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Capítulo 1

Após uma tarde de viagem, Carlos finalmente chegara. Arrastou-se pesadamente para as
escadas esculpidas em mármore cinzento, que perdera a cor, juntamente com a
deterioração da rocha na qual assentava. A ausência de aragem culminava num ar
abrasador que lhe turvava a visão e lhe lenificava os passos. Subiu as escadas, com cada ano
a pesar toneladas naquele que fora em tempos um corpo leve, quase etéreo. Após escassos
minutos, que soaram a eternidade, agravada numa mescla com as arrastadas horas que
passaram desde que se despedira de Nuno, nessa manhã ao abandonar a capital, atingiu a
entrada. Rodou insistentemente a chave, tentando vencer a oxidação da fechadura, de
modo a abrir a pesada porta, na qual o tempo também deixara vestígio. Eventualmente a
madeira putrefacta da porta derrapou na da armação, emitindo um ruído estridente, que
anunciava a sua chegada a essa casa apática.
Entrou lentamente na habitação, estarrecendo-se com o breu e quietude da mesma.
Premiu o pequeno interruptor, que estalou em confirmação, permitindo a iluminação do
local, pela fraca luz emitida do voluptuoso candelabro, que caía do teto gasto. Observou
sofregamente os arredores, sentindo-se hostilizado. Todo aquele local fora desprovido da
bonomia e acolhimento que assinalavam um passado grandioso: as paredes, anteriormente
embebidas num castanho confortante, apresentavam-se praticamente em cal, com as
marcas desse passado caídas no soslaio, no qual pedaços de tinta seca repousavam
tristemente. Os móveis que compunham aquela sala haviam sido tomados pela
inexorabilidade do tempo, que os enegrecera, escondendo qualquer vestígio de
familiaridade na podridão. Uma antiquíssima televisão repousava num largo armário, que se
estendia até à parede colonizada pelos fungos que se proliferavam nos vestígios esbatidos
desse pretérito, contribuindo para o odor sufocante do local. Um sofá creme, coberto de pó
e imerso na mesma quietude do resto da sala, fundia-se com a parede paralela à televisão;
Carlos passou o dedo no pó que se entranhara no sofá, revelando a sua verdadeira cor e
por um ápice foi transportado para os serões em família que iluminavam as noites da sua
infância, sentado junto dos seus pais e irmão durante horas que pareciam instantes e nas
quais guardado pelo conforto dessas paredes se entregava a uma felicidade tosca, em
frente à mesma televisão que agora se remetia à sua inocuidade.
Coberto pela mesma perplexidade com que entrara, dirigiu-se ao extremo da sala, abrindo
uma imponente porta de metal opaco, contendo um vidro igualmente baço, no qual a
marca dos anos também já se notava pela amarelidão que tomava o mesmo. Esta conduziu-
o a um longo e estreito corredor, com um odor ainda mais sufocante e um cinzento ainda
mais morto. Perto do fim do corredor deparou-se com uma porta tão familiar, mas
igualmente longínqua, cuja leviandade da madeira já há muito se perdera. Atravessou a
porta para um terraço selvagem, completamente desolado pelo descontrolo da vegetação,
que se erguia pelos muros e espalhava pelo solo, tomada pela ira e vivacidade. No centro
desse frenesim raivoso, repousava na mais pura inércia um velho baloiço de madeira, preso
por duras cordas que haviam sobrevivido ao teste do tempo, providenciando uma réstia de
controlo ao local. Um carvalho tão velho como o próprio tempo erguia o baloiço e restituía a
aura espectral que afinal tinha sido carregada desde o passado. Cego pela luz desoladora do
exterior, Carlos dirigiu-se ao baloiço num transe hipnótico, desacelerado pelo peso que se
havia abatido sobre ele no decorrer do fluxo temporal. Finalmente alcançou a sua meta e
num gesto de esperança vã sentou-se no assento, tensionando as cordas que o impediam
de cair na escuridão selvagem. E enquanto era transportado de volta para o passado,
fundia-se ingenuamente com a encarnação presente desta casa, que há muito havia sido
tomada pelas bruxas que o assombravam em criança.

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