do que satisfaz os gostos dos cidadãos quanto
do que suscita sua repulsa. A feiúra faz do olhar um refém. Não se trata de um
exercício coletivo de relativismo consensual, que consiste em achar que o que
agrada a alguns pode desagradar a outros. A feiúra, valendo por si mesma, passa
a constituir um prazer estético. Qualquer forma de poética da cidade recolhe nela
os dons de se renovar. Assim, a percepção sensível de uma cidade, em suas mais
diversas manifestações, assegura a legitimidade, a posteriori, de qualquer inter
venção plástica feita na cidade. E os olhares dos cidadãos, confortados pelos dos
fotógrafos, dos escritores, tiram proveito do fato da cidade parecer nada rejeitar.
M esmo que uma torre tenha sido destruída, ou que um monumento seja der
rubado, sua destruição seguida de sua ausência permanecerão na memória dos
citadinos. A cidade se nutre de tudo que serve de signo porque tudo é chamado
a funcionar como signo, de forma fugidia ou durável. Este sobrepeso de signos e
de suas potencialidades incomensuráveis passa a traçar as condições da aventura
da percepção cotidiana da cidade.
Os fotógrafos procuram na maioria mais das vezes, ao menos em nossa época,
fazer falar o que a cidade parece esconder. Bom número deles insistem nos “ não-
lugares”, nos territórios indefiníveis, continuam fascinados pelos “entre-dois-es-
paços”. Captam imagens parecidas com “montagens naturais”, que associam “ frag
mentos de realidade” a fim de provocar e manter uma sensibilidade própria das
aparições insólitas. Quanto aos escritores, não apenas fazem da cidade cenário de
uma ação, cenário tornado assimilável no ritmo de derramamentos metafóricos
que eles a apreendem tanto em sua fragmentação quanto nas manifestações de
sua totalidade, como uma atmosfera que se faz e se desfaz ao sabor de desloca
mentos ou de posições eliminadas. A cidade se faz objeto, mas não pára de perder
seu caráter objetal, uma vez que recua os limites de qualquer olhar, confundindo
a distinção tradicional entre o sujeito e o objeto.
N ada deixa supor, igualmente, que a cidade se desenvolve como uma exe
cução do pensamento. O processo de objetivação da cidade, necessário à ges
tão de seu futuro, implica um olhar distanciado, mas parece responder a um
conjunto de determinações preliminares que impõe, como seria de se esperar,
a maneira de refletir a cidade como um objeto. Um prefeito pode perfeita
mente 1er literatura ou filosofia que digam respeito à cidade, ver fotografias,
filmes policiais que ofereçam miríades de imagens da cidade: sua sensibilidade i n
telectual lhe será de grande utilidade quando tiver de tomar decisões em matéria
de urbanismo? Por um lado, a gestão urbana, quando pretende ser prospectiva,
protege-se sempre por trás de necessidades radicais que tornam incongruentes
ou deslocadas visões excessivamente poéticas da cidade; por outro, as formas de
apreensão sensível da cidade são relegadas a uma função bem específica, que é
de demonstrar que uma comunidade está em condições de “viver a cidade” tal
como ela se apresenta, tal como se torna. Os financiadores de obras artísticas ou
arquitetônicas podem sempre fazer crer que se inspiram em uma certa poesia da
cidade, mas estão mais preocupados em produzir uma imagem determinante
de sua cidade do que em responder a uma sensibilidade comum aos habitantes.
A representação política da soberania obtém uma demonstração sempre visível
de sua legitimidade através das metamorfoses da cidade.
As megalópoles se tornam freqüentemente territórios de contágio de signos.
Elas o conseguem principalmente por não terem centro histórico impondo
uma concentração de símbolos monumentais. Tóquio é o paraíso dos arquite-
tos, uma vez que os projetos mais heteróclitos puderam ser realizados lá. Para o
estrangeiro, a cidade de Tóquio oferece uma infinidade de signos e imagens cuja
relativa incompreensão estimula a percepção. O estrangeiro é obrigado, para não
se perder, a construir ele mesmo suas referências, a organizar sua própria leitura
da cidade, ao mesmo tempo experimentando um efeito constante de alteridade
radical. É curioso o poder de uma tal alteridade sobre o imaginário. Não se trata
mais daquela “ inquietante estranheza” de que falava Freud, mas de uma atração
inesperada entre signos inapreensíveis e as imagens mais subjetivas. Quanto mais
a cidade escapa à representação, mais ela provoca uma apropriação imaginária
do espaço. É preciso dizer também que a cidade japonesa tem a catástrofe natural
como horizonte de sua própria representação. O fato de viver permanentemen
te sobre territórios suscetíveis de sofrer terremotos violentos exacerba a relação
entre a memória e o esquecimento. Em todos os hotéis japoneses, nas fichas que
descrevem as condutas a seguir em caso de sinistro, a rubrica “ terremoto” está
presente. O que demonstra como ninguém jamais esquece que o solo pode desa
bar a seus pés a qualquer momento. A eventualidade da catástrofe está inscrita na
memória presente. M esmo que a aplicação de regras anti-sísmicas na construção
urbana dê uma representação pública de uma possível conjuração dos efeitos
desastrosos de um abalo sísmico, ela não provoca o esquecimento do risco sem
pre presente. A distinção usual das temporalidades entre o passado, o presente
e o futuro não tem razão de ser, uma vez que o ritmo da memória sustenta o da
catástrofe, provocando uma colisão temporal, o que faz com que qualquer ocul
tação, supostamente voluntária em uma época, perca o sentido. A cidade - e não
somente Tóquio - contém a catástrofe de sua representação.
Esse recorte infinito de toda a cidade por seus próprios signos, como se fosse
pelas metamorfoses de sua morfologia territorial, é a causa do elo entre o signo
e a imagem. O signo funciona como um sinal que provoca a irrupção da ima
gem. Ao longo da primeira fase do conflito na ex-Iugoslávia, quando o grafista
Antonio Galego produzia cartazes nos quais inscrevia o nome de Sarajevo, ele
estava desviando o sistema de signalética ao brincar com a guerra de símbolos.
Ele lembrava o nome de uma cidade gravado em todos os espíritos como se as
cidades, da mesma maneira que os mitos, estivessem destinadas a se pensar entre
si. Tratava-se do orgulho da cidade, sempre renascendo de suas cinzas. Nome
próprio de uma cidade, ao mesmo tempo indutor de uma constelação de ou
tras soberanias urbanas. Dizer que as cidades se pensam entre elas é afirmar o
quanto suas mais radicais singularidades perduram no jogo inconsciente de suas
substituições. Não se trata de um jogo de comparação, mas de superposição e
de condensação de imagens mnemónicas das cidades. Ao nos ensinar a viver a
simultaneidade temporal e espacial, a cidade oferece provavelmente a mais bela
experiência da soberania estética, uma vez que ela jamais obtém sua identidade
aparente dos efeitos do totalitarismo da representação. A proliferação de imagens
de cidades permanece inesgotável por nunca se sujeitar a uma ordem semântica
que lhe seria imposta por um sentido prévio. Na aurora do século XXI, quando a
gestão tecnocrática tenta infligir uma configuração cada vez mais racional à con
figuração arquitetônica urbana assim como às modalidades de organização das
atividades urbanas, nem por isso a apreensão intuitiva e sentimental da cidade
desaparece. O poder sentimental imposto pela cidade não tem paralelo com ne
nhum julgamento objetivo. A relação estética que nós mantemos com o mundo,
ou que o próprio mundo provoca, essa relação movimentada, sempre incerta,
tem como origem a experiência cotidiana da cidade. E nosso corpo ora se ins
creve no espaço público, ora joga com uma certa distância desta pluralidade de
pontos de vista. Pois é exatamente ele - o nosso corpo - que não pára de cons
truir anamorfoses na cidade, ao se dispor a suportar alguma perturbação em seus
hábitos de representação.
A C I D A D E , C O N S T E L A Ç Ã O DE I M A G E N S

Em sua célebre obra A cidade através da História, Lewis M umford mostra o quan
to a questão do ponto de vista parece determinante nas diferentes concepções
estéticas da cidade ao longo das grandes épocas, helenística, romana, barroca...
Contudo, se o historiador dispõe de numerosos elementos para demonstrar que
determinado ponto de vista predomina nessa ou naquela época, nas maneiras
de conceber e de ver a cidade, isso não impede sua interpretação retrospectiva de
excluir a arbitrariedade de sua posição. E, em vez de tomar essa ar bi tr ar i eda
de como um risco de um certo relativismo, parece-nos mais judicioso considerá-
la a origem contemporânea de uma multiplicidade de pontos de vista. A maneira
pela qual, no presente, olhamos a configuração de uma cidade supõe que a pr ó
pria idéia de ponto de vista é concebida como uma modalidade de olhar que já
seria fruto de uma intenção estética.
Nas pinturas do século XIII e do século XIV, a cidade da Idade M édia é
geralmente representada com suas muralhas verticais, como uma cidadela ergui
da em segundo plano em uma paisagem campestre. Nas pinturas de Patinir, a
cena religiosa aparece em primeiro plano, em meio à natureza, e ao fundo se
ergue o burgo medieval com suas muralhas, como se fosse uma figura de destino
antecipada da conquista urbana desafiando a própria natureza. Orgulhoso e enig
mático, o burgo medieval oferece uma representação do futuro, a da ascensão das
cidades. As cores azuis de Patinir destacam a serenidade do céu fazendo-a ligeira
mente desafiadora, e acentuam essa impressão de soberania urbana triunfante.
Como um objeto fechado em si mesmo, estranho e longínquo, a cidadela contém
>eus segredos, exibindo seu poder pela presença de torres elevadas. Podemos no
tar, em certas pinturas do final da Idade M édia, que a representação da cidade é
sempre concebida de um ponto de vista exterior. A cidade ocupa uma parte do
quadro como uma ilhota, em um canto mais ou menos protegido, mas especial
mente visível. Ela não é apresentada de seu interior. Sua figuração é feita sobretu
do a partir das muralhas e das torres mais altas do que elas. A cidade forma um
todo pela apresentação de seu envoltório e pelo labirinto interior constituído por
um dédalo de ruelas e por uma disposição pouco ordenada de habitações, perma
necendo ao abrigo do olhar. A cidadela medieval ergue-se como uma clausura
pontual no horizonte da paisagem. “ Não nos esquecemos de um antigo costume
que reaparece na Idade M édia: a utilização do muro para passeios recreativos
no verão”.2 Os habitantes não vêem sua cidade, eles vêem, a partir da sua cidade,
a paisagem do campo. O ponto de vista é uma alternativa que suprime a visão
interna: o olhar se dirige da muralha para o campo ou a muralha se apresenta à
visão como o recinto impenetrável da cidade, a partir do campo. A configuração
interna da cidade só pode ser apreendida como um todo de maneira abstrata, a
partir de sua própria invisibilidade. A adoção de um ponto de vista é sempre o
ato de reconhecimento de uma cegueira. Adotar um ponto de vista é uma manei
ra de constituir o ponto cego da percepção.
Com o período do Renascimento e do Barroco, as muralhas verticais caem
e a cidade se apresenta como um espaço geométrico. “ O estudo da perspectiva
levava da mesma forma à eliminação sistemática de tudo que pudesse atrapalhar
o olhar e impedi-lo de alcançar a linha do horizonte”,3escreveu Lewis M umford,
mostrando o quanto o Barroco une duas tendências contraditórias: uma se ma
nifestando através da extravagância e a outra através do “espírito metódico da
geometria”. “As novas concepções estéticas encontraram sua expressão no traça
do das grandiosas avenidas, ou apenas um obelisco, um arco do triunfo ou uma
fachada de edifício interrompem as linhas paralelas das calçadas e das cornijas.” 4
A extravagância do Barroco é ainda mais manifesta, chegando a ser detectada a
partir do espaço geométrico. O olhar é conduzido pela perspectivação, seguindo
por assim dizer os caminhos que lhe são traçados e, simultaneamente, permane
cendo suscetível de ser permanentemente atraído por detalhes, até mesmo pela
acumulação desses detalhes. Para alguns historiadores, o espaço geométrico urba
no corresponde à instalação de uma ordem militarizada, sendo as artérias princi
pais um meio privilegiado de fazer circular as tropas, ou servindo para grandes
paradas. Os prédios com fachadas padronizadas são então comparáveis às fileiras
de soldados em estado de prontidão. O ponto de vista se torna o do “olho do po
der” : “ as praças reais também têm como função dar destaque ao rei como chefe
dos exércitos: no centro delas, uma estátua o representa invariavelmente a cavalo,
como se ele dirigisse tropas ou desfilasse diante delas”.5Visão de conjunto, ponto
de vista supremo. O espaço geométrico ao qual se atribui uma finalidade militar,
torna possível a estética urbana da soberania. O poder absoluto se prolonga na
configuração espacial de uma ordem dominada que, como a imagem devolvida
pelo espelho, se torna a inscrição territorial de sua representação especular.
Uma certa uniformidade de pontos de vista pode vir da restauração, a mes
ma que anula a “espessura do tempo”. O monumento modificado ao longo de
períodos sucessivos é mais do que o reflexo da história da cidade, sua história se
compõe de fragmentos de relato, relativos à atualidade de sua própria crónica.
Na ocasião em que John Ruskin se insurgiu contra a restauração dos monumen
tos, ele não o fez em nome da preservação da autenticidade inicial, mas porque
considerava que o princípio da restauração era, em si, um embuste. A restauração
pode ser feita em nome do embelezamento das cidades, em nome da conservação
de construções que correm o risco de se transformar em ruínas, em nome ainda
de uma vontade de manter a identidade original do lugar, preservando-a por in
termédio de novas técnicas.
O conjunto dessas razões em nada muda o fato da restauração ser ela mesma
um ato de destruição, por criar uma unidade fictícia da cidade. Segundo John
Ruskin, “ o verdadeiro significado da palavra restauração não é compreendido
nem pelo público nem por aqueles a quem compete a manutenção de nossos m o
numentos públicos. Significa a mais completa destruição que um edifício pode
sofrer; destruição da qual não se poderá salvar o mínimo fragmento; destruição
acompanhada de uma falsa descrição do monumento destruído. Não vamos nos
iludir sobre esta questão tão importante: é impossível restaurar o que um dia foi
grande ou belo em arquitetura, tão impossível quanto ressuscitar os mortos”.6
A restauração inverte o sentido do movimento intrínseco do destino de qualquer
monumento que sobrevive a partir de sua própria transformação ao longo do
tempo. A fidelidade à sua autenticidade original é uma ilusão puramente mora
lista. Trata-se de fazer crer que restaurar uma construção é conservá-la tal como
era antes, quando, na verdade, o que se está fazendo é a operação contrária, isto
é, desnaturá-la ao idealizar sua imutabilidade temporal. Ao reconstruir seus tem
plos, perfeitamente iguais, a cada vinte ou trinta anos, os japoneses são os mais
respeitosos do valor atribuído à autenticidade original. E se “ congelamos” um
monumento, tentando mantê-lo no estado em que se encontra, interrompendo
tanto quanto possível o prosseguimento eventual de sua degradação, o que es
tamos conservando na verdade nada mais é que um conjunto que sofreu uma
restauração precedente. Sendo um processo sem fim, a restauração não conserva
senão o que já foi restaurado.
O defeito da restauração é produzir uma equivalência estética da cidade, de
sua história, de seus estratos orgânicos, e induzir uma convergência de olhares
na direção de um único ponto de vista indiferenciado. I ncapaz de sugerir uma
distinção de signos arquitetônicos representativos de uma ou de outra época, a
restauração parece restabelecer a ordem nos vestígios do passado, tornando-os
mais visíveis, mais límpidos do que nunca. Ela impõe uma representação comum
da cidade como beleza suprema. M as se a cidade exprime de uma maneira implí
cita uma disposição do sublime, só consegue fazê-lo se ultrapassar, nas visões que
provoca, os efeitos dos artifícios simbólicos de sua eminência. Para o cidadão, o
sublime urbano é parasita, está ligado ao pitoresco, ao que advém ao olhar por
acidente. De acordo com John Ruskin, “essa característica, cuja busca exagerada
em geral consideramos aviltante para a arte, é o sublime parasita, ou seja, um su
blime escravo dos acidentes, ou das características menos essenciais dos objetos
a que pertence”.7 O pitoresco se desenvolve como parasita do sublime. A própria
idéia da beleza de uma cidade se sustenta no acidente pitoresco que faz da estra
nheza, da incongruência, não só um sentimento que acompanha a percepção,
como também a característica do sublime parasita. O que John Ruskin nos incita
a pensar é sobre a maneira pela qual o pitoresco, na qualidade de parasita do subli
me, tira proveito da própria monumentalidade. Destinado a representar a sobera
nia urbana, o monumento majestoso é confrontado com a emergência de signos
pitorescos, tanto através de jogos de sombra e luz quanto de grafites, ou outros
incidentes que parodiam o sublime sem negá-lo. Assim, o pitoresco não é o fruto
de uma jocosidade do olhar, permanecendo independente do objeto, que não é
por ele qualificado, e do modo de percepção, que não é por ele orientado. Ele é,
essencialmente, o não convencional, o que faz surgir o sublime em sua expressão
parasita. Seu aspecto acidental, incongruente, ameaça qualquer produção do su
blime, tornada excessivamente voluntária apenas pela conservação patrimonial
e monumental. O mesmo que dizer que a negação do pitoresco (como parasita
do sublime) é o cavalo de batalha de uma gestão urbana preocupada em demasia
com a unificação patrimonial das cidades.

A cidade, tra je tóri a da escrita

A nostalgia não é a única maneira, a partir de uma certa idade, de apreender a ci


dade na qual vivemos, ou à qual voltamos depois de uma longa ausência. Os retor
nos de memória se parecem mais com circunvoluções, graças às quais as visões
do tempo presente se misturam com as imagens do passado. Para dizer a verdade,
isto não se deve a uma escolha do citadino ou do passeador, a própria cidade im
põe ao olhar a visão incerta de suas transformações, opondo-se à vontade de se
reencontrar o que já foi. Quando tentamos voltar a ver os lugares onde vivemos,
ficamos desde logo fascinados pela relação estranha imposta pela cidade, entre o
que desapareceu e o que foi recentemente construído, e somos cativados por esse
movimento de substituição reversível que estimula a memória antes que nasça a
desolação. Se nos lembramos do que foi, de qual era a configuração do local ao
qual estamos voltando, constataremos curiosamente que sua transformação pre
sente permite à memória se deleitar com as imagens da restituição, e sobretudo
com sua espantosa liberdade. A ausência do que foi possibilita qualquer invenção
presente da memória. Assim, a sensação de desaparecimento não provoca nostal
gia, mas, ao contrário, provoca efeitos de atualização do local cuja atração visual
está relacionada à exibição presente de sua metamorfose.
Em seu livro La forme d’une ville, Julien Gracq previne-se ele mesmo contra
qualquer atração pela nostalgia. “A antiga cidade - a antiga vida - e a nova se
superpõem em meu espírito ao invés de se sucederem no tempo: estabelece-se
entre uma e outra uma circulação intemporal que libera a recordação de toda
melancolia e toda opressão; o sentimento de uma referência, ao se destacar da
duração, projeta para adiante e amalgama ao presente as imagens do passado,
em vez de arrastar o espírito para trás”.8A reminiscência se torna uma atividade
do espírito liberada da nostalgia. Atividade que estaria privada de seu poder caso
não se fundasse na acuidade visual do atual. E essa “ intemporalidade”, compa
rável à estranha confusão temporal que caracteriza as imagens do sonho, não é
apenas a do movimento do espírito e de seus modos de percepção, ela também
é própria do poder de condensação temporal exercido pelas cidades. A represen
tação patrimonial das cidades parece nos habituar, ao contrário, a uma distinção
fundamental dos séculos, das épocas - distinção legitimada visualmente por sig
nos determinados - mas mascara o jogo de superposição e de contágio desses
mesmos signos, o que provoca um entrecruzamento sutil e pouco perceptível das
temporalidades urbanas. A própria cidade parece resistir às operações de retros
pectiva patrimonial, que tentam manter uma estética original e autêntica de uma
época em que a representação pública é convocada para se fazer de eternidade.
O que é uma “ duração que projeta para adiante” ? A duração não pode ser
objeto de uma conservação propriamente dita; ela requer uma forma projetiva,
mas só pode adotar uma forma assim se for imaterial, separada dos símbolos ex
cessivamente concretos - como os monumentos históricos - , os quais têm por
função representá-la. Os efeitos de condensação, de superposição das imagens de
cidade, participam dessa projeção do tempo, que termina não correspondendo
mais aos hábitos de classificação temporal que nos habituamos a praticar para
distinguir o passado do futuro. “ É estranho que concentremos assim - por um
movimento menos natural do que parece —o caráter e quase a essência de uma
cidade em umas poucas construções, tidas em geral como emblemáticas, sem
imaginar que a cidade assim representada por delegação tende a perder para nós
sua densidade própria, e que retiremos de sua presença global e familiar todo
o capital de devaneios, de simpatia, de exaltação, que vai se fixar nesses pontos
sensibilizados”.9A palavra “delegação” utilizada por Julien Gracq tem um sentido
determinante: a cidade não se oferece mais ao olhar, à escuta, ou ainda ao olfa-
to, por si mesma, ela se apresenta através de objetos referenciais que asseguram
uma verdadeira delegação simbólica. A configuração monumental da cidade não
oculta contudo a estranha labilidade cotidiana dos modos de apreensão de sua
“ densidade própria”, uma vez que as imagens tornadas mais estereotipadas por
suas funções simbólicas permanecem sempre suscetíveis de serem desviadas de
seu poder referencial.
M as a cidade não forma mais uma totalidade orgânica, ela cindiu-se em um
centro e uma periferia. Sua “ densidade própria” explodiu. Poderíamos adotar co
mo marco dessa ruptura a maneira como a entrada em uma cidade mudou o
interesse que suscita ao olhar. A passagem do campo para a cidade tornou-se
mais desumana, por causa das inumeráveis construções comerciais erguidas nas
periferias. Nesse mesmo livro, Julien Gracq escreve: “A aproximação de uma cida
de sempre foi para mim uma ocasião de especial atenção às modificações progres
sivas da paisagem que a anunciam. Eu observo, especialmente, se estou chegando
de trem, os primeiros sinais de infiltração do campo por meio das digitações do
núcleo urbano, e, caso se trate de uma cidade onde goste de viver, ocorre-me to-
má-las por um gesto de acolhida feito de longe por uma mão levantada sob uma
soleira amistosa”.10 Uma visão de entrada na cidade como esta já corresponde a
uma outra época, pois parece representar toda a doçura e a lentidão da infiltra
ção da vida urbana para dentro do campo. No presente, a “densidade própria” da
cidade passou a ser apreendida a partir de sua expansão periférica.
Em seu livro Zones, Jean Rolin parte para a aventura do subúrbio hospedan-
do-se em hotéis de diferentes cidades em torno de Paris. A cada dia descreve ce
nas da vida cotidiana, dá suas impressões, ora num tom lacónico, ora num tom
mais carregado de paixão. O autor parece fundir-se em um tecido urbano que
permaneceria inextricável se ele não desse nomes que, de uma maneira encanta-
tória, evocam cidades conhecidas. O movimento de sua descrição, ao ritmo de
sua observação detalhada, permite ir-se representando no pensamento do leitor
toda a vida cotidiana em sua realidade imediata. Próximo da crónica, seu texto
é construído através de uma continuidade cênica cuja eventualidade do fim não
tem mais sentido do que a eventualidade de seu começo. Cada situação surge e
depois desaparece, cada visão da cidade delineia-se de acordo com uma realida-
de que advém, que marca, que capta e que se esvai em seguida dentro da noite
dos tempos. “ O que leva um homem são de espírito a descer de um ônibus da
Petite Ceinture11 na altura da parada Pont-National?” 12 É a partir de um jogo da
contingência e da determinação que o escritor cria as condições de expectativa
de seu olhar. Essa disposição torna possível a singularidade da emergência dos
acontecimentos mais banais. E a curiosidade não decorre mais do enigma pr o
vocado, buscado como algo que nunca se deixa ver, mas da própria replicação
da vida urbana. A cidade não é mais o cenário de uma infinidade de cenas incon
gruentes, ela oferece sua própria existência morfológica na banalidade tornada
singular das cenas cotidianas, que não reteriam a atenção se não fossem pontos
de interesse do olhar flanêur.
A relação entre a topografia e a cronologia das deambulações é uma constante
nesse género de escrita sobre a vida urbana. O nome dos lugares é essencial, ele
dá aparência de realidade concreta é representação que o leitor pode fazer dela.
Os nomes das cidades, das estações de metrô, das ruas e das avenidas, dos hotéis
e das estações de trem, os números dos ônibus e os edifícios são também meios
evocadores que traçam a realização de um percurso, inscrevendo-o na desordem
das áreas sucessivas. M as o procedimento tem sido empregado de tal maneira
que acabou se tornando um arquétipo dos modos de apreensão do espaço urba
no. Como se constituiu esse arquétipo que passou a definir maneiras comuns,
compartilhadas, da disposição momentânea do olhar citadino? O momento do
olhar deambulatório, do olhar desocupado, pronto a captar aquilo que não vê
normalmente, prefigura a possibilidade de apreensão imediata do espaço e do
tempo, sua concordância ideal no movimento de aparecimento e desaparecimen
to, esse movimento ao longo do qual qualquer pessoa se coloca numa postura de
“ sentir” sua cidade. A disponibilidade ao imediatismo do olhar deambulatório
é ambígua: decorre do fato de cada pessoa se colocar em posição de olhar e de
uma ausência de decisão a adotar tal posição. Eu decido ficar disponível, mas eu
não decido mais sobre a própria possibilidade de imediatismo. A relação entre o
espaço e o tempo se torna mais condensada por escapar totalmente à minha von
tade. A expectativa não decorre mais de um estado que a predispõe, ela surge do
próprio território, transformando-se na mesma hora em acontecimento.
É comum pensar que a cidade provoca uma experiência intelectual e que as
maneiras pelas quais se traduz na escrita, na fotografia, no cinema dependem
antes de mais nada da singularidade dos autores. Essa experiência se apresenta
como um desafio da existência na história dos autores, ela tem de particular o
fato de exacerbar seus modos de apreensão do pensamento. Um autor se põe em
paralelo com uma cidade, se faz, se desfaz, se refaz com ela. Em seu livro City of
Quartz, M ike Davis conta como muitos intelectuais conhecidos no mundo intei
ro viveram em Los Angeles em um momento determinante para suas escritas e
para seus pensamentos. A visão que tiveram dessa cidade que absorve tudo, dessa
cidade que muitos deles consideraram a metáfora mais viva do capitalismo, é a
imagem da fantasia que dá origem à megalópole. “ O que dá significado histórico
- e estranheza - à cidade é o fato de ela ter se tornado para o mundo inteiro ao
mesmo tempo a utopia e a distopia do capitalismo avançado. Como Brecht nota
ra, ela simboliza simultaneamente o inferno e o paraíso. É, pois, por isso mesmo,
um destino incontornável para todo intelectual deste final de século, instado a ir
até lá e a dar uma olhada para decidir se Los Angeles é de fato “a cidade que mais
tem a oferecer, ou se é o derradeiro pesadelo da história americana que o género
noir nos descreve”.13 Tudo que já foi imaginado sobre a megalópole e sobre as
aventuras mais ficcionais do urbanismo moderno encontra-se simbolizado em
Los Angeles.
M as por que a visão de uma cidade (e não sua representação) é tão deter
minante para os escritores, filósofos e artistas? Provavelmente porque a cidade
antropófaga, a cidade que “canibaliza tudo, inclusive sua própria imagem” é um
fascinante elemento de referência do destino do género humano. Quando se fala
sobre “ relação com o mundo” ou sobre “estar no mundo”, a cidade superdimen-
sionada oferece imagens, signos, cujo poder de impacto mental é especial, uma
vez que configuram, da maneira mais inconsciente ou mais acidental, o âmbito
de nossos estados mentais. A cidade como potência de imagens destaca-se do
destino de sua representação. Ela não desequilibra apenas os hábitos de repre
sentação, mas provoca a todo momento, em todo lugar, visões que ainda não
são representações. Essas visões que se tornam imagens, mesmo que sejam às
vezes próximas de estereótipos visuais, têm um ponto em comum: sua emergên
cia, superposição e circulação perturbam a estabilidade de nossas representações
usuais. Ao recorrer à condensação e ao contágio de nossas imagens mentais, as
cidades se transformam em prolegômenos de nossos pensamentos.

A cidade, entre a metáfora e o c onc eito

Quando eu entro, em pleno do sol do meio-dia, sob um calor abrasador, em uma


cidade deserta e silenciosa, cuja praça solene é cercada de diversos edifícios,-©.—
quando, além disso, não posso evitar de notar a presença de uma imponente es
tátua em cima de um pedestal, eu penso na mesma hora nas pinturas de Chirico.
O espaço urbano vazio e monumental, de cores variáveis, tornado inquietante
com suas sombras cujo movimento parece suspenso, oferece ao olhar estupefato
a visão de símbolos imutáveis da conservação patrimonial. É a cidade petrifica
da. Em um western, quando vejo o cowboy solitário entrar em uma cidade que se
tornou afônica, com o cavalo ainda deixando uma nuvem de poeira à sua passa
gem, eu adivinho perfeitamente que os habitantes se refugiaram dentro de suas
casas ou então foram embora apavorados. O medo esvaziou as ruas. Contudo,
o cowboy avança sem parecer inquieto, mantém uma mão sobre o revólver, pron
to a atirar sobre tudo que possa se mexer. É a cidade petrificante. A visão da cida
de que perdeu seus corpos e clamores constitui um estereótipo da premonição
do desastre. Para que o quadro da cidade deserta, na qual o está entrando o cow
boy solitário provoque uma angústia crescente, é preciso que a expectativa de um
acontecimento violento seja capaz de transformar essa tranqiiilidade em ameaça.
M esmo que esse acontecimento não se efetive, sua eventualidade deve se fazer sen
tir porque, sem ela, a cidade pareceria com toda certeza ter sido definitivamente
abandonada. A cidade petrificada não é idêntica a uma cidade fantasma. É uma
cidade que pode se tornar fantasma, mas que apresenta ainda a possibilidade de
uma eclosão maciça. Quando o cowboy tiver atravessado toda a cidade e nada, ab
solutamente nada tiver acontecido, então deduzirei que a cidade é fantasma, que
suas casas abandonadas vão desmoronar, que ela voltará à poeira.
Nos quadros do pintor Chirico, os monumentos parecem eternos. Nem o sol
nem a chuva os destruirão. E a cidade permanecerá assim, conservada em meio
ao silêncio de sua monumentalidade. Quando observo por muito tempo uma
pintura de Chirico, constato que não existe nenhuma esperança de ver surgir
um corpo em movimento, o de um simples habitante. Os corpos estão destina
dos a ser como estátuas. A própria cidade se petrifica majestosamente. Quando
eu passeio por um centro histórico, iluminado, vazio, silencioso, de uma cidade
ainda adormecida, e ouço ao longe o barulho do motor dos caminhões que reco
lhem o lixo, reconheço os sinais que já anunciam seu despertar. Curiosamente,
a aparência petrificada de uma cidade excita o jogo de construção de nossas ima
gens. A cidade adormecida, a cidade silenciosa, a cidade abandonada ensejaria
a aventura dos deslizes metafóricos? Quanto mais a cidade se parece com um
cartão-postal, mais ela evoca o princípio de uma parada sobre a imagem, de uma
suspensão do tempo, mais ela estimula esse movimento de construção metafóri
ca, movimento que se ordena sozinho, que produz seu próprio encadeamento.
A metáfora do corpo orgânico atravessa a história das interpretações histó
ricas da configuração urbana. Ela é sem dúvida a mais empregada. Sua predo
minância, até a época atual, explica-se pela necessidade de estabelecer elos de
representação entre a cidade como objeto autónomo e o conjunto das relações
humanas que ela pressupõe ou induz. Roma é citada como exemplo dessa unida
de orgânica porque é uma cidade que reúne ainda hoje em dia diversos estratos
de sua composição. “ O gigantismo era com toda evidência a afecção crónica de
Roma. M as acredita-se com excessiva facilidade que um corpo afetado por um
mal incurável deva estar sofrendo de paralisia. Não é bem assim, pois enquanto
o corpo continuar vivo seus órgãos mais ou menos continuarão a funcionar. Foi
assim com Roma”.14Não foi por acaso que Freud escolheu Roma como a melhor
analogia que se pode fazer com o inconsciente. A simultaneidade de percepção
possível dos vestígios vivos do passado se conjuga a um estranho poder de atua
lização das modalidades presentes de apreensão da cidade. A configuração orgâ
nica de Roma une a impressão de atemporalidade espacial à instantaneidade do
olhar. “ Se procurarmos analisar psicologicamente o efeito estético que Roma pr o
duz, seja qual for o ponto de vista, chegamos a esta conclusão, em cuja direção
sua própria configuração nos conduziu: que os opostos mais extremos, nos quais
em geral fracionou-se a história da maior das culturas, dão aqui uma impressão
de unidade orgânica.” 15Um feliz acaso associa ao longo do tempo todas as cons
truções que se realizam na cidade de Roma. Apesar das gerações sucessivas não
se preocuparem necessariamente com o que fizeram seus antecessores, a cidade
de Roma se desenvolve de “ maneira fortuita na direção de uma beleza nova e
involuntária, e da forma mais encantadora”.16Essa unidade orgânica apresenta a
vantagem de tornar a cidade perceptível nos seus detalhes, através dos diferentes
elementos que a compõem ou, alternativamente, em seu conjunto, graças a sua
homogeneidade misteriosa.17
Quando se trata de conceber a cidade, os “gestores do urbano” se vêem con
frontados com uma relação ininterrupta entre a imagem e o conceito. A dimen
são metafórica da cidade nunca se esgota por sua conceituação, persistindo como
a possibilidade de suas metamorfoses. Gerir a cidade, construir seu desenvolvi
mento, supõe a implementação de um processo de reflexividade que, ao ordenar
as representações do espaço urbano, permite o exercício de um certo formalismo
conceituai. Assim, o conceito pode funcionar como uma redução das metáforas,
como uma parada sobre a imagem a partir da qual a cidade se torna um objeto
inteligível, suscetível de ser tratado com tal. É preciso que em um dado momen
to a cidade seja imobilizada em si mesma para que possa se tornar um objeto de
conceitualização. Contudo, o jogo de reversibilidade entre a metáfora e o concei
to continua a tornar instáveis as maneiras como a cidade é apreendida. Como a
suspensão do movimento das metáforas permanece arbitrário, somos obrigados
a constatar que a cidade jamais poderá ser tratada como o exclusivo produto de
sua conceituação. M esmo Brasília, concebida ex nihilo, é afetada pelo jogo sim
bólico perpétuo de sua metaforicidade: a forma de um avião representa tanto o
papel de conceito quanto de metáfora. Embora possa visar a uma depuração da
metáfora, o uso do conceito não chega a exibir sua autonomia radical. É claro con
tudo que todo processo de conceitualização forja seu próprio rigor às expensas
da metáfora na qual se inspira.
A companhando os projetos urbanos que definem a revitalização dos espaços
a partir de uma complexidade inerente à própria cidade, os discursos mantidos
por arquitetos e urbanistas não hesitam em utilizar um vocabulário complemen
tar que inclui o fractal, o fragmentário, o caótico, o informe... sempre como consi
derações necessárias para legitimar seus procedimentos. Esses conceitos, cujo uso
é metafórico, pretendem mostrar como a nova configuração da unidade urbana
se realiza a partir do que não faz parte, verdadeiramente, da ordem clássica das
representações. Tomados da física e da filosofia, estes mesmos conceitos exercem
uma função ficcional que é uma garantia estética para a exposição de todos os
projetos. Sem estas palavras que designam a própria complexidade, em sua atua
lização permanente, sem estas palavras cujo sentido filosófico espera-se que tra
duza a profundeza das maneiras de pensar a cidade, o racionalismo positivista
do projeto se imporia como uma atitude completamente desprovida do poder
visionário oferecido pela metáfora.
As ciências humanas são freqüentemente utilizadas nos projetos de arquitetu
ra como uma linguagem conceituai que vem legitimar a posteriori as proposições
de reestruturação do espaço urbano. Os conceitos da antropologia ou da soci o
logia recebem então uma vocação metafórica encantatória. Alteridade, coesão
social, estar junto, proximidade... O poder metafórico, ao menos estereotipado,
atribuído a tais palavras, teria como finalidade tornar “ vivo” o próprio projeto,
ou pelo menos inscrevê-lo no horizonte semântico de algo vivido. O urbanista
(ou o arquiteto) precisa mostrar como as infra-estruturas que modifica ou cria
destinam-se de fato a melhorar a vida cotidiana dos citadinos. Para parecer acre
ditável, e sobretudo para servir de prova de suas boas intenções éticas, ele recorre
ao vocabulário antropológico que, de acordo com suas esperanças, instaurará
em seu discurso uma atmosfera existencial comum. Os métodos empíricos da an
tropologia ou da sociologia podem também lhe servir, sendo considerados úteis
nos projetos de urbanismo predestinados a criar uma coesão social ao estruturar
o espaço.
O vocabulário antropológico parece garantir a presença perene do humano
em um discurso estratégico que tenderia a excluí-lo. O urbanista está falando
de “ desenvolvimento urbano” ou, de maneira mais complexa, de uma “ inserção
da multimodalidade em um pólo urbanístico”, mas estas expressões esvaziam de
todo conteúdo vivo as operações que são propostas, entretanto, para serem bem
vivas. Basta-lhe escolher alguns conceitos antropológicos para responder à eterna
questão: “ Em que cidade nós queremos viver?” Basta a evidência desconcertante
das interrogações e das fórmulas para revelar imediatamente o quanto a antropo
logia exerce somente uma função de fachada. O papel metafórico requerido pelo
conceito passa a ser um clichê. Em vez de oferecer uma dimensão futurista a um
projeto de urbanismo, as metáforas conceituais lhe trazem legitimidade pública.
Se uma aparelhagem conceituai termina desempenhando tal papel, não seria de
vido ao fato de ela mesma já estar saturada? As palavras alteridade, proximidade,
coesão social, em seu uso comunicativo, são apenas os signos petrificados de uma
alteridade fabricada, gerada, como se pudéssemos manipular as relações de alteri
dade e construí-las - o que supõe tornar-se cego em relação ao fato de que essas
relações já existem, que a cidade é em si a condição implícita de sua manifestação.
O aporte da antropologia é constituído por um arsenal de resíduos metafóricos
cuja função de chave-mestra consagra as virtudes do consenso em torno da idéia
redutora de uma alteridade mediana. Esta última permitiria pensar a cidade de
uma maneira angelical e falsamente ingénua, como o território de uma “ comuni
dade que virá”, idêntica para todos.
M ais inquietante ainda seria o estado de espírito antropológico do urbanista
ou do arquiteto. A expressão “ fraca urbanidade” empregada para designar “ es
paços degradados” é um bom exemplo, por deixar transparecer como o vocabu
lário urbanístico se vê desde logo misturado a referências antropológicas. Este
contágio semântico permite à linguagem do arquiteto ou do urbanista provar
como a construção conceituai da cidade que eles fabricam não corre o risco de
cair na armadilha da auto-referência. Os termos mais técnicos podem se prestar
a correspondências analógicas cuja consonância é imediatamente antropológica.
O que conta como condição de elaboração de projetos é o poder ilusionista da
conceituação oferecido pela prática de deslizes metafóricos. Constitui-se então a
aparência de um elo conseqüente entre o discurso e a realidade, como se o pr o
jeto urbano adquirisse forma e conteúdo graças a esse trabalho de conceituação
metafórica, que termina dando fundamento à própria realidade e autorizando o
arquiteto, assim como o urbanista, a inserir discretamente seus julgamentos mo
rais e suas opções políticas, no caso de os terem. Esse trabalho de conceituação
metafórica termina fazendo do projeto urbano uma representação determinante
da realidade.
Na França, pôde-se assistir à formação de duplas de filósofos e arquitetos.
A conivência entre o filósofo e o arquiteto explica-se pelo compartilhamento
objetivo de uma concepção do mundo, mas ela também pode basear-se no reco
nhecimento de uma certa analogia que o arquiteto faz questão de elaborar entre
sua obra e um pensamento filosófico determinante, que aparece como uma cons
trução imaterial de seus projetos. Não se trata de uma ilustração mental de suas
construções* ilustração espiritual que teria por função circunscrever sua maneira
de ver as coisas. O primeiro desejo expresso pelo arquiteto, mas também pelo
filósofo, é o de cumplicidade confrontada. M as as afinidades entre o filósofo e
o arquiteto adquirem por vezes um viés antropofágico. Com delicadeza, é claro.
Os dois universos de pensamento se interpenetram, entram em contaminação.
O filósofo é sempre o perdedor nesse género de acasalamento, pois o arquiteto já
propôs tantas intervenções em praça pública que sua notoriedade já é valorizada.
A aproximação mais célebre entre um pensamento filosófico e o trabalho de cer
tos arquitetos foi a recente tendência denominada desconstrutivismo. O conceito
de desconstrução, tomado emprestado ao filósofo Jacques Derrida, parece ter ti
do um destino, nos usos que os arquitetos fizeram dele, de verdadeiro dispositivo
referencial. O próprio conceito permitiu colocar etiquetas em muitos projetos
e realizações arquitetônicas. Tornando-se uma referência dominante, todo con
ceito corre o risco, em pouco tempo, de assinar a pena de morte de qualquer
aventura do pensamento. O papel destinado à filosofia passa a ser então o de legi
timar posicionamentos, pertencimentos, ou identidades de escolas... M esmo que
a aproximação entre o desconstrutivismo na arquitetura e a filosofia da descons
trução tenha sido considerada frutuosa, não impede que se tenha rapidamente
“ historicizado”, marcando uma data na história da arquitetura ao representar, de
uma maneira universal, uma moda da pós-modernidade. Tais aproximações são
suscetíveis de esgotar tanto o pensamento filosófico, devolvendo-lhe os efeitos de
um pragmatismo com o qual ele nada tem a fazer, quanto a reflexão dos arquite
tos, cristalizando-a em torno de um conceito que, terminando por desempenhar
um papel de designação redundante, funciona como uma marca.
O que se passa com o uso analógico dos conceitos da filosofia? As palavras “la
birinto”, “rizoma”, ou tantas outras ainda, têm a faculdade de sustentar a crença
nos efeitos benéficos da metaforicidade. M as o emprego delas, na linguagem uti
lizada pelos arquitetos, ou pelos artistas, implica certo aferrolhamento das cono
tações, pois remetem a um pensamento filosófico (ao de Gilles Deleuze), assegu
rando, assim, a função de metáfora original, a qual permite, em seguida, realizar
séries de analogia cujo sentido se constrói em torno dessa designação inicial. Na
linguagem dos arquitetos, a metáfora é produtora de possibilidades “ imagéticas”
da conceitualização. Se não fosse o caso, a linguagem utilizada correria o risco
de não mais representar o que toma por objeto. O papel designado à filosofia
pelo discurso dos “pensadores da arquitetura” é o de produzir uma espécie de
perspectiva metafórica necessária à conceitualização. O grande arquiteto, aquele
que se apresenta como star, é convidado a se parecer com um filósofo. O uso dos
conceitos da antropologia ou da sociologia não lhe bastam na construção de seus
projetos, ele precisa da metalinguagem que encontra na filosofia. Ele precisa apa
recer como um pensador do espaço, da cidade, ele precisa também ultrapassar o
único papel de legitimação conceituai que lhe oferecem as ciências sociais, para
alcançar as esferas de uma construção do pensamento.

A cidade, morfolog ia de um t e rri t óri o

Os entre-dois-espaços, os “ não-lugares”, tudo que define uma percepção do infor


me, situa-se em princípio na periferia da cidade, raramente no centro. Quando
o centro é mal-definido, ou nem chega a existir verdadeiramente, apesar das ten
tativas efetuadas para lhe dar ao menos a aparência de existência, são os modos
de investimento em partes do bairro que produzem efeitos de centro. A indeter-
minação do espaço urbano é designada como tal a partir apenas da referência
à sobredeterminação simbólica do centro histórico, e esse centro circunscrito
acaba ele mesmo se tornando idêntico a todos os outros centros. Às vezes, as der
radeiras iniciativas de promoção de uma diferença singular consistem em implan
tar obras de arte. Estas se integram tão bem ao espaço já definido que exercem
a mesma função monumental que os edifícios históricos. Contra esta obrigação
convencional que predestina uma parte qualquer do espaço urbano a “ funcio
nar como centro” para poder existir, há no presente um grande esforço para se
demonstrar que o aspecto informal do espaço urbano pode, ele também, “ funcio
nar como sentido”, sem por isso evocar um efeito de centro.
A oposição tradicional entre o centro e a periferia não é mais tão determi
nante no momento em que as megalópoles se tornam elas mesmas gigantescos
subúrbios. A “ cidade genérica”, tal como é descrita por Rem Koolhaas, seria então
a cidade que se auto-reproduz sem “ sentimentalismo”, sem a menor preocupa
ção com uma singularidade que lhe seria própria, a cidade que nasce e renasce
em função das necessidades e contingências, a cidade que engendra de maneira
objetiva, pragmática, sua própria morfologia. Seria também a cidade que cria
seu próprio passado, sua própria história ao longo do tempo, sem se preocupar
com os vestígios que simbolizariam seu futuro, produzindo demolições sem a
menor nostalgia. A cidade autometamórfica. Não há então necessidade de se ter
qualquer preocupação estética, uma vez que as cidades genéricas, por sua própria
similaridade, impõem sua própria configuração como uma estética sem critérios,
sem referências, totalmente liberada da busca de singularidade. A periferia urba
na se torna um modelo único, território informe com todos os artefatos possí-
veis, inclusive os que terão por função lembrar o que podia ser o centro da cidade
de antigamente.
Com relação à cidade genérica, à dissolução das distinções pelo triunfo da
similaridade, a estética urbana parece responder corretamente à necessidade de
segurança mental que permite a crença na representação compreensível de uma
certa unidade da cidade. A organização de territórios urbanos sempre oferece a
possibilidade de tranqüilizar os habitantes, graças ao estímulo de um sentimen
to do belo que permanece apaziguador mesmo podendo às vezes parecer mór
bido. Uma escultura em uma praça bem iluminada é uma condição serena e
atemporal de prazeres estéticos burgueses. Graças a essa representação um tanto
estereotipada da ordem, a cidade está sempre destinada a reencontrar sua unida
de. O projeto urbano consiste em tentar uma reconfiguração da cidade com o
objetivo de produzir uma certa visão dos elos entre os espaços excessivamente
diferenciados ou desqualificados, criando efeitos de unificação territorial. Um
projeto urbano visa geralmente a “ reestruturação dos bairros”, “calibragem das
articulações”, “ equilíbrio dos setores”... A representação comum do que faria a
unidade da cidade, unidade que conserva, é claro, as diferenças específicas de
suas partes, depende apenas de uma precondição: a unidade urbana está perma
nentemente ameaçada de deslocamento. É por isso que a cidade é tratada como
uma paisagem a ser remodelada.
Quando o objetivo é recuperar a vitalidade essencial de uma cidade que pare
ce declinar, é porque esta cidade foi logo de início considerada doente. O arquite-
to-urbanista age como o médico generalista que deve estabelecer um diagnóstico
e propor alternativas. Numerosas cidades já foram, pois, repensadas; seus espaços
foram retrabalhados ou continuaram sendo. Como a realização de um projet o ur
bano provoca outros, a dinâmica de reconfiguração do espaço parece não poder
ser interrompida. A cidade, no ritmo de suas metamorfoses, é vista como uma
obra em plena realização, mostra-se trabalhando para forjar sua própria unida
de, de uma maneira sempre projetiva: o que já foi terminado se torna a prova de
uma realidade concreta do que ainda poderá ser feito. Tirar uma cidade da letar
gia, dar-lhe uma nova forma no momento em que parece não mais tê-la, impor a
imagem de sua unidade soberana... A metamorfose das cidades é a assinatura da
obra dos prefeitos e dos arquitetos.
Como se pode estimar que uma cidade está ameaçada? Não há nada mais
fácil, parece, uma vez que o sucesso das outras cidades permite estabelecer com
parações imediatas. E o sinal desse sucesso se torna evidente quando a cidade se
apresenta ela mesma como uma obra. Nada impede então de conservar um espa
ço informe, desativado, como signo estético para fortalecer a imagem ascendente
da cidade. O espaço não qualificado faz parte da memória coletiva, podendo con
tinuar presente como recordação das origens da metamorfose urbana. Vinculá-
lo através do olhar, no espaço e no tempo, é a maneira de perseguir a unidade
projetiva da cidade. Isso confirmaria o quanto a cidade que se imagina doente
é a cidade que perdeu seus vínculos ou que não os tem. O reconhecimento de
uma disjunção espacial continua sendo um princípio de recomposição estética
porque ele prova a necessidade de um processo de alternativas. A gestão do ur
bano consiste então em impor a representação comum de uma sinergia entre as
alternativas consideradas para o tratamento do espaço urbano.
Você mora em uma cidade, você gosta e não gosta dela, você imagina às ve
zes outras soluções que não as que têm sido adotadas, e está assistindo agora,
em uma sala pública, à apresentação da “ sua” cidade realizada por profissionais
da imagem que nunca confessarão que detestam a sua cidade. M as pode-se ver
dadeiramente detestar uma cidade? E quais seriam as razões? Sua ausência de
centro? Seu aspecto desordenado? A feiúra de suas construções? Sua violência
cotidiana? Todas as razões para detestá-la terminam por lhe conferir um atrativo.
Assim é feita a natureza humana, que se deixa estranhamente atrair pelo que crê
abominar. M esmo que o percurso de uma cidade seja determinado por hábitos
dependentes da vida profissional ou das necessidades cotidianas, a incongruên
cia do surgimento de cenas cotidianas continua sempre possível. Umas imagens
vão chamando outras, e sua livre associação une as representações mais pessoais,
repetidamente ou segundo a emergência casual dos signos. Porque a história de
uma vida na cidade, a história mais significativa, mais marcante da existência de
um indivíduo, encontra-se inscrita na morfologia urbana como o porvir de um
destino. Quando se fala dos territórios sem nome, dessas aglomerações sem alma
e sem identidade, comete-se o erro de pensar que somente a cidade tradicional,
com seu passado histórico, estaria em condições de oferecer um poder simbóli
co às imagens, uma vez que os signos repartidos são eles mesmos já símbolos.
A cidade resiste ao que se espera dela, sobretudo quando não se espera mais nada,
e ao que vão fazer com ela, sobretudo quando se crê poder decidir o que ela se
tornará. Às vezes descemos do trem em uma cidade, dormimos no hotel da esta
ção, damos uma volta de manhã pelo bairro próximo, antes de partir novamente.
E sentados, por trás da janela do vagão, nos dizemos que só uma verdadeira catás
trofe na vida nos faria morar ali. Podemos ir a qualquer lugar para ter certeza de
nunca mais voltar lá? É aí que a cidade nos prende contra a vontade.
O prefeito de Athis-M ons18pediu a fotógrafos, produtores de vídeo e soci ólo
gos para praticar essa tática “de olhares cruzados”, a fim de refletir sobre a manei
ra de transformar a cidade. Junto com meu amigo Jean-Paul Curnier,19percorre-
mos essa cidade em todos os sentidos, tomando notas, utilizando o vídeo para
captar os momentos da vida citadina. A cidade de Athis-M ons, como seu nome
indica, é composta de duas cidades. M as a estrutura da aglomeração se divide
em três partes: na margem do rio Sena, próximo da estação de triagem de vagões
de Juvisy, localizam-se os bairros de M ons, ladeados por uma colina que foi anti
gamente o local de implantação de um vinhedo, sobre a qual se situa o “ núcleo
vital” do conjunto urbano, com a prefeitura, as escolas, as ruas comerciais; e, fi
nalmente, depois da estrada nacional 7, estende-se o bairro dito “ problemático”,
dos Trois F, formado por grandes conjuntos habitacionais. Ponto de partida de
nossa trajetória: o café-restaurante de la Paix, uma construção do final do século
XX. Um homem no bar nos explicou que inúmeras fontes fazem as construções
se mexerem e que ninguém fala disso. Durante a Segunda Guerra M undial, an
tes da existência do aeroporto de Orly, os alemães tinham cogitado instalar uma
gigantesca área de repouso para os SS, com lagos esparsos. Para nos convencer,
ele nos disse também que o castelo de Versalhes deveria ter sido construído em
Juvisy, mas que o projeto tinha sido abandonado porque havia ali um excesso de
pedreiras e o solo era excessivamente instável. Estranho olhar: ninguém pensa,
ao caminhar em uma cidade que não tem metrô, no que existe debaixo da terra.
Uma publicidade da RATP20 em Paris mostrava mulheres ou homens de quatro
na calçada, com a orelha colada no cimento, e um slogan que dizia: “ Isto está
acontecendo lá embaixo”. Nós não notamos a presença de casas que tivessem
escorregado ligeiramente, mas é preciso reconhecer que a representação de uma
inclinação permanente continua muito presente. Ela começa a ser mais visível
quando nos aproximamos da vizinhança da prefeitura.
Segundo café, o café de la M airie “ às portas” da descida em direção a M ons.
Surpresa: M ons fica em baixo, contrariamente à etimologia de seu nome. A Terra
teria um dia rodado no outro sentido, ou se trata de uma inconseqüência sem
pre tão apreciada pelo espírito humano? Dentro desse café onde muita gente se
encontra, a primeira reflexão do gerente nos espanta: “ Se eles decidirem fazer
uma zona de pedestres dentro deste bairro, vai ser o nosso fim”. Esse homem quis
nos dar a entender que o local era de tal maneira feito para funcionar como pas
sagem que a decisão de obrigar os passantes a flâner, a ficar ali, seria quase um
disparate. É provável que ele não apreciasse muito a idéia de clientes passando da
hora. Caminhando em certas horas pela rua Robert-Schuman, pudemos consta
tar com efeito que ela estava freqüentemente vazia. De repente, na hora da saída
dos colégios, uma massa de alunos invadia a rua.
Não há dúvida de que o encontro repentino de carros, ônibus, veículos de
duas rodas, alunos e, às vezes, seus pais produzia um estranho efeito de concen
tração que entravava a fluidez dos fluxos. A formação de uma massa, pela acumu
lação passageira da população, era talvez um substituto das referências da monu
mentalidade. A parecimento/dispersão. Em suma, um ritmo clássico próprio de
bom número de cidades. Um ritmo mais estranho em uma aglomeração de certa
dimensão, se considerarmos o setor designado para servir de centro. Aliás, a pa
lavra “setor” não evoca a fluidez elétrica? Nós ligamos e desligamos o setor. No
entanto, não decidimos verdadeiramente encher ou esvaziar um centro, pois “o
efeito de centro” não depende somente das políticas urbanas. Os vestígios do que
estava lá anteriormente são constitutivos desse “efeito de centro” ? Uma igreja,
um monumento, construções antigas, parecem de uma maneira ou de outra assi
nalar que uma cidade dispõe de um património. M as o futuro dessa cidade depen
de exclusivamente da revalorização de elementos esparsos de seu património?
Para Athis-M ons, a ausência de uma tal referência não é um defeito: a histó
ria do lugar é diferente, mais difusa, marcada pelos vinhedos da colina que, hoje
em dia, não parecem ter deixado nenhuma lembrança. Pensamos, contudo, no
outeiro de M ontmartre, onde os habitantes do bairro insistiram em preservar a
existência de um vinhedo, da mesma maneira que se conserva um monumento.
A obsessão contemporânea que consiste em querer sempre produzir um efeito
patrimonial talvez não seja a única via. De tanto buscar efeitos históricos, ter
mina-se falhando no objetivo: o património tirado do esquecimento, restituído
como um valor dominante, parece exagerado.
Percurso da cidade: fragmentação estranha. A heterogeneidade de uma cidade
não é necessariamente o sinal de sua ausência de coesão. A coerência espacial, liga
da à história de uma configuração territorial, impõe-se por ela mesma. A cidade
tão sem unidade produz ainda assim uma paisagem. Se olhada um pouco mais
de perto, há laços implícitos unindo os fragmentos - esses bairros que parecem
tão disparatados. Assim é o caso do caminho da montanha de Athis. Caminho
abandonado, pouco freqüentado. Caminho entretanto histórico, e cujo papel sim
bólico abalou o imaginário dos citadinos. De um lado, alguns animais invisíveis,
dos quais se sente a presença por trás de um muro; do outro, uma vegetação
entregue aos caprichos da natureza. Caminho por vezes investidos pelos sonhos
dos citadinos que imaginam usos, como uma cremalheira que permitisse subir
ou descer livremente através de uma paisagem mais elaborada, onde os animais
estariam bem presentes, em meio a uma vegetação mais “ trabalhada”. Resta esta
questão maior: deve-se deixar os habitantes de uma cidade imaginar o que ela po
deria ser, sem lhes dar necessariamente os signos tangíveis de uma metamorfose?
É preferível sonhar com o que pode ser, deixando o que é tal como é, ou empreen
der uma modificação concreta que não será jamais igual ao que foi imaginado?
A gestão urbana tem com mais freqüência a tendência a sobreobjetivar o que está
implícito na coerência interna da cidade. O que faz sentido dentro de um espaço
urbano nem sempre corresponde a signos manifestos. H á nos modos de apreen
são de uma cidade uma relação complexa entre o visível e o invisível - o que
pode parecer o mais visível nem sempre é visto. Procurar acentuar a coerência de
um conjunto de signos é feito em detrimento dos jogos cotidianos da percepção
de uma cidade. O que se ganha em homogeneidade, se perde em atrativo para
a deambulação do olhar. Como acentuar o poder simbólico de um espaço sem
correr o risco de banalizá-lo? As reordenações urbanas se parecem cada vez mais,
e essa equivalência gera um sério prejuízo para a singularidade dos locais. Talvez
seja preferível tratar certos lugares evitando circunscrever seus sentidos, permitin
do à imaginação dos habitantes descobrir suas possíveis vias. É de fato possível?
Vamos pressupor que exista uma coerência interna no “tecido urbano”, ape
sar de sua heterogeneidade aparente. Como trabalhar essa coerência interna, do
que “já está lá” ? Seria tentando apreender sua fraquezas como potencialidades?
O que está oculto nem por isso está destinado a ser supervalorizado. Todos os
signos urbanos, quer sejam visíveis ou não, participam de uma potencialidade
disponível,21 em uma dinâmica de justaposição, de correlação de signos. Se a
cidade é antes de tudo compreendida como imagens dela mesma, é justamente
na medida em que ela produtora de signos ao olhar. O que está em potência es
tá simultaneamente disponibilizável. Acentuar o sentido do que funciona como
signo, sobreobjetivá-lo, torná-lo sobrevisível são maneiras de suprimir o que es
tá em potência. Essa potencialidade seria a expressão de uma relação constante
entre uma “ coerência interna” do espaço urbano e a emergência de “tendências
espontâneas” que advêm da própria mobilidade dos modos cotidianos de apreen
são da cidade pelos citadinos. Querer definir o que está em potência na configura
ção territorial implica negar que um espaço urbano seja também a expressão de
uma “ aliança de contrários”, pois a coerência não é o único fruto da resolução das
contradições próprias às metamorfoses da cidade.
A maneira de abordar as potencialidades disponíveis requer um método espe
cial: o da perspectiva invertida. Lembremo-nos de Paul Cézanne, que decidiu co
locar o ponto de fuga no olho de quem olha o quadro, e não no quadro. Operação
que nos dá sempre a impressão de que suas vasilhas vão cair porque a mesa em
cima da qual foram colocadas inclina-se perigosamente na nossa direção. Essa
inversão da perspectiva clássica passou a fazer parte de nossas próprias modali
dades de olhar. Uma maneira de ver as coisas ao contrário. Pois bem, o que está
implícito em um campo de percepção requer uma inversão de orientação do
olhar semelhante, também ela suscitada pela articulação entre os diferentes estra
tos da configuração territorial. Ao contrário, a estratégia urbana que consiste em
produzir uma sobreobjetivação dos efeitos simbólicos conduz necessariamente
em transferir o que é implícito, o que é pouco visível, para o registro do sobre-
visível. A potencialidade morfológica permanece disponível, na medida em que
depende simultaneamente de uma configuração territorial e das modalidades do
olhar. O que está “em potência” no estado urbano não supõe a priori a necessida
de de ser significado por intervenções urbanísticas. A exploração excessivamente
sistemática das potencialidades obedece à mesma lógica da gestão patrimonial,
instaurando uma predominância visual dos artifícios do símbolo. Para que ela
não incorra no risco de se esgotar, é preciso que a potencialidade não seja tratada
de uma maneira resolutória, é preciso que ela mesma não se torne um dispositivo
simbólico. A implementação de uma discreta revelação é um apelo ao olhar.
Uma das contradições fundamentais de qualquer projeto urbano diz respeito
ao desaparecimento projetivo do projeto propriamente dito, pelo esgotamento
de suas potencialidades, quer elas decorram da transformação do território ou
das mentalidades coletivas. O que é realizado pode corresponder perfeitamente a
uma plasticidade de intenções prévias, mas nem por isso o projeto efetuado deixa
de provocar alguma perda de possíveis. Resta saber se essa perda será, por sua vez,
uma fonte de novas potencialidades. Dizer que um projeto urbano corresponde
a uma “ visão de mundo” é fazer supor que sua realização não lhe retirará esse
poder visionário. Tal idealismo se configura cético, pois toda “ visão de mundo”
se sustenta com uma sinergia de potencialidades, e a passagem do imaginário à
realização concreta do projeto provoca cegueira em razão do próprio exercício
do imperativo das necessidades. Trata-se de uma dialética do “necessário” e do
“ potencial” que funciona em detrimento de toda predestinação estética imaginá
ria. Uma concepção de estética urbana, deliberadamente pensada, tida como um
objetivo da gestão prospectiva de uma cidade, acompanha o risco de desapareci
mento das potencialidades disponíveis. A sobreobjetivação dos signos urbanos
é sempre feita em nome de uma estética cuja concepção permanece governada
pelo estado de espírito da “ restauração patrimonial”. De que maneira uma cidade
submetida à exacerbação de seu enquadramento simbólico poderia, pois, se ofere
cer ao olhar sem provocar desencanto?
Contudo, as potencialidades de um território urbano jamais se esgotam, elas
se renovam ao sabor de suas modalidades de planejamento. Elas permanecem
tanto à disposição do olhar dos habitantes quanto da inteligência dos arquitetos,
dos artistas que intervêm no espaço público. Sem a hipótese de uma fonte ines
gotável de potencialidades inerentes ao território, à morfologia do espaço, sem
tal hipótese, é evidente que a idéia de qualquer projeto urbano estaria amputada
de boa parte de sua dimensão prospectiva. Como a exploração dessas potenciali
dades continua sendo a única maneira de lhes dar um sentido reconhecível pela
comunidade, a própria cidade continua criando outras potencialidades e colocan
do-as ã disposição de seu porvir. Assim, não é absurdo achar que a cidade cria
suas potencialidades com um sentido de disponibilização para o porvir.
T E M P O E T E R R I T O R I O DA E S T E T I C A U R B A N A

A projeção para o futuro, introduzida pela obra de arte, é instada a representar


publicamente um certo apego ao passado. Espera-se de qualquer perturbação
produzida na cidade por intervenções artísticas o cuidado de evitar ultrapassar
as conveniências patrimoniais. A liberdade concedida aos artistas e aos arquitetos
surge para eles, pois, junto com a possibilidade de ousar fazer uma obra patri
monial. I mplantada na cidade como um património do futuro, toda obra está
destinada a se tornar memorável. O melhor exemplo disso é a questão das colu
nas de Buren no Palais Royal em Paris. A obra, de início, causou escândalo, mas
depois de um tempo integrou-se perfeitamente ao seu local. As reflexões que
circularam na época em que se multiplicavam os abaixo-assinados feitos contra
essa incursão audaciosa em um espaço histórico autêntico (“ Buren está possuído
pelo diabo”, “a mãe dele deve ter sonhado com zebras durante nove meses”, “pelo
menos vai servir de poleiro para os pombos”...) não são mais do que lembranças
divertidas. Críticos22 e historiadores de arte sempre podem analisar essa questão
comparando-a com o caso Dreyfus, mas suas observações se tornam pouco a
pouco irrelevantes quando se constata, alguns anos mais tarde, a integração exem
plar da obra de Buren, a banalização de seu uso pelas crianças ou pelos turistas
que tiram fotos depois de escalar as colunas. O escândalo inicial tem a ver com
a monumentalidade da obra e principalmente com sua inscrição nas memórias
coletivas, além de consagrar o papel mítico de sua implantação.
Considerando o jogo das temporalidades nos modos de apreensão de uma cida
de, constatamos que a dimensão patrimonial assegura a figura única de uma certa
espessura do tempo. Quando os artistas e os arquitetos se referem ao vazio, ao nada,
ao caos, quando suas obras expressam uma forma ativa da negação, a positividade
de suas concepções é obtida da relação com o património. Quanto mais a conserva
ção patrimonial produz efeitos de petrifkação, mais ela autoriza as obras contem
porâneas a traduzir no espaço público uma representação comum da aventura
das incertezas, ou de toda negação do poder passadista dos patrimónios. A noção
de vazio não provoca angústia coletiva porque é imediatamente temperada pelo
pleno (ou pelo excessivamente-pleno) simbolizado pelo património. M esmo que
a arte contemporânea manifeste, como escreveu Giorgio Agamben, “o autêntico
poder da negação”, a cidade patrimonializada lhe evita a visão persistente de des
moronamento do sentido. Essa “ espessura do tempo” está destinada a ser mal
usada pelas criações contemporâneas, que jogam com temporalidades mais com
plexas, mas termina contudo somente se confrontando consigo mesma. A lógica
patrimonial parece absorver inelutavelmente as figuras do tempo.
Qualquer percepção, seja a mais familiar delas, contém em potencial, como
a condição mesma de seu ato, uma reduplicação ao infinito da ordem do tempo.
Façamos a hipótese deste paradoxo: a semelhança acentuada das maneiras de
tratar o espaço urbano provoca o entrechoque das figuras temporais. A organi
zação do espaço, como uma finalidade obsessiva da gestão urbana, efetua-se por
intermédio de operações visíveis, mas o tempo, por sua vez, não pode ser objeto
de um investimento objetivo semelhante. Organizar sua divisão como condição
essencial às representações da cidade conduz apenas a multiplicar as chances de
sua disrupção fragmentar. A cidade, apesar da uniformização de sua configura
ção produzida pela semelhança dos projetos urbanos, torna sempre possível uma
subversão do olhar, ela nos incita à descoberta de outras figuras do tempo, ao nos
colocar diante dessa aporia da reflexividade: não é possível fazer a representação
do tempo, a não ser em nossas ilusões.
No ritmo de suas metamorfoses, a cidade é sempre o território da contingên
cia absoluta. Não somente nela tudo é possível, mas, mais ainda, o possível está
fundamentalmente ligado à emergência constante do casual. O que a cidade ofe
rece a qualquer percepção é o próprio fato dessa relação indestrinçável, implícita,
entre o tempo e a contingência. Na infinidade cotidiana de nossas apreensões
e de nossas percepções, durante o mais corriqueiro dos deslocamentos ou do
andar sem rumo pela cidade, o que pode simultaneamente ser ou não ser conti
nua sendo o possível da visualização. Não se trata mais da abordagem “sensível”
da cidade, encenada por uma certa fenomenologia da vida urbana, mas de uma
confrontação, feliz ou infeliz, com a irrupção da contingência. Tanto a gestão do
urbano desenvolve uma determinação objetiva do sentido dado a um investimen
to qualquer do espaço para evitar o sentimento da contingência, quanto o olhar
citadino pode ser captado pelas manifestações implícitas do que pode acontecer
ou não, de acordo com os acontecimentos. Fica claro, por outro lado, que a re
presentação comum da necessidade nasce da organização do espaço, no habitat
privado tanto quanto no espaço público. As contingências cotidianas, aquilo que
chamamos de “circunstâncias acidentais e variáveis”, servem para recordar o pa
pel da necessidade, um papel que a gestão urbana gostaria de tornar idealmente
benfeitor. Enquanto se trata da construção de infra-estruturas, a evidência da
necessidade não é contestada, mas se a questão é a implantação de uma obra
de arte, sua necessidade é legitimada por seu contrário - e a figuração pública
da contingência como valor existencial (o que representa a arte na rua, de uma
maneira geral) deve ser compartilhada pela comunidade. Quanto aos poderes pú
blicos, quanto aos financiadores, a necessidade de uma figuração da contingência
no espaço público é apresentada como o resultado do nec plus ultra da reflexão
sobre a estética urbana. Se a obra de arte é um símbolo vivo dessa contingência
existencial, então sua apresentação durável no espaço público responde à neces
sidade de representar - de uma maneira, apesar de tudo, tranqüilizadora - as
incertezas do futuro.
Quanto mais a ordem das representações culmina na reflexividade patrimo
nial, mais o mundo se considera uma obra acabada, e mais incerta se torna então
a representação idealizada da liberdade. É à arte que reverte a função de represen-
tá-lo. Por ter a capacidade de nos oferecer o que é visível/invisível, tocávei/into
cável, e por isso mesmo de conferir existência ao que não parecia tê-la, a arte na
cidade pode se apresentar como um meio de “ reencantar o mundo”. M as há uma
questão: o princípio de reflexividade característico de todo processo de gestão
visa reduzir a eventualidade da contingência a um efeito estético necessário. Para
conseguir tais finalidades, é preciso que a incerteza não seja mais uma fonte de
angústia. Assim, a contingência e o futuro indeterminado se tornam produtos es
téticos da reflexividade, artefatos indizíveis da gestão urbana. Não são mais o aci
dente ou o acaso que viriam a perturbar a ordem das representações, impondo
a soberania de seu poderio exterior e inesperado, provocando os efeitos de uma
contingência radical; é o mergulho na crença na incerteza controlada que cria a
nova ambiência estética da cidade e da vida cotidiana. O incerto se presta a mui
tos usos. Pode ser cultivado com fins económicos e políticos para justificar o lais-
ser-faire, satisfazendo as aspirações de um neoliberalismo em busca de um não-
intervencionismo de fachada. M as esse tratamento estratégico da incerteza deixa
transparecer seus próprios cálculos e se apresenta como uma paródia das regras
do mercado. A incerteza é tradicionalmente glorificada por ter sido derrotada.
Ora ela permanece preservada a fim de estimular, por assim dizer, a construção
de certezas, ora ela é cultivada como a representação dominante de um porvir
que tem poucas possibilidades de ser dominado. Ela é a metáfora da geometria
variável de todas as nossas angústias. Fazemos dela a representação de uma saída
honrosa de nossos infortúnios porque, justamente, ela torna irrepresentável o
que tínhamos acreditado objetivar através de nossa crença no poder salvador da
reflexividade. A incerteza dominada ou em vias de sê-lo apresenta essa dimensão
estética: a cidade se torna o território idealizado das representações possíveis da
contingência do futuro.

0 gênio maligno da intervenção

A história de uma intervenção artística ou arquitetônica pode ser surpreendente


ao ser acompanhada em médias e pequenas cidades. Entre os conservadores do
património, preocupados em manter a autenticidade original dos lugares e edi
fícios, e os defensores das audácias da arte contemporânea e da arquitetura do
futuro, exacerba-se a oposição a ponto de reduzir o conflito ao eterno duelo entre
os obcecados com a tradição e os aventureiros da modernidade. A representação
comum da destruição de uma harmonia dos locais pela transformação de um
edifício, sobretudo se ele for religioso, chega por vezes a parecer um sacrilégio.
Em Sarlat, na Dordonha, as “ Portas de Jean Nouvel” provocaram uma grande po
lemica, da mesma maneira que aconteceria caso fosse implantada uma obra de
arte contemporânea em pleno coração de uma cidade medieval. Essas portas de
15 metros e 60 de altura e 4 metros de largura cada uma foram confeccionadas
em aço e pesam 7 toneladas. Foram levadas até a praça de la Liberté em Sarlat por
um comboio especial, e instaladas na igreja de Sainte-M arie. No século XI X, um
rico morador adquiriu-a e decidiu demolir uma parte, achando que a construção
religiosa fazia sombra demais e tomava espaço demais. Curiosamente, Sainte-
M arie não dá a idéia de uma ruína mantida, mas de um edifício mal cuidado.
O que fez com que Jean Nouvel tenha dito: “ O que há de extraordinário aqui?
E o fato de esta igreja ter sido cortada em duas por uma pessoa que comprou a
metade da igreja porque ela lhe fazia sombra, e depois a demoliu. E o fato é que
uma poética acabou nascendo disso... O que há de extraordinário neste caso é
a manutenção do efeito de igreja cortada se abrindo sobre a cidade e as portas
significando essa abertura... Eu garanto a vocês que não tive a impressão de estar
cometendo um sacrilégio...”
Jean Nouvel, demonstrando sua vontade de respeitar a tradição patrimonial
e ao mesmo tempo apostando no futuro, cria uma lenda e tenta inscrever sua
criação na cidade como uma “ manobra política” que não deveria ser tomada
como uma negação do passado. O procedimento de legitimação pública que,
além disso, nem era verdadeiramente necessário para um arquiteto reconhecido
mundialmente, baseou-se na divisão dessa aparente convicção de ter “ captado”
a morfologia do território, pelo olhar e pela pregnância de sua história, a fim de
tomar um partido que não transgredisse as imagens do próprio passado. A idéia
é simples: é preciso que o olhar infalível do criador capte o “gênio do lugar” para
lhe dar uma representação de futuro, para lhe oferecer a derradeira possibilidade
de prosseguir sua aventura. Em seguida, as intenções podem achar seu encami
nhamento: “As portas são absolutamente planas, simples, em oposição à pedra,
para afirmar a diferença e valorizar a construção... elas nos falam do que vai
existir do lado de dentro; é uma leitura do volume interior, sem excessos, mui
to lisas, muito sóbrias; a intenção era conservar a confidencialidade do coro, o
recolhimento, a semipenumbra...” 23 Os argumentos, mesmo que contraditórios,
formarão sempre um dispositivo lógico cuja coerência interna tornará qualquer
crítica incapaz de se situar fora de uma oposição antecipadamente considerada
reacionária, uma vez que a única alternativa é ser “ a favor” ou “contra”.
É verdade que a instalação das portas demorou muito tempo. “ Espero não
chocar ninguém ao dizer que a chegada daquilo que está sendo chamado em
nossa cidade, de uma maneira ultrajante, de portas da discórdia, não passa de
um acontecimento anedótico.” 24 Durante mais de um ano, as portas instaladas
tinham o aspecto de uma paliçada branca indicando o fechamento para obras.
Como a igreja estava ela mesma inacabada, habitantes e turistas não conseguiam
entender se as obras estavam sendo feitas no lado de dentro ou no lado de fora
do edifício. Contudo, a parte alta do que podia se parecer com uma porta provi
sória tinha o formato da ogiva gótica de uma maneira tão precisa que dava para
se acreditar que se tratava de uma porta talvez definitiva. Em nome da moda,
o que está “ em obras” pode ser tomado pelo que permanecerá. Durante muito
tempo persistiu uma hesitação pública: essa porta branca, da qual não se podia
distinguir os dois batentes, era definitiva? Alguns meses mais tarde a porta m o
numental foi pintada de cinza e o material que antes parecia ser gesso revelou-se
metálico. A monumentalidade das portas revelou-se então mais discreta, fundiu-
se ao edifício e misturou-se à cidade. Esse tempo de realização, apresentado ao pú
blico como um quiasma do inacabado e do acabado, representou à sua maneira a
transfiguração patrimonial. A antecipação inscreveu-se no cerne da conservação
do passado: o que é percebido como um testemunho histórico continua a fazer
sentido, mas o que é empreendido no contexto presente testemunhará mais tarde
a audácia de uma invenção. O processo continua infalível: a conexão relacionada
ao futuro está destinada um dia a ser testemunha de um passado. Essa mistura de
nostalgia e de antecipação se torna a garantia atual de uma verdadeira prolepse.
Toda refutação é, por assim dizer, conjurada antecipadamente por estar destina
da a ser, ou algo descabido, ou expressão de desprezo reacionário. Ao intervir na
cidade, o arquiteto (ou o artista) se torna o demiurgo que, pela singularidade de
sua obra, sonha com a época futura.
A vontade manifesta de realizar uma harmonia singular entre o objeto patr i
monial e uma intervenção futurista não basta para obter a convicção. As expli
cações dadas por arquitetos, historiadores ou outros especialistas tentam elabo
rar uma répresentação pública convincente, mas a montagem midiática pode
parecer tão determinante que fica difícil imaginar em que medida essa nova
configuração de um edifício ultrapassa por sua exemplaridade os discursos que
a tornam tão facilmente legítima. Chegando-se a admitir que o procedimento
de legitimação pública não seja suficientemente poderoso para justificar o as
pecto futurista de uma intervenção arquitetônica - ou de uma obra de arte - , é
preciso ainda assim reconhecer que ele sempre oferece uma garantia certificada
de acordo com o que produz efeito de antecipação. As resistências, as críticas m a
nifestadas a respeito de operações que parecem bem temerárias para alguns, t r a
duzem o mais das vezes apenas uma recusa mantida por tolos. Na mesma hora a
virulência crítica parece passadista, anacrónica, e às vezes tão ridícula que chega
a reforçar a justeza do empreendimento futurista. Ouvir-se-á dizer que a igreja
de Sainte-M arie em Sarlat não é mais uma igreja desde que Jean Nouvel ergueu
aquela porta gigantesca. M as pelo fato de sua função ter mudado há muito tem
po com o mercado que ela abriga, não há nenhuma razão para pensar que essa
concepção arquitetônica seja a negação completa do espírito religioso. Como de
monstra a exaltação de algumas pessoas: “ Se as portas da igreja de Sainte-M arie
são muito altas, é porque o mais verticalizante de nossos arquitetos, em sua
démarche na direção da luz, se esforça para tocar o intocável e para pensar o im
pensável. Sua obra é uma tentativa de ir além do espaço e da condição humana,
uma tentativa de elevar-se do sensível ao inteligível, do concreto ao abstrato, da
visível à invisível presença”.25Todos os argumentos que dizem respeito à simbóli
ca da verticalidade e da luz servem para confirmar que não existiu sacrilégio.
O mais espantoso é a apresentação do conjunto das operações, do próprio
projeto até a encenação da instalação das portas e sua inserção no espaço urba
no, como uma concatenação estética de encadeamentos criadores que oferece no
tempo e no espaço a configuração da obra suprema. E eis aonde chega o delírio
verbal: “ De fato, se nós aceitamos a idéia do canteiro como espaço cenográfico, a
instalação das portas pode surgir como uma forma ritualizada para as interfaces
da tecnologia e da arte. A obra acompanhada de maquinarias, a impressionante
suspensão dos dois batentes, o ajustamento cuidadoso, os homens também ato-
res dessa ação, desse rito coletivo, tudo nessa cadeia de operações apela para o
‘sentimento de construção’, mecanismo que repousa, particularmente aqui, no
pertencimento ao grupo, ao momento, ao local.” 26 Difícil fazer melhor. O proje
to, o happening, a obra solene, o símbolo do futuro... Uma nova identidade do
espaço urbano seria estabelecida com as portas... “Com efeito, a criação dessas
duas portas, como um grande evento, inicia um processo de identificação antro
pológica fundado sobre o duplo pedestal, profissional e artístico, comum aos
arquitetos e aos artistas, cuja grande obra se edifica dentro e a partir da igreja, e
no cenário monumental da cidade”.27 Tal seria o modelo absoluto dos modos de
apreensão e de apropriação púbicos de uma intervenção arquitetônica e artística
em uma pequena cidade medieval turística. Não é difícil revelar as pérolas desses
discursos que sobrecarregam de poesia estereotipada a obra sublime. Todas as ga
rantias estão reunidas para que os espectadores vivam uma translação digna dos
anjos. O delírio das metáforas não acarreta prejuízo à obra, mas é revelador da
construção mental de uma credibilidade da arte realizada a partir da certeza de
sua produção emocional. O que nos parece, pois, impressionante, é a semelhança
da construção dos discursos que querem se opor: o lirismo arcaico dos reacioná-
rios conservadores, dos que tomaram partido contra as portas, têm pelo menos
os mesmos arrebatamentos metafóricos dos que as elogiaram. A idéia de “ a arte
como o nada que se auto-aniquila”, tomada de empréstimo de Hegel e retomada
por Giorgio Agamben em seu livro L’homme sans contenu, é uma idéia que afir
ma que todo discurso sobre uma obra pode perfeitamente tentar lhe dar sentido,
pois a obra traz em si essa apreensão do nada expresso por ela. Entretanto, no con
texto da implantação de uma obra artística em uma cidade, os discursos políticos
nunca se permitirão aludir publicamente ao nada, que seria específico do destino
da arte. Poder-se-ia muito bem considerar as portas de Jean Nouvel “ as portas do
nada”, e fazer um discurso mais dramático graças ao qual seria mostrado como a
igreja já quebrada precisa de um símbolo cicatrizante... O positivismo político e
cultural não cogita exibir a menor referência à idéia do nada: se a arte se liga ao
futuro, deve fazê-lo em um sentido positivo, pleno de esperança. Uma regra co
mo esta, de transmissão pública de mensagem artística, provoca uma suspeição
coletiva que parece bem legítima. O efeito transcendental da obra, desprovido de
seu próprio negativismo, se torna o próprio objeto dessa suspeição.
A polémica provocada pela implantação das “ portas de Jean Nouvel” deve-se
somente à adoção de “posições reacionárias” ? Seria simples demais opor os par
tidários da conservação tradicional aos que reconhecem a necessidade, em uma
cidade medieval, de deixar se expressar as obras do futuro. É de todo modo ina
creditável que, hoje em dia, a manifestação de um julgamento estético, quando
ele é negativo, passe sempre por uma atitude reacionária. O que se critica nos con-
servadores do passado não é exatamente seu julgamento, mas sim o fato de não
serem visionários. É preciso aceitar e glorificar tudo o que serve de signo para o
futuro? “ É admissível que o coro do santuário medieval, que o mundo inteiro
vem admirar com respeito, receba essas próteses de empenas cegas, barrando a
entrada de luz pelas abóbadas ancestrais, ferindo o olhar órfão das belas arcadas
ogivais com suas colunetas tão leves?” 28Tal arrebatamento lírico parece de início
apenas a expressão de uma nostalgia decadente, como uma recusa de imaginar
que a construção arquitetônica possa ser modificada sem prejuízo de sua dimen
são simbólica. De todo modo, é preciso reconhecer que o desprezo exibido em
relação a qualquer posição considerada conservadora consegue legitimidade de
vido à aquiescência obtida pela ausência de qualquer j ulgamento. A idéia generali
zada de modernidade permite normalmente fazer crer que a metamorfose de um
edifício é necessária para que a cidade não se contente em voltar-se com excessiva
facilidade apenas para o orgulho do passado. O que vai chocar, logo se tornará
um signo dos tempos futuros.
E o que ocorre com a própria possibilidade de julgamento crítico? Ainda es
tamos à altura de julgar esteticamente a obra de arte? O relativismo introduzido
pelo jogo infinito dos possíveis provoca, de maneira reflexiva, uma sobredetermi-
nação da interpretação, que perde seu poder crítico. Os discursos proferidos a
respeito de uma obra implantada em uma cidade recorrem a elementos metafó
ricos e conceituais aplicáveis a qualquer obra, de tal maneira que o julgamento
crítico se perde na alternativa entre a aceitação e a rejeição. Ora, é essa alternativa
que assina o fim de qualquer julgamento estético, pois impõe face a face duas ati
tudes completamente estereotipadas e imobilizadas. O que não é mais mostrado
é o fato irreversível da auto-reflexão da arte, a qual contribui, através da expres
são de sua soberania negativa, sem causa nem fim, para o desaparecimento do
julgamento crítico. “ Com efeito, a arte contemporânea nos apresenta, cada vez
com mais freqüência, produções diante das quais não é mais possível recorrer
ao mecanismo tradicional do julgamento estético, e para as quais a dupla anta
gónica arte/não arte nos parece completamente inadequada”.29A arte exerce seu
próprio poder graças a um processo de legitimação puramente formal, que elude
o julgamento.
Curiosamente, o confronto entre a cidade como território habitado, como
território portador de histórias, e a implantação da obra contemporânea pede
o retorno desse julgamento. O que existe lá para ser visto, todos os dias, fora de
um espaço museográfico (mas com o espírito de quem está no museu) incita o
julgamento estético apesar dos hábitos do olhar. Esse retorno abortado do jul ga
mento estético, não confessado, permutado discretamente, não tem como ser
comparado à interrogação demagógica sobre a acolhida do público. Agindo à
força sobre o olhar citadino, a obra atrai o julgamento estético em sua forma im
plícita. Uma cidade não serve apenas de cenário, e embora uma cidade medieval
tenha se tornado hoje em dia um cenário, ela é território de confronto de olhares,
um campo de batalha de percepções e sensações, mesmo que sua conservação pa
trimonial tenha trazido todos os signos de uma pacificação mórbida. O campo
de batalha dos modos de apreensão estética da cidade suscita permanentemente
julgamentos de gosto subjetivos. Dado que, de acordo com a tradição kantiana,
o julgamento estético permanece sem conceito, os dispositivos de interpretação
não liberam senão apreciações cuja legitimidade diz respeito somente à autori
dade de seus modos de conceitualização. Em um de seus comentários sobre a
Crítica do julgamento de Kant, Yves M ichaud escreve: “ Comunicamos de alguma
maneira a comunicabilidade do sentimento, o efeito sobre o espírito do livre jogo
do entendimento e da imaginação. A comunicação estética é a comunicabilidade
universal de um sentimento que todo homem conhece pela própria natureza de
suas faculdades e de sua vontade livre”.30Essa “ comunidade cultural” passou a ser,
presentemente, cercada de procedimentos de legitimação da obra, tendo adotado
uma forma no mínimo consensual, que se sustenta por suas próprias oposições
reduzidas à alternativa entre o fato de ser a favor ou contra.
Como um julgamento de gosto poderia então ser levado a sério? Parece
não somente inoportuno, arcaico, obsoleto, mas sobretudo impossível de ter
consistência, pois logo de início é esvaziado de todo conteúdo possível pela i m
posição dessa forma procédural. O que chega a parecer mais inquietante é a au
sência de emoção imediata. A emoção não se completa, mas as condições para
seu aparecimento permanecem predeterminadas. Donde este outro paradoxo:
a forma procédural da criação artística pode fazer nascer emoções que trans
bordem dela, que ultrapassem sua legitimidade consensual? “ Como qualquer
outro julgamento empírico, o julgamento de gosto eleva a pretensão a um valor
individual, o que é sempre possível a despeito de sua contingência interna.” 31
O julgamento de gosto implica uma universalidade subjetiva? E por que ele
deveria obedecer a um procedimento de legitimação par a alcançar sua “preten
são a uma finalidade subjetiva absolutamente válida para todos” ? “A obrigação
de uma dedução, ou seja, da garantia de legitimidade de uma espécie de jul ga
mento, só se apresenta se o julgamento alçar a pretensão à necessidade.” 32 Ora,
na instalação de uma obra de arte, essa necessidade precede a hipótese de um
julgamento de gosto, ela é colocada como um a priori cultural. O julgamento
de gosto não virá senão depois, e mesmo que advenha, que se expresse, apenas
adotará uma forma um tanto obsoleta, pois a lógica da necessidade de interven
ções artísticas ou arquitetônicas na cidade baseia-se em dispositivos de argu
mentação que o anularam previamente.
A representação dessa necessidade permanece ideológica, relacionada de
início a um reconhecimento consensual do caráter indispensável de apresentar
no espaço público figuras de criação contemporânea para o futuro das cidades.
O que torna antecipadamente inoportuno ou deslocado qualquer julgamento de
gosto, uma vez que este está, desde logo, condenado a uma forma puramente rea-
tiva. A necessidade não é deduzida, como poderia pensar Kant em sua época, dos
julgamentos de gosto, ela é definida por dispositivos institucionais que reagem à
boa fundamentação de qualquer intervenção cultural na espaço público. O que
torna mais impossível o julgamento de gosto tem a ver com o fato de que essa
mesma necessidade parece garantir uma forma objetiva para a expressão das apre
ciações consensuais. E assim é tramado o paradoxo seguinte: o reconhecimento
compartilhado da necessidade de qualquer intervenção artística ou arquitetônica
em uma cidade baseia-se na objetividade presumida de julgamentos de gostos
que não têm nenhuma razão de se produzir. De imediato, é a representação co
mum dessa necessidade que determina o gosto para todos.
É verdade também que a questão da beleza não é colocada, uma vez que, jus
tamente, o sistema de avaliação das obras - admitindo-se que exista um - impõe
critérios estéticos que reduzem toda idéia de beleza ou de feiúra à expressão in
fantil de uma opinião pouco cultivada. Dizer “ é bonito” ou “ não é bonito”, como
assinala Nathalie Heinich, decorre de um julgamento de criança. “ De fato, a par
tir do momento em que a questão é a arte contemporânea, os próprios critérios
de percepção da obra de arte são vistos desfavoravelmente, numa transgressão
mais ou menos sistemática das fronteiras mentais; os enquadramentos cogniti
vos constroem para o senso comum a representação daquilo que decorre da arte.
A questão da beleza nem sequer é mais pertinente...” 33 A herança kantiana não
vem mais ao caso, “uma vez que não se trata mais, com efeito, de fazer uma onto
logia do belo ou do sublime, tal como é proposta em Crítica do julgamento, mas,
sim, uma ontologia da natureza da obra de arte, que a partir de agora apresenta
problema, mais do que sua beleza”.34Essa redução da Crítica do julgamento a uma
simples ontologia da beleza permite afastar as sutis argumentações de Kant a res
peito das modalidades de avaliação da obra de arte, argumentações que, ao longo
da leitura de seu texto, parecem continuar mais do que nunca pertinentes e atuais
para uma “ontologia da natureza da obra”. Após a eliminação do julgamento de
gosto e de sua referência à idéia de beleza, persiste um paradoxo: a obra de arte,
como expressão de uma “ negatividade em ato”, não pode mais ser depreciada, a
não ser por critérios políticos e culturais cuja função é designar a “ reatividade”
- em outras palavras, a reação negativa à própria negatividade. O que faz de todo
julgamento de gosto algo descabido é o triunfo da forma procédural da implanta
ção pública da criação artística.
Essa forma procédural se apresenta como uma totalidade: inclui o procedi
mento filosófico do artista, a demonstração de suas intenções políticas e sociais,
a argumentação adotada pelas instituições, o jogo de interpretação dos críticos...
A questão da legitimidade da obra é essencial, sem que, por causa disto, seus obje-
tivos e suas finalidades sejam definíveis. Essa legitimidade se constitui em torno
do precedente do ilegítimo para que persista a representação contemporânea do
papel subversivo da arte. Assim, o que permite encorajar a forma procédural da
criação artística, o que autoriza a fazer crer publicamente que o trabalho empreen
dido e proposto pelo artista pode se transformar em obra, é o princípio da pr o
dução de uma aberração de sentido, para demonstrar o quanto a arte continua a
perturbar os hábitos de percepção e de representação, a questionar a própria so
ciedade. É preciso que, de alguma maneira, essa forma procédural seja mais forte
do que a convicção, que ela triunfe ao ceticismo circundante. Conseqúentemente,
não há mais diferença entre essa forma procédural de legitimação da criação e o
procedimento de implantação da obra no espaço público.
Sem que os financiadores saibam, a cidade confere a toda obra suas possibili
dades enigmáticas de inserção espacial e temporal para além dos critérios estéti
cos que parecem ter determinado sua escolha. O que se tornou público no espaço
urbano resiste aos assaltos das críticas mais acerbas. Curiosamente, poder-se-ia
repensar o princípio da universalidade visado pelo julgamento estético - mas que
nunca poderá lhe dar fundamento - , formulando a hipótese de que a própria
cidade assegura a projeção do particular no universal. A cidade, como representa
ção já constituída do universal, oferece a qualquer obra a oportunidade de passar
de seu caráter particular para o reconhecimento universal. O espaço público ur
bano apresenta, como território de exposição sem fim, essa garantia, institucio
nal mais do que visual, da passagem do particular ao universal.
A cidade se mantém cúmplice dos financiadores que a governam, uma vez
que não se oferece apenas como superfície de exposição, mas também como fon
te de indicadores de sentido, através do cenário sempre mutante que ela constitui
para a superexposição cultural e artística. O idealismo da universalidade do julga
mento estético impõe assim uma expansão constante, ativa, do particular. O cita
dino, mesmo podendo continuar a ter seus gostos, se vê obrigado a conviver com
essa superexposição urbana, como se suas preferências fossem reduzidas a um
relativismo inútil. M as mesmo assim a cidade oferece surpreendentes reversos:
a exibição cultural de que ela é teatro, por seus próprios excessos, torna possível
o retorno discreto da particularidade do julgamento estético. Ela o torna efetiva-
mente possível, pela simples razão de que a supervisibilidade produz cegueira.
O citadino, solicitado permanentemente pela proliferação de signos culturais e
artísticos, é estimulado a não ver mais nada, o que lhe dá a oportunidade de ver
de outra maneira.
Deve-se acreditar que, sendo território de exposição de obras arquitetônicas
e artísticas, a cidade pode ser ela mesma uma obra? Sem nenhuma dúvida é com
este pensamento que os governantes tomam a decisão de construir uma imagem
da cidade que una a posteridade de seu nome à elaboração de uma plasticidade
urbana de grande amplitude. A cidade se faz obra inacabada porque excede, nos
modos de apreensão que temos dela, o poder do sentido exercido pelos signos
que não param de configurá-la. Assim, a escolha das obras de arte se traduz pela
maneira de pensar de outra maneira a cidade, não por causa da preocupação
com seu embelezamento, mas muito mais como demonstração pública de sua
representação. Território ideal de exibição da arte contemporânea, a cidade pode
ela mesma ser tratada como um cenário em gestação.

Quando o museu faz da cidade uma obra

A cidade não pára de se expor, o que não é idêntico ao fato de que se pode ex
pô-la. Sua morfologia global é sentida de maneira orgânica, antes de qualquer
construção da representação, pelo imediatismo de nossos modos de apreensão.
Ao contrário, a exposição da cidade, as maneiras de pensá-la, de representá-la, se
cristalizam em torno da imagem. Somos forçados a olhá-la como imagem de si
mesma, a vê-la como exposição. A exposição M utations, realizada em Bordeaux
em 2000-2001, mostrou esse ritmo bastante desenfreado que pode ser observado
na cidade e que produz, logo de início, estranhos efeitos de semelhança entre
as megalópoles cujas culturas são, contudo, bem distintas. Apreendidas em ima
gens, apresentadas em telas gigantes, as grandes cidades do mundo se parecem,
perdem sua singularidade. Esta foi a intenção de Rem Koolhaas, principal ideali-
zador da exposição. A cidade como mundo se torna a “ cidade-mundo”. Por que
as megalópoles apresentadas em imagens delas mesmas se parecem com tanta
acuidade? Além das semelhanças relacionadas aos modos de construção, aos efei
tos dos mesmos planos de urbanismo, impõe-se ainda uma semelhança do olhar,
como se a cidade-mundo só se oferecesse à vista através do ritmo desenfreado
do movimento de pessoas e veículos e da contaminação das imagens. Quem ob
serva tais imagens com uma certa assiduidade se vê forçado a olhá-las segundo a
perspectiva de uma estética da velocidade de circulação. No espaço da exposição
M utations, as únicas cadeiras em que era permitido sentar-se por algum tempo
estavam colocadas diante da tela na qual se podiam ver as imagens da cidade afri
cana de Lagos. O filme tinha sido rodado de dentro da locomotiva de um trem a
vapor que andava lentamente. A descoberta do espaço urbano, de cada lado dos
trilhos, se fazia no ritmo do próprio trem. A sucessão das imagens em velocida
de baixa devia provavelmente sugerir as cadências cotidianas da própria cidade.
O que se pretende, na exibição da semelhança urbana, é fazer desaparecer qual
quer “espessura do tempo”, que é também anulada pela velocidade de circulação
das imagens. O tempo foi achatado, e seu imediatismo constante assegurou um
efeito permanente de equivalência visual.
A predominância contemporânea do espaço museográfico parece freqüente-
mente orientar o olhar, conferindo-lhe um enquadramento permanente de repre
sentação, impondo-lhe também uma concepção do tempo. Toda uma controvér
sia nasceu da recusa de certos artistas a continuar expondo nos museus. Escolher
locais da cidade para fazer deles espaços públicos de exposição de obras em nada
muda a mentalidade “de museu”. M esmo que nos insurjamos contra a extensão
da conservação patrimonial, que termina fazendo da cidade um museu, o sim
ples fato de expor, quer se queira ou não, induz o apelo ao espírito de museu.
Algumas vezes, andando pelos corredores de um museu, somos tentados a
olhar para a cidade do lado de fora com a impressão confusa de estarmos fora do
alinhamento, e ao mesmo tempo estarmos em outro lugar, tornando nosso olhar
voltado para a cidade quase irreal, como se o interior do museu não nos levasse
ao coração da cidade, mas, em vez disso, nos oferecesse a estranha certeza de seu
distanciamento. O museu faz com que imaginemos que a cidade está ao lado, que
se entregará a nós somente quando estivermos de novo fora desses locais consa
grados às artes e à cultura. O silêncio reinante dentro dele consagra essa separa
ção, convidando ao recolhimento. E há uma tentação de se deixar trancar, depois
da hora regulamentar de encerramento das visitas, tentação que ocorre sempre,
mesmo que poucos aventureiros tenham passado ao ato... Algumas pessoas che
gam até a imaginar que poderiam morrer docemente diante do quadro que tanto
amaram ao longo da vida inteira. Outras, ao contrário, sentem uma embriaguez
quando se vêem no meio de uma multidão tão densa que não conseguem ver na
da, sobretudo se são de baixa estatura. Essas pessoas sentem prazer em estar na
multidão que as vai levando no ritmo de seu escoamento, da entrada até a saída.
É a própria cidade que entra no museu. Essa estética da massa é experimentada
em meio a vertigens de uma subjetividade sempre renovada de maneira ilusória.
O breve olhar na direção de um quadro divisado por entre cabeças amontoadas:
um olhar que encontra prazer na aparição incongruente de uma obra, na simples
descoberta acidental do olhar.
Tomemos o exemplo do visitante que vai até o museu para ver o que já conhe
ce. Encontra-se em um estado de espírito desejoso de encontrar a confirmação
satisfatória de seus conhecimentos. Ele pode também, como qualquer pessoa, ter
o prazer de rever o que já viu, prazer que não está em vias de se esgotar se conside
rarmos que a vitalidade do desejo tem a ver com a repetição. A procura de uma
confirmação pode se tornar também verificação, como se o objeto estético que
ele voltou para ver fosse para ele um elemento de prova. Esse estado de espírito é
freqüentemente reforçado pelo prazer que o visitante terá em explicar aos amigos
seu próprio saber a respeito de objetos de arte. A sensação de júbilo que experi
mentou na ocasião do primeiro encontro com o objeto não é do mesmo tipo, ela
oscilou em sua memória. M esmo que não haja nada de mórbido no prazer da
repetição, é importante constatar que se trata de um procedimento de revisitação
que evoca uma representação da morte. Assim, os freqüentadores assíduos dos
museus esperam sempre identificar o que não viram realmente, a partir do fundo
das memórias de suas percepções habituais. Eles agem como os colecionadores
que se vêem na expectativa de descobrir a peça que faltava em sua coleção. Eles
se defrontam com a perda possível de seu desejo. E é a eventualidade dessa perda
que os incita a retornar.
E o que dizer então a respeito da indiferença que parece caracterizar o modo
de percepção dos visitantes que vêm “ver por ver” ou “ ver para contar aos outros
que viram” ? Poderíamos acreditar que estes últimos não estão se confrontando
mais com a perda possível de seu desejo, eles olham o que vêem sem realmente se
deixar captar, seguindo o movimento da multidão. O travelling do olhar morto.
E compreender mal o extraordinário potencial de incongruência que toda forma
de indiferença contém. Trata-se da estranha ausência de singularidade do olhar
bobo. M odalidade de passeio do olho tão propícia à deambulação pelas cidades.
Esse olhar bobo que, antes de chegar até lá, procura captar muitas coisas em seus
múltiplos campos de visão, e não procura mais nada; e por não procurar mais
nada, se deixa levar indiferentemente por qualquer coisa sem demonstrar o mais
ínfimo interesse. Olhar que anula a própria idéia de qualquer experiência esté
tica. Olhar que de repente adotamos quando, sem nada de especial a fazer, nos
entregamos ao fenómeno estranho de ver sem ver, de olhar sem saber.
O olhar indiferenciado lançado sobre as coisas da cidade nos coloca em um
estranho estado de recepção, um estado de disponibilidade que permanece fora
do tempo. Contrariamente, os símbolos representados pelas obras, pelos monu
mentos, estão ali para obrigar nosso olhar a captá-los. Eles ordenam o campo de
visão, impõem objetivos a qualquer deambulação, oferecem-se como rumos de visi
ta. O que, então, induz a expectativa indiferente (ou o olhar bobo) é o nascimen
to abrupto de um olhar suscetível de ser captado de maneira inesperada, dentro
do tempo e do espaço ordenados da cidade. Em um museu, a mesma labilidade
indiferente do olhar é capaz de fazer nascer o acontecimento de um instante de
fascinação.
O museu transformado em obra arquitetônica, até mesmo artística, impõe
sua própria soberania estética, da mesma maneira que um monumento. É o caso
do museu Guggenheim, construído por Frank Gehry em Bilbao. As metáforas
utilizadas para designar o que ele representa são elogiosas: “ Esse Leviatã de me
tal branco oferece um espetáculo surpreendente” ou ainda “ siderada, a cidade
parece contemplar esse silencioso túmulo”. Como se fosse uma obra, com sua pre
sença soberana, o museu se apresenta como uma maneira única de ver a cidade
pensar-se a si mesma. “A cidade que se desenvolvia aos trancos e barrancos, que
se espalhava entre as colinas sem prestar atenção nem no seu rio nem na sua geo
grafia, encontra de repente um espetáculo para onde voltar os olhos, onde fixar o
olhar.” 35 Uma tal consagração do museu como obra de arte arquitetônica sugere
a evidência de uma personificação da cidade. É graças a esse género de interven
ção magistral que a cidade se torna comparável a uma pessoa que, é claro, nada
mais é do que o produto dos comentários admirativos dos próprios arquitetos.
O tecido urbano, caótico, teria repentinamente tomado uma forma de conjunto
e adquirido sentido graças à intervenção arquitetônica.
O museu construído por um star da arquitetura se torna desde então uma
peça essencial na revitalização do espaço urbano. A singularidade arquitetônica
da obra absorve todas as potencialidades do espaço circundante; tudo que no
espaço urbano era apenas resultado de uma ausência de intenção determinante,
descobre a possibilidade de adquirir um sentido graças ao poder de fagocitose
exercido no meio ambiente pela obra arquitetônica. Poder-se-ia imaginar que
uma cidade pudesse ser reestruturada a partir de seu museu, que se tornaria uma
máquina de fazer obras de arte em torno dela. Este culto à obra engendrando
obra, até a saturação, parece estranho ao olhar devoto, ao olhar atingido pela per
plexidade diante de uma magnificência tal que parece de fato transcender o valor
que se imaginaria dever ser atribuído à própria obra de arte. Essa revitalização es
tética do espaço urbano, a partir do museu como obra arquitetônica erigida para
os tempos futuros, parece sempre demonstrar o quanto a mutação de uma pai sa
gem urbana depende da maneira no mínimo ostentatória de como a cidade pode
fazer obra de si mesma, graças à intervenção demiúrgica de arquitetos e artistas.
A recomposição da paisagem urbana

Numerosas zonas industriais abandonadas vêm sendo investidas de uma função


cultural, e a polivalência das práticas artísticas que nelas se desenvolvem revela
em que medida o passado do local permanece presente de modo um tanto fantas
magórico. Conciliar a sobrevivência das memórias de tais lugares e o desenvolvi
mento cultural atual talvez não seja um imperativo indubitável, pois a liberdade
da recordação depende primeiro dos vestígios da configuração arquitetônica dos
sítios. O que é preservado é mais uma concepção arquitetônica do que uma ar
quitetura de construções industriais que são, além disso, objeto de uma reorde
nação permanente. E essa concepção arquitetônica revela como a cidade jamais
suprime seu próprio passado, sua própria história, ou como a recomposição da
paisagem urbana não termina - felizmente, por sinal - de fazer-se por si mesma,
produzindo seus próprios efeitos arqueológicos. A gestão do espaço urbano ten
ta combinar esses efeitos arqueológicos com a atualização da produção social e
cultural dos laços territoriais. É sempre a gestão do espaço que, de maneira inci
dental, provoca uma ordem do tempo, a ponto de a cidade, como objeto dessa
gestão, ser cada vez mais supersignificada, superinvestida de sentido simbólico,
na medida em que passado histórico é mais longo.
Os locais indeterminados - como as áreas industriais, as áreas portuárias de
gradadas - se tornam locais referenciais. O não-lugar é a garantia simbólica uni
versal do lugar. Ele devia designar o território sem nome, sem identidade, mas
se torna o brasão por excelência do desenvolvimento cultural. O reinvestimento
simbólico pela cultura, nesses lugares desativados, se realiza segundo um princí
pio de igualitarismo social que supõe a ocorrência do acesso de todas as camadas
da população à criação artística. Assim, a multiplicidade das “culturas urbanas”,
símbolo ativo e contemporâneo do multiculturalismo, encontra sua consagração
na exibição cultural, que representa a almejada superação dos modos de discrimi
nação indentitários e sociais no espaço urbano. A cultura no plural oferece todas
as esperanças à representação comum de uma democracia fundada no idealismo
de uma sinergia de criações artísticas. Tal enquadramento cultural permite dar
um valor universal à subjetividade criadora, inscrevendo-a no teatro de sua ex
pressão nascente, incerta, teatro que tem a área industrial como símbolo de transi
ção, de metamorfose da sociedade contemporânea. A reordenação do palácio de
Tóquio, no bairro muito burguês do 16- arrondissement em Paris, transformado
em área industrial abandonada, mostra bem que esse género de espaço se tornou
uma referência essencial à representação, no mínimo ideológica, de uma arte que
está sempre se buscando, que se confronta com o real, com o efémero, de uma
arte que não concebe apenas obras, mas que apresenta processos. O cenário da
área inexplorada aparece como um teatro mental idealizado de criação artística
contemporânea.
Em seu livro De l’écriture à la scène, M ichel Simonot expõe as seguintes ques
tões: “ Será que a busca do novo se torna sua própria finalidade, a ponto da incer
teza - ou até a impotência - oferecer-se como espetáculo; ou, então, será que a
exploração de démarches artísticas, de formas desconhecidas, tem necessidade de
etapas públicas de fabricação e de confrontação; ou ainda, por exemplo, será que
as formas efémeras seriam respostas atuais ou provisórias às questões colocadas
à criação artística?” 36M as esse culto do transitório está mais do que nunca prote
gido e, administrado pelas políticas culturais, torna-se a referência essencial das
representações comuns das relações entre a criação artística e as modalidades
da mutação urbana. As metamorfoses de uma cidade inscrevem-se, de maneira
significativa, na duração, graças à realização de certos projetos urbanos que, pen
sando a cidade como paisagem, criam paisagem. Já o culto do efémero tem um
lugar privilegiado por inspirar o estado de espírito necessário à concepção de
toda metamorfose. Toda paisagem urbana joga cada vez mais com a alternância
espacial entre a duração e o efémero.
Quando se assiste à implosão de um conjunto habitacional construído nos
anos 1970, contata-se que seus ocupantes ficam felizes por imaginar que sua re
gião circundante vai mudar, mas ficam infelizes por assistir ao desmoronamento
de seu passado. O espetáculo da implosão cristaliza essa ambivalência oferecendo
ao olhar esse momento de júbilo e angústia. Os prédios foram em sua maioria
construídos depois do final da Segunda Guerra M undial, para substituir barra
cos, no próprio local das favelas. A implosão de um prédio é sobretudo o signo
espetacular da intervenção de toda gestão urbana, uma vez que mostra, da parte
dos poderes públicos, a vontade irredutível de modificar a configuração social de
uma cidade. Anteriormente, alguns arquitetos defenderam a idéia de um valor
próprio das habitações efémeras. Esse valor atribuído a uma arquitetura efémera,
a uma arquitetura sem arquitetos, já se tornou uma razão de conservação patri
monial. A combinação entre a reestruturação do habitat de conjuntos habitacio
nais e a conservação de habitações precárias mostra o quanto a gestão urbana
termina por ignorar qualquer contradição. A recomposição de uma paisagem
urbana supõe uma pluralidade de escolhas que podem parecer contraditórias,
mas que deixam de sê-lo quando a harmonia do espaço urbano é pensada como
uma absorção patrimonial de tudo que se faz por tudo que já se fez.
No Brasil, já há alguns anos, algumas favelas são objeto de interesse para a con
servação patrimonial, nacional e mundial. Patrimonializar as construções dos po
bres pode parecer uma operação puramente demagógica, sobretudo quando se
sabe que predomina a referência tradicional pelo “monumental” na gestão sem
fronteiras dos exemplos históricos de transmissão cultural. A priori, o que não
dura, o que é tido como efémero, não se presta à conservação. M as as políticas
culturais internacionais buscam suas motivações, que consideram louváveis, em
qualquer referência à história de uma cultura própria, de uma cultura que, no
caso do desenvolvimento das cidades no Brasil, enraíza-se dentro das próprias
favelas. É provável que este seja um ponto importante na concepção arquitetôni
ca sem arquitetos, que faz do próprio habitat um ato cultural coletivo e singular
apesar da necessidade económica que submete os habitantes à escolha limitada
de materiais, à arrumação de um espaço restrito e à construção em um certo
tipo de território.
Antigamente, as favelas eram consideradas uma “ ferida” na cidade, e mais
particularmente no Rio, uma vez que se instalaram em cima dos morros que do
minam o mar. Diferentes correntes de pensamento, entre os quais o movimento
antropofágico, alguns poetas (Biaise Cendrars), alguns músicos (M ilhaud, Villa-
Lobos) e cineastas participaram da derrubada deste ponto de vista. A “chaga”
das favelas foi se transformando em representação aceitável e compartilhável de
uma estética urbana “ espontânea” nessa cidade tão reputada por sua beleza. Não
foram somente os intelectuais e os artistas estrangeiros que induziram essa m o
dificação de perspectiva. M uitos artistas brasileiros descobriram a essência da
“brasilidade” na vida cultural e social das favelas onde se desenvolveram as esco
las de samba.37 A favela - e seus “ favelados” - tornou-se ao longo do século XX
o território mais simbólico da cultura brasileira, o mais representativo da recon
figuração urbana. Assim, operou-se uma modificação de ponto de vista: a favela
passou a ser “revisitada” como um viveiro de criações comunitárias, tanto pela
música quanto pelas construções arquitetônicas precárias. Os artistas brasileiros,
assim como os artistas europeus, não teriam conseguido uma tal alteração de
ponto de vista; e nem tentar impô-lo à comunidade brasileira inteira, embora ela
ainda permaneça recalcitrante em boa parte, se não fosse a efervescência cultural
própria dos habitantes das favelas e a soberania inacreditável do samba na vida
cotidiana dos “cariocas”.
M esmo que a ideologia de uma arquitetura sem arquitetos não esteja mais tão
na moda - embora perdure na contracorrente de qualquer concepção excessiva
mente monumental da revitalização urbana - , é inegável que o cuidado de pre
servar a morfologia espontânea de uma cidade persiste como o horizonte social
e cultural das cidades em plena expansão, através das construções precárias, no
entanto, duráveis. É difícil para os poderes públicos, que durante muito tempo
praticaram a erradicação dos territórios e das habitações dos pobres, substituir o
ideal de purificação higienista pelo reconhecimento estético desses “ santuários”
da cultura em que se transformaram as favelas. Podemos, com efeito, nos per
guntar se uma inversão como esta não seria, à sua maneira, o resultado lógico
do higienismo urbano: a passagem à estetização. O sentido dado pelos poderes
públicos ao destino das favelas se resume em três fases essenciais: sua desestru-
turação radical em nome da higiene urbana (erradicar a “chaga” ); a aceitação
de seu papel social e cultural no território urbano (fazer com); a valorização
estética de seu estilo de vida próprio (fazer dele um modelo). As lutas urbanas
e as reivindicações manifestadas não encontrariam eco nas estratégias de gestão
das cidades a não ser que passassem por esse “efeito de estetização” produzido
exclusivamente pela vontade da burguesia das cidades. M esmo não se podendo
ignorar a perversidade de tal enquadramento institucional, é possível contudo
considerá-lo satisfatório, pois provavelmente não há outra solução para evitar os
procedimentos de revitalização urbana, os quais provocam uma segregação sem
pre mais determinada na repartição territorial das populações.
Nos bairros periféricos como Jacarezinho, I nhoaíba e na favela Central, morro
da Providência, a prefeitura do Rio pretendeu promover intervenções de grande
envergadura para oferecer aos pobres uma disposição estética para sua vida so
cial.38 Em Inhoaíba, a configuração territorial se apresenta assim: as duas partes
do bairro são separadas por uma via férrea, uma estação de trem, e de cada lado
existe uma praça com algumas árvores e moradias precárias. Junto da primeira
praça há uma igreja ainda em construção, e voluntários distribuem comida às
pessoas várias vezes por semana. Uma passarela atravessa os trilhos da linha do
trem, unindo as duas praças. Em volta da estação há muito espaço vazio. O proje
to proposto consistiria em redefinir as duas praças, tornando-as mais atraentes,
evitando que fossem ocupadas por construções rudimentares, além de melhorar
a passagem de uma praça à outra por intermédio de uma reforma da passarela, e
construir no espaço vazio um belo edifício arquitetônico para, logo de entrada,
funcionar como símbolo do futuro do bairro. Em que medida essa obra pode
fazer sentido a não ser na imaginação dos políticos municipais? Não há razão,
poderíamos pensar, para os bairros mais desfavorecidos não terem direito à bele
za de uma obra arquitetônica futurista. A exemplaridade imposta por uma obra
arquitetônica, com o conjunto das funções que lhe podem ser atribuídas, é um
meio de gerir a violência urbana ou de provocá-la? O fato de uma construção tão
suntuosa ser oferecida aos usos dos habitantes pobres do bairro em nada muda
a representação coletiva de suas frustrações. O luxo, no meio de um habitat pre
cário, apresenta-se como uma alternativa aos hábitos cotidianos, em meio a uma
espoliação que, há já bastante tempo, se mostra com figura de destino? A despesa
suntuosa parece mais destinada a fazer esquecer a pobreza, ao impor efeitos de
esquecimento da fatalidade cotidiana no mínimo ilusionistas por intermédio da
presença de uma obra arquitetônica majestosa.
No morro da Providência, um museu “ vivo” da favela foi previsto. Tida como
um património histórico e cultural, a favela se tornaria o símbolo perene da cultu
ra brasileira. A idéia de fazer esse museu “ vivo” revela perfeitamente as intenções
dos gestores da cidade: a vida social não será mais investida em objetos museo-
gráficos, ela estará sempre se reproduzindo porque o museu se tornará seu instru
mento. Devido ao fato de as pessoas sentirem prazer em viver, o museu “vivo” será
responsável por essa dimensão estética ativa que falta à miséria cotidiana. A exalta
ção cultural da vida social será oferecida como alternativa de fruição especular à
resignação comum. Por fim, Jacarezinho, um centro internacional da cultura e de
pesquisas, permitirá abrir o bairro pobre à passagem de intelectuais e de artistas
vindos do mundo inteiro. A favela se tornará ela própria um local aberto para o
mundo, um laboratório de criações, um viveiro de riquezas simbólicas... Assim
será a parábola municipal: para além da miséria existe a arte; arte que, por excelên
cia, exerce a função social primordial de sublimar a miséria.
A recomposição de uma paisagem urbana pode também ser feita a uma velo
cidade inacreditável, dando a impressão de que a cidade engendra sua própria
mutação, sem que os gestores de tal fulgurância tenham condições de avaliar as
conseqüências futuras.

Recordação de infância: as imagens de Xangai no O lótus azul.39 Sempre per


seguido, Tintin sai ou entra na cidade por baixo de um mesmo pórtico no meio
de muralhas. Condenado à morte pelos japoneses que ocupam a região, ele não
encontra refúgio dentro da concessão internacional, que o rejeita apesar de sua
nacionalidade. As lembranças dessas imagens de cidade, do ritmo dessas perse
guições, da agitação febril dos chineses nas ruelas, das casas de ópio e de gângste-
res, são todas lembranças que não vão embora, mas a cidade não se parece mais
com o que era meio século antes. Além disso, as muralhas foram postas abaixo
depois da Revolta dos Boxers. M il vezes olhada em imagens dela mesma, Xangai
não escapa mais, embora tenha se metamorfoseado nos tempos atuais de uma
maneira fulgurante em relação àquela primeira visão, que é a parte ocidental de
sua memória inicial. E assim nós lhe inventamos seu património, graças a uma
história em quadrinhos.
Partir da antiga concessão francesa para descobrir Xangai, fora toda preocu
pação com refúgio nostálgico, é uma oportunidade de confronto com a história
instantânea da excepcional transformação de uma morfologia urbana. A alterida
de radical de uma cultura obriga o estrangeiro a exercer sua liberdade de olhar a
partir de signos que ele crê reconhecer apenas por tê-los visto nos cenários de sua
imaginação. Dentro do metrô, após ter sido empurrado por uma multidão nervo
sa, eu diria que tão elétrica quanto a própria cidade, eu nem sei porque me vi de
pé, sozinho, dentro do vagão, diante de uma quantidade de chineses. Eu poderia
ter me virado na mesma hora para evitar seus olhares. Não o fiz porque pensei
que, continuando como estava, poderia captar melhor a densidade da cidade, es
quecendo as imagens de minha infância.
No curso de longas caminhadas, Xangai se desvela como um canteiro de obras
permanente. H á partes de bairros arrasadas, novos prédios se erguendo para o
céu, outros ainda em construção, cercados por andaimes de bambu que parecem
sempre leves, prestes a levantar vôo. Em algumas ruelas, onde as habitações são
mais antigas, roupas de baixo secam por todo lado, e eu mesmo cheguei a ver
um sutiã preso com um pregador de roupa em um fio elétrico. Do lado leste, a
célebre rua de Nanging, cujas fachadas dos edifícios são cobertas de cartazes lumi
nosos gigantescos leva até o Bund, a grande avenida que beira o rio Huang, com
sua arquitetura dos anos 1930, lembrando os primeiros arranha-céus de Chicago.
Da calçadão elevado é possível avistar as construções futuristas de Pudong, como
a torre Jim M ao em forma de foguete; ela anuncia o encadeamento infernal dos
desafios lançados ao mundo por Xangai, a célebre “ Pérola do Oriente”, tal qual
uma agulha de tricô apontada para o céu, com suas bolas de vidro cor-de-rosa.
Escuta-se falar que Xangai se vinga dos ocidentais que a ocuparam até 1943, que
Xangai se vinga da própria China, que a teria abandonado depois do fim das con
cessões para puni-la por sua abertura para o mundo e para fazer dela uma cidade
sem futuro. Ouve-se dizer também que, depois do 11 de Setembro de 2001, a pre
feitura decidiu aumentar em quatro andares a torre Trade Business Tower, quase
em final de construção, para que ela ultrapassasse com sua altura imponente as
torres do W orld Trade Center de Nova York, que desapareceram. Xangai, mais do
que a própria China, quer ultrapassar os Estados Unidos da América.
Estranha história, contudo: a cidade que passou a representar no presente o
grande símbolo do capitalismo de Estado foi o berço do comunismo. Os vestígios
da origem, semelhantes aos de um mito, parecem tão longínquos, tão arcaicos
em comparação com a efervescência desse novo mundo à moda chinesa, que são
conservados como relíquias em algumas residências onde se hospedaram perso
nagens daquela época.
A cidade que anda para a frente, a cidade que não recua diante de nenhuma
extravagância, a ponto de unir o ritmo de sua destruição interna ao de sua cons
trução futurista, não vê mais retorno possível. Ela mesma se inventa como patri
mónio do futuro, subvertendo as referências tradicionais, efetuando a conquista
do futuro apenas com sua desmesura. Ele se erige no ritmo de uma imagem que
nunca termina de associar todas as imagens de outras cidades, zombando dos
símbolos que a inspiraram, conferindo-lhes apenas o papel de puros elementos
alegóricos de seu próprio desafio. Do outro lado do rio Huang, o território de
Pudong, que já foi coberto de arrozais, tornou-se, ex nihilo, o maior laboratório
de urbanismo do futuro. Com a proliferação das torres da “Avenida do Século”, a
ficção urbana se faz no ritmo do movimento infernal da propensão ilimitada, in
teiramente liberada da representação do passado. O património em perspectiva
invertida: o que representa a história do amanhã já está lá, em gestação permanen
te. A massa fez de si mesma matéria urbana. E adveio esta idéia surpreendente:
que o próprio presente não deveria mais ser.
M esmo a paródia da americanização se tornou desgastada. A ruptura não é
mais a negação do passado, ela exibe sua irreversibilidade junto com a li quidação
de um futuro já adquirido, um futuro igual aos que as metrópoles americanas
apresentavam. Impossível voltar-se para trás a fim de dar um sentido a essa irre
sistível ascensão de um poderio urbano que parece despertar de um grande sono.
Xangai não se constitui em espelho do que foi a cidade, Xangai fabrica uma per
pétua alucinação de seu futuro. As antigas concessões, derradeiras cessões de um
direito ao imaginário de um passado que não é mais o dos chineses, não serão a
pequena Las Vegas dessa megalópole futurista. O princípio ocidental da eterna
reflexividade desequilibra-se na megalomania cega: a cidade não tem mais ne
cessidade de ser olhada como reflexo de sua imagem soberana, ela é a soberania
absoluta, constituindo-se ela mesma como único espelho do mundo. Este seria o
desafio lançado por Xangai.
A C I D A D E SEM Q U A L I D A D E

Todo verão, em todas as regiões da Europa, a paisagem cultural e artística ofere


ce ao público a primavera de suas riquezas inestimáveis. M esmo que o Estado e
seus governantes não pareçam dar importância prioritária à cultura, é preciso
constatar que esta vai muito bem e continua atraindo multidões. Além do con
formismo patrimonial que consagra a valorização cultural da região, há bom nú
mero de demonstrações artísticas experimentais representando as “culturas em
movimento”. Claro, a exibição patrimonial parece sobrepujar as novas formas de
criação artística que requerem uma participação mais ativa do público. Deve-se
concluir que existem duas culturas, uma tradicional e tida como conservadora, a
outra mais engajada na sociedade e mais de vanguarda? Tal separação levaria a se
crer ingenuamente que a dinâmica da criação experimental não estaria por sua
vez ameaçada por um conformismo demagógico.
As novas visões culturais respondem melhor, ao que parece, às transforma
ções atuais da sociedade. Elas se confrontam com a própria realidade social.
E numa sociedade preocupada com a produção visível da coesão social, a arte
não é convocada para desempenhar este papel salvador? Não se trata mais da
arte dentro dos museus, mas da arte nas ruas ou em lugares indeterminados.
E essa arte coletiva, arte cotidiana, pode se tornar um procedimento de salvação
pública contra a degradação das relações sociais. A arte é cada vez mais procla
mada como “ arte cidadã” ! Essa insistência em acreditar na liberdade da criação
artística parece encontrar seu caminho no idealismo democrático da cidadania.
Esse papel social requer um vocabulário cujo uso pretende ser consensual: a arte
tem que criar coesão social e os artistas são convocados, como os policiais, a pro
mover e sustentar os laços de proximidade. Na maior parte dos novos locais cul
turais, como as antigas áreas industriais ou os espaços recuperados e preparados
para a experimentação artística, a imagem oferecida ao público é a de um “ labo
ratório de criação”. O que está sendo promovido é a demonstração permanente
de uma liberdade fantástica de inovação criadora, tornada acessível para todos.
Em suma: uma democracia “em ato” da criação artística, considerada capaz de
renovar as relações sociais através do acesso a uma cultura viva. A eventual oposi
ção local das políticas públicas com relação a empreendimentos desse tipo serve
para reforçar a idéia que os artistas têm a respeito de sua própria audácia. Basta
o risco de estar na ilegalidade para perpetuar os vestígios ideológicos da função
subversiva da arte.
M esmo que muitas realizações culturais demonstrem resistência à institu
cionalização, elas precisam de subvenções para sobreviver. É mais confortável
para elas denunciar os bastiões tradicionais da cultura, os locais oficiais de espe
táculo, mas sem renunciar à obtenção de reconhecimento institucional. Para os
criadores que trabalham nesses lugares “ situados no meio”, ou “ intermediários”,
mais ou menos marginais, a questão é fazer com que as próprias instituições
compreendam que elas necessitam deles. Persiste então uma ambigíiidade entre
o idealismo da liberdade e a execução desta proteção instituída. Essa mesma
ambigúidade é preservada tanto pelos poderes públicos quanto pelos atores das
práticas artísticas, pois ela permite salvar a crença em um mínimo de subversão,
graças à fragilidade partilhada. Como as instituições regionais ou estatais po
dem a qualquer momento cancelar as subvenções, esse ambiente de fragilidade e
de precariedade permite a esses “ novos criadores” denunciar a arbitrariedade do
poder e fazer disso uma questão de militância. Entre os artistas e os que tomam
as decisões políticas, a questão é provar mutuamente que a dinâmica coletiva de
criação artística engendra possibilidades de utopia que faltam às instituições.
Em que medida a exemplaridade que caracteriza a obra de arte ou o monumen
to não é aplicada também nas atividades culturais, das quais se espera que pr odu
zam coesão social e, conseqüentemente, uma certa estética dessa coesão social?
Basta expor um objetivo social para que o empreendimento artístico justifique
sua eficácia pública na cidade. O reconhecimento institucional impõe-se como
uma resposta necessária ao exercício de utilidade social das práticas artísticas.
Não se fala mais de obra de arte, prefere-se, pela ótica da diversidade das ma
nifestações culturais, falar de “trabalho”, para representar como o caráter infindá
vel do processo de criação se define como projeto. Claro, o trabalho apresentado
publicamente está terminado, mas não precisa mais ser comparado a uma obra,
ele não pretende alcançar a exemplaridade, e quer sobretudo outras concessões
de espaço e tempo. Um espaço que não seja mais um teatro ou uma galeria,
um tempo indeterminado que não corresponda necessariamente à duração de
um espetáculo habitual. As obras que foram objeto de consagração patrimonial
não têm necessidade de serem legitimadas, como os lugares memoráveis, como
os espetáculos tradicionais, elas se impõem ao público. Ao contrário, as “ novas”
práticas culturais e artísticas são obrigadas a se submeter a procedimentos de le
gitimação. Sua visibilidade não é uma questão de legitimidade pública, é preciso
que dêem uma prova concreta de sua eficácia social. O que triunfa é o “ direito
à interpretação artística”. O idealismo de uma cidadania triunfante passa pela
expressão de uma liberdade propícia a um novo civismo. A recusa da experimen
tação artística não mais é feita em nome de qualquer tipo de julgamento estético
- sempre considerado arbitrário - mas por razões económicas e de segurança.
Nenhum novo processo de criação consegue prosseguir sem operações procédu
rals que demonstrem o peso das dificuldades encontradas para sua realização.
O que é um obstáculo para sua realização pública termina consagrando sua ima
gem de avant-garde.

Na França, como conseqúência dos efeitos da descentralização cultural, o


Estado se vê em uma posição complexa: desempenha apenas o papel de conces-
sor de subvenções ou ainda tem o poder de promover idéias em matéria de polí
ticas culturais? Que o Estado possa ser o fiador das “ inovações artísticas”, é mais
do que óbvio, uma vez que sua função é controlar a repartição eqüitativa das
subvenções e preservar a transparência das despesas aprovadas contra os riscos
de lobbying. Como a produção artística passou, em sua maior parte, às mãos de
coletividades locais, o Estado se vê perseguido pelo espectro de seu anacronismo.
Devemos acreditar que o Estado teria, por assim dizer, se retirado especificamen
te para garantir a expressão das liberdades de criação? Esta visão no mínimo
idealista se traduziria pela nostalgia de um retorno do Estado criador e distri
buidor de idéias. Em vez de desempenhar o papel de controlador, o Estado seria
chamado, com a intermediação de seus funcionários cultos, mas com dificuldade
de promover novas idéias, para se manifestar de novo, captando “ o que é emer
gente”, inserindo o que parece novo no vocabulário institucional que ninguém
mais contesta. O Estado não estaria se arricando a ser o guarda florestal do en
quadramento conceituai das experiências culturais? Ele não tem como conseguir
os meios de antecipar o futuro da experimentação artística porque é obrigado
a desempenhar o papel de mediador. Em matéria de políticas culturais, cabe ao
Estado, no dia-a-dia, apenas consagrar uma estética da coesão social. O reconhe
cimento pelo Estado de uma arte cidadã obriga o conjunto das práticas artísticas
a introduzir-se na paisagem da legalização política e social de suas operacionali-
zaçoes. É a razão pela qual o mito da criaçao artística se tornou o próprio motor
da construção da coesão social.

A cidade é um mi l l f e ui l l e i0

Submetida à prefeitura de Haute-M arne, Saint-Dizier é uma cidade sem referên


cias, uma cidade sem um verdadeiro património, cercada de grandes eixos rodo
viários que dão a estranha impressão de nunca de fato “ entrarem na cidade” ou de
fazer crer que já se está saindo dela. Na periferia, a “ primeira cidade nova”, Vert-
Bois, foi criada no dia seguinte do fim da Segunda Guerra M undial. Edgar Pisani,
prefeito de Haute-M arne, imaginava, na ocasião, um desenvolvimento importan
te para a cidade, cujo crescimento demográfico ultrapassaria 50 mil habitantes.
Em 1960, havia perto de 35mil habitantes, e a implantação de grandes indústrias
anunciava uma expansão bastante rápida. Saint-Dizier estava, nessa época, desti
nada a se tornar um verdadeiro modelo de urbanismo moderno do pós-guerra.
Os primeiros grandes conjuntos habitacionais construídos na periferia demons
tram ainda hoje essa expansão. Essa cidade industrial, no coração de uma grande
região agrícola, se apresentava como a ficção antecipadora da urbanização atual.
Contudo, após esse crescimento, que durou vinte anos, veio o declínio e a cidade
começou a se despovoar em decorrência do fechamento das fábricas. Hoje em dia,
nela não há mais do que 25 mil habitantes.
Atualmente, o que mais surpreende são os restos dessa urbanização. Eles cons
tituem um património mais significativo do que os raros restos da própria cidade
velha. Na extremidade da rua principal, a entrada em Givry tem uma aparência
solene dada por um pórtico gigantesco concebido no meio de uma construção
em arco de círculo que indica “a passagem para a periferia”. No centro da praça,
uma igreja gótica permanece quase inacessível aos pedestres por causa do fluxo
giratório dos veículos. Os moradores do grande edifício que fica do lado da cur
vatura do círculo têm uma vista constante sobre essa igreja, único vestígio local
da cidade antiga. Construções mais recentes, menos imponentes, foram erguidas
nos ângulos formados pelo começo de outras artérias. No projeto inicial, outros
grandes conjuntos habitacionais muito mais elevados deveriam ser construídos
em torno da praça para formar um círculo completo. Assim, a igreja gótica que
faz parte da cidade continua produzindo um efeito de centro surreal. Ela poderia
estar cercada de prédios e, nesse caso, os veículos alcançariam a praça passando
sob diversos pórticos. Um novo arranjo para essa praça está previsto, a fim de
tornar a igreja mais accessível e colocar o conjunto do espaço no mesmo nível.
O efeito de superelevação da construção em arco de círculo é provocado por um
aterro que, ao mesmo tempo, produz a representação de afundamento da igreja
na terra. Recolocar o conjunto no nível consiste primeiramente em retirar uns 2
ou 3 metros de terra. Essa construção em arco de círculo, que anuncia a entrada
em Givry, continua visível de longe, desde a praça do Hôtel-de-Ville (prefeitura),
como se a própria idéia de periferia não fizesse, de fato, sentido. Deve-se concluir
que a cidade carece de unidade, de densidade, porque é muito espalhada ou, ao
contrário, a unidade existe porque não há nem centro nem periferia? A homoge
neidade aparente do espaço urbano está relacionada apenas a essa surpreendente
interpenetração de um centro que não é propriamente um centro e uma periferia
que já estaria praticamente no centro.
Recentemente, a municipalidade tentou produzir um “ efeito de centro” mais
determinado, criando uma zona de pedestre na praça do Hôtel-de-Ville e em tor
no dela. As ruelas estão sendo reabilitadas, as fachadas das casas e das pequenas
construções refeitas, e esse processo de revitalização do espaço urbano tem por
objetivo produzir a representação comum de um centro. Essa parte do espaço ur
bano designada como “centro” é configurada pelas marcas de sua territorialidade
graças aos calçamentos, aos lampadários, aos pequenos cilindros de concreto liga
dos por correntes... Em suma, todo o arsenal mais standard do mobiliário urba
no termina por sugerir sua representação. Para que ele exista, para que ele surja
dentro do campo de visão dos citadinos ou dos raros turistas, é preciso que seja
representado por elementos já vistos em todos os outros centros de cidade. Essa
panóplia de signos é suficiente para impor o fato consumado de sua existência.
E, curiosamente, os habitantes da periferia parecem satisfeitos de passarem a ter
um centro reconhecível mesmo que possa parecer artificial. “ Embora haja pou
cas moradias privadas no centro da cidade, sua população está se tornando mais
densa graças a habitações no alto das lojas. A dinâmica da vida social continua
contudo na periferia, onde uma mesquita local foi construída no meio da área
comercial dos magrebinos, na antiga estrada de Nancy. A renovação da prática
do culto teve ressonâncias culturais importantes. Um pouco como antigamente,
quando o bairro de Vert-Bois foi construído, impulsionado pelos padres operá
rios junto com a burguesia militante, cristã, de esquerda, à época em que havia
ainda mais de trezentas comunhões por ano”.41 De fato, logo depois da Segunda
Guerra M undial, a periferia da cidade é que foi tratada como centro, como o “ pul
mão” da aglomeração.
Na época em que os projetos de urbanismo foram solocitados, é preciso
constatar que foram inicialmente realizados com vistas a manter um eleitora
do, e sem nenhuma preocupação de ordem estética. No que concerne à parte
artística, a única intervenção concreta foi a reprodução de Victor Hugo em
faiança sobre a fachada de um prédio de mesmo nome. Os artistas permanece
ram sujeitos à ordem do arquiteto, reduzidos a produzir um cenário. “V iram-se
muitas cidades comunistas preocupadas com a cultura, mas nessa aqui nada
aconteceu. As prefeituras comunistas que se sucederam conservaram volunta
riamente uma cultura operária. A lguns concertos, alguns festivais da juventu
de, sobretudo no bairro de Vert-Bois. Em plena época do financiamento dos
partidos, o essencial era conservar um viveiro eleitoral intacto. Tudo era pr o
gramado, o candidato arquiteto escolhido antecipadamente. Ele devia criar um
ginásio, um salão de festas... Agora, com a diminuição da população, o candi
dato que ganha é o mais consensual. Saint-Dizier se tornou um bom vilarejo
de onde todo mundo tenta sair. Donde este efeito perverso: não há mais con
tradição, nem oposição. A administração regional burocrática afasta qualquer
reflexão sobre a cidade [...].” 42 Já há alguns anos, as ações culturais executadas
na cidade de Saint-Dizier seguem uma nova via. Longe de querer praticar inter
venções artísticas no espaço urbano, os protagonistas agrupados em diferentes
associações tentam produzir regularmente eventos cuja finalidade é provocar
novos modos de apreensão da cidade, que possam ser compartilhados pelos
próprios habitantes.
No ano de 2000, a mobilização pública se fez em torno da figura de André
Breton. O papa do Surrealismo foi designado para o hospital psiquiátrico, como
interno, em 1916. Foi lá que escreveu um poema, “ Sujet”, cujo conteúdo se refe
re à escuta de um soldado considerado louco e que foi examinado por ele. Esse
soldado, se não fosse louco, era com certeza um desertor. Assim, André Breton
confrontou-se com a questão da simulação que o obcecou a vida inteira. “ Em
Saint-Dizier, nomeado para os serviços de saúde militares, Breton detém-se nos
acontecimentos à sua volta: toma muitas notas a respeito dos sentimentos nostál
gicos dos doentes, lê observações médicas sobre a loucura dos soldados, escreve
longas dissertações para seu amigo Fraenckel sobre os casos que encontra. Sua
fascinação é acompanhada de uma verdadeira escuta: as pessoas lhe contam por
que estão ali, o que lhes aconteceu. Desses fatos decorreu uma parte de nosso tra
balho em Saint-Dizier, que consistiu em pedir aos usuários das instituições que
visitamos que respondessem a duas perguntas que André Breton fazia a todos os
soldados que visitava: com quem a França está em guerra? Você sonha com o quê
à noite?” 43 Estas questões foram apresentadas a alunos do ensino fundamental,
a moradores, tomando o poema “ Sujet” como um texto fundador. Então, um
percurso pela cidade em um ônibus coletivo ofereceu uma releitura possível da
cidade por meio dessa história, possibilitando uma certa liberdade de anamnese.
“ E nós mergulhamos, entramos na história: o ônibus arrancou e uma voz, nasa-
lada mas sem intensidade, monocórdica e seca, como se fosse indiferente ou ex
terior ao seu assunto, lê crónicas de guerra: que confronto nos espera?” 44Dava a
impressão de uma cenografia semelhante à da génese do Surrealismo, sobretudo
fantasista. Não tendo nenhuma intenção exegética, ela abria o caminho para um
jogo de associação de idéias, de relatos, de evocações. Assim se efetuou a trama
de uma história da cidade ao sabor das associações de fatos escolhidos, não em
um sentido ilustrativo, mas segundo uma tentativa de estabelecer elos que não
fossem mais fortuitos. Estranha démarche de construção da história, como se a
cidade fosse se revelando por um encadeamento de enigmas que provocam m o
mentaneamente um feixe de sentidos.
O caso mais famoso do hospital psiquiátrico de Saint-Dizier data de 1973,
quando o doutor Klapahouk, um lacaniano que desenvolvia uma visão diferente
das relações entre o mundo e a loucura, pregou a “verdade” da loucura para os
enfermeiros, instados a começar a escutar a palavra do louco: “No hospital de
Saint-Dizier, esclarece o doutor Klapahouk, acabou de morrer um doente inter
nado desde 1915. Outros, e é comum, estão lá dentro há mais de trinta anos. Isto
pode ser mudado, pondera o médico-chefe, pode-se cuidar dos doentes mentais
e deixá-los viver de outra maneira que não em hospital-prisão. M as isto exige al
go diferente da injeção-punição, da camisa de força, do calmante ou até, como se
pratica em certos lugares, de ‘uma boa surra’. Os encarregados dos hospitais se
recusam a fazer o esforço exigido, movidos pelo medo da loucura e do louco.” 45
Esse medo da loucura acaba levando a melhor, e os enfermeiros não se dispõem
a correr riscos, preferindo, como disse o doutor Klapahouk, manter seu papel de
guarda e permanecer tão rígidos quanto as paredes do asilo. Em conseqüência
de uma alteração de função imposta a dois deles, explode uma greve de enfermei
ros, e o próprio médico-chefe termina suspenso de suas funções. A história do
hospital psiquiátrico de Saint-Dizier é marcada por outros acontecimentos que
revelam ao longo do tempo a crise dos hospitais reservados aos doentes mentais.
Por intermédio dessa tentativa de fazer ressurgir uma história da própria cida
de pela história de seu hospital' psiquiátrico, procura-se induzir um processo de
atualização graças ao qual os habitantes descobrem a possibilidade de captar sua
cidade no tempo presente pela restituição de uma história que não está apenas
voltada para o passado.
Esta história vem cruzar-se com uma outra história, a dos fundidores que
fabricaram boa parte da produção francesa de objetos de ferro fundido (como
os bueiros), a partir da segunda metade do século XI X. De fato, na cidade e na
região circundante, as forjas eram numerosas e a maior parte dos habitantes
trabalhava na confecção de objetos de ferro fundido. A escultura industrial, em
pequena escala, foi realizada em sua maior parte no norte do estado de Haute-
M arne. É claro, algumas associações foram criadas nos últimos vinte anos para
a conservação desse património. A mentalidade continua diferente: o objetivo é
manter “ vivas” as memórias operárias, graças a intervenções artísticas, de fotó
grafos, de videastas, ou de escritores... Contudo, a dimensão patrimonial, ao se
insinuar, apesar de tudo, nesse género de experiência coletiva de rememoração,
corre o risco de impedir o jogo de retornos ao passado e de projeções no tempo
presente ou futuro.
Para que a cidade fique sempre na expectativa de ser captada por seus habitan
tes, o mais importante é que os projetos sejam desenvolvidos de forma contínua.
A temporalidade da renovação contínua de projetos acompanha idealmente o
que faz a duração ativa da cidade. “ Tais experiências não necessitam de local
específico, elas podem ser feitas com toda independência em relação às estrutu
ras institucionais. A intenção não é acolher os habitantes, mas ir além deles.”46
O projeto trabalha com a produção e a circulação das representações coletivas e
individuais da cidade, como uma possibilidade sempre renovada de anamnese
projetiva. De que forma as maneiras de apreensão da cidade podem se conectar
ao longo do tempo e constituir a perspectivação perpétua de uma vida cultural
na cidade? Essa temporalidade longa dos projetos, de seu engendramento suces
sivo, não se coaduna com o tempo de circulação das práticas culturais padroni
zadas, importadas como produtos. O tempo de construção dos projetos se torna
tão essencial quanto o de sua realização. E a visibilidade das experiências não é
mais tão determinante como em muitas outras operações culturais, sendo que
a dimensão projetiva visa, sobretudo, manter e promover modalidades latentes,
implícitas, da vida cultural na cidade.
Um projeto cultural que tenta evitar a armadilha de uma cultura revalorizada
por seus produtos, inscrevendo-se no coração da vida urbana, tem uma finalida
de estética? Seria necessário retomar a questão de uma outra maneira: a garantia
de uma estética na cidade está relacionada com o reconhecimento institucional
das experiências culturais e das realizações artísticas? O produto artístico está ali
para “ fazer com que falem dele”, correspondendo primeiramente a uma função
emblemática, da mesma maneira que um monumento ou um festival. Ao con
trário, nas formas de construção de histórias urbanas, a dimensão estética não
é colocada como uma finalidade a priori: o que a torna sempre possível é o fato
de fazer eco entre os habitantes da cidade. Assim, em Saint-Dizier, a operação
cultural se faz em torno de diversos pólos de atração: uma estação de rádio para
divulgação, em tempo real, da palavra dos habitantes, uma mobilização de algu
mas turmas de escola e de colegas em torno do tema escolhido (como o poema
“ Sujet” de André Breton), percursos organizados como viagens no tempo e no
espaço da cidade. Esses percursos estimulados por um acontecimento que cristali
za a atenção ativa de uma comunidade faz jorrar imagens, provocando efeitos de
estranheza que revelam como a dimensão estética da cidade, vivida de maneira
individual ou coletiva, inscreve-se na cidade tal como ela é, tal como ela se torna.
É exatamente o contrário de uma estética urbana praticada apenas pela i m po
sição de objetos. A repetição desses percursos é uma maneira de mostrar como
uma cidade se torna potencialmente coesa por meio da simultaneidade das his
tórias particulares que marcam sua memória coletiva. Sem nenhum espírito de
retrospectiva ou de revisitação da história, essa tentativa de criar uma sinergia
de relatos, de imagens, de sons, a partir de uma história passada, multiplican
do, para a ocasião, ateliês de escrita, vídeos, passeios pela cidade, em nada se
parece com um evento espetacular que permitiria festejar o papa do Surrealismo
(André Breton) ou o destino do hospital psiquiátrico. Trata-se, ao contrário, de
um processo efémero no qual se inscreve uma releitura da história movimentada
do hospital psiquiátrico, bem como uma leitura dos sonhos atuais de inúmeros
habitantes. Essa preeminência do tempo sobre o espaço permite pensar de outra
maneira as relações entre os territórios urbanos, instaurando a permanência de
uma dimensão projetiva. Essa apercepção da cidade não é mais uma questão de
tratamento do espaço, que permanece implícita. Ela pode ser vivida no ritmo dos
modos de narração desenvolvidos pelos citadinos.
Essa vontade de devolver à vida social e citadina uma expressão sempre pos
sível, sem alusão à “ questão social” ou à “ questão cultural”, não é apenas ilusão?
Uma vez que a coesão social foi suscitada, produzida, parece difícil acreditar que
não se torne em si mesma um objeto estético. Essa organização das memórias de
uma cidade, mesmo provocando e sustentando laços mnésicos territoriais e tem
porais, não deveria ter necessidade de inscrição territorial duradoura. Contudo,
é sempre muito forte a tentação de fazer com que o memorável passe pela ordem
da comemoração. Seria a obsessão da representação monumental do passado
que extenua a labilidade das memórias, que aniquila seu poder de projeção pa
ra o futuro? Em Saint-Dizier, um monumento aos operários terminou sendo
criado como símbolo atual das memórias coletivas. O poder de atualização das
memórias mergulha inelutavelmente na estética patrimonial? Seria possível que
a vitalidade presente das memórias citadinas terminasse consagrando o poder
de reflexividade patrimonial, em vez de ser a arma de sua negação. Enquanto a
mentalidade patrimonial continuar triunfante, toda aventura estética suscetível
de lhe escapar - especialmente graças à labilidade das memórias coletivas - deve
terminar caindo na armadilha da comemoração.
0 estetismo do social

Não se pode falar de uma estética da vida comum sem fazer referência ao ponto
de vista que permite afirmá-la. A estética não é fruto de uma reivindicação social
ou cultural. O reconhecimento de suas manifestações concretas envolve o obser
vador, suas maneiras de ver e interpretar. O arranjo dos locais, a decoração dos
espaços, as relações com os objetos podem ser reveladores da vontade coletiva de
organização estética do espaço ou do tempo. M as em que medida se pode falar
em uma estética das “coesões sociais” ? O fato de a arte poder ser compreendida
como uma arte de modo de vida é fruto de uma crença cuja idealização parece
satisfazer tanto ao conjunto dos artistas quanto aos gestores do urbano. Uma arte
de modo de vida, tida como execução das próprias finalidades da criação artística,
permanece demonstrativa, não podendo existir por si mesma. A arte que se tor
na obra de modo de vida está destinada a se expor como qualquer obra de arte?
Tomemos, por exemplo, a experiência singular de M ari-M ira, realizada por um
conjunto de artistas de M arselha e das Ilhas M aurício, que mostra como são ela
boradas as possibilidades de transformar a vida cotidiana em uma arte de modo
de viver. Tal experiência é executada como uma “ exposição viva” cujos múltiplos
aspectos se renovam em contato com o público. M ari-M ira foi apresentada no
verão de 1999 em Paris, em um terreno situado na borda do canal de Ourcq. Em
M ari-M ira, o mais importante é a fabricação do luxo com objetos de pouco valor.
O objetivo é criar um quadro da vida evolutiva oposto à padronização. Assim,
os copos confeccionados com garrafas de plástico tomam a forma de copos com
pé e largas bordas decoradas com flores pintadas. O totó adota uma forma ligei
ramente curva, no oco de um tronco de árvore seca colocado sobre pés de cano
reaproveitado, e os jogadores são feitos com garfos velhos ligeiramente torcidos
e fixados sobre eixos. Os balanços para crianças são feitos de latas de lixo corta
das ao meio, com uma boa almofada colocada no interior. Podemos dizer que o
conjunto de objetos fabricados revela um gosto estético refinado. Fundamental
também é a manutenção de uma relação sensível com o contexto social, urbano
e arquitetónico. Trata-se de criar um meio autónomo que funcione como signo
de seu meio ambiente. As construções são ligadas à prática da pesca. A água está
sempre ao lado, lembrando que o alimento nunca se esgotará, que haverá sempre
o que comer, mesmo que não seja muita coisa. O tempo é o tempo indefinido da
pesca, um tempo que não é contado, um tempo que permite o devaneio. Tal fic
ção doméstica inspira-se na “vida na cabana”. A cabana dos pescadores é um ver
dadeiro mito. É o local de uma outra vida, de uma vida afastada dos tormentos
da cidade, podendo estar ao mesmo tempo dentro da própria cidade. Uma vida
de liberdade cotidiana, uma arte de viver, uma arte de inventar a vida em meio a
uma atmosfera contínua de “ quase nada”.
Ao longo de uma exposição, Les magiciens de la terre (Os mágicos da terra),
organizada no Beaubourg (Centro Georges Pompidou) e na Grande halle de La
Villette, bom número de criadores do mundo inteiro, pesquisados pelos curado
res de exposição nos mais recônditos locais, apresentaram o que pode ser consi
derado obra de grande valor, no mesmo nível das obras de artistas renomados
mundialmente. Ora, essas criações não haviam sido pensadas, na ocasião em que
foram confeccionadas, como obras de arte, só passaram a sê-lo a partir do m o
mento em que foram integradas ao mercado da arte. É sempre a mesma relação
mantida pela cultura ocidental com os objetos primitivos: sua valorização como
obra de arte depende exclusivamente dos procedimentos de especulação. A expe
riência de M ari-M ira rompe com o mito da “obra primitiva” como procedimen
to especulativo de valorização cultural e financeira? Não haveria nenhum sentido
em vender este ou aquele objeto confeccionado a partir de resíduos coletados.
Nessa experiência, o “ fazer” supera o prêt-à-porter artístico: os próprios objetos
só continuam a fazer sentido na transmissão de seu valor projetivo. O que está
em jogo é a exibição de valores estéticos desconsiderados pela consagração insti
tucional da arte. Não se trata mais de se tornar uma referência, pois o princípio
de valorização desaparece em um processo de criação que vale por si mesmo.
M ari-M ira se apresenta como um “universo transportável e evolutivo”. O ar
tista é um inventor. O campo de experiência de sua criação é o da vida de todos
os dias. Nenhuma pretensão artística foi cogitada no momento da execução; foi o
próprio ritmo da invenção que criou o espaço, moldou-o, e tornou harmoniosas
as maneiras de viver. Um modo de vida não é fruto de uma adaptação a um espaço
já constituído, ele ganha forma ao mesmo tempo que o espaço propriamente dito.
É o “ quase nada” que permite tal dinâmica, porque o “acontecimento é a invenção
estética da própria vida”. “ O evolutivo” é concebido a partir do “ quase nada”, como
uma multiplicação dos acontecimentos da vida cotidiana. A contingência própria
da existência cotidiana não é mais um obstáculo à organização da vida, ela se tor
na um princípio fundador, impõe-se como uma “ razão de ser”. A arte de viver,
ao se tornar simplesmente arte, aniquila a distinção entre o ator e o espectador.
O inventor, o criador e aquele que experimenta suas criações constituem o mesmo
indivíduo. Tal idealismo conduz à concepção de um mundo que não vive mais de
seu espetáculo, mas que transforma o efeito espetacular em modo de vida, cada
detalhe reforçando o prazer coletivo e individual dessa maneira de ser.
Viver e se ver viver não são mais objeto de uma distinção, uma vez que um e
outro entram em sinergia.
Criar obra a cada instante, para melhorar a vida cotidiana, como se toda fina
lidade existencial encontrasse aí seu caminho natural. A garantia do prazer, sua
confirmação retrospectiva e prospectiva, deve-se à permanência do olhar voltado
para a evolução do próprio modo de vida, que não virá jamais negar o que está
sendo experimentado. Prosseguindo nesse perpétuo contentamento, o resíduo, o
que sobra da sociedade de consumo, é fonte de uma satisfação que não mais se
confronta com a falta. É o princípio de um anticonsumo idealizado pelo uso infi
nito dos restos. O residual sem começo nem fim, o residual tomado a si mesmo
como representação de uma felicidade insuspeitada aos olhos dos mais ricos e
dos obcecados pelo consumo. O residual oferece a representação sempre possível
do suntuoso. Se é possível construir um espaço suntuoso com o “ quase-nada”,
isto não seria o signo da negação do desperdício? Que o útil possa nascer do inú
til, ou então ainda do que está condenado ao refugo: eis o que virá trazer a prova
pública de que se pode viver melhor com pouco, contanto que se seja hábil e que
se tenha uma preocupação estética de vida.
M ari-M ira corre o risco de passar por um modelo de arte social, em um con
texto político no qual a própria coesão social tende a ser apresentada como uma
finalidade estética da vida cotidiana na cidade, mesmo se essa experiência não
indica vocação social a priori. A cultura exibida como encenação ativa de uma
estética da vida cotidiana teria como missão restituir a confiança aos que não têm
muita coisa, fazendo-os crer que podem (talvez melhor do que os outros) decidir
sobre a arte de viver cotidiana. O que está sendo proposto nesse caso é uma estra
nha reviravolta no estado de miséria: é a partir do “ menos” que se pode inventar
o “ mais”. O pensamento de uma “estética da vida cotidiana” viria daqueles que
dispõem de menos bens. E ela seria elaborada como um programa de inserção na
tural na sociedade, graças ao reconhecimento público de uma certa singularida
de artística que se torna desde logo um princípio fundamental da regularização
da violência urbana. Essa perspectiva apresenta uma importante vantagem para
os poderes públicos, sejam de esquerda ou de direita: o reconhecimento da quali
dade de vida dos mais desvalidos funciona como um fator de coesão social.
A vida social pode ela mesma ser objeto de uma estética? As práticas culturais
que consistem em tornar as memórias dos habitantes mais vivas e mais atuais
graças ao vídeo, à fotografia, à escrita também têm por finalidade reavivar uma
comunidade a partir da história individual e familiar? Caso se trate de uma com
posição musical, de uma coreografia ou de uma performance, pode-se achar que
“ainda é arte”, mas se a questão é “ a fala dos habitantes” ou uma encenação com
fotografias da “vida na cidade”, haverá hesitação em se dizer que “ é arte”. Uma
vez que a ambigiiidade está sempre presente nesta distinção, os financiadores
das cidades escolhem o conjunto das possibilidades propostas para dar a apa
rência de uma vida cultural e artística em suas cidades. Se a obra artística não é
suficiente para criar os laços de comunidade, torna-se evidente que as práticas
culturais são necessárias para manter a representação constante de uma certa
dinâmica urbana. Seja qual for sua prática, os “ artistas residentes” se tornam os
promotores dessa dinâmica, pois deles se espera que captem, com suas maneiras
de fazer e dizer, o que está adormecido na cidade, o que está presente de maneira
potencial e que precisa ser chamado a se revelar publicamente.
O artista que atua em uma cidade age como um trabalhador social de um géne
ro particular, uma vez que seu objetivo é encorajar potencialidades de criação em
adultos ou em crianças. Ele não impõe sua obra, ele suscita as possibilidades da
criação, considerando-as meios de viver em comunidade, ao mesmo tempo preser
vando a singularidade de cada um. A relação com a cidade é dupla: por um lado,
deve-se à maneira pela qual a “vida na cidade” surge como fonte do imaginário e,
por outro, sustenta-se nos fragmentos de comunidade constituídos graças a tais ex
perimentações estéticas. A ideologia que prevalece não encontra suas motivações
apenas no apelo à reapropriação da cidade por seus habitantes, jovens ou mais
velhos, mas sobretudo na reconquista de uma coesão social que descobre por si
mesma sua dimensão estética. A reaproximação entre a arte e a vida, mesmo que
talvez não tenha nada de verdadeiramente espontâneo, continua sendo o objetivo
implícito de uma dinâmica cultural que põe em primeiro plano o estímulo às pos
sibilidades de criação. Ninguém irá contestar o bom fundamento de tal pretensão,
uma vez que se trata da construção de uma alternativa cheia de esperanças contra
as ameaças de violência e destruição que pesam permanentemente sobre qualquer
cidade. Os excessos de demagogia que podem se manifestar se tornam bastante
secundários, se cotejados com os efeitos benéficos advindos da restituição da har
monia possível da vida citadina. Aos poderes públicos basta escolher diversos regis
tros de experimentação e de exibição: trabalhar a longo prazo graças a atividades
que reforcem a coesão social, promover imagens fortes graças à implantação de
obras artísticas, cuidar do património em sua diversidade, criar um festival anual...
Nenhuma escolha irá contradizer a outra. Quanto mais as escolhas se acumularem,
mas a cidade oferecerá a imagem de sua própria dinâmica cultural.
É difícil para artistas que por vezes sequer reivindicam status de artista rejei
tar uma diretriz social, dado que seu próprio trabalho se torna o objeto e a finali
dade. A atribuição de papel de terapeuta do social pode impedi-los de expressar o
que estão aptos a imaginar como alternativa utópica. Em vista disso, deve-se con
cluir que o trabalho artístico pode transcender toda gestão terapêutica do social?
Consideremos duas atitudes diferentes: o fotógrafo que tira fotos da realidade
social, e o que tem uma longa experiência de convívio, em uma região determina
da, com as pessoas de quem tira fotos. É óbvio que diremos que o primeiro age
como um repórter, que capta “ no vôo” as provas dessa realidade social, enquanto
que o segundo, como os antigos etnólogos, vive junto daqueles de quem tira as
fotos, passando às vezes vários anos na mesma região. Suas atitudes parecem di
ferir em referência ao tempo, um opera na instantaneidade, o outro na duração.
Pretender captar a realidade social é partir do princípio de que a “ realidade em
imagem” é ela própria “a realidade vivida”. O filme e a fotografia tanto servem de
prova quanto idealizam a realidade apresentada, ao pretenderem revelar uma cer
ta filosofia da existência. O mesmo acontece, pois, com fotografias e vídeos que
pretendem captar a vida cotidiana dos miseráveis e sem-tetos da cidade. As frases
gravadas durante uma montagem de vídeo são sempre frases escolhidas para de
monstrar publicamente como o fato de morar na rua, ser desfavorecido, incita a
pensar no mundo, na vida e nos outros de uma maneira mais exacerbada. E es
sa demonstração de “pensamento existencial” está sempre sendo valorizada pela
montagem cinematográfica, de uma maneira que mascara com dificuldade uma
demagogia astuta - dando a entender que quanto mais se é pobre, mais se pensa
na vida com uma acuidade intelectual excepcional. No decorrer de uma exibição
de vídeo, um sem-teto de rosto trágico, mas sorridente, é instado a pronunciar
uma mensagem para o mundo. Esta fala dirigida a uma platéia inexistente adqui
re um tom solene, pois quem a profere não está voltado para ninguém ao expor
seu pensamento mais profundo ou mais futil. O sem-teto hesita, seu olhar se tor
na desvairado, seus lábios se mexem ligeiramente. Termina dizendo que não tem
nada a dizer. O que, é claro, para culminar toda a demagogia, transmite a idéia
de que o pensamento mais elevado ainda é o silêncio absoluto. Para além de toda
a reflexão possível, não há mais nada. Tal é a suprema filosofia do sem-teto, que,
deste modo, parece pensar melhor do que os outros, já que pensa não pensar.
Assim se consuma a reprodução estética do mais miserável.

Nos squats (prédios invadidos por artistas), a vontade manifestada é de esca


par ao sistema de subvenções, e de praticar uma arte na cidade em condições ilegí
timas, demonstrando que a liberdade de fazer pode ser realizada no meio da vida
citadina. E que não há necessidade de proteção institucional para se empreender
um trabalho artístico. E a própria cidade oferece, pelo que rejeita, por seus resí
duos, uma inacreditável fonte de materiais, de locais para viver essa liberdade
de criação artística. A cidade se apresenta como o território idealizado dessas
possibilidades. Os squats constituem uma empresa comunitária, e seu papel so
cial é vivido no dia-a-dia sem se auto-referenciar. Nesses squats, algumas pessoas
chegam a ter uma posição “ anti-social”, uma vez que se recusam a ser “ válvulas
de segurança”, a utilizar os locais para “ ação social”. Exibindo um desprezo pelas
instituições que poderiam recuperar seus trabalhos de criação, a liberdade reivin
dicada dentro desses locais pretende ser efetiva, apesar de poder parecer muito
idealista. M esmo que a ocupação por artistas insista em afirmar uma autonomia,
até mesmo uma autarcia económica, não é partindo de uma introversão no es
paço abusivamente privatizado que irá fazê-lo, mas, ao contrário, é tornando
público o que não deveria sê-lo. Os squats ficam permanentemente abertos ao
público, recebem uma quantidade impressionante de visitantes, e constituem-
se eles mesmos como espaço público, embora tenham uma aparência de gueto.
Basta apenas ter o desejo de transpor a barreira imaginária que separa o prédio
ocupado da vida cotidiana habitual no espaço público. Pois a idéia de que se
está entrando em um outro mundo não desagrada aos ocupantes, até mesmo
quando são olhados como “primitivos” da cidade. As tentativas de resistência
à institucionalização da arte decorrem da ilusão que consiste em imaginar que
a marginalidade continua ainda possível como estética de vida? M arginalidade,
subversão, anomia, não são mais os termos apropriados para designar maneiras
de ser e de criar “ na cidade”. O squat integra-se ao espaço urbano por meio de sua
própria diferença. Não provoca uma disrupção da gestão urbana, simplesmente
impõe com sua presença um deslocamento de “ponto de vista”, mostrando como
a cidade é em si um território de possibilidades de criação artística. M esmo efe-
tuado em um espaço ilegal, o ato de expor, o ato constitutivo do reconhecimento
público de uma criação artística não chega a ser abolido. A poesia que o burguês
culto consegue descobrir nesses locais incongruentes de exposição não faz senão
consagrar o prazer estético global que sua cidade lhe oferece.
O trabalho ou a obra de arte não bastam mais. São o grupo e o território que
permitem a um processo estético elaborar-se como tal. O desenvolvimento das
comunidades de artistas mostra o quanto, antes de qualquer critério artístico ins
titucional, o valor atribuído ao trabalho de criação continua determinado pelo
grupo. Assim, a singularidade não é mais necessariamente individual, uma vez
que é suscetível de decorrer de uma sinergia de práticas artísticas, apresentando-
se ela mesma como uma figura estética urbana.

A cidade e as singularidades "quaisquer"

Os artistas podem se queixar da falta de interesse manifestada a seu respeito pelos


políticos, invocando o crescimento de uma demanda social de “arte na cidade”.
Os gestores das instituições que cuidam do tema têm grande dificuldade em se-
lecionar o que é emergente, o que serve como signo na cidade. Essa tentativa de
busca do que pode ser novidade confronta-se com o sentimento de saturação.
As dificuldades de avaliação de tais experimentações artísticas são sintomáticas,
não de uma incapacidade de estabelecer critérios, mas muito mais da impossibili
dade de escapar de um certo nivelamento do sentido dado às obras. Se, em uma
cidade, se adicionam as atividades culturais, as intervenções artísticas pontuais,
os espetáculos, a organização estética do espaço urbano, termina-se constatando
que uma certa sinergia político-cultural passa a ser sustentada por esse ritmo,
que é o que dá à cidade boa parte de sua imagem. H á razão para regozijo com es
se florescimento cultural permanente, mas também é o caso de se afirmar que a
singularidade das experimentações propostas, perdendo qualquer possibilidade
de ser percebida, pode se ver reduzida a uma simples questão de notoriedade. Ou
se deve considerar que a exibição cultural basta-se a si mesma, e que, ao se bastar
a si mesma, forja o que a cidade é?
Como o julgamento de gosto foi abolido pelo relativismo dos pontos de vista, é
difícil acreditar na possibilidade de identificar as distinções dignas de nota. Estamos
de acordo em pensar que de agora em diante a singularidade está sendo produzida
pelas mídias, pelos críticos de arte, pelos próprios artistas, que ela se trabalha, se
concebe, se promulga... Ela nada tem de acidental, de imprevisível, ela é, como em
uma campanha publicitária, o resultado que confirma uma notoriedade adquirida
graças a uma estratégia de comunicação bem-conduzida. Contudo, fica claro que,
diante da uniformidade dos produtos culturais, a necessidade de distinção faz par
te da gestão cultural. Os projetos culturais ou artísticos apresentam quase sempre
a mesma vontade de convencer os financiadores potenciais de suas singularidades
específicas. Nenhuma dúvida quanto ao fato de que o reconhecimento do singular
seja efeito de uma determinação por sua vez arbitrária. As incertezas dos políticos
ou dos gestores, provocadas pelos riscos dessas arbitrariedades de escolha, se dissi
pam graças à aplicação de critérios sociais: a intervenção artística tem que “levar
à coesão social”, realizando assim as aspirações de uma cidadania em ato. Essa vo
cação de reparação, de produção de coesão social, passa a ser exigida da criação
artística, de toda experimentação cultural, como uma finalidade básica que desfaz
incertezas. O reconhecimento da singularidade vem da submissão de tudo o que é
arbitrário na subjetividade criadora à evidência da necessidade de arte na cidade.
Pretendendo responder às aspirações sociais, a gestão cultural impõe espaços
de controle, estratégias de expressão, de percepção, como se fossem moldes para
configurar maneiras de apreensão estética da vida cotidiana. Não existe projeto
oferecido às aspirações individuais ou coletivas que não resulte em um enqua
dramento da percepção. Todo olhar do citadino voltado para a cidade contém
as possibilidades de sua própria liberdade, porque permanece ligado à expressão
incontrolável das contingências da percepção, essas contingências que a cidade
trai a todo momento. O poder do olhar não vem somente da curiosidade, da
disponibilidade, ele vem também da irrupção acidental do real na cidade. M as a
experimentação cultural baseia-se em uma ocultação implícita da labilidade das
sensações visuais ou sonoras, dá impressão de lhes estar dando forma, mas lhes
impõe um modo de reflexividade - com se fosse um dispositivo especular que
traça antecipadamente as possibilidades de sentido, ao mesmo tempo em que per
mite imaginar que tal enquadramento reflexivo é o lugar da liberdade.
A cidade é o território da excentricidade do “ qualquer”. M as o que vem a ser
uma singularidade “qualquer” ? Segundo Giorgio Agamben, de quem tomamos
emprestada esta expressão, o “qualquer” de que estamos tratando aqui não consi
dera, com efeito, a singularidade em sua indiferença em relação a uma caracterís
tica comum (a um conceito, por exemplo: ser comunista, francês, muçulmano);
ele a considera apenas em seu ser, tal como ela é. A singularidade renuncia assim
ao falso dilema que obriga o conhecimento a escolher entre o caráter inefável
do indivíduo e a inteligibilidade do universal.47 O qualificativo “qualquer” não
significa qualquer singularidade, mas a qualidade de uma singularidade que, de
algum modo, importa qual ela seja. O sentido de “ indeterminado”, de “ qualquer”,
anula a referência a uma classificação prévia dos aspectos marcantes. Não se trata
de uma banalização da singularidade, embora ela exista de fato se considerarmos
a equivalência das coisas consideradas singulares o próprio signo da banalidade.
O indeterminado não é o banal, ao menos segundo o conceito que lhe é atribuído
hoje em dia. Tido como uma qualidade possível, até mesmo essencial, da singu
laridade, ele não designa a qualidade da coisa considerada singular. Esta não é a
maneira de compreender ou de apreciar a coisa que o define, mas sua enunciação
já implica a suposta compreensão da coisa. “A singularidade ‘qualquer’ nunca é,
pois, a inteligência de qualquer coisa, mas somente a inteligência de uma inteligi
bilidade.” 48 Não se trata de uma singularidade mais espontânea, mais imediata,
ou tornada mais sensível por sua indistinção presumida. É o contrário: a singula
ridade “ qualquer” é apreensível como o efeito da saturação especular produzida
pela reflexividade. No momento em que as sociedades contemporâneas atingem
um alto grau de reflexividade, no momento em que conseguem ver-se mais do
que nunca como o espelho de si mesmas, o “ qualquer” proviria dos efeitos mais
excessivos de sua organização especular. Não se trata de um retorno a uma forma
primitiva de sensações, mas sim da descoberta de uma arqueologia de sensações
no cerne do poder da reflexividade.
O desafio é complexo: em vez de voltar a uma “ linguagem anterior às pal a
vras” (A. A rtaud), que, hoje, termina legitimando todo um culto da subjetividade
criadora em dispositivos culturais cuja ordem é puramente reflexiva e especular,
seria necessário conceber o que advém da “ inteligência de uma inteligibilidade” ;
ou seja, do princípio reprodutivo da reflexividade. Em outras palavras: em vez de
continuar recorrendo a emoções imediatas, à sensibilidade inicial, em oposição
ao redobramento especular que se tornou o princípio dominante da experimenta
ção artística contemporânea, seria necessário apreender as maneiras pelas quais
o real, como ele é, provoca uma disrupção dos próprios efeitos da reflexividade.
O real é aqui considerado em seu sentido acidental, inesperado, até inapreensí-
vel, em oposição a uma realidade objetiva, a uma realidade produzida e gerada.
O real pode a qualquer momento irromper no que “ é tomado por realidade”,
mas não é com freqüência percebido como tal, pois o poder de determinação do
sentido imposto pelos modelos culturais parece de fato anular seu poder de ma
nifestação. Com a supervisibilidade cultural, a irrupção incongruente do real tal
como ele é adota a forma do caráter imediato do visível até então invisível.

O que advém como singularidade “qualquer” cria seu próprio efeito de real.
Sejamos claros: nenhuma obra de arte, nenhuma experimentação artística, nenhu
ma experimentação cultural permite afirmar o que é a singularidade “qualquer”.
Esta não é uma nova categoria de classificação ou de avaliação. Ela é de fato a ne
gação de toda categoria a priori. Se ela cria seu próprio efeito de real, de maneira
casual, o faz na medida em que acaba sendo capaz de induzir uma apreensão. Ela
está, pois, fundamentalmente ligada aos movimentos de percepção, restabelecen
do a distinção entre o espectador e o ator, e ao mesmo tempo jamais se incluindo
no âmbito da produção espetacular da exibição cultural contemporânea, mais
interessada em abolir a distância entre o ator e o espectador. Se uma experimen
tação artística pode ser a expressão de uma singularidade “ qualquer”, é indepen
dentemente de qualquer vontade determinada pelo sentido que lhe atribuem.
M as como é possível que um efeito de real seja criado em um contexto no qual o
quadro institucional da cultura configura ao mesmo tempo a relação de realida
de entre a arte e o social e os modelos semânticos da interpretação estética?
A hipótese da singularidade “ qualquer” permite unir a disponibilidade curio
sa da percepção aos efeitos incongruentes de real provocados pela experimen
tação artística. Esta união é encoberta pelas modalidades de legitimação, pelas
finalidades sociais e cidadãs atribuídas à criação artística. A obsessão pela com-
partilhação com o público termina instaurando estruturas de troca que cegam a
irrupção do real. O estímulo à criação em ateliês institucionalmente concebidos
com esse fim se parece com os cuidados paliativos no acompanhamento de m o
ribundos: o objetivo é fazer renascer o gosto de criar sobre um fundo de degene
ração social mantida como cenário obrigatório. Os que são chamados de “atores
da cultura” talvez façam emergir essas possibilidades de criação ou de percepção,
mas eles se dedicam a inscrevê-las em dispositivos de sentido que legitimam so
mente suas funções.
Retorno à cidade, cidade que é a fonte das singularidades “quaisquer”, porque
continua sendo o grande teatro dos efeitos de real que ela provoca mesmo inde
pendentemente de qualquer intervenção artística. Segundo Jacques Rancière,49
“a revolução estética é antes de mais nada a glória do qualquer’”. Contudo, o
gosto do “qualquer” oscila entre uma estetização generalizada e a moda contem
porânea do amor comunitário pelo banal, repousando sobre o princípio de que
“tudo tem um valor, basta reconhecê-lo”. A distinção é então restabelecida em
nome da valorização do “ qualquer”. As histórias individuais reconstituídas pelos
“artistas da vizinhança”, pelos que praticam coesão social no dia-a-dia, são fruto
dessa valorização democrática do “ qualquer”. Tomado por signo de uma revolu
ção política e estética, o “ qualquer”, valorizado socialmente como resultado da
expressão artística, restabelece uma figura nomeável da singularidade. Tão logo
objetivado, o “qualquer” se torna o contrário do que era, se torna um signo distin
tivo. A hipótese da singularidade “qualquer” não adquire forma e conteúdo senão
no momento em que o confronto com a realidade - com essa realidade tornada
objetiva e conceitualizada por nossos modelos de representação - produz um
efeito de real que funciona como ficção. O princípio de reflexividade fica abalado
quando a ficção cria, por sua vez, seu próprio efeito de real. A todo momento a
cidade torna possíveis, por sua faculdade de absorção do que aparece, do que se
inscreve no espaço, efeitos de real cujo poder ficcional se afasta de suas origens
individuais e distintivas. Território sem nome da contingência dos instantes da
criação, a cidade continua sendo a epifania das singularidades “quaisquer”. E as
sim ela consegue fazer uma obra de arte de si mesma.
A C L O N A G E M DAS C I D A D E S

Veneza: chegar à estação, descer do trem de manhãzinha, atravessar o saguão e


olhar a bela aparência da cidade que se tornou um mito. A cada retorno, reco
meçar voluntariamente o movimento da primeira visão. Tudo fazer para que
a lembrança permaneça incerta, para que não tome a forma de um vestígio me
morável demais. Retornar à cidade e nunca mais abrir um mapa. Seguir a mul
tidão. Rialto, San M arco, Fondamenta Nuove. Sentidos únicos em letras pretas
sobre fundo amarelo. Caminhar, os olhos quase fechados, no dédalo das ruelas,
entrever as pessoas que brincam de desaparecer para aparecer. Deixar a multidão,
fingir que se está perdido. Convencer-se de que se esqueceu de tudo, atravessar
pontes, parar durante um instante em uma praça, depois em outra, e terminar,
de tanto ir evir, voltando sempre ao mesmo lugar com a certeza de estar verdadei
ramente perdido. Permanecer imóvel como uma estátua, esticar o braço direito
na direção do céu, juntar os pés, com a cabeça ligeiramente inclinada para trás.
Fazer de si mesmo um trompe-Voeil no cenário. E partir de novo, como um habi
tante apressado, conduzido por hábitos citadinos, como um trabalhador venezia-
no. Para mostrar que se é do lugar, dar informações aos turistas que perguntarem
sobre direções, sem manifestar a mínima hesitação. Cantarolar les amours mortes,
balbuciar algumas onomatopéias da língua italiana. Usar artifícios de integração.
Esperar até sentir fome, pronunciar uma palavra ao caso das exigências estoma
cais: carpaccio.
Depois do almoço, olhar dirigido aos mesmos quadros, a Vecchia de
Giorgione, à crucificação de Tintoreto, São Jorge derrubando o dragão, justamen
te de Carpaccio. Retorno obrigatório ao déjà-vu, à espera da emoção, que está
também prevista, pronta para se reproduzir desde a primeira vez, como se fosse
a consagração de um prazer estético bem merecido. O detalhe inesperado tal
vez lhe traga uma novidade a mais, ou o jogo de luz que não veio ao encontro
na ocasião da visita anterior. Nada mudou, contudo. Aqui, a restauração jamais
cometeu qualquer traição, ela permaneceu discreta, consistindo em manter em
estado razoável o que está lá, mesmo corroído pelas águas do mar. Qualquer m o
dificação excessivamente intempestiva seria um sacrilégio. A delicadeza do patri
mónio tem a ver com a eternidade de suas cores e de suas rachaduras. Ela é tão
presente que não tem mais necessidade de significar. Ela embala os movimentos
idênticos dos passantes e lhes oferece a segurança de uma gratidão partilhada em
clichés de êxtase. A massa de turistas não é tão violenta, ela se esgota no labirinto
da fábula monumental. Cada igreja, cada ponte, é um signo para as lembranças
lancinantes dos que voltam, dos que acreditam ter estabelecido um pacto com
uma beleza tão dócil.
Reencontrar alguém que vive lá há muitos anos, perguntar-lhe quais são as
novidades, escutá-lo falar de seu desejo de partir, ouvir as razões que o fazem
continuar ainda lá, enquanto a cidade se esvazia de seus habitantes. Em suma:
deixar a massa de turistas para ver um veneziano, tocá-lo, beliscá-lo para cons
tatar que não está petrificado, que continua bem vivo, sempre capaz de fazer
projetos. Captar o inacreditável: ouvir que ele não está doente de nostalgia, que
não lamenta estar em outro lugar, mesmo que pronuncie algumas frases sobre o
Outro Lugar. É verdade que ele não é um veneziano autêntico, que não deu seu
primeiro grito em uma clínica rica em estuques. E depois, todos esses livros escri
tos sobre Veneza, em Veneza, pensando em Veneza... Tantas razões para amar ou
para detestar a cidade.
M odelo da cidade, sem nenhum plano preconcebido, modelo que resultou
de seu crescimento orgânico. A pura funcionalidade, do administrativo ao ma-
nufaturado, do religioso ao civil. O Arsenal, M urano... Reconhece-se ainda a in-
tegralidade das zonas industriais cuja consagração patrimonial faz hoje em dia
esquecer as atividades industriosas. A cidade que, segundo os historiadores das
cidades, se duplica do interior, a partir do núcleo central (San M arco), evitando
as obstruções. A própria fluidez. Aquela que os turistas ficam bem inquietos ao
perceber quando se esbarram pelas ruelas. A que eles apreciam de dentro das gôn
dolas, quando ouvem cantar a barcarola. O símbolo da cidade ideal, comparado
por Lewis M umford à capital da Utopia de Thomas M ore, Amaurota. A represen
tação implícita da ordem predomina bem mais do que a atmosfera de festa, nada
tendo de incómoda, permanecendo insidiosa como os frutos de uma disposição
ancestral do poder. Diz-se ainda cidade das máscaras e dos artifícios a fim de es
quecer o rigor de uma arqueologia urbana tornada perene graças a essa ficção de
uma parada no tempo.
À noite, o sussurro do mar. Os barulhos orgânicos que nunca terminam. As
praças vazias e escuras. Estendido em uma cama, as pálpebras fechadas, ouvidos
bem abertos antes do sono, e a recordação maquinal do dédalo. Não é a cidade
que provoca o sonho com a morte, uma cidade não pode estar dedicada às vi
sões macabras, Veneza oferece apenas essa estranha suavidade mórbida como
prelúdio das delícias de um tempo mal distinto. O sussurro do mar não pode
ser medido, ele imprime ritmo a um movimento cuja identidade das cadências
provoca a repetição do esquecimento como fonte inesgotável de todas as memó
rias. A água que nunca dorme entre as paredes e os embarcadouros, a água que
pontua a digestão da história. Lembrar-se de ter ido lá ou ainda lá, para cair final
mente em um lugar desconhecido. Recusar-se a dormir, sair da cama, voltar até
lá, para ver se era assim, para sentir o que volta à superfície. Na obscuridade, o
sopro de um hálito fétido, o odor insistente levado pelo vento. O estranho gosto
da imortalidade.
Sentar-se ali, junto ao embarcadouro, sonhar com o tempo, com o amor,
com a morte. Uma trindade mental. Deixar-se embalar pela sabedoria venezia
na: aprender a desaparecer na eternidade saboreando as delícias post-mortem.
Esperar ainda assim o nascer do dia, o céu vermelho, o retorno das crenças ines
gotáveis, no coração da cidade cuja beleza sublime permanece desativada. E de
repente, esta recordação congruente: do outro lado do mundo, em Las Vegas,
uma Veneza nova e toda limpa. A pureza absoluta do pastiche. Sob uma abó
bada estrelada, palácios bem-imitados, os canais com uma água transparente,
as gôndolas brilhantes, plastificadas, mulheres asiáticas cantando em italiano,
e as máquinas de jogo. O dédalo dos jogos. A Veneza vilipendiada. I mpostura
da conservação inalterável: a eternidade imobilizada por materiais que não se
corroem mais. O espaço entre os mundos da virtualidade. A ficção paródica, dita
sem alma, mas rica em sensações afortunadas, e o quadro emocionante de uma
realidade perdida e conservada.50

A clonagem de cidades. Duplicação patrimonial e Renascimento perpétuo do


kitsch. Veneza da China, Veneza da Bélgica, Veneza de Poitou... M odelo do passa
do e local de exposição de obras arquitetônicas que representam a mutação das
megalópoles: Veneza, a cidade das bienais de arte e arquitetura. A cidade petrifica
da onde são expostos os símbolos do futuro estético para as cidades do mundo in
teiro. No ano 2000, o tema da bienal de arquitetura de Veneza foi um verdadeiro
imperativo lançado aos arquitetos: “ M enos estética, mais ética”. A invocação da
ética representa um apelo à ordem moral. Toda atitude estética se torna escan
dalosa diante da “ miséria existente no mundo”. O arquiteto é intimado a tomar
consciência do abuso de suas intenções estéticas. M enos estética, mais ética, esta
seria a presunção do rico (termo decerto envelhecido, mas ainda significante)
que poderia ser corrigida graças à comiseração estética pela miséria percebida
como “ riqueza do pobre”. Com o reconhecimento das arquiteturas efémeras, as
formas de urbanização produzidas pelos próprios habitantes criam a ilusão de
um “direito à cidade” (Henri Lefebvre) recuperado apesar do estado de pobreza,
mas terminam servindo à promoção de um estetismo da miséria. Esse culto do
efémero, culto que nos conduz a sacralizar o que já está em vias de desaparecer-
nos protege de quê? Tal visão estética do mundo, sustentada pela boa consciên
cia moral humanitarista, liberada das questões e dos conflitos políticos, vem do
Norte em direção ao Sul, transformando a maior parte do planeta Terra em es
paço e tempo de utopias ainda possíveis para o futuro da humanidade. A crença
na autonomia local e precária de realização urbana pode muito bem servir para
fazer sobressair a grande obra arquitetônica, pois o liberalismo da globalização
se satisfaz nessa união entre a grande obra, signo dos tempos futuros, e a criação
esporádica local, que se torna o signo da obrigação da auto-estética. O mais des
valido está destinado, na ordem especular da globalização, a fazer de si mesmo
uma obra de arte, tornando-se com sua casa e seus resíduos um objeto estético
do qual foi o iniciador. O moralismo estético funda-se essencialmente no princí
pio da transfiguração da pobreza em desafio de soberania. Para quem não tem
quase nada, a capacidade de criar uma arte de modo de vida torna-se comparável
a uma obra de arte.
De acordo com Jacques Rancière, a política deveria ser compreendida como
“ partilha do sensível”, tal seria a possibilidade de sua renovação. O “ recorte dos
tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do barulho deveria
definir ao mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de
experimentação”. Vindo em socorro da política - e do vazio que ela oferece como
signo de seu distanciamento público —a estética se imporia como “ o recorte sensí
vel do comum da comunidade”. Introduzindo “ um regime de indeterminação de
identidades, de posições de palavra, de desregulação de partilhas do espaço e do
tempo”, a estética é a “ fábrica do sensível”.51 Este seria seu objetivo político mais
importante. Ela estaria destinada à invenção de formas novas de vida, e a arte não
seria mais uma categoria à parte. A hipótese de uma subjetividade política estaria
garantida por um regime que vive suas revoluções por meio do rompimento da
representação. Investir as formas da vida propriamente dita graças à intuição des
sa construtibilidade radical de nosso universo sensível: esta seria a política “em
potência” na estética. Tamanho idealismo supõe a ocultação, com fins, por sua
vez, políticos, da gestão económica do cultural, de sua função social, ou supõe
ainda fazer a abstração do produto cultural em nome de uma exaltação constante
da produção como possibilidade de partilha do sensível. Por que considerar so
mente a natureza inocente de uma tal partilha sem levar em conta sua produção
refletida? Como acreditar que se possa, no mundo contemporâneo dominado
por uma estetização generalizada, reencontrar uma forma comum de virgindade
estética como anúncio de um retorno inovador da política? É decerto louvável
imaginar que qualquer um pode ter acesso à experiência de sua própria vida, mas
que outra coisa cada um poderia fazer para sobreviver? O que a estetização do
social contemporâneo revela é, verdadeiramente, a armadilha da finalidade estéti
ca da reflexividade da gestão. O desenvolvimento fulgurante da reflexividade dos
modos de gestão das sociedades contemporâneas não implicaria a produção de
uma “ auto-estética” cujo fundamento é a própria precariedade do indivíduo?
A forma “ politicamente correta” da gestão urbana revela-se na demonstração
pública de uma busca de qualidade de vida como fundamento ético de uma esté
tica na cidade. Preocupada em promover as representações públicas de uma certa
amenidade, a gestão urbana não descobriu só agora que a qualidade da vida é
essencial ao fato de viver junto em uma cidade. Já faz muito tempo que essa bus
ca de qualidades urbanas ocupa o pensamento dos gestores das cidades, e antes
deles, o dos governadores e dos príncipes. Curiosamente, as qualidades de uma
cidade são consideradas perdidas, deterioradas, e o objetivo explicitado é o de
uma reapropriação necessária, de uma redescoberta associada a empreendimen
tos novos que produzam essa amenidade. Se uma arte de viver supõe modos de
intervenção que a determinam, ela também responde a disposições implícitas já
presentes em nossas diferentes maneiras de existir e em nossas aspirações. Por si
só, o termo “amenidade”, que voltou à moda como perspectiva de resistência às
incivilidades cotidianas no espaço público, acaba por desempenhar o papel implí
cito de designar o que poderia ser uma estética da vida cotidiana. Em resumo, o
moralismo gestor, humanista e universalista, tratando a cidade como objeto de
cuidados, leva também a uma “ auto-estética” do cidadão, para recolocar em cena
a vida citadina. É uma maneira de reintroduzir a ética no cerne da estética.
A função cidadã da arte ou da arquitetura tornou-se o imperativo de um m o
ralismo estético que quer se passar por engajamento político. Se a obra arquitetô
nica, suntuária, consagra a imagem da soberania de uma cidade nos países ricos,
não representaria, por outro lado, uma obscenidade imoral nos países pobres?
Da mesma maneira que os artistas, mas de uma forma ainda mais espetacular, os
arquitetos criam símbolos majestosos das cidades de amanhã. As obras assinadas
simbolizam o que já é o futuro da cidade, como se o vedetismo da antecipação
arquitetônica não se separasse jamais da conveniência humanitarista que consis
te em executar a obra para o “ bem” de todos. A estética universal é ecuménica.
A exemplaridade da obra destina-a a deixar traços que sugerem ficção de eterni
dade para a humanidade. M as os arquitetos não fazem apenas obras arquitetô-
nicas, eles fabricam também uma uniformização urbana que caracteriza as me
galópoles do mundo. Em vez de ser “ partilha do sensível”, a estética é o artifício
público da legitimidade moral do político.
NOTAS

1 J.-L. Nancy, La ville au loin. Paris: M ille et Une Nuits, 1999. p. 12.
2 Lewis M umford, A cidade através da História. São Paulo: M artins Fontes, 1982.
3 Lewis M umford, id., ib.
4 Lewis M umford, id., ib.
5 Paul Blanquart, Une histoire de la ville. Paris: La Découverte, 1997.
6 John Ruskin, Les sept lampes de Yarchitecture. Paris: Denoël, 1987. p. 204.
7 John Ruskin, id., ib., p. 205.
8 Julien Gracq, La forme d’une ville. Paris: José Corti, 1988. p. 9.
9 Julien Gracq, id., ib., p. 106.
10Julien Gracq, id., ib., p. 182.
11 Petite Ceinture: linha férrea parisiense desativada desde 1934, invadida pelo
mato e eventualmente visitada como “viagem no tempo”. (N. T.)
12Jean Rolin, Zones. Paris: Gallimard, 1993. p. 69.
13 Mike Davis, City ofQuatz, Paris: La Découverte, 2000. p. 19.
14Lewis M umford, op. cit.
15 Georg Simmel, Rome, Florence, Venise. Paris: Allia, 1998. p. 14.
16 Georg Simmel, id., ib., p. 13.
17Henri M aldiney, em seu livro L’Art, l’éclair et l’être, escreve: “ Quando observa
mos uma estátua de diferentes pontos de vista, a cada novo perfil sob o qual ela
aparece corresponde uma outra imagem. Uma estátua de Afrodite ou de um
atleta nos oferece imagens diferentes quando a olhamos de frente, de lado, de
três quartos ou de costas. Todos esses perfis remetem ao mesmo objeto - obje
to que é o pólo de identidade imanente a cada um desses modos de aparecer e,
contudo, transcendente dessa identidade que os ultrapassa”.
18Athis-M ons: cidade de 30 mil habitantes, na região de île de France. (N. T.)
19Escritor.
20 RATP: Régie Autonome des Transports Parisiens (estatal encarregada dos trans
portes públicos da região parisiense). (N. T.)
21 Tomamos emprestado essa expressão do filósofo François Jullien, que a utiliza
em seu livro Le Sage est sans idée. Paris: Seuil, 1999.
22 Nathalie Heinich, L’art contemporain exposé aux rejets, Jacqueline Chambon,
Nîmes, p. 33.
23 Viviane M orteau, arquiteta do escritório Nouvel, L’Écho de la Dordogne, 16 fev.
2000.
24 Daniel Delpeyrat, L’éssor sarladais, 25 fev. 2000.
25 “Le point de vue de Ronald”, L’éssor sarladais, 11 fev. 2001.
26 Sylviane Leprun, id., ib., p. 61.
27 Sylviane Leprun, L’église Sainte-M arie de Sarlat, Le festin, Périgueux. p. 60.
28 M ic Bertincourt, L’essor sarladais, 4 fev. 2001.
29 Giorgio Agamben, L’homme sans contenu, Circé, Belfort, 1996. p. 81.
30Yves M ichaud, La crise de l’art contemporain. Paris: PUF, 1997. p. 233.
31 Emmanuel Kant, Critique de la faculté dejuger. Paris: Vrin, 1965. p. 37.
32 E. Kant, id., ib., p. 116.
33Nathalie Heinich, L’art contemporain exposé aux rejets, Jacqueline Chambon,
Nîmes, p. 77.
34 Nathalie Heinich, op. cit., p. 123.
35 Jean-Paul Robert, Architecture d’aujour-d’hui, n. 313.
36 M ichel Simonot, De l’écriture à la scène. Dijon: Entre/sens, 2001. p. 17.
37 Paola Berenstein-Jacques, Lesfavelas de Rio: um enjeu culturel? Paris: L’Harmat-
tan, 2000.
38 Esses projetos fazem parte de um plano da prefeitura, denominado Célula
Urbana. O projeto do Jacarezinho e do morro da Providência estão em obras;
o de Inhoaíba, na Zona Oeste, foi abortado. Este último deveria ter como prin
cipal atração a grande estrela da arquitetura mundial, Jean Nouvel, que foi, na
ocasião, convidado para realizar o projeto do M useu Guggenhein do Rio, na zo
na portuária, e que também foi abortado devido a pressões populares. (N. T.)
39 As aventuras de Tin-tin: o lótus azul. Rio de Janeiro: Record, s/d. (N. T.)
40 Stéphane Gaty, Lire André Breton à Saint-Dizier. Édition l ’Entre-tenir, 2001.
41 François Larcelet, fundador da associação l ’Entre-tenir, e livreiro em Saint-
Dizier.
42 François Larcelet.
43 Stéphane Gaty, id., ib., p. 65.
44 Stéphane Gaty, id., ib., p. 78.
45 Stéphane Gaty, id., ib., p. 274.
46 François Larcelet.
47 Giorgio Agamben, La communauté qui vient. Paris: Seuil, 1990. p. 10.
48 Giorgio Agamben, op. cit., p. 11.
49 Jacques Rancière, entrevista realizada para a revista Alice.
50 Henri-Pierre Jeudy, retirado do texto “Venise em mirage” publicado pela Librai
rie Française de Venise.
51 Jacques Rancière, entrevista realizada para a revista Alice.

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