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Doku - Pub - Henri Pierre Jeudy Espelho Das Cidades
Doku - Pub - Henri Pierre Jeudy Espelho Das Cidades
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Henri-Pierre Jeudy
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U.F.M.G. - BIBLIOTECA UNIVERSIT RIA
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N Ã O DANIFIQUE ESTA ETIQ U ETA
CASA D A P AL AV R A
Copyright © 2005 Henri-Pierre Jeudy
Copyright © 2005 desta edição, Casa da Palavra
Consultoria
PA OLA BEREN ST EI N JA CQ U ES
Tradução
REI A N E JA N O W I T Z ER
Revisão
M I CH EL L E STRZ O D A
BIBLIOTECA UNÏVEP«TTaj?js
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Di agramação
LEA N D RO CO LL A RES
Prefácio 9
Paola Berenstein Jacques
Primeira parte
A M A Q U I N A RI A PA TRI M ON I A L 13
O processo de reflexividade 15
Um espelho de cotovias 19
Os novos patrimónios j á antigos 25
A introversão patr i m oni al dos etnólogos 33
O pictograma das etnias 39
A desforra do objeto 45
Os distúrbios da atualização 51
Património e catástrofe 57
O futuro giratório 67
O futuro do homem 73
N otas 77
Segunda parte
A CRI T I CA D A E ST É T I C A U RBA N A 79
A M A Q U I N A RI A PA T RI M O N I A L
0 P R O C E S S O DE R E F L E X I V I D A D E
Quem não sente ainda grande emoção ao passear por áreas industriais abando
nadas, fábricas desocupadas, ou portos onde gruas enferrujam, ou por estações
desativadas? Uma emoção estranha, uma vez que não está necessariamente re
lacionada, como freqüentemente se acredita, à nostalgia de uma outra época.
Nossa “ boa” consciência, por outro lado, nos coloca em estado de alerta: como
podemos sentir saudade de um tempo em que nossos antepassados eram conde
nados a horas de trabalho intensivo, em condições sanitárias difíceis? O silêncio
desses territórios abandonados, dessas construções desmoronadas, nos coloca,
contudo, em um estado de alucinação, uma vez que podemos ver os corpos, es
cutar vozes e gritos, ter a sensação de uma atmosfera de vida comum que a lite
ratura e o cinema nos sugerem o tempo todo. Um estado visionário, retrospecti
vo, que nos incomoda. Nenhuma sombra de inquietação, apenas a irrupção de
imagens de uma infância sempre sonhada, em meio à doçura de seus sofrimen
tos. Prosseguindo nossa caminhada, vemos erguer-se um edifício inteiramente
reconstituído, bem limpo, bem distinto dos terrenos vazios, porque parece ocu
pado. Êj3 museu. Sabemos que, ao entrar nele, não experimentaremos as mesmas
emoçõès. Aprenderemos coisas, veremos que ali tudo está correto, em ordem,
que as máquinas parecem prontas para funcionar, e que nenhum detalhe esca
pou à reconstituição do que foi o local de trabalho. Terminaremos até sabendo
“ como tudo se passou”. Se nossas imagens eram algumas vezes confusas enquan
to caminhávamos pelos terrenos abandonados, no museu elas recuperaram a apar
rência de_ordem, Como não apreciar essa ordem do museu? Ele preenche bem
sua função: é a evocação maquinal do que foi. Os últimos operários ainda vivos
na ocasião de sua criação talvez tenham se revoltado, dizendo que foram tratados
como mortos, e sobretudo alegando o tratamento “excessivamente cor-de-rosa”
dispensado às suas “ memórias operárias”. Terminaram cedendo. ErajD museu ou
o esquec im en to. Então cumpriram a tarefa da transmissão, comunicando aos
encarregados da “ etnologia de urgência” tudo que sabiam, tudo que pensavam
ter vivido. Fizeram a apologia desse templo de suas memórias que muita gente
iria visitar. Também pensaram que nem todas essas pessoas seriam turistas igno
rantes, que muitas delas compreenderiam, e que as crianças não podiam ignorar
como tinham trabalhado em um tempo que, para elas, já era tão longínquo que
dele não mais existia nenhuma representação.
O amor coletivo ao património, nos anos 1980, foi despertado pelo desmoro
namento dos modos de produção industrial. Qual foi então o interesse dos políti
cos? Naquela época, a cristalização coletiva em torno da defesa dos patrimónios
permitia dar uma certa consistência social aos programas políticos. A crise pr o
vocada pela transformação dos modos de produção era tratada dentro de uma
perspectiva de proteção e preservação dos vestígios e da parte ainda viva de toda
história social de uma região. Era preciso que os signos monumentais represen
tativos das memórias coletivas persistissem, assegurando a visão comunitária de
uma transfiguração possível para o futuro, sem produzir o mínimo repúdio ao
que havia sido. O que estava em jogo não era a transmissão patrimonial tradicio
nal, mas uma “transmissão em ato”, da qual o conjunto da comunidade deveria
participar. Ao invés de ser imposta como uma escritura da história da qual as pes
soas estavam excluídas, uma escritura feita sem elas, da qual contudo ainda eram
as testemunhas vivas, essa construção da transmissão tornara-se, na época, uma
questão de todos. Para os políticos, era óbvio que o ganho era considerável,
uma vez que podiam fazer vibrar as emoções coletivas e eles pr ópri os parece
rem absolutamente sinceros. E foi a par tir da constituição do património indus
trial que uma propensão pela defesa dos “ novos” patrimónios propagou-se.
A arma do património faz afluir atrás de si uma forma humanista universal
que permite ao poder político conseguir o assentimento geral. Uma dinâmica da
reapropriação legítima, ao se opor tanto à ameaça de desaparecimento quanto
à de “ despossessão”, provoca a mobilização social em torno da defesa comum
das identidades. Podemos nos perguntar de que maneira as diferentes regiões da
França, no momento em que se realizava a descentralização, se sentiam ameaça
das de perder sua identidade. Essa reivindicação identitária, que respondia a um
instinto de sobrevivência da comunidade, parece ter sido exibida de maneira des
proporcional em relação à realidade da ameaça. A função identitária concedida
ao património parece ter caído ainda na armadilha da evidência de sua necessida
de. Ao dar esse sentido identitário à preservação das memórias coletivas, a lógica
da conservação cumpre sua função social e política: todo sírnbolo patrimonial
vem conjurar a “ morte das antigas trocas simbólicas” cobrindo, por intermédio
da nostalgia compartilhada, o déficit de sentido induzido. O que está em vias de
desaparecer deve ser magnificado. O espírito patrimonial oculta, pela imposição
de uma conduta retrospectiva, o trabalho arqueológico da memória, essa recons
trução incerta do que foi, e que supõe uma destruição parcial do que nos é dado
ver. A predação arqueológica ou a busca infinita. Os usos culturais dos espaços
industriais não impedem o jogo das memórias e esse jogo se torna às vezes ele
mesmo arqueológico quando, nas sinuosidades da percepção dos lugares, advém
da visão incongruente dos vestígios. O elo entre a memória e a imaginação se
nutre dessa incongruência das antecipações invisíveis, como se fossem provas fic-
cionais do que foi vivido nesses lugares. É curioso constatar o quanto a própria
memória se sustenta com a oposição entre o patrimonial e o arqueológico. A ati
tude arqueológica da memória provém de uma aventura, e não de uma vontade
de se precaver contra as ameaças de um desaparecimento que, ao contrário, con
tinua sendo a origem de sua estimulação. Ela não mergulha na procura de uma
identidade que se tornou fraca demais.
O património industrial impôs-se como uma novidade porque permitiu,
essencialmente, legitimar as reivindicações de uma identidade considerada
oculta, até mesmo culpada. Era preciso que o “ mundo operári o” apregoasse
a soberania de sua identidade diante das identidades das outras classes sociais
proprietárias das grandes riquezas culturais e que as usufruíam de maneira
elitista. O etnólogo de plantão nas áreas industriais desativadas era, nos anos
1970 e 1980, um verdadeiro missionário, ocupando seu tempo em descobrir e
defender identidades operárias não reconhecidas. Ele pode se orgulhar de ter con
seguido devolver a dignidade patrimonial às fábricas, mesmo continuando a se
queixar do interesse limitado manifestado pelas coletividades públicas. De fato,
o património industrial foi banalizado, mas ele requer tamanho investimento pa
ra sua conservação e manutenção que as coletividades públicas não conseguem
participar. A Inglaterra é sempre citada como a referência ideal em matéria de
património industrial, porque numerosos locais foram conservados, no campo
da metalurgia, já há muito tempo. Na França, os escolhidos não questionam a im
portância do património industrial, mas raramente estão dispostos a assumir o
custo de sua manutenção. Se a conservação patrimonial das áreas industriais fosse
estabelecida em escala européia, ela poderia ser mais bem repartida. Bastaria que
os locais preservados servissem de exemplo para todos os países da Comunidade,
o que limitaria o custo económico bastante elevado de sua manutenção. Aceitar
a hipótese de uma repartição, em escala européia, dos locais e das construções
escolhidas como testemunhas da produção industrial do século XI X e da primei
ra metade do século XX, implicaria o término da competição das reivindicações
identitárias locais. Se os ingleses já há muito tempo mantêm os altos fornos, os
franceses também têm de fazer o mesmo? Deve-se seguir a regra que diz “ a cada
um seu património” ou se pode cogitar de uma distribuição européia dos mode
los de património industrial? Se a referência identitária continua sendo a razão
principal, a divisão territorial dos modelos de conservação patrimonial tem pou
ca probabilidade de ser aceita. Contudo, a configuração dos locais e a transmissão
dos savoir-faire são geralmente idênticas. A reivindicação identitária traduz-se de
fato pela repetição idêntica dos modelos conservados. Considerar que os altos
fornos ingleses possam ser testemunhas das memórias operárias da produção
siderúrgica de uma determinada região da França poderia ser interpretado como
uma traição se comparada ao respeito inspirado pela singularidade, ao menos
ilusória, das identidades locais. Entretanto, é possível imaginar que no final do
século XI X a comunidade operária era muito mais unida, e que a apropriação
identitária e local dos modos de produção não faria nenhum sentido. Desse m o
do, a conservação patrimonial teria imposto uma visão identitária que não é de
nenhuma maneira constitutiva das memórias coletivas operárias.
É claro que a reivindicação das identidades não tem a mesma força e a mesma
legitimidade “vital” numa situação em que sua expressão passa pelo espetáculo
de um chauvinismo consensual animado pelo prazer do folclore.
Os signos identitários não expressam uma soberania que lhes seja própria,
funcionam neste caso como “ marcadores”, índices de uma singularidade cultural
mantida e exibida.
O valor patrimonial que lhes é concedido faz um papel de “ marca” - ele é
a garantia de sua autenticidade. A totalidade da maquinaria patrimonial que
é apresentada segue apenas uma única via: a do reconhecimento institucio
nal que o património confere a qualquer forma de reivindicação identitária.
O equilíbrio político e social que resulta disso parece ter sido alcançado. A “pa
trimonialização”, poder-se-ia dizer, permitiu, em um período de vinte ou trinta
anos, resolver boa parte da violência das metamorfoses locais, regionais, ur ba
nas, pela assimilação de um “ dever de memória” em relação à reivindicação iden
titária. O “ é preciso não esquecer” pôde suportar o entusiasmo coletivo porque
se transformou em prazer de reconhecimento de si mesmo naquilo que estava
em vias de desaparecer. No exercício dessa psicanálise social e cultural, podemos
sempre dizer a nós mesmos que os excessos de exploração de uma identidade
reivindicada e exibida não são senão resíduos de um chauvinismo inofensivo, e
que a lobotomia das memórias coletivas teria com toda certeza provocado um
desastre coletivo.
Passado o tempo das energias reunidas para defender todo o poderio das
identidades culturais, para provocar um sobressalto nas memórias coletivas, so
mos forçados a reconhecer que a petrificação patrimonial já concluiu sua obra.
Passou-se para o estágio da “ manutenção patrimonial”. A encenação de grandes
projetos de preservação prosseguirá, uma vez que o ato de consagração patrimo
nial continua a desempenhar um papel salvador, mas o apreço coletivo que lhe
deu origem diminuiu sensivelmente. Pelo fato de haver fundado sua dinâmica
no princípio da revelação do que estava escondido, o empreendimento patrimo
nial primeiramente exibiu uma certa violência, cujo objetivo era tornar visível
ao público todos os “ instrumentos de tortura” da vida operária. Seu campo de
investigação tinha que se impor como uma verdadeira e perigosa anamnese. Um
eminente professor da matéria dizia que a arqueologia da indústria encontrava-
se na mesma situação de um pintor em uma construção, ao ter que arrancar sete
camadas sucessivas de papel pintado. Essa idéia, tão cara ao arqueólogo, de que
ele sempre tem alguma outra coisa a descobrir sob o que já foi descoberto via-
se confirmada, por intermédio do poder exercido pelo próprio ato de desvenda-
mento. Como um verdadeiro revelador, o património industrial visava mostrar
aquilo que nunca ninguém quisera ver: como se passara a exploração do homem.
O propósito era tornar objetiva a total ambivalência, com referência aos “ instru
mentos de trabalho”, entre a representação da tortura e da grandeza da humanida
de. Exibida, colocada no museu, passada pelas mãos dos arqueólogos, etnólogos
e conservadores, essa ambivalência que se manifestou cada vez que se pensou
em conservar ou destruir os “ instrumentos de trabalho”, por ocasião de revoltas
e de insurreições, desapareceu: foi inteiramente esvaziada de sua intensidade vi
vida, para se tornar o resumo objetivo de uma história de bravura. Para dizer a
verdade, ela foi cindida em dois modos de representação: de um lado, a estética
populista da transmissão dos savoir-faire, de outro, a lembrança dos sofrimentos
do “ mundo operário”.
Desse modo, toda criança é induzida, quando visita uma fábrica transfor
mada em museu, a compreender que a grandeza do homem é proporcional à
veneração secreta que ele chegou a manifestar pelos instrumentos de sua tortura.
E para convencê-la da surpreendente riqueza humana da vida industriosa, é-lhe
demonstrado como seus antepassados utilizavam com discernimento, com uma
singular habilidade, instrumentos técnicos que constituem hoje restos de um ar
tesanato em vias de desaparecimento. O que deve se inscrever em sua memória é
a imagem ao menos estética das relações entre o homem e o instrumento, entre
o homem e a máquina. O património industrial parece ter conseguido impor sua
própria estética. O valor do objeto industrial ou artesanal não tem mais necessi-
dade de ser comparado ao da obra de arte. Ele adquiriu sua legitimidade estética,
sua função não mais aparece com a mancha de uma desconsideração induzida
pela categoria exclusiva de utilitário. Se antes o reconhecimento da qualidade
estética de um objeto tinha relação com sua inutilidade presumida, a partir de
agora ele mudou sua razão de ser: a função do objeto consagra seu valor estético
porque traduz a beleza retrospectiva de um savoir-faire. Essa admiração retros
pectiva pelo trabalho, reclamada pela disposição do objeto, surgiu do intenso
interesse do património industrial em se fazer reconhecer do mesmo modo que
qualquer outro património. O valor do trabalho foi assim reabilitado, tornando-
se componente de uma qualidade estética do objeto. O que chamamos de obra
é também um trabalho. E, curiosamente, os próprios artistas vêm reivindicando
incessantemente, e já há algum tempo, que seu trabalho seja levado em conside
ração, mais até do que sua obra. O valor do trabalho tornou-se equivalente a um
valor estético.
A encenação pública das “ memórias operárias” teria sido, de alguma maneira,
perturbadora para os capitães da indústria? M ostrar os “ instrumentos de traba
lho” que fizeram os homens sofrer nada tem de vergonhoso para um patronato
que não pára de provar o quanto as altas tecnologias permitem cada vez mais evi
tar essa “exploração física”. M esmo que a exploração persista, não é mais visível,
ela está dentro da cabeça, na verdade não está mais nos braços. E se está dentro
da cabeça, é uma questão de cada um, e não de quem poderia ser considerado o
explorador. Vê-se perfeitamente como o património das “ memórias operárias” é
salvador. Ele permite simultaneamente dizer que esse género de exploração física
terminou seu ciclo e que, apesar de tudo, na época desse “ universo industrioso” a
vida não era tão triste e negra como nos disseram.
O património industrial opera uma “metamorfose catártica” : a visão retros
pectiva da “vida operária” tornou-se tão estética que as lembranças de explora
ção e dominação terminam constituindo quadros de um “outro” mundo que
nunca mais será o nosso. Sempre que reaparecer em filmes (como Existenz, de
Cronenberg), será apresentado como se fosse um cenário arqueológico em meio
à ficção, para demonstrar todo o poder exercido sobre o corpo por um universo
de produção sem fim. Essa representação arqueológica de sujeição a um trabalho
coletivo injusto serve de enquadramento simbólico anacrónico a um universo fu
turista que, assim, demonstra sua inacreditável capacidade de se imaterializar.
Estamos longe, muito longe dessas imagens emocionais que surgem nos ca
minhos de uma memória errante, e que nos colocam às vezes por um instante
diante de um avô falecido que lembramos ter visto em pleno trabalho na forja
ou na floresta... Essa forma acidental da memória, essa forma incongruente que
contudo persiste como um elo afetivo de transmissão, prescinde de objetivação.
M as está condenada ao desaparecimento. Ela só pode continuar secreta, pois a
menor eventualidade de sua enunciação a submete ao poder da reflexividade
patrimonial. Ela não tem nenhuma possibilidade de apregoar sua autonomia.
A resistência ao esquecimento impôs uma objetivação racional da memória indi
vidual e coletiva. Toda imagem mnésica se vê, desse modo, presa na armadilha de
um cenário patrimonial que lhe impõe o sentido de sua manifestação. Resta-lhe
apenas o segredo. Enquanto o património dizia respeito à história tradicional
das igrejas e dos castelos, ele deixava a memória totalmente livre de seus recortes
e de seus retornos. A partir do momento em que incluiu a vida social em seu
conjunto, passou a impor um arcabouço semântico prévio às manifestações da
memória individual. E, sobretudo, parece ter realmente liquidado a conivência
implícita que animava e fundava a memória coletiva. Esse arranjo era necessário?
Dentro da perspectiva do dever de não esquecer, uma tal necessidade obteve for
ça de lei. É preciso de fato admitir que a organização patrimonial coincide com
“uma regulação ética” do tratamento reflexivo das memórias coletivas.
Na França, os ecomuseus que se desenvolveram a partir de 1970 em territó
rios onde as mutações industriais provocaram o fechamento de minas e fábricas,
terminarão, algumas dezenas de anos depois, fechando suas portas? Eles não apre
sentam mais a aparência de novidade. Não representam mais a época gloriosa da
reconquista das “ memórias operárias”. Além disso, a geração dos “velhos operá
rios” está em vias de extinção... Curiosamente, no Japão, o modelo de ecomuseu
francês foi retomado muito mais tarde. No Norte do arquipélago, na região de
A omori, criou-se um ecomuseu dentro das antigas minas de prata. Como na
França, as regiões mais decadentes do ponto de vista económico, devido à reestru-
turação da produção industrial, transformam-se em ecoterritórios cuja vocação
é fazer reviver as atividades de antigamente. Atitude que não poderia ser mais
clássica, excetuando-se o fato de que a cenografia adotada faz uso de robôs. Em
Osarizawa, dentro do dédalo de caminhos subterrâneos da mina, mais de uma
centena de robôs estão em ação, uns atrás dos outros, para lembrar como era
praticada a extração da prata e como viviam os mineiros. A mina se parece com
uma “casa noturna” com seus raios laser, suas células fotoelétricas que permitem
controlar o movimento dos robôs. Os visitantes pouco numerosos percorrem as
galerias, enquanto os robôs repetem a seu lado, com absoluta autonomia, os gestos
programados. O “ tesouro vivo”, o representante da “ memória dos mineiros” é um
robô! Note-se, contudo, que em Osarizawa a visita inclui uma seção de teatro po
pular e um almoço, que acontecem dentro de um prédio cuja arquitetura não foi
modificada. Essa cena teatral é realizada dentro das regras da tradição, não tem
nada de kitsch, uma vez que, muito pelo contrário, é uma repetição exata dos dr a
mas ou das tragicomédias que sempre foram encenadas nesse local.
Em geral, a reconstituição integral dos habitats japoneses, em um ecomuseu,
é executada de tal maneira que a representação do passado parece satisfazer a
um prazer coletivo de certo modo kitsch. Poderíamos pensar que o kitsch não é
redutível à réplica pouco natural das antigas construções e práticas ancestrais, já
que leva em conta o próprio aspecto do desaparecimento. Os locais de restitui
ção de diferentes habitats vindos de países europeus, presentes em quase todo
Japão, oferecem uma figuração abrandada do estrangeiro e da lembrança de sua
presença passageira pelo arquipélago. Assim, a representação tranqüila da “passa
gem dos estrangeiros” é reiterada pela própria conservação. Faz parte da arte do
kitsch japonês preservar, na encenação, a repetição do sentimento dessa passagem
sem contudo provocar uma nostalgia que, aos japoneses, não convém que seja
manifestada. A reconstituição kitsch aparece então como uma paródia implícita
das influências estrangeiras. No Japão, essas reconstituições podem coexistir sem
contrastar com o que decorre da mais “pura” tradição. É a própria idéia de recons
tituição patrimonial que não tem mais sentido? É provável que o sentimento de
perda não seja tão obsessivo quanto na Europa, onde os espetáculos patrimoniais
são sempre apresentados como “ reconstituições vivas”, cujo modelo predominan
te na França continua sendo o Puy du Fou.4 Cada vez que os habitantes de um
conjunto de pequenas cidades participam da construção de um espetáculo como
esse, está garantida uma “nova encenação” das memórias coletivas. Trata-se de
uma situação ideal para conciliar a preservação do património e o desenvolvi
mento cultural de uma região. Essa participação dos habitantes nos faz acreditar
que não se trata apenas de um espetáculo imposto, mas também de uma recons
trução cênica à qual as pessoas têm apreço e pela qual se cria uma renovação da
sociabilidade. A reconstituição kitsch apresenta-se no mínimo como uma seduto
ra projeção de diapositivos da grande paródia das memórias.
A I N T R O V E R S Ã O P A T R I M O N I A L DOS E T N Ó L O G O S
Que criança não brincou de esconder objetos debaixo da terra à espera de que ou
tros os descobrissem mais tarde? Em alguns “ museus ao ar livre”, objetos foram
enterrados com a intenção de provocar a surpresa dos etnólogos um ou mais
séculos depois. O que supõe o desaparecimento da função presente do objeto ou
a incongruência futura de sua forma. Se o tempo da descoberta do objeto não
for muito longo, este que será retirado da terra aparecerá como um ancestral
de um outro objeto que ainda não existe. Se o tempo for muito mais longo, o
mesmo objeto terá todas as possibilidades de ser um elemento arqueológico que
justificará pesquisas e suscitará controvérsias quanto a sua origem e sua função.
Acredita-se normalmente que o próprio enigma do objeto se aprofunde com o
tempo. Tomemos por exemplo o “ Celeiro do Século”. Esse “ Celeiro”, instalado na
ex-usina LU (Lefebvre Utile), em Nantes, foi lacrado no dia 31 de dezembro de
1999 à meia-noite. Ele será aberto no dia I a de janeiro de 2100, às 17 horas. Todos
foram convidados a depositar nesse “ Local Único” um objeto representativo de
sua vida, ou um emblema de seu século. Qualquer objeto, contanto que não fosse
perecível, podia ser depositado lá como a consumação de um ato simbólico, sério
ou mesmo sem importância. Também era possível depositar o mesmo objeto vir
tualmente, em sites da internet. O “ Celeiro do Século” reúne desse modo objetos
diferentes para uma arqueologia do futuro, constituindo uma estrutura especí
fica para a transmissão. Pouco importa o que irá acontecer até o ano de 2100,
uma vez que, de um modo ou de outro, os habitantes conservarão no mínimo a
preocupação de recolher os traços do que se passou antes deles. Com um pouco
de sorte, talvez uma menininha, presente na ocasião do evento, esteja ainda viva
em I a de janeiro de 2100 para reencontrar o que ela ou sua mãe depositaram
cem anos antes. O “ Celeiro do Século” nada tem de ficção, ele é um depósito que
garante a conservação da perenidade de sua representação. A mesma operação
será repetida em 2100, de tal maneira que não haverá mais do que “ surpresas
organizadas”.
Esse jogo de vai-e-vem no tempo pode parecer estranho, ao indicar em que
medida o controle da antecipação visa reduzir o poder enigmático do objeto.
E de fato curioso organizar antecipadamente essa arqueologia dos objetos.
Provavelmente é o efeito de uma lógica patrimonial que não se contenta mais
em conservar o passado, em escavar à procura dos vestígios, mas que não pára
de imaginar como os objetos de hoje poderão servir de signos para as gerações
futuras. Dada a quantidade considerável desses objetos, chega-se pensar que, ao
contrário, o signo identitário do objeto se torna ele próprio confuso, a ponto de
qualquer classificação antecipada se revelar impossível. O mais impressionante é
constatar em que nível uma sociedade chega a pensar na conservação do que pr o
duz para os seres humanos que viverão dentro de um século ou mais. Acreditam
ingenuamente que esses mesmos seres humanos serão incapazes de escolher o
que querem conservar da nossa sociedade presente?
O que estaria impulsionando a conservação para o futuro não é mais a angús
tia da perda dos vestígios, mas sim o medo de não se ter nada para transmitir.
É claro que toda reflexão excessiva sobre o objeto da transmissão conduz a que
se entreveja a ausência de qualquer objeto de transmissão. A questão não é mais
saber o que vale o esforço de ser conservado para ser transmitido, mas imaginar o
que nos conservará na memória dos que ainda não nasceram. O mais razoável é re
meter-se à transmissão por acidente, que consiste em pensar que não nos compete
escolher os vestígios que permanecerão. Essa atitude que parece tão sensata ainda
preserva a idéia de uma transmissão possível. Ela somente permite que não nos
obstinemos em construir o objeto da transmissão. M as a obsessão patrimonial
nos coloca diante deste fato consumado: são os próprios objetos que nos conser
vam. Somos nós os reféns de uma transmissão governada pelos objetos.
“ É o objeto que nos pensa”, adora dizer Jean Baudrillard. Nós acreditamos
dar vida ao objeto, mas é ele que nos possui. Como o homem primitivo, vivemos
na magia dos objetos? Nós nos recusamos, em nome da razão, a acreditar nesse
antropomorfismo dos objetos e não batemos na cadeira na qual nosso joelho es
barrou, como uma criança faria. A esses objetos que conservamos com respeito
dentro de locais privados ou públicos, nós atribuímos entretanto um poder si m
bólico especial. Quer sejam “bens de família” ou “ bens comuns”, nós colocamos
esses objetos “ fora do tempo” e chegamos a lhes dar como função a representação
do tempo. Quando, em um acesso de cólera, os destruímos para nos provar que
não somos fetichistas, imaginamos que conseguiremos viver sem eles. Esse ato de
desapossamento nos oferece momentaneamente a ilusão da liberdade absoluta.
M as os objetos insistem em ficar lá, jamais desaparecem porque não estão em
nosso poder. Achamos que vamos submetê-los criando coleções, conservando-os
e expondo-os, para olhar para eles como signos imorredouros do que nos prece
deu, do que permanecerá depois de nós. É nossa maneira de venerá-los, dando-
lhes esse papel privilegiado de transmitir o que nós fomos, conferindo-lhes uma
certa imortalidade. Contudo, tudo aquilo que nós projetamos sobre os objetos,
os próprios objetos parecem já ter previsto. Da sua docilidade a respeito de nos
sas projeções brota uma estranha ironia.
“É o objeto que nos pensa” não tem, de forma alguma, o mesmo sentido que
“ é Deus que nos pensa”, ou “ é o sistema que nos pensa”. Trata-se claramente de
uma relação mágica que contém o reverso de nossas projeções. O objeto absorve
todas as posições do sujeito, para devolvê-las como espelho de suas intenções.
E, para nos resguardar dos eventuais sortilégios do objeto, nós o botamos no m u
seu. O antropólogo americano Clifford, em seu livro The predicament of culture,
menciona que os zunhis7 se recusaram a confiar aos conservadores ocidentais
um objeto sagrado (imagem de uma divindade), sob o pretexto de que uma expo
sição não seria um lugar apropriado para ele. Compreende-se que o uso profano
de um objeto sagrado nem sempre é apreciado, dado que desnatura o próprio
objeto. Esta razão não é suficiente. Pode-se supor também que os zunhis queriam
evitar problemas para os conservadores por ser impossível prever as reações do
objeto sagrado. A divindade exposta continua sendo antes de tudo uma divinda
de, ela é suscetível de exercer seu poder seja lá onde for. O deslocamento a que foi
submetida não limita o risco. Nesse sentido, os zunhis podem, com sua recusa,
ter feito um favor aos antropólogos, que teriam tido muita dificuldade em conju
rar, no local da exposição, as manifestações intempestivas da divindade. Quem
poderia além disso presumir, em tais circunstâncias, intenções maléficas ou be
néficas do objeto sagrado? Essa crença no irredutível poder do sagrado é curiosa
mente encenada em “ Sete bolas de cristal” por Hergé.8A múmia de Raspar Capac
- “ aquele que desencadeou o fogo do céu” - é colocada dentro de uma vitrine, em
casa de Hippolyte, um amigo do professor Tournesol. Tintin, o capitão H addock
e Tournesol fazem uma visita a esse amigo no exato momento em que desaba um
temporal. Na casa reina uma atmosfera de ameaça: os pneus do carro estouram
por causa do calor, um postigo bate no rosto do capitão Haddock, os relâmpagos
riscam o céu e nossos célebres amigos se refugiam em uma pequena sala para 1er
a tradução das inscrições que estavam gravadas nas paredes do túmulo de Raspar
Capac. Desgraça para os profanadores, a maldição vai persegui-los... O raio cai
em cima da lareira, a bola de fogo atravessa a peça, projeta Hyppolite para fora
da poltrona, suspende Tournesol e termina seu percurso volatilizando a vitrine
onde se encontrava a múmia. Ela desapareceu. Voltará mais tarde, no meio da
noite, trazendo nas mãos uma bola de cristal que quebrará diante da cama onde
Tintin está dormindo. Tournesol e o capitão terão o mesmo sonho. Pois se trata
apenas de um sonho. Podemos imaginar que em um museu etnográfico a maior
parte dos objetos reunidos recupera seu poder mágico e perturba o espaço “ onde
foram feitos reféns”. A fantasia tão comum da estátua que se mexe, do rosto pi n
tado que nos espia, do crânio que nos segue soltando gritos roufenhos não nos
envergonha. Sem essa fantasia não teríamos senão uma monótona percepção dos
objetos que observamos. O futuro dos museus está “nas mãos dos espectadores”,
é o que adoram achar os cenógrafos que conduzem os visitantes com uma preo
cupação didática, dando-lhes cada vez menos liberdade. Nunca esgotaremos, por
intermédio dos nossos conhecimentos, esse enigma do objeto; ele nos permite
acreditar num poder mágico que negamos por pura conveniência, para nos per
suadirmos de que nada é exterior à nossa própria inteligibilidade.
Em princípio, um valor simbólico permanece um valor ativo, situando-se,
por seu caráter sagrado, fora do “ tempo humano”. M as o que é tido como sagra
do não impede a circulação dos valores materiais. Um dos melhores exemplos
foi a exposição “ Os mágicos da terra” apresentada no Beaubourg em Paris, em
1994. Ela foi concebida implicitamente como um meio de desestabilizar o mer
cado da arte, cristalizando a atenção do público no valor artístico dos objetos de
“arte primitiva”. Ao trazer inúmeros objetos de todos os países do mundo, alguns
organizadores aproveitaram para constituir coleções privadas. Afinal, nos anos
1930, todos os etnólogos da missão Dakar-Djibouti tinham feito a mesma coisa.
A questão não é desaprová-los em nome da transparência ética, mas reconhecer
simplesmente que essa paixão pela coleção se apresenta como uma aposta no
futuro, uma aposta feita sobre o valor de mercado desses objetos. Não se trata
mais de conservar por conservar - o que decorre de um princípio teleológico im
possível de se evitar - , mas sim de conservar prevendo uma “ alteração do valor”.
Apoiando-se na garantia de duração simbólica que o objeto representa - e mais
particularmente o objeto primitivo - é de certo modo possível preservar o valor
material como “ horizonte de um futuro”. A vantagem do objeto primitivo é esca
par à referência obrigatória ao passado, ou pelo menos à idéia excessivamente
histórica que se possa fazer dele. Digamos que o valor do objeto já tira proveito
de seu “caráter primitivo”. O objeto primitivo contém sua referência à origem,
seja como origem das origens, seja como origem ausente ou perdida, o que, se
refletirmos bem, vem a dar no mesmo. Essa circularidade da origem confirma a
idéia de uma origem sempre fantasiada.
Em úm artigo intitulado “ L’horreur du pr imitif”,9 Pierre Fedida mostra em
que medida a escultura primitiva nada tem a significar, que ela existe em toda
sua soberania e que o fato de ser apresentada sobre um pedestal já é uma contra
dição, uma vez que, assim se fazendo, é-lhe atribuído o poder de representar. Ela
nada tem a representar, ela é por si mesma, fora de qualquer manifestação espeta
cular. A escultura primitiva não tem um referencial comum com a organização
reflexiva própria à museografia: “Aquilo que ‘o civilizado europeu tentaria, desse
modo, produzir, seria uma tal coerência do objeto em sua objetividade formal
que, precisamente, a presença não mais prevaleça sobre a aparência e o tempo
não mais exista como alteração de forma na matéria da criação”.10A matéria do
primitivo não deixa o tempo ser percebido, ela nos faz entrar numa conivência
sem fim com os mortos. É a entrada na noite eterna dos mortos vivos. A expres
são rígida do rosto morto (ou da máscara), com sua imobilidade em êxtase, m os
tra-se atemporal. O “primitivo” não pode mais ser considerado apenas do ponto
de vista do que retorna ou do que funciona como origem na vida psíquica, “ ele
desempenha precisamente o papel de nos proteger contra o que o estado de civili
zado comporta de destrutividade”.11O que no sonho, na alucinação ou no delírio
advém como visão do não-humano, revela como a “primitividade” não é uma
ameaça de desestruturação, mas, ao contrário, é a expressão do elo atemporal
com os mortos. Contudo, a esse poder do não-humano esforçamo-nos para con
ferir um sentido simbólico preliminar, inscrevendo-o em uma ordem discursiva
que o aniquila.
Na cultura ocidental, o “ primitivo” parece significar o que torna possível um
pensamento experimental de alteridade. O Outro não é apreendido como “ Outro
de Si mesmo”, senão no confronto com uma arqueologia do homem, ela mesma
colocada na categoria de a priori universal. O Outro jamais é apreendido como
uma representação da alteridade radical. O pensamento evolucionista, caracterís
tico do século passado, levava a que se pensasse que o “ primitivo” era uma etapa
dentro da história da humanidade. Etapa que não deixava de se manter dentro
da psique sob a forma de rebentos mnemónicos, a fim de provar a arqueologia
sempre “ viva” de alguns de nossos comportamentos. O homem ocidental podia
então se considerar uma representação ideal da evolução da espécie. O que resta
do evolucionismo é a crença persistente em que o “primitivo” está em nós. Se ele
está fora de nós, é apenas na qualidade de objeto vivo da etnologia, na medida
em que ele já está em nós. O homem permanece sempre pensado por aquilo que
o precedeu, e que, eventualmente, pode voltar para ele.
A representação do “ primitivo” é agora utilizada como efeito previsível e aguar
dado de uma estética da estranheza. Esse artifício da estranheza permite confir
mar que o que se parece conosco passa a ser a mesma coisa. O olhar do etnólogo
serve para produzir um trompe-l’oeïl da estranheza, para melhor sobressaírem
as semelhanças destinadas a garantir a repetição do mesmo. Trata-se, a partir
do conhecimento do “ primitivo”, de revelar o que já sabemos a respeito de nós
mesmos, como se fosse uma cópia com certificado de autenticidade. A represen
tação do “ primitivo” apenas consagra o processo de reflexividade que mantém
as sociedades modernas na sua fruição do M esmo. Não se trata mais de um jogo
de comparação entre estruturas de organização de diferentes sociedades, mas, na
verdade, de um procedimento de redução à equivalência do olhar voltado às cul
turas. Estamos numa posição antípoda do período em que os surrealistas procu
ravam na “arte primitiva” o que poderia excitar seu desejo de subversão. A busca
da dessemelhança provocadora sucede a conquista eterna da semelhança. Uma
vez que o Outro já é nós, o Outro nos confirma que somos exatamente como nós
mesmos. Nada virá mais perturbar essa circularidade que garante a reprodução
do M esmo. A inquietante estranheza se transformou em um verdadeiro clichê
da metodologia antropológica: o que é mais familiar em nossas maneiras de ser,
em nossos funcionamentos institucionais, deve nos parecer de repente estranho
a nós próprios a fim de que possamos em seguida usufruir dessa familiaridade,
como um espelho apaziguador de nós mesmos.
A relação de espelho, por intermédio da qual o homem ocidental faz do Outro
“ primitivo” a representação estranha de si próprio, prossegue com a consagração
de um “primitivismo” que não o deixou e que o protege, sem que ele saiba, dos
excessos de sua própria racionalização. O espelho pode ser ainda deformante,
mas essa alteração que ele tem a capacidade de produzir já é esperada, prevista,
nada tem de acidental. Devolvida ao estado de objeto cultural, exposta no museu,
a máscara (ou tantos outros objetos) não conserva, especificamente, seu poder
intrínseco de alteração, o que, em outras palavras, o professor Otto chamava de
“ numinoso” (o “outro” ). O olhar voltado para ele está predestinado a sofrer al
terações programadas, emoções no mínimo consentidas. O “primitivismo” não
mais nos protege do poder de destruição da civilização porque ele passou ao esta
do de objeto exibido. É preciso que, de alguma maneira, as figuras representativas
da origem dos homens e da contemporaneidade do “ primitivo” sejam conserva
das para assegurar a transmissão de todas as culturas, e mais ainda, a da espécie
humana. Esculturas e máscaras são cunhadas com o selo da singularidade cultu
ral, ao passo que, justamente, sua característica essencial era não possuí-la. E por
serem designadas como atemporais, tornam-se as promotoras dessa perenidade.
OS D I S T Ú R B I O S D A A T U A L I Z A Ç Ã O
A CR Í T I CA DA EST ÉT I CA U RBA N A
R E P R E S E N T A Ç A O S I M B Ó L I C A DAS C I D A D E S
A cidade excede a representação que cada pessoa faz dela. Ela se oferece e se retrai
segundo a maneira como é apreendida. Uma certa nostalgia parece nos fazer acre
ditar que a cidade não corresponde mais ao signo porque se teria tornado exces
sivamente percebida graças aos símbolos de sua monumentalidade exibida. Nos
centros históricos, os bairros restaurados e as fachadas rebocadas com suas velhas
insígnias evocam a cidade perdida, uma cidade mítica da qual não mais encontra
remos, olhando ao acaso, os poucos vestígios ainda escondidos, pois foram todos
recuperados. A limpeza dos monumentos, desses edifícios urbanos que represen
tam a história da cidade e sua inscrição no tempo, não faz senão consagrar o po
der da uniformização patrimonial. Contudo, a proliferação dos signos em uma
cidade permanece vertiginosa. Os signos se multiplicam e se fazem signos. Apesar
da obsessão da restauração, uma certa desordem visual persiste e convida o cida
dão a criar seus próprios modos de leitura da cidade. Como disse Jean-Luc Nancy,
“nós somos todos urbanistas sem emprego, todos temos urbanidades sem perfil”.1
No ritmo de nosso assombro, de nosso entusiasmo ou de nossa desaprovação,
construímos de forma imaginária uma cidade dentro da cidade, que temos a opor
tunidade de ver ou de morar nela. A cidade permite uma aventura da imaginação
como essa somente, na medida em que o que dela se exponha demonstre imedia
tamente ter capacidade de absorver o novo. Com as operações de urbanismo rea
lizadas, os projetos de arquitetura concretizados se transformam, após um tempo
relativamente curto, em expressões de uma urbanidade integrada. Esse poder de
assimilação, todas as cidades detêm, sendo ele seu próprio enigma.
Estamos de acordo que uma arquitetura ou uma obra de arte considerada
feia termina dando um certo sabor à cidade. O que é decretado publicamente
signo de feiúra, ao adquirir valor patrimonial, impõe-se algum tempo mais tar
de como um símbolo da cidade. Os gestores do urbano podem exercer suas es
colhas arbitrárias; sofrerão eventualmente uma chuva de reprovações coletivas.
M as, ao longo do tempo, têm todas as possibilidades de acabar vitoriosos, uma
vez que o fruto de suas decisões se integrará ao território da cidade como o signo
patrimonial de uma época. As maneiras de apreensão da cidade têm a estranha
faculdade de tirar proveito tanto do que satisfaz os gostos dos cidadãos quanto
do que suscita sua repulsa. A feiúra faz do olhar um refém. Não se trata de um
exercício coletivo de relativismo consensual, que consiste em achar que o que
agrada a alguns pode desagradar a outros. A feiúra, valendo por si mesma, passa
a constituir um prazer estético. Qualquer forma de poética da cidade recolhe nela
os dons de se renovar. Assim, a percepção sensível de uma cidade, em suas mais
diversas manifestações, assegura a legitimidade, a posteriori, de qualquer inter
venção plástica feita na cidade. E os olhares dos cidadãos, confortados pelos dos
fotógrafos, dos escritores, tiram proveito do fato da cidade parecer nada rejeitar.
M esmo que uma torre tenha sido destruída, ou que um monumento seja der
rubado, sua destruição seguida de sua ausência permanecerão na memória dos
citadinos. A cidade se nutre de tudo que serve de signo porque tudo é chamado
a funcionar como signo, de forma fugidia ou durável. Este sobrepeso de signos e
de suas potencialidades incomensuráveis passa a traçar as condições da aventura
da percepção cotidiana da cidade.
Os fotógrafos procuram na maioria mais das vezes, ao menos em nossa época,
fazer falar o que a cidade parece esconder. Bom número deles insistem nos “ não-
lugares”, nos territórios indefiníveis, continuam fascinados pelos “entre-dois-es-
paços”. Captam imagens parecidas com “montagens naturais”, que associam “ frag
mentos de realidade” a fim de provocar e manter uma sensibilidade própria das
aparições insólitas. Quanto aos escritores, não apenas fazem da cidade cenário de
uma ação, cenário tornado assimilável no ritmo de derramamentos metafóricos
que eles a apreendem tanto em sua fragmentação quanto nas manifestações de
sua totalidade, como uma atmosfera que se faz e se desfaz ao sabor de desloca
mentos ou de posições eliminadas. A cidade se faz objeto, mas não pára de perder
seu caráter objetal, uma vez que recua os limites de qualquer olhar, confundindo
a distinção tradicional entre o sujeito e o objeto.
N ada deixa supor, igualmente, que a cidade se desenvolve como uma exe
cução do pensamento. O processo de objetivação da cidade, necessário à ges
tão de seu futuro, implica um olhar distanciado, mas parece responder a um
conjunto de determinações preliminares que impõe, como seria de se esperar,
a maneira de refletir a cidade como um objeto. Um prefeito pode perfeita
mente 1er literatura ou filosofia que digam respeito à cidade, ver fotografias,
filmes policiais que ofereçam miríades de imagens da cidade: sua sensibilidade i n
telectual lhe será de grande utilidade quando tiver de tomar decisões em matéria
de urbanismo? Por um lado, a gestão urbana, quando pretende ser prospectiva,
protege-se sempre por trás de necessidades radicais que tornam incongruentes
ou deslocadas visões excessivamente poéticas da cidade; por outro, as formas de
apreensão sensível da cidade são relegadas a uma função bem específica, que é
de demonstrar que uma comunidade está em condições de “viver a cidade” tal
como ela se apresenta, tal como se torna. Os financiadores de obras artísticas ou
arquitetônicas podem sempre fazer crer que se inspiram em uma certa poesia da
cidade, mas estão mais preocupados em produzir uma imagem determinante
de sua cidade do que em responder a uma sensibilidade comum aos habitantes.
A representação política da soberania obtém uma demonstração sempre visível
de sua legitimidade através das metamorfoses da cidade.
As megalópoles se tornam freqüentemente territórios de contágio de signos.
Elas o conseguem principalmente por não terem centro histórico impondo
uma concentração de símbolos monumentais. Tóquio é o paraíso dos arquite-
tos, uma vez que os projetos mais heteróclitos puderam ser realizados lá. Para o
estrangeiro, a cidade de Tóquio oferece uma infinidade de signos e imagens cuja
relativa incompreensão estimula a percepção. O estrangeiro é obrigado, para não
se perder, a construir ele mesmo suas referências, a organizar sua própria leitura
da cidade, ao mesmo tempo experimentando um efeito constante de alteridade
radical. É curioso o poder de uma tal alteridade sobre o imaginário. Não se trata
mais daquela “ inquietante estranheza” de que falava Freud, mas de uma atração
inesperada entre signos inapreensíveis e as imagens mais subjetivas. Quanto mais
a cidade escapa à representação, mais ela provoca uma apropriação imaginária
do espaço. É preciso dizer também que a cidade japonesa tem a catástrofe natural
como horizonte de sua própria representação. O fato de viver permanentemen
te sobre territórios suscetíveis de sofrer terremotos violentos exacerba a relação
entre a memória e o esquecimento. Em todos os hotéis japoneses, nas fichas que
descrevem as condutas a seguir em caso de sinistro, a rubrica “ terremoto” está
presente. O que demonstra como ninguém jamais esquece que o solo pode desa
bar a seus pés a qualquer momento. A eventualidade da catástrofe está inscrita na
memória presente. M esmo que a aplicação de regras anti-sísmicas na construção
urbana dê uma representação pública de uma possível conjuração dos efeitos
desastrosos de um abalo sísmico, ela não provoca o esquecimento do risco sem
pre presente. A distinção usual das temporalidades entre o passado, o presente
e o futuro não tem razão de ser, uma vez que o ritmo da memória sustenta o da
catástrofe, provocando uma colisão temporal, o que faz com que qualquer ocul
tação, supostamente voluntária em uma época, perca o sentido. A cidade - e não
somente Tóquio - contém a catástrofe de sua representação.
Esse recorte infinito de toda a cidade por seus próprios signos, como se fosse
pelas metamorfoses de sua morfologia territorial, é a causa do elo entre o signo
e a imagem. O signo funciona como um sinal que provoca a irrupção da ima
gem. Ao longo da primeira fase do conflito na ex-Iugoslávia, quando o grafista
Antonio Galego produzia cartazes nos quais inscrevia o nome de Sarajevo, ele
estava desviando o sistema de signalética ao brincar com a guerra de símbolos.
Ele lembrava o nome de uma cidade gravado em todos os espíritos como se as
cidades, da mesma maneira que os mitos, estivessem destinadas a se pensar entre
si. Tratava-se do orgulho da cidade, sempre renascendo de suas cinzas. Nome
próprio de uma cidade, ao mesmo tempo indutor de uma constelação de ou
tras soberanias urbanas. Dizer que as cidades se pensam entre elas é afirmar o
quanto suas mais radicais singularidades perduram no jogo inconsciente de suas
substituições. Não se trata de um jogo de comparação, mas de superposição e
de condensação de imagens mnemónicas das cidades. Ao nos ensinar a viver a
simultaneidade temporal e espacial, a cidade oferece provavelmente a mais bela
experiência da soberania estética, uma vez que ela jamais obtém sua identidade
aparente dos efeitos do totalitarismo da representação. A proliferação de imagens
de cidades permanece inesgotável por nunca se sujeitar a uma ordem semântica
que lhe seria imposta por um sentido prévio. Na aurora do século XXI, quando a
gestão tecnocrática tenta infligir uma configuração cada vez mais racional à con
figuração arquitetônica urbana assim como às modalidades de organização das
atividades urbanas, nem por isso a apreensão intuitiva e sentimental da cidade
desaparece. O poder sentimental imposto pela cidade não tem paralelo com ne
nhum julgamento objetivo. A relação estética que nós mantemos com o mundo,
ou que o próprio mundo provoca, essa relação movimentada, sempre incerta,
tem como origem a experiência cotidiana da cidade. E nosso corpo ora se ins
creve no espaço público, ora joga com uma certa distância desta pluralidade de
pontos de vista. Pois é exatamente ele - o nosso corpo - que não pára de cons
truir anamorfoses na cidade, ao se dispor a suportar alguma perturbação em seus
hábitos de representação.
A C I D A D E , C O N S T E L A Ç Ã O DE I M A G E N S
Em sua célebre obra A cidade através da História, Lewis M umford mostra o quan
to a questão do ponto de vista parece determinante nas diferentes concepções
estéticas da cidade ao longo das grandes épocas, helenística, romana, barroca...
Contudo, se o historiador dispõe de numerosos elementos para demonstrar que
determinado ponto de vista predomina nessa ou naquela época, nas maneiras
de conceber e de ver a cidade, isso não impede sua interpretação retrospectiva de
excluir a arbitrariedade de sua posição. E, em vez de tomar essa ar bi tr ar i eda
de como um risco de um certo relativismo, parece-nos mais judicioso considerá-
la a origem contemporânea de uma multiplicidade de pontos de vista. A maneira
pela qual, no presente, olhamos a configuração de uma cidade supõe que a pr ó
pria idéia de ponto de vista é concebida como uma modalidade de olhar que já
seria fruto de uma intenção estética.
Nas pinturas do século XIII e do século XIV, a cidade da Idade M édia é
geralmente representada com suas muralhas verticais, como uma cidadela ergui
da em segundo plano em uma paisagem campestre. Nas pinturas de Patinir, a
cena religiosa aparece em primeiro plano, em meio à natureza, e ao fundo se
ergue o burgo medieval com suas muralhas, como se fosse uma figura de destino
antecipada da conquista urbana desafiando a própria natureza. Orgulhoso e enig
mático, o burgo medieval oferece uma representação do futuro, a da ascensão das
cidades. As cores azuis de Patinir destacam a serenidade do céu fazendo-a ligeira
mente desafiadora, e acentuam essa impressão de soberania urbana triunfante.
Como um objeto fechado em si mesmo, estranho e longínquo, a cidadela contém
>eus segredos, exibindo seu poder pela presença de torres elevadas. Podemos no
tar, em certas pinturas do final da Idade M édia, que a representação da cidade é
sempre concebida de um ponto de vista exterior. A cidade ocupa uma parte do
quadro como uma ilhota, em um canto mais ou menos protegido, mas especial
mente visível. Ela não é apresentada de seu interior. Sua figuração é feita sobretu
do a partir das muralhas e das torres mais altas do que elas. A cidade forma um
todo pela apresentação de seu envoltório e pelo labirinto interior constituído por
um dédalo de ruelas e por uma disposição pouco ordenada de habitações, perma
necendo ao abrigo do olhar. A cidadela medieval ergue-se como uma clausura
pontual no horizonte da paisagem. “ Não nos esquecemos de um antigo costume
que reaparece na Idade M édia: a utilização do muro para passeios recreativos
no verão”.2 Os habitantes não vêem sua cidade, eles vêem, a partir da sua cidade,
a paisagem do campo. O ponto de vista é uma alternativa que suprime a visão
interna: o olhar se dirige da muralha para o campo ou a muralha se apresenta à
visão como o recinto impenetrável da cidade, a partir do campo. A configuração
interna da cidade só pode ser apreendida como um todo de maneira abstrata, a
partir de sua própria invisibilidade. A adoção de um ponto de vista é sempre o
ato de reconhecimento de uma cegueira. Adotar um ponto de vista é uma manei
ra de constituir o ponto cego da percepção.
Com o período do Renascimento e do Barroco, as muralhas verticais caem
e a cidade se apresenta como um espaço geométrico. “ O estudo da perspectiva
levava da mesma forma à eliminação sistemática de tudo que pudesse atrapalhar
o olhar e impedi-lo de alcançar a linha do horizonte”,3escreveu Lewis M umford,
mostrando o quanto o Barroco une duas tendências contraditórias: uma se ma
nifestando através da extravagância e a outra através do “espírito metódico da
geometria”. “As novas concepções estéticas encontraram sua expressão no traça
do das grandiosas avenidas, ou apenas um obelisco, um arco do triunfo ou uma
fachada de edifício interrompem as linhas paralelas das calçadas e das cornijas.” 4
A extravagância do Barroco é ainda mais manifesta, chegando a ser detectada a
partir do espaço geométrico. O olhar é conduzido pela perspectivação, seguindo
por assim dizer os caminhos que lhe são traçados e, simultaneamente, permane
cendo suscetível de ser permanentemente atraído por detalhes, até mesmo pela
acumulação desses detalhes. Para alguns historiadores, o espaço geométrico urba
no corresponde à instalação de uma ordem militarizada, sendo as artérias princi
pais um meio privilegiado de fazer circular as tropas, ou servindo para grandes
paradas. Os prédios com fachadas padronizadas são então comparáveis às fileiras
de soldados em estado de prontidão. O ponto de vista se torna o do “olho do po
der” : “ as praças reais também têm como função dar destaque ao rei como chefe
dos exércitos: no centro delas, uma estátua o representa invariavelmente a cavalo,
como se ele dirigisse tropas ou desfilasse diante delas”.5Visão de conjunto, ponto
de vista supremo. O espaço geométrico ao qual se atribui uma finalidade militar,
torna possível a estética urbana da soberania. O poder absoluto se prolonga na
configuração espacial de uma ordem dominada que, como a imagem devolvida
pelo espelho, se torna a inscrição territorial de sua representação especular.
Uma certa uniformidade de pontos de vista pode vir da restauração, a mes
ma que anula a “espessura do tempo”. O monumento modificado ao longo de
períodos sucessivos é mais do que o reflexo da história da cidade, sua história se
compõe de fragmentos de relato, relativos à atualidade de sua própria crónica.
Na ocasião em que John Ruskin se insurgiu contra a restauração dos monumen
tos, ele não o fez em nome da preservação da autenticidade inicial, mas porque
considerava que o princípio da restauração era, em si, um embuste. A restauração
pode ser feita em nome do embelezamento das cidades, em nome da conservação
de construções que correm o risco de se transformar em ruínas, em nome ainda
de uma vontade de manter a identidade original do lugar, preservando-a por in
termédio de novas técnicas.
O conjunto dessas razões em nada muda o fato da restauração ser ela mesma
um ato de destruição, por criar uma unidade fictícia da cidade. Segundo John
Ruskin, “ o verdadeiro significado da palavra restauração não é compreendido
nem pelo público nem por aqueles a quem compete a manutenção de nossos m o
numentos públicos. Significa a mais completa destruição que um edifício pode
sofrer; destruição da qual não se poderá salvar o mínimo fragmento; destruição
acompanhada de uma falsa descrição do monumento destruído. Não vamos nos
iludir sobre esta questão tão importante: é impossível restaurar o que um dia foi
grande ou belo em arquitetura, tão impossível quanto ressuscitar os mortos”.6
A restauração inverte o sentido do movimento intrínseco do destino de qualquer
monumento que sobrevive a partir de sua própria transformação ao longo do
tempo. A fidelidade à sua autenticidade original é uma ilusão puramente mora
lista. Trata-se de fazer crer que restaurar uma construção é conservá-la tal como
era antes, quando, na verdade, o que se está fazendo é a operação contrária, isto
é, desnaturá-la ao idealizar sua imutabilidade temporal. Ao reconstruir seus tem
plos, perfeitamente iguais, a cada vinte ou trinta anos, os japoneses são os mais
respeitosos do valor atribuído à autenticidade original. E se “ congelamos” um
monumento, tentando mantê-lo no estado em que se encontra, interrompendo
tanto quanto possível o prosseguimento eventual de sua degradação, o que es
tamos conservando na verdade nada mais é que um conjunto que sofreu uma
restauração precedente. Sendo um processo sem fim, a restauração não conserva
senão o que já foi restaurado.
O defeito da restauração é produzir uma equivalência estética da cidade, de
sua história, de seus estratos orgânicos, e induzir uma convergência de olhares
na direção de um único ponto de vista indiferenciado. I ncapaz de sugerir uma
distinção de signos arquitetônicos representativos de uma ou de outra época, a
restauração parece restabelecer a ordem nos vestígios do passado, tornando-os
mais visíveis, mais límpidos do que nunca. Ela impõe uma representação comum
da cidade como beleza suprema. M as se a cidade exprime de uma maneira implí
cita uma disposição do sublime, só consegue fazê-lo se ultrapassar, nas visões que
provoca, os efeitos dos artifícios simbólicos de sua eminência. Para o cidadão, o
sublime urbano é parasita, está ligado ao pitoresco, ao que advém ao olhar por
acidente. De acordo com John Ruskin, “essa característica, cuja busca exagerada
em geral consideramos aviltante para a arte, é o sublime parasita, ou seja, um su
blime escravo dos acidentes, ou das características menos essenciais dos objetos
a que pertence”.7 O pitoresco se desenvolve como parasita do sublime. A própria
idéia da beleza de uma cidade se sustenta no acidente pitoresco que faz da estra
nheza, da incongruência, não só um sentimento que acompanha a percepção,
como também a característica do sublime parasita. O que John Ruskin nos incita
a pensar é sobre a maneira pela qual o pitoresco, na qualidade de parasita do subli
me, tira proveito da própria monumentalidade. Destinado a representar a sobera
nia urbana, o monumento majestoso é confrontado com a emergência de signos
pitorescos, tanto através de jogos de sombra e luz quanto de grafites, ou outros
incidentes que parodiam o sublime sem negá-lo. Assim, o pitoresco não é o fruto
de uma jocosidade do olhar, permanecendo independente do objeto, que não é
por ele qualificado, e do modo de percepção, que não é por ele orientado. Ele é,
essencialmente, o não convencional, o que faz surgir o sublime em sua expressão
parasita. Seu aspecto acidental, incongruente, ameaça qualquer produção do su
blime, tornada excessivamente voluntária apenas pela conservação patrimonial
e monumental. O mesmo que dizer que a negação do pitoresco (como parasita
do sublime) é o cavalo de batalha de uma gestão urbana preocupada em demasia
com a unificação patrimonial das cidades.
A cidade não pára de se expor, o que não é idêntico ao fato de que se pode ex
pô-la. Sua morfologia global é sentida de maneira orgânica, antes de qualquer
construção da representação, pelo imediatismo de nossos modos de apreensão.
Ao contrário, a exposição da cidade, as maneiras de pensá-la, de representá-la, se
cristalizam em torno da imagem. Somos forçados a olhá-la como imagem de si
mesma, a vê-la como exposição. A exposição M utations, realizada em Bordeaux
em 2000-2001, mostrou esse ritmo bastante desenfreado que pode ser observado
na cidade e que produz, logo de início, estranhos efeitos de semelhança entre
as megalópoles cujas culturas são, contudo, bem distintas. Apreendidas em ima
gens, apresentadas em telas gigantes, as grandes cidades do mundo se parecem,
perdem sua singularidade. Esta foi a intenção de Rem Koolhaas, principal ideali-
zador da exposição. A cidade como mundo se torna a “ cidade-mundo”. Por que
as megalópoles apresentadas em imagens delas mesmas se parecem com tanta
acuidade? Além das semelhanças relacionadas aos modos de construção, aos efei
tos dos mesmos planos de urbanismo, impõe-se ainda uma semelhança do olhar,
como se a cidade-mundo só se oferecesse à vista através do ritmo desenfreado
do movimento de pessoas e veículos e da contaminação das imagens. Quem ob
serva tais imagens com uma certa assiduidade se vê forçado a olhá-las segundo a
perspectiva de uma estética da velocidade de circulação. No espaço da exposição
M utations, as únicas cadeiras em que era permitido sentar-se por algum tempo
estavam colocadas diante da tela na qual se podiam ver as imagens da cidade afri
cana de Lagos. O filme tinha sido rodado de dentro da locomotiva de um trem a
vapor que andava lentamente. A descoberta do espaço urbano, de cada lado dos
trilhos, se fazia no ritmo do próprio trem. A sucessão das imagens em velocida
de baixa devia provavelmente sugerir as cadências cotidianas da própria cidade.
O que se pretende, na exibição da semelhança urbana, é fazer desaparecer qual
quer “espessura do tempo”, que é também anulada pela velocidade de circulação
das imagens. O tempo foi achatado, e seu imediatismo constante assegurou um
efeito permanente de equivalência visual.
A predominância contemporânea do espaço museográfico parece freqüente-
mente orientar o olhar, conferindo-lhe um enquadramento permanente de repre
sentação, impondo-lhe também uma concepção do tempo. Toda uma controvér
sia nasceu da recusa de certos artistas a continuar expondo nos museus. Escolher
locais da cidade para fazer deles espaços públicos de exposição de obras em nada
muda a mentalidade “de museu”. M esmo que nos insurjamos contra a extensão
da conservação patrimonial, que termina fazendo da cidade um museu, o sim
ples fato de expor, quer se queira ou não, induz o apelo ao espírito de museu.
Algumas vezes, andando pelos corredores de um museu, somos tentados a
olhar para a cidade do lado de fora com a impressão confusa de estarmos fora do
alinhamento, e ao mesmo tempo estarmos em outro lugar, tornando nosso olhar
voltado para a cidade quase irreal, como se o interior do museu não nos levasse
ao coração da cidade, mas, em vez disso, nos oferecesse a estranha certeza de seu
distanciamento. O museu faz com que imaginemos que a cidade está ao lado, que
se entregará a nós somente quando estivermos de novo fora desses locais consa
grados às artes e à cultura. O silêncio reinante dentro dele consagra essa separa
ção, convidando ao recolhimento. E há uma tentação de se deixar trancar, depois
da hora regulamentar de encerramento das visitas, tentação que ocorre sempre,
mesmo que poucos aventureiros tenham passado ao ato... Algumas pessoas che
gam até a imaginar que poderiam morrer docemente diante do quadro que tanto
amaram ao longo da vida inteira. Outras, ao contrário, sentem uma embriaguez
quando se vêem no meio de uma multidão tão densa que não conseguem ver na
da, sobretudo se são de baixa estatura. Essas pessoas sentem prazer em estar na
multidão que as vai levando no ritmo de seu escoamento, da entrada até a saída.
É a própria cidade que entra no museu. Essa estética da massa é experimentada
em meio a vertigens de uma subjetividade sempre renovada de maneira ilusória.
O breve olhar na direção de um quadro divisado por entre cabeças amontoadas:
um olhar que encontra prazer na aparição incongruente de uma obra, na simples
descoberta acidental do olhar.
Tomemos o exemplo do visitante que vai até o museu para ver o que já conhe
ce. Encontra-se em um estado de espírito desejoso de encontrar a confirmação
satisfatória de seus conhecimentos. Ele pode também, como qualquer pessoa, ter
o prazer de rever o que já viu, prazer que não está em vias de se esgotar se conside
rarmos que a vitalidade do desejo tem a ver com a repetição. A procura de uma
confirmação pode se tornar também verificação, como se o objeto estético que
ele voltou para ver fosse para ele um elemento de prova. Esse estado de espírito é
freqüentemente reforçado pelo prazer que o visitante terá em explicar aos amigos
seu próprio saber a respeito de objetos de arte. A sensação de júbilo que experi
mentou na ocasião do primeiro encontro com o objeto não é do mesmo tipo, ela
oscilou em sua memória. M esmo que não haja nada de mórbido no prazer da
repetição, é importante constatar que se trata de um procedimento de revisitação
que evoca uma representação da morte. Assim, os freqüentadores assíduos dos
museus esperam sempre identificar o que não viram realmente, a partir do fundo
das memórias de suas percepções habituais. Eles agem como os colecionadores
que se vêem na expectativa de descobrir a peça que faltava em sua coleção. Eles
se defrontam com a perda possível de seu desejo. E é a eventualidade dessa perda
que os incita a retornar.
E o que dizer então a respeito da indiferença que parece caracterizar o modo
de percepção dos visitantes que vêm “ver por ver” ou “ ver para contar aos outros
que viram” ? Poderíamos acreditar que estes últimos não estão se confrontando
mais com a perda possível de seu desejo, eles olham o que vêem sem realmente se
deixar captar, seguindo o movimento da multidão. O travelling do olhar morto.
E compreender mal o extraordinário potencial de incongruência que toda forma
de indiferença contém. Trata-se da estranha ausência de singularidade do olhar
bobo. M odalidade de passeio do olho tão propícia à deambulação pelas cidades.
Esse olhar bobo que, antes de chegar até lá, procura captar muitas coisas em seus
múltiplos campos de visão, e não procura mais nada; e por não procurar mais
nada, se deixa levar indiferentemente por qualquer coisa sem demonstrar o mais
ínfimo interesse. Olhar que anula a própria idéia de qualquer experiência esté
tica. Olhar que de repente adotamos quando, sem nada de especial a fazer, nos
entregamos ao fenómeno estranho de ver sem ver, de olhar sem saber.
O olhar indiferenciado lançado sobre as coisas da cidade nos coloca em um
estranho estado de recepção, um estado de disponibilidade que permanece fora
do tempo. Contrariamente, os símbolos representados pelas obras, pelos monu
mentos, estão ali para obrigar nosso olhar a captá-los. Eles ordenam o campo de
visão, impõem objetivos a qualquer deambulação, oferecem-se como rumos de visi
ta. O que, então, induz a expectativa indiferente (ou o olhar bobo) é o nascimen
to abrupto de um olhar suscetível de ser captado de maneira inesperada, dentro
do tempo e do espaço ordenados da cidade. Em um museu, a mesma labilidade
indiferente do olhar é capaz de fazer nascer o acontecimento de um instante de
fascinação.
O museu transformado em obra arquitetônica, até mesmo artística, impõe
sua própria soberania estética, da mesma maneira que um monumento. É o caso
do museu Guggenheim, construído por Frank Gehry em Bilbao. As metáforas
utilizadas para designar o que ele representa são elogiosas: “ Esse Leviatã de me
tal branco oferece um espetáculo surpreendente” ou ainda “ siderada, a cidade
parece contemplar esse silencioso túmulo”. Como se fosse uma obra, com sua pre
sença soberana, o museu se apresenta como uma maneira única de ver a cidade
pensar-se a si mesma. “A cidade que se desenvolvia aos trancos e barrancos, que
se espalhava entre as colinas sem prestar atenção nem no seu rio nem na sua geo
grafia, encontra de repente um espetáculo para onde voltar os olhos, onde fixar o
olhar.” 35 Uma tal consagração do museu como obra de arte arquitetônica sugere
a evidência de uma personificação da cidade. É graças a esse género de interven
ção magistral que a cidade se torna comparável a uma pessoa que, é claro, nada
mais é do que o produto dos comentários admirativos dos próprios arquitetos.
O tecido urbano, caótico, teria repentinamente tomado uma forma de conjunto
e adquirido sentido graças à intervenção arquitetônica.
O museu construído por um star da arquitetura se torna desde então uma
peça essencial na revitalização do espaço urbano. A singularidade arquitetônica
da obra absorve todas as potencialidades do espaço circundante; tudo que no
espaço urbano era apenas resultado de uma ausência de intenção determinante,
descobre a possibilidade de adquirir um sentido graças ao poder de fagocitose
exercido no meio ambiente pela obra arquitetônica. Poder-se-ia imaginar que
uma cidade pudesse ser reestruturada a partir de seu museu, que se tornaria uma
máquina de fazer obras de arte em torno dela. Este culto à obra engendrando
obra, até a saturação, parece estranho ao olhar devoto, ao olhar atingido pela per
plexidade diante de uma magnificência tal que parece de fato transcender o valor
que se imaginaria dever ser atribuído à própria obra de arte. Essa revitalização es
tética do espaço urbano, a partir do museu como obra arquitetônica erigida para
os tempos futuros, parece sempre demonstrar o quanto a mutação de uma pai sa
gem urbana depende da maneira no mínimo ostentatória de como a cidade pode
fazer obra de si mesma, graças à intervenção demiúrgica de arquitetos e artistas.
A recomposição da paisagem urbana
A cidade é um mi l l f e ui l l e i0
Não se pode falar de uma estética da vida comum sem fazer referência ao ponto
de vista que permite afirmá-la. A estética não é fruto de uma reivindicação social
ou cultural. O reconhecimento de suas manifestações concretas envolve o obser
vador, suas maneiras de ver e interpretar. O arranjo dos locais, a decoração dos
espaços, as relações com os objetos podem ser reveladores da vontade coletiva de
organização estética do espaço ou do tempo. M as em que medida se pode falar
em uma estética das “coesões sociais” ? O fato de a arte poder ser compreendida
como uma arte de modo de vida é fruto de uma crença cuja idealização parece
satisfazer tanto ao conjunto dos artistas quanto aos gestores do urbano. Uma arte
de modo de vida, tida como execução das próprias finalidades da criação artística,
permanece demonstrativa, não podendo existir por si mesma. A arte que se tor
na obra de modo de vida está destinada a se expor como qualquer obra de arte?
Tomemos, por exemplo, a experiência singular de M ari-M ira, realizada por um
conjunto de artistas de M arselha e das Ilhas M aurício, que mostra como são ela
boradas as possibilidades de transformar a vida cotidiana em uma arte de modo
de viver. Tal experiência é executada como uma “ exposição viva” cujos múltiplos
aspectos se renovam em contato com o público. M ari-M ira foi apresentada no
verão de 1999 em Paris, em um terreno situado na borda do canal de Ourcq. Em
M ari-M ira, o mais importante é a fabricação do luxo com objetos de pouco valor.
O objetivo é criar um quadro da vida evolutiva oposto à padronização. Assim,
os copos confeccionados com garrafas de plástico tomam a forma de copos com
pé e largas bordas decoradas com flores pintadas. O totó adota uma forma ligei
ramente curva, no oco de um tronco de árvore seca colocado sobre pés de cano
reaproveitado, e os jogadores são feitos com garfos velhos ligeiramente torcidos
e fixados sobre eixos. Os balanços para crianças são feitos de latas de lixo corta
das ao meio, com uma boa almofada colocada no interior. Podemos dizer que o
conjunto de objetos fabricados revela um gosto estético refinado. Fundamental
também é a manutenção de uma relação sensível com o contexto social, urbano
e arquitetónico. Trata-se de criar um meio autónomo que funcione como signo
de seu meio ambiente. As construções são ligadas à prática da pesca. A água está
sempre ao lado, lembrando que o alimento nunca se esgotará, que haverá sempre
o que comer, mesmo que não seja muita coisa. O tempo é o tempo indefinido da
pesca, um tempo que não é contado, um tempo que permite o devaneio. Tal fic
ção doméstica inspira-se na “vida na cabana”. A cabana dos pescadores é um ver
dadeiro mito. É o local de uma outra vida, de uma vida afastada dos tormentos
da cidade, podendo estar ao mesmo tempo dentro da própria cidade. Uma vida
de liberdade cotidiana, uma arte de viver, uma arte de inventar a vida em meio a
uma atmosfera contínua de “ quase nada”.
Ao longo de uma exposição, Les magiciens de la terre (Os mágicos da terra),
organizada no Beaubourg (Centro Georges Pompidou) e na Grande halle de La
Villette, bom número de criadores do mundo inteiro, pesquisados pelos curado
res de exposição nos mais recônditos locais, apresentaram o que pode ser consi
derado obra de grande valor, no mesmo nível das obras de artistas renomados
mundialmente. Ora, essas criações não haviam sido pensadas, na ocasião em que
foram confeccionadas, como obras de arte, só passaram a sê-lo a partir do m o
mento em que foram integradas ao mercado da arte. É sempre a mesma relação
mantida pela cultura ocidental com os objetos primitivos: sua valorização como
obra de arte depende exclusivamente dos procedimentos de especulação. A expe
riência de M ari-M ira rompe com o mito da “obra primitiva” como procedimen
to especulativo de valorização cultural e financeira? Não haveria nenhum sentido
em vender este ou aquele objeto confeccionado a partir de resíduos coletados.
Nessa experiência, o “ fazer” supera o prêt-à-porter artístico: os próprios objetos
só continuam a fazer sentido na transmissão de seu valor projetivo. O que está
em jogo é a exibição de valores estéticos desconsiderados pela consagração insti
tucional da arte. Não se trata mais de se tornar uma referência, pois o princípio
de valorização desaparece em um processo de criação que vale por si mesmo.
M ari-M ira se apresenta como um “universo transportável e evolutivo”. O ar
tista é um inventor. O campo de experiência de sua criação é o da vida de todos
os dias. Nenhuma pretensão artística foi cogitada no momento da execução; foi o
próprio ritmo da invenção que criou o espaço, moldou-o, e tornou harmoniosas
as maneiras de viver. Um modo de vida não é fruto de uma adaptação a um espaço
já constituído, ele ganha forma ao mesmo tempo que o espaço propriamente dito.
É o “ quase nada” que permite tal dinâmica, porque o “acontecimento é a invenção
estética da própria vida”. “ O evolutivo” é concebido a partir do “ quase nada”, como
uma multiplicação dos acontecimentos da vida cotidiana. A contingência própria
da existência cotidiana não é mais um obstáculo à organização da vida, ela se tor
na um princípio fundador, impõe-se como uma “ razão de ser”. A arte de viver,
ao se tornar simplesmente arte, aniquila a distinção entre o ator e o espectador.
O inventor, o criador e aquele que experimenta suas criações constituem o mesmo
indivíduo. Tal idealismo conduz à concepção de um mundo que não vive mais de
seu espetáculo, mas que transforma o efeito espetacular em modo de vida, cada
detalhe reforçando o prazer coletivo e individual dessa maneira de ser.
Viver e se ver viver não são mais objeto de uma distinção, uma vez que um e
outro entram em sinergia.
Criar obra a cada instante, para melhorar a vida cotidiana, como se toda fina
lidade existencial encontrasse aí seu caminho natural. A garantia do prazer, sua
confirmação retrospectiva e prospectiva, deve-se à permanência do olhar voltado
para a evolução do próprio modo de vida, que não virá jamais negar o que está
sendo experimentado. Prosseguindo nesse perpétuo contentamento, o resíduo, o
que sobra da sociedade de consumo, é fonte de uma satisfação que não mais se
confronta com a falta. É o princípio de um anticonsumo idealizado pelo uso infi
nito dos restos. O residual sem começo nem fim, o residual tomado a si mesmo
como representação de uma felicidade insuspeitada aos olhos dos mais ricos e
dos obcecados pelo consumo. O residual oferece a representação sempre possível
do suntuoso. Se é possível construir um espaço suntuoso com o “ quase-nada”,
isto não seria o signo da negação do desperdício? Que o útil possa nascer do inú
til, ou então ainda do que está condenado ao refugo: eis o que virá trazer a prova
pública de que se pode viver melhor com pouco, contanto que se seja hábil e que
se tenha uma preocupação estética de vida.
M ari-M ira corre o risco de passar por um modelo de arte social, em um con
texto político no qual a própria coesão social tende a ser apresentada como uma
finalidade estética da vida cotidiana na cidade, mesmo se essa experiência não
indica vocação social a priori. A cultura exibida como encenação ativa de uma
estética da vida cotidiana teria como missão restituir a confiança aos que não têm
muita coisa, fazendo-os crer que podem (talvez melhor do que os outros) decidir
sobre a arte de viver cotidiana. O que está sendo proposto nesse caso é uma estra
nha reviravolta no estado de miséria: é a partir do “ menos” que se pode inventar
o “ mais”. O pensamento de uma “estética da vida cotidiana” viria daqueles que
dispõem de menos bens. E ela seria elaborada como um programa de inserção na
tural na sociedade, graças ao reconhecimento público de uma certa singularida
de artística que se torna desde logo um princípio fundamental da regularização
da violência urbana. Essa perspectiva apresenta uma importante vantagem para
os poderes públicos, sejam de esquerda ou de direita: o reconhecimento da quali
dade de vida dos mais desvalidos funciona como um fator de coesão social.
A vida social pode ela mesma ser objeto de uma estética? As práticas culturais
que consistem em tornar as memórias dos habitantes mais vivas e mais atuais
graças ao vídeo, à fotografia, à escrita também têm por finalidade reavivar uma
comunidade a partir da história individual e familiar? Caso se trate de uma com
posição musical, de uma coreografia ou de uma performance, pode-se achar que
“ainda é arte”, mas se a questão é “ a fala dos habitantes” ou uma encenação com
fotografias da “vida na cidade”, haverá hesitação em se dizer que “ é arte”. Uma
vez que a ambigiiidade está sempre presente nesta distinção, os financiadores
das cidades escolhem o conjunto das possibilidades propostas para dar a apa
rência de uma vida cultural e artística em suas cidades. Se a obra artística não é
suficiente para criar os laços de comunidade, torna-se evidente que as práticas
culturais são necessárias para manter a representação constante de uma certa
dinâmica urbana. Seja qual for sua prática, os “ artistas residentes” se tornam os
promotores dessa dinâmica, pois deles se espera que captem, com suas maneiras
de fazer e dizer, o que está adormecido na cidade, o que está presente de maneira
potencial e que precisa ser chamado a se revelar publicamente.
O artista que atua em uma cidade age como um trabalhador social de um géne
ro particular, uma vez que seu objetivo é encorajar potencialidades de criação em
adultos ou em crianças. Ele não impõe sua obra, ele suscita as possibilidades da
criação, considerando-as meios de viver em comunidade, ao mesmo tempo preser
vando a singularidade de cada um. A relação com a cidade é dupla: por um lado,
deve-se à maneira pela qual a “vida na cidade” surge como fonte do imaginário e,
por outro, sustenta-se nos fragmentos de comunidade constituídos graças a tais ex
perimentações estéticas. A ideologia que prevalece não encontra suas motivações
apenas no apelo à reapropriação da cidade por seus habitantes, jovens ou mais
velhos, mas sobretudo na reconquista de uma coesão social que descobre por si
mesma sua dimensão estética. A reaproximação entre a arte e a vida, mesmo que
talvez não tenha nada de verdadeiramente espontâneo, continua sendo o objetivo
implícito de uma dinâmica cultural que põe em primeiro plano o estímulo às pos
sibilidades de criação. Ninguém irá contestar o bom fundamento de tal pretensão,
uma vez que se trata da construção de uma alternativa cheia de esperanças contra
as ameaças de violência e destruição que pesam permanentemente sobre qualquer
cidade. Os excessos de demagogia que podem se manifestar se tornam bastante
secundários, se cotejados com os efeitos benéficos advindos da restituição da har
monia possível da vida citadina. Aos poderes públicos basta escolher diversos regis
tros de experimentação e de exibição: trabalhar a longo prazo graças a atividades
que reforcem a coesão social, promover imagens fortes graças à implantação de
obras artísticas, cuidar do património em sua diversidade, criar um festival anual...
Nenhuma escolha irá contradizer a outra. Quanto mais as escolhas se acumularem,
mas a cidade oferecerá a imagem de sua própria dinâmica cultural.
É difícil para artistas que por vezes sequer reivindicam status de artista rejei
tar uma diretriz social, dado que seu próprio trabalho se torna o objeto e a finali
dade. A atribuição de papel de terapeuta do social pode impedi-los de expressar o
que estão aptos a imaginar como alternativa utópica. Em vista disso, deve-se con
cluir que o trabalho artístico pode transcender toda gestão terapêutica do social?
Consideremos duas atitudes diferentes: o fotógrafo que tira fotos da realidade
social, e o que tem uma longa experiência de convívio, em uma região determina
da, com as pessoas de quem tira fotos. É óbvio que diremos que o primeiro age
como um repórter, que capta “ no vôo” as provas dessa realidade social, enquanto
que o segundo, como os antigos etnólogos, vive junto daqueles de quem tira as
fotos, passando às vezes vários anos na mesma região. Suas atitudes parecem di
ferir em referência ao tempo, um opera na instantaneidade, o outro na duração.
Pretender captar a realidade social é partir do princípio de que a “ realidade em
imagem” é ela própria “a realidade vivida”. O filme e a fotografia tanto servem de
prova quanto idealizam a realidade apresentada, ao pretenderem revelar uma cer
ta filosofia da existência. O mesmo acontece, pois, com fotografias e vídeos que
pretendem captar a vida cotidiana dos miseráveis e sem-tetos da cidade. As frases
gravadas durante uma montagem de vídeo são sempre frases escolhidas para de
monstrar publicamente como o fato de morar na rua, ser desfavorecido, incita a
pensar no mundo, na vida e nos outros de uma maneira mais exacerbada. E es
sa demonstração de “pensamento existencial” está sempre sendo valorizada pela
montagem cinematográfica, de uma maneira que mascara com dificuldade uma
demagogia astuta - dando a entender que quanto mais se é pobre, mais se pensa
na vida com uma acuidade intelectual excepcional. No decorrer de uma exibição
de vídeo, um sem-teto de rosto trágico, mas sorridente, é instado a pronunciar
uma mensagem para o mundo. Esta fala dirigida a uma platéia inexistente adqui
re um tom solene, pois quem a profere não está voltado para ninguém ao expor
seu pensamento mais profundo ou mais futil. O sem-teto hesita, seu olhar se tor
na desvairado, seus lábios se mexem ligeiramente. Termina dizendo que não tem
nada a dizer. O que, é claro, para culminar toda a demagogia, transmite a idéia
de que o pensamento mais elevado ainda é o silêncio absoluto. Para além de toda
a reflexão possível, não há mais nada. Tal é a suprema filosofia do sem-teto, que,
deste modo, parece pensar melhor do que os outros, já que pensa não pensar.
Assim se consuma a reprodução estética do mais miserável.
O que advém como singularidade “qualquer” cria seu próprio efeito de real.
Sejamos claros: nenhuma obra de arte, nenhuma experimentação artística, nenhu
ma experimentação cultural permite afirmar o que é a singularidade “qualquer”.
Esta não é uma nova categoria de classificação ou de avaliação. Ela é de fato a ne
gação de toda categoria a priori. Se ela cria seu próprio efeito de real, de maneira
casual, o faz na medida em que acaba sendo capaz de induzir uma apreensão. Ela
está, pois, fundamentalmente ligada aos movimentos de percepção, restabelecen
do a distinção entre o espectador e o ator, e ao mesmo tempo jamais se incluindo
no âmbito da produção espetacular da exibição cultural contemporânea, mais
interessada em abolir a distância entre o ator e o espectador. Se uma experimen
tação artística pode ser a expressão de uma singularidade “ qualquer”, é indepen
dentemente de qualquer vontade determinada pelo sentido que lhe atribuem.
M as como é possível que um efeito de real seja criado em um contexto no qual o
quadro institucional da cultura configura ao mesmo tempo a relação de realida
de entre a arte e o social e os modelos semânticos da interpretação estética?
A hipótese da singularidade “ qualquer” permite unir a disponibilidade curio
sa da percepção aos efeitos incongruentes de real provocados pela experimen
tação artística. Esta união é encoberta pelas modalidades de legitimação, pelas
finalidades sociais e cidadãs atribuídas à criação artística. A obsessão pela com-
partilhação com o público termina instaurando estruturas de troca que cegam a
irrupção do real. O estímulo à criação em ateliês institucionalmente concebidos
com esse fim se parece com os cuidados paliativos no acompanhamento de m o
ribundos: o objetivo é fazer renascer o gosto de criar sobre um fundo de degene
ração social mantida como cenário obrigatório. Os que são chamados de “atores
da cultura” talvez façam emergir essas possibilidades de criação ou de percepção,
mas eles se dedicam a inscrevê-las em dispositivos de sentido que legitimam so
mente suas funções.
Retorno à cidade, cidade que é a fonte das singularidades “quaisquer”, porque
continua sendo o grande teatro dos efeitos de real que ela provoca mesmo inde
pendentemente de qualquer intervenção artística. Segundo Jacques Rancière,49
“a revolução estética é antes de mais nada a glória do qualquer’”. Contudo, o
gosto do “qualquer” oscila entre uma estetização generalizada e a moda contem
porânea do amor comunitário pelo banal, repousando sobre o princípio de que
“tudo tem um valor, basta reconhecê-lo”. A distinção é então restabelecida em
nome da valorização do “ qualquer”. As histórias individuais reconstituídas pelos
“artistas da vizinhança”, pelos que praticam coesão social no dia-a-dia, são fruto
dessa valorização democrática do “ qualquer”. Tomado por signo de uma revolu
ção política e estética, o “ qualquer”, valorizado socialmente como resultado da
expressão artística, restabelece uma figura nomeável da singularidade. Tão logo
objetivado, o “qualquer” se torna o contrário do que era, se torna um signo distin
tivo. A hipótese da singularidade “qualquer” não adquire forma e conteúdo senão
no momento em que o confronto com a realidade - com essa realidade tornada
objetiva e conceitualizada por nossos modelos de representação - produz um
efeito de real que funciona como ficção. O princípio de reflexividade fica abalado
quando a ficção cria, por sua vez, seu próprio efeito de real. A todo momento a
cidade torna possíveis, por sua faculdade de absorção do que aparece, do que se
inscreve no espaço, efeitos de real cujo poder ficcional se afasta de suas origens
individuais e distintivas. Território sem nome da contingência dos instantes da
criação, a cidade continua sendo a epifania das singularidades “quaisquer”. E as
sim ela consegue fazer uma obra de arte de si mesma.
A C L O N A G E M DAS C I D A D E S
1 J.-L. Nancy, La ville au loin. Paris: M ille et Une Nuits, 1999. p. 12.
2 Lewis M umford, A cidade através da História. São Paulo: M artins Fontes, 1982.
3 Lewis M umford, id., ib.
4 Lewis M umford, id., ib.
5 Paul Blanquart, Une histoire de la ville. Paris: La Découverte, 1997.
6 John Ruskin, Les sept lampes de Yarchitecture. Paris: Denoël, 1987. p. 204.
7 John Ruskin, id., ib., p. 205.
8 Julien Gracq, La forme d’une ville. Paris: José Corti, 1988. p. 9.
9 Julien Gracq, id., ib., p. 106.
10Julien Gracq, id., ib., p. 182.
11 Petite Ceinture: linha férrea parisiense desativada desde 1934, invadida pelo
mato e eventualmente visitada como “viagem no tempo”. (N. T.)
12Jean Rolin, Zones. Paris: Gallimard, 1993. p. 69.
13 Mike Davis, City ofQuatz, Paris: La Découverte, 2000. p. 19.
14Lewis M umford, op. cit.
15 Georg Simmel, Rome, Florence, Venise. Paris: Allia, 1998. p. 14.
16 Georg Simmel, id., ib., p. 13.
17Henri M aldiney, em seu livro L’Art, l’éclair et l’être, escreve: “ Quando observa
mos uma estátua de diferentes pontos de vista, a cada novo perfil sob o qual ela
aparece corresponde uma outra imagem. Uma estátua de Afrodite ou de um
atleta nos oferece imagens diferentes quando a olhamos de frente, de lado, de
três quartos ou de costas. Todos esses perfis remetem ao mesmo objeto - obje
to que é o pólo de identidade imanente a cada um desses modos de aparecer e,
contudo, transcendente dessa identidade que os ultrapassa”.
18Athis-M ons: cidade de 30 mil habitantes, na região de île de France. (N. T.)
19Escritor.
20 RATP: Régie Autonome des Transports Parisiens (estatal encarregada dos trans
portes públicos da região parisiense). (N. T.)
21 Tomamos emprestado essa expressão do filósofo François Jullien, que a utiliza
em seu livro Le Sage est sans idée. Paris: Seuil, 1999.
22 Nathalie Heinich, L’art contemporain exposé aux rejets, Jacqueline Chambon,
Nîmes, p. 33.
23 Viviane M orteau, arquiteta do escritório Nouvel, L’Écho de la Dordogne, 16 fev.
2000.
24 Daniel Delpeyrat, L’éssor sarladais, 25 fev. 2000.
25 “Le point de vue de Ronald”, L’éssor sarladais, 11 fev. 2001.
26 Sylviane Leprun, id., ib., p. 61.
27 Sylviane Leprun, L’église Sainte-M arie de Sarlat, Le festin, Périgueux. p. 60.
28 M ic Bertincourt, L’essor sarladais, 4 fev. 2001.
29 Giorgio Agamben, L’homme sans contenu, Circé, Belfort, 1996. p. 81.
30Yves M ichaud, La crise de l’art contemporain. Paris: PUF, 1997. p. 233.
31 Emmanuel Kant, Critique de la faculté dejuger. Paris: Vrin, 1965. p. 37.
32 E. Kant, id., ib., p. 116.
33Nathalie Heinich, L’art contemporain exposé aux rejets, Jacqueline Chambon,
Nîmes, p. 77.
34 Nathalie Heinich, op. cit., p. 123.
35 Jean-Paul Robert, Architecture d’aujour-d’hui, n. 313.
36 M ichel Simonot, De l’écriture à la scène. Dijon: Entre/sens, 2001. p. 17.
37 Paola Berenstein-Jacques, Lesfavelas de Rio: um enjeu culturel? Paris: L’Harmat-
tan, 2000.
38 Esses projetos fazem parte de um plano da prefeitura, denominado Célula
Urbana. O projeto do Jacarezinho e do morro da Providência estão em obras;
o de Inhoaíba, na Zona Oeste, foi abortado. Este último deveria ter como prin
cipal atração a grande estrela da arquitetura mundial, Jean Nouvel, que foi, na
ocasião, convidado para realizar o projeto do M useu Guggenhein do Rio, na zo
na portuária, e que também foi abortado devido a pressões populares. (N. T.)
39 As aventuras de Tin-tin: o lótus azul. Rio de Janeiro: Record, s/d. (N. T.)
40 Stéphane Gaty, Lire André Breton à Saint-Dizier. Édition l ’Entre-tenir, 2001.
41 François Larcelet, fundador da associação l ’Entre-tenir, e livreiro em Saint-
Dizier.
42 François Larcelet.
43 Stéphane Gaty, id., ib., p. 65.
44 Stéphane Gaty, id., ib., p. 78.
45 Stéphane Gaty, id., ib., p. 274.
46 François Larcelet.
47 Giorgio Agamben, La communauté qui vient. Paris: Seuil, 1990. p. 10.
48 Giorgio Agamben, op. cit., p. 11.
49 Jacques Rancière, entrevista realizada para a revista Alice.
50 Henri-Pierre Jeudy, retirado do texto “Venise em mirage” publicado pela Librai
rie Française de Venise.
51 Jacques Rancière, entrevista realizada para a revista Alice.