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Utilizações do Erotismo: O Erótico enquanto Poder

[escrito e proferido por Audre Lorde em 1978, na quarta conferência de Berkshire de História das
Mulheres. Este ensaio foi publicado enquanto panfleto pela Out & Out Books em 1978 e reeditado em
conjunto com outros textos da autora em Sister Outsider em 1984 pela Crossing Press.]

Traduzido por MURMULHO em 02022

versão de trabalho para revisão 9/01/02023

Existem vários tipos de poder, alguns (são) usados, outros não, alguns (são) reconhecidos, outros não.
O erótico é um recurso, presente em cada um de nós, sustido num plano profundamente feminino e
espiritual, enraizado no poder dos nossos sentimentos não pronunciados ou não reconhecidos.
Para se perpetuar, todo o poder opressivo procura corromper e distorcer estas fontes de poder que
fornecem energia de mudança. Para o feminino, isto tem significado uma supressão do erótico enquanto
fonte de poder e informação nas nossas vidas. Fomos ensinadas a suspeitar deste recurso que foi
vilanizado, abusado e desvalorizado pela sociedade ocidental.
Se por um lado o superficialmente erótico é encorajado enquanto sinal de fraqueza feminina, por outro
lado o feminino tem sido sujeito de dôr e desprezo por virtude da sua existência. E daí até à falsa crença
de que apenas pela supressão do erótico nas nossas vidas e consciências pode o feminino ser realmente
forte, vai um pequeno passo. Mas essa força é ilusória, pois foi modelada no contexto de modelos de
poder masculinos.
O feminino foi ensinado a desconfiar do tipo de poder que vem de um conhecimento profundo e não
racional. Foi avisado contra ele pelo mundo masculino, que valoriza o suficiente esta profundidade
emotiva para a manter por perto, perto o suficiente para a colocar ao seu serviço, mas que teme de tal
forma esta mesma profundidade, que é incapaz de analisar as possibilidades que contém.
Então, o feminino é mantido numa posição inferior para que possa ser psicologicamente ordenhado, da
mesma forma que formigas mantém colônias de afídeos que providenciam as substâncias que sustém a
vida dos seus mestres.
MAS o erótico oferece um poço restabelecedor e provocador para o feminino que não teme a sua
revelação, nem sucumbe à crença de que a sensação só por si basta. O erótico foi equivocadamente
nomeado por homens para ser utilizado por mulheres. Foi transformado em emoção confusa, trivial,
psicótica e plástica. Por esta razão, temo-nos muitas vezes afastado da exploração e consideração do
erótico enquanto fonte de poder e informação, confundindo-o com o seu oposto, o pornográfico. Mas a
pornografia é a recusa directa do poder erótico, uma vez que representa a supressão da sensação real. A
pornografia enfatiza a sensação sem emoção. O erótico é a medida entre os primórdios da nossa
consciência enquanto seres e o caos dos nossos sentimentos mais fortes. É um sentido interno de
satisfação que, uma vez experienciado, pode ser desejado.
Tendo experienciado a inteireza desta profundidade de sensação e reconhecendo o seu poder, em honra e
respeito por nós mesmos não podemos pedir menos que isso. Nunca é fácil pedir o máximo de nós
próprios, das nossas vidas, do nosso trabalho. Encorajar a excelência é ir além da mediocridade
socialmente enaltecida.
Mas entregarmo-nos sem medo ao sentimento e trabalhar nesta plena capacidade é um luxo ao qual
apenas se podem dar os que são desprovidos de intenção, que não pretendem condicionar os seus
destinos.
Este requisito interno em direcção à excelência que aprendemos do erótico não deve ser mal interpretado
enquanto uma exigência impossível que fazemos tanto a nós mesmos como aos outros. Tal expectativa
incapacita todos no processo. Porque o erótico não está no que fazemos, mas sim no quão extrema e
profundamente podemos sentir o que fazemos.
A partir do momento em que conhecemos a extensão do que somos capazes de sentir, em satisfação e
completude, podemos então observar quais são os investimentos que nos aproximam mais desse estado
de plenitude.
O propósito de cada coisa que fazemos é tornar mais rica a nossa vida e a vida dos nossos descendentes.
Celebrando o erótico em todos os empreendimentos, o meu trabalho torna-se uma decisão consciente -
uma cama há muito desejada em que entro agradecida e da qual me levanto empoderada.
Claro, pessoas assim empoderadas são um perigo. Então somos ensinadas a retirar a busca pelo erótico
das áreas mais vitais das nossas vidas que não estejam relacionadas com o sexo. E a ausência de atenção
prestada à satisfação e às raízes eróticas do nosso trabalho, é sentida pela desafeição que sentimos em
tanto do que fazemos. Por exemplo, com que frequência amamos verdadeiramente o nosso trabalho,
mesmo nos momentos mais difíceis?
O horror principal de qualquer sistema que define a sua qualidade pelo lucro e não pela necessidade
humana, ou do que define a necessidade humana excluindo as componentes psicológicas e emocionais
dessa necessidade - o horror principal de tais sistemas é que retiram do trabalho o seu valor erótico, o
seu poder erótico, o seu apelo vital e satisfação. Sistemas assim reduzem o trabalho a falsas necessidades,
a um dever através do qual obtemos pão ou esquecimento de nós mesmos e daqueles que amamos.
Isto equivale a cegar uma pintora e depois dizer-lhe que melhore o seu trabalho, e que usufrua do acto de
pintar. Não apenas é isto próximo do impossível, como também é profundamente cruel. Precisamos de
examinar o que pode verdadeiramente mudar no mundo. Estou a falar da necessidade de reconsiderar a
qualidade de todos os aspectos das nossas vidas e dos nossos trabalhos e de como nos movimentamos
para e através deles.
A própria palavra erótico vem da palavra grega eros, a personificação do amor em todos os seus aspectos
- nascido do Caos, personificação do poder criativo e da harmonia. Quando falo do erótico, estou portanto
a falar dele enquanto afirmação de força vital; de energia criativa empoderada, do conhecimento e da sua
respectiva utilização que reclamamos na nossa linguagem, na nossa história, no nosso dançar, amar,
trabalhar e viver.
Há frequentes tentativas de equacionar pornografia e erotismo, duas utilizações diametralmente opostas
dos usos do sexual. Por causa destas tentativas, tornou-se moda separar o espiritual (psicológico e
emocional) do político, de forma a que sejam vistos como contraditórios ou antitéticos.
“Como assim, um poeta revolucionário? Como assim, um traficante de armas a meditar?”
Da mesma forma, temos procurado separar o espiritual e o erótico, assim reduzindo o espiritual a uma
mundo de afetação espalmada, o mundo do asceta que aspira a nada sentir. Mas nada podia estar mais
longe da verdade. A posição do ascetismo é uma de enorme medo, grave imobilidade. A severa
abstinência do ascetismo torna-se a obsessão dominante. E esta obsessão não tem a ver com
auto-disciplina, mas com auto-abnegação.
A dicotomia entre espiritualidadel e política é falsa e resulta de uma atenção incompleta ao nosso
conhecimento erótico. A ponte que as liga, é formada pelo erótico - o sensual - as expressões físicas,
emocionais e psicológicas do que de mais profundo existe em nós no acto de partilha: as paixões do amor,
nos seus significados mais profundos.
Para lá do superficial, a frase “Isto parece-me certo”, reconhece a força do erótico enquanto conhecimento
verdadeiro, pois aquilo que significa é a primeira e mais poderosa luz que nos orienta no caminho de
qualquer compreensão. E a compreensão é como uma ama que pode apenas servir ou clarificar esse
conhecimento, nascido nas profundezas. O erótico é o nutridor e a cuidadora de todo o nosso
conhecimento profundo.
O erótico funciona para mim de várias maneiras, e uma delas é através do poder fornecido pela partilha
profunda de uma busca com outra pessoa. A partilha de alegria, quer seja ela física, emocional,
psicológica, intelectual, forma uma ponte entre quem partilha, que pode ser a base para entender muito
do que não é partilhado e diminui o risco de que a diferença se torne uma ameaça.
Outra importante forma através da qual o erótico funciona, está na abertura e ausência de medo que
sublinham a minha capacidade para sentir alegria. Está na maneira como o meu corpo se estica ao som da
música e se abre em resposta, ao escutar os seus ritmos mais profundos, ao ponto que cada nível de
sensação abre-se como satisfação erótica, seja ao dançar, construir uma estante de livros, escrever um
poema, examinar uma ideia. Esta partilha de conexão interna é uma medida de prazer que me sabe capaz
de sentir, uma lembrança da minha capacidade de sensação. E esse conhecimento profundo e
insubstituível da nossa capacidade de prazer emerge da necessidade de que toda a minha vida seja vivida
no conhecimento de que esta satisfação é possível e não tem que se chamar casamento, nem deus, nem
vida após a vida.
Esta é uma razão pela qual o erótico é tão temido e tantas vezes relegado apenas à cama, onde não chega
a ser de todo reconhecido. Porque quando começamos a sentir profundamente todos os aspectos da
nossa vida, começamos a exigir de nós e das nossas demandas um alinhamento consonante com esse
prazer que sabemos que somos capazes de sentir.

O nosso conhecimento erótico empodera-nos, torna-se uma lente através da qual escrutinizamos todos os
aspectos da nossa existência, obrigando-nos a avaliá-los em honestidade com os seus significados relativo
na nossa vida. E esta é uma responsabilidade séria, projectada de dentro de cada um de nós, para não nos
acomodarmos à conveniência do menor denominador, do convencionalmente expectado, nem do que é
apenas seguro.
Durante a segunda guerra mundial, costumávamos comprar pacotes de margarina branca, que traziam
um pequeno grânulo de intenso corante amarelo encapsulado como um topázio dentro da superfície
transparente do invólucro. Deixávamos a margarina amolecer durante um bocado e depois beliscavamos
o pequeno invólucro para que este se partisse dentro do saco, libertando uma abundância amarelada na
pálida e suave massa de margarina. Depois agarrávamos gentilmente no saco entre os nossos dedos e
amassávamo-lo gentilmente para a frente e para trás, uma e outra vez, até que a côr se espalhasse
uniformemente por todo o meio quilo de margarina, colorindo-a intensamente .
Encontro o erótico como um grânulo assim dentro de mim. Quando é libertado do seu núcleo constrito e
intenso, flui e dá cor à minha vida com uma energia que eleva e sensibiliza e fortalece toda a minha
experiência.
Fomos educados para temer o Sim dentro de nós, as nossas vontades mais profundas. Mas, uma vez
reconhecidas, aquelas que não potenciam o nosso futuro perdem o seu poder e podem ser alteradas.
Temer os nossos desejos mantém o nosso poder ambíguo e sob suspeita, pois reprimir qualquer verdade
é dar-lhe uma força que ultrapassa a resistência. O medo de que não possamos crescer para lá das
distorções que nos são impostas mantém-nos dóceis e leais e obedientes, externamente definidos e
leva-nos a aceitar várias facetas de opressão.
Quando vivemos escondidos dentro de nós, e com isto quero dizer orientados apenas por diretivas
externas que não são do nosso conhecimento e necessidades internas, quando vivemos distanciados dos
nossos guias eróticos internos, então as nossas vidas são limitadas por formas externas e alienígenas,
quando nos conformamos às necessidades de uma estrutura que não se baseia em necessidade humana e
menos ainda individual.
Mas quando começamos a viver de dentro para fora, em contacto com o poder do erótico dentro de nós,
permitindo que esse poder informe e ilumine as nossas acções no mundo que nos rodeia, então
começamos a responsabilizarmo-nos no sentido mais profundo. Porque quando reconhecemos os nossos
sentimentos mais profundos, começamos a abandonar, por necessidade, o sofrimento e a auto-abnegação,
bem como o entorpecimento que tantas vezes parece a única opção na nossa sociedade. Os nossos actos
contra a opressão começam a integrar a nossa individualidade, motivados e empoderados internamente.
Em contacto com o erótico, torno-me menos disponível para aceitar a impotência ou os outros fornecidos
estados de espírito que não me são nativos, tal como a resignação, o desespero, auto-desfasamento,
depressão e a auto abnegação.
E sim, existe uma hierarquia. Existe uma diferença entre pintar uma cerca e escrever um poema. Mas esta
diferença é apenas quantitativa. E não existe para mim qualquer diferença entre escrever um bom poema
e rebolar para a luz do sol de encontro ao corpo que eu amo.
Isto leva-me a uma última consideração sobre o erótico. Partilhar o poder das emoções é diferente de as
utilizar como um kleenex. Quando desviamos o olhar da nossa experiência, seja ela erótica ou não,
estamos a utilizar ao invés de partilhar, as emoções de quem participa connosco na experiência.
E utilização sem consentimento é abuso.
Para poderem ser acessíveis, as nossas emoções devem ser reconhecidas. A necessidade de partilhar é
profundamente humana. Mas na tradição europeia e americana, esta necessidade é satisfeita por certos
ajuntamentos eróticos proscritos. Estas ocasiões são quase sempre caracterizadas por um simultâneo
desviar de olhar que pretende designá-las como outras coisas: igreja, um ataque, violência de gangues,
brincar aos médicos. E estas designação erróneas originam a distorção que resulta em pornografia e
obscenidade - o abuso das emoções.
Quando recusamos ver a importância do erótico no desenvolvimento e sustentação do nosso poder e
quando recusamos olhar para nós próprios enquanto satisfazemos as nossas necesidades eróticas em
concerto com outros, usamo-nos uns aos outros como objectos de satisfação em vez de partilhar a nossa
alegria advinda da satisfação, em vez de criar conexões com as nossas semelhanças e diferenças.
Recusarmos estar conscientes do que se estamos a sentir, seja em que instância, por muito confortável
que possa parecer, é negarmo-nos a uma grande parte da experiência e permitirmo-nos ser reduzidos ao
pornorgráfico, ao abusado, ao absurdo.
O erótico não pode ser sentido em segunda mão. Eu (Audre Lorde), enquanto mulher, negra, lésbica e
feminista, tenho a emoção, conhecimento e compreensão particular em relação aquelas irmãs com quem
dancei com o coração, brinquei, ou até com quem lutei. Esta participação profunda tem sido precursora
do concerto de acções conjuntas antes impossíveis. Mas esta carga erótica não é facilmente partilhada por
aqueles que continuam a operar dentro de uma tradição exclusivamente masculina e
europeia-americana. Sei que não me estava disponível quando estava a tentar adaptar a minha
consciência a este modo de vida e sensação. Apenas agora vou encontrando cada vez mais pessoas
corajosas o suficiente para arriscar partilhar a carga eléctrica do erotismo sem ignorarem, sem
distorcerem a enormemente poderosa e criativa natureza dessa troca.
Reconhecer o poder do erótico nas nossas vidas pode dar-nos a energia para perseguir verdadeira
mudança dentro do nosso mundo, em vez de apenas nos satisfazermos por uma troca de personagens no
mesmo drama desolador.
Porque não apenas tocamos na nossa fonte mais profundamente criativa, como fazemos aquilo que é
feminino e auto-afirmativo a despeito de uma sociedade racista, patriarcal e anti-erótica.

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