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Marcelo Lopes de Souza - Fobópole - O Medo Generalizado e A Militarização Da Questão Urbana
Marcelo Lopes de Souza - Fobópole - O Medo Generalizado e A Militarização Da Questão Urbana
O DESAFIO METROPOLITANO
Um Estudo sobre a Problemática Sócio-Espacial
nas Metrópoles Brasileiras
PRÊMIO JABUTI - 2001
( C iências H um anas e E ducação)
MUDAR A CIDADE
Uma Introdução Crítica ao Planejamento e
à Gestão Urbanos
A PRISÃO E A AGORA
R eflexões em Torno da Democratização
do Planejamento e da Gestão das Cidades
FOBÓPOLE
O Medo Generalizado e a Militarização
da Questão Urbana
Marcelo Lopes de Souza
FOBÕPOLE
O MEDO GENERALIZADO
E A MILITARIZAÇÃO DA
QUESTÃO URBANA
B
BERTRAND BRASIL
Copyright © 2008, Marcelo Lopes de Souza
2008
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
C D D - 307.760981
08-0830 C D U - 316.334.56
Agradecimentos 17
Bibliografia 268
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“Fobópole” é um termo que cunhei, sem maiores compromissos,
em um capítulo de livro destinado ao grande público (SOUZA,
2006a: 101-3). Contudo, com o tempo fui-me afeiçoando realmente a
ele e comecei a achar que cunhara algo mais que um termo engraça
dinho ou com vocação para, apenas, chamar a atenção por ser um
neologismo. Passei, então, a empregá-lo também em trabalhos mais
ambiciosos e rigorosos (SOUZA, 2006b:20, 493, 509, 586).
“Fobópole” é o resultado da combinação de dois elementos de com
posição, derivados das palavras gregas phóbos, que significa
“medo”, e pólis, que significa “cidade” . Penso que a palavra conden
sa aquilo que tento qualificar como cidades nas quais o medo e a per
cepção do crescente risco, do ângulo da segurança pública, assumem
uma posição cada vez mais proeminente nas conversas, nos noticiá
rios da grande imprensa etc., o que se relaciona, complexamente,
com vários fenômenos de tipo defensivo, preventivo ou repressor,
levados a efeito pelo Estado ou pela sociedade civil - o que tem cla
ras implicações em matéria de desenvolvimento urbano e democracia
(ilato sensu).
O medo de sofrer uma agressão física, de ser vítima de um crime
violento não é, como já disse, nada de novo; ele se fez presente desde
sempre e se faz presente, hoje, em qualquer cidade. Porém, em algu
mas mais que em outras, e em algumas muito, muitíssimo mais que
em outras. Uma “fobópole” é, dito toscamente, uma cidade domina
da pelo medo da criminalidade violenta. Mais e mais cidades vão, na
atual quadra da história, assumindo essa característica. As grandes
metrópoles brasileiras podem ser vistas, contudo, como “laborató
rios” privilegiados a esse respeito, a começar pelas duas metrópoles
nacionais, São Paulo e Rio de Janeiro.
No entanto, o tema da violência urbana, por razões óbvias, está
bastante em voga no Brasil (e em muitos outros países), e sobre ele se
tem publicado bastante - eu mesmo já publiquei outros livros e capí
tulos de livros e artigos sobre o assunto. Por que, então, escrever mais
um? Explicar “a razão e as razões” — pequena sutileza que logo
ficará clara — de publicar mais um livro sobre o tema oferece o pre
texto para, logo de cara, neste prefácio, mencionar duas lacunas da
literatura especializada publicada no Brasil — duas lacunas impor
tantes e persistentes, apesar da multiplicação de títulos dedicados à
temática da “violência urbana”.
A primeira lacuna, ou antes deficiência, e que me faz pensar que
este livro não é supérfluo, tem a ver com a separação entre especia
listas. Eu venho da pesquisa urbana, não da pesquisa na área de segu
rança pública, e estes dois campos de pesquisa têm estado, no Brasil,
tradicionalmente muito separados, especialmente no que se refere à
discussão de políticas públicas: planejamento e gestão urbanos, de
um lado, e políticas de segurança pública, de outro. Embora eu tenha,
durante anos, trabalhado intensamente com a problem ática dos
impactos sócio-espaciais do tráfico de drogas de varejo, não me con
sidero um expert em questões de segurança, no sentido de que não é
tal área de atuação que define o cerne da minha identidade profissio
nal. Mas, apesar disso, tenho tentado promover um diálogo e operar
um pouco na interface “desenvolvimento urbano”/“segurança públi
ca” . Esse diálogo é imprescindível, e isso eu percebi já no começo
dos anos 90, quando escrevia a minha tese de Doutorado, tendo esse
sentimento se tomado uma convicção profunda durante os anos em
que trabalhei mais diretamente com os impactos sócio-espaciais do
tráfico de drogas, entre meados e fins da referida década.
É graças a esse diálogo que se torna possível perceber melhor a
legitimidade conceituai de uma expressão como “violência urbana” .
Em que pese o desbragado e impreciso uso de que tem sido vítima, a
ponto de alguns pesquisadores chegarem a denunciá-la como uma
espécie de conceito-obstáculo, cabe sair em sua defesa, principal
mente quando nos são caros os vínculos entre relações sociais e orga
nização espacial. Evidentemente, impõe-se cautela diante de tama
nho nível de abstração, visto que violências e crimes específicos pos
suem, muitas vezes, agentes e circunstâncias típicos muito distintos,
não devendo o cenário urbano ser utilizado como um álibi para se
lançar mão de uma espécie de “expressão-valise” , onde tudo possa
ser acomodado sem maiores cuidados. Muito menos é desculpável
dar a entender que é o espaço urbano, em si, o responsável pela gera
ção da violência, como se ainda fosse aceitável, no século XXI,
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incorrer em explicações “ecológicas” que já foram convincentemen
te desmascaradas há muito tempo. Apesar disso tudo, as práticas de
violência não estão dissociadas do espaço. Aqui também o espaço
comparece em sua dupla qualidade de produto social e condicionan-
te das relações sociais. Das formas tipicamente urbanas de segrega
ção residencial à densidade tipicamente urbano-metropolitana de
determinados fenômenos, passando por estratégias de sobrevivência
e práticas delituosas caracteristicamente associadas à concentração
espacial de determinadas oportunidades: no que concerne à presença
ou, pelo menos, à freqüência de certas manifestações de violência, as
características da espacialidade das cidades tanto colocam problemas
específicos quanto sugerem ações específicas de enfrentamento. É
onde entra em cena, para exemplificar, o ideário da “reforma urba
na", estratégia de desenvolvimento sócio-espacial cujas ações são
focalizadas em vários capítulos deste livro.
A segunda lacuna refere-se ao fato de que, lamentável e um
pouco obscurantistamente, grande parte - aparentemente a maior
parte - do que sobrou de uma “esquerda” que mereça este nome, no
Brasil, continua reticente quando se trata de discutir sistematicamente
o tema “segurança pública”. É como se, por lembrar polícia, que lem
bra repressão, que por seu turno lembra o Regime de 64 (ou autorita-
rismos em geral, ou o capitalismo e seu Estado, pura e simplesmente),
“segurança pública” fosse, para uns tantos, um tema “da direita” , ou
até “de direita” , intrinsecamente conservador, como lamentou SOA
RES (2000:44). Contrapondo-me uma vez mais a isso, insisto: o
assunto da segurança pública não deve ser abandonado à direita - sob
pena de a intelectualidade crítica não ter muito o que dizer afora repi
sar diagnósticos críticos estruturais e muito, muito gerais. Quebrar um
tabu, seja ele qual for, implica riscos e custos, a começar pela incom
preensão tanto dos próximos quanto dos distantes. Mas é uma emprei
tada que considero da mais alta relevância, e da qual venho tentando
dar conta de um ângulo político e profissional diferente daquele de
Luiz Eduardo Soares (em primeiro lugar, porque considero as suas
sugestões muito válidas e inteligentes, mas desejo um pouco mais de
ênfase [autojcrítica sobre os limites mais amplos de certas propostas
implementáveis “aqui e agora”, como “policiamento comunitário” e
que tais; em segundo lugar, porque não sou, em sentido usual, como
já disse, um “especialista em segurança pública”, mas sim um estudio
so de movimentos sociais e do planejamento e da gestão das cidades
de um ponto de vista crítico que pensa, a partir dessa perspectiva, ter
algo de relevante a dizer sobre segurança pública e assuntos conexos).
As reações nada construtivas de uma grande parcela da socieda
de, ou a “desrazão” racionalmente explicável, mas irrazoável, do
cadinho em que se misturam preconceitos, temores justificados, assi
metrias sociais, ressentimentos e soluções parciais, escapistas e pre-
nhes de efeitos colaterais é aquilo que constitui, para além das “ra
zões” explicadas nos dois parágrafos anteriores, “a razão” , o motivo
principal de eu escrever este livro.
A questão da autonomia (coletiva e individual) tem sido sempre,
para mim, a questão central e a chave de acesso a uma recolocação
dos problemas da liberdade e da justiça social que supere tanto as
limitações da “democracia” representativa quanto os descaminhos do
(para usar uma expressão de Bakunin) “comunismo autoritário” .
Bebendo em fontes político-filosóficas como, sobretudo, a obra de
Cornelius Castoriadis (mas também a de Murray Bookchin, a de
Claude Lefort e a de muitos outros), minha ambição pessoal tem
sido, como cientista social, debruçar-me sobre as possibilidades de
“alargamento das fronteiras do possível”, levando em conta, enfati
cam ente, o papel do espaço nos processos de m udança social, e
investigando, em particular, a cidade como um ambiente de gestação
de alternativas. Em minhas reflexões e em meus estudos sobre “cida
de e democracia” , o entendimento desta última em um sentido radi
cal, traduzível como autonomia coletiva, corno autogestão, é o que
contextualiza mesmo a preocupação pragmática com a “participa
ção” e com o aproveitamento (condicional e cauteloso) de canais e
espaços participativos institucionais aqui e agora, visando a promo
ção de certos avanços. Sem esse entendimento, um “planejamento
urbano crítico” promovido pelo Estado, pensado como algo parcial
mente possível mesmo nos marcos de uma sociedade heterônoma,
em conjunturas favoráveis, teria seus horizontes extrem am ente
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amesquinhados, aprisionados dentro dos limites de um reformismo
flácido. Um tal “planejamento crítico”, caso privado de um senso
(auto)crítico essencial, seria apenas um “tecnocratismo de esquerda”,
como, aliás, vem-se tomando grande parcela do “planejamento alter
nativo” ou “progressista” vinculado ao ideário da “reforma urbana”
no Brasil (SOUZA, 2002:163-4; 2006b:222 e segs.) — ou seja, uma
alternativa tecnocrática “de esquerda” ao tecnocratismo conservador
e convencional em sua face mais usual (na verdade, em alguma de
suas várias faces atuais), e não uma alternativa real...
Pois bem: as implicações da “guerra civil molecular” (para usar
uma expressão de Hans Magnus Enzensberger que reaparecerá mais
tarde neste livro) para o desenvolvimento urbano, no Brasil e em
outros países, não podem ser subestimadas. Os constraints para a
autonomia e o “projeto de autonomia”, no contexto da fragmentação
e do medo, ocupam, para mim, o centro do palco. No quotidiano, dos
padrões de sociabilidade à organização espacial, a já restrita margem
de exercício da liberdade existente sob o binômio “capitalismo +
democracia representativa” , especialmente em um país semiperiféri-
co, encolhe mais ainda sob os efeitos diretos e indiretos do medo e da
violência. As próprias instituições da “democracia” representativa se
deterioram mais ainda em meio a uma dialética entre legalidade e ile
galidade. Não é sequer possível pensar em continuar usando impune
mente expressões como “desenvolvimento urbano” se não se perce
ber que, de umas poucas décadas para cá, o medo e a violência vêm
cada vez mais se apresentando como fatores de condicionamento das
relações sociais e de modelagem do espaço nas cidades, e não só nas
grandes - e de uma forma assaz preocupante.
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um simples paper, e que, convenhamos, é um assunto que já dá pano
para mangas - , no presente livro abordo, também, as estratégias e as
ações construtivas da sociedade civil, notadamente dos movimentos
sociais, inclusive mostrando o que eles também pensam e produzem
em matéria de planejamento e gestão.
Recuando bem mais no tempo, posso dizer que tudo começou
com a minha tese de Doutorado. Ela forneceu a prim eira oportu
nidade que tive de me devotar sistematicamente aos assuntos da
segregação residencial, da criminalidade e da violência (SOUZA,
1993a). Depois dela, durante cerca de três anos, entre 1994 e 1997,
coordenei um projeto de pesquisa sobre os impactos sócio-espaciais
do tráfico de drogas nas cidades brasileiras. O término do referido
projeto não significou o fim do meu interesse pela questão da
influência do comércio de drogas de varejo e da violência urbana (em
grande parte a ele associada) sobre a dinâmica sócio-espacial nas
cidades brasileiras. Um dos principais impactos examinados na
época da realização daquele projeto consiste em algo que continuou
a receber a minha atenção nos anos seguintes, embora com um acom
panhamento mais distante e não-sistemático: o perigo de que a cres
cente territorialização de espaços residenciais segregados por parte
de grupos de traficantes de drogas, tendo cada vez mais por conse
qüências a imposição de restrições à liberdade de locomoção dos
moradores desses espaços, a difusão de uma “cultura do medo” e a
tentativa de manipulação de associações de moradores, crie dificul
dades para a adoção de mecanismos de participação popular autênti
ca na gestão e no planejamento das cidades e, mesmo, para a atuação
de ativismos e movimentos sociais.
A orientação de dissertações e teses sobre temas relacionados
ajudou a manter-me bastante envolvido com a problemática. Com o
assunto tomando-se mais e mais importante, em 2001 decidi ir além
do simples “monitoramento” que vinha fazendo, paralelamente a
outros interesses e projetos. Resolvi conduzir uma investigação mais
focalizada, fora dos marcos formais de um projeto de pesquisa (meus
projetos formais apoiados pelo CNPq, pela FAPERJ e pelo DAAD,
entre 1999 e 2003, versavam sobre outros problemas, notadamente
sobre participação popular no planejamento e na gestão urbanos),
sobre os novos desafios para o planejamento e a gestão e os condicio
namentos impostos a estes pelo que venho há muitos anos denomi
nando fragmentação do tecido sociopolítico-espacial. Sínteses de
resultados preliminares e a retomada de material colhido na década
de 90 deram origem a novos textos e a algumas palestras, no Brasil
(além das duas mencionadas parágrafos atrás, também uma na USP,
em 2001) e no exterior (além daquela na África do Sul, já menciona
da, também uma no México, apresentada em 2003 na Universidad
Autônoma de México!UNAM), até que, em 2004, comecei a coorde
nar o projeto Desenvolvimento urbano e (in)segurança pública,, cujos
resultados principais (e mais o acúmulo e o retrabalhamento de expe
riências anteriores) se acham condensados no presente livro.
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AGRADECIMENTOS
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INTRODUÇÃO:
a experiência da cidade
como experiência do medo
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mas também sobre a própria modernização). A frase-símbolo, aqui,
seria “Eu tenho medo!" (“Ich habe Angst!”), e a questão do risco
assumiria uma centralidade inequívoca.
O que toma a análise de Beck desconfortável, para um analista
que, como o autor do presente livro, não tem como plataforma de
observação a realidade de um país central, mas sim a de um semipe-
riférico, é que justamente um país como o Brasil - um incrivelmente
heterogêneo e contraditório “país subdesenvolvido industrializado”,
nem tipicamente periférico nem muito menos central - demonstra
que o “Eu tenho fom e!” e o “Eu tenho medo!" podem conviver, de
maneira complexa, no interior da mesma realidade sócio-espacial.
Acompanhe-se a seguinte citação:
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mente superados nos países centrais (em que pese a relativização
imposta pela já comentada deterioração), problemas esses vinculados
à escassez. Uma apreciável fatia da população brasileira ainda pade
ce com dramas tão tipicam ente periféricos como desnutrição e
mesmo fome. Mais amplamente, um percentual elevado da popula
ção do país (difícil de ser estimado confiavelmente, mas cuja grande
magnitude é facilmente perceptível para quem conhece minimamen
te bem a realidade sócio-espacial brasileira e possui uma certa visão
de conjunto) não tem suas necessidades básicas inteiramente satisfei
tas.1 Ao mesmo tempo, nas grandes cidades, sobretudo nas metrópo
les do Sudeste e do Sul, observa-se uma concentração de riqueza e
“modernidade” urbano-industrial impressionante, o que não apenas
estabelece um contraste chocante com a face pobre ou miserável do
próprio país, mas também marca uma diferença nítida entre esse tipo
1 S ejam fo rn ecid o s alguns dad os, com o fito de se p recisar m elhor algo q u e, no
fundo, é intuitivo e sobejam ente conhecido. A propósito da distribuição de renda, em
1990 os 40% m ais pobres detinham 9,5% da renda, enquanto os 10% m ais ricos deti
nham 43,9% ; em 2005, os 40% m ais pobres detinham 11,9% e os 10% m ais ricos
44,6% (C E PA L , 2007:86). A inda a respeito da distribuição de renda, o índice de G ini
fam iliar p e r capita, que leva em conta a renda dos indivíduos após o efeito distributi-
vo que ocorre no interior das fam ílias, foi de 0,599 em 1981,0,631 em 1990 e 0,612
em 1999 (R O C H A , 2003:38). A pesar de um a pequena m elhora, a distribuição de
renda no Brasil segue sendo um a das piores do m undo (registre-se que o índice de
Gini da distribuição de renda no Brasil foi, até o com eço da prim eira década do sécu
lo X X I, o m ais elevado da A m érica Latina, à frente de países com o a B olívia, que
durante anos apresentou o segundo mais elevado [cf. C E P A L , 2007:90]). (Todos os
dados que vêm a seguir foram obtidos em ROCHA [2003], que por sua vez recorreu
a fontes diversas.) O índice de desenvolvim ento hum ano (ID H ), a despeito de suas
lim itações e das ressalvas que, com justeza, vem m erecendo, pode ser lem brado: o
IDH do Brasil foi, no ano 2000, de 0,747, o que correspondia ao 74° lugar no ranking
intern acio n al (p ara efeito d e com paração: A rg en tin a, 0 ,8 3 7 , 35° lugar; M éx ico ,
0,784, 55° lugar). No ano 2000, a esperança de vida ao nascer era, no B rasil, de 67
unos (A rgentina: 73,1 anos; M éxico: 72,3 anos); a taxa de alfabetização de adultos
era de 84,5% (A rgentina: 96,7% ; M éxico: 90,8% ); o PIB p e r capita era de 6.625
dólares (A rgentina: 12.013; M éxico: 7.704). N o que concerne ao índice de pobreza
hum ana (IPH ), que apresenta sobre o IDH a vantagem de captar a dim ensão distribu-
tiva da pobreza e da privação, o IPH brasileiro foi, em 2002, de 3,9, o que o colocava
em 17° em um ranking de 88 países “subdesenvolvidos” (para efeito de com paração,
o U ruguai, com 3,9, ficou com o m enor índice e , por isso, em I o lugar). É bem verda
de que diversos indicadores apresentaram um a evolução significativam ente positiva
uo lo n g o d a s ú ltim a s d é c a d a s : a m o r ta lid a d e i n f a n t il , q u e e r a d e
de país e o conjunto (muitíssimo mais numeroso) dos países periféri
cos típicos, de economia muito mais simples. Cada vez mais, a maio
ria dos riscos associados à “sociedade de risco” , como os relativos a
acidentes nucleares, à contaminação de alimentos e a outras catástro
fes ou desastres sócio-ambientais que, em última análise, são efeitos
colaterais do próprio uso (abuso?2) da ciência e da tecnologia, está
presente igualmente em países como o Brasil, fato para o qual o autor
do presente livro já chamara a atenção em trabalho anterior (SOUZA,
2000). O “Eu tenho fom e!” e o “Eu tenho medo!”, como se vê, entre
laçam-se no interior da formação sócio-espacial brasileira.
O segundo fator de desconforto relativamente à análise de Beck é
que os riscos tematizados são, invariavelmente, aqueles ligados à
expansão econômica e ao “progresso” tecnológico. Riscos ancestrais,
mas cuja importância vem crescendo assustadoramente nas últimas
décadas - com destaque para aqueles vinculados à falta de segurança
pública e associados à criminalidade violenta - , foram, curiosamente,
negligenciados. Trabalhos posteriores, que mostraram a ressonância e
os impactos da abordagem beckiana ao dar continuidade ao estudo da
problemática por ele tratada, são, às vezes, críticos em face do enfoque
original, fazendo-lhe reparos; é o caso, apenas para citar um exemplo,
de SCOTT (2000), que argumenta, muito convincentemente, que a
separação entre “escassez” e “risco” não é tão simples quanto sugere
Beck, e que a própria escassez produz insegurança e risco. Não apenas
a respeito disso nota-se uma convergência entre os tipos de ressalva
117 por mil em 1970, era de 29,6 em 2000; o percentual de dom icílios sem rede geral
de água, que era de 67,19% em 1970, era de 21,19% em 1999; o percentual de dom i
cílios com esgotam ento sanitário inadequado, que era de 73,43% em 1970, era de
35,37% em 1999; o percentual de dom icílios sem eletricidade, que era de 52,44% em
1970, era de 5,25% em 1999. A pesar dos avanços, percebe-se que, no caso da m aio
ria dos indicadores, a realidade recente ainda era m uito insatisfatória. B asta ver que a
proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza, que era de 44% em 1992, ainda era
de 34,95% em 1999.
2 A questão do “ abuso" é im portante e m enos trivial do que p arece, já q u e se pode
argum entar, à luz da dinâm ica essencial do capitalism o (im perativo da acum ulação
am p liad a de c a p ita l, caráter “ antiecológico" fundam ental d aí d ecorrente e tc .), que
determ inados p roblem as são, m ais do que “im perfeições" totalm ente evitáveis, su b
produtos da própria lógica do sistem a, sendo, até certo ponto, “previsíveis" e ,m a is que
isso, de dificílim o controle.
24
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encontrados em SOUZA (2000) e aquelas feitas por Scott; igualmente
a propósito da excessiva generalização no estilo “a pobreza é hierár
quica, a poluição é democrática” nota-se uma convergência nas críticas
que Souza e Scott endereçam à ideologia do “estamos todos no mesmo
barco” , que de algum modo contamina a análise original do sociólogo
alemão. Como SOUZA (2000) argumentou, impactos ambientais
negativos e produtores de risco não são negativos para todos, pois,
caso contrário, muito dificilmente (a não ser “acidentalmente”) chega
riam a ocorrer: se a maioria da população, sobretudo em um país peri
férico ou semiperiférico, normalmente nada ganha ou mesmo perde,
há, não obstante, sempre aqueles que lucram com as atividades gerado
ras de impactos negativos e riscos. Além disso, conquanto nem todos
se possam proteger contra os impactos negativos com a mesma efi
ciência, aqueles atores pertencentes às classes e aos grupos dominan
tes, os quais comandam os processos impactantes e obtêm ganhos com
eles, são aqueles mesmos que, via de regra, conseguem proteger-se, ao
menos no médio prazo, dos efeitos colaterais (poluição, por exemplo),
por possuírem grande mobilidade espacial e capacidade de se defender
de vários modos. Quanto aos mais pobres, vivendo em espaços segre-
gados e em condições de maior vulnerabilidade e exposição a certos
subprodutos da “modernidade”, estes arcam com a maior parte dos
ônus diretos, como é notório.
Mesmo um estudo como o de Scott, assim como outros trabalhos
(por exemplo, os demais reunidos na coletânea organizada por
ADAM et al. [2000], da qual o próprio Beck foi um dos organizado
res), teima, entretanto, em deixar de lado uma questão fundamental e
de visibilidade internacional cada vez maior, que é a da criminalida
de violenta nas grandes cidades, privilegiando temas como riscos
nucleares, biotecnologia, “riscos virtuais” na Era C ibernética e
outros mais. É como se o crescimento do sentimento de insegurança,
a sofisticação (e os efeitos socialmente deletérios) das estratégias de
autoproteção das camadas médias e das elites e a espiral ascendente
da violência urbana fossem temas distantes da realidade dos países
centrais - coisa que, como qualquer cidadão bem informado sabe,
está longe de ser verdade, especialmente nos Estados Unidos.
Pouco mais de dez anos após a publicação de Risikogesellschaft,
Beck publicou o livro World Risk Society, que apareceu originalmen
te em inglês e depois em muitas outras línguas, mas ficou sem tradu
ção para o alemão. Em 2007, então, mais de dois decênios após a
publicação de Risikogesellschaft e oito anos depois da publicação de
World Risk Society, Beck publicou, em alemão, e com o mesmo títu
lo deste último livro, uma terceira obra (BECK, 2007), que represen
ta uma atualização de sua reflexão. Interessantemente, mesmo em
2007 o lugar da violência em sua análise do risco é muito pequeno, e
ainda por cima sob quase nenhum aspecto relacionado com o tema da
criminalidade violenta. Um certo número de páginas foi dedicado à
questão das novas modalidades de guerra e sua vinculação com a
problemática do risco; contudo, o que é aí focalizado são, além do
terrorismo (preocupação cada vez mais obsessiva de norte-
americanos e europeus), as modalidades de “violência privatizada”
(privatisierte Gewalt) e “novas guerras” (neue Kriege) no contexto
de situações como a Palestina e, além disso, “guerras virtuais” como
a intervenção no Kosovo (BECK, 2007:81-5, 263-284, entre outras
páginas). Uma grande lacuna segue existindo na importante reflexão
beckiana sobre a problemática contemporânea em torno do risco.
A seguinte passagem extraída de uma obra de um compatriota de
Beck, o já citado ensaísta Hans Magnus Enzensberger, é, a esse res
peito, suficientemente ilustrativa, ao tratar do que ele chamou de
“guerra civil molecular” (molekularer Bürgerkrieg) nas grandes
cidades contemporâneas:
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□
mam em hooligans, incendiários, chacinadores e assassinos
seriais. (ENZENSBERGER, 1993:18-9)
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abrangência para além dos limites do discurso sobre a criminalidade
violenta está longe de ser uma exclusividade do Rio de Janeiro. Já a
Enzensberger não escapara a amplitude dos atores e das situações
envolvidos na “guerra civil molecular”, valendo a pena repetir a parte
final do trecho anteriormente reproduzido: “ela é conduzida não ape
nas por terroristas e serviços secretos, mafiosos e skinheads, quadri
lhas de traficantes de drogas e esquadrões da morte, neonazistas e
justiceiros, mas também por cidadãos comuns, os quais, de uma hora
para outra, se transformam em hooligans, incendiários, chacinadores
e assassinos seriais.” (ENZENSBERGER, 1993:19)
E bem verdade que há, sim, uma dimensão de instrumentaliza
ção da criminalidade violenta pela mídia (e, em outros países, tam
bém do terrorismo), a qual atinge seu ponto culminante com a metá
fora da guerra. Isso foi bem percebido por Hanz Steinert, a quem não
escaparam , também, as relações entre um “complex of culture-
industry dynamic that feeds on dramatizations and the creation of
events that can be dramatized” , de um lado, e o sistema político-
eleitoral, de outro:
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□
O statement é forte. As duas últimas frases poderiam ser toma
das menos absolutas, mais sensíveis a matizes e, assim, bem mais
rigorosas. O que não se pode é negar-lhes o atributo de um insight
precioso.
Note-se que, sintomaticamente, já há um certo tempo a literatu-
i a das ciências sociais começou a chamar a atenção para a necessida
de de se expandir a compreensão conceituai da guerra civil. Com a
i.irefa um pouco facilitada pela circunstância de que, em alemão, e
diversamente do português, do inglês e de outras línguas, a própria
expressão equivalente a “guerra civil” contém diretamente a palavra
“cidadão” (Bürgerkrieg significa, literalm ente, “guerra de cida-
dtos”), Peter Waldmann, por exemplo, mesmo fazendo a ressalva de
que a participação de grandes massas populares não é um componen-
ic imprescindível de uma guerra civil, aludiu ao risco de se esquecer
que se trata, em um a guerra civil, de “cidadão contra cidadão”
("Bürger gegen Bürger”) - observação essa feita na esteira de uma
sugestão para que se vejam fenômenos interpretáveis como guerra
i.i vil mesmo onde não há um grupo claramente definido e programa-
licamente orientado buscando derrubar um governo e almejando
lomar o poder de Estado (WALDMANN, 1997:486). A fonte de ins
piração precípua de Waldmann e também de outros analistas são os
vários, intermináveis e aparentemente “caóticos” conflitos de fundo
élnico e econômico no “Terceiro Mundo”, com seus warlords e suas
“economias da violência” . O que dizer, porém, de conflitos de signi
ficativa magnitude e de grande repercussão, associados em termos
imediatos ao mundo da criminalidade ordinária (prisões, territórios
controlados por traficantes de varejo) e ambientados em grandes
cidades e metrópoles modernas como Rio de Janeiro e São Paulo?
Conquanto ousado, talvez seja um necessário passo adicional enxer
gar nesses casos algo próximo ou aparentado a uma guerra civil, ou
simplesmente um tipo desconcertante dentro dessa categoria, situado
na chameira entre guerra civil e violência urbana criminosa: uma...
"guerra civil molecular” . Desdobrando e detalhando a inspirada idéia
de Enzensberger, pode-se dizer que a “sintomatologia” da “guerra
civil m olecular” inclui desde um estado crônico de low intensity
urban warfare até um incremento de discursos conservadores de tipo
repressivo e policialesco, passando pelo aquecimento do “mercado
da segurança” ,5 com a disseminação e a sofisticação de estratégias e
dispositivos de autoproteção dcs mais privilegiados.6 Da mesma
maneira, aliás, como nada há de absurdo em admitir que o Primeiro
Comando da Capital (PCC), mesmo sem ser uma “organização terro
rista” , lançou mão, nos ataques de 2006 em São Paulo, de um méto
do similar ao empregado por terroristas: intimidar uma população
inteira para desmoralizar (ainda mais...) e dobrar o Estado.
Observe-se, a propósito, que, a despeito da lacuna diagnosticada
referente à violência e à criminalidade violenta nas grandes cidades,
a análise de Beck a propósito do terrorismo contribui, indiretamente,
para a presente discussão, por meio da diferenciação por ele estabe
lecida entre “guerra real” (realer Krieg) e “guerra sentida” (gefiihlter
Krieg). O terrorismo e as reações ao terrorismo desencadeiam uma
situação em que, nos países centrais que se sentem ameaçados, não
há uma “guerra real” em andamento, mas sim uma “guerra sentida” .
(Ao mesmo tempo, e por contraditório que possa parecer, a existên
cia de uma “guerra sentida” não exclui a possibilidade de se ter, con-
comitantemente, uma espécie de “paz sentida” [gefiihlter Frieden],
derivada do fato de se conduzir uma “guerra real” no exterior, como
a intervenção americana e britânica no Iraque, mas de uma tal manei
ra que se tenta fazer com que a opinião pública interna perceba a
agressão a um país distante não exatamente como uma guerra - pelo
menos enquanto o número de baixas entre os soldados do país inter
ventor não for significativo...) Para os objetivos da presente discus
são sobre a legitimidade da aplicação da expressão “guerra civil” ao
32
□
quotidiano das grandes cidades, pode-se arriscar a sugestão de que a
“guerra civil molecular” é uma “guerra sentida” , ou uma “guerra
civil sentida” . Complementando Beck, toda “guerra sentida” tem,
naturalmente, um componente bastante real. Com a “guerra civil
molecular” não é diferente. A despeito dos exageros e mistificações
debitáveis na conta do discurso midiático e das tiradas de certos ges
tores e governantes, tratar o “clima de guerra civil” como uma espé
cie de simples fraude, exagero jornalístico ou mera retórica alarmis
ta e populista é simplificar demasiadamente o problema.
Com particular intensidade, mas de maneira alguma com exclu
sividade, testemunha-se, nas grandes cidades de um país semiperifé-
rico como o Brasil, o transbordamento do tema da (in)segurança
pública, cada vez mais, para fora das páginas do noticiário policial.
Ele vem passando a ocupar lugar de destaque também no noticiário
político e até no econômico, devido aos custos materiais que o medo
da criminalidade violenta acarreta para famílias, empresas e gover
nos. Ainda que metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo sejam
exemplos formidável mente “didáticos” da problemática em pauta,
não apenas em muitas outras grandes cidades brasileiras os riscos
direta ou indiretamente relacionados com a criminalidade violenta
ganham importância e visibilidade: mais e mais, também cidades
médias vão assumindo papel de destaque nesse cenário. Apesar disso
tudo, e conquanto o centro das atenções deste livro seja a realidade
brasileira, guardar uma perspectiva internacional é imprescindível
para se evitar um provincianismo analítico. É no mundo todo, inclu
sive na Europa, que se pode já perceber que a problem ática da
(in)segurança pública, tendo por pano de fundo o medo generalizado,
se vai convertendo em um formidável fator de (re)estruturação do
espaço e da vida urbanos (WEHRHEIM, 2002:211; MARCUSE,
2004). Assim, ao fazerem alusão a uma “urban cold war” em curso
nos EUA, DAVIS (1992:232) e, com ele fazendo coro, SOJA
(2000:305), não parecem estar exagerando. Pelo contrário: essa
“guerra”, ainda que meio metafórica e de “baixa intensidade”, é sufi
cientemente “hoí” , a julgar pelo número de mortos e feridos nas típi
cas fobópoles que lhe servem de cenário pelo mundo afora. Note-se,
ainda, que não é só o temor em face da criminalidade violenta ordi
nária (e, de acordo com o país, também em face do terrorismo) que
vem levando a um cenário de crescentemente difundida (low inten-
sity) urban warfare fora do contexto de guerras convencionais, inclu
sive de guerras civis convencionais: particularmente preocupantes, de
um ponto de vista democrático, são as estratégias preventivas e as
medidas repressivas tomadas pelo Estado para coibir mobilizações e
protestos populares, como aqueles endereçados contra a globalização
capitalista (WARREN, 2004).
No que concerne ao Brasil, violência urbana e insegurança públi
ca são assuntos que, cada vez mais, e já há bastante tempo, vêm adqui
rindo importância no debate político nacional, e não somente local ou
estadual. Desde os anos 90, presidentes da República foram forçados
pelas circunstâncias a se pronunciarem sobre problemas como crimi
nalidade violenta e crime organizado. O então presidente da República
Fernando Henrique Cardoso, em discurso proferido em 1996 a bordo
de um navio-escola da Marinha de Guerra, expressou a opinião de que
o tráfico internacional de drogas e armas já constituía uma ameaça à
soberania nacional: “[e]les [os traficantes] não só desafiam a nossa
soberania nas fronteiras, no espaço aéreo e nos rios da Bacia
Amazônica, como também têm influência marcante no risco de esgar-
çamento do tecido social brasileiro” (Jornal do Brasil, 6/3/1996).
Pouco mais de um mês depois, falando para uma platéia de 25 novos
generais, e na presença dos ministros militares, Fernando Henrique
voltou à carga, ao considerar o tráfico de drogas o novo grande inimi
go da segurança nacional, a ser combatido pelas Forças Armadas
(O Globo, 17/4/1996). Dez anos depois, em meio a uma onda de aten
tados promovidos pela organização criminosa PCC que, durante dias,
aterrorizou a metrópole de São Paulo e cidades do interior do estado, o
Presidente Luis Inácio Lula da Silva sugeriu ao então governador de
São Paulo, Cláudio Lembo, que aceitasse a presença do Exército na
capital e no interior como “fator de dissuasão” contra novos ataques do
PCC, ajuda essa recusada pelo governador (Folha de São Paulo,
16/5/2006). É a “dimensão (geopolítica) supralocal do local”
(SOUZA, 2000:95 e segs.).
34
□
Considerando as articulações internacionais envolvidas nisso
ludo - redes internacionais de tráfico de drogas e armas, esquemas de
lavagem de dinheiro, pressões diplomáticas e “cooperação” militar
11a esteira da war on drugs proclamada pelo governo norte-
americano, e assim segue isso para não falar da nítida dimensão
espacial de todos esses fenômenos e nas mais diferentes escalas, é
lícito afirmar que, mais até que uma expressão política, violência
urbana e insegurança pública vêm alcançando uma magnitude geo-
política. E, já que se falou em Geopolítica (a qual não possui, como
sc sabe, apenas uma faceta “externa”, mas, como mostra a experiên
cia brasileira, também uma clara faceta “interna” no que toca às preo
cupações com a “segurança nacional”), não custa lembrar que, já em
l'ins da década de 80, esses temas eram realçados em artigo assinado
pelo então comandante e diretor de estudos da Escola Superior de
Guerra, Gal. Muniz Oliva (OLIVA, 1988). Entre esse artigo e o
momento em que estas linhas são escritas (2007) tiveram lugar, só no
Kio de Janeiro, cinco missões das Forças Armadas destinadas a dar
combate a traficantes de drogas, às quais podem ser acrescentadas as
situações de presença das Forças Armadas nas ruas para auxiliar na
segurança quando da realização de determinados eventos (como a
lico-92 e a XVIII Cúpula do Grupo do Rio, em 2004), totalizando
nove episódios em que o Exército, sozinho ou com o das duas outras
Forças Armadas, desempenhou um papel de polícia. Está em curso
uma verdadeira “militarização do quotidiano” ou, mais precisamen-
le, uma “militarização da questão urbana" (SOUZA 1993a:339-40;
I996a:53,65).7
7 lintendida no sentido m ais restrito de envolvim ento das Forças A rm adas em assun-
ins de segurança pública, a tendência à m ilitarização da questão urbana não chega a
ult uma tendência universal, m as m uito m enos é um a exclusividade brasileira. É bem
verdade que peculiaridades nacionais, construídas ao longo da história, não deixam
ilc desem penhar um papel; na vizinha Argentina, por exem plo - país onde a transição
ik- um regim e m ilitar para a “dem ocracia” representativa se deu com m uito m ais ten-
m iiís entre civis e m ilitares que no Brasil, e no qual as seqüelas social-psicológicas da
"guerra su ja” e do desrespeito aos direitos hum anos continuam a se fazer sentir o
1’iesidente Nestor K irchner decidiu, em junho de 2006, após mais um m om ento de
k-nsão entre o governo civil e setores m ilitares, aum entar o controle civil sobre as
Caso não se queira reforçar, inadvertidamente, essa militariza
ção, faz-se necessária, sem sombra de dúvida, perícia no manejo da
idéia de uma “guerra civil molecular” . Perícia e prudência. A “guer
ra civil molecular” , que mescla elementos de criminalidade menos ou
mais organizada e criminalidade ordinária não-organizada (e, em
alguns países, também o terrorismo), respostas menos ou mais pre
ventivas, menos ou mais repressivas por parte da polícia (e muitas
vezes, dependendo do país, mesmo truculentas, com abundância de
violência policial abusiva e seletiva) e reações autodefensivas por
parte da classe média e das elites (uso de carros blindados, compra
de armas, utilização de segurança privada e estratégias espaciais
diversas) - reações essas que agravarão a “guerra civil molecular” , ao
invés de detê-la ou estancá-la - , apresenta pontos de contato com
uma guerra civil, visto ser, também, uma situação de violência difu
sa, ações e reações de ressentimento, ódio e violência de cidadão
contra cidadão em uma multiplicidade de situações no interior de
uma cidade e de um país. Não obstante, essa “guerra civil molecu
lar” , se não é uma guerra civil convencional, haja vista que não se
contrapõem grupos étnicos ou agremiações político-ideológicas
lutando organizadamente para tomar o poder de Estado, muito menos
é, obviamente, uma guerra em que se contraponham os nacionais de
um país a “inimigos externos” (assim declarados pelo Estado) de
outra nacionalidade - enfim, dois exércitos em confronto. E, se não
se trata de uma guerra civil convencional e muito menos de uma
Forças A rm adas e proibir que estas atuem na segurança interna (Folha de São Paulo,
13/6/2006). Enquanto isso, no Peru, o Presidente Alan Garcia recebeu do Congresso,
em abril de 2007, poderes especiais para, durante 60 dias, legislar po r decreto sobre
tem as relativos à segurança pública, ao tráfico de drogas e ao terrorism o. Em um d is
curso de 27 de abril, Garcia alegou que “ [i]sso é o que pede o povo: m ão dura. E
farem os isso legalm ente” (Folha de São Paulo, 28/4/2007). No M éxico, o presidente
conservador Calderón decidiu, em 2006, utilizar m aciçam ente o Exército em opera
ções de com bate ao tráfico de drogas, o que vem preocupando especialistas com o
Ricardo Ravello: “ [s]e o Exército fracassar e Calderón perder a batalha, o governo,
seu partido e o Estado estarão ameaçados. O governo precisa recuperar a autoridade
no território. H oje é o narcotráfico que decide onde a polícia pode atuar e onde ela
não entra. A violência é o tem a m ais debatido no país, mais que desem prego, saúde
ou econom ia. É a prioridade de qualquer agenda.” (Entrevista ao jornal F olha de São
P aulo, 20/5/2007)
36
□
guerra extema, a “guerra civil molecular” não há de ser debelada com
o recurso a uma escalada de militarizaçâo, que é antes parte do pro
blema que da solução. Se, especialmente hoje em dia, mesmo guerras
civis convencionais ou relativamente convencionais se arrastam
durante anos ou décadas em vários continentes, amiúde sem a pers
pectiva de uma nítida solução propriamente militar (MÜNKLER,
2004:26), o que dirá uma “guerra civil molecular” ! Exércitos são
treinados e preparados, essencialmente, para a defesa de um país con
tra eventuais “inimigos externos”, “inimigos” esses que a mídia e o
Estado, em ações orquestradas, ensinarão os habitantes de seu país a
odiar. Com isso se facilita que os soldados de um país bombardeiem,
fuzilem, às vezes até torturem os de um outro. Para evitar que pessoas
do próprio país sejam transformadas em “inimigos internos” reais ou
potenciais, na esteira de uma estigmatização sócio-espacial e do culti
vo de preconceitos contra grupos específicos e seus espaços (no caso
de países semiperiféricos, sobretudo as favelas e seus equivalentes),
como aliás já vem acontecendo há muito tempo (vide, sobre isso,
SOUZA, 2000:80 e 2006b:473), é preciso que se enfatize: a transfor
mação de uma urbe em fobópole é um desafio civil - (socio)político,
(socio)econômico e cultural - , não um desafio militar.
38
□
soldados e milicianos contra populações civis do campo e das cida
des tomadas e saqueadas. Em segundo lugar, no decorrer de um mul-
lissecular (e muito relativo...) “processo civilizatório” (recordando a
obra de ELIAS [1990]), a violência fora de situações de guerra
iornou-se bem menos comum, a ponto de um homicídio ou outro
crime violento passar a ser, a partir de um certo momento, motivo de
escândalo e mesmo comoção. Esse momento é, ao que tudo indica,
na Europa e também nas grandes cidades do Novo Mundo, o final do
século XIX. (Note-se, entretanto, que a situação nas áreas rurais e em
muitas pequenas cidades era amiúde muito diferente, particularmen
te na América Latina, devido às atrocidades freqüentemente pratica
das por bandoleiros, jagunços, cangaceiros e congêneres.)
A partir das últimas décadas do século XX, por várias razões e
mm variações de país para país, o período de relativa “calmaria” vai-
se extinguindo, e em dois sentidos: de uma parte, “novas guerras”
vilo-se multiplicando, especialmente após o fim da Guerra Fria, rea
vivando formas de violência (principalmente contra civis) que,
lurante muito tempo, foram antes exceções do que a regra (vide
MÜNKLER, 2004), ainda que não tão excepcionais assim (como
siilienta SEIBERT, 2003); de outra parte, e já antes disso, a crimina
lidade “ordinária”, sem motivação política ou religiosa direta, vai-se
Intensificando nas cidades de vários países, a ponto de um novo
vocabulário começar a dar o tom dos novos tempos: “banalização da
morte”, “cultura da violência”... É sobretudo o contraste com os
períodos anteriores, e em particular com o período de relativa “cal-
mnria” que se estende da era vitoriana e da belle époque até meados
do século XX (ou seja, um período ainda um tanto vivo ha memória
dc muitas das nossas famílias, graças ao testemunho de avós e bisa-
vris), que faz com que a fobópole possa ser vista como um fenômeno
tlotado de “alguma” novidade histórica.
Outra coisa: certamente, Bagdá (para ficar em um exemplo que
dispensa apresentações) pode ser entendida, desde 2003, como uma
lobópole. No entanto, o foco principal deste livro não são cidades
'luminadas pelo medo a partir da incidência de um “grande evento”
lucilmente datável do ponto de vista histórico (uma guerra, um con
flito étnico), mas sim metrópoles e grandes cidades nas quais a crimi
nalidade ordinária (e, dependendo do país, também o risco de atenta
dos terroristas esporádicos) alimenta constante e ampliadamente um
sentimento de medo generalizado. Há razões para crer que, por mais
que situações como a iraquiana também tenham muitíssimo a ver
com a dinâmica do nosso tempo, e por mais que seja difícil superar
uma problemática de urban warfare como a de Bagdá, em um deter
minado sentido uma fobópole como a capital iraquiana pode ser con
siderada como bem diferente de uma fobópole como o Rio de Janeiro
ou São Paulo: um centro urbano conflagrado e atemorizado na estei
ra de uma guerra civil mais ou menos clássica pode deixar de sê-lo
tão logo se chegue a algum tipo de acordo entre os partidos beligeran
tes, por mais difícil que seja alcançar um tal acordo; já a criminalida
de ordinária e a “desordem despolitizada” (e o risco do terrorismo em
cidades ocidentais) são geradas por uma combinação mais complexa
de fatores, notadamente em um país (semi)periférico. Depois de
algumas décadas, como no caso das duas maiores metrópoles brasi
leiras, o medo parece já se ter enraizado inclusive na psicologia cole
tiva, provocando conseqüências comportamentais diversas, até
mesmo psicopatológicas. Uma fobópole é uma cidade em que gran
de parte de seus habitantes, presumivelmente, padece de estresse crô
nico (entre outras síndromes fóbico-ansiosas, inclusive transtorno de
estresse pós-traumático8) por causa da violência, do medo da violên
cia e da sensação de insegurança.
40
□
O presente livro aborda os problemas urbanos e os conflitos
sociais destacando a problemática do sentimento de medo e insegu
rança e dos riscos vinculados à criminalidade quotidiana na conta de,
ao mesmo tempo (ou seja, “dialeticamente”), produtos (parcialmen
te) de um quadro de desenvolvimento sócio-espacial extremamente
insatisfatório e dificultadores de avanços em matéria de desenvolvi
mento sócio-espacial ulterior. A criminalidade (ou, pelo menos, parte
dela, já que há “crimes e crimes” , com causas e motivações muito
variadas) é, em um país como o Brasil, em larguíssima medida, um
subproduto da “dívida social” acumulada há gerações e gerações, sob
a mediação de fatores institucionais (falência e inadequação intrínse
ca do sistema prisional, corrupção estrutural do aparato policial etc.)
c culturais (ascensão de valores como consumismo, individualismo e
hedonismo). Por outro lado, a criminalidade e o sentimento de medo
c insegurança associados ao seu aumento irão gerar impactos sócio-
espaciais negativos importantes, os quais servirão de obstáculos para
o enfrentamento de vários fatores de injustiça social e má qualidade
de vida entre os próprios pobres, como se verá ao longo deste livro e
como o autor já havia mostrado em outras ocasiões (especialmente
cm SOUZA, 1996a e SOUZA, 2000: Cap. 1 da Parte I).
O objetivo central do livro não é, porém, investigar os problemas
cm si, conquanto seja necessário deter-se um pouco neles, como pre-
m|uele que foi atingido diretam ente por um ato violento, m as m uitas vezes para um
mímero im enso de pessoas que gravitam em tom o do acontecim ento e da vítim a”
(IÍNDO, 2005:230). Ao fina! do livro, o autor oferece uma passagem que resum e a
problem ática, e que vale a pena, por isso, ser reproduzida: apesar da “m ultiplicidade
de falas e ações que incidem sobre a violência com o algo que se caracteriza por uma
cxlerioridade absoluta (...), qualquer habitante da cidade se rem ete a alguns traços
comuns quando se fala das violências na cidade de São Paulo: à própria vida posta
cm risco, à convivência com a angústia e com o m edo, à m orte exposta e nua. Viver
Kiih essa experiência cotidiana, repetidam ente, im põe, m ais a uns que a outros, o que
chamamos de convivência com o traum ático, experiência que se procura evitar a todo
n isto , ao m esmo tem po em que se a faz perdurar. N esse custo, estão incluídos o iso
lamento, o apoio à ação policial dura e à perm issividade, ao desrespeito dos direitos
civis, desde que eles sirvam para evitar uma nova repetição do traum a, ao mesmo
Irmpo em que se criam condições para a sua reprodutibilidade. (...) É um a população
nssustada, m uitas vezes em pânico que, freqüentem ente, não vê outra form a de com
bater a violência a não ser violentam ente (...).” (EN D O , 2005:287)
paração de terreno (o que será feito, principalmente, nos capítulos 2
e 3), dando continuidade às análises iniciadas pelo autor há mais de
uma década (SOUZA, 1993a; 1996a; 2000 - entre outros). O objeti
vo central é refletir sobre as margens de manobra para possíveis
soluções; sobre os protagonistas (ou, para usar uma bela expressão
alemã, sobre os atores sociais que se apresentam ou podem apresen
tar como “portadores da esperança” , Hoffnungstrãger)\ sobre as
escalas e as chances de se vencerem os desafios.
Fobópole versa sobre as possibilidades de ação e intervenção
para se construírem cidades mais justas em meio aos “escombros
sociais” e ao rastro de medo, desesperança e cinismo que a violência
vai deixando atrás de si. E versa, também, sobre como essas tentati
vas de mudar a cidade, democratizando o planejamento e a gestão e
pondo-os a serviço de um desenvolvimento sócio-espacial autêntico,
podem colaborar para diminuir a violência e o medo.
Vale a pena, neste final de capítulo introdutório, adiantar, se não
as conclusões propriamente ditas, ao menos a “moral da história” ,
que é a convicção do autor há muitos anos, continuamente confirma
da por suas investigações e solidificada no curso de suas reflexões: a
política de segurança pública socialmente mais justa e eficaz, no
longo prazo, é aquela que não é apenas ou imediatamente uma polí
tica de segurança pública, mas sim uma política de desenvolvimento
sócio-espacial na e da cidade, concebida e implementada nos mar
cos de esforços de mudança sócio-espacial positiva que levem em
conta, também, as escalas de problemas e ação supralocais, e nelas
se ancorem.
Devem ser esclarecidos, a esta altura, antes de se prosseguir e
passar a focalizar aquilo que é, propriamente, o tema deste livro,
alguns dos conceitos fundamentais que embasam a leitura que o autor
faz da problemática ora tratada. Tais conceitos - desenvolvimento
sócio-espacial, desenvolvimento urbano, autonomia, sociedade basi
camente autônoma, ganhos de autonomia, planejamento e gestão
urbanos críticos e movimentos sociais - foram já discutidos pelo
autor, minuciosamente, em outros trabalhos (ver, sobre isso, espe
42
□
cialmente, SOUZA, 2002 e 2006b). O que se oferece, no restante
desta Introdução, é, tão-somente, um certo “aplainamento do terre
no” conceituai, uma vez que são conceitos essenciais e, ao mesmo
lempo, bastante gerais. De resto, recomenda-se ao leitor que recorra
uos trabalhos já indicados para fins de complementação e esclareci
mento quanto a pormenores.
A despeito do há décadas propalado “fim das ideologias”, a dis-
linção entre “esquerda”, “centro” e “direita” continua sendo útil e
válida, mesmo que a paisagem se tenha tornado mais complexa e
i:ada vez mais “direitizada” (a antiga esquerda tomou-se, em grande
parte, centro-esquerda, a centro-esquerda converteu-se em centro e a
direita ressurge sob uma nova roupagem). O cerne dessa distinção é
n postura adotada por cada indivíduo e cada organização em face do
liinômio capitalismo + “democracia” representativa, o qual define a
essência econômica e político-institucional das sociedades atuais (no
caso da “democracia”, é bem verdade, nem tanto, mas mesmo as dita
duras explícitas e convencionais são hoje raras). A esquerda propug-
iin a transformação radical de realidade econômica e política, supe
rando o capitalismo e o Estado capitalista; o centro rejeita qualquer
mudança substancial, mas abre-se para críticas moderadas e “respon-
i.iiveis”, capazes de aprimorar o próprio sistema, corrigindo suas dis-
mrções; a direita, por fim, acusa a “democracia” representativa de
11 iiqueza e de ser coadjuvante de uma certa decadência da sociedade,
limpondo, em conseqüência, formas mais autoritárias de organização
iln Estado e a preservação de valores tradicionais. Representando
posições intermediárias, a centro-esquerda adota elementos do dis
curso radical da esquerda em favor de mais justiça social, mas endos-
mi práticas moderadas e conformes ao status quo, buscando reformas
r uíio uma revolução, ao passo que a centro-direita, apesar de tradi-
i lonalistae, por isso, de aproximar-se discursivamente da direita, não
■lit-ga a posicionar-se contra a “democracia” representativa. Esquer-
il.i l- direita, por sua vez, se subdividem. A direita pode apresentar-se
imito como uma direita laica (fascismo, nazismo, neonazismo) quan-
lo como uma direita religiosa (fundamentalista). A esquerda, de sua
imite, pode ser subdividida em uma esquerda “estatista”, que rejeita
o Estado capitalista mas é, no mínimo, ambígua em relação à idéia de
Estado (caso do marxism o-leninism o), e uma esquerda “anties-
tatista” , que faz uma crítica de base à idéia de Estado em geral (anar
quismo clássico, pensamento autonomista e autogestionário, neo-
anarquismo). Quanto à esquerda “estatista”, ela corresponde, no que
tange à prática política, a correntes cujo denominador comum é um
misto de burocratismo e autoritarismo, mas que rivalizam entre si
devido a diferenças de grau (o exemplo mais expressivo é a oposição
trotskismo versus stalinismo). A esquerda “antiestatista” pode, por
fim, ser subdividida em “estadófoba” , que, motivada por um verda
deiro horror ao Estado, repele toda e qualquer cooperação tática dos
movimentos sociais com o Estado, independentemente das circuns
tâncias concretas (caso dos anarquistas clássicos), e “estadocrítica” ,
que, sem perder de vista as limitações estruturais do Estado, admite
a possibilidade de conjunturas, especialmente em escala local, em
que algum tipo de cooperação com o Estado (enquanto governo espe
cífico, permeável à participação popular e comprometido ao menos
com algumas mudanças) pode ser cogitável (é o caso de determina
das interpretações autonomistas e neo-anarquistas contemporâneas).
O autor do presente livro acredita ser necessário conciliar diver
sas exigências (aqui assumidas como pressupostos, pois extrapolaria
as limitações deste trabalho pretender justificá-las): a utopia, sem a
qual não há a invenção do novo, e o pragmatismo, sem o qual não se
prepara, hoje, um amanhã diferente; a crítica radical, sem a qual se
fazem perigosas concessões à mediocridade do presente, e a recusa
do autoritarismo, sem a qual a luta por justiça pode degenerar em
novos tipos de injustiça estrutural; a dimensão universalista, a qual
permite o diálogo e a crítica éticos para além das fronteiras culturais,
e a defesa dos direitos legítimos de minorias e da alteridade de socie
dades não-ocidentais, sem a qual o risco de uma pasteurização cultu
ral na base dos valores das maiorias (dentro de uma sociedade) e o
risco de interferências indevidas sobre os fundamentos do etnocen-
trismo (na relação entre sociedades) tomam-se excessivamente gran
des. Uma posição “estadocrítica” parece ser especialmente capaz de
costurar convincentemente essas várias exigências.
44
□
Coloque-se, primeiramente, o seguinte problema: à luz de que
critérios deve-se julgar a (in)justiça social? Esse é, obviamente, um
assunto de natureza político-filosófica, mas que precisa, tão honesta e
lucidamente quanto possível, ser explicitamente enfocado, posto que
tanto a análise de problemas reais (uma “era de medo” e suas causas
imediatas e mediatas) quanto a busca de construção de uma cidade
(uma sociedade) melhor exigem e pressupõem esse tipo de reflexão.
Autonomia, entendida em sua dupla face de autonomia indivi
dual (que se refere à possibilidade material e institucional efetiva e
também à capacidade psicológica de um indivíduo para definir pro
pósitos para a sua vida e persegui-los de modo lúcido e em igualdade
de oportunidades com os demais indivíduos pertencentes à mesma
sociedade) e autonomia coletiva (que se traduz, material e institucio-
nalmente, pela existência de instituições sociais que garantam igual
dade efetiva - e não somente formal - de oportunidades aos indiví
duos para a participação em processos decisórios relevantes para a
regulação da vida coletiva, e, sobre essa base, para a satisfação de
suas necessidades), fornece o critério-chave para orientar a busca por
maior justiça social e uma melhor qualidade de vida. Uma socieda
de heterônoma é uma sociedade em que o nómos (no sentido amplo
de leis, normas e códigos de conduta, sejam formais ou não) não é
verdadeiramente estabelecido sobre os fundamentos de uma partici
pação livre de todos os cidadãos interessados, sendo, isso sim, prove
niente “de cima” (opressão no interior de um grupo ou uma socieda
de, decorrente de uma assimetria estrutural de poder e de uma sepa
ração entre dirigentes e dirigidos), eventualmente também externa
(opressão a partir da conquista e ocupação por parte de outro grupo
ou sociedade). Para além da questão político-institucional, e aden
trando o terreno do imaginário e de suas conseqüências sociopolíti-
cas, a heteronomia pode ter também raízes “naturalísticas" (atribui
ção de causas à natureza, culpabilização da natureza) ou “divinas”
(origem religiosa ou sobrenatural de normas e interdições). Uma
sociedade autônoma, em contraste, é uma sociedade em que existem
instituições sociais que efetivamente permitem que os indivíduos
sejam socializados e vivam como indivíduos autônomos (livres),
sendo educados para a liberdade - a sua mesma e a dos outros - e
conscientes de que a sociedade se au/o-institui.
Quanto à justiça social e à qualidade de vida, elas são mutua
mente complementares. É possível imaginar avanços em apenas um
desses componentes, mas isso seria indesejável: uma distribuição
mais eqüitativa acarretará uma melhoria da qualidade de vida para a
parcela da população beneficiada, mas entraves diversos, que depen
dem da solução de problemas técnicos e que, ainda que em graus
variáveis, afetam a muitos ou a todos (como a poluição ambiental),
podem persistir; em contrapartida, a melhoria da qualidade de vida
de uma parcela da sociedade pode até mesmo traduzir-se como um
aumento de injustiça social (devido ao aumento de disparidades),
caso não seja acompanhada por uma distribuição mais justa dos
benefícios.
Mesmo que a liberdade não garanta o acerto substantivo de uma
decisão coletiva, a igualdade de oportunidades de participação em
processos decisórios envolvendo assuntos de interesse coletivo não é
apenas mais legítima, do ângulo da justiça social: graças à maior
transparência do processo decisório, reduzem-se as chances de des
perdício e corrupção e elimina-se o problema, típico da “democracia”
representativa, de o “representante” (detentor de um “mandato livre”,
que eqüivale a um “cheque em branco”) atuar como “filtro interpre-
tativo” dos desejos e aspirações da população. Por conta disso, embo
ra a qualidade de vida não seja, diversamente da justiça social, pro
priamente uma instância da justiça social, é possível admitir que há
uma contribuição potencial da autonomia coletiva para a melhoria da
qualidade de vida em geral.
É sobre esses alicerces que se propõe recusar que o conceito de
desenvolvimento econômico, prisioneiro do imaginário capitalista,
seja tomado como parâmetro de avaliação, por ser intelectualmente
truncado e deformador. Por mais que os economistas e todos aqueles
influenciados pelo economicismo concedam de bom grado que o fim
último do desenvolvimento econômico é proporcionar bem-estar às
populações, a lembrança e o uso de “indicadores sociais” como espe
rança de vida ao nascer, taxa de alfabetização e número de habitantes
46
□
por leito de hospital não deve iludir quanto ao fato de que, tecnica
mente, o desenvolvimento econômico, na sua essência conceituai,
restringe-se à conjugação de crescimento do produto e modernização
tecnológica. E, por mais que se tagarele também sobre “sustentabili-
dade ambiental”, nem os custos ambientais nem os custos sociais do
crescimento e do progresso técnico são adequadamente (isto é, pro
fundamente) considerados. Daí ser conveniente, aliás, usar aspas ao
referir-se ao “desenvolvimento” econômico capitalista. Em contra
posição a ele, tem o autor advogado um desenvolvimento sócio-
espacial, infenso ao conteúdo economicista (vale dizer, a economia,
notadamente enquanto economia capitalista, como núcleo concei
tuai), etnocêntrico (o Ocidente capitalista como um modelo a ser imi-
ludo) e teleológico (a premissa de que todos os países haverão de pas
sar, cedo ou tarde, pelas mesmas “etapas”, dentro de uma trajetória
preestabelecida e inevitável) típicos da ideologia capitalista do
“desenvolvimento” econômico.
O desenvolvimento urbano autêntico, de sua parte, nada mais
seria que o desenvolvimento sócio-espacial na e da cidade, e muito
pouco ou nada teria a ver com coisas tais como expansão urbana, ver-
licalização e maior complexidade do espaço urbano, ao menos quan
do tomadas isoladamente. Ganhos em matéria de desenvolvimento
urbano serão, de um ponto de vista autonomista, tão mais consisten-
les e legítimos quanto mais forem obtidos sobre os fundamentos de
uma expressão livre e transparente dos desejos dos indivíduos envol
vidos ou afetados. Ainda que possam existir ganhos materiais na
ausência de liberdade ou sem correspondência com ganhos de liber
dade - nos marcos de algum tipo de “despotismo esclarecido”, de um
regime populista ou de uma “ditadura desenvolvimentista” e por
mais que esses ganhos possam ser, historicamente, nada despre
zíveis, de um ponto de vista autonomista seria incoerência saudar
i |ualquer forma de tutela sobre o povo, seja ela “benevolente” ou não.
Avanços pontuais em matéria de qualidade de vida, se dissociados de
nvanços consistentes em matéria de justiça social - avanços esses que
pressupõem aumento de autonomia e redução de heteronomia - , são
perigosamente limitados.
Por isso é que, apostando na auto-organização da sociedade para
superar obstáculos e inventar soluções, e rejeitando tanto a tutela de
um aparelho de Estado “separado” do restante da sociedade e encar
nando um a divisão estrutural entre dirigentes e dirigidos (que,
mesmo nas mais “avançadas” “democracias” representativas, só
muito imperfeitamente é relativizada) quanto a atribuição da respon
sabilidade pela mudança social a alguma outra força que não a pró
pria sociedade (no estilo “vontade divina” ou “determinantes da natu
reza”), um olhar autonomista confere central importância aos movi
mentos sociais. Isso não significa, porém, negar que o Estado, enten
dido não como um simples “comitê executivo da burguesia” (posição
marxista-leninista ortodoxa) e muito menos como um “árbitro neu
tro” a mediar racionalmente os interesses dos grupos particulares
(posição liberal), mas como uma “condensação de relações de for
ças” (POULANTZAS, 1985), pode, em conjunturas específicas
favoráveis, vale dizer, enquanto governo condicionado por uma
constelação de forças orientada para a mudança social, mostrar-se
um instrumento taticamente útil. Ainda que isso não elimine uma
oposição estratégica ao Estado, perceber e jogar com as diferenças
entre conjunturas distintas pode servir, especialmente em momentos
históricos marcados pelo conservadorismo e a confusão, como a
atual quadra da história, para acumular forças e evitar o completo iso
lamento dos grupos revolucionários.
O planejamento e a gestão urbanos têm sido, historicamente,
usualmente conservadores, e mais: são, quase sempre, para o bem ou
para o mal, seja para elogiá-los ou criticá-los, associados apenas ao
aparelho de Estado. Por mais que isto pareça banal, tal fato, como
tantos outros, é “feito” , pois não independe de uma filtragem ideoló
gica. Aqui, como em trabalhos anteriores do autor (SOUZA, 2002 e
2006b), defende-se um planejamento urbano crítico (e uma gestão
urbana crítica), e a referência não é somente às ações de planejamen
to eventualmente conduzidas por administrações locais de esquerda
menos ou mais “pragmáticas” , realmente capazes de propiciar avan
ços que não sejam apenas cosméticos ou ganhos puramente mate
riais, mas sim de permitir algum tipo de avanço político-pedagógico
48
□
sobre os alicerces de esquemas ousadamente participativos de plane
jamento e gestão. A referência é também, e acima de tudo, ao papel
proativo das organizações dos movimentos sociais, elaborando, elas
mesmas, estratégias alternativas, corcfraplanejamentos, coníraproje-
tos, e muitas vezes buscando, igualmente, implementar, mesmo que
em escala reduzida (“nanoterritórios”: ocupações e assentamentos de
sem-teto, por exemplo), mas com a ajuda de articulações logísticas e
políticas em rede, experiências de gestão territorial. Mais que um pla
nejamento e uma gestão críticos, esse planejamento e essa gestão
protagonizados pelos movimentos sociais merecem ser qualificados
de insurgentes. E, naqueles casos em que se está diante de um estilo
verdadeiramente horizontal e antiautoritário, o planejamento e a ges
tão insurgentes, que são uma modalidade radical do planejamento e
da gestão críticos, se apresentam, efetivamente, como “autoplaneja-
mento” e autogestão. Mais que qualquer iniciativa estatal, são essas
experiências dos movimentos sociais, às vezes “com o Estado”, mas
essencialmente apesar do Estado e contra o Estado (SOUZA,
2002:86, 197; 2006b: 174, 195, 458; 2006c), que podem servir de
“laboratórios” para se pensar e imaginar o que poderiam ser o plane
jam ento e a gestão urbanos em uma sociedade futura, não-hete-
rônoma, e para construir as condições de edificação dessa sociedade.
No presente livro, os dois caminhos delineados no parágrafo
acima, quais sejam, o planejamento e a gestão consistentemente par
ticipativos promovidos pelo Estado em conjunturas específicas e o
planejamento e a gestão insurgentes dos movimentos sociais, serão
valorizados. Este não é, contudo, um livro típico de planejamento e
gestão urbanos, mas sim uma reflexão sobre a problemática do medo
generalizado nas cidades e da militarização da questão urbana. A dis
cussão de possíveis soluções, tarefa necessária e da qual o autor não
pretende demitir-se, dar-se-á na interface entre política urbana e
segurança pública. Oxalá esta combinação e a busca de alargamento
de horizontes analíticos e prospectivos que ela representa tragam um
pouco mais de luz para um debate cada vez mais ameaçado por obs-
curantismos e parcialismos de toda ordem.
49
1. Cidades fragmentadas, medo
generalizado: das “áreas de risco"
ã “ubiqüidade do risco”
51
[c]ontrariamente aos homicídios, (...), são os moradores das
áreas mais abastadas e com maior desenvolvimento urbano os
que estão expostos a um maior risco de serem vítimas de roubos
e furtos. A incidência desses delitos é especialmente elevada
entre as pessoas do estrato social mais alto. As agressões, porém,
não mostram um padrão claro de relação com o nível de vida.
(CANO, 1997:38)
9 Sim plificações, inclusive, não som ente no tocante à escala intra-urbana, mas tam
bém no que se refere às com parações entre cidades. O M inistério da Saúde estabele
ceu um útil “Ranking da V iolência” , com índices de violência para cem m unicípios,
que aponta, para os anos de 2000 a 2004, São Paulo com o índice m ais elevado, e o
Rio de Janeiro com o segundo mais elevado; não obstante, o referido índice abrange
d e s d e h o m ic íd io s a s u ic íd io s , p a ssa n d o po r m o rtes de trâ n sito (c f. d ad o s em
h ttp ://p o r ta l.s a u d e .g o v .b r /p o r ta l/a r q u iv o s /p d f /r a n k in g _ f in a l.p d f ; a c e s so em
29/9/2007). Um exam e atento da distribuição da incidência dos diferentes tipos de
52
□
equipe do ISER ajuda a demolir um preconceito típico da classe
média, que se sente “acuada” pela violência e ignora que nas perife
rias urbanas predominantemente ocupadas por pobres, longe de suas
vistas, é onde a violência se faz sentir mais intensamente - perpetra
da por “bandidos comuns” mas, também, por grupos de extermínio e
esquadrões da morte.
Sem querer, de modo algum, negar a importância e a correção
desses trabalhos, pretende-se aqui introduzir um elemento de relati-
vização do problema das “áreas de risco”, mas de uma forma que se
acredita ser compatível com a visão de uma “geografia da violência”
complexa e espacialmente desigual.
Em uma metrópole como o Rio de Janeiro, onde o sentimento de
insegurança se acha, hoje em dia, muito disseminado, falar em “áreas
de risco” já justificou, por exemplo, uma sintomática brincadeira
feita por alunos de graduação do autor (moradores de diferentes par
tes da cidade), ao ser o assunto tratado em aula: “é só colorir de ver
melho o mapa, cobrindo a cidade toda!” É claro que não se trata de
crim inalidade violenta entre as cidades brasileiras revela que, a propósito de certos
tipos particularm ente im portantes, São Paulo e Rio não assum em os prim eiros luga
res. Um a visita à página do Centro de Estudos de C rim inalidade e S egurança Pública
(CRISP) d a U niversidade Federal de M inas Gerais na internet m ostra, por exem plo,
que Recife, e não o Rio de Janeiro ou São Paulo, é que apresentou, ao longo das
décadas de 80 e 90, as taxas de hom icídio mais altas entre todas as capitais brasilei
ras. De 1980 a 2000, som ente em um ano (1996) a taxa de hom icídio de R ecife
(79,98) foi superada pela de São Paulo (127,86), em bora não pela do Rio de Janeiro
(69,20). (Se se considerar que, em 1995, a taxa de São Paulo havia sido de 57,05, e
que em 1997 foi de 57,22, e levando-se em conta a evolução tam bém ao longo de
um período m ais longo, pode-se concluir que o “salto” representado pela taxa em
1996, e portanto a enorm e dianteira de São P aulo, por totalm ente inconsistente com
o padrão, são coisas a serem encaradas com grandes reservas.) O utras capitais, além
disso, viram , ao longo do período 1980-2000, suas taxas de hom icídio crescerem
muito m ais expressivam ente que as de São Paulo ou Rio de Janeiro: em V itória essa
taxa saltou de 15,72 em 1980 para 55,58 em 1990 e 78,90 em 2000. É lícito pressu
por que a parcialm en te ex cessiv a concentração das atenções da m ídia telev isiv a
sobre R io e São Paulo tem a ver não som ente com o tam anho e a im portância ec o
nôm ica e sim bólica das duas m etrópoles nacionais (ou com o caráter particularm en
te “espetacular” dos conflitos aí registrados, em especial no R io - neste caso, devido
às próprias peculiaridades do padrão de distribuição das classes sociais no espaço),
mas tam bém com a hiperconcentração das em presas de jo rn alism o televisionado
nessas duas capitais.
sucumbir às generalizações fáceis, de sabor jornalístico e sensaciona
lista, e que, conforme se comentou há pouco, não raro escondem pre
conceitos elitistas. Mais do que nunca, porém, impõe-se falar sobre
as gradações do risco, espaciais e temporais, uma vez que, em uma
primeira aproximação, parecem ser muito poucos os locais onde o
carioca ou o paulistano (mais uma vez, apenas para ficar em dois
exemplos notórios), hoje, se sentem seguros.
Está claro que o risco, apesar de se ter difundido tanto, não se
apresenta em todos os locais e momentos com a mesma intensidade.
É isso que, sem dúvida, justifica uma atenção pormenorizada sobre o
assunto da “geografia da violência” em sua face “objetiva”. E, no
entanto, o sentimento de insegurança como que se “deslocaliza” mais
e mais e se torna quase que ubíquo em algumas grandes cidades. Se
uma bala perdida de fuzil pode tirar a vida em qualquer lugar - no
beco de uma favela e dentro do apartamento de classe média; se nem
shopping centers e nem mesmo bancos ou “condomínios exclusi
vos”, com todo o seu aparato de segurança, são completamente segu
ros; se prédios de apartamentos da classe média alta são invadidos e
saqueados com freqüência; se seqüestros “comuns” e seqiiestros
relâmpago se tomam corriqueiros; se basta ser tido por “suspeito”,
pela aparência, para ser discriminado, humilhado e, no limite, execu
tado por policiais agindo como justiceiros ou em retaliação; então,
onde, afinal, estariam os “lugares seguros”?... É como se a “geogra
fia do medo”, baseada em um sentimento de insegurança que, mui
tas vezes, pode descolar-se em parte da incidência objetiva dos cri
mes violentos, se superpusesse à “geografia da violência” mais ou
menos “objetiva”. Um medo generalizado, ainda que matizado tam
bém ele (de acordo com a classe, a cor da pele, a faixa etária, o sexo
e o local de residência), toma conta de corações e mentes, (re)condi-
cionando hábitos de deslocamento e lazer, influenciando formas de
moradia e habitat e modelando alguns discursos-padrão sobre a vio
lência urbana.
Nada mais distante de uma fobópole que o quadro pintado nes
tes versos de Mário Quintana no poema “A rua dos cataventos”:
54
□
Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos...
56
□
péias. Exemplos de segregação propriamente forçada ou imposta vão
dos guetos de ju d e u s, na velha E uropa (a com eçar p elo fam oso
Ghetto de V eneza10), à separação entre os espaços residenciais dos
colonizadores brancos e das populações nativas em cidades da África
e da Á sia (L A V ED A N [1959:209] m enciona, entre outros casos,
Nairóbi), sem falar no exemplo da África do Sul sob o apartheid -
que perdurou até fins do século XX com suas townships, como a
famosa Soweto, nos arredores de Joanesburgo. Exemplos de segrega
ção induzida pelas circunstâncias, mas não propriamente forçada, são
os guetos de imigrantes ou negros nas cidades dos EUA, ou as áreas
pobres (favelas, periferias) em cidades latino-americanas. Em muitas
situações, a segregação, especialmente quando não é im posta por leis
e pelo próprio E stado, apresenta um a dupla face: m esm o quando
indivíduos bem-sucedidos têm a chance de “sair do gueto” , nem sem
pre o fazem , tem endo desajuste social ou pressões. C om o disse
alguém certa feita, referindo-se a essa situação em guetos de negros
nos EUA, se já é difícil ser minoria em grupo, é muito mais difícil ser
minoria sozinho (M ORRILL, 1975:155). O gueto, em um certo sen
tido, também protege; é um refúgio, e ademais cria e recria identida
de. Entretanto, isso não elimina o fato - que alguns teimam em negar
ou ignorar - de que a margem de “livre-arbítrio” se circunscreve a
limites bem estreitos, e de que fatores políticos, étnico-culturais e/ou
econômicos respondem por um quadro no qual nem todos possuem o
mesmo poder, o mesmo prestígio e a mesma liberdade de m orar onde
desejarem.
Voltando à justificativa da expressão “fragm entação do tecido
sociopolítico-espacial” , deve-se sublinhar que a fragm entação em
questão é espacial, e não setorial, como é o caso nos trabalhos que
tomam o term o “fragm entação” como uma espécie de sinônim o de
“aumento de disparidades socioeconôm icas” e como contraponto à
1,1 De onde se originou, aliás, a palavra “gueto” . O G hetto era uma parte pouco salu-
bre d a cidade, na qual os judeus venezianos, proibidos de adquirir terras, foram obri
gados a m orar a partir do século XV. Ele possuía portões controlados por guardas
cristãos, e os ju d eu s, em bora saíssem de dia para trabalhar, não podiam deixá-lo à
noite.
globalização. Além do m ais, é especificamente (socio)política, con
quan to não ten ha a ver, em princípio, com qualquer m udança da
m alha territorial legal/oficial, visto que a disseminação de “territoria-
lidades excludentes” envolve, diretamente, a própria sociedade civil.
Por fim , ela não é meramente um a nova maneira de designar a segre
gação residencial, muito embora a segregação se veja, na esteira do
processo, agravada, por conta dos novos ou renovados preconceitos
contra os moradores de favelas. É evidente que, no caso em tela, não
se trata de presum ir que as partes “não se conectam m ais” umas com
as outras. Contudo, quando se observam os processos de territoriali-
zação de favelas por traficantes de varejo, com isso se convertendo
estas em enclaves territoriais em meio a uma dialética abertura/fecha
m ento - organização em redes e abertura em face dos consum idores
e fornecedores de drogas e armas convivendo com um controle terri
torial que desafia a face oficial do Estado - , e quando a isso se acres
centam a auto-segregação das elites (proliferação de “condom ínios
e x c lu siv o s”) e toda um a sorte de fenôm enos de auto-enclausu-
ram ento e artifícios espaciais de proteção (“privatização branca” de
logradouros públicos por meio de guaritas e cancelas, por exem plo),
percebe-se que vários tipos de interação espacial diminuem (e até
tendem a desaparecer) ou tornam-se (muito) mais seletivos. Em vista
disso, “fragm entação” aparece, no caso em questão, como um termo
razoavelm ente apropriado, desde, é claro, que não sejam esquecidas
duas coisas: 1) não se trata, e nem poderia tratar-se, de um a fragmen
tação com o um estado “absoluto” , mas sim com o um processo-, 2)
está-se lidando com um a metáfora, a qual, com o toda metáfora, pos
sui virtudes e limitações.
A inda mais do que em outros contextos nos quais o emprego do
term o “fragm entação” é, talvez, também aceitável na pesquisa urba
na (por exem plo, traduzido como baixa coesão sócio-espacial intra-
m etropolitana em decorrência da reduzida m obilidade espacial dos
mais pobres [SANTOS, 1990:89-90]), aqui o uso da palavra é essen
cialm ente adequado, um a vez que o tecido espacial que emerge do
processo não é somente “diferenciado internam ente” ou caracteriza
do por disparidades. Está-se lidando, na verdade, com uma cidade
58
□
cada vez mais segmentada por poderosas fronteiras invisíveis, ilegais
em grande parte. Fronteiras são estabelecidas com a finalidade de
controle espacial, e no caso em questão o principal fator é um dos
dois seguintes, dependendo do tipo de espaço e dos atores envolvi
dos: ou o exercício de um a m odalidade de “econom ia da violên
cia” ,11 incluindo atividades de extorsão, ou a busca de segurança e
manutenção de certos privilégios.
A referid a segm entação reduz a m obilidade espacial intra-
urbana - tanto de pobres (por exem plo, quando os moradores de uma
determinada favela territorializada por uma quadrilha ligada a um a
certa “facção” do tráfico de drogas de varejo se vêem desencorajados
ou im pedidos de visitar am igos ou parentes que m oram em outra
favela, controlada por um a “facção” rival) quanto da classe média
(que vai deixando de freqüentar vários espaços, por medo da violên
cia). Com isso, exclusões e auto-exclusões são criadas ou reforçadas.
O fenôm eno da fragm entação, nos termos que aqui interessam, é
relativamente novo. Em sua face atual ele não é, grosso modo, ante
rior à virada dos anos 70 para os anos 80. N a sua esteira, é a própria
idéia da cidade como “unidade na diversidade” (apesar do capitalis
mo, da segregação etc.) que se vê incrivelm ente sabotada, em um
sentido sociopolítico.
60
□
invasões de quadrilhas rivais e, mesmo, da polícia. Ou, pelo menos,
terão facilidade para retardar uma invasão e evadir-se.
A caracterização dos traficantes de drogas de varejo é algo que
merece bastante cautela. Por um lado, há uma “demonização” de seu
comportamento e um a magnificação de seu papel no discurso típico
da grande imprensa, que raramente contribui para que se compreenda
a “fabricação social” de indivíduos que, de fato, muitas vezes come
tem atos brutais e cruéis (inclusive ou sobretudo contra outros indiví
duos nascidos e criados em favelas) e, ao mesmo tempo, colabora para
que o grande público concentre suas atenções - e seus medos e ódios
- apenas na ponta do varejo, deixando na sombra os verdadeiros gran
des traficantes e seus sócios e facilitadores (aquilo que o autor deno
minou o “subsistem a I-E-A ” , ou “im portação-exportação-atacado”
ISOUZA, 1996b; 2000]). Essa perspectiva deriva, por assim dizer, da
representação social dos pobres que largamente predomina na classe
média e também na mídia, segundo a qual cada um é inteiramente res
ponsável por suas “escolhas” , tendo, em matéria de slatus e condição
social, geralmente “o que merece” . Por outro lado, se um a certa ten
dência romântica de certos intelectuais a enxergar nos traficantes ope
rando no varejo “Robin Hoods” ou “bandidos sociais” saiu de moda
desde fins dos anos 80, isso não impede que alguns mitos a seu respei
to, como o de que normalmente atuam como “benfeitores” em suas
“comunidades” , continuem em circulação.
Enfim: demônios ou benfeitores? Nem um a coisa nem a outra:
oprim idos que oprim em outros oprim idos (SO U Z A , 2005:7;
2006b:510). Em bora via de regra atuem como com erciantes, dentro
de uma m entalidade capitalista, eles podem , ocasionalm ente, tanto
demonstrar um a certa solidariedade com pessoas da “com unidade”
onde atuam (genuína ou por razões “políticas”) quanto com eter atos
de crueldade contra essas mesmas pessoas. Pelas características de
uso disseminado da violência de que acaba se revestindo em decor
rência da ilegalidade, o tráfico de drogas ilícitas corresponde perfei
tamente àquilo que, na linguagem jornalística dos anos 80, se atribuía
ao Brasil como um todo: um “capitalismo selvagem ” (ver detalhes
em SOUZA [2000:Cap. 1 da Parte I]).
Em bora muito do que o leitor vá encontrar nos próximos pará
grafos se aplique também a outras cidades brasileiras, os detalhes
dizem respeito ao Rio de Janeiro, “laboratório” principal e preferen
cial do autor. Pois bem: diferentem ente da geração m ais antiga de
integrantes do Comando Vermelho, que se utilizava amplamente de
símbolos de esquerda (a começar pelo próprio nome da “facção”, ini
cialmente denominada “Falange Vermelha”), e até mesmo pelo fato
de cada “dono” ou “gerente” ter raízes na favela que controlava ou
em que operava (por lá ter nascido e sido criado), a partir dos anos 90,
com a expansão das redes, veio a anonimização crescente, e a prisão
ou morte dos mais velhos acarretou a sua substituição por indivíduos
cada vez mais jovens e imaturos (normalmente consumidores de dro
gas eles m esm os), tendo com o resultado o crescim ento da violên
cia.12 Como diz MV Bill no rap Soldado morto,
Fato estarrecedor,
Os inimigos são pobres
E da mesma cor.
12 É claro que, principalm ente em certas cidades e estados brasileiros, o aum ento da
própria violência policial tem contribuído para o crescim ento da violência em geral,
ou sobretudo no interior dos espaços onde se concentra a população pobre.
13 Sobre a palavra “com unidade”, é preciso cham ar a atenção, de um ponto de vista que
preze o rigor conceituai, para as contradições e inconsistências que cercam o seu uso
no q u o tid ian o . A id éia de “co m u n id ad e", que “ pressu p õ e h arm o n ia nas relações
sociais" (D U RH A M , 2004:221), foi historicam ente adotada, nas ciências sociais, para
designar espaços e grupos relativam ente pequenos e hom ogêneos e sem grandes fratu
ras ou contradições, com o a fam ília e a aldeia; opôs-se — com o lem bra o clássico par
c o n tra sta n te (que deu títu lo a um conhecido livro do so ció lo g o alem ão T õnnies)
Gemeinschafi (com unidade) e Cesellschaft (sociedade) — à sociedade, encarada com o
algo m uito m aior e mais com plexo, por definição heterogêneo. No entanto, com o lem
bra Durham , parte da Sociologia norte-am ericana abandonou a oposição com unidade-
sociedade, por conseguinte abrindo mão de um a definição teórica m ais clara; “com u
62
□
Os traficantes de varejo estabelecidos em favelas vêm , há vários
unos, diversificando suas atividades para além do próprio tráfico de
drogas. C ontrolam , m uitas vezes, o acesso à água e im põem taxas
diversas, o que caracterizaria um a verdadeira extorsão. Ademais, os
traficantes controlariam grande parte do transporte coletivo (sendo
sócios ou donos das “vans” que proliferaram a partir dos anos 90).
Por fim, chegariam ao ponto de recolher do comércio local “alvarás
de localização” .
A diversificação dos negócios tem-se m ostrado, desde fins dos
unos 90, uma necessidade cada vez maior também pelo fato de que os
rendim entos do tráfico de varejo estabelecido em favelas vêm -se
npresentando decrescentes: a cocaína vem-se tom ando m ais barata, e
u concorrência das drogas sintéticas (como o ecstasy), com um ente
comercializadas em ambientes de classe m édia como casas noturnas
c raves, vem aumentando. Ao mesmo tempo, conquanto a extorsão
praticada por policiais corruptos perm aneça um fator de custo para os
varejistas do tráfico, em algum as favelas já se com eça a notar um
outro tipo de pressão sobre os traficantes por parte de policiais atuan
do à margem da lei, mas não no esquema da tradicional propina: são
us “m ilícias” , ou a “polícia m ineira” , isto é, policiais que constituem
grupos de ex term ín io , expulsam ou subordinam os traficantes e,
iilgumas vezes, chegam ao ponto de assum ir os negócios ilícitos
iintes operados pelos criminosos. Em face de tudo isso, não é difícil
entender que as disputas por território entre os traficantes m uitas
63
■
vezes recrudesçam e que suas atividades se estendam cada vez mais
para outros tipos de delito, a título de “com plementação de renda” .
De um modo geral, e analisando com parativamente, a situação dos
varejistas como o “primo pobre” nunca foi tão evidente quanto agora.
A expansão e o fortalecimento do tráfico de varejo nas décadas
de 80 e 90 inevitavelmente levariam a atritos com outras formas de
organização existentes nos espaços que lhes servem de pontos de
apoio logístico e que são territorializados. Conforme será abordado
em detalhes no Cap. 3, associações de moradores têm sido manipula
das e líderes “com unitários” muitas vezes já foram perseguidos e
ameaçados - e até mesmo executados por ou a mando de traficantes.
Outro problem a é aquele concernente à interferência, direta ou
indireta, deliberada ou não, de traficantes de varejo nas atividades de
planejam ento, gestão e prestação de serviços públicos por parte do
Estado. Uma ilustração didática disso é oferecida pela im plementa
ção do Programa Favela-Bairro, da Prefeitura do Rio de Janeiro. Há,
inclusive, várias superposições com o problema da interferência dos
criminosos nas associações de moradores, e cenários futuros podem
ser elaborados: embora a regularização fundiária esteja longe de ser a
tônica do Favela-B airro, que basicam ente se tem concentrado na
dotação de infra-estrutura, os traficantes, conforme temor manifesta
do por um delegado entrevistado pelo autor em 2003 (delegado esse
que, na épo ca, era o C oordenador de M onitoram ento do G rupo
Executivo do Programa Delegacia Legal), ao controlarem ou interfe
rirem em associações de moradores, poderiam manipular também a
docum entação referente à posse de terrenos e influenciar os proces
sos de localização e relocalização de casas.
Para além das especulações fundam entadas, fatos constatados
pelo autor e sua equipe referem-se a três tipos básicos de interferên
cia, classificáveis como nâo-deliberada, deliberada indireta e deli
berada direta. Exemplos de interferência não-deliberada são as con
seqüências das “guerras” entre quadrilhas e os confrontos entre trafi
cantes e a polícia, que assustam e, no limite, forçam a paralisação de
obras. A interferência deliberada indireta m anifesta-se, por exem-'
pio, sob a form a de utilização da associação de m oradores (ou de
líderes informais da localidade) como “ instância de mediação e nego
ciação” , com o objetivo de fazer exigências específicas quanto a pro
jetos, exigir pagamento de “pedágio” etc. Quanto à interferência deli
berada direta, exemplos são a intimidação de equipes e técnicos e a
“requisição” ou apropriação de equipam entos da Prefeitura ou das
empreiteiras. Essa classificação, que retoma e m odifica ligeiramente
aquela contida no estudo empírico de VALLE (2006), orientado pelo
presente autor, pode ser am pliada para dar conta de um a segunda
maneira de perceber as modalidades de interferência deliberada. Há,
com efeito, tanto ingerências ex ante facto, que ocorrem quando há
algum veto ou exigência de modificação do próprio projeto, quanto
interferências ex post facto, que têm lugar quando, após as obras reali
zadas, os traficantes impõem alguma alteração. Isso sem contar, obvia
mente, as alterações exigidas ou outros efeitos causados durante a exe
cução das obras. Maiores detalhes sobre esse assunto podem ser encon
trados no subcapítulo 2.2, que em larga medida é a ele dedicado.
Outros exem plos de arbitrariedade e m esmo crueldade contra
m oradores poderiam ser fornecidos - com o aquele, relatado pela
imprensa carioca em 2003, sobre uma adolescente hum ilhada (obri
gada a desfilar nua pelas vielas da favela onde m orava), depois estu
prada, em seguida torturada e finalmente executada pelos traficantes
por ter com etido a abom inável infração de nam orar um rapaz de
outra favela, controlada por uma facção (“com ando”) rival. Desfiar
um rosário de atrocidades não traria, porém, qualquer ganho substan
tivo à conclusão parcial já adiantada parágrafos atrás, segundo a qual
os traficantes de varejo são oprimidos (por suas origens, por seu sta-
tus social e mesmo por sua importância e seu papel no contexto da
economia ilegal em geral), mas oprimidos que, se não sempre, decer
to com freqüência oprimem outros oprimidos.
A conclusão acima é, contudo, apenas parcial. O balanço sobre o
papel dos traficantes de varejo estaria inadm issivelm ente enviesado
se não se conviesse que o tráfico de drogas acarreta benefícios mate
riais para uma não-desprezível parcela da população favelada. É bem
verdade que os custos desses benefícios são altos: mortandade eleva
da, baixa esperança de vida, quotidiano de violência (brutalidade
policial, “guerras” entre quadrilhas); e é bem verdade, tam bém , que
esses benefícios empalidecem se comparados com os ganhos dos ver
dadeiros grandes traficantes e de seus sócios. N o entanto, quando
com parados à escassez de oportunidades de obtenção de renda por
outras vias, esses benefícios não podem ser desconsiderados. Tais
benefícios são de diferentes tipos: churrascos para a “com unidade” e
outros presentes; auxílios esporádicos, com o dinheiro para um a
viúva com prar remédios; estímulo a diversos negócios, de biroscas à
venda de refeições prontas e embaladas (“quentinhas”) para os crim i
nosos, mercê da circulação de dinheiro possibilitada pelo com ércio
ilícito; e, por fim , aquilo que é o principal: a remuneração de um con
tingente não necessariamente inexpressivo de m oradores, com eçan
do pelos jovens que fazem a segurança dos pontos de venda de tóxi
cos (“ soldados”), passando pelos ainda m ais jo v en s (com um ente
crianças) que entregam drogas aos clientes ou prestam outros servi
ços (“vapores” , “aviões” e “olheiros”) e chegando àqueles, entre os
quais não raro se incluem pessoas idosas, que trabalham na “endola-
ção” , ou seja, embalando drogas.
É seguro que, em comparação com a época em que o autor publi
cou os seus primeiros trabalhos sobre o tema (vide SOUZA, 1994a,
1995a, 1995b e, sobretudo, 1996b), a atratividade econôm ica do
tráfico para os jovens das favelas do Rio de Janeiro diminuiu. Orde-
nhados por policiais corruptos, em m eio a esquem as de extorsão
am plam ente d issem inados, os traficantes viram os seus lucros
decaírem ainda mais ao perder, rapidamente desde 2006, territórios
para as “milícias” paramilitares, integradas por (ex-)policiais e (ex-)
bombeiros. A isso se acrescenta o “sucesso” de drogas sintéticas como
o ecstasy, amplamente traficada por gente da própria classe m édia.
Apesar disso, o comércio ilegal de drogas segue sendo uma importan
te fonte de renda para muitos pobres, direta ou indiretamente.
A lém dessa “utilidade” material do tráfico de drogas, relativa em
função de seus custos e também de um certo declínio, há a não menos
relativa “sim patia” de muitos moradores pelos traficantes, por conta
de fatores variados: desde a necessidade de acomodar-se a eles e de
66
□
sobreviver até o ódio comparativamente maior alim entado em rela
ção à polícia.14 Não se trata, no fundo, muitas vezes, de uma verda
deira “sim p atia” , m as de algo m uito m ais com plexo, que m uito
menos se deixa traduzir pela acusação de “conivência” , explícita ou
implicitamente formulada por agentes das forças de repressão e pela
pequena-burguesia em geral.15
gestores locais) foram conduzidas por um dos assistentes do autor. O utros depoim en
tos im portantes, colhidos diretam ente pelo autor em 2004, foram os do Coordenador
de M onitoram ento e o da Coordenadora do Atendim ento Social do G rupo Executivo
do Program a D elegacia L egal, da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro.
68
□
segundo lugar, o termo também nos remete à proliferação de firmas
de segurança privada. Mas os próprios traficantes de varejo guardam
estreita e direta relação com essa “paramilitarização” . Do uso de uma
terminologia parcialmente inspirada no mundo m ilitar, como o termo
“soldados” para designar os homens responsáveis pela segurança dos
pontos de venda de drogas, até o uso de armamento militar e pesado
(desviado de quartéis ou comprado), passando pela em ulação de táti
cas de guerrilha, percebe-se que a criminalidade ordinária organizada
ou sem i-organizada vem assum indo características diferentes das
vigentes até três décadas atrás, quando os “bandidos” andavam arma
dos, no máxim o, com um revólver, excepcionalm ente com alguma
metralhadora ou submetralhadora. Quadrilhas e facções vêm adquirin
do as feições de forças paramilitares, ainda que movidas essencialmen
te pelo lucro e não por program as ou objetivos de transform ação
político-social (as “milícias” , aliás, tampouco o são).
Para completar o quadro, vale registrar que se constata, mais que
uma emulação do mundo da guerra, um “casam ento” desse mundo,
ou melhor, do mundo das “novas guerras” , com o m undo empresa
rial. Isso é indicado por outros elementos da term inologia dos trafi
cantes de varejo: “geren te” , “gerente g eral” ... O que com binaria
melhor com um a econom ia da violência do que a junção prática e
sim bólica desses dois m undos?... A liás, observa-se um a dialética
entre o “mercado da violência” e o “mercado da segurança” : o pri
meiro estimula e parece justificar a expansão do segundo, e este, por
sua vez, mesmo que indiretamente (desvio e venda ilegal de armas),
termina por alimentar aquele.
i<> D iversam ente de m uitos outros estudiosos pelo m undo afora, Salcedo e T orres, no
artigo supracitado, concluem que, pelo menos em Santiago, as com unidades enreja-
d as são m enos excludentes do que se poderia supor, não chegando a constituir-se em
enclaves sem contatos com a população pobre residente fora de seus m uros, m uito
m enos cultivando m edo em relação a esta. Segundo eles, com base na investigação
porm enorizada de um caso, ao m esmo tem po em que a baixa coesão social interna
aos “condom ínios” sugere que a “vida em com unidade” é um a ilusão (SA LC E D O e
T O R R E S , 2004:37), vários laços unem os m oradores de classe m édia ou da elite aos
resid en tes pobres extram uros: com o indicam m uitos dos depoim entos das pessoas
hum ildes entrevistadas, estas viram a infra-estrutura local m elhorar graças à proxim i
dade dos residentes abastados, suas oportunidades de em prego (com o em pregadas
d o m é s tic a s e a s se m e lh a d o s ) a u m e n ta re m , o v a lo r d e se u s te rre n o s c r e s c e r e ,
70
□
Vale a pena recuperar da Geografia Humana tradicional o termo
habitat - designando uma escala que transcende a habitação indivi
dual ainda que purgado de seu atrelamento à problemática e já tão
criticada (ver, por exemplo, SANTOS, 1978:19 e segs.) idéia de “gêne
ro de vida” , para analisar as mudanças de organização espacial que
vêm na esteira da proliferação dos “condomínios exclusivos” e seus
congêneres. Comumente utilizado, na velha Geografia Humana, para
descrever a realidade do espaço rural (com o em D EM A N G EO N ,
1956), depois estendido também para o ambiente urbano, o antigo con
ceito antropogeográfico de habitat diz respeito ao padrão espacial de
distribuição das habitações', habitat nucleado, habitat disperso, habi
tat linear... Uma gated community corresponde a um habitat nucleado
e murado, por razões de segurança. Sob a influência do medo, do sen
timento de insegurança que se dissemina, morar em casas isoladas e
mesmo em prédios de apartamentos que não estejam protegidos pelo
uparato de segurança de um verdadeiro “condomínio exclusivo” vai-se
ninda por cim a, m uitas vezes (m as nem sem pre) não se sentem discrim inadas pelos
vizinhos ricos (págs. 33 e segs.). Para além de eventuais peculiaridades de Santiago,
essa visão m ais benevolente ou com placente em relação à auto-segregação parece
ter, em prim eiro lugar, um a questão de interpretação: a despeito de cham ar a atenção
pura a caricatura de “ vida com unitária” nos espaços auto-segregados (indo de encon
tro, nesse particular, à ideologia dissem inada pela publicidade dos “condom ínios”),
cia oferece um a interpretação de resto bastante acrítica, cujo tom às vezes b eira a
"filantropia” , m ostrando desatenção para com aquilo que o presente autor caracteri-
zuu, tendo com o “ laboratório” principal o caso brasileiro, com o um escapism o hipó
crita (ou seja: “ aq u eles que têm condições de se auto-segregar não prescin d em ,
enquanto patrões, daqueles que eles desejam excluir de seu cotidiano e de sua paisa
gem na qualidade de vizinhos, mas que são necessários na qualidade de porteiros,
empregadas dom ésticas etc. e, na cidade existente fora dos m uros do condom ínio, na
qualidade d e trabalhadores em geral” [SO U ZA , 2000:206]). M esm o considerando
que, no caso específico estudado pelos dois pesquisadores chilenos, os m oradores
privilegiados tenham m anifestado pouco ou nenhum incôm odo ou m edo devido à
proximidade d a villa (favela) La Esperanza (SA LCED O e T O R R E S , 2004:37), eles
próprios honestam ente registram que La Esperanza, um a favela pequena e (na per
cepção de um dos m oradores abastados entrevistados) com características que ainda
lembravam um assentam ento de área rural, não poderia ser tom ada com o representa-
llvu das favelas de Santiago (pág. 41); além disso, um a outra investigação, que eles
Imviam acabado de conduzir em outro local e a respeito da qual os dados e inform a
r e s ainda eram prelim inares, indicava que, nessa outra situação, as relações entre os
moradores auto-segregados e seus vizinhos pobres eram m arcadas, sim , pelo medo
dos prim eiros em face do entorno pobre de seus “condom ínios” .
apresentando como uma opção cada vez menos atraente em favor do
tipo de habitat representado por uma gated community. A organização
espacial da cidade se vai, na esteira disso, modificando.
A auto-segregação acarreta importantes conseqüências em maté
ria de fragm entação. Não menos que a formação de enclaves territo
riais controlados por traficantes de drogas (ou por “m ilícias”), a ace
lerada difusão e a crescente sofisticação dos “condomínios exclusi
vos” dão sua contribuição, ainda que de m aneira menos dram ática,
para dissolver a im agem da cidade com o um a entidade geográfica
que, apesar da pobreza e da segregação, poderia ser apresentada sem
maiores problemas como uma “unidade na diversidade” , conforme o
autor ponderou em livro anterior (SOUZA, 2000:217). Isso porque, a
despeito das distâncias sociais, comumente expressas também como
distâncias espaciais entre grupos e classes, a qualidade de vida da
população citadina estava longe de ser tão extensamente afetada por
um a pletora de fronteiras impostas pela violência ou pelo medo da
violência. A tualmente, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo,
o que se vê, além da justaposição de territórios ilegais controlados
por grupos criminosos rivais entre si, são essas territorializações de
auto p ro teção das cam adas m ais privilegiadas, situando-se, entre
esses dois extrem os, aqueles espaços (bairros com uns da classe
média, áreas com erciais, espaços públicos) que, por serem mais des
protegidos ou não estarem diretamente territorializados por nenhum
grupo social, apresentam-se mais expostos a diversos tipos de crim i
nalidade violenta. Na metrópole de São Paulo, os “residenciais” de
Alphaville (que é com o são chamados os “condomínios exclusivos”
que integram a “m icrourbe” que é A lphavillei7) e seus congêneres
17 D issem inou-se, em língua inglesa, a expressão edge city para designar esse tipo de
assentam ento, localizado nos arrabaldes de uma grande cidade ou m etrópole - cor
respondendo, no caso estadunidense, a uma “evolução” do suburb. O Com plexo de
A lphaville, englobando os “residenciais” e todo o aparato de serviços lá existente,
concentrado em um enorm e Centro C om ercial, é, ainda muito m ais nitidam ente que a
Barra da T ijuca, no Rio de Janeiro, um espaço elitizado largam ente independente sob
o ângulo dos serviços de que necessita e concebido para m anter os “indesejáveis” (ou
seja, todos os pobres que ali não trabalhem desem penhando funções com o em prega
das dom ésticas, seguranças etc.) a uma boa distância.
nos municípios de Barueri e Santana de Pamaíba são ainda os exem
plos mais emblemáticos; no Rio de Janeiro, os condomínios do setor
geográfico da Barra da Tijuca constituem a ilustração por excelência
da auto-segregação (ver, para m aiores detalhes: SO U Z A , 2000 e
2006b:Cap. 11 da Parte II; CALDEIRA, 2000).
A auto-segregação é um a solução escapista. R epresenta uma
fuga e não um enfrentamento, muito menos um enfrentamento cons
trutivo. C om o tal, não passa de um a pseudo-solução. Se, de uma
parte, os “condomínios exclusivos” prometem solucionar os proble
mas de segurança de indivíduos e fam ílias de classe m édia ou da
elite, de outra parte deixam intactas as causas da violência e da inse
gurança que os nutrem. Pior: no longo prazo, colaboram para deterio
rar a qualidade de vida, a civilidade e as condições de exercício da
própria cidadania na cidade, sob determinados aspectos. Sob o efeito
do marketing imobiliário, da debilidade do debate político e dos limi
tes ideológicos de um a pequena burguesia cada vez mais americani
zada (ou, mais especificam ente, “m iam izada”), esses ônus até que
tendem a parecer suportáveis, algo com o um “ mal m enor” ou um
“preço a pagar” , traindo uma resignação facilmente acomodável ao
próprio sistem a de valores do individualism o exacerbado. N ão se
devem economizar palavras, contudo, para acompanhar, com a van
tagem de quase três décadas de evidências em píricas adicionais, a
profética advertência de Carlos Nelson Ferreira dos Santos: “ [s]endo
um sucesso no que se refere à segregação espacial e desagregação
urbana, o condomínio talvez seja a maior ameaça já enfrentada pelas
cidades brasileiras.” (SANTOS, 1981:25) E não só brasileiras.
É notável, de qualquer modo, mesmo do ponto de vista m esqui
nho dos valores que o sustentam e do tipo de sucesso proporcionado,
que o êxito seja m uito relativo. Já em 1981 repercu tia o m esm o
Carlos Nelson Ferreira dos Santos interessantes notícias veiculadas
pela imprensa a propósito da relação entre criminalidade e condomí
nios, submetidas a um crivo crítico que, poderoso como o dele, per
mitia antecipar outras tantas dificuldades:
“(•••) os jornais nos dão conta dos problemas gerados pela
guetificação dos ricos. A violência ronda sem parar essas cida
delas e, quando não consegue entrar, ataca em suas cercanias.
Afinal, nos condomínios já está selecionado o campo de traba
lho de ladrões e assaltantes. M enos registrável é outro tipo de
violência, mais de interesse sociológico do que jornalístico: para
os que vivem nesse universo fechado, que novas tensões surgi
rão devido a um controle moralístico que tenderá a ser cada vez
m ais rígido, porque infenso a influências externas? Que efeitos
terá nos jovens? Como se comportará um a sociedade não conta
m inada? Q ue preconceitos e barreiras surg irão? (SA N T O S,
1981:28; grifos de C.N.F.S.)
74
□
Em sentido estritam ente em presarial, os “condom ínios exclusi
vos” vêm dando certo, tanto é que proliferam até em cidades de porte
m édio. M as, quanto m ais esse m odelo “der certo ” , m ais o B rasil
urbano “dará errado” ... Para indivíduos de classe média, os “condo
mínios exclusivos” podem ser um a solução, ou parte dela, ainda que
muito im perfeita e um tanto ilusória. D o ponto de v ista coletivo
(geral), porém , ele é , seguram ente, antes parte do problem a que da
solução.
Note-se, ainda, que muitos dos “condomínios” atualm ente exis
tentes são, na realidade, falsos condomínios: são, no fundo, lotea-
mentos fechados, coisa que afronta a Lei Federal 6.766/79, um a vez
que um loteam ento (caracterizado, diversam ente de um verdadeiro
condomínio, por possuir em seu interior logradouros públicos) não
pode ser fechado. Os empresários ligados à produção de “condom í
nios” preferem a form a loteamento porque, no caso de um verdadei
ro condomínio horizontal (em cujo interior só existem vias de acesso
que não constituem logradouros públicos), não há propriam ente lotes
individualizados, mas sim apenas um grande lote cujos proprietários
possuem, além de suas casas, “frações ideais” do m esm o, ao passo
que no caso de um “pseudocondomínio” (“loteam ento fechado”) as
parcelas de terreno são vendidas individualmente a cada proprietário,
que constrói a sua casa e utiliza o seu lote ao seu gosto e com o lhe
aprouver (respeitadas, eventualmente, algumas regras municipais ou
mesm o do “co n d o m ín io ” , am iúde m uito gerais). O “ p seu d o co n
domínio”, muito mais que o verdadeiro condomínio horizontal, com
bina com a mentalidade individualista das classes médias contem po
râneas. Mais que se juntar em associação para, junto com seus iguais
de classe, se protegerem , os indivíduos e as fam ílias d esejam , no
fundo, pouco contato até m esm o com seus vizinhos. O referencial
“com unitário” , bastante utilizado na publicidade de “condom ínios”
no Brasil, é, assim , assaz enganador e contraditório.
Em adição à questão do individualism o, ingrediente cultural-
simbólico fundamental do modelo social capitalista,cabe lem brar um
outro componente essencial desse modelo: a propriedade privada e a
necessidade de sua valorização. O aspecto econôm ico da produção
dos “condom ínios” (“verdadeiros” ou “falsos”) costuma ser lem bra
do pelos analistas apenas em associação com o papel dos loteadores,
construtores e incorporadores, ao passo que o vínculo com os mora
dores é, geralm ente, percebido como girando em tom o de necessida
des com o “exclusividade” , “viver em ambiente socioeconomicamen-
te hom ogêneo” e, claro, cada vez mais, “proteção” . Deve-se salien
tar, porém , que, se para os agentes do capital im obiliário o imóvel
(terreno ou construção) representa um valor de troca, enquanto que
para o m orador (consumidor) ele representa, em primeiro lugar, um
valor de uso, o imóvel não deixa de significar, também para este últi
mo, um valor de troca, ao menos potencial. É lícito levantar a hipóte
se - que não foi ainda propriam ente “testada” pelo autor, mas que
merece ter sua correspondência com a realidade investigada na base
de estudos de caso - de que o “cercam ento” , com o dispositivo de
segurança inscrito no próprio espaço, seja um a “benfeitoria” cada
vez mais demandada ou esperada, tendo a ver também, portanto, com
uma estratégia de valorização imobiliária da qual os compradores de
imóveis participam ativamente. A relação dos “condomínios” com o
medo generalizado não se esgota, destarte, em uma relação direta, cada
vez m ais evidente; se a cultura e o sim bólico sem pre atuam com o
m ediadores entre a econom ia e o comportamento prático dos atores
sociais, o que se pode deduzir, nesse caso, é que, em um contexto mar
cado pelo medo e pela insegurança, também a propósito das decisões
propriamente econômicas (compra de um imóvel), ou do componente
econômico das decisões locacionais, a maneira como a (in)segurança
afeta a economia e os valores de mercado do solo urbano e das mora
dias constitui um ingrediente a ser levado em consideração.
N o caso dos “pseudocondom ínios” , o fato de se interditar (ou
dificultar) o acesso a logradouros públicos acarreta a agressão a uma
série de direitos formalmente integrantes do arcabouço constitucio
nal de praticam ente qualquer “democracia” representativa da atuali
dade: o direito de ir e vir, o direito de intimidade (ninguém, a não ser
um policial, e mesmo assim com razões fundamentadas, pode exigir
que um particu lar se identifique para ter acesso a um logradouro
público ou por ele transitar, nem se pode exigir que seja informado o
76
□
destino, o propósito de ali estar etc.); o direito de reunião. Não é fato
novo a d istân cia entre certos direitos form ais dos cidadãos das
“dem ocracias” contemporâneas e a realidade efetiva da possibilidade
maior ou menor da fruição desses direitos por parte dos indivíduos e
grupos, dependendo de sua renda e outras características (raça, por
exem plo). A pesar dessa distância, porém , vários desses direitos,
sobretudo os políticos e civis, não são puramente formais, embora
sejam desigualm ente aplicados e respeitados. Daí a conveniência de
valorizá-los adequadamente, a despeito das fraquezas estruturais do
sistema representativo. Os “pseudocondomínios” vêm, todavia, agra
var sobrem aneira o problem a da referida distância, e isso em um
patam ar no qual normas legais e até constitucionais são flagrante
mente desrespeitadas.
Pergunte-se, agora: residiria todo o problema nos “pseudocon
dom ínios”? Note-se que, quando se está diante de condomínios hori
zontais propriamente ditos, certas leis e certos dispositivos constitu
cionais podem até não estar sendo desrespeitados tão diretam ente,
mas a “fragm entação” e os seus riscos e implicações negativas conti
nuam presentes.
N ão é apenas entre as classes médias e as elites que os “condo
mínios exclusivos” fazem sucesso. Fenôm enos sim ilares já podem
ser observados, desde algum tempo, também em bairros populares de
uma metrópole como o Rio de Janeiro, onde um segmento de classe
média baixa patrocina o “fechamento” de logradouros públicos, com
direito a guarita, cancela e vigilante. Tal caricatura de gated commu-
nity preocupa e é sintomática: ao emular o símbolo por excelência da
auto-segregação em meio a um espaço não-auto-segregado ou até
mesmo ele próprio segregado (como nas periferias), fica mais evi
dente ainda o quanto não apenas o sentim ento de insegurança e o
medo, mas também os hábitos e os valores dos ricos, se disseminam
pelo espaço e pelo tecido social, o que ajuda a fragmentar ainda mais
a cidade.
Pode-se dizer que se está diante de um “paradoxo do auto-
enclausuram ento” à m edida que os “condom ínios ex clusivos” se
multiplicam e a auto-segregação se complexifica: esse tipo de estra
tégia espacial de busca de segurança, ao ir produzindo um a cidade de
espaços públicos muitas vezes “privatizados” indevida e ilegalm ente,
onde a mobilidade espacial do cidadão vai sendo dificultada e onde
na p rópria paisagem cada vez m ais se inscrevem os sím bolos do
medo e das posturas defensivas, em vez de colaborar para m elhorar a
qualidade de vida, contribui para, no longo prazo, miná-la. O u, mais
precisamente: aparecendo como um a solução para indivíduos e fam í
lias (ainda que, com o já se disse, muito imperfeita e um tanto ilusó
ria), o auto-enclausuram ento é, com o se ponderou acim a, antes um
problema que uma solução, considerando a dinâmica geral da vida na
cidade. Essa “solução” individualista e escapista exem plifica a sabe
doria que reza que a maximização de benefícios individuais, agrega
dos, não representa, necessariam ente, m axim ização de benefícios
coletivos.
No rap Cidadão comum refém, MV Bill e Chorão, que estabele
cem relações entre a violência policial arbitrária contra favelados e a
“sociedade que fica escondida nos seus condom ínios” , usam como
refrão palavras certeiras:
78
□
positivos legais, se porventura viessem a ser seriamente cogitados e
aprovados, teriam algum a chance de im pedir a m aré crescente da
auto-segregação: prova-o o fato de que a Lei de Responsabilidade
Territorial Urbana que está em vias de ser aprovada pelo Congresso
N acional e que su b stitu irá a Lei 6.766/79 (L ei F ederal de
Parcelamento e Uso do Solo Urbano) mal busca disciplinar os “con
domínios urbanísticos” (terminologia ali adotada) para atenuar-lhes
os efeitos nocivos. Sem prejuízo para as suas vktudes no tocante ao
tratamento de outros tem as, mormente a propósito da regularização
fundiária de áreas residenciais pobres e informais, no que concerne a
coibir a auto-seg reg ação a referida Lei de R esp o nsabilidade
Territorial Urbana é, para usar eufemismos, acanhada, tíbia.
80
□
etc.) inscritos nos marcos de um regime totalitário, ou de uma socie
dade teocrático-escravista. (Note-se que a existência da escravidão
na antiga Grécia, fruto da lamentável inexistência de uma concepção
verdadeiramente universalisía da liberdade individual e coletiva, não
contradiz nem a existência de um a genuína dem ocracia - a qual,
como democracia direta, era incomparavelmente mais profunda que
as “democracias” representativas contemporâneas - nem a existência
de autênticos espaços públicos, obviamente animados pela categoria
seleta dos cidadãos, de onde eram excluídos os escravos e também os
estrangeiros e as mulheres.)
N ão é necessário , entretan to , presum ir, com o já se fez (cf.
G O M ES, 2003), um a incom patibilidade entre a idéia de “lugar” ,
visto como o espaço de referência de identidades coletivas, e a idéia
de espaço público, cujas características marcantes seriam a diversidade
e a convivência das diferenças reguladas pelas leis e normas. Entre a
saudação, às vezes ingênua, das diferenças, das identidades e do “mul-
ticulturalismo” , de um lado, e uma postura “liberal” e anti-“multicultu-
ralista” , de outro, é possível e desejável encontrar uma posição interme
diária. A saudação ingênua das diferenças e do “m ulticulturalismo”
conduz ao esquecimento de que identidades coletivas fortes e hegemô
nicas podem ter um efeito asfíxiante sobre a vida pública e o espaço
público, se falhar a regulação que permite a diversidade em liberdade;
uma postura “liberal” e anti-“multiculturalista” esvazia ou secundariza
a problemática da legitimidade das identidades coletivas e das culturas
oprimidas ou desviantes, ao fazer uma opção pouco matizada ou exces
sivamente acrítica, explícita ou implícita, pela matriz cultural hegemô
nica, mormente ocidental/“modema” . A questão da síntese ou da com
patibilidade entre identidades coletivas particulares e valores e aspira
ções universais, tematizada pelo próprio Berdoulay, ao focalizar, com
uma colaboradora (cf. BERDOULAY e MORALES, 1999), os entre-
cruzamentos entre espaço público e cultura em Barcelona, e também
pelo autor deste livro (SOUZA, 2006b:364 e segs.), não é simples, mas
está longe de não admitir soluções satisfatórias.
Tampouco seria razoável - a não ser de um ponto de vista libe
ral, para fins de coerência - restringir o espaço público, de um modo
absoluto, aos logradouros públicos nos marcos do “Estado dem ocrá
tico de direito” . Os espaços públicos são espaços “de todos” , no sen
tido de serem , teoricamente, acessíveis a todos os cidadãos; contudo,
m esm o sob o regim e “dem ocrático”-representativo um logradouro
público pode ser alvo de um a “privatização branca” , ao passo que,
por exem plo, um a ocupação de sem-teto pode se m ostrar, a despeito
de um certo grau de “fechamento” (para fins de proteção), ao mesmo
tempo bastante aberta para o exterior e internamente dotada de um a
cena pública dinâm ica e dem ocrática. A qualidade de “público” de
um espaço não parece, assim , ser um a questão de “tudo ou nada” ,
mas sim de níveis de intensidade. Há, de certa forma, um continuum
muito com plexo, e não apenas dois extrem os, quais sejam , “público”
versus “não-público”/ “privado” . Isso significa, portanto, que a dis
tinção entre espaço público e espaço coletivo é, no plano empírico-
concreto, m ais com plexa do que foi sugerido dois parágrafos atrás.
N ote-se que um a das principais linhas de divergência político-
filosófica (com diversas conseqüências teóricas) no interior do deba
te acadêm ico é, precisam ente, aquela que distingue entre um a posi
ção liberal e um a posição radical-dem ocrática ou, com o preferem
alguns au to res (com o K IL IA N , 1998), “rep u b lican a” , tal com o
exem plificada por Hannah A rendt. De um ponto de vista liberal, o
indivíduo e a defesa da esfera privada assum em clara prim azia; a
esfera pública e o espaço público são valorizados na qualidade de
necessários espaços de interação, de encontro. Contrapondo-se aos
valores individualistas tipicam ente pequeno-burgueses, representa
dos pelas in stitu içõ es das “d em ocracias” rep resentativas e pelos
valores a estas subjacentes, a perspectiva radical-dem ocrática vê no
espaço público, e não no espaço privado, o locus em que o ser hum a
no pode realizar-se plenam ente. E sta visão, aliás, A rendt e outros
herdaram dos antigos gregos.
Enfrente-se, agora, finalmente a questão: em que sentido é pos
sível fa la r de “ an em ia” do espaço público? Em p rim eiro lu g ar,
atente-se para o fato de que, por pressupor um debate político mini
m am ente livre, nem por isso a idéia de esfera pública e, por extensão,
a de espaço público são infensas a gradações de consistência, confor
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□
me há pouco salientado. Em outras palavras: embora não seja razoá
vel pretender formalizar excessivamente, pode-se adm itir, ao mesmo
tempo, a idéia de uma espécie de “piso m ínimo” em matéria de liber
dade e a possibilidade de diferentes “graus” de consistência da esfe
ra e do espaço públicos, acompanhando diferentes “graus” de liber
dade política formal e real. Traduzindo para os termos próprios ao
enfoque do autor: pode-se falar de esfera pública e, por extensão, de
espaço público, apenas diante de um mínimo (dificilmente passível
de delimitação mais rigorosa, mas ainda assim perceptível) de auto
nomia individual e coletiva. Não obstante, mesmo sociedades heterô-
nom as, como a do O cidente contem porâneo e suas “dem ocracias”
representativas (consideradas por CA STO RIA D IS [1999:149], na
verdade, como “oligarquias liberais”), podem abrigar um a esfera e
espaços públicos, ainda que com incompletudes e limitações. Quanto
maior a autonomia coletiva e individual, assim como o nível de aces
sibilidade e pluralism o, evidentemente, maior será o “grau de consis
tência” da esfera pública e, por tabela, maior o “grau de vitalidade e
densidade” dos espaços públicos enquanto tal.
P or falar em C astoriadis, cabe lem brar que já em m eados da
década de 90 havia ele explicitado, embora de modo não especifica
mente comentado ou discutido, um paralelismo entre a esfera públi
ca e o espaço público em seu sentido “geográfico” . Olhando para a
democracia grega clássica, sugeriu ele uma classificação em três ins
tâncias ou esferas: 1) a esfera privada, que é simbolizada pelo oikos\
2) a esfera privada/pública, que é simbolizada pela ágora\ e 3) a esfe
ra (fortem ente e form alm ente) pública, sim bolizada pela ekklesía
(CASTORIADIS, 1996). Conforme salienta esse autor, somente sob
um regime democrático tais esferas se acham, a um só tem po, clara
m ente distinguidas e propriam ente articuladas (C A ST O R IA D IS,
1996:228-9). Em dois desses casos o símbolo é um tipo de espaço
concreto: o oikos, a casa (o espaço dom éstico), e a ágora, misto de
praça de m ercado e local de reunião, onde se d esenrolava a cena
pública. Apenas no caso da esfera pública em sentido estrito e for
mal, a esfera do poder legiferante e deliberante, preferiu Castoriadis
como símbolo a ekklesía (que era o corpo de cidadãos) ao ekklesias-
terion (a construção que abrigava as assembléias de cidadãos). Seja
como for, saltam aos olhos o forte simbolismo espacial e o paralelis
mo entre esferas e tipos espaciais.18
Volte-se à questão da “anemia” do espaço público. Seria legíti
mo usar essa palavra? É claro que a metáfora foi escolhida por sua
força enunciativa. O que realmente importa é assinalar o que está por
trás disso: o encolhimento de margens de manobra, a deterioração da
sociabilidade e da civilidade e as restrições ao exercício da cidadania
- em suma, ameaças e limitações à autonomia, tanto individual quan
to coletiva. E tudo isso, é evidente, não devido à interveniência de
fatores político-form ais, como a cassação de direitos ou a restrição
formal de liberdades, mas sim em decorrência das transform ações
sociopolíticas - ou, mais precisamente, sociopolítico-espaciais - exa
minadas nos subcapítulos anteriores. Tanto a formação de enclaves
territoriais crim inosos (e o conjunto de im pactos sociopolíticos e
social-psicológicos associados à expansão e às territorializações
impostas pelo tráfico de drogas de varejo) quanto a proliferação de
“condom ínios exclusivos” vão enfraquecendo a vida pública no quo
tidiano, seja pelas interdições diretas de acesso e locom oção, seja
pelo medo de freqüentar certos locais em certos horários e sob certas
circunstâncias, seja, ainda, pelo tem or ou pela im possibilidade de
expressar livrem ente opiniões e associar-se livrem ente (com o no
interior de tantas favelas tiranicam ente territorializadas). Espaços
públicos vão sendo, por causa do m edo, ou “abandonados” (a fre
qüência com que são visitados diminui dram aticamente) ou, então,
“cercad o s” e “ m onitorados” , o que tam pouco favorece um a vida
pública livre, densa e espontânea.
Os espaços públicos tom am -se, cada vez mais, vítimas do que se
poderia cham ar de a “ síndrom e da cidade v ig iad a” . N o B rasil, a
expressão “ cidades vigiadas” foi utilizada pelo historiador Robert
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□
M oses PECHM AN (2002), em obra que investiga as relações entre
poder, polícia e espaço urbano no Rio de Janeiro de épocas passadas.
É na nossa época, contudo, que a expressão adquire mais e mais sen
tido, e não só no Brasil: em seu importante artigo, SIEBEL e W EHR
HEIM (2003) analisam as relações entre esferas/espaços públicos e
privados no que denom inam , p recisam ente, “cidade v ig iad a” ou
“monitorada” (überwachte Stadt),e que DAVIS (1992:253), com um
grau de dram aticidade maior, chamou de “cidade carcerária” (“car-
ceral city”).19 O “declínio” da esfera pública e, conseqüentem ente,
dos espaços públicos, coisa amplamente reconhecida e lam entada em
nossos dias, tem nesses fenômenos de controle e monitoramento exa
cerbados um de seus mais relevantes fatores de agravamento.
Por tudo isso, justifica-se a metáfora da “anemia” , no caso refe
rente a um a fraqueza aferida por critérios sociopolíticos. Porém , cau
tela: “anêmicos” podem os espaços públicos estar-se tornando, mas
não “anêm icos”. Eles são, isso sim , espaços m uito com plexos - e
conflituosos. Falar em “anomia” , termo cunhado porD urkheim , pres
supõe algo como o relaxamento das normas sociais que regem a vida
de um grupo social; em outras palavras, um a situação de “desordem” ,
de “desintegração” . Possuindo um a conotação m etodologicam ente
funcionalista e politicam ente conservadora (clam or por sanções e
regulamentações claras e eficazes para garantir a “ordem” , a “coesão
do grupo” e um com portam ento “adaptativo” por parte dos indiví
duos), a visão de um a realidade como “anômica” tem como premissa
compreendê-la como “desarmônica” ou “patológica” em contraposi
ção a um estado ideal “harmônico” ou “saudável” . Mais: pressupõe
enxergar o “enfraquecimento das normas” de um modo quase absolu
to, o que, principalmente no caso em questão, não é o que ocorre.
A “cidade vigiada” ou “monitorada” caracteriza-se pela dissemi
nação e diversificação de aparatos de proteção e controle, tanto em
espaços públicos quanto em espaços privados: as câm eras de vídeo
são apenas o exemplo mais conhecido. Todo esse aparato, não é difí
19 A expressão, retom ada depois por SOJA (1996:228 e segs.; 2000:155, 298 e segs.),
tem um a linhagem que rem onta a M ichel Foucault (“arquipélago carcerário”).
cil im aginar, cria uma contradição, na medida em que os dispositivos
de controle e m onitoramento, que deveriam supostamente servir para
garantir um nível satisfatório de qualidade de vida, colaborarão por
sabotar a concretização dessa intenção, ao menos parcialm ente, ao
restringirem a privacidade - e, no limite, ao se constituírem em uma
am eaça à liberdade e à espontaneidade, ao exercício da autonom ia.
Recordando o dito popular, veste-se um santo (muito im perfeitam en
te, aliás) m as, para isso, despe-se outro. Trocar liberdade por segu
rança, coisa que m uitos já dão, resignadam ente, com o inevitável, é
um mau negócio.
Pode-se facilmente ver, a respeito da “cidade m onitorada” e das
transform ações negativas pelas quais passam os espaços públicos das
grandes (e médias) cidades, que se trata de um fenômeno m undial, e
não brasileiro (ou carioca, paulistano...). Peculiaridades há, porém ,
em escala nacional (e regional e local), as quais fazem com que cer
tas situações sejam m uito piores que outras. Para exem plificar: é
notório que, de um modo geral, o “clima social” na Europa Ocidental
é m elhor e bem menos marcado pela violência que nos EUA. Em paí
ses sem iperiféricos, como o Brasil, os contrastes sociais e as tensões
grandem ente daí decorrentes tendem a ser ainda muito maiores.
M as, m esm o no interior do “T erceiro M undo” , as diferenças
podem ser significativas. O autor e uma amiga sul-africana, a plane-
jadora urbana M arie Huchzermeyer, cada um tendo visitado m ais de
uma vez o país do outro, notaram as diferenças na form a com o os
espaços públicos no Rio de Janeiro e em Joanesburgo são vivencia-
dos. No Rio, M arie surpreendeu-se positivamente com o fato de que
as pessoas freqüentam as praças (m esm o que às vezes cercadas, e
m esm o que várias já não sejam , pelo m enos, tão freqüentadas, às
vezes até sendo deixadas aos mendigos e às populações de rua) de um
m odo que, na cidade onde ela trabalha, mesmo na era pós-apartheid,
na “N ew South A frica” , é totalm ente inusual: d iferentem ente de
Joanesburgo, no Rio de Janeiro as pessoas seriam mais descontraídas
e se “aventurariam ” nos espaços públicos (a despeito dos riscos...),
co isa ra ra em sua cidade. D e fato , com o o auto r pôde c o n statar,
Joanesburgo, um a “cidade dividida” (divided city), lem brando o títu-
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□
Io do livro de B E A L L e t al. (20 0 2 ), ap resenta espaços públicos
menos freqüentados, e mais: os espaços privados da classe m édia, se
não se configuram tão tipicamente, como em São Paulo, no Rio e em
outras cidades brasileiras, com o gated communities, m uitas vezes
bem complexas no estilo Alphaville e congêneres, não deixam de ser
chocantes, pois a regra são casas de muros altos, cercas eletrificadas
e, infalivelm ente, placas alertando que a residência em questão se
encontra protegida por um a determ inada firm a de segurança privada.
Form ação de enclaves territoriais ilegais controlados, não raro
tiranicam ente, por traficantes de drogas de varejo; auto-segregação
de parcela considerável da pequena burguesia e das elites; abandono
e decadência de espaços públicos: isso já não é mais apenas “segre
gação” , isso é um a verdadeira fragmentação - um a fragm entação do
tecido sociopolítico-espacial. Ao m esm o tem po em que expressa
retrocessos e encolhim ento de m argens de m anobra em m atéria de
desenvolvim ento só cio-esp acial, essa fragm entação ex erce um a
força de inércia e condiciona uma socialização deform ada, que tom a
as piores expectativas justificadas. Diante desse pano de fundo, pode-
se, sim , falar de um a perda de consistência ou de vitalidade (ou de
densidade) dos espaços públicos, ou, em tom mais dram ático, de sua
“anemia” , aliás crescente. Isso não significa que se está a pressupor
algo como um a “idade áurea” da esfera pública, o que justificou crí
ticas e reparos, por exem plo, a HABERM AS (1984).20 M as não se
afigura justificável, apenas para distanciar-se desse tipo de crítica,
chegar ao ponto em que Siebel e W ehrheim chegaram , os quais, após
fornecerem, com petentemente, elementos que persuasivam ente mos
20 N ão é o caso d e, propriam ente, entrar nesse debate, com o se o autor deste livro
tivesse um a só lida p osição p rópria a defender, fruto de longo e lab o rio so exam e
docum ental ou b ib lio g ráfico e cotejo de posições, verdadeira o b ra d e historiador
especializado. T odavia, a distinção estabelecida por H aberm as entre a esfera pública
burguesa clássica e sua variante contem porânea, apontando-se os traços negativos
desta últim a ao longo do século XX (tam bém ressaltados, de m odos distintos, por
a u to re s o u tro s , c o m o D eb o rd [“ so c ie d a d e do e s p e tá c u lo ” : D E B O R D , 2 0 0 0 ],
L efeb v re [“ so c ied ad e b u ro c rá tic a de co n su m o d irig id o ” : L E F E B V R E , 1984] e
C astoriadis [“e ra d o conform ism o generalizado” : C A S T O R IA D IS , 1990], dificil
m ente pode ser rebatida. N ote-se, tam bém , que constatar algum tipo de retrocesso
não pressupõe, necessariam ente, a idealização do m om ento anterior.
tram os perigos que se vão avolumando na trilha da “cidade monito
rada” , minimizam , em seguida, a periculosidade do processo, ques
tionando a tese da decadência da vida pública na “cidade monitora
da” com base em argum entos assaz frágeis, no estilo “o m onitora
mento é, de todo modo, imperfeito”; “o monitoramento informal por
parte de vizinhos e parentes não é, necessariamente, menos repressi
vo”; “o ideal normativo do espaço público só coincide com a realida
de no âm bito do pensam ento utópico” (SIE B E L e W E H R H E IM ,
2003:9). D a já clássica análise do “declínio do homem público” feita
por R ichard SE N N ETT (1995), largam ente precedida pela ainda
m ais c lássica contrib u ição de H annah A R E N D T (1983) sobre o
mesmo problem a (curiosamente deixada de lado por Sennett no livro
citado), às contribuições recentes de vários autores, generaliza-se a
sensação, entre os analistas da esfera e do espaço públicos, de que
margens de manobra encolhem e padrões de sociabilidade se deterio
ram. Não há razão para escamotear esse fato e, com isso, desarm ar ou
fazer baixar a guarda diante de fenômenos que, pelo que representam
em m atéria de ameaças à liberdade e à qualidade de vida em geral,
merecem ser pintados com cores fortes, e não em tons pastéis.
Im p õ e-se, então, a pergunta, a ser enfrentada ao longo deste
livro: diante da “irrazoabilidade” de um processo que fragm enta,
amedronta, impele tantos para a falsa segurança do lar e a renúncia a
uma participação ativa na esfera pública e gera o pavor e o sofrimen
to,21 como se pode pensar em conquistar mais autonomia - em outras
88
□
palavras, m ais capacidade de autogoverno, mais liberdade e menos
tutela? Sem dúvida, em uma sociedade tão heterônoma quanto a bra
sileira, e diante de cidades marcadas por tantas e tamanhas desigual
dades, a autonomia da maior parte da população para perseguir sua
felicidade e realizar escolhas em liberdade sempre foi ínfima. O que
processos com o o controle tirânico imposto pelo tráfico de drogas de
varejo a um núm ero crescente de espaços segregados evidenciam é
que, mesm o lá onde a autonom ia individual e coletiva sem pre foi
extremamente restringida pelas circunstâncias da pobreza, da estig-
matização e da opressão, a margem de manobra pode encolher ainda
mais - e, desta feita, não por ação direta do Estado ou das classes
dom inantes, mas sim com o decorrência de um processo im ediata
mente interno a esses espaços, ainda que o tráfico de varejo, em ter
mos mediatos, não possa ser explicado sem a consideração dos atores
que o financiam e controlam, e que remetem a outras escalas e outros
espaços. De sua parte, também a auto-segregação e a decadência dos
espaços públicos propiciam antes retrocessos que avanços em maté
ria de autonomia individual e coletiva.
Fica, portanto, a interrogação: o que o planejamento e a gestão
urbanos promovidos pelo Estado têm a ver com tudo isso, e em particu
lar com o tema deste subcapítulo - a “anemia” dos espaços públicos?...
Alguns observadores têm argumentado sobre os riscos da disse
minação de dispositivos CCTV (Closed Circuit Television Cameras)
90
□
potencial - o que é possível nos shopping centers e shopping malls,
cuja estrutura arquitetônica, conforme lembraram BIRENH EIDE e
LEGNARO (2003:5-6), apresenta semelhanças com a estrutura arqui
tetônica de um a prisão - , faz-se necessário adaptar o espaço preexis
tente e a ele adaptar-se, mediante o emprego da tecnologia CCTV e,
também, de serviços privados de segurança (que são os “guardiões”
da “nova estrutura” - da nova territorialidade - que se decalca sobre
os centros urbanos, com “invisíveis e flexíveis muros que protegem
contra a m istura social” , nas palavras de KIRSCH [2003:251]). As
estratégias correntes de controle espacial por parte do Estado e do
capital privado podem , contudo, term inar não só por esterilizar os
espaços públicos, ao roubar-lhes diversidade e espontaneidade, ao
submetê-los a um a vigilância permanente, mas também por atualizar
constantem ente a lem brança do medo e a estigm atização do Outro
(que é o pobre, o diferente: o ameaçador, ou aquele que, por sua misé
ria, perturba a “ alegria de consumir”). Com isso, confirma-se a “fobo-
polização” . Apesar de seu bias tradicionalista e nostálgico, a conheci
da defesa por Jane Jacobs da diversidade como fator de vitalidade e
segurança nas grandes cidades, feita inicialmente quase meio século
atrás (cf. JACOBS, 1994), permanece, por seu núcleo de bom senso,
e diante de tantas agressões arquitetônicas e urbanísticas à inteligên
cia e à democracia (em sentido forte), atualíssima.
2. O planejamento urbano “estadocêntrico”
e os fenômenos de “ degeneração”
do Estado
92
□
ção” , costumam evitar a formalização das “regras do jogo” , ou tratam
as regras form ais com o algo “para inglês ver” (voltar-se-á a essa
questão mais adiante). A negligência para com o planejamento for
m alizado e institucionalizado não significa que, inform alm ente ou
nos bastidores (ou nas “entrelinhas” de certos documentos oficiais),
não haja, muitas vezes, um planejamento sendo elaborado.
Negligenciado, por conseguinte, o planejamento urbano formal
quase sempre foi, no Brasil, por diversas razões. E quase sempre foi,
também, malfeito e/ou manipulado pelas elites com o objetivo de ser
vir a propósitos segregacionistas ou especulativos. O que se pode
dizer, portanto, é que o planejamento urbano promovido pelo Estado
torna-se, nas condições da fragm entação do tecido sociopolítico-
espacial da cidade, mais difícil, e que, acim a de tudo, um planeja
mento genuinam ente participativo torna-se, por assim dizer, muito
mais difícil, como ficará evidente ao longo deste capítulo.
É necessário, porém, antes de mais nada, esclarecer a razão de se
escrever “planejamento urbano promovido pelo Estado” em vez de,
sim plesm ente, “planejam ento urbano” . Em seguida, será preciso
qualificar m elhor em que consistem as “dificuldades” do planeja
mento urbano promovido pelo Estado no Brasil.
Diversos fatores conspiram para fazer com que “planejam ento
urbano prom ovido pelo E stado” soe quase com o um pleonasm o
vicioso. C ontra essa impressão tem o autor se insurgido há muitos
anos (SOUZA, 2002:13-5, 169-199,523 e segs.; 2006b: 131, 148, 172
e segs .,515-6,578-9). A perspectiva tanto dos conservadores quanto
de seus críticos da esquerda m arxista sempre foi “estadocêntrica” :
quem planeja a cidade é o Estado; a ele cabe regular o uso do solo. E
ponto final. Para defender ou criticar o planejamento urbano, a refe
rência seria, sempre, o Estado. A luta dos ativismos sociais para exer
cerem um papel de protagonismo como agentes produtores do espa
ço urbano costuma ser enxergada e (às vezes apenas relativamente...)
valorizada pela intelectualidade crítica; mas, curiosamente, ao amal
diçoar a própria palavra “planejam ento” (no âm bito do marxismo
ocidental, bem entendido, já que no falecido Bloco “Socialista” uma
característica básica era, justam ente, o planejam ento estatal hiper-
centralizado), ela preferiu não conceber e aprofundar a análise de cer
tas atividades de vários movimentos sociais enquanto planejamento
(de suas práticas espaciais, de seus pequenos territórios), enquanto
estratégias e contraprojetos - enquanto planejamentos alternativos,
expressões proativas e propositivas de uma resistência.
Não é apenas o senso comum, manifestado na imprecisão da ale
gada “falta de planejam ento” e na tola crença de que o planejamento
prom ovido pelo Estado seria a solução para os problem as, que mere
ce ser criticad o . O “estad o cen trism o ” (SO U Z A , 2 0 02:14, 15;
2006b: 173, 175), que é a idéia de que do aparelho de Estado (e das
estruturas a ele vinculadas e para ele orientadas, como os partidos)
devem vir as soluções e de que só o aparelho de Estado promove pla
nejam ento e g estão urbanos, igualm ente precisa ser com batido.
(Ironicam ente, tanto os liberais, que apóiam o status quo e diferentes
formas de planejam ento e gestão conservadores, quanto os “marxis
tas de cátedra” , especialmente dos anos 70 e 80, que, na esteira da crí
tica do E stado cap italista e de seu planejam ento term inaram por,
generalizadam ente, anatem atizar a idéia de planejam ento em si, e
aliás a própria palavra, se encontram no “estadocentrism o” : uns e
outros não conseguem ver muitas das atividades dos ativismos urba
nos com o constituindo, sim, planejamento e gestão, ou não admitem
a sua relevância.) Sob a ótica do Estado, o que cabe fazer é, pragma-
ticam ente, minim izar problemas. Enquanto governo “progressista” , o
Estado pode, conjunturalm ente, aqui e ali, realmente contribuir para
avanços significativos (e um a grande contribuição já será não tentar
cooptar os ativism os sociais...). M as isso é insuficiente. Q ual é a
perspectiva do... m ovimento dos sem-teto? Do hip-hopl... Em última
análise, as soluções mais im portantes não devem ser esperadas do
E stado, mas da sociedade civil, dos m ovim entos sociais. Isso será
focalizado m elhor no Cap. 3.
O bordão popular “o problema [nas cidades brasileiras] é a falta
de planejam ento” é, por mais de uma razão, problemático. Prim eira
m ente, porque mais planejamento e um planejam ento tecnicamente
melhor não seriam , nem de longe, suficientes para alterar substan
cialm ente para m elhor o quadro vigente de injustiça social e m á qua
94
□
lidade de vida da m aioria da população nas cidades brasileiras, pela
simples razão de que não afetariam verdadeiramente os fatores eco
nômicos e políticos fundamentais que, historicam ente, têm gerado e
reproduzido esse quad ro . P en sar d iferen te, com o teim a o senso
com um e insistem os tecnocratas, eqüivale a fetich iza r a técnica,
atribuindo-lhe, independentem ente de seu conteúdo político-social,
um poder imaginário de varinha de condão. Em segundo lugar, por
que o problem a “quantitativo” , especificam ente no que respeita ao
planejam ento urbano prom ovido pelo Estado no B rasil, não é nem
m esm o a sua falta, em sentido ab so lu to , m as sim a sua escassez
(ausência de tradição e de uma “cultura de planejam ento [form al]”) e
a sua freqüente má qualidade técnica - ainda que, em muitas cidades,
se constate a pura e simples ausência de qualquer plano diretor ou de
algo que o valha.22
Sem embargo, não somente o planejam ento urbano é, por exce
lência, um a atividade política, mas também a negligência para com o
planejamento estatal formal e a própria má qualidade técnica, tão fre
qüentes no Brasil, possuem causas políticas, com o já se salientou.
Uma dessas causas, bastante evidente, é a de que, aos olhos de mui
tos administradores e políticos, gastos com planejam ento aparecem
sim plesm ente com o custo, e não com o investim ento. H á, porém ,
condicionantes mais claramente políticos, e que m uitas vezes são os
mais decisivos: por exem plo, o fato de que a falta de planejam ento e
o imediatismo apresentam muitas vantagens para adm inistradores e
políticos viciados no patrimonialismo (e, às vezes, corruptos), com o
não ex p licitar as reg ras do jo g o e facilitar a to m ad a de decisões
casuisticam ente... H á, adem ais, em pecilhos econôm icos e político-
96
□
É necessário que se atente, todavia, para a irregularidade temporal da
elaboração desses planos, denunciadora da inexistência de um siste
ma de planejamento. Além do mais, aquilo que, desses planos, aca
bou , de fato, sendo im plem entado, não foi m uito, ou só o foi de modo
disperso e tardio o mais das vezes: do Agache, pouco se aproveitou;
do D oxiadis foram sendo, aos poucos, concretizados os grandes
eixos viários ali preconizados (Linha Lilás, Linha V erm elha, Linha
Amarela), com um atraso de décadas; o PUB-Rio foi, principalm en
te, uma referência intelectual, e o plano de 1992, que carecia de regu
lamentação de seus instrumentos, foi praticamente ignorado pelo pre
feito que se elegeu em 1993 (de todos os instrumentos, apenas o mais
polêm ico, as “operações interligadas” , foi regulamentado; questões
como a da urbanização e regularização de favelas foram tratadas, no
âmbito do Program a Favela-Bairro, de forma independente do plano,
e o documento que simbolizou as administrações do Rio a partir de
1993 não foi o plano diretor, mas sim o “Plano Estratégico” , peça de
city-marketing sobre cuja preparação decidiu-se ainda naquele ano e
que foi publicada em 1996).
Coexistem no Brasil, atualmente, duas vertentes ou “vetores de
influência” principais em matéria de planejamento urbano patrocina
do pelo E stado: de um lado, o cham ado “em p resarialism o (ou
empreendedorismo) urbano” ; de outro, um conjunto de práticas que
busca legitim ar-se m ediante um a alegada descendência do/vincula-
ção ao ideário da reform a urbana. Afora isso, há influências que, à
prim eira vista, poderiam parecer residuais, como a do Urbanism o das
décadas de 70 e an terio res, fun cio n alista e tecn o crático , e a do
“desenvolvim ento urbano su sten táv el” . Um olhar m ais atento,
porém, revela que não é bem assim.
O “empresarialism o urbano” entrou no Brasil na prim eira meta
de da década de 90, depois de já se ter solidamente estabelecido em
países como Estados Unidos, Reino Unido e Espanha. Seu inimigo
declarado, no m undo todo, é o planejam ento regulatório clássico:
para os seus adeptos e entusiastas, uma cidade deveria atuar tal qual
uma em presa, envidando esforços para atrair investimentos e visitan
tes. Cada cidade concorre com as demais por capitais e turistas, e o
objetivo básico é tom ar-se cada vez mais competitiva. Para isso cum
priria m o d em izar-se, participar de redes internacionais de vários
tipos e, la st bust not least, construir um a “governança” eficiente
(alianças e “pactos” entre Estado e sociedade civil, e empresários em
especial) e oferecer vantagens e benefícios a investidores em poten
cial, com o incentivos fiscais e relaxamento a d hoc de normas de uso
do solo urbano. O tipo de crítica a que o “em presarialismo urbano”
subm ete o planejam ento regulatório é hom ólogo ao tipo de ataque
que o neoliberalism o endereçou ao keynesianism o hegem ônico do
período dos assim apelidados trente glorieuses (isto é, os três decê
nios im ed iatam en te p o steriores ao térm ino da S egunda G uerra
M undial, caracterizados, nos países centrais, por um a relativa pros
peridade). N a verdade, o “empresarialismo urbano” bem poderia ser
denom inado, tam bém , “neoliberalismo urbano” .23
Em contraste com o “em presarialism o urbano” , aquilo que, em
nosso país, poderia ser chamado de ideário da reforma urbana tem
seu cem e com posto por objetivos de justiça distributiva e pelo com
prom isso com a dissem inação da participação popular no planeja
m ento. Esse ideário adensou-se e consolidou-se em nosso país nos
anos 80, com o fruto da sinergia derivada da interação de acadêmicos
e movim entos sociais, saber técnico-científico e saber popular (ver,
sobre isso , S O U Z A , 2002:155 e segs.; 2006b:213 e segs.).
D iversam ente de meras reform as urbanísticas, voltadas para finali
dades de em belezam ento ou modernização do espaço urbano, a refor
m a urbana, nessa acepção, é entendida como um a espécie de reform a
sócio-espacial estrutural cuja finalidade precípua é to rnar m enos
injustas as cidades.
Seria de esperar que estivesse em curso, no Brasil, um a luta de
vida ou m orte entre o “neoliberalismo urbano” e o conjunto das prá
ticas que, de um jeito ou de outro, se valem da aura legitim atória do
ideário da reform a urbana. H á, sem dúvida, um a disputa em anda
mento; porém , a guerra é menos cruenta do que se poderia imaginar.
98
□
M uito em bora o “em presarialism o u rb an o ” , em sua versão m ais
“pura” , já não pareça empolgar tanto quanto na segunda m etade dos
anos 90 ou no lustro seguinte, ele está longe de ter sido derrotado: de
alguma maneira, ainda que de forma diluída, ele se tom ou quase oni
presente. G rande parte do que se vê em m atéria de planejam ento
urbano, atualm ente, é um híbrido: elementos discursivos e técnicos
que rem etem ao ideário da reform a urbana m uitas vezes aparecem
mesclados com o vocabulário dos “planos estratégicos” , veículo por
excelência do “em p resarialism o ” . A dicio n alm en te, um discurso
“sustentabilista” costum a oferecer o indispensável ingrediente (ou,
pelo menos, tempero) de preocupação com a proteção ambiental.
É nesses marcos que se dá, há alguns anos, a tentativa, estim ula
da pelo M inistério das Cidades, de renovar o ânimo quanto às possi
bilidades do planejamento urbano no país. Depois da euforia com os
“novos planos diretores” , aparecida após a prom ulgação da C ons
tituição de 1988 e que alguns anos depois já havia arrefecido, tem-se
agora, sob a égide da burocracia ministerial de Brasília, a febre dos
“planos diretores participativos” . Todavia, há razões para duvidar,
diante de alguns evidentes exageros e de um otimismo inflacionado,
da consistência dessa “onda participativa” .
Aqui não é, decerto, o lugar adequado para se proceder a uma
avaliação exaustiva da “participação popular” na atual conjuntura
política nacional. Cabe, apesar disso, pelo menos ressaltar que, a par
tir de 2003, foi-se esboçando paulatinamente um a mistura de coopta-
ção e, sobretudo, decepção no que tange às relações da intelligentsia
crítica com o Governo Federal. No cenário urbano, essa trajetória foi
sim bolizada pelos percalços e pela desilusão de uns tantos intelec
tuais e pesquisadores quanto ao Ministério das Cidades, o mais tardar
após a saída do ex -prefeito de P orto A legre, O lívio D u tra, do
M inistério, daí decorrendo a perda de vários outros quadros técnica e
politicamente importantes. Ao mesmo tem po, no entanto, outros tan
tos técnicos e pesquisadores se envolveram em projetos de colabora
ção com as iniciativas governam entais. A gravou-se ainda m ais o
quadro de consolidação do “tecnocratismo de esquerda” que já vinha
da década anterior - isto é, acentuou-se, em vez de ser atenuada, a
aposta privilegiada na importância de leis formais e planos em detri
mento do verdadeiro diálogo e da cooperação autêntica com os m ovi
m entos sociais. Com isso, fragilizou-se ainda um pouco m ais a já
com balida cena da “esquerda urbana” técnico-acadêmica brasileira.
O refluxo dos movimentos sociais, nos anos 80, parece ter dado ense
jo a que muitos imaginassem que a luta institucional e os instrum en
tos técnicos poderiam ser sucedâneos da m obilização popular, pro
blema que dificultou, a partir da segunda metade dos anos 90, a inter-
locução com movimentos novos como o dos sem-teto e o hip-hop.
N a atual conjuntura, ao lado de um vetor muito influente como é
o “em presarialism o urbano” , o que parece ter crescente relevância,
enquanto planejamento urbano promovido pelo Estado, é menos uma
estratégia consistente de realização da reforma urbana que um a estra
tégia de m im etism o e dissimulação, em que o vocabulário da partici
pação (ou da reform a urbana em geral) é com binado com outros
vocabulários, tendo por base “gramatical” a “sintaxe” do “tecnocra
tismo de esquerda” e do neopopulism o. O que se tem , no fundo, e
sem prejuízo de avanços formais e pontuais, é uma caricatura, não
raro um persistente auto-engano.
Em m atéria de avanços formais e pontuais, o autor não tem dúvi
da de que um a legislação como o Estatuto da Cidade (Lei n° 10.257
de 2001) rep resen to u algo potencialm ente positivo em diversos
aspectos, no contexto do ordenamento jurídico formal brasileiro. Isso
se aplica, aliás, também à participação popular, que se acha ali mencio
nada em sete artigos diferentes (três dos quais em um capítulo especí
fico sobre a “gestão democrática da cidade”). Entretanto, se a impor
tância do Estatuto da Cidade tem sido amiúde exagerada, seus defeitos
e seus limites, por outro lado, têm sido muito pouco debatidos.
É notável com o, em um a mensagem enviada por e-mail em 5 de
outubro de 2006 pela “R ede Plano D ireto r” do M inistério das
C idades, chega-se ao ponto de buscar inspiração, abertam ente, no
bordão “espetáculo do crescimento” , objetivo central da política eco
nôm ica do governo Lula: “ [o] país está assistindo ao espetáculo do
planejam ento de seus m unicípios” ; e, em seguida: “ [a]tendendo ao
100
□
com ando do Estatuto da Cidade, a Lei Federal 10.257, mais de 1.500
municípios, de forma inédita na história brasileira, estâo elaborando
seus Planos D iretores de form a autônom a e participativa.” Infeliz
mente, porém, a participação popular é tratada no Estatuto quase sem
pre de m aneira indefinida. A depender da Prefeitura, em diversos
momentos há espaço para um a interpretação que pode privilegiar um
processo deliberativo ou meramente consultivo (cf. Art. 2o, inciso II;
Art. 4o, inciso III, alínea f; Art. 33, inciso VII; Art. 40, § 4?, inciso I;
Art. 43, inciso I; Art. 44; Art. 45), e em algumas passagens a tônica é
claramente consultiva (cf. Art. 2o, inciso XIII, e no Art. 43, incisos II
e III). Nitidamente deliberativo, só mesmo o Art. 4?, inciso V (que cita
o referendo popular e o plebiscito, mecanismos que, de toda forma, já
haviam encontrado acolhida na própria Constituição Federal), e o Art.
43, inciso IV (que cita a iniciativa popular de projeto de lei e de pla
nos, coisa que, igualmente, já se achava prevista na Constituição).
A previsão de participação popular no planejamento e na gestão
urbanos poderia ter sido am arrada de outro m odo no Estatuto da
C idade, de m aneira a m inim izar o risco de que um a pseudo-
participação seja im plem entada tão-som ente com o objetivo de se
cumprir, formalmente, a lei. Lamentavelmente, não foi isso que ocor
reu. Ceteris paribus, na atual conjuntura política nacional (que é, na
sua essência, quase sempre similar ao ou apenas ligeiramente melhor
do que o que se encontra nas escalas de governo subnacionais), uma
lei formal com o o Estatuto, bem como institucionalidades com o o
C onselho N acional das C idades (regulam entado pelo D ecreto n°
5.031, de 2 de abril de 2004), podem ser tom adas letra m orta ou, até
m esm o, servir antes à cooptação que a um p rocesso político-
pedagógico de conteúdo emancipatório.
Com o se vê, tanto ou m ais que a sim ples ausência de planos
(característica de muitas cidades), o que salta aos olhos é a inconstân
cia e a falta de sistematicidade na sua produção, além de sua pouca ou
pouquíssima efetividade. M ais recentemente, a m istificação em larga
escala em tom o da “participação” e da “gestão democrática da cida
de” tomou o quadro mais complexo ou confuso, mas não muito dife
rente. Do ponto de vista político, entretanto, o essencial é o conserva
dorismo da esm agadora maioria dos planos e intervenções de plane
jam ento, a espelhar o usual conservadorismo do Estado brasileiro em
todos os níveis, inclusive o municipal. Não que seja im possível que,
conjunturalm ente, o Estado, enquanto governo específico, se m ostre,
aqui e ali, relativam ente progressista, encam pando um a agenda dis-
tributiva e se apresentando genuinamente perm eável à participação
popular, sobre os alicerces de coalizões de partidos de esquerda e de
um forte respaldo popular. Entretanto, em qualquer lugar do m undo
isso tenderá a ser, sempre, um a situação excepcional, que leva a um a
certa contradição entre o perfil da administração e o papel do Estado
enquanto estrutura heterônoma. Em um país como o Brasil, conquan
to experiências importantes tenham tido lugar, certos obstáculos são
particularm ente grandes. Seja como for, o fundam ental é que, para
além de sua “dificuldade” de um ponto de vista genérico, o planeja
mento urbano promovido pelo Estado tem , no Brasil com o em outros
países, servido, na m aioria das vezes, para tom ar mais fá cil a vida das
elites (enquanto capitalistas e moradores de bairros nobres) e, secun
dariam ente, da classe média. Quanto aos pobres, o Estado, m ediante
o planejam ento, não costum a facilitar-lhes a vida para além da viabi
lização das condições de sua reprodução e de seu deslocam ento na
qualidade de vendedores de força de trabalho, ou então sob pressão e
con sid eração e strita de algum cálculo e leito ral. Isso quan d o os
pobres não são, com o freqüentemente é o caso, nítida e insofism avel-
mente prejudicados.
O “em presarialism o urbano” agrava, potencialmente, várias das
condições que engendram e alimentam o medo e a insegurança. E o
arrem edo de refo rm a urbana patrocinado pelo G ovem o brasileiro
mal as evita (se tanto). Em suma, o planejam ento urbano promovido
pelo E stado tem servido para várias coisas no B rasil, m enos para
contrapor-se eficazm ente à fobopolização. Antes pelo contrário.
102
□
.
2 2 Planejamento e gestão urbanos se desmoralizam:
o caso (ocaso) do Rio de Janeiro
24 Guaracy M ingardi dem onstrou, convincentem ente, tendo com o principais referên
cias em píricas as instituições policiais brasileiras, e aprofundando a análise no caso
de São P aulo, que a tese segundo a qual “a corrupção é coisa de alguns m aus poli
ciais” tende a tornar-se insustentável. O que um a investigação cuidadosa revela é que
“a corrupção faz parte das norm as da organização, que socializa seus m em bros para
ag irem d e n tro d e d e te rm in a d o s ‘p a d rõ e s de c o r ru p tib ilid a d e ’” (M IN G A R D I,
1998:76). Um caso em blem ático relatado por M ingardi, colhido por R oberto K ant de
Lim a durante as pesquisas deste a respeito da polícia no R io de Janeiro, inform a
sobre um delegado carioca que, por recusar-se a aceitar o dinheiro proveniente do
jogo do bicho, era freqüentem ente transferido, com o punição. N o fim , o delegado em
questão acabou aquiescendo em seguir as “regras” e deixando-se cooptar. Conclusão:
existem , sem dúvida, policiais honestos e probos, m as não só eles não são “a grande
m aioria” com o, ainda por cim a, têm de conviver com form idáveis pressões.
tização” da regulação de uma série de coisas, desde o uso do solo até
o controle territorial e a segurança pública.
No B rasil, se há trinta anos os obstáculos para, por exem plo,
realizar-se um a urbanização das favelas com pleta e genuinam ente
participativa eram obstáculos externos às próprias favelas (os interes
ses do capital imobiliário e dos moradores privilegiados na sua rem o
ção, o autoritarismo do Estado etc.), hoje em dia, como se verá mais
dem oradam ente no Cap. 5, há formidáveis obstáculos internos que
dificultam enorm emente a implementação de uma tal estratégia. Isso
não quer dizer, ressalve-se enfaticamente, que o poder dos traficantes
de varejo não seja, em últim a instância, ou visto de m aneira m ais
mediata e menos imediata, um problema largamente exógeno (voltar-
se-á a isso no próximo capítulo); nem quer dizer, tampouco, que obs
táculos tipicam ente externos, como a com umente alegada escassez
de recursos e o conservadorismo e o tecnocratismo estatais, tenham
desaparecido. Quanto a este segundo ponto, note-se que o fato de o
Program a Favela-B airro não ser nem autenticam ente participativo
nem consistente e efetivo no que se refere à regularização fundiária e
à geração de ocupações25 e renda não deve ser atribuído, essencial
m ente, a quaisquer obstáculos im ediatam ente internos às favelas,
mas sim ao perfil conservador e autoritário das administrações muni
cipais que se sucederam após 1993. Situação que, no fundo, configu
ra a continuidade de um mesmo estilo de gestão, inclusive com uma
form idável continuidade pessoal, com um prefeito elegendo o seu
secretário de planejam ento e, na sucessão deste, elegendo-se ele pró
prio mais uma vez e em seguida reelegendo-se.
Portanto, se, em com paração com os anos 60 e 70, quando da
resistência à política urbana autoritária do Regime M ilitar, a conjun
tura política nacional mudou para m elhor, a partir da década de 80
problem as novos surgiram (ou sofreram um salto de qualidade),
vindo a neutralizar (ou quase) a am pliação form al da m argem de
25 De ocupações, e não som ente de em pregos, um a vez que em prego pressupõe uma
relação de assalariam ento - o que eqüivaleria a deform ar e restringir excessivam ente
o escopo das preocupações do autor.
104
□
m anobra conquistada com a redemocratização em meados dos anos
80. O aum ento da crim inalidade e da sensação de in segurança, a
“deterioração do clim a social” , a “m ilitarização da questão urbana”
(SOUZA, 1993b, 1996a e 2000) e, em termos diretamente espaciais,
a fragm entação do tecido sociopolítico-espacial da cidade vêm , na
prática, no quotidiano, minando as possibilidades formais de exerci'
cio de vários direitos. Vêm, como o autor já dissera alhures, solapan
do a cidadania e a civilidade (SOUZA, 2000). Isso pode ser especial'
mente constatado no Rio de Janeiro e, um pouco menos espetacular'
mente, em São Paulo. Mas também em muitas outras cidades, gran
des e até mesmo médias, já podem ser observados, às vezes em m edi'
da significativa, alguns itens do cardápio da fragmentação.
Do ângulo da participação popular no planejam ento urbano, o
com ponente mais preocupante da fragm entação do tecido sociopo'
lítico-espacial da cidade é a territorialização dos espaços segregados
por traficantes de drogas. Esse fenômeno ainda pode ser observado,
de maneira clara e forte, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo,
em bora se venha dissem inando ao longo da rede urbana brasileira.
Em muitas metrópoles regionais e grandes cidades, além de algumas
cidades médias, processos de territorialização de favelas por tra fic a i
tes de drogas vêm sendo registrados desde os anos 90, ainda que
usualmente com um a intensidade que não se com para ao que se pode
constatar no Rio ou em São Paulo.
Detenhamo-nos no caso do Rio de Janeiro, relativamente ao qual
a virada dos anos 70 para os 80 pode ser considerada como um marco
histórico decisivo (SO U Z A , 1996b:444; 2000:194; 2005:5). Na
esteira do processo de territorialização promovido pelos traficantes
de drogas operando no varejo, um número cada vez maior de favelas
foi sendo subm etido ao controle de algum grupo de traficantes de
drogas26 - em que pesem tendências como a de “com petição” entre
26 Estando esses grupos na sua grande maioria ligados, no Rio de Janeiro, a um a da;
duas m aiores “ organizações” do tráfico de tóxicos de varejo, o Com ando V erm elho t
o T erceiro Com ando. Vale registrar, en passam , que, conform e o autor já havia dis
cutido alhures, os “com andos” não são estruturas altam ente organizadas e centraliza
das, no estilo de um a tradicional “fam ília” m afiosa, sendo, antes, “cooperativas cri
m inosas” (SO U ZA , 2000:99 e segs.).
os traficantes e as “milícias” param ilitares, que já levou à expulsão de
traficantes de diversas favelas nos últim os anos, principalm ente no
Rio de Janeiro. Seja com o for, a expansão das redes do tráfico de
tóxicos de varejo, acompanhada de um a tendência de maiores atritos
entre os traficantes locais e os demais moradores, observável a partir
dos anos 9 0 ,27 foi trazendo, como conseqüência, um gradual “fecha
m ento” das favelas. Esse “fecham ento” , exam inado pelo presente
autor em vários trabalhos anteriores (ver, por exem plo, SO U Z A ,
1994a; 1995a; 1995b; 1996b; 1997; 2000; 2006b), é, obviam ente,
relativo: levando-se em conta que as drogas e as arm as utilizadas
pelos traficantes não são produzidas nas próprias favelas e que os
consum idores de drogas de classe m édia tam pouco residem nesses
espaços, vê-se imediatamente que, em parte, as favelas são necessa
riam en te “ a b e rta s” . A inda que longe de ser absoluto, o re fe rid o
“fechamento” é bastante real, e diz respeito ao controle dos contatos
de cada favela com o mundo exterior pelos chefetes do tráfico local.
N ão são apenas eventuais visitantes oriundos da “cidade form al”
(funcionários da Prefeitura ou de empresas por ela contratadas, can
didatos a cargos públicos à procura de votos em época de eleição...)
que precisam de permissão do líder do tráfico em determ inada fave
la para realizar qualquer atividade na “com unidade” sob o seu con
trole; também moradores de um a determ inada favela podem ter a sua
mobilidade restringida, por se sentirem intimidados ou serem vítimas
de desconfiança de traficantes na hora de visitar amigos ou parentes
residentes em um a outra favela, controlada por um a quadrilha rivai
(SOU ZA , 1996b:447-8; 2000:195; 2005:6).
D o ângulo do planejamento e da gestão urbanos promovidos pelo
Estado, o desafio representado por um a fobópole se apresenta para
administradores públicos e planejadores tanto conservadores quanto
progressistas, ainda que se mostre, para estes últimos, de um a form a
particularm ente intensa, especialmente nos hoje raros casos em que
podem ser chamados de progressistas sem o emprego de aspas. A cri
minalidade violenta avança como um fator importantíssimo de degra
106
□
dação da qualidade de vida nas grandes cidades brasileiras. Diante
disso, se por um lado qualquer candidato a cargo público (e, de modo
menos intenso e direto, tam bém qualquer cientista social vinculado ao
tema da segurança pública) passa a ser cobrado em matéria de soluções
eficazes, por outro lado são os (cada vez menos numerosos) pesquisa
dores, planejadores e gestores de esquerda, devido ao seu compromis
so histórico com a bandeira da “participação popular no planejamento” ,
que estão fadados a sofrer as maiores dores de cabeça, um a vez que jus
tamente a “participação” , no contexto adverso da fragmentação do teci
do sociopolítico-espacial, tende a ser imensamente prejudicada.
Crescentem ente os traficantes de varejo determ inam , em espa
ços por eles territorializados, o que se pode e o que não se pode fazer
em m atéria de uso do solo e organização espacial. Ao negociar com
eles, a face oficial do Estado involuntariamente os legitim a e fortale
ce, ao mesmo tem po que se desmoraliza, por passar a impressão de se
ter curvado diante deles. Concomitantemente a essa escabrosa moda
lidade de “co-gestão” Estado/sociedade civil, o restante da popula
ção, sentindo-se acuado e intimidado dentro e fora dos espaços dire
tam ente territorializados pelos traficantes, vê sua autonom ia, que
nunca foi mesmo grande por estas plagas, encolher ainda mais...
N o acertado entendim ento de C ornelius C A ST O R IA D IS
(1999:149), o Estado capitalista não patrocina um a verdadeira dem o
cracia, m as sim um a “oligarquia liberal”. Críticas ao Estado capita
lista e à “dem ocracia” representativa não têm faltado, nos últim os
dois séculos; basta pensar no marxismo e no anarquismo. A análise
de C asto riad is (e tam bém , em boa m ed id a, a de C laude L efo rt),
porém, é particularmente interessante, porque consegue ser extrem a
mente exigente em m atéria de entendimento do que seja um a dem o
cracia sem aspas, sem , contudo, cair na arm adilha de ver na “dem o
cracia” representativa algo puramente form al - o que dificultaria a
distinção entre coisas tão diversas com o, por exem plo, um a ditadura
totalitária e um regim e parlam entar de tipo norte-europeu.
Pode-se dizer que a “democracia” representativa é um a caricatu
ra de dem ocracia, ou um a “dem ocracia” caricatural. Nessa trilha, a
“dem ocracia” em um país com o o Brasil poderia ser qualificada de
hipercaricatural, por ser um a “caricatura de um a caricatura” . Isso
não quer d izer que ela necessariam ente e sem pre é, em todos os
aspectos, “inferior” ou pior que as “dem ocracias” da Europa, dos
EUA etc.; afinal, ela perm ite brechas para que experim entos muito
mais interessantes que qualquer equivalente europeu, com o o orça
mento participativo de Porto Alegre (leia-se: em sua “grande fase” na
década de 90), tenham lugar, para não falar de emblemáticas expe
riências protagônicas dos próprios movimentos sociais. Ela é hiper-
caricatural, porém , no sentido de que, no geral, seus níveis de opaci
dade, falta de accountability, clientelismo, patrimonialismo e corrup
ção são bem m aiores que nos países centrais. E ssa “dem ocracia”
hipercaricatural é, além disso, de uma complexidade estarrecedora: é
com o se, para os mais aquinhoados e afortunados (burguesia e, em
parte, classe m édia alta), existisse, em seu interior, uma “democracia
quase-direta da classe dominante'', devido ao acesso m uitíssimo pri
vilegiado aos tom adores de d ecisão, aos fundos p ú b licos etc.,
enquanto que, para os mais pobres, é como se houvesse uma “quase-
ditadura” , devido ao desrespeito constante de seus direitos civis e
políticos (e o que não dizer dos sociais), direitos esses legal e consti
tucionalmente garantidos, por parte dos funcionários e autoridades do
Estado. A com eçar pela polícia. Essa “democracia” hipercaricatural,
que reúne e com bina em seu interior elementos de uma “democracia
quase-direta da classe dominante” e de uma “quase-ditadura” , é, por
suas características intrínsecas, intensam ente “crim inógena” , visto
que favorece direta e indiretamente a perpetuação e a ampliação da
transgressão da lei: seja engendrando tensões e conflitos, para os quais
a única resposta a ser dada é o encarceramento em condições subu-
manas, seja patrocinando e acobertando a promiscuidade entre o legal
e o ilegal (corrupção policial, por exemplo).
Seja exam inado agora o problem a dos im pactos do tráfico de
drogas sobre a participação popular no planejamento e na gestão de
uma cidade com o o Rio de Janeiro. Nessa cidade, onde a fragm enta
ção se m ostra particularmente pronunciada, é deveras instrutivo lan
çar um olhar sobre o program a de urbanização de favelas Favela-
Bairro, da Prefeitura carioca. É bem verdade que, como puderam o
108
autor e sua equipe constatar durante trabalhos de cam po, e como foi
reconhecido também por alguns outros pesquisadores, como CAR
DOSO (2002) e PINTO et al. (2002), não se trata aí de um programa
genuinamente participativo, dado que os moradores não detêm real
poder de decisão e controle sobre os projetos. Apesar disso, uma vez
que o referido programa tem esbarrado em diversos problemas, rela
tados em campo ao autor e membros de sua equipe por entrevistados
e veiculados até mesmo na imprensa, exam inar os casos a ele relati
vos pode trazer relevantes lições.
Vários dos líderes de favelas que o presente autor e sua equipe
tiveram a oportunidade de entrevistar em meados dos anos 90 adm i
tiram que o tráfico de drogas representaria ou poderia vir a represen
tar um entrave para um processo de urbanização.28 Já naquela época,
entretan to , m uitas associações de m oradores de favelas eram ou
haviam sido intimidadas por traficantes de drogas ou deles se haviam
transform ado em m arionetes, por m eio de eleições m anipuladas e
diretorias impostas. Nada indica que a situação tenha melhorado uma
década depois; pelo contrário - e isso apesar da expulsão de trafican
tes de várias favelas por “milícias” paramilitares nos últimos anos, o
que, no fundo, não parece resolver o problema de uma tutela mais ou
menos tirânica exercida sobre essas coletividades. D iante disso, é
fácil im aginar, um a vez havendo disposição para dar atenção ao
assunto, as imensas dificuldades adicionais de um programa de urba
nização de favelas realmente participativo, coisa que o Favela-Bairro
não é. (O fato de que, atualmente, ser “genuinamente participativo” ,
28 C onform e já havia sido registrado em SOUZA (1996b:460, nota 17), dezoito dos
líderes favelados entrevistados pelo autor e sua equipe entre setem bro de 1994 e
agosto de 1996 responderam a uma pergunta sobre se os traficantes dificultariam , de
algum m odo, um p ro cesso de urbanização em suas respectivas favelas. E m bora
som ente cinco entrevistados (correspondendo a quatro favelas) tenham claram ente
adm itido essa possibilidade (tratava-se, na m aioria dos casos, de favelas que não
estavam sendo objeto de urbanização no m om ento, o que tom ava o problem a uma
m era hipótese), o medo de represálias não pode, naturalm ente, ser descartado com o
fator d e com prom etim ento da fidedignidade das respostas. Das duas favelas visitadas
pelo autor e sua equipe e que estavam , na ocasião, sendo urbanizadas, em um a delas
(A ndaraí, na Z ona Norte do Rio) havia ocorrido um atrito entre a equipe local do
Favela-Bairro e os traficantes pouco antes da visita da equipe de pesquisa.
nas condições de enclaves territoriais fortemente controlados por tra
ficantes de drogas, é algo que não depende apenas do Estado local,
não serve de desculpa relativam ente aos idealizadores e condutores
do program a, um a vez que nem no plano da intencionalidade houve
jam ais qualquer consistência a esse respeito.)
Prosseguindo com o caso do Rio de Janeiro: se, para qualquer
intervenção do Estado em uma favela, tom a-se cada vez mais comum
precisar “pedir autorização prévia” ou “ n egociar” (am iúde tendo
com o “ m ed iad o ra” a associação de m oradores) com os ch efetes
locais; se a população favelada vive constantemente am edrontada e
desconfiada, intim idada e acuada entre o Estado, quase que exclusi
vamente presente por meio da polícia, e os traficantes armados (sem
falar, mais recentem ente, dos grupos de exterm ínio); se os trafican
tes, a polícia e as “milícias” colaboram, todos, para dissem inar valo
res autoritários, patriarcais e de culto à violência; enfim: diante disso
tudo, com o im aginar, mesmo com a criação de canais participativos
formalmente consistentes, uma prática participativa ampla e efetiva?
Falar em “participação” , nessas circunstâncias, tenderia a ser um a
espécie de licença poética. E, na verdade, não se trata de um proble
ma circunscrito às favelas: seja porque, se o percentual da população
do município vivendo nelas e em outros espaços segregados m uito
freqüentem ente territorializados por traficantes não é pequeno, isso
significa que é um problem a da cidade em um sentido bastante real;
seja porque a problem ática da violência e da territorialização trans
borda dos espaços segregados para a cidade form al, amedrontando a
classe m édia que, de resto, raram ente consegue vislum brar outra
saída a não ser o escapism o da auto-segregação.
E triste ter de constatá-lo, mas os obstáculos para a execução
satisfatória de políticas públicas como a urbanização de favelas e a
regularização fundiária não vêm, atualmente, apenas das elites urba
nas, com o ocorria durante os anos 60 e 70. Na verdade, o program a
Favela-Bairro exem plifica como as elites podem se apropriar dessas
estratégias e im plem entá-las, obviamente não sem antes podá-las e
em asculá-las (por exem plo, ao negar ou esvaziar um com ponente
participativo consistente). Em que pese o tráfico de varejo (ou subsis-
110
□
lema varejo) não ser, mediatamente, endógeno - um a vez que ele não
existiria sem o subsistema vinculado à importação, à exportação e ao
atacado (subsistema l-E-A) por outro lado é evidente que, em ter
mos imediatos, dificuldades significativas para a im plementação de
políticas públicas nos marcos da participação popular se apresentam
no interior dos próprios espaços segregados. N ão é som ente um a
questão de arbitrariedade por parte dos traficantes, ou algo relativo
aos efeitos involuntários de sua presença, com o tiroteios que am e
drontam trabalhadores a serviço da Prefeitura ou de em preiteiras e
levam à paralisação de obras por períodos mais ou menos prolonga
dos; há tam bém, e não raramente, uma espécie de apreensão intuitiva
dos traficantes quanto aos seus interesses. E ssa apreensão se refere,
im ediatam ente, ao fato de que alterações na organização espacial
podem lhes criar embaraços: o alargamento e o calçamento de ruas e
melhorias na ligação entre as favelas e seu entorno poderiam facilitar
o acesso aos territórios por eles controlados não somente de veículos
como ambulâncias e caminhões de coleta de lixo, mas também de car
ros da polícia e até viaturas do Exército...29 Além disso, há que se con
siderar o interesse intrínseco que - conforme ponderou um dos líderes
favelados entrevistados pelo autor e sua equipe - os traficantes laten-
temente possuem na m anutenção de diversos laços de dependência
dos moradores com eles, laços que poderiam vir a ser enfraquecidos
na esteira de um processo de regularização fundiária e urbanização,
ainda m ais se acompanhado de “medidas flanqueadoras” tais como
programas sociais, de geração de ocupações e renda etc.30
Tanto a localização quanto a estrutura espacial das favelas são de
crucial im portância para os traficantes, conform e o salientado no
subcapítulo 1.1 deste livro e em outros textos. A estrutura espacial é
tão importante que os traficantes não têm apenas se beneficiado dela
passivam ente, mas tam bém buscado influenciá-la de várias m anei
ras: colocando obstáculos nas vias principais, asfaltadas (quebra-
m olas, às vezes cham ados de “guardas deitados”); determ inando a
112
□
entenda-se aquele em cujo âmbito os moradores de favelas sejam tra
tados como cidadãos e, portanto, com respeito, sendo a polícia obri
gada a prestar contas ao conjunto dos cidadãos, em vez de atuar como
um a “força de ocupação” distante dos favelados e hostil e preconcei
tuosa em relação a eles. A experiência do Rio de Janeiro mostra, con
tudo, que não é fácil prever que tipo de reação os traficantes terão
diante de processos de regularização fundiária e urbanização. A rea
lidade vem m ostrando que o quadro é com plexo e que as reações
podem variar. Sejam examinados alguns fatores que podem interferir
no comportamento dos traficantes a esse respeito:
113
■
fundas com a associação de moradores. Então, ele... é... quase
sempre entendem ou procuram entender as questões que a comu
nidade coloca e não tentam se colocar contra a comunidade. Ao
contrário, eles tentam cooptar a comunidade (...).
114
□
sivas, entre elas ações de segurança pública em sentido estrito -
como a introdução de um policiamento comunitário permanente e
conduzido dentro de um espírito de arejamento e abertura à partici
pação. Um tal contexto seria intolerável para os criminosos, por
representar uma situação-limite em matéria de ameaça aos seus
interesses e à própria manutenção de “seu” território.
116
□
diversos casos concretos, em reportagem intitulada “Empresas e trá
fico selam ‘acordo de paz’”:
118
□
Em troca, a empresa, que iria ‘economizar’ com a dispensa
dos seguranças, pagaria o equivalente hoje a R$ 600 por mês ao
‘m ovim ento’. Considerando que não havia outra opção, a
empreiteira fechou o acordo. Durante toda a obra, não sumiu um
único equipamento do canteiro.
(...)
Em outra obra realizada, desta vez em Magalhães Bastos, na
Zona Oeste, o então chefe do tráfico chegou a exigir que a
empreiteira cedesse capacetes, luvas e camisas com o logotipo
da empresa.
Quando a polícia fazia operações na região em busca de
drogas, os traficantes se disfarçavam de operários e permane
ciam na obra, fingindo trabalhar.
31 O relatório traz ainda, de form a condensada, alusões a incidentes que com plem en
tam os exem plos e relatos oferecidos neste livro. Um deles é a m orte de um técnico
da em preiteira contratada que atuava no Parque Proletário Á guia de O uro, na Zona
N orte da C idade (TR IB U N A L DE CON TAS DO M U NICÍPIO D O RIO D E JA N E I
R O , 2 0 0 5 :3 6 ), o n d e tam bém foi assassinado o v ice-presidente da asso ciaçã o dc
120
□
Conforme já se comentou, avaliações críticas do Prcgrama
Favela-Bairro têm chamado a atenção para o fato de que ele, no
fundo, não é um exemplo de planejamento participativo. A dsspeito
da correção dessas críticas, às vezes feitas em um estilo até mesmo
demasiado comedido, não seria apenas brincadeira se se sugerisse
que, em um certo sentido, ou para um certo grupo, o Favela-Bairro se
tem mostrado, sim, “participativo”: para os traficantes de drogas...
Antes de finalizar este capítulo, um outro seriíssimo fenômeno
de “degeneração” do Estado precisa ainda ser revisitado: as “milí
cias” paramilitares que, especialmente no Rio de Janeiro, terri.oriali-
zam hoje já muitas dezenas de favelas. Diferentemente dos trafican
tes, pode-se imaginar que intervenções visando à urbanização e regu
larização fundiária não as incomodam nem um pouco. Contudo, o
fato em si de se tratar de mais um vetor de poder paralelo ao Estado
(ou à face oficial do Estado) deixa entrever diversas ligações com os
assuntos do planejamento e da gestão das cidades - para não falar nas
questões da participação popular no planejamento e na gestão e da
auto-organização dos cidadãos sob a forma de ativismos sociais. As
“milícias” são e, ao mesmo tempo, não são o Estado. São o Estado na
medida em que os indivíduos que as integram consistem, muitas
vezes, em policiais e bombeiros da ativa (sem contar os ex-policiais
c os ex-bombeiros); mas, evidentemente, por outro lado não o são,
visto que os grupos paramilitares são agências coercitivas informais,
liles existem paralelamente ao Estado, sob a sua sombra. E, sobretu
do a partir do momento em que começam a “vender segurança”, exis-
lem à margem da lei, sendo antes parte do problema que da solução.
moradores (vide nota 33 adiante). R eferindo-se a outra situação, reporta-se que “(■■■)
os engenheiros inform aram que por vezes os traficantes fazem solicitações que não
|>odcm ser atendidas, por não fazerem parte do escopo da obra e não possuírem pre-
visiio orçam entária, culm inando em intim idação, am eaça ou até m esm o seqüestro do
detiv o local da em preiteira e da própria fiscalização, o que im pacta a execução dos
m-rviços e pode levar à desm obilização das obras” . E prosseguindo: “ ”[r]ehtaram ,
itiuda, que quando essas ingerências ficam m uito acentuadas, ou o nível de violência
dn com unidade aum enta significativam ente, seja por guerra entre facções ou por con-
lionto com a força policial, as obras são suspensas até que os níveis de risco retor-
m-m a um patam ar tolerável.” (TR IB U N A L D E CONTAS DO M U N IC ÍPIO DO RIO
l>li JA N EIRO , 2005:37)
Constituem um perigo para a mirrada margem de manobra existente
sob o regime “democrático”-representativo.
Pela mentalidade dos indivíduos que as compõem e por suas prá
ticas repressivas ao arrepio da lei, incluindo-se aí a aplicação de sen
tenças de morte, as “milícias” paramilitares são vetores de um poder
potencialmente não menos tirânico que o dos traficantes. Em matéria
de “degeneração” do Estado correspondem, como é fácil de se perce
ber, a uma ameaça ainda maior.
As “milícias” não são um fenômeno exclusivamente brasileiro.
Elas fazem parte de uma tendência mundial de privatização da segu
rança pública, decorrente da sobrecarga, da insuficiência ou - como
no caso de muiios países (semi)periféricos - da incompetência ou
“falência” das forças policiais. Em todos os países verifica-se o cres
cimento das agências privadas formais ou formalizadas de segurança.
Em países com o o B rasil, adicionalm ente, observa-se também o
aumento dos vigilantes particulares “clandestinos” e, igualmente, de
modalidades informais de atuação de agentes de segurança pertencen
tes aos quadros do Estado, os quais operam de modo peculiarmente
visceral o entrecruzamento entre o formal e o informal, a “ordem” e a
sua negação, a face oficial do Estado e a transgressão da lei.
122
□
3. O que podem (e o que fazem)
os movimentos sociais em uma
“era de medo”?
Com São Paulo e o Brasil ainda sob a comoção dos ataques orga
nizados na capital paulista pelo Primeiro Comando da Capital (PCC),
“organização” criada nos presídios de São Paulo no começo da déca
da de 90, um texto apócrifo causou sensação durante várias semanas
em 2006: uma suposta entrevista concedida por Marcos Camacho, o
“Marcola” , um dos líderes do PCC, saiu publicada em 23/05/2006 no
Segundo Caderno do jornal O G lobo, na coluna de Arnaldo Jabor.
Descobriu-se, posteriormente, que a “entrevista” foi, provavelmente,
uma “brincadeira-provocação” da lavra do próprio Jabor. No entan
to, muitos acreditaram na sua autenticidade, e alguns intelectuais
(com ou sem aspas) nela viram uma “prova” de que, de fato, “esta
mos todos no inferno” (título da “entrevista” e uma das tiradas nela
contidas e atribuídas a “Marcola”), e também de que os líderes do trá
fico de drogas não são tão ignorantes quanto muitos pensam. Ora,
iiflo era preciso esperar tanto tempo para se dar conta disso; bastaria
i|iie tivessem prestado mais atenção a certas declarações de José
Curlos dos Reis Encina, o famoso “Escadinha”, nos anos 80, ou lido
ti livro autobiográfico Quatrocentos contra um, de William da Silva
I .irna, o “Professor” (LIMA, 1991) - ambos da “facção” do tráfico de
varejo Comando Vermelho, surgido no Rio de Janeiro em fins dos
imos 70.32 Aliás, o próprio “Marcola” demonstrou, em seu longo e
“ "liscadinha” foi assassinado em setem bro de 2004 no Rio de Janeiro, quando ainda
i umpria pena em regim e sem i-aberto; era, na ocasião, vice-presidente de um a coope-
iiiiiva de m otoristas de táxi. “Escadinha” tornou-se célebre com o o m ais carism ático
m iinrante d a prim eira geração do C om ando Verm elho: ao m esm o tem po em que, na
por vezes muitíssimo interessante depoimento à Comissão Parla
mentar de Inquérito do Tráfico de Armas (disponível em 05/03/2007
em http://blog.estadao.com.br/blog/media/20060708-marcos_cama-
cho.pdf), no qual revela, entre outras coisas, ser um leitor de Lenin e
Mao Tsé-Tung, que a tal “entrevista” bem poderia ter sido verdaaei-
ra, ao menos na maior parte. Seja como for, a suposta “entrevista”
desencadeou reações até mesmo no exterior, como um debate entre
organizações de movimentos sociais da Argentina sobre o papel dos
atores sociais vinculados ao tráfico de drogas, debate esse do qual o
presente autor foi convidado a participar (vide LIBRES DEL SUR,
2007; NUEVO PROYECTO HISTÓRICO, 2007; SOUZA, 2007). O
que salta aos olhos, ao examinar-se grande parcela das reações, é a
propensão de parte da esquerda a, por acreditar falaciosamente que
“o inimigo de meu inimigo é meu amigo” , e por deixar-se iludir por
uma retórica “de esquerda” (como o slogan “Paz, Justiça e Liber
dade” , inaugurado pelo Comando Vermelho), supor que o “capitalis
mo criminal-informal” do “subsistema varejo” carrega em si uma
dimensão emancipatória, anticapitalista, de justiça social. Desfazer
esse mal-entendido é o objetivo dos parágrafos que se seguem.
No início da década de 80, durante os anos iniciais do Comando
Verm elho, alguns intelectuais sugeriram um caráter de “Robin
Hood” para os traficantes da referida “organização”, cujo slogan era,
precisamente, “Paz, Justiça e Liberdade” , o mesmo adotado poste
riormente pelo PCC. De fato, muitos, talvez a maioria dos “soldados”
e sobretudo dos “gerentes” dos anos 80, tinham uma idade superior a
vinte anos, apesar da presença já naquela época de crianças armadas,
prim eira m etade dos anos 80, avançou rapidam ente com o um dos crim inosos mais
conhecidos do país, adotava um discurso de denúncia das injustiças sociais, distribuía
presentes entre o s favelados e costumava punir severamente quaisquer bandidos que
m olestassem m oradores com uns. Protagonizou, em 1985, um a fuga espetacular do
presídio da Ilha G rande, ao ser resgatado de helicóptero. Pouco antes de ser assassi
nado concedeu um a entrevista ao rapper M V Bill e à pesquisadora M iriam G uindani,
m ostrando-se arrependido pelos erros com etidos no passado e desejando que seu des
tino servisse de exem plo aos jovens (cf. SOARES et al., 2005:97-9). E ntretanto, as
circunstâncias de sua m orte deixaram dúvidas no ar quanto ao seu possível envolvi
m ento com atividades crim inosas.
124
□
como o famoso “Brasileirinho”. Esses traficantes haviam nascido e
crescido nas favelas em que operavam.
Já era claro para vários observadores, nos anos 80, que o tráfico
de drogas de varejo era, essencialmente, business, e não uma espécie
de filantropia, muito menos parte de um projeto de emancipação
social. Mas a combinação de um discurso crítico por parte de alguns
líderes que foram depois presos ou mortos (não poucas vezes por
seus ri\ais de outros “comandos” ou até do mesmo “com ando” ,
como o famoso “Escadinha”) com ações “sociais” (dinheiro para as
viúvas dos “soldados do tráfico” mortos em combate, ajuda para
construr uma quadra de futebol, financiamento de churrascos comu-
nitáriosetc.) sempre foi um fator de confusão nas cabeças de uns tan
tos observadores. Esses observadores tinham uma certa dificuldade
para pex;eber que as ações “sociais” eram e são, para além de uma
possíve autêntica solidariedade por parte de alguns traficantes, parte
integrarte de uma estratégia para obter as condições necessárias para
a aceita;ão da sua presença nos espaços em que atuam.
As redes do “subsistema varejo” se expandiram no Rio de
Janeirodurante a década de 90. Cada vez mais favelas foram sendo
territoriilizadas. As conexões funcionais com o “subsistema I-E-A”
e com \ários agentes do Estado se tornaram mais complexas, “insti-
tucionaizadas” e rotineiras, como exemplifica o esquema de propi
nas pari a polícia. Os traficantes menos jovens (e mais experientes e
madura) muitas vezes foram assassinados pela polícia ou por seus
rivais en “batalhas” e “guerras” nas favelas (ou nos presídios); a
idade rrídia dos “soldados” e mesmo dos “gerentes” foi baixando até
um pono no qual, atualmente, muitíssimos daqueles que a imprensa
e a clase média caracterizam como “criminosos” (“perigosos”) são
criança e adolescentes, jovens de quinze, quatorze anos ou menos.
Muitosleles são consumidores das drogas que vendem, e para mui
tos porlr um fuzil é um fator de prestígio e de poder tão importante
quanto i dinheiro. E mais: pertencer a uma quadrilha e a uma “fac
ção” sijiifica, para esses jovens, possuir uma identidade que não se
vinculapenas a um estado de fraqueza ou impotência; significa,
tambérç pertencer a um grupo que, de algum modo, talvez funcione
às vezes como um complemento ou Ersatz para as suas famílias pro
blemáticas, em que o pai é, amiúde, o grande ausente.
Muitos dos “soldados” e sobretudo “gerentes” atuais não nasce
ram nem cresceram nas favelas onde operam e que controlam, mas em
outras favelas. Em não poucos casos, substituíram traficantes nascidos
e criados no local e que foram mortos ou expulsos na esteira de “guer
ras” entre quadrilhas e “comandos”. A relação com as “comunidades”
foi-se modificando em muitos casos; em não poucas favelas elementos
de coerção e uso arbitrário e tirânico do poder foram fazendo sombra,
ao menos em grande parte, aos elementos de persuasão e sedução.
É evidente que o tráfico de drogas e outras atividades ilegais per
manecem sendo uma fonte de geração de dinheiro importante em
meio às ruínas do capitalismo periférico pós-fordista com seus traba
lhadores pobres (hiper)precarizados. Também é sobejamente conhe
cido que o ódio contra uma polícia brutal e corrupta chega a eclipsar,
na mente de muitos favelados, alguns dos problemas que eles têm
com os traficantes. Por fim, é óbvio que o elemento de coerção não
pode ultrapassar os limites da “disfuncionalidade”, visto que os trafi
cantes dependem de uma certa aceitação local e não poderiam reali
zar seus negócios por muito tempo se fossem encarados apenas como
uma “força de ocupação” . Apesar disso tudo, situações de grande
tensão se têm m ultiplicado, posto que muitos traficantes de hoje
apresentam um comportamento tirânico em face dos demais favela
dos: castigam pessoas porque estas infringiram as “normas de condu
ta” decretadas por eles ou, simplesmente, porque eram parentes ou
amigos de algum rival morto ou expulso; ainda que em geral punam
os “criminosos comuns” que roubam ou estupram, eles mesmos não
raro violentam mulheres, humilham, torturam e matam, às vezes por
muito pouco; tomam casas de moradores; ameaçam e manipulam
líderes de associações de moradores - vários líderes já foram expul
sos de suas favelas e até mesmo assassinados.33
126
□
Os traficantes do “subsistema varejo”, muitos deles crianças e
udolescentes, não voam para Miami. Suas roupas não são temo e gra
vata, mas sim camisetas, bonés, bermudas e chinelos ou tênis. Os
"investimentos” que alguns deles fazem, notadamente os “donos”
(haja vista que os “soldados” e os “gerentes” são, na realidade, uma
cspécie de assalariados, logo com pouca margem de manobra para
“investimentos”), são, por exemplo, casas, muitas delas localizadas
cm favelas. Eles não possuem contas em paraísos fiscais no exterior,
diferentemente dos traficantes do “subsistema I-E-A” . Eles não
í:ilam inglês, apesar de seus valores serem largamente condicionados
pela violência de Hollywood e pelo hedonismo e o consumismo do
capitalismo de cassino do mundo globalizado. Seus lucros nada ou
quase nada são em comparação com aqueles dos verdadeiros grandes
mente realizou, anos atrás, um levantam ento (cuja existência foi divulgada, por m eio
iln grande im prensa - ver jom al O G lobo, 20/06/2002 pelo deputado que presidia a
Comissão) segundo o qual, entre 1992 e 2001, m ais de oitocentos líderes de favelas
d» Região M etropolitana do R io de Janeiro teriam sido ou cooptados por traficantes
ile drogas, ou expulsos das favelas onde residiam (trezentos líderes, ou m ais de 2/3
ilo total) e até m esm o m ortos (pelo m enos cem ). Pois bem: em 2006 e 2007 o autor
deste livro e m em bros de sua equipe tentaram , sem sucesso, por diversas vezes, obter
cópia de algum docum ento referente a essa suposta pesquisa. Após m uitas tentativas,
um assessor parlam entar adm itiu que não seria possível fornecer nenhum a cópia, m as
que, de todo m odo, se teria tratado apenas de um “levantam ento m uito prelim inar,
que nunca chegou a ser concluído” . Seja com o for, a experiência de pesquisa do pre
sente autor tem m ostrado que m uitas associações já sofreram com diversos tipos de
inierferência por parte de traficantes de drogas de varejo desde os anos 80, sendo que
muitos líderes associativos já foram intim idados, expulsos e até assassinados ao se
recusarem a aceitar essas ingerências. Alguns casos que tiveram expressiva repercus-
hilo na época em que ocorreram foram os assassinatos da secretária da A ssociação
1 'ró -M elh o ram en to s d a R o c in h a (em 198 7 ), do p re s id e n te d a A s s o c ia ç ã o de
Moradores da Favela Pára-Pedro (em 1988) e de um colaborador da m esm a associa
ção (em 1990), da secretária da Associação dos M oradores do M orro de Santa M arta
(em 1991 - aliás, segundo o depoim ento de um ex-presidente da A ssociação, entre
vistado pelo autor e sua equipe em julho de 1995, tam bém um presidente da associa-
çilo local teria sido assassinado a m ando de traficantes), do presidente da A ssociação
de M oradores da V ila Piquiri (em 1993), do presidente da Associação de M oradores
do M orro dos Prazeres (em 1994), de um líder com unitário da C idade de Deus (em
1994), do presidente da Associação de M oradores de V ilar C arioca (em 1996), do
presidente da A ssociação de M oradores da Favela do B arbante (em 1997), do vice-
presidente da A ssociação de M oradores do M orro da Serrinha (em 2002) e do vice-
presidente da A ssociação de M oradores do Parque Proletário Á guia de O uro (em
2005) - todos no m unicípio do Rio.
traficantes (e com os sócios destes), os quais, até certo ponto, os
manipulam e exploram. Mas são eles, os traficantes do “subsistema
varejo” , aqueles que morrem ou vão para a cadeia ou para os “refor-
matórios” para “menores infratores” . Tanto a distribuição de ganhos
quanto a de riscos são totalmente assimétricas - e os ganhos são
inversamente proporcionais aos riscos: aqueles que mais ganham são
os que menos se arriscam, os que mais se arriscam são os que menos
ganham. E, não obstante tudo isso, o comportamento de não poucos
traficantes é, conforme já se disse, o de oprimidos que oprimem
outros oprimidos.
O movimento dos sem-teto já passou em São Paulo por uma
experiência traumática, da qual se podem extrair interessantes lições.
Foi quando, segundo depoimentos colhidos pelo autor em conversas
com ativistas do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST),34
militantes dessa organização foram expulsos de um grande assenta
mento na periferia de São Paulo em 2004 - a ocupação Anita
Garibaldi, no município de Guarulhos, iniciada em maio de 2001. A
essência do problema é semelhante ao que ocorreu com aqueles
vários líderes de associações de moradores mencionados dois pará
grafos atrás e que, nas duas últimas décadas, não quiseram submeter-
se à tirania dos traficantes. A forma, porém, revela algumas peculia
ridades interessantes.
No caso ocorrido com o MTST em Guarulhos, pelo que se
depreende de um depoimento prestado ao autor destas linhas pela
pesquisadora Sonia Lúcio Rodrigues de Lima, é lícito especular
sobre se talvez o próprio estilo de organização política e territorial
não teria colaborado para tornar a ocupação mais vulnerável.35
Segundo a pesquisadora, que redigiu uma tese de doutorado sobre a
ocupação Anita Garibaldi (LIMA, 2004), os atritos com o tráfico de
drogas começaram cedo e, sem que a coordenação da ocupação per
cebesse, os traficantes - inicialmente circunscritos a uma pequena
área, onde exerciam o seu negócio - foram-se expandindo. Adap
34 E n trev ista s in fo rm ais o co rrid as em 2005 (em São P aulo) e 2006 (no R io de
Janeiro).
35 D epoim ento oral colhido em m aio de 2007.
128
□
tando-se ao próprio formato de organização territorial do MTST
(coordenações por rua-coordenação da ocupação-coordenação esta
dual), os traficantes foram “comendo o mingau pelas bordas”, coop-
tando líderes menores (de rua) e chegando, depois, inclusive a mudar
moradores, substituindo-os por gente da sua confiança e com eles ali
nhada. Percebe-se, aí, uma verdadeira estratégia territorial. A coor
denação da ocupação tentava dialogar com os traficantes e “contê-
los”, mas isso de nada adiantou, como tampouco tentar enfrentá-los,
a não ser para adiar o desfecho que foi, em 2004, a expulsão dos mili
tantes do MTST pelos criminosos.
Por experiência bem menos infeliz passou, no mesmo ano de
2004, a Frente de Luta Popular (FLP), organização do Rio de Janeiro
que apóia ocupações de sem-teto e é comprometida com ideais e um
estilo autogestionários. Diferentemente do MTST, em que assem
bléias gerais por ocupação só são realizadas em alguns casos espe
ciais, no mais sendo a própria “coordenação ” da ocupação responsá
vel pelo encaminhamento e pelas decisões, não há, na FLP, uma
“coordenação” fixa, e todas as decisões relevantes são tomadas pelo
“ coletivo ” , ou seja, pelo conjunto de todos os moradores. A FLP
apóia diretamente, no momento em que este texto é escrito (2007),
três ocupações do Centro do Rio de Janeiro (Chiquinha Gonzaga,
Zumbi dos Palmares e Quilombo das Guerreiras) e, em depoimento
prestado ao autor,36 um militante da organização comentou que, em
2004, poucas semanas após a ocupação Chiquinha Gonzaga ser ini
ciada, traficantes de drogas do Morro da Providência (onde se situa
aquela que é considerada a mais antiga favela da cidade, localizada
atrás da estação ferroviária da Central do Brasil) começaram a man
dar recados dizendo que queriam “tomar conta” . Foi então que os
moradores resolveram enviar uma “delegação” à favela, para parla
mentar com os traficantes. O que se seguiu foi interessante. Se, por
um lado, ficou claro que a cessão do espaço da ocupação (um prédio
alto, pertencente ao INCRA, abandonado já havia muitos anos) para
o tráfico não era exatamente uma prioridade para o próprio chefete
37 E esse tipo de problem a pode ser observado, claro, tam bém em outras cidades e
países. Em Buenos A ires, cidade em que a presença do tráfico de drogas de varejo
ainda não gerou, nem de longe, os m esm os im pactos que no Rio ou em São Paulo,
um espaço que funcionava com o centro de cultura e local de encontro p ara ativistas
piqu eíeros foi tom ado por crim inosos, segundo depoim ento colhido pelo autor em
fevereiro de 2007.
38 O d ebate em tom o dos conceitos de “precarização” , “precariedade” e “precariado”
vem -se desenvolvendo na Europa desde os anos 80, sendo tais conceitos intensam en
te d isc u tid o s n a F ra n ç a {p ré c a risa tio n , p r é c a r ité , p ré c a ria t) e n a A lem an h a
130
□
Comando Vermelho posteriormente também adotado pelo Primeiro
Comando da Capital, é o slogan de uma “organização” no âmbito do
“capitalismo criminal-informal”, o qual existe como face explicita
mente ilegal nos marcos de um sistema mundial capitalista cada vez
mais “criminógeno”, em que o legal e o ilegal cada vez mais se entre
laçam. A violência utilizada pelos atores do “capitalismo criminal-
informal” não é “programática”, não tem por objetivo ferir o sistema
capitalista, estando, isso sim, a serviço de objetivos pragmáticos e
parasitários no interior do status quo. A meta é ordenhar o status quo,
não eliminá-lo. A possibilidade de “negociação”, nesses marcos, pare
132
□
cuja resposta já esteja disponível; é uma questão política (e teórica)
que somente a própria práxis dos movimentos poderá solucionar.
Compreender o papel “estrutural” do “hiperprecariado armado”
é um requisito básico para que se possa saber o que esperar (e o que
não esperar) dele.
Os traficantes de varejo sabem muito bem (e não raro o dizem)
que vão ter vida curta, morrer muito jovens; eles sabem que, como se
diz popularmente, “não ficarão para semente” . A eles interessa mais
uma vida curta mas com dinheiro e poder que uma vida bem mais
longa como trabalhadores de salário mínimo ou como trabalhadores
(hiper)precários do informal usual - ou seja, precisamente a vida de
seus pás e/ou avós. Isso não faz deles, contudo, “niilistas” . A despei
to dos elementos de lucidez crítica presentes em certas declarações
dos “Marcolas” e “Escadinhas” , eles não querem destruir o “sistema”.
Eles sôoprodutos do ‘‘sistem a’’, são acomodações no interior do “sis
tema” ,ainda que as denúncias e as tensões (com o Estado, com as
classesdominantes, com a classe média) sejam nítidas e eventualmen
te autêiticas em tais declarações: desprezo e ódio pela polícia que os
submeie a extorsão; desprezo e ódio pela classe média americanizada
que se refugi a em seus “condomínios” (e cujos padrões de consumo
eles teitam, não obstante, emular); ódio pela burguesia que explora e
que m;ta - mas que não morre e nem tem de temer o cárcere.
O; traficantes do “subsistema varejo” têm uma relação objetiva
e subjetivamente ambígua com o Estado (e com os capitalistas): são
reprimdos por ele em sua face “oficial” e, ao mesmo tempo, manti
dos per agentes estatais corruptos (policiais e outros). No tabuleiro
de xadez do comércio de drogas ilícitas, os “donos” são “pequenos
capitalstas informais/criminosos” , cuja existência é impensável sem
o “subsistema I-E-A” , perante o qual eles são pouco mais que sim
ples p<ões e os seus “soldados” e “gerentes” (mão-de-obra barata,
que pole ser reposta a custo quase zero) menos até que isso, para nío
falar ros ainda mais descartáveis “olheiros” , “aviões” e “vapores”.
Esse “íiperprecariado armado” não constitui, a rigor, um “exércúo
industial de reserva” . A distância entre esses jovens (não raro crian
ças) seni-alfabetizados, em geral pouco ou nada qualificados mesmo
para tnbalhos manuais, filhos e netos de trabalhadores muitas vezes
informais, e as exigências do setor formal (não só na indústria, mas
também no terciário) é muito grande.
O “lumpemproletariado” das cidades de um país (semi)periféri-
co como o Brasil não corresponde a um grupo limitado ou “residual”
de “mendigos, vagabundos, criminosas e prostitutas”, que é como
Marx, com indiscutível desprezo, resumiu sua composição em O 18
brumário de Luís Bonaparte (MARX, 1978:119). Aliás, o próprio
Marx, ao examinar o “Lumpenproletaríat” (literalmente, “proletaria
do em farrapos”), considerou-o como pertencendo à “superpopula
ção relativa”, mas teve o cuidado, ao considerar o que chamou de “o
mais profundo sedimento da superpopulação relativa”, aquele que
“vegeta no inferno da indigência, do pauperismo”, de incluir no
“exército industrial de reserva” somente alguns de seus integrantes
(os órfãos, os aptos para o trabalho), deixando de lado o “rebotalho
do proletariado” (MARX, 1980:746-7). Esse “rebotalho do proleta
riado”, ou “putrefação passiva das camadas inferiores da velha socie
dade” (isto é, do campesinato desenraizado), expressão empregada
por Marx e Engels no Manifesto Comunista (MARX e ENGELS,
1982:116), não pode, nas cidades de um país como o Brasil, ter nem
sua importância numérica nem seu papel (socio)político subestima
dos. Em um país onde um enorme percentual da força de trabalho é e
sempre foi precarizado, onde um enorme percentual dos trabalhado
res se acha e sempre se achou subempregado, o “hiperprecariado” é
tudo, menos irrelevante - embora tampouco seja homogêneo.
Se, para Marx, o papel (socio)político do “lumpemproletariado”,
caso desempenhasse algum (como durante a guerra civil na França),
seria unicamente um papel reacionário, de apoio e marionete nas
mãos das classes dominantes, essa visão, hoje, merece ser muito rela-
tivizada. Os piq u etero s argentinos e mesmo muitos membros de
movimentos sociais brasileiros, como o dos sem-teto, vêm demons
trando que o “hiperprecariado” pode, sim, desempenhar um papel
não-conservador, dependendo das circunstâncias. E pode, até
mesmo, desempenhar um papel muito mais avançado que o dos tra
balhadores do setor formal, organizados em sindicatos amiúde con
servadores. Contudo, o “hiperprecariado armado” vinculado ao “sub
sistema varejo” parece desempenhar um papel em última análise con
servador, e em vários sentidos.
134
□
A “crim inalização da economia mundial” (relem brando a
expressão de Petrella já recordada na Introdução deste livro), que é,
de fato, o incremento da face criminosa (em sentido literal) do capi
talismo em todas as escalas e envolvendo, direta ou indiretamente, os
atores mais diferentes possíveis - as atividades e os agentes envolvi
dos nos processos de “lavagem de dinheiro” constituem exemplo
suficientemente poderoso tom a, juntamente com a “lógica” do
pós-fordismo (semi)periférico e a ruína social que ele gera, a ascen
são numérica e sociopolítica do “hiperprecariado armado” um fenô
meno absolutamente “normal” nos marcos do capitalismo contempo
râneo, e não um “acidente” ou uma “aberração”, muito menos fruto
do descuido ou da incompetência de algum governante específico
(até porque se trata de algo geral, em que pesem as particularidades
de cada local). M esmo mantendo a sua essência, o capitalism o
metamorfoseou-se nas últimas décadas. A realidade de hoje é, em
alguns aspectos, pior que os pesadelos de ontem.
Se o pós-fordismo nos países centrais representa uma situação
em que o capitalismo já não consegue mais “integrar” (“nova pobre
za”, “precarização do mundo do trabalho”, erosão do welfare State),
o pós-fordismo (sem i)periférico representa o agravamento de um
quadro presente desde sempre, e que os arremedos de welfare State
construídos nos marcos do populismo e os esforços modernizantes
sob o signo do “desenvolvimentismo”/“efe.sam?//í.smo” brasileiro/
latino-americano não conseguiram jamais reverter. Uma massa tra
balhadora que já vivia em condições precárias vê estas, muitas vezes,
precarizarem-se ainda mais; parte da classe média (que se havia
expandido em décadas passadas) se proletariza; muitos trabalhadores
üo setor formal são atirados à condição de “hiperprecários” , muitos
jovens ingressam no mercado de trabalho pela porta da informalida
de, e daí muito dificilmente sairão.
A “exclusão” que assim se observa precisa ser, contudo, bem
qualificada. A exclusão de trabalhadores relativamente ao setor for
mal da economia não significa, em absoluto, que eles se tornem
“excluídos” ou “marginais” relativamente ao sistema capitalista: em
meio à dialética entre “ordem” e “desordem” , entre o “legal” e o “ile
gal” , entre o “form al” e o “informal” , o “subsistem a varejo” e o
“hiperprecariado armado” se mostram, ao mesmo tempo que amea
çadores e “disfuncionais” do ângulo do Estado em sua face formal,
perfeitamente “funcionais” no que tange às atividades capitalistas e
aos agentes econômicos e estatais que lucram ou se beneficiam com
a economia criminosa. Se for levado em consideração que, apesar das
grandes tensões típicas de cidades conflagradas como o Rio de
Janeiro ou São Paulo, há uma acomodação de interesses que permite
ao “sistema” manter uma parcela enorme da população urbana viven
do em seus espaços segregados (e continuando, em grande parte, a
desem penhar seus papéis econômico-sociais como empregadas
domésticas, vigilantes, comerciários, operários etc.), sem que, apesar
dos conflitos periódicos (“guerras” entre traficantes, protestos enrai
vecidos de favelados etc.), a população favelada se volte maciçamen
te contra a população de classe média dos bairros formais, contra o
Estado e contra o status quo econômico-social em geral, então pare
ce que o “subsistema varejo” é, acima de tudo, uma válvula de esca
pe, em última análise, conveniente. O que substituiria a renda que ele
gera?... Ele é portanto, em ultimíssima análise, um fator de... “estabi
lização” - mesmo em meio a tanta instabilidade. E mais: em circuns
tâncias “normais”, as quadrilhas e as “organizações” vinculadas ao
“subsistema varejo”, longe de atuarem como um fator de poder anti-
sistêmico, comportam-se, a despeito de eventuais elementos retórico-
discursivos, como um fator de “ordem” que, dificultando (ou, no
limite, reprimindo) quaisquer hipotéticas iniciativas das populações
que vivem nos territórios sob seu controle na direção de mobilizações
anti-sistêmicas autônomas, serve à manutenção do status quo.
Diante disso tudo, e para evitar quaisquer ilusões, é preciso
admitir que:
136
□
são integrantes da classe dominante, ainda que exerçam domina
ção em escala microlocal dentro das “fronteiras” de seus territó
rios segregados e possuam poder no contexto das redes locais e
regionais nas quais operam, subordinadas contudo ao “subsistema
I-E-A” nos níveis nacional e internacional. De todo modo, os
“Marcolas” e “Escadinhas” não encarnam um projeto de emanci
pação. Tampouco são aliados (ou candidatos a aliados) imediatos
de qualquer projeto de emancipação. Os “atentados” do PCC em
São Paulo em 2006 foram uma situação-limite, em que se tentava
pressionar o governo; em que pesem o ódio e o desprezo pelas
classes dominantes e pelo Estado que os “M arcolas” e “Esca-
dinhas” demonstram em suas ocasionais declarações, esse ódio é
ambíguo, e eles não costumam utilizar suas armas contra o Estado
(a não ser, eventualmente, contra a polícia, para defender-se ou na
esteira de alguma “quebra de acordo”), muito menos contra os
capitalistas e os verdadeiros centros do poder sistêmico. Reduzir
esse aspecto da “guerra civil molecular” à clássica fórmula da luta
de classes é incorrer em sério equívoco. A rigor, não se está dian
te nem mesmo de uma “luta de classes com pouca consciência de
classe” , mas de outra coisa. Via de regra, o armamento dos
“Marcolas” e “Escadinhas” é utilizado, direta e constantemente,
para proteger seus territórios e durante as “guerras” que travam
entre si - e, eventualmente, também no contexto de outras ações
(seqüestras, assaltos), às vezes até mesmo emprestando armamen
to para que delitos de vários tipos sejam cometidos, quase sempre
contra a classe média (e mesmo contra gente pobre), raramente
contra integrantes dos grupos dominantes. Isso não exclui, decer
to, a possibilidade de que o PCC tenha uma visão (e quiçá um pro
jeto) “político-estratégico”, levando-o, inclusive, a buscar “alian
ças políticas” com o intuito de se legitimar. Sem embargo, essa
visão e esse projeto não necessariamente têm (como, de fato, não
parecem ter) qualquer conteúdo emancipatório consistente.
138
□
de Janeiro (FAFERJ) de que “milicianos” estariam assediando e inti
midando associações de moradores em várias favelas do Rio. Em três
delas, os grupos de extermínio teriam imposto chapas únicas nas elei
ções para as diretorias das associações (O Globo, 13/12/2006). Uma
vez que os paramilitares do Rio de Janeiro, que já vêm apresentando e
elegendo seus próprios candidatos a cargos públicos, parecem ter
ambições políticas mais claras e articuladas que os traficantes, real
mente isso reforça a idéia de que, para as associações de moradores,
cies podem ser ainda mais perniciosos que os traficantes de drogas.
Como se sabe, a cultura policial não costuma ser um solo favo
rável à cooperação com os movimentos sociais. Se a polícia existe
para garantir a ordem sócio-espacial vigente (por exemplo, a proprie
dade privada) e os movimentos questionam essa ordem, muitas vezes
ufrontando-a na prática mediante ocupações de imóveis, bloqueio de
ruas e estradas como forma de protesto etc., é óbvio que um atrito
entre policiais e ativistas é algo, no mínimo, constantemente presen
te em estado latente.40 Ambos os lados sabem disso. E não é fácil
imaginar que atividades de formação política crítica e congêneres
possam florescer em territórios controlados por forças paramilitares
como as “milícias” . A presença de tais “milícias” é incompatível com
o transformação de espaços em “territórios dissidentes” - isto é, em
i-spaços territorial izados por movimentos sociais e convertidos em
haluartes de resistência sociopolítica e sociocultural contra o status
quo sócio-espacial - , ou mesmo com um caminhar nessa direção.
111 Observe-se, inclusive, que não som ente traficantes e grupos de exterm ínio vêm , há
muitos an o s, perseguindo e criando problem as para associações de m oradores de
lnvclas, np Rio de Janeiro assim com o em outras cidades brasileiras: o estudo da
Anistia Internacional Brasil: “eles entram atirando" - Policiamento de comunidades
u h ialmente excluídas no Brasil reporta diversas situações (em Belo H orizonte, em
Ni\o Paulo e no R io) que ilustram com o ativistas de direitos hum anos e líderes de
iMsociações de m oradores têm sido am eaçados e sofrido represálias por parte da pró-
|niii polícia (“oficialm ente” , uniform izada, ou seja: não enquanto “m ilícias”), direta e
Indiretamente, quando estes denunciam práticas de desrespeito aos direitos hum anos
ilus favelados ou casos de corrupção (consulte-se A N ISTIA IN T E R N A C IO N A L ,
.'1105:36-8). Sobre o problem a m ais am plo da violência policial ver, po r exem plo,
nliím d o re fe rid o e stu d o , tam bém C E N T R O D E JU S T IÇ A G L O B A L (2 0 0 4 ) e
KAMOS e M U SU M ECI (2005), sobre o caso específico do Rio de Janeiro.
4. A militarização da questão urbana
e a segurança púbiica
tornada paradigma de governo
140
□
teio, que deixou apenas um morto entre os traficantes. Na favela, o
grupo de militares foi recebido a tiros e até a granadas, e, no fogo
cruzado de mais de uma hora que se seguiu - e que acordou os mora
dores do bairro acabaram sendo feiidos não somente três trafican
tes, mas também um praça e dois oficiais, entre eles o próprio coro
nel que chefiava a operação, atingido no tórax por uma bala também
de fuzil. Três moradores foram alvejados - dois deles crianças,
ambas hospitalizadas em estado grave e correndo risco de morte. O
estudante xxxxx, de dezessete anos, morreu ao dar entrada no hospi
tal. A polícia militar deslocou-se para o local pouco após o início da
troca de tiros, mas, após reportar a seus superiores o envolvimento de
uma tropa do Exército, o capitão que chefiava o grupo de PMs rece
beu instruções do comando da corporação para não interferir.
A indignação do Comando do Exército em Brasília expressou-se
por meio de uma nota, divulgada pela manhã de ontem, em que se faz
uma acusação indireta ao governo não somente pela morte do coro
nel, mas também pelo desgaste da imagem do Exército em decorrên
cia da morte de um civil e dos graves ferimentos em duas crianças. A
Marinha e a Aeronáutica, diante das críticas pesadas por parte da
imprensa e de vários membros do governo, inclusive por parte do
Ministro da Justiça, rapidamente se solidarizaram com o Exército,
também por meio de notas oficiais. Na nota do Exército pode-se ler,
entre outras coisas, o seguinte: ‘Uma das causas do desgaste do regi
me imperial, nos últimos anos do Segundo Reinado, foi a insistência
em não prestigiar um Exército que, após ter ganho uma guerra
[Guerra do Paraguai], continuava a ter seus homens tratados como se
capitães-do-mato fossem. Há muito tempo que a própria opinião
pública brasileira, cuja confiança na integridade e competência das
Forças Armadas tem-se mantido inabalável, clama por ações decisi
vas das instituições militares no combate à criminalidade que amea
ça a própria estabilidade política no Brasil. Tem os, as Forças
Armadas do Brasil, porém, resistido, pois entendemos não ser nosso
papel constitucional substituir as polícias e trocar tiros com margi
nais dentro de favelas. Sem embargo, nos é impossível assistir impas
síveis às constantes ameaças à integridade de nossas instalações e de
nossos praças e oficiais, assim como é, para nós, intolerável o enxo-
valhamento da imagem do Exército brasileiro. Há muitos anos vem o
nosso Exército sofrendo com a falta de investimentos, mas ser siste
maticamente desafiado por criminosos comuns ultrapassa os limites
do suportável.’
A despeito disso, a maior parte da opinião pública tem se mani
festado, como demonstram os telejomais, francamente favorável ao
uso maciço das Forças Armadas para pôr termo à ‘epidem ia de
violência’, custe o que custar. E, de fato, as intervenções das Forças
Armadas, em especial do Exército, têm se tomado usuais. Só no Rio
de Janeiro já se contabilizam quinze desde o começo da década de
90, e em São Paulo quatro; em Belo Horizonte, a primeira ocorreu no
início deste ano. Sempre sob os aplausos da classe média, cada vez
mais amedrontada. Os defensores dos direitos humanos nunca estive
ram tão isolados. Diante das hesitações do Presidente da República
no que se refere ao curso de ação mais apropriado perante as notas
recentes dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica,
fala-se na mais séria crise de governabilidade desde 1964.”
142
□
Os governantes serão cada vez mais julgados pelos empre
gos que ajudarem a criar como pelas vidas que puderem salvar -
são os dois grandes indicadores-síntese nacionais. Mais cedo ou
mais tarde a população vai acompanhar os índices de criminali
dade como acompanhava os índices de inflação.
144
ronda é o do terrorismo, em fobópoles como Rio de Janeiro e São
Paulo os traficantes de varejo e, cada vez mais, também os grupos de
extermínio paramilitares disputam com as instituições estatais de
coerção e “defesa da ordem” não somente a exclusividade das ações
de controle social armado, como até mesmo a “legitim idade” e a
aceitação social dessas ações - sendo que essa disputa é grandemen
te facilitada e preparada pela deslegitimização por parte da polícia, a
qual é, aos olhos de muitos moradores de espaços pobres e segrega
dos, algo como “bandidos de uniforme e salário”, ainda mais temidos
e odiados que os criminosos diretamente a serviço do “capitalismo
criminal-informal” . (E aos “soldados” do tráfico e aos paramilitares
há que se acrescentar um outro ingrediente: a proliferação de firmas
particulares de segurança e o crescimento da legião de vigilantes pri
vados armados, muitos deles policiais ou ex-policiais, mas nem sem
pre em situação legal, ou seja, nem sempre trabalhando para empre
sas com alvará de funcionamento expedido pela Polícia Federal.42)
Portanto, a “segurança pública” é, exemplarmente no Brasil, e de
um modo insólito, dividida e disputada, de modo variável no tempo e
no espaço, entre a polícia (e eventualmente também as Forças
Armadas), traficantes armados, grupos de extermínio (“milícias”
paramilitares) e vigilantes privados. E a concorrência não se dá,
42 Desde pelo m enos o com eço da década de 90 já se vem cham ando a atenção para a
proliferação das em presas privadas de vigilância, crescim ento esse explicável não
apenas pelo aum ento das taxas de crim es violentos, m as tam bém e especialm ente
pela generalizada percepção da incapacidade do Estado de garantir níveis aceitáveis
de segurança pública. O Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, inform ou, em sua ed i
ção de 5/4/1992 (Revista de Dom ingo, m atéria “Q uem segura o segurança?”), que
entre 1982 e 1992 o núm ero de em presas privadas de vigilância operando no estado
do Rio de Janeiro havia crescido de 30 para 84, e o núm ero de vigilantes tinha salta
do de 30.000 para 70.000. Isso significa que, em 1992, havia m uito m ais vigilantes
privados que policiais, considerando os efetivos som ados da Polícia M ilitar (32.000
hom ens na época) e da Polícia Civil (12.000 hom ens). Viviane Cubas coligiu, em sua
pesquisa de m estrado, dados igualm ente im pressionantes: em São Paulo havia, em
2000, 9 5 .0 0 0 v ig ilan tes reg u lare s, em co m paração com um efetiv o d e cerca de
115.000 policiais (polícias C ivil e M ilitar som adas); no B rasil com o um todo, o
número de vigilantes regulares era de 450.000, e o núm ero de policiais, de aproxim a
dam ente 485.000. N ote-se, ainda, que som ente no estado de São Paulo se agregavam ,
ílqueles 95.000 vigilantes regulares, cerca de 100.000 vigilantes “clandestinos” , ou
seja, pessoas trabalhando irregularm ente com o vigilantes (C U B A S, 2005:96-8).
insista-se, no plano puramente coercitivo, mas também no da legiti
midade. Tanto agentes operando na legalidade, como as agências de
segurança privada com alvará de funcionamento, quanto outros ope
rando na ilegalidade (traficantes de drogas e “milícias” paramilitares)
geralmente aspiram a fundar o exercício do seu poder tanto na força
bruta quanto no consentimento.43
Outras funções são, aliás, também objeto de disputa. Às leis for
mais do Estado se superpõem, em espaços territorializados por trafi
cantes de drogas ou grupos de extermínio, as normas por eles ditadas;
aos tributos instituídos e arrecadados pelo Estado se acrescentam,
nesses mesmos espaços territorializados, os “tributos” cobrados por
esses agentes - “pedágio”, “taxa de proteção” etc.
43 Soa dem asiado sim ples, portanto, o seguinte vaticínio contido em um artigo sobre
o “controle do crim e no século X X I” : “ [t]he police may continue to enjoy a monop-
oly on the legitim ate use o f force, but not a m onopoly on policing.” (G RA B O SK Y ,
2001:224). N ão é apenas do policiam ento (em sentido am plo) em si que o Estado
perde o m onopólio - coisa que já se verifica há m uito tem po, e não som ente em um
país com o o Brasil - , m as tam bém , ainda que de maneira am bígua e não-consensual
(variável conform e o grupo e as circunstâncias), da própria aceitação do controle
social arm ado e do uso da força. Tam pouco é extensível a um país com o o Brasil o
veredicto de K IR SC H (2003) sobre a situação na A lem anha, segundo o qual as fir
m as priv ad as d e seg u rança, dentro de um contexto neoliberal, contribuem p ara a
exclusão e o controle espacial de grupos “desviantes” e “indesejáveis” , m as não con
correm com a polícia, sendo em relação a ela sim plesm ente “parceiros subordinados”
e co m plem entares; o que se constata nas grandes cidades brasileiras é um quadro
m uito m enos “certinho” que esse: por m ais que a polícia (ou, antes, grupos de poli
ciais) exerça forte influência sobre seus “concorrentes” (no caso dos traficantes de
varejo que sofrem extorsão m as, muitas vezes, tam bém contam com apoio logístico e
pro teção por parte de policiais) e , em certos caso, de fa cto se confunda com eles
(caso das “m ilícias” e, em grande parte, dos vigilantes privados), é inegável que em
um am biente m arcado p or corrupção estrutural, “zonas cinzentas” de instabilidade ou
não-operatividade institucional, ineficácia e m esmo ilegalidade freqüente das ações
p oliciais (brutalidade, tortura, execuções sum árias etc.), é im possível considerar que
as firm as privadas de segurança sejam m eros “parceiros subordinados” e com ple
m entares. Q uanto aos grupos de exterm ínio e aos warlords do tráfico de varejo, eles
dem onstram o quanto, em países (sem i)periféricos, é conveniente guardar a distinção
entre a polícia enquanto instituição formal do Estado e as estruturas e redes paralelas
fo rm ad as p o r p o liciais, os quais dispõem de significativa lib erd ad e efetiv a para,
in clusive, agirem à m argem da lei cujo respeito eles deveriam assegurar. B rasil e
A lem anha se com portam , a esse respeito, com o representativos de duas situações
bem diferentes (com os EUA assum indo uma espécie de posição interm ediária).
146
□
Em tais circunstâncias, certos ativismos sociais e suas organza-
ções ficam em uma situação muito difícil: ao mesmo tempo em que
disputam com o Estado o exercício do planejamento e da gestãc do
espaço da cidade, a começar pela escala microlocal de seus “territó
rios dissidentes” , como ocupações promovidas e mantidas pelo
movimento dos sem-teto - ou, simplesmente, tentam trazer melho
rias infra-estruturais e outras para espaços segregados, como no caso
de tantas associações de moradores de favelas - , são obrigados a
fazer malabarismos para resistir ao assédio daqueles agentes que dis
putam com o Estado o controle social efetivo em certos espajos
(cobiçados enquanto pontos de apoio para negócios ilícitos e, adicio
nalmente, como espaços de obtenção de rendimentos por meie de
extorsão).
Nas atuais circunstâncias, é difícil divisar, no mercado de idéias,
uma alternativa teórica e analítica que seja, simultaneamente, crí.ica
em face do status quo e realista o suficiente para não se furtar a pro
por medidas implementáveis já aqui e agora. Abundam, isso sim,
posições francam ente conservadoras, tipificadas pela ênfase às
vezes histérica, em medidas repressivas. Essas posições quase que só
são desafiadas por aquelas outras, moderadas, tipificadas pelo relevo
posto em medidas preventivas de cunho institucional, que delas não
chegam a distinguir-se como antípodas. Afora isso, o que se tem são
as últimas trincheiras de demonização simplista do assunto, ou então
propostas dignas de atenção, todavia demasiado simplificadoias,
como o “abolicionismo penal” . Serão focalizadas com o devido cui
dado, no próximo capítulo, as limitações e as incompletudes das
linhas interpretativas existentes. Por ora, basta sublinhar que aqueles
que poderiam concentrar esforços e canalizar energias criativas para
encontrar soluções e fazer propostas não-conservadoras terminam
por se autolimitar, não percebendo que, com isso, perdem uma gran
de oportunidade de mostrar a atualidade de sua relevância.
A questão ou o desafio central, aqui, é interpretado pelo presen
te autor da seguinte maneira: vivemos em sociedades heterônorras;
como é possível, em tais sociedades, cobrar do aparelho de Estado
maior segurança pública, sem que isso configure um apelo para que
uma instância de poder que encarna e representa, em última análise,
uma assimetria estrutural de poder se utilize da força bruta, da repres
são e da punição para manter a “paz social” sobre os fundamentos do
um bias burguês e reacionário (defesa intransigente da propriedade
privada e repressão de toda e qualquer contestação da ordem sócio-
espacial dom inante), ignorando (ou deixando um tanto de lado,
“pragmaticamente”) as causas mais profundas que estimulam a práti
ca de certos delitos? Enfim: como não ser conservador ao falar do
“segurança pública” , como não fazer um simples “discurso de
Estado” e de manutenção do status quo ?
A angústia é compreensível e bastante compartilhada pelo autor,
mas ela não deve justificar a ignorância de certas coisas. Em primei
ríssimo lugar, entenda-se que se colocar, resolutamente, contra o
crime e a violência não significa perfilar-se com os defensores do
status quo. Não significa, para começo de conversa, esquecer que o
sistema capitalista é, ele próprio, “criminógeno”.
O nosso modelo social mostra-se “criminógeno” , em especial nos
dias que correm, ao despertar um irrefreável desejo de consumo em
muitos ou quase todos, ao mesmo tempo em que propicia somente a
poucos a chance de satisfazer seus desejos de modo legal; ao incutir c
disseminar valores individualistas e competitivos, colocando o “eu”
muito acima do “nós” , o “ter” acima do “ser” , a propriedade acima da
vida; ao engendrar uma “indústria cultural” que se alimenta da crimi
nalidade violenta (entre outros eventos dramáticos e dramatizáveis) e,
ao regurgitar informação sobre crimes violentos (jornais, televisão) e
disseminar narrativas sobre a violência (filmes, jogos), em ambos os
casos de um modo acrítico e superficial, reforça os valores há pouco
mencionados e retroalimenta a própria violência; ao facilitar, por
meio de desregulamentações, a lavagem de dinheiro e a corrupção; ao
estimular e difundir a crença de que tudo pode virar mercadoria e de
que tudo e todos têm um preço - e de que ir ou não ir para uma cadeia
ou penitenciária superlotada e desumana depende, menos ou mais
conforme o país, de se poder pagar a quantia certa. E é nos marcos
desse modelo social grandemente “criminógeno” que os perpetrado
res de vários tipos de criminalidade não-(diretamente)violenta, em
148
□
especial os “crimes de colarinho branco”, são largamente poupados
dos aspectos mais brutais do braço repressivo e punitivo do Estado em
sua função policial, de “garantidor da lei e da ordem”.
Colocar-se, resolutamente, contra o crime e a violência tampou
co pressupõe tratar os criminosos como se fossem demônios ou, lom-
brosianamente, fruto de predisposições fisiológicas (ou psicológicas
inatas). Quando o autor usa, como tem usado, a expressão “reações
‘não-políticas’ dos desprivilegiados” para referir-se, entre outras, à
criminalidade violenta estreitamente vinculada (ainda que com
mediações) ao quadro de privações e desigualdade, o emprego das
aspas em “não-políticas” remete a uma concessão ao sentido amplo
de política como relações de poder - o que, decerto, abrange também
o crime e suas manifestações. Entretanto, vale lembrar, com MEIER
(1983:27), que a política se referia, entre os gregos, aos assuntos de
interesse coletivo (de interesse da pólis), sendo o atributo de político
relacionado com o nível do geral (koinós). Na criminalidade, o inte
resse que se persegue é o particular, e somente se um ato delituoso é
praticado com o objetivo precípuo de servir ao interesse de um grupo
social amplo ele é, para além de criminoso (à luz das leis formais
vigentes), também político em sentido forte, podendo ser eticamente
condenável (como aquelas manifestações de terrorismo que fria
mente impõem o sacrifício de vidas inocentes) ou eticamente legíti
mo. A criminalidade violenta ordinária não só não é uma “luta de
classes sem consciência de classe”, visto que não se trata de um con
fronto organizado entre grupos ou classes enquanto tal (e muitas das
vítimas de bandidos pobres são pessoas também pobres, que menos
se podem pôr ao abrigo de certas situações de risco, ou que são por
eles tiranizadas dentro de seus territórios), como, a rigor, é, o mais
das vezes, uma expressão nua e crua de significações imaginárias
entronizadas pelo capitalismo e pelo patriarcalismo: consumismo,
busca pelo lucro, afirmação de poder e masculinidade etc. Se demo-
nizar os criminosos é esquecer o contexto que os produz (inclusive a
própria responsabilidade do sistema prisional a esse respeito, como
recordava já no século XIX o anarquista KROPOTKIN [1987]) e
adotar uma interpretação individualística para um desafio societal,
absolvê-los de qualquer responsabilidade e tender a ser complacente é
ser mais realista que o rei, com o que se abre mão de enxergar uma das
facetas mais perversas do próprio “sistema” . Não é porque a dimensão
de livre-arbítrio de um jovem traficante drogado que mata o seu rival
no tráfico é pequena, em face das circunstâncias, que o horror do fato
deve ser minimizado.
Em terceiro lugar, segurança pública não deve e nem precisa ser
reduzida a um “caso de polícia” , seja em sentido apenas repressivo,
seja, mais arejadamente, em sentido “preventivo” . Segurança pública
é a segurança do público - isto é, em uma acepção simultaneamente
ampla e rigorosa, a segurança da coletividade, dos cidadãos - , seja
em espaços públicos, seja em seus espaços privados de residência ou
trabalho. É a garantia de saber não que nenhuma violência ocorrerá
(o que seria um delírio, mesmo em uma sociedade basicamente autô
noma: como evitar um crime passional?...), mas, sim, que o risco de
alguém sofrer uma agressão, especialmente no tocante a certos tipos
de crime violento, foi tão reduzido quanto possível. Essa redução de
risco não deve derivar meramente do emprego de um aparato de
segurança do Estado. Em última análise, ou apreciando estrutural
mente o problema e considerando-o em uma perspectiva de longo
prazo, isso está muito longe de merecer a centralidade que comumen-
te se lhe atribui.
Risco, sobretudo na seara da segurança pública, possui um com
ponente objetivo e outro (inter)subjetivo. Idealmente, a segurança
pública é um conjunto de ações, medidas e intervenções, em diferen
tes domínios (incluindo-se o planejamento e a gestão urbanos) e
escalas (da microlocal às supralocais), que deve ir construindo as
condições para uma segurança maior e para a redução de riscos. E
isso sem que seja necessário sacrificar a liberdade, a autonomia. A
expressão-chave, apresentada na Introdução, é desenvolvim ento
sócio-espacial - desenvolvimento esse que, no que diz respeito aos
delitos mais claramente vinculáveis a privações materiais (ainda que
sem esquecer as mediações culturais), mas também relativamente a
questões mais complexas no plano social-psicológico, constitui a
melhor prevenção.
150
□
Um quarto ponto é que medidas propriamente policiais, notada-
mente as preventivas, não precisam ser genericamente anatematiza-
das como antidemocráticas, ainda que sejam muitíssimo insuficien
tes. É verdade, da perspectiva assumida neste livro, que uma socieda
de heterônoma impõe profundos limites - limites que, de resto, são
acarretados também para as políticas públicas em geral, tais como
orçamentos participativos, que quanto mais arrojados tanto mais
existirão em constante tensão com os marcos dem ocrático-
representativos herdados. Não obstante, é possível democratizar um
pouco os mecanismos policiais de prevenção e repressão, evitando
tanto quanto possível o fantasma da força bruta a serviço de um apa
rato arbitrário (fantasma do “ 1984”, do totalitarismo ou de qualquer
ditadura). Isso não retirará da polícia, decerto, o seu atributo essen
cial, que é o de, como integrante do Estado, fazer uma segurança de
Estado e zelar pela tranqüilidade dos detentores da propriedade pri
vada e seus patrimônios em geral, em última análise prioritariamen
te. Diminuir sensivelmente o nível de truculência, autoritarismo e
corrupção das instituições policiais já constituiria, apesar disso, a
conquista de uma margem de manobra tática nada desprezível.
Por fim: mesmo em uma sociedade basicamente autônoma, a
segurança pública continuaria a ser uma questão pertinente - afinal,
não seria em uma sociedade verdadeiramente livre, mas sim em uma
sociedade de controle ultratotalitário, no estilo da do A dm irável
mundo novo ou do 1984, que se poderia, delirantemente, pretender
eliminar por completo a violência e a criminalidade (e, mesmo nes
sas, o controle não seria tão absoluto a ponto de evitar “desvios” ...).
Uma sociedade livre e justa não é uma sociedade de anjos ou um
paraíso terreno. Os assuntos da prevenção de crimes e da “reeduca
ção” dos transgressores continuarão sendo relevantes, assim como o
próprio tema do nóm os (das leis, normas e regras), ainda que a
maneira de se encarar a questão venha a ser substancialmente outra
(porque as questões do poder e da legitimidade serão colocadas de
maneira inteiramente diversa daquela que ocorre em uma sociedade
heterônoma). Em última instância, por conseguinte, não há por que
se pensar que segurança pública é, intrínseca e inevitavelmente, um
tema conservador, por mais que crescentemente o seja. E, em qual
quer circunstância, mas sobretudo ao ser pensada de modo mais
amplo e anticonservador, a temática da segurança pública precisa ser
articulada com vários outros assuntos e estratégias de desenvolvi
mento sócio-espacial, o que lança o desafio do seu casamento com o
planejamento e a gestão urbanos.
Dito tudo isso, o problema é que, nas circunstâncias atuais, a
repressão e o controle se generalizam a tal ponto que, nas palavras de
Agamben, o estado de exceção toma-se um “paradigma de governo”
(AGAMBEN, 2004). Se os locais de concretização de uma presença
do estado de exceção como regra remetem a situações em que grupos
específicos de indivíduos são desterritorializados e confinados em
espaços nos quais a observância de certos direitos políticos ou
mesmo dos direitos humanos mais elementares é desrespeitada - dos
campos de concentração nazistas, situação-limite muito presente na
reflexão de Agamben, ao tratamento dispensado pelo govemo norte-
americano aos prisioneiros acusados de terrorismo e mantidos na
base de Guantánamo44 é também na relação entre o aparelho de
Estado e a sociedade civil em geral, na escala do território do Estado-
nação, que a conversão do estado de exceção em regra se toma, mais
e mais, uma ameaça.
Pode-se dizer, especificando um pouco mais e transitando da
esfera jurídica para aquela das políticas estatais, que a segurança
pública torna-se, ela própria, um “paradigma de governo” . Nesse
am biente, crim inalizam-se grupos específicos da sociedade, e o
medo do crime, da “desordem”, do “distúrbio” e da violência é utili
zado como pretexto para um eficaz controle social, além de alimen
tar poderosas engrenagens do capitalismo contemporâneo: o “merca
do da segurança" e o “mercado da informação".
O que pode ser observado nas grandes cidades de um país semi-
periférico como o Brasil é significativamente mais grave, do ponto
de vista da justiça social e dos direitos humanos, que aquilo que se
152
□
pode constatar nos países centrais, na esteira dos vínculos de retro-
alimentação entre a “guerra civil molecular” , muito particularmente
o terrorismo (clímax, para europeus e norte-americanos, daquilo que
Beck denominou “guerra sentida”), de um lado, e a presença asfi-
xiante do Estado e o estado de exceção tomado regra, de outro. O
quadro da fragmentação do tecido sociopolítico-espacial, que encon
tra sua máxima expressão em metrópoles como o Rio de Janeiro e
São Paulo, não nos arrosta nem com a realidade de um país em guer
ra civil permanente em larga escala espacial, como em vários países
periféricos, nem nos remete a um “Estado forte reagindo ao terroris
mo” (e usando-o como pretexto), como na Europa e nos EUA. O que
se tem é, retomando e sintetizando de uma maneira específica o que
se analisou no Cap. 1, o seguinte quadro:
154
□
Função de triagem similar é exercida no âmbito do Judiciário:
ainda que, formalmente, as leis sejam “para todos” , as possibilidades
de acesso a serviços advocatícios de qualidade são completamente
distintas entre a elite e os pobres, sem contar os outros tipos de bias
que podem interferir na determinação de penas e regimes (regime
fechado, semi-aberto, prisão domiciliar). Por fim, o sistema penal
igualmente tria, diferencia e seleciona: para alguns, penitenciárias
superlotadas, não raro em péssimo estado de conservação, verdadei
ros “pardieiros penitenciários”; para outros, a forte probabilidade da
absolvição e da impunidade, na pior das hipóteses penas brandas e
tratamento privilegiado.
Não é o caso de se insistir em que as penitenciárias, sejam elas
pardieiros superlotados ou não, antes contribuem para consolidar o
estigma de criminoso que para uma “ressocialização” . Como lembra
WACQUANT (2003b: 19), para além do debate acadêmico sobre se
as prisões servem para “reinserir (na sociedade)” , punir ou “neutrali
zar”, o fato é que elas têm servido eficazmente para o controle social
dos pobres. Wacquant tem, a propósito, realizado estudos que mos
tram persuasivamente como, nos EUA, o confinamento despropor
cional dos pobres e das minorias étnicas tem servido menos para
“tirar de circulação” alegados “predadores violentos” que, entre
outras razões (como “mostrar serviço” para o eleitorado branco e de
classe média que se sente amedrontado e acuado), para “tirar de cir
culação” parte da m assa desempregada (W ACQUANT, 2001a,
2003b). A grande maioria dos quase dois milhões que, em 1994, se
achavam encarcerados nos EUA não estava nessa condição por ter
cometido homicídio, roubo ou estupro, mas por razões como “desor
dem na via pública” , infração da legislação sobre drogas e furto de
objetos em automóveis. Lamentavelmente, embora o índice de encar
ceramento ainda seja muito maior nos EUA que na Europa (cf. WES
TERN e t a l., 2003), também na Europa já se percebe, há algum
tempo, uma “tentação penal”: “(...) se a ascensão do Estado penal é
especialmente espetacular e brutal nos Estados Unidos, sente-se em
toda a Europa a tentação de se buscar apoio nas instituições carcerá
rias para m inim izar os efeitos da insegurança social gerada pela
imposição do salário precário e pelo proporcional estreitamento da
proteção social.” (WACQUANT, 2003a:9)
As prisões norte-americanas seriam, desse ponto de vista, o
mais nítido exemplo, nos países centrais, de espaços de confinamen-
to atuando como seguros repositórios de parte da “superpopulação
relativa” - e, em larga medida, precisamente daquela parcela com
menos chance de poder ser considerada, sem ressalvas, devido à sua
baixa qualificação educacional, como integrante de um “exército
industrial de reserva”. No Brasil e em outros países da (semi)perife-
ria, é claro que as prisões não podem desempenhar com a mesma efi
cácia e na mesma extensão essa função, tanto pelo número relativo
muito maior daqueles que a classe média e a elite consideram “ame-
drontadores” e “indesejáveis” quanto pela incapacidade econômica
de produzir e manter um sistema penitenciário do porte do norte-
am ericano. Entretanto, isso não impede que função sim ilar seja
desempenhada pelas prisões brasileiras, mexicanas, peruanas etc., e
com um grau de perversidade social superlativo.45
As profundas questões que deveriam ser suscitadas pelos levan
tes populares nas cidades de países centrais e (semi)periféricos são
sistematicamente evitadas. Episódios como os de abril de 1992 em
Los Angeles, junho de 1992 em Bristol ou fins de 2005 e começo de
2006 na banlieue de Paris e de outras cidades francesas são muitas
vezes reduzidos a “distúrbios raciais” , quando se trata, na verdade, de
uma combinação de reação contra a pobreza e a falta de perspectivas
da juventude e indignação e revolta contra o racismo (WACQUANT,
2001b:27). No Brasil, e exemplarmente no Rio de Janeiro, a opinião
pública de classe média contenta-se e até mesmo regozija-se quando
a grande imprensa e a polícia reduzem certas reações iradas de mora
dores de favelas, que interrompem o trânsito e promovem depreda
ções de veículos, a manifestações “orquestradas” ou “ordenadas” por
45 A lguns dados sobre o aum ento da população carcerária brasileira: 1969: 28.538
presos, taxa de 3 0 p o r 100 mil habitantes', 1988: 88.041 presos, taxa de 65,2 p o r cem
mil habitantes; 2000: 211.953 presos, taxa de 134,9 p o r cem m il habitantes; 2006:
4 0 1.236 p reso s, taxa de 214,8 p o r cem m il habitantes (cf. A D O R N O e SA LLA
2007:21).
156
□
traficantes, esquecendo-se de todo um pano de fundo de truculência
policial, segregação, privação e ressentimento. O status quo, que
engendra a “guerra civil molecular” , não faz outra coisa a maior do
tempo senão propiciar a reprodução am pliada desta: a situação
material e de estigmatização de grupos e espaços específicos (de
minorias, como nos EUA e na Europa, ou da maioria da população,
como no Brasil) não só não melhora significativamente como, muitas
vezes, piora;4* a polícia, na (semi)periferia mas, notoriamente, tam
bém nos EUA, reprime “o crime” com um bias classista e racista que
retroalimenta constantemente o ódio; por fim, após o Judiciário cum
prir também o seu papel, o sistema penal encarcera uma parcela dos
“excedentes” e dos tidos como “indesejáveis” e “perigosos” , encar
regando-se de fomentar, malgré lui-même, ambientes que enredam
os indivíduos ainda mais nas tramas da criminalidade violenta e nas
redes criminosas que extrapolam as prisões. Diante disso, e apesar
disso, a informação que circula pela mídia é coadjuvante essencial na
tarefa de crim inalizar justam ente aqueles que perdem ou menos
ganham com o status quo capitalista, ao mesmo tempo em que este é
poupado e isentado de maiores responsabilidades.
E, no entanto, o status quo capitalista é, de várias maneiras, “cri
minógeno” . O capitalismo é “criminógeno” , antes de mais nada, por
gerar um hiato constantemente ampliado entre, por um lado, a cria
ção de uma demanda real por consumo, e, por outro, a possibilidade
de a população satisfazer essa necessidade de consumo. Seja lembra
do que, no “Terceiro Mundo” , a maior parte da população correspon
de aos pobres, ao menos enquanto pobreza relativa, e que são preci
46 Do agravam ento da estigm atização dão testemunho, nos EUA, o debate em torno da
“urban underclass" (expressão pejorativa que, via de regra, se tom ou o sím bolo de
uma nova onda de culpabilização m oralista dos pobres por sua própria pobreza [vide
críticas a isso em W A C Q U A N T, 2001b e 2004; W EH R H EIM , 2002; HÀ U SSER-
M A NN et a l., 2004; E N G BERSEN , 2004]), e, no Brasil, aquilo que o autor deste
livro denom inou, em trabalhos anteriores (SO U ZA , 2000:58-9; 2006b:473-4), um a
“atualização do mito da m arginalidade” (ou seja: se, nos anos anteriores à década de
80 os favelados eram m uitas vezes tidos com o “parasitas” , “ d esaju stad o s” e até
mesmo “subversivos em potencial” , daí cm diante ganhou relevo a sua identificação,
no imaginário da classe m édia, com o criminosos reais ou potenciais, notadam ente tra
ficantes de drogas, ou com o “coniventes com crim inosos”).
samente os jovens os mais afetados por aquele hiato: na parcela
jovem , especialmente ávida por consumir, tende a se concentrar o
desemprego no momento atual, seja no centro, seja na periferia do
mundo capitalista (consulte-se, sobre isso, BERNARDO, 2000:78 e
segs.) O gap entre a demanda real e a solvável produz, inevitavel
mente, frustração; e, na ausência de estímulos e condicionantes (reli
giosos e de outros tipos) à passividade e à resignação, essa frustração
vai-se refletir, muitas vezes, em uma tensão latente que facilmente
descamba para a violência.
A violência não precisa ser, apenas, o ato de pegar uma arma
para assaltar. Seria tão difícil assim imaginar, para além de motiva
ções imediatas “determináveis” , como uma agressão verbal, uma
“provocação” etc., que o “caldo de cultura” geral estimula várias for
mas de extravasamento da violência no quotidiano? É interessante
notar que o modelo social capitalista, na atualidade, entorpece e estu-
pidifica politicam ente, dificultando reações (violentas e não-
violentas) contra o “sistema”: a embriaguez de um crescentemente
sofisticado e alienante “mundo virtual” , a mídia embrutecedora...
sem contar as formas reais e potenciais de controle do comportamen
to dos cidadãos (ver BERNARDO, 2004:143 e segs.). Não obstante,
essa estupidificação, responsável pela aceleração do abandono de
certos valores “tradicionais” (e com isso não se deseja fazer nenhum
elogio de tais valores, como a religiosidade, a família “tradicional”
etc.), não tem sido capaz de evitar a dissem inação da violência
“cega” , individualista e não-programática, a qual, ao mesmo tempo,
1) contém elementos de uma “desordem despolitizada” (SOUZA,
1996a:70), 2) deriva de uma “ordem” ilegal que viceja à sombra da
“ordem ” formal e 3) ajuda a reconfigurar a “ordem ” capitalista e
estatal formal (aquecimento do “mercado da segurança” , importância
do discurso e do tema da “segurança pública” etc.).
Por tudo isso, a segurança pública toma-se um carro-chefe polí
tico e ideológico - um “paradigma de governo” - no interior de um
modelo social que, em sendo inveteradamente “criminógeno”, se vê
às voltas, por razões eleitorais e de legitimidade perante a opinião
pública de classe média, com a necessidade de controlar aqueles aos
158
quais o seu imaginário característico imputa o atributo de “perigo
sos” e “indesejáveis” , por se terem tomado “excedentes” ou por não
se resignarem a uma morte silenciosa. Por tudo isso, a militarização
da questão urbana é o resultado “lógico” de um modelo social que
engendra uma “guerra civil m olecular” que ele próprio reproduz
ampliadamente.
Existirá uma alternativa a essa militarização da questão urbana?
Realisticamente, ao menos nos marcos do status quo (binômio capi
talismo + “dem ocracia” representativa), edificar uma alternativa
substantiva é algo muito difícil, senão impossível. (Aliás, o próprio
status quo se altera: a “democracia” representativa vai merecendo
cada vez mais aspas, a ponto de parecer justificar, apesar do pouco
rigor, a expressão “democracia totalitária”, título de um livro de João
Bernardo já mencionado; e o próprio capitalismo vai-se tornando
mais e mais repressivo - repressividade essa que, aliás, como mostra
Bernardo, pula do ambiente econômico-empresarial para o governa
mental .) É possível fazer algo para não deixar prosperar a militariza
ção da questão urbana, é certo; e não deixar prosperar a violência
cega, a “desordem despolitizada”, não é algo necessariamente con
servador, algo que meramente se circunscreveria a “ajudar a dar
sobre vida à ordem vigente”, por “estabilizá-la” , como poderiam pen
sar alguns inconseqüentes. Contudo, não deixar p ro sperar é um a
coisa; superar, evidentemente, é outra. E, se não há perspectivas de
satisfazer a demanda (material e simbólica) continuamente frustrada
das massas, se o capitalismo atual cria estresse e acumula tensões,
imagine-se o que aconteceria se, em um passe de m ágica, fosse
possível acabar com o tráfico de drogas de varejo de uma hora para
outra. O que substituiria essa fonte de renda para aqueles que,
nas favelas, nas periferias e em outros espaços pobres, dela se bene
ficiam? A “bomba” , que apesar de tudo, ainda não explodiu, final
mente mostraria todo o seu potencial. Seria a apoteose da “guerra
civil molecular”, possivelmente o seu alçamento a um outro patamar
qualitativo.
Um prenuncio ao mesmo tempo limitado e espetacular do que
seria uma deterioração ainda maior do “clim a social” foram as
“ondas” de ataques da organização criminosa Primeiro Comando da
Capital (PCC), em São Paulo, em 2006, por mais que tenham sido
“apenas” pressões calculadas com o objetivo de obrigar as autorida
des governamentais a negociarem. Exemplo talvez mais interessante
são, talvez, os atentados cometidos por traficantes de drogas de vare
jo do Rio de Janeiro contra policiais e mesmo contra cidadãos
comuns (caso do incêndio de um ônibus em que morreram diversas
pessoas) durante alguns dias entre fins de 2006 é começo de 2007:
com a perda de territórios para as “milícias” paramilitares e a queda
nos lucros, o desespero dos traficantes levou ao que se antecipava
como inevitável - o transbordamento ainda maior da criminalidade
violenta para fora das favelas em que eles operam, havendo, além
disso, uma brutal demonstração contra as forças da ordem estatal (de
onde se originam os integrantes das “milícias”, como já é sobejamen
te conhecido).
E claro que o cenário de eliminação completa ou quase comple
ta do tráfico de varejo é meramente uma simulação a título de exercí
cio mental. Vista do ângulo acima referido, a questão de ser o tráfico
de varejo um problema ou não é, em boa medida, uma questão de
perspectiva. Para a população de classe média e as elites, mas obvia
mente também para os pobres, o comércio ilegal de drogas de varejo,
ao criar instabilidade e causar morticínios, ao mesmo tempo em que
gera renda e facilita a acomodação (precariíssima, é verdade) de uma
situação social lamentável, é um problema e uma “solução” . Uma
solução entre aspas, pode-se dizer, na medida em que não se constrói
a solução sem aspas para o problema de fundo que alimenta, ainda
que sem exclusividade, a problemática da violência “cega” . O tráfico
é, ademais, uma questão de ponto de vista porque, se para o Estado
em sua face formal/oficial ele é um estorvo, uma afronta, encarado da
perspectiva da face estruturalmente corrupta do Estado, bem como da
perspectiva da “economia da violência” em geral (formal e informal),
ele é uma vaca a ser ordenhada, não abatida.
A “economia da violência” não acabará devido a uma singela
razão: ela não é “marginal” ao capitalismo contemporâneo, a não ser
160
□
de um ângulo jurídico e, pode-se ainda dizer, “ético”-formal. Ela é,
isso sim, cada vez mais uma parte integrante de sua substância, em
todas as escalas. Basta ver que, como as “milícias” paramilitares vêm
demonstrando em algumas favelas do Rio de Janeiro, os próprios
(ex-)agentes “da lei e da ordem”, uma vez tendo expulsado os trafi
cantes de drogas que operam no varejo em determinado teriitório,
podem, eles próprios, complementar seus rendimentos não semente
com a cobrança de “taxas de segurança” e outros negócios iícitos,
mas também mantendo o tráfico de tóxicos. Vários segmentos e gru
pos tornaram-se, por assim dizer, dependentes do comércio de drogas
ilícitas. Superar a “economia da violência” e a ciranda de ações e rea
ções que com ela se relaciona pressupõe, se a análise estiver correta,
buscar superar o próprio modelo social (sócio-espacial) vigjnte, e
nada menos que isso. Quem o deseja? Quem se habilita a contribuir?
Propor medidas implementáveis (ou de implementação iniciá-
vel) já aqui e agora, se não é necessariamente um sintoma de pouca
ambição transformadora, tampouco precisa ter como contraponto o
quixotismo. A conclusão do sombrio diagnóstico dos parágrafos pre
cedentes não é a de que nada pode ser feito - ou de que nada, a não
ser trabalhar diretamente pela revolução social (trabalho de ajitação
e propaganda, de formação política de militantes), merece serfeito.
A esse propósito, vale grifar que está em jogo, também, o que se
pode entender por “revolução” e “estratégia revolucionária” . Impõe-
se, caso se queira preservar uma postura radical sem confundi-la com
uma “indignação de salão”, com um revoltismo juvenil e, taTibém,
sem render-se às pseudo-altemativas do passado (como o autcritaris-
mo bolchevique), a compreensão de que ações criativas visando à
reinvenção de linguagens, à experimentação de táticas e à conscienti
zação populares são imprescindíveis. Não se vive em um momento
pré-revolucionário, em que pese o fato de as contradições otjetivas
se tomarem cada vez mais agudas. É preciso investir, com paciência,
na organização popular, na tecedura de mais e novas tramas de socia
bilidade - redes de movimentos sociais, experimentos diversos; é
necessário, ainda, saber aproveitar a margem de manobra oferecida,
aqui e ali, pelos não muitos casos de iniciativa estatal construtiva e
não-alienante em matéria de planejamento e gestão urbanos participa
tivos. Da mesma forma que coisas como orçamentos participativos
podem representar, desde que arrojados e consistentes, algo além de
simples esforços de cooptação popular por parte do Estado, melhorias
em matéria de segurança pública aqui e agora podem colaborar, inclu
sive, para que a guinada para a direita que se observa na opinião públi
ca, inclusive entre os pobres e entre os jovens, seja revertida ou estan
cada. O medo generalizado é péssimo conselheiro. Ronda-o, constan
temente, o espectro do reacionarismo mais chão - e mais oportunista.
O reacionarismo fascistóide prepara seu próprio passo seguinte
ao “des-humanizar” aqueles que, transgressores da lei, prática e sim
bolicamente associados a espaços segregados (a favela é, a esse res
peito, uma espécie de epítome e símbolo do Mal no imaginário da
classe m édia47) e imersos em um universo de violência, convém
rebaixar discursivamente para uma categoria diferente da dos huma
nos. É assim que os bandidos pobres, perpetradores reais ou (supos
tamente) potenciais de atos de violência e até de crueldade, são amiú-
de caracterizados como “animais” , “monstros” , “bestas-feras” . A
humanidade desses homens (e, cada vez mais, também mulheres), e
notadamente dessas crianças e desses adolescentes armados, em tudo
ou quase tudo comparáveis às “crianças guerreiras” das guerras civis
da África (subnutridas, psicologicamente fragilizadas e empunhando
armas de fogo quase maiores que elas), é relegada ao mundo das
sombras. Teriam já nascido assim? É o que muitos parecem imagi
nar... A naturalização classista e racista da “des-humanidade” é,
mesmo que apenas implicitamente, um pressuposto para evitar o con
tato com a realidade das trajetórias biográficas que retiram crianças e
adolescentes da escola e lhes põem revólveres e fuzis nas mãos, que
47 O que vale para o Brasil - e outros pafses - vale, em particular, para o Rio de
Janeiro. D evido ao padrão de segregação residencial, o Rio, em vez de encarnar uma
ro m antizada “ vocação para o encontro” , explicita as contradições q u e, em outras
cidades, são parcialm ente “ dribladas” pela escala da separação espacial entre ricos e
pobres - já que estes últim os tendem a concentrar-se m uito mais claram ente nas peri
ferias do que é o caso na m etrópole carioca, na qual eles freqüentem ente residem em
favelas localizadas no núcleo m etropolitano ou em seu entorno im ediato, am iúde,
“entre” ou “ no m eio de” bairros privilegiados.
162
□
fazem com que um jovem afrodescendente de família pobre e favela
da mate e até torture um outro que “poderia ser seu irmão” , como diz
0 rapper carioca MV Bill em uma de suas letras (“Soldado morto”).
Ao mesmo tempo, o que tudo isso evidencia é a hipocrisia de uma
1lasse média que, desarmada pela própria ignorância, não raro conser
vadora e racista, subestima ou olimpicamente desqualifica a necessi
dade de compreender tudo aquilo que condiciona o fato de que, ao
“des-humanizar” os criminosos pobres, ela mesma se embrutece.
Chega a ser compreensível que, saturados de ódio, ressentimen
to e desprezo, alguns tenham chegado a ver no “hiperprecariado
nrmado” - o qual, com suas armas, infunde medo e abala a tranqüili
dade dos neo-sinhozinhos e neo-sinhazinhas, mesmo que o preço seja
alto - agentes de mudança, “libertadores” , “Robin Hoods” . Assim
como o medo é péssimo conselheiro, contudo, também o ódio e o res
sentimento o são.
A hipocrisia; a falta de solidariedade (mesmo na versão
pequeno-burguesa de filantropia) entre ricos (e classe média) e
pobres; as psicopatologias derivadas do ou incrementadas pelo medo
generalizado e a violência; as reações hiperconservadoras (clamor
por mais e mais repressão, por penas mais duras, por diminuição da
maioridade penal etc.): tudo isso é condicionado pelas estruturas de
um modelo social que, como já se disse neste livro, se mostra cada
vez mais “criminógeno”. Por sua vez, o comportamento dos agentes
retroalimenta as estruturas. Na maior parte dos casos, o que tem havi
do é uma adaptação às estruturas - “proatividade adaptativa" - ou
uma simples resignação - adaptação passiva ; poucas vezes se cons
tatam atitudes proativas anti-sistêmicas. O tráfico de varejo é, essen
cialmente, um caso de “proatividade adaptativa” .
Os criminosos que atuam no tráfico de drogas de varejo em espa
ços segregados são não apenas “fruto do sistema” mas também, de
um modo geral, parte integrante dele, inclusive valorativam ente ,
ainda que ocupando uma posição subalterna. Ilusão será tratá-los,
generalizadamente, como potenciais inimigos do capitalismo, a não
ser que “potenciais” vá na conta de um esforço para separar a realida
de das estruturas valorativas e culturais já arraigadas (consumismo,
individualismo, machismo, autoritarismo), de um lado, e a nua obje
tividade da condição de atores menores e descartáveis, de outro. A
compreensão e a solidariedade derivadas da percepção dessa dimen
são de objetividade deve contribuir para que organizações da socie
dade civil (mais especificamente, de movimentos sociais) busquem
estabelecer algum tipo de diálogo e colaborar para evitar ou mesmo
interromper carreiras criminosas. Mas é imperativo admitir que, con-
cretamente, fenômenos como a territorialização de espaços segrega
dos por criminosos são disfuncionalíssimos para a sociedade civil -
inclusive por atiçarem e como que convidarem, cedo ou tarde, à mili
tarização da questão urbana, de conseqüências nefastas e talvez fatais
para as ações realmente emancipatórias. Os m ovimentos sociais
emancipatórios não são os principais responsáveis por essa reação
militarizante, mas ela acaba se voltando contra eles, os quais, despre
parados e atordoados, podem tombar como suas principais vítimas.
A “violência cega” , que é um ingrediente básico do caldo da cri
minalidade ordinária, corresponde, sociopolítica e anti-sistemica-
mente falando, a energia desperdiçada. Energia desperdiçada de um
modo que, em vários sentidos importantes, é sistemicamente adapta
do. Pior ainda: de um modo que se manifesta embebido em valores e
hábitos nada emancipatórios como machismo, belicismo, arbitrarie
dade e despotismo.
Uma vez tomada a segurança pública um “paradigma de governo”,
muito difícil se toma reverter o quadro, quadro esse que, direta e indire
tamente, produz leis, multiplica os dispositivos de controle e amiúdc
retroalimenta o medo dos cidadãos. E caminha-se, no Brasil como em
outros países, celeremente para o aprofundamento desse fosso.
A Zona Sul do Rio de Janeiro foi palco, em abril de 2004, de
uma “batalha” entre traficantes das favelas do Vidigal e da Rocinha,
durante a qual os do Vidigal chegaram ao ponto de fechar uma ave
nida com o objetivo de roubar carros para serem usados na invasão da
cobiçada Rocinha, maior favela da cidade e seu mais importante
ponto de vendas de drogas. Várias pessoas inocentes morreram em
decorrência dessa tentativa de invasão - inclusive a jovem motorista
de um carro que, desorientada e sem saber o que fazer ao deparar com
164
□
o bloqueio da avenida, acelerou e teve o automóvel metralhado.
Ainda sob o efeito do choque provocado por essas mortes na área
mais nobre da cidade, um leitor do jomal carioca O Globo ofereceu,
em carta, a seguinte sugestão: o município do Rio deveria ser decla
rado “município neutro” e passar a ser administrado diretamente pelo
Governo Federal, o único nível da administração estatal que, segun
do ele, estaria em condições de resolver o problema da insegurança
pública (com o recurso às Forças Armadas, é o que se pode ler nas
entrelinhas). O leitor em questão arriscou ainda o palpite de que os
cariocas prefeririam abrir mão de uma parte de seus direitos de cida
dãos para ter, em troca, um pouco de tranqüilidade - especificamen
te o direito de votar para prefeito e governador, como ele explicitou
(o que faz pensar que a idéia de intervenção que ele tinha em mente
seria algo de longo prazo). Uma proposta como essa, extravagante o
suficiente para ser considerada como simplesmente anedótica em
outras circunstâncias, talvez tenha até recebido aplausos por parte de
outros leitores. Sob as circunstâncias da “guerra civil m olecular” ,
aquilo que, em outra situação, seria uma idéia bizarra de algum mis
sivista destrambelhado, e que dificilmente seria selecionada para
publicação entre as cartas de um dos maiores jornais do país, expres
sa uma tragédia muito preocupante: o desespero e a desesperança da
classe média, “formadora de opinião” por excelência.
Sugestões de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro
não têm faltado desde a década de 90, com motivações diversas; e
intervenções das Forças Armadas na metrópole carioca, mesmo sem
se darem no contexto de uma intervenção federal propriamente dita,
já aconteceram diversas vezes. O que é alarmante é a freqüência cada
vez maior com que clamores e propostas desse jaez, nostálgicos de
um “braço forte protetor” , vêm sendo externados e veiculados.
Comentando a posse do ex-juiz do Supremo Tribunal Federal, Nelson
Jobim, como titular do Ministério da Defesa, a articulista Eliane
Cantanhêde, do jomal Folha de São Paulo, defendeu, em sua coluna
de 27/07/2007, que, entre as várias possíveis missões do novo minis
tro, “a mais candente é sobre a revisão, ou não, do papel constitucio
nal das Forças Armadas, num contexto de país sem vocação belicista
e atolado numa grave guerra urbana”; a ele caberia “coordenar uma
boa discussão sobre até onde e em que circunstâncias os militares,
especialmente do Exército, poderão e deverão atuar contra a violên
cia urbana”. Após Jobim ter admitido, durante visita de inspeção das
tropas brasileiras em missão da ONU no Haiti, a possibilidade de,
“oportunamente”, patrocinar gestões para uma revisão constitucional
que possibilite sem sobressaltos jurídicos o emprego das Forças
Armadas para garantir a “lei e a ordem”, a mesma jornalista exultou,
em sua coluna do dia seguinte: “[e]stá claro que o primeiro passo foi
dado no Haiti, e a mudança está para chegar ao Brasil.” (Folha de
São Paulo, 04/09/2007)
Primeiro Presidente do regime instaurado pelo golpe militar de
31 março de 1964, o Marechal Humberto Castello Branco referiu-se
com desprezo, em discurso proferido em agosto daquele ano, aos polí
ticos que costumavam atiçar os militares para tomarem o poder, ten
tando deles servir-se para livrar-se de seus adversários civis. Castello
Branco comparou os atiçadores a “vivandeiras”: “vivandeiras alvoro
çadas, vêm aos bivaques bulir com os granadeiros e provocar extrava
gâncias do Poder Militar.” (cf. GASPARI, 2002:137) Nos dias que
correm, cidadãos comuns de classe média, não por ideologia ou estra
tégia política, mas sim - inicialmente ao menos - por puro desespero,
têm passado a olhar para os quartéis como se fossem o endereço da
solução. E, em algum momento, se o “clima social” se deteriorar
ainda muito mais e se mostrar favorável a aventureirismos e destem
peros de toda sorte, quem sabe até mesmo personalidades e adminis
tradores públicos passarão a receitar “extravagâncias do Poder
Militar” com o um remédio salvador contra o tão propalado “caos”.
Contudo, como alguns políticos golpistas e reacionários (como Carlos
Lacerda) dolorosamente aprenderam nos anos 60, isso pode eqüivaler
a abrir uma caixa de Pandora. Em um país de pouca tradição “demo-
crático”-representativa, o “Poder Militar” não se deixa comandar
como um cãozinho amestrado. “Bulir com os granadeiros” é um negó
cio muito arriscado - mesmo para a classe média conservadora.
166
□
5. Um difícil (mas imprescindível) diálogo:
política de desenvolvimento urbano
e política de segurança pública
5.1. “Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe”:
os silêncios e as ambigüidades da intelectualidade
crítica
167
■
“economia solidária”). E, no plano da análise, os estudos econômi
cos sobre pobreza urbana pouco ou nada absorvem da literatura sobre
segregação residencial (tão importante na hora de se pensar a pobreza
relativa!), os trabalhos sobre tendências da urbanização ainda costu
mam ignorar a literatura sobre o tráfico de drogas de varejo e seus
impactos sócio-espaciais, e assim sucessivamente. Se, nessas situações,
o grande empecilho ao aprofundamento do diálogo tem sido a força de
inércia da divisão do trabalho acadêmico de inspiração positivista, com
os vários “nichos disciplinares” promotores de (de)formação intelec
tual mais ou menos exclusivista e limitante - problema esse agravado,
muitas vezes, por divergências político-filosóficas - , no que se refere
ao relacionamento entre estudiosos do desenvolvimento urbano e pes
quisadores da área de segurança pública a dificuldade é ainda maior.
Deixado em grande parte e tradicionalm ente entregue ao
ambiente conservador ou mesmo francamente reacionário, o campo
de estudos da segurança pública tem sido considerado, como já se
viu, com grande suspeição pelos intelectuais e pesquisadores de
esquerda. Aqueles pesquisadores não-conservadores que tentam
apropriar-se alternativamente dessa discussão ainda são, no Brasil de
hoje, encarados, aqui e ali, de maneira um pouco enviesada pelos que
teimam em achar que esse não é um tema “progressista” . O que dizer,
então, do diálogo com a(s) polícia(s), considerada(s), genericamente,
como uma espécie de “besta-fera”, como um ambiente de podridão e
boçalidade, como um antro de violadores de direitos humanos?...
É claro que os planejadores urbanos de esquerda não costumam
fugir à regra de encarar a idéia desse diálogo com desdém ou senti
mento ainda pior. Curiosamente, por isso, continuam dando insufi
ciente ou nula atenção à cada vez mais incontornável contradição
entre os impactos sócio-espaciais do tráfico de tóxicos, de um lado,
e as possibilidades de introdução de esquemas de participação popu
lar direta no planejamento e na gestão urbanos promovidos pelo
Estado, de outro. Tampouco têm-se debruçado sobre as tensões
entre os impactos sócio-espaciais do tráfico de drogas e as possibili
dades de ampliação da margem de manobra para a atuação dos ati
vistas urbanos.
168
□
Permanece atual, infelizmente, o balanço registrado pelo autor
em ocasiões anteriores (ver p.ex. SOUZA, 2003): a reforma urbana e,
mais especificamente, a democratização do planejamento e da gestão
das cidades seguem sendo discutidas como se os efeitos sócio-
espaciais do tráfico de drogas de varejo não existissem ou fossem
desprezíveis. Ao menos nesse particular, por conseguinte, impõe-se a
conclusão de que uns tantos se comportam com se estivessem viven
do três décadas atrasados. Note-se, aliás, que não são apenas os pla
nejadores urbanos menos convencionais e não-conservadores que,
tradicionalmente, descuraram o estudo dos problemas de segurança
pública; afora as exceções de praxe, a pesquisa urbana em geral rele
gou o assunto a um plano muito secundário. Só muito recentemente,
devido aos incontomáveis apelos da própria realidade, vem sendo
esse quadro lentamente modificado. Trata-se de um fenômeno inter
nacional , a espelhar o fato de que a problemática em pauta possui um
alcance planetário: seja por causa da criminalidade violenta ordiná
ria, seja por causa de conflitos derivados de choques entre a polícia e
ativistas sociais (ativistas antiglobalização, por exemplo), seja, ainda,
na esteira das preocupações com atentados terroristas em uns tantos
países, temas como public safety, low intensity urbati warfare etc.
tendem a não ser mais vistos como menores ou exóticos. No caso do
Brasil, e mais especificamente em matéria de estudos e reflexões
sobre planejamento urbano criticamente orientados, a incorporação
da segurança pública à agenda de preocupações e trabalho ainda
engatinha.
Não que não sobrem razões para críticas contundentes às insti
tuições policiais! No entanto, também não faltam razões para acusa
ções contra o Estado capitalista em geral, inclusive como agente de
planejamento urbano. Sejamos coerentes, indo até o fim na crítica: a
distância entre o papel da polícia e o dos planejadores urbanos a ser
viço do Estado muitas vezes nem é tão grande assim, como provoca-
tivamente salientou, já em 1971, Robert Goodman - imaginativo
radical planner que declarara guerra ao establishment arquitetônico-
urbanístico - , ao tachar os últimos de soft cops (GOODM AN,
1971:13). Se isso parecer exagerado ao leitor, vale a pena refletir:
não agiriam tantas e tantas vezes os planejadores urbanos profissio
nais, mesmo que inconscientemente, realmente como “tiras suaves”,
ao colaborarem ativamente para criar formas espaciais e tipos de
organização espacial que favorecem a “ordem” e o controle no inte
rior de um a sociedade heterônom a? E, apesar disso, não faltam
exemplos de como o planejamento e a gestão das cidades, mesmo no
interior de uma tal sociedade, podem refletir contradições, conflitos e
contrapressões, de tal maneira que nem sempre servem somente à
exploração, à opressão e à alienação: o orçamento participativo de
Porto Alegre, mormente na década de 90, é disso uma boa ilustração.
Generalizações em tom absoluto e peremptório sobre o conservado
rismo do planejamento e da gestão urbanos promovidos pelo Estado
não são menos dignas de reprovação que os preconceitos a propósito
do tema da segurança pública - quando menos, ao guardar-se a dis
tinção entre essência estrutural e possibilidades conjunturais, por
razões táticas e pragmáticas.
Se é inadequado contentar-se, em relação aos policiais, com
apriorismos generalizantes no estilo “são todos corruptos” e “são
todos carniceiros” - apriorismos esses que, por serem pouco rigoro
sos e muitas vezes injustos, não colaboram muito para a mudança da
realidade que se deseja transformar - , é um equívoco ainda maior
fazer do tema da segurança pública em geral uma espécie de tabu, o
qual, uma vez transgredido, amaldiçoaria e macularia o transgressor
(o estudioso ou pesquisador). É indiscutível que se costuma focalizar
o assunto segurança pública de um ponto de vista que não questiona
o status quo : “segurança pública” confunde-se, imediata ou mediata-
mente, com a segurança dos cidadãos nos marcos da ordem sócio-
espacial vigente. No limite, qualquer questionamento dessa ordem é
uma ameaça real ou potencial à “segurança pública” . A oposição
política a essa ordem é um alvo de repressão (e prevenção) tão óbvio
quanto a criminalidade ordinária, a “violência cega” ou “despolitiza-
da” . Daí até mesmo os estudiosos progressistas do tema serem, na
sua m aioria, no máximo “reform istas” . O horizonte político-
filosófico é quase sempre a sociedade existente, quando muito toma
da um pouco menos injusta do ângulo da distribuição de renda.
170
□
É possível (e necessário), contudo, dialetizar a questão. É possí
vel (e necessário) preocupar-se com a segurança pública consideran
do que o aumento da criminalidade ordinária não interessa às forças
de transformação da sociedade, por dificultar até mesmo as ações dos
movimentos sociais e ensejar um frenesi legislativo, repressivo e de
controle sócio-espacial que acaba se voltando contra as forças de
mudança. É possível (e necessário) entender melhorias de segurança
pública como se baseando não no aumento das deformações e dos
vieses institucionais (caráter antipopular e classista do sistema prisio
nal, da justiça criminal, da ação policial etc.), mas sim em uma miti
gação dessas deformações e desses vieses, privilegiando-se instru
mentos não-convencionais (policiamento comunitário, penas alterna
tivas, mais prevenção e menos repressão etc.). E é possível (e neces
sário), por fim, conceber essa mitigação como sendo não necessaria
mente um fator de estabilização do próprio status quo (apanágio de
um horizonte “reformista” estreito), mas sim como uma contribuição
para que as forças de mudança ganhem fôlego e tempo, em vez de
verem estas a sua margem de manobra encolher. Esta segunda posi
ção não é incompatível com um horizonte de transformação radical,
pelo contrário.
Por razões que nada têm a ver com desconfiança em relação à
polícia, muitas vezes, na prática, o medo ou a falta de percepção
sobre a importância de se pensar e praticar o planejamento e a gestão
levando-se em conta a segurança pública é usual nas administrações
municipais, que pouco ou nada buscam em matéria de diálogo com
outros níveis de governo para se tentar enfrentar os problemas. Veja-
se o caso da administração nada de esquerda do prefeito César Maia,
em que, consideradas as suas duas administrações e mais a de seu ex-
secretário de Urbanismo Luiz Paulo Conde, já se vão, no momento
em que o autor escreve estas linhas (2007), dez anos de continuidade
de linha de gestão na Prefeitura carioca. Confrontada com problemas
como os relatados no capítulo anterior, envolvendo interferências dos
traficantes em projetos ou obras do Programa Favela-Bairro, saiu-se
assim a então secretária de Habitação Solange Amaral, em depoi
mento colhido pelo jornal O Globo de 18/05/2003:
O Favela-Bairro é um programa de inclusão social. Leva
qualidade de vida para as comunidades. Segurança pública não é
conosco.
d i v e r s a s a d m i n i s t r a ç õ e s f e d e r a i s 110 t o c a n t e a o t e m a . O s r e s u l t a d o s p r á t i c o s d a
S e c r e t a r ia , p o r é m , p e r m a n e c e m até h o j e b a s t a n t e m o d e s t o s .
policial. Em países (semi)periféricos, ademais, mesmo a via legal
esbarra ou redunda em ilegalidades, como demonstram à saciedade
as cadeias e as penitenciárias apinhadas de presos, em condições
subumanas muitas vezes, bem como a leniência corrupta por parte
dos funcionários de muitas dessas unidades prisionais e a inadequa
ção de leis e tecnologias (por exemplo, para bloquear telefones celu
lares), o que permite que, de dentro delas, presos controlem “organi
zações” criminosas no mundo exterior (e as próprias prisões).
Em face disso, os discursos no estilo “tolerância zero” (para lem
brar o programa adotado na Nova Iorque dos anos 90 pelo ex-prefeito
republicano Rudolph Giulianni49) ameaçam ganhar cada vez mais
popularidade. Acuada, a classe média brasileira parece estar recepti
va a “soluções” cada vez mais autoritárias e repressivas, sem muita
consciência (ou disposta a pagar o preço) da diminuição de algumas
regalias e da restrição, na prática, de direitos, como o de livre loco
moção. Lamentavelmente, até mesmo muitos pobres, compreensivel-
174
□
mente impacientes e descrentes quanto à eficiência e à isenção do
Judiciário, mostram-se volta e meia favoráveis à adoção de medidas
“duras” , dos linchamentos por eles mesmos promovidos à introdução
da pena de morte pelo Estado. Ocorre que os privilegiados podem
compensar parcialmente a diminuição de certas regalias e a restrição
à livre locomoção por meio do auto-enclausuramento em complexos
de auto-segregação, nos quais dispõem de serviços “exclusivos” de
alta qualidade. É como se, em suas gated communities e edge cities,
replicassem a cidade à sua imagem e semelhança, e acima de tudo
conforme a sua conveniência. Mas e os pobres, que não dispõem de
regalias e cujos direitos já são sistematicamente ignorados ou feri
dos? Aqui, a adesão a discursos “duros” reflete as contradições deri
vadas da influência da ideologia autoritária cada vez mais dominante.
Se a intelectualidade crítica insistir em não se debruçar sobre o
problema para tentar costurar providências táticas com propostas
estratégicas, medidas de curto e médio prazo com program as de
longo prazo, ela perderá cada vez mais espaço. Até mesmo soluções
simpáticas e razoavelmente arejadas e progressistas - muito insufi
cientes, decerto, mas úteis e aproveitáveis como aquelas propostas
por Luiz Eduardo Soares (os “batalhões comunitários” , as “delega
cias legais” e outras tantas50), correm o risco de ser eclipsadas por
clamores por leis e penas mais duras, por intervenções das Forças
Armadas, e assim sucessivamente. Repita-se: o medo é sempre mau
5o O cientista social L uiz Eduardo Soares, reconhecidam ente um dos m ais lúcidos e
com petentes especialistas em segurança pública do Brasil, foi duas vezes im olado no
altar da m ediocridade política: a prim eira vez se deu em março de 2000, quando, após
pouco mais de um ano conduzindo uma prom issora e já parcialm ente exitosa experiên
cia de redesenho d a p o lítica de segurança p ública do estado do R io de Janeiro, foi
dem itido pelo então governador Anthony G arotinho; a segunda vez ocorreu em 2003,
quando, após m enos de um ano à frente da Secretaria Nacional de Segurança Pública
do M inistério d a Ju stiça, m otivos m esquinhos e intrigas palacianas forçaram a sua
saída. A experiência com o subsecretário de segurança pública do governo G arotinho,
em especial, serviu, quando m enos, para m ostrar que é possível oferecer, m esm o em
um quadro de tantos conflitos e corrupção policial estrutural com o o R io de Janeiro,
alternativas razoavelm ente eficazes e não puram ente repressivas em m atéria de políti
ca de segurança pública. A equipe chefiada por Luiz Eduardo concebeu e im plantou
diversos projetos e program as, os quais chegaram a render os prim eiros frutos - com o
o m encionado Delegacia Legal , de inform atização, racionalização e hum anização do
conselheiro. O silêncio seletivo de muitos intelectuais e pesquisado
res de esquerda, atordoados pela realidade e algemados por alguns
preconceitos, não é outra coisa senão deserção.
trab alh o d a P o lícia C iv il. S obre essa e outras iniciativas, vale a p ena co n su lta r as
m em órias da passagem de Luiz Eduardo pela adm inistração flum inense em SOARES,
2000 (sobre as “delegacias legais” , ver o Cap. 2; sobre os “ batalhões com unitários” ,
ver as págs. 287 e segs.); ver, tam bém , SOARES, 2006.
176
□
Environmental Design [CPTED]). Em vista disso, o agrupamento em
três correntes apenas, utilizando-se os termos “insíiíucionalismo " ,
“culturalismo ” e “redistributivismo”, não visa a substituir as designa
ções das abordagens e vertentes específicas, nem representar um qua
dro classificatório que dê conta da estonteante diversidade de orien
tações e enfoques. É um artifício simplificador, que procura abarcar
uma parte, mas uma parte seguramente significativa, do debate bra
sileiro atual a respeito das causas da criminalidade e das possíveis
soluções. Em boa medida, aliás, essa classificação também é útil para
refletir sobre as discussões travadas em muitos outros países.
Panoramas menos incompletos, que recuperem, de olho nos debates
internacionais, a longa e rica história de estudos criminológicos e for
mação de correntes e subcorrentes específicas podem ser encontra
dos em outros trabalhos (como em MOLINA e GOMES, 2002).
Uma postura “institucionalista” consiste em preocupar-se exclu
siva ou muito prioritariamente com a “reengenharia” e a reforma das
instituições pertencentes ao aparato repressivo, judiciário e punitivo
do Estado (polícias, sistema judiciário e sistema prisional), além da
melhoria e das reformas dos marcos legais (sobretudo do Código
Penal). O “institucionalismo” peca ao negligenciar, seja por conser
vadorismo, seja por pretendido pragmatismo, algo que não se pode
negligenciar: o pano de fundo da injustiça social como caldo de cul
tura histórico de grande parte da problemática da violência urbana.
Com o seu parcialismo enfatizador de medidas repressivas e puniti
vas (de que dá testemunho, didaticamente, COELHO [1988]), o “ins
titucionalismo” pode, ao menos potencialmente, até mesmo acabar
agravando o quadro de violência, em vez de mitigá-lo, uma vez que
tomar o controle policial mais eficaz, com o intuito de desestimular a
prática de crimes, não irá eliminar as desigualdades socioeconômicas
e a frustração coletiva dos desprivilegiados, as quais alimentam e
realimentam, se não todos, pelo menos uma grande parcela dos deli
tos cometidos nas grandes cidades.
Especialmente de um ponto de vista puramente repressivo, a
tarefa da polícia, dado o papel histórico desta em si mesma e por si
mesma em um país capitalista semiperiférico (garantir a perpetuação
de instituições sociais injustas e mesmo abjetas), é combater os cri
minosos, por exemplo os traficantes de drogas ilícitas. Sob um ângu
lo que enfatize a prevenção, o desafio é muito mais abrangente: com
bater o crime, por exemplo o tráfico de drogas ilícitas. E enfrentar os
criminosos e o crime não são exatamente a mesma coisa. Combater o
crime, a partir de uma visão preventiva, pressupõe inibi-lo, evitar que
ele aco n teça , para não ter de se preocupar tanto, depois, com a
repressão e a punição dos transgressores. Entretanto, no fundo, ainda
que não se superenfatizem os aspectos puramente repressivos e puni
tivos, a concentração exclusiva ou prioritária das atenções em medi
das preventivas de natureza institucional (como o policiam ento
comunitário), por mais interessantes que estas sejam, tampouco ataca
algumas das causas e questões sociais mais profundas, o que eqüiva
leria a continuar enxugando gelo, ainda que com maior eficiência, ou
a zelar melhor pela panela de pressão para que a tampa não voe.
De um ângulo comprometido com o desenvolvimento sócio-
espacial a partir de um olhar realmente crítico em relação ao status
quo capitalista e pseudodemocrático, “combater o crime” não pode
restringir-se a uma estratégia de contenção. De um ângulo que não se
restrinja a conter impulsos violentos motivados por ressentimentos,
sentim entos de indignação e demandas reprim idas, “com bater o
crime” implica não apenas evitar que criminosos cometam crimes,
mas tam bém com bater os fatores que empurram os indivíduos
(sobretudo jovens), maciçamente, para o mundo do crime. E mais:
implica submeter a um escrutínio mais exigente a criminalização de
certas atividades e ações. Um exemplo disto é a necessidade de se
proceder a uma crítica não-conservadora do tráfico de drogas, a
qual reconheça as iniqüidades e as perversidades embutidas no tráfi
co de drogas enquanto um negócio capitalista - iniqüidades e perver
sidades ainda por cima agravadas pelo seu caráter ilegal (como uma
distribuição geralmente muito desigual de lucros/benefícios e ris
cos/custos entre os atores sociais envolvidos, tendo em uma ponta os
varejistas das favelas e, na outra, os agentes envolvidos com a impor
tação, a exportação e o atacado e os seus “sócios”) - , mas, ao mesmo
tempo, lance luz sobre coisas como certos exageros referentes aos
178
malefícios para a saúde ou a capacidade das substâncias psicoativas
de, isoladamente, estimular a prática de crimes, ou ainda como as
questões de controle social envolvidas na gangorra entre “liberaliza
ção” e repressão ao consumo dessas substâncias.51 E o “instituciona-
lismo” se mostra impotente ou completamente inadequado na hora
de esclarecer questões como essas.
Aquilo que o autor tem chamado de “culturalismo”, de sua parte,
consiste em interpretar o aumento da criminalidade violenta essen
cialmente como um fenômeno cultural, fazendo-se referência à perda
ou deterioração de certos valores ou de certas instituições sociais. A
ênfase um tanto exagerada nas transformações dos sistemas de valo
res e dos códigos culturais não exclui, decerto, que insights e análises
relevantes possam ser fornecidos - da mesma forma que o “olhar
tipicamente institucionalista” também pode, ao dirigir seu foco para
certas instituições e suas deficiências, realmente iluminar aspectos
importantes. O problema de qualquer abordagem muito parcial e
insuficientemente integradora é que, ao se subestimarem ou negli
genciarem outros fatores, por razões teóricas e às vezes até ideológi
cas, introduz-se uma distorção. O problema não é dar (a devida) aten
ção à cultura, à família, à degradação do sistema de ensino etc. (ou,
no caso dos “institucionalistas” , às deficiências da polícia, do sistema
52 A propósito das relações entre consum ism o, hedonismo e violência, algum as das
reflexões m ais inspiradoras e inteligentes oferecidas por um brasileiro não foram
legadas por um “especialista em violência urbana/segurança pública” , m as por um
psicanalista: Jurandir Freire Costa. V er, deste autor, em particular, CO STA (2004a,
2004b e 2004c).
53 N o Brasil, um a das pessoas que há m ais tem po vêm estudando a interface entre as
transform ações dos valores, “estilos” , códigos e hábitos da juventude pobre das gran
des cidades, de um lado, e a crim inalidade, de outro, é A lba Z aluar (ver, por exem plo,
Z A L U A R , 1985; 1994a; 1994b; 1994c; 2004a; 2004b; 20 0 4 c; 20 0 4 d ; 2004e).
Infelizm ente, aqui e ali topa-se com com entários que reduzem , de m aneira até carica
tural, preocupações de outra ordem e certos tipos de conexão; po r exem plo: “ [o] pro
blem a d a crim inalidade violenta nas cidades brasileiras a p artir dos anos 1980 não
pode ser reduzido às questões da miséria ou da m igração rural-urbana (...)” (ZALUAR,
2004c: 149); ou: “seu com portam ento [do jovem pobre revoltado] não se explica pela
fom e nem p ela m iséria absoluta” (Z A L U A R , 2004b:65). D e acordo! M as... quem
disse que a problem ática da privação e do descom passo entre dem anda real (necessi
dades e d esejos de consum o) e dem anda solvável se restringe a ou confunde com ,
no seu aspecto propriam ente econôm ico ou m aterial, “ fom e” , “ m iséria” e “ m iséria
ab so lu ta”?!... Z alu ar m ostra-se assaz e reiteradam ente p reocupada em evitar que a
asso ciação en tre p o b reza e crim in alid ad e term ine po r e stig m atiza r ainda m ais os
pobres: “ [a] pobreza, então, deixa de ser a explicação para a crim inalidade, afirm ação
com um en tre cien tistas sociais que só aum enta os preconceitos contra os pobres.”
(ZA L U A R , 2004b:77) A preocupação é louvável, em dois sentidos: a pobreza, por si
só, isolada e desconectada dos “filtros” sim bólicos e das instituições, não tem capaci
dade explicativa; adem ais, o que dizer daqueles m uitíssim os casos em que pobres não
transgridem norm as e não com etem crim es, ou nos m uitos casos em que não-pobres
transgridem norm as e com etem crim es? O ra, a questão, contudo, não é som ente essa -
até porque seria necessário qualificar o tipo de crime a que nos referim os. O que inco
m oda é que, por essa v ia, decretar de form a tão absoluta que a pobreza “deixa de ser a
ex p licação p ara a crim inalidade” im plica negligenciar, para certo s tipos de crim e,
conexões im portantes (ainda que às vezes com plexas), além de não perceber que, ao se
im putar a respo n sab ilid ade pelas altas taxas de crim inalidade a transform ações de
180
□
manipular e dirigir com base em esforços de “reengenharia” , ao con
trário dos marcos legais e das rotinas no interior daquelas instituições
focalizadas preferencialmente pelos “institucionalistas” . É por isso,
percebendo o risco de inação e letargia, que aqueles que agasalham
interpretações “culturalistas” não raro acabam também resvalando,
com maior ou menor entusiasmo, para recomendações de teor “insti-
tucionalista”, mesmo acreditando que o mais importante são fatores
como “crise e mudança de valores” . Afora isso, políticas públicas
endereçadas à melhoria do ensino e ao suporte à família são, também,
parte do arsenal “culturalista” . Na realidade, nos ambientes conser
vadores, é bastante comum um certo tipo de interpretação “culturalis
ta” , freqüentemente embalada em moralismo e até em racismo (se
não no ambiente acadêmico, mais sofisticado, pelo menos no univer
so do senso comum), combinar-se com soluções inspiradas no credo
e no receituário “institucionalistas” . Embora em princípio distintos,
portanto, “institucionalismo” e “culturalismo” costumam, se não
amalgamar-se, pelo menos pôr-se de acordo.
Enquanto as abordagens “institucionalista” e “culturalista” ten
dem a ser esposadas por analistas e observadores de perfil político
menos ou mais conservador, a esquerda do espectro político-
ideológico, de sua parte, tendeu, muito freqüentemente, a identificar-
se com um padrão interpretativo e de formulação estratégica que o
autor vem denominando, por falta de um nome melhor e mais con
sensual, “redistributivismo”. Na visão “redistributivista” , o aumento
da criminalidade violenta é considerado não um “caso de polícia” (ou
seja, determinado pelas falhas das forças responsáveis pela manuten
ção da ordem sócio-espacial capitalista e pela punição dos transgres
sores desta), nem tampouco uma “questão cultural” ou de “transfor
mação de valores e formas de sociabilidade”, mas sim uma “questão
social” , sendo ele imputado, em primeiríssimo lugar, a fatores mate-
natureza sim bólico-cultural, com portam ental e cognitiva, tam bém se abre a porta para
um certo tipo d e estigm atização m oralista dos pobres. M oral da h istória: diversos
tipos de hipersim plificação analítica podem , deveras, abrir as portas para outras hiper-
sim plificações m ais adiante.
riais, com o pobreza e privação. A solução, de um ponto de vista
“redistributivista” , residiria, como o nome da corrente sugere, em
uma redistribuição da renda e da riqueza socialmente produzida,
devendo isso ser feito por meio de reformas estruturais ou, mesmo,
na esteira de uma mudança social ainda mais profunda.
Embora possa não parecer, o “redistributivismo”, apesar de pro
clamar que seu foco são os “aspectos mais profundos, mais estrutu
rais”, não é muito menos superficial e parcial que seus contrapontos
examinados nos parágrafos precedentes. Ele peca, antes de mais
nada, ao descurar o fato de que fatores materiais como disparidades e
pobreza não se encontram, jamais, fora do contexto de uma matriz de
valores culturais, matriz essa historicamente mutável. Ignora-se, por
tanto, que a pobreza, seja a absoluta, seja a relativa, não conduz sim-
plística e linearmente, sem mediações culturais, ao aumento da crimi
nalidade, nem mesmo no caso daqueles delitos mais facilmente vin-
culáveis à privação como fa to r condicionante . Entre uma situação
“objetiva” de pobreza e disparidades e o pegar uma arma para assaltar
e traficar drogas, com disposição para matar, se interpõem fatores
mediadores de natureza cultural (e, é preciso não esquecer, também
de natureza institucional, que atuam como inibidores mais ou menos
eficazes de certos delitos). Particularidades culturais podem levar a
que realidades marcadas por níveis objetivamente mais elevados de
disparidades sejam, em função da influência de tradições e crenças
religiosas (“carma” , fatalismo em geral) ou outros fatores culturais,
menos flageladas pela violência urbana que outras, nas quais os
níveis de disparidade e privação são mais baixos. Comparem-se, por
exemplo, os níveis de incidência da criminalidade violenta socioeco-
nomicamente motivada nas cidades brasileiras com a realidade das
cidades indianas, onde a pobreza absoluta é maior, mas a criminali
dade é muito menos assustadora... Outra questão importante é aque
la para a qual se vem chamando a atenção a propósito da relação
entre “atitude em face da violência/crime violento” , de um lado, e o
próprio ato violento, de outro: sem confundir seu enfoque com a já
conhecida abordagem “frustração-agressão” (ou seja, a frustração
como causa de atos violentos e delituosos), o que alguns autores têm
182
□
focalizado é a contribuição da pobreza e da desigualdade (assim
como de quadros de baixa “coesão social”) para gerar “atitudes”
(iattitudes ) que facilitam a violência (MARKOWITZ, 2003). Mais
uma vez, portanto, o papel da cultura e também aquele de quadros de
referência como a família e o grupo local são indispensáveis como
fatores de mediação entre pobreza e violência/crime violento.
Uma segunda insuficiência do “redistributivismo” tem a ver com
o fato de os seus adeptos, tradicionalmente, negligenciarem, além das
questões levantadas pelos “culturalistas” , também os aspectos enfati
zados pelos “institucionalistas” . No caso do receituário “instituciona-
lista” , costumam os “redistributivistas” manifestar uma verdadeira
ojeriza pelo que é ali destacado. Para eles, a conversa em torno de
medidas repressivas e punitivas carrega um entranhado ranço reacio
nário. Em países que, como o Brasil, viveram por longos períodos
sob ditaduras, a lembrança dos “anos de chumbo” é, para muitos,
constantemente avivada pelas distorções do aparato policial, profun
damente marcado pela violência oficial institucionalizada durante os
tempos de arbitrariedade. Isso é perfeitamente compreensível, mas é
preciso que experiências traumáticas como o Regim e de 64 não
impeçam a possibilidade de se cultivar um enfoque das instituições
penais e policiais do Estado que, se nada tem a ver com complacên
cia e muito menos com simpatia por elas, nem por isso dê margem a
um tabu que interdite a reflexão e o diálogo. Quanto à ênfase sobre
“valores” e “cultura” , ela é desqualificada enquanto “idealism o
pequeno-burguês” , “diversionismo superestimador de superestrutu-
ras em detrim ento da infra-estrutura econôm ica” ou coisa que o
valha, bem dentro de uma certa tradição reducionista inspirada no
materialismo histórico. Infelizmente, porém, não parece razoável
esperar que efeitos positivos advenham apenas de políticas públicas
de largo alcance, de corte “redistributivista” (políticas públicas uni-
versalistas, reformas estruturais etc.). Os frutos de investimentos
sociais, mesmo quando inteligentemente feitos, serão colhidos, via
de regra, no longo prazo, e não se pode ficar de braços cruzados
enquanto isso.
Quem são os representantes do “redistributivism o”? Michel
MISSE (1995), utilizando o mesmo estilo que o autor deste livro uti
lizaria, alguns anos depois, em um subcapítulo do seu O desafio
metropolitano (SOUZA, 2000:Parte I, subcapítulo 1.5) - estilo esse
que tem o seu mais ilustre representante no clássico ensaio de
Rodolfo Stavenhagen acerca das Sete teses falsas sobre a América
Latina - , submeteu a escrutínio algumas posições conservadoras nas
interpretações sobre a criminalidade urbana, sintetizando suas idéias
sob a forma de apresentação de “cinco teses equivocadas sobre a cri
minalidade urbana no Brasil” . O ensaio de Misse se destaca por
representar uma das poucas vozes dissonantes em meio à difusão e ao
predom ínio de posições “institucionalistas” e “culturalistas” no
Brasil a partir dos anos 90, e sua análise é, no geral, arguta e estimu
lante. Quando, porém, ao ser examinada a “primeira tese equivoca
da” (“a pobreza é a causa da criminalidade, ou do aumento da violên
cia urbana”), sugere-se que autores como COELHO (1978, 1980,
1988) e ZALUAR (1994b, 1994c, 2004b, 2004c), entre outros, pole
mizam com “fantasmas” não-defínidos, uma vez que “ [o] autor desta
tese ingênua é desconhecido até hoje, embora se saiba que é uma
‘opinião’ generalizada no imaginário social” (M ISSE, 1995:25),
comete-se um ligeiro engano. É bem verdade que, como foi exempli
ficado na nota de rodapé 53 deste livro, algumas vezes “culturalistas”
e “institucionalistas” simplificam ainda mais as simplificações de
seus adversários. Independentemente disso, aparentemente devido ao
fato de os autores por ele criticados muitas vezes esgrimirem sem
fazer as devidas referências nominais à literatura especializada, o
próprio Misse terminou por passar ao largo, por exemplo, de uma
corrente da Criminologia, estabelecida há três décadas, denominada
Criminologia Radical (radical criminology) ou Criminologia Crítica
(icritica i crim in ology), no interior da qual, como sublinharam
LYNCH et al. (2000: 77), “[m]any radical criminologists accept that
high rates of Street crime in the U.S. are one consequence of
capitalism’s inequalities (...)” - e isso, it goes without saying, sem
que se estabeleçam ou considerem as devidas mediações. CURRIE
(1996) é um dos autores que oferecem um tratamento tipicamente
184
□
“redistributivista” para o diagnóstico das causas da criminalidade e
para o seu enfrentamento; a preocupação central de seu artigo é com
o delineamento de uma “anti-crime em ploym entpolicy”, a qual, con
quanto em si mesma válida, não dá (e não poderia dar) conta plena
mente da problemática das causas e dos desafios da criminalidade
violenta.S4 Se essa postura excessivamente simplificadora se encon
tra, já há bastante tempo, muito desprestigiada no Brasil e no mundo
inteiro - desgraçadamente, mais por “más” do que por “boas” razões,
ou seja, devido à atmosfera conservadora que predomina desde o
mais tardar os anos 80 isso não significa que o estabelecimento de
correlações entre pobreza e/ou desemprego, de um lado, e criminali
dade, de outro, como modo exclusivo ou quase exclusivo de explicar
as causas desta última, não tenha tido os seus representantes.55
Felizmente, no entanto, nem sempre a lembrança da pobreza e da
privação como (parte do) background da criminalidade e da violên
cia precisa desembocar em pressuposições simplistas acerca de uma
causalidade linear entre pobreza e crim inalidade. Isso se aplica
mesmo a vários daqueles inspirados no pensamento marxista, e é
ainda mais válido para os que se vinculam a quadros de referência
político-filosófica contestatórios menos passíveis de influência de
um bias economicista. Um exemplo é o já mencionado MARKO-
WITZ (2003), em que a percepção de uma forte correlação não eqüi
vale à postulação de relações lineares de causalidade. A própria rad
ical crim inology possui suas subcorrentes, e é reconfortante ver
como YOUNG (2003), recentemente, em sua defesa de uma left
realist criminology (“radical in its analysis, realist in its policy”), ao
54 São seis as linhas de ação apresentadas por CU R RIE (1996:48-9): “direct public
jo b creation in areas o f pressing social need” ; “system atic policies to upgrade w ages
and narrow existing disparities, especially gender disparities, in eam ings” ; “ a m uch
improved, national system o f job training and transition from school to w ork” ; “greater
support for w orkplace organization through the labor m ovem ent” ; policies to spread
the social costs o f the transfer o f jo b s abroad” ; “legislation to shorten hours and
spread available w orktim e.”
55 Z aluar o fere ceu , em trabalho originalm ente publicado em 1999 (cf. Z A L U A R ,
2004d), um a abrangente revisão da bibliografia brasileira sobre a crim inalidade vio
lenta e suas causas. Independentem ente de se dar ou não plenam ente razão à autora, os
alvos de certas objeções por ela levantadas adquirem , aí, m aior concretude.
mesmo tempo em que mantém a premissa crítica da Criminologia
Radical de que “ [c]rime is not a product of abnormality, but of the
normal workings of the social order” , sublinha que
E mais:
186
□
questões relativas à privação e às desigualdades (como SOARES,
2005), também no Brasil vêm surgindo análises que escapam d a
limitações do “redistributivismo” sem abrir mão de preocupações d:
justiça social (inclusive de justiça distributiva) e sem incorrer nos
parcialismos de tipo “institucionalista” ou “culturalista” (CALDEI
RA, 2000; SOUZA, 2000).
É fundamental que se sublinhe algo que não vem sendo introdu
zido no debate por “institucionalistas” e “culturalistas” por força da
restrições derivadas de suas matrizes teóricas e filtros ideológicos,
mas que tampouco por certos “redistributivistas” é encarado adequa
damente ou enfatizado o suficiente. Não basta dizer que, considera
das todas as mediações de ordem institucional e cultural, é possívd
concluir que vários tipos de crime violento guardam alguma forfc
relação plausível com a pobreza e a privação. Retomando o que s;
disse no Cap. 5, o capitalismo - na qualidade de modo de produção £,
mais amplamente, de modelo social que existe embebido em um ima
ginário específico - é “criminógeno” , ou seja, “produz” criminalida
de, em diversos sentidos. Se medidas institucionais purament:
repressivas (preferidas pelos “hardliners ” do “institucionalismo”) oi
mesmo aquelas preventivas (advogadas pelos “institucionalistas” d;
figurino “soft”) não podem conseguir muito mais que abafar a crimi
nalidade sem eliminar suas causas mais profundas, tampouco medi
das redistributivas interiores ao modelo social capitalista haverão d;
conseguir muito mais que mitigar algumas dessas causas, não conse
guindo ultrapassá-las. “Moral da história”: se o “redistributivismo’
possui suas limitações, um “redistributivismo” animado por um prc-
jeto político-social que se contente apenas com reformas possíveis
nos marcos da ordem sócio-espacial capitalista, sem cultivar m aiors
ambições, seria duplamente limitado.
5 3 . Para além dos parcialismos (e buscando o
pragmatismo): reciclando e recontextualizando
contribuições específicas
188
□
identidades territoriais excludentes), a reforma profunda das polícias
e do sistema prisional e uma adequação das "punições", abrindo-se
muito maior espaço para a aplicação das chamadas penas alternati
vas.56 A colaboração deste livro, no que tange às sugestões práticas,
só pode girar em tomo do papel flanqueador de providências e estra
tégias de planejamento e gestão urbanos, tomadas ou conduzidas
sociedades autoritárias, para não falar na questão dos papéis am iúde concretam ente
desem penhados pela ju stiça crim inal e pelo sistem a penal, podem ser tratadas sem
cautela e desconfiança. E m uito m enos se pode esquecer que os dispositivos repressi
vos e penais podem ser usados pelo E stado, a qualquer m om ento, contra ativistas
políticos e m ilitantes anti-sistêm icos.
190
□
cm imóveis da União. Sem embargo, o Estatuto da Cidade, em seu
Artigo 9o (capu t ), menciona, explicitam ente, “área ou edificação
urbana” , e a Medida Provisória 2.220/2001, em seu Art. Io (caput),
traz a expressão “imóvel público” , por isso se subentendendo tanto
terrenos quanto edificações. Com isso, além das tradicionais favelas,
ficam potencialmente contempladas, também, ocupações de sem-
teto, desde que satisfaçam os requisitos legais (a saber: tempo míni
mo de posse sem oposição, ou seja, sem contestação judicial, de
cinco anos; área máxima ocupada por cada indivíduo ou família de
250 m etros quadrados; não ser proprietário de outro im óvel).
Todavia, uma vez que as ocupações de sem-teto tipicam ente não
satisfazem os requisitos concernentes ao período de cinco anos de
posse sem contestação, deve-se pensar, no caso delas, em recorrer a
instrumentos outros que não a usucapião e a concessão de direito real
de uso (ordinária). No caso de ocupações de prédios (ou mesmo de
terrenos) por organizações de sem-teto em que os requisitos para a
aplicação da usucapião e da concessão de direito real de uso (ordiná
ria) não sejam satisfeitos, os seguintes recursos jurídicos podem ter
de ser mobilizados pelos próprios movimentos sociais a fim de tentar
assegurar a permanência dos moradores: para começar, necessária se
faz uma pressão política mesclada com capacidade de negociação e
persuasão; ademais, amparo ético-legal pode ser buscado em princí
pios constitucionais como o do direito à vida, o (vago e ideologica
mente problemático) princípio da “função social da propriedade"
(explícito no Estatuto da Cidade e, de algum modo, contemplado
lambém pelo Art. 1.276 do Código Civil, que trata do abandono ou
abandono presumido por parte do proprietário de um imóvel) e no
princípio do direito à cidade (cujo espírito se acha presente, ainda
que de maneira rala e truncada, no Estatuto da Cidade). Além disso,
diversos instrumentos podem ser acionados a fim de evitar-se o des
pejo e obter-se a eventual desapropriação (ou, no caso de imóvel
público, uma concessão de direito de uso especial, negociada com o
Estado) em favor daqueles que estão exercendo a posse efetiva de um
imóvel abandonado por seu proprietário: uma providência possível é
pressionar para que medidas liminares de reintegração de posse não
venham a ser aplicadas sem que os ocupantes sejam antes ouvidos e
sem que a área em litígio seja inspecionada, a fim de que aquele que
terá a incumbência de julgar possa formar melhor juízo e melhor ava
liar a justeza ou não da exigência do proprietário.
192
□
outras (SOUZA, 2004:242). Para tanto pode contribuir a auto-
organização da população, dentro do espírito da “economia popular
urbana” , com o objetivo de implementar cooperativas e dar anda
mento a outros tipos de iniciativa. Essa auto-organização da popula
ção pode ser complementada por algum tipo de apoio estatal, por
exemplo mediante a concessão de microcréditos e o oferecimento de
programas de capacitação profissional.
57 N o Brasil, a palavra “com unidade" é m ais freqüentem ente em pregada para referir-
se a espaços pobres com o favelas - seja pelos próprios m oradores, com o um a form a
d e intuitivam ente salientar um elem ento de coesão e prom oção de auto-estim a coleti
va diante d e um a estigm atização, seja m esm o por observadores externos. P orém , o
uso c o n serv a d o r ao qual S ennett aludiu é o que pred o m in a em o u tro s contextos
sociogeográficos (com o os EU A ). E sse uso conservador é aquele que se encontra, no
m undo inteiro, p o r trás da auto-segregação, e seu espírito foi bem sintetizado por
BA U M A N (2003:10): “ [v]ocê quer segurança? A bra m ão de sua liberdade, ou pelo
m enos de boa parte dela. V ocê quer poder confiar? Não confie em ninguém de fora
da com unidade. V ocê quer entendim ento m útuo? Não fale com estranhos, nem fale
línguas estrangeiras. Você quer essa sensação aconchegante de lar? Ponha alarm es
em sua porta e câm eras de tevê no acesso.”
194
□
O policiamento comunitário está longe de ser uma panacéia.
Entre as restrições e ressalvas e os lembretes que devem ser feitos,
pode-se começar advertindo que “policiamento comunitário” é um
rótulo da moda e uma experiência em voga em diversos países.
Segundo Hickman e Reaves (apud RENAUER et al., 2003:9), nos
EUA, no final da década de 90, “more than 90 percent of departments
serving 25,000 or more residents had some type of community polic-
ing plan in operation”, e havia “full-time community-policing offi-
cers in 64 percent of local police departments” .
Como costuma acontecer com aquilo que se populariza muito,
community policing e community-basedpolicing são rótulos que nem
sempre recobrem a mesma coisa, estando associados a distintas abor
dagens menos ou mais aparentadas (cf. CROWTHER, 2000:43-4).
De fato, experiências menos ousadas e mais tradicionais também se
utilizam dele, talvez pelo prestígio emprestado pelo modismo e pela
“aura simpática” . Além disso, mesmo que o policiamento comunitá
rio seja implementado de modo razoavelmente democrático, na base
da participação popular pelo menos na definição de certas medidas e
certos aspectos, da transparência, da accountability em escala micro-
local e de uma real interação e confiança entre policiais e moradores,
não basta adotar estratégias mais preventivas que repressivas, mas
que ignorem os componentes sociais mais estruturais e profundos por
trás de certos tipos de delitos. Caso contrário, mesmo uma prática
mais “simpática” será prisioneira do parcialismo “institucionalista” e
de um certo localismo ensimesmado e alienante.
Acrescente-se a isso, não a título de restrição ou ressalva, mas de
lembrete, que a integração com o planejamento e a gestão urbanos
deve ser mais íntima do que se poderia supor. Se é um espaço vivido
em escala microlocal que servirá de referência para a definição de
territórios e áreas de atuação do policiamento, então se está a falar de
favelas, bairros comuns e seus sub-bairros; e, se assim é, faz-se
necessária uma compreensão adequada do que sejam essas realidades
espaciais e como se podem produzir divisões espaciais que as respei
tem e sirvam de base para o trabalho de vigilância. A centralidade do
bairro tem sido reconhecida na literatura e pelos programas de poli
ciamento comunitário (note-se que SKOLNIK e BAYLEY [2002:91]
haviam já lembrado a importância do espaço e do bairro). B airros ,
portanto, devem ser levados em conta como unidades espaciais bási
cas de gestão participativa, e abairramenlos como divisões orienta
doras da gestão do policiamento comunitário. É preciso aprofundar o
conhecimento sócio-espacial, porém... E sob um ângulo crítico, de
preferência. É preciso, por exemplo, lidar melhor e mais cautelosa
mente com termos como “comunidade” ... Esse é um dos aspectos
que devem ser priorizados no momento de se lidar com a tarefa de
conferir mais lastro teórico ao policiamento comunitário, assunto a
respeito do qual a avalanche de estudos empíricos a partir dos anos
90 muito pouco se fez acompanhar por teorizações em profundidade
(FIELDING, 2002).
O policiamento comunitário, no dizer de SKOLNIK e BAYLEY
(2002:29), interessa a “uma comunidade que se importa com o que
acontece dentro dela” . Uma favela, segregada e desprovida de servi
ços públicos - e, não raro, de auto-estima coletiva pode represen
tar um desafio em comparação com bairros comuns, mas nada há que
demonstre que esse “importar-se consigo mesmo” não se aplique a
um caso desses. Por outro lado - vale a pena insistir-, cumpre evitar
que o senso de community degenere, justamente em bairros de classe
média e nobres, para um “vigilantismo” excludente e preconceituoso,
temor já registrado na literatura especializada (p.ex. por EDWARDS
e BENYON, 2000:50). SKOLNIK e BAYLEY (2002:20) fazem
notar que a vigilância de bairro “(...) tenta incutir um sentimento de
identidade com o bairro e, portanto, de comunidade”. O “sentimento
de identidade com o bairro” , aliás, pode até vir a ser reforçado pela
vigilância de bairro... mas ele não pode ser inteiramente criado a par
tir daí. Uma certa “bairrofilia” , isto é, um sentimento generalizado de
apego ao bairro e de identificação com o bairro, deve existir previa
mente, para que o programa obtenha êxito.58 Forçar a criação de uma
identidade territorial na base da busca da segurança pública, apenas,
58 O term o “bairrofilia” foi introduzido pelo autor em SOUZA (1988 e 1989), inspi
rado na expressão de Y i-Fu TU A N (1980) “ topofilia” , que é m ais genérica.
196
□
soa artificial, e pode ser perigoso por, eventualmente, induzir a uma
certa xeniofobia. Um abairramento bem-feito deve ser realizado, e
malhas territoriais definidas bottom-up, ou seja, pactuadas com a
população, devem servir de base. O mais importante, porém, é que o
policiamento comunitário não venha contribuir ainda mais para a
fragmentação do tecido sociopolítico-espacial da cidade.
Ainda sobre o policiamento comunitário, vale a pena reproduzir
o e-mail enviado pelo Coordenador do Conselho de Associações de
Moradores da Zona Sul da FAM-Rio e Presidente da Associação de
M oradores da Lauro Müller e Adjacências (ALMA) a numerosas
pessoas e entidades em 19/06/2003:
198
□
acha bastante difundido, não pode circunscrever-se a reuniões regu
lares entre os moradores de um dado local e a polícia, com os objeti
vos de troca de informações, manifestação de opiniões e avaliações
de desempenho dentro dos limites de uma “participação” puramente
consultiva. É preciso que a participação seja efetivamente deliberati
va. Em analogia com certas experiências mais arrojadas de participa
ção popular na gestão e no planejamento urbanos promovidos pelo
Estado, em particular com o orçamento participativo de Porto Alegre
(iniciado em 1989, e que teve o seu apogeu na década de 90),59 pode-
se imaginar que, a despeito das peculiaridades de um controle públi
co sobre a polícia, vários elementos são possíveis e desejáveis: a)
facultar a possibilidade de interferência da população em certas deci
sões da instituição policial, no âmbito de reuniões plenárias e, tam
bém, por meio de “delegados” e “conselheiros” escolhidos pela
população (simples porta-vozes do corpo de cidadãos, à semelhança
dos “delegados” e “conselheiros” de um orçamento participativo); b)
propiciar formas de interação entre moradores de diferentes partes da
cidade, para facilitar visões de conjunto e evitar problemas como o
“corporativismo territorial”; c) estabelecer metas claras e definir
metodologias de avaliação de desempenho e normas de accountabi-
lity na base de uma cooperação entre os moradores e a instituição
policial. Tudo isso, porém, tem como premissa, em um país como o
Brasil, em que a corrupção e a truculência são características já bas
tante disseminadas e arraigadas nas forças policiais, uma reforma
policial abrangente e profunda... Reforma essa que, como bem se
sabe, esbarra em obstáculos formidáveis.
A propósito dos obstáculos, não se pode deixar de colocar a
incômoda questão: até que ponto a própria classe média deseja uma
outra polícia, menos atrabiliária e corruptível? Precisamente essa
dúvida vale, em especial, para a classe média de países periféricos e
mesmo semiperiféricos, nos quais ela corresponde a uma minoria pri
200
□
(organizados ou não), quebram as leis, mas não pensam em quebrar
o "sistema”. Na realidade, o primeiro tipo de transgressor é, de fato,
até mais perigoso, em última instância, visto que o segundo tipo, n;a
verdade, adapta-se ao “sistema” e vive em estranha dialética com <o
seu lado formal/legal... Um “policiamento comunitário crítico” p o d e,
sim, ser o embrião de novas formas de se pensar a segurança pública,
assim como um orçamento participativo consistente e o u sa d o ,
mesmo se dando nos marcos mais gerais de uma sociedade capitalis
ta, pode ser o embrião de uma gestão muito diferente da riqueza
socialmente gerada, além de ser, já aqui e agora, um avanço em m até
ria de alocação mais transparente e justa dos recursos públicos. M as
seria uma fantasia incoerente imaginar uma “polícia do povo” eim
uma sociedade heterônoma, ao mesmo tempo mantida pelo Estado
capitalista e tendo como prioridade fundamental a defesa da vida e
das liberdades básicas, inclusive em detrimento da defesa da proprie
dade privada e dos privilégios dos mais abastados.
O policiamento comunitário pode ser, portanto, uma melhoria e
um em brião na direção de avanços futuros mais ousados. Não é,
entretanto, uma pan acéia. Em uma hipotética sociedade não-
heterônoma do futuro, nem mesmo um “policiamento comunitário
radicalizado” faria muito sentido, como o autor já adiantou em livro
anterior (SOUZA, 2006b:522), porque a própria idéia de uma “insti
tuição policial” , indissociável do aparelho de Estado e portanto m ar
cada por um ambiente heterônomo, não demandaria uma simples
adaptação, mas sim sua aposentadoria e substituição por instituciona-
lidades compatíveis com uma democracia sem aspas.
No que diz respeito aos “espaços defensáveis", trata-se de um con
ceito e de uma abordagem introduzidos nos anos 70 pelo arquiteto
Oscar Newman (NEWMAN, 1972; ver, também, NEWMAN, 1996),
o qual vem, há mais de três décadas, divulgando incansavelmente suas
idéias e encarnando como poucos o esforço de interlocução entre as
áreas de planejamento urbano e segurança pública. A proposta original
de Newman, entretanto, vem, inequivocamente, de uma matriz conser
vadora, além de bastante conforme à paroquial e individualista menta
lidade apelidada de “NIMBY” (= Nobody in my Backyard).
A idéia do defensible space é simples e, à primeira vista, atraen
te: estimular, com a ajuda da própria organização espacial, um “senso
de propriedade” da coletividade em relação ao espaço público e faci
litar múltiplas possibilidades de controle “comunitário” sobre o uso
dos espaços de uso coletivo, minimizando, por meio de um monito
ramento eficaz e “espontâneo”, e com a ajuda das formas espaciais,
as chances de cometimento de delitos. O grande problema é quando
esse tipo de idéia é aproveitado para justificar o “ensimesmamento”
e o auto-enclausuramento e a xenofobia, coisas aliás comuns na rea
lidade cultural e social norte-americana. No Brasil, “ensimesmamen
to”, auto-enclausuramento e xenofobia encontram seus arremedos e
suas expressões espaciais sob a forma de complexos de “condomí
nios exclusivos” como os de São Paulo (Alphaville e outros) e do Rio
de Janeiro, epítomes perfeitos do “corporativismo territorial” . Aliás,
numerosas cidades brasileiras vão, aos poucos, adotando o mesmo
padrão. A Alphaville Urbanismo S.A. construiu ou planejou “filho
tes” do Alphaville original em Nova Lima (Região Metropolitana de
Belo Horizonte), São José dos Pinhais (Região M etropolitana de
Curitiba), Salvador, Fortaleza, Porto Alegre, Londrina, M aringá,
Campinas, Gramado e Goiânia! - sempre fazendo uso de chavões
como “venha viver em comunidade” (ver análise dos condomínios
em SOUZA, 2000 e 2006b). Restrição semelhante foi já levantada a
propósito do policiamento comunitário, e também se aplica, no míni
mo com igual força, ao defensible space.
Os defensores alegam que a idéia do defensible space foi, muitas
vezes, deturpada, para servir a propósitos exclusionários e auto-
segregatórios. Não parece que ela tenha sido apenas “deturpada” ,
pois tudo indica que, sobre a base de um certo fetichismo espacial, de
fato houve, desde o início, uma afinidade com valores conservadores,
daí derivando a facilidade com que sempre se prestou a uma mani
pulação por parte de interesses não exatamente vinculados à demo
cratização da cidade. Note-se que, entre os princípios básicos dessa
abordagem, constam não apenas prescrições como aquelas sobre a
localização de janelas de modo a permitir um monitoramento espon
tâneo de áreas públicas nas cercanias das residências, sobre a locali
202
□
zação das entradas das moradias de maneira a facilitar uma conexão
estreita com a rua, sobre a necessidade de evitar que formas e contex
tos espaciais facilitem a ação de assaltantes, estupradores e outros
delinqüentes (espaços públicos mal iluminados, vegetação propicia-
dora de esconderijos etc.), mas também recomendações como as
referentes à conveniência de ambientes residenciais facultarem a gru
pos específicos (de acordo com sua faixa etária, renda, estilo de
vida...) uma nítida territorialização sobre o entorno de suas moradias,
com o grupo m icrolocal controlando uma determ inada “área de
influência” e com portando-se como “quase-proprietário” , como
‘guardião” dos espaços públicos de sua community adjacentes às
suas propriedades. Mesmo que Newman nos tenha tentado convencer
de que “ [d]efensible space is not about fencing” (NEW MAN,
1996:3), ele está, no entendimento do presente autor, ao prescrever
que “ [d]efensible space operates by subdividing large portions of
public spaces and assigning them to individuais and small groups to
use and control as their own private áreas” (NEWMAN, 1996:2),
colaborando com uma receita de fragm entação do tecido
sociopolítico-espacial da cidade.
Resumindo o “estado da arte” , COZENS et al. (2002:7) ponde
raram corretamente que “[t]he ‘design-affects-behaviour’ debate is a
perspective that continues both to offer solutions and to attract criti
cai commentary, yet still requires further investigation” . Do ponto de
vista do autor do presente livro fica, então, o desafio de conjugar a
idéia de uma organização espacial que evite situações de risco desne
cessárias (como áreas “escondidas”, áreas sem iluminação adequada,
terrenos baldios etc.), sem recair em situações de “prisão” voluntária,
de auto-segregação, de estímulo à xenofobia e de “corporativismo
territorial” . Como trabalhar os “espaços defensáveis” (idéia já anteci
pada, de certo modo, pela tradicionalista Jane Jacobs, um decênio
antes de Newman) dentro de uma visão universalista e includente -
aliás, como elemento a ser introduzido em projetos de moradia popu
lar no âmbito de uma reforma urbana? Mais: como fomentar a auto
nomia em escala microlocal e, na esteira dela, algum tipo de “contro
le social e accountability microlocal”, sem ferir o princípio de auto
nomia ao passar-se para escalas maiores (ou seja, sem incorrer em
“corporativismo territorial”) e sem abrir mão de um certo cosmopo-
litismo e de uma certa privacidade em favor de um ideal nostálgico
de “vida em comunidade”, com excesso de “controle social” (ou seja,
sem resvalar para a “vida de aldeia”, onde todos fofocam sobre todos
e observam todos)? Será que a única alternativa ao alto risco é abrir
mão de uma visão universalista, de uma perspectiva mais ampla e
generosa da cidade? Ou, então, adotar um arremedo de “comunida
de” que, ao mesmo tempo que serve para manter afastado o Outro, o
diferente, não passa de um aglomerado de indivíduos hiperindividua-
listas, que no fundo pouco estão interessados em uma convivência
mais estreita para além das divisas de suas propriedades? A percep
ção de que o substrato e a organização espaciais desempenham um
certo papel na inibição ou no favorecimento de alguns tipos de crime
violento pode ser útil e boa (afinal, repudiar o fetichismo espacial não
deve significar tratar o espaço como um simples reflexo/produto das
relações sociais!), desde que inserida em um contexto m aior em
matéria de percepção de problemas e políticas públicas, e desde que
- repita-se a advertência feita a propósito do policiamento comunitá
rio - não venha a reforçar a fragmentação do tecido sociopolítico-
espacial...
Coloquem-se, agora, as seguintes questões: levando em conta as
medidas sugeridas nas páginas anteriores e tomando o Brasil como
referência empírica, é possível constatar avanços? Onde? E qual é o
alcance real dos avanços?
Considere-se, primeiramente, Porto Alegre, município que ser
viu de palco para a mais importante experiência de orçamento parti
cipativo no Brasil, particularmente digna de nota durante a década de
90 e até o começo da década seguinte. Embora o autor não tenha
topado, durante os trabalhos de campo que lá conduziu em várias
ocasiões nos anos de 2000 e 2001 (e em visitas rápidas posteriormen
te), com problemas de “territorialização forte” imposta por trafican
tes de drogas de varejo tão intensos como os do Rio de Janeiro ou São
Paulo, isso não significa que a criminalidade violenta não seja impor
tante. No livro Cabeça de porco, o rapper carioca MV Bill e Celso
204
□
Athayde comentam seu espanto com o fato de que, “no Rio Grande
do Sul, assim como em outras regiões, não existem facções, e as
guerras são muito descontroladas e imprevisíveis” (SOARES et al.,
2005:32). E, no entanto, como o relato que vem a seguir deixa claro,
a violência vinculada ao tráfico de varejo é bastante grande.
Tomando o exemplo das taxas de homicídio, pode-se constatar que,
entre 1980 e 2000, a taxa da capital gaúcha mais que quintuplicou
entre o início e o final dessa série histórica.60 Muito embora o cresci
mento da taxa tenha experimentado oscilações de ano para ano,
pode-se perceber que, em fins dos anos 80, houve uma verdadeira
mudança de patamar, tendo havido, ao longo da década de 90, uma
certa estabilização. E evidente que o tráfico de varejo sozinho não
responde por esses números elevados; entretanto, é razoável presu
mir que ele vem contribuindo decisivamente para a deterioração do
quadro geral, como também ocorre em muitas outras cidades.
Embora a fragmentação do tecido sociopolítico-espacial seja ainda
apenas incipiente se comparada com a do Rio e a de São Paulo, já há
na capital gaúcha uma presença de todos os elementos dessa frag
mentação, inclusive de um “filhote” de Alphaville.
Alguns poderiam achar tentador inferir - considerando que o
orçamento participativo de Porto Alegre, iniciado em 1989, se afir
mou ao longo da década de 90 como uma das mais inteligentes e exi-
tosas experiências de gestão urbana participativa do B rasil e do
«o 1980: 7,29; 1981: 9,67; 1982: 12,65- 1983: 8,60; 1984: 6,(55; 1985: 7,93; 1986:
10,14; 1987: 10,49; 1988: 21,04; 1989: 34,12; 1990: 33,63; 1991: 29,74; 1992:
30,25; 1993: 17,84; 1994: 24,00; 1995 : 28,74; 1996: 30,96; 1997: 37,98; 1998:
31,73; 1999: 33,51; 2000: 39,79 (dados obtidos em 25/1/2007 no site do C R ISP da
UFM G: http://w w w .crisp.ufm g.br/capitaistaxa.pdf). Os dados disponibilizados pelo
CR ISP da UFM G só vão até 2000; de 2000 até 2004, é preciso contar com as estatís
ticas do M inistério da Saúde, as quais, em bora constituam a base para os dados cal
culados e divulgados pelo C R ISP, são um pouco m enos precisas, um a vez que este
últim o se utiliza da taxa bayesiana (ou corrigida), que é um a m edida m enos instável
que a taxa bruta. Não é possível, por isso, com parar diretam ente os dados disponibili
zados pelo C R ISP com os do M inistério da S aúde. Seja com o fo r, os d ados do
M inistério da Saúde apontam , tam bém para o período posterior a 2000, um a relativa
estab ilid ad e no com portam ento da taxa: 2001: 25,92; 2002: 31,23; 2003: 28,84;
2004: 30,85 (dados obtidos em 22/08/2007 em http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabc-
gi.exe?idb2006).
mundo, com efeitos redistributivos indiretos e expressivos impactos
positivos sobre a qualidade de vida dos mais pobres com base no
fato de que as taxas de homicídio naquele município se mantiveram
praticamente estáveis durante a década que correspondeu ao período
áureo do orçamento participativo, que a relevância das “medidas
sociais” é pequena. Um tal raciocínio seria, contudo, falacioso, por
duas razões principais.
Em primeiro lugar, um orçamento participativo não distribui
renda diretamente, apenas indiretamente (mediante a modificação
dos padrões e prioridades espaciais de investimento público), de
maneira que apenas algumas necessidades básicas (como as relativas
a melhorias no local de moradia: saneamento básico, por exemplo)
podem ser adequadamente satisfeitas com esse tipo de esquema. Em
segundo lugar, é óbvio que, em um município do porte de Porto
Alegre e com a sua complexidade, diversas outras providências se
fazem necessárias, e muitas delas o município, qualquer que seja ele,
terá dificuldades para influenciar decisivam ente sem a ajuda de
outras instâncias políticas atinentes a outras escalas. A geração de
ocupações e renda é um bom exemplo. Entretanto, isso não significa
que a ação conjugada de diversos programas e diversas políticas
públicas, como os cinco blocos de medidas mencionados anterior
mente, não possa gerar uma sinergia plena de efeitos positivos dignos
de nota mesmo em escala mesolocal e em uma grande cidade (a esca
la metropolitana é um pouco mais complicada). É bem provável,
aliás, que os impactos redistributivos do próprio orçamento participa
tivo tenham contribuído e contribuam, no longo prazo, não só para
reduzir as disparidades de infra-estrutura técnica e social no tecido
urbano (e, com isso, reduzir um pouco a segregação residencial), mas
também para retardar a fragmentação. O efeito de retardamento da
fragmentação pode-se dar, inclusive, ao fortalecer o “sistema imuno-
lógico sociopolítico” da população das “vilas” (como lá são denomi
nadas as favelas), sob a forma de coesão social - e ao oferecer, por
tanto, um terreno menos propício para a ação do tráfico de drogas.
Não obstante, qualquer orçamento participativo seria, obvia
mente, insuficiente, por melhor que fosse. A margem de acão do
206
□
Estado local possui claros limites, e nem se trata somente de fatores
puramente locais. A rigor, por conseguinte, esse tipo de dado não é,
a respeito, conclusivo, e dificilmente poderia ser. Um eventual agra
vamento de fenômenos de territorialização ilegal poderia dificultar, e
muito, a execução do esquema.
Belo Horizonte é um município cujo orçamento participativo,
iniciado em 1993, não possui, de modo algum, a consistência do de
Porto Alegre. Por outro lado, há na capital mineira uma experiência
interessante em matéria de redução das taxas de criminalidade vio
lenta, o programa Fica Vivo, o qual se baseia em uma integração
entre ações de segurança pública em sentido estrito e ações “sociais”.
Concebido pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança
Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (CRISP/UFMG), o
Fica Vivo procura contar com o envolvimento ativo dos moradores e
é implementado por meio de uma parceria com diversas instituições
estatais, como as polícias civil e militar de Minas Gerais, a Polícia
Federal, o Ministério Público e a Prefeitura de Belo Horizonte, bem
como com entidades da sociedade civil (CRISP, 2003:1).
A taxa de homicídio de Belo Horizonte sofreu, entre 1980 e 2000,
um salto menos acentuado que a de Porto Alegre (“apenas” dobrou),
mas porque já partiu de uma situação mais grave no início do período,
tendo chegado a 2000 com uma taxa próxima da de Porto Alegre.61 No
entanto, os últimos anos da década de 90 revelam um acentuado
aumento da taxa de homicídio na capital mineira, e os primeiros anos
do novo século não trouxeram alívio a esse respeito. Os números são
expressivos: entre 1998 e 2002 o número de homicídios aumentou em
67%, passando de 494 mortes em 1998 para 825 mortes em 2002
61 As taxas de hom icídio (taxa corrigida) de Belo H orizonte foram , entre 1980 e
2000, as seguintes: 1980: 77,27; 1981: 12,79-, 1982: 72,07; 1983: 10,35-, 1984: 77,77;
1985: 8,98 ; 1986: 9,74: 1987: 10,97: 1988: 10,28-, 1989: 75,26; 1990: 77,77; 1991:
15,30: 1992: 13,74 ; 1993: 13,47-, 1994: 12,49: 1995: 78,00; 1996: 20,06; 1997:
22,35-, 1998: 27,75; 1999: 27,26: 2000: 35,22 (dados obtidos em 25/1/2007 no site do
CR IS P /U F M G : h ttp://w w w .crisp.ufm g.br/capitaistaxa.pdf). E ntre 2001 e 2 0 04, as
taxas brutas, divulgadas pelo M inistério da Saúde, foram as seguintes: 2001: 29,97;
2002: 33,92: 2003: 47,97: 2004: 51,86 (dados obtidos em 22/08/2007 em http://tab-
net .datasus .gov .br/cgi/tabcgi .exe?idb2006).
(CRISP, 2003:2). A deterioração do quadro em Belo Horizonte nos
últimos anos é significativa, e o clima de insegurança reflete-se no fato
de que um número crescente de casas e prédios de classe média passou
a adotar cercas eletrificadas como proteção (situação ainda pouco fre
qüente no Rio de Janeiro, diga-se de passagem!).
O programa Fica Vivo, inaugurado em agosto de 2002 e que teve
como experiência-piloto a favela de Morro das Pedras, apresentou
resultados relativam ente promissores logo nos cinco primeiros
meses; a redução do número de assassinatos no local foi interpretada
pela equipe do CRISP/UFMG, com um razoável fundamento, como
tendo a ver, entre outros fatores, com o Fica Vivo (CRISP, 2003:11).
O problema, entretanto, é que tais experiências estarão sempre limi
tadas a “enxugar gelo” - ou seja, uma “contenção benéfica” , locali
zada, mais que uma superação. Soluções mais profundas não pode
rão ser, nunca, apenas locais, muito menos microlocais; como o pró
prio informativo do CRISP deixa claro, ocorreu um certo aumento do
número de crimes no entorno da favela, inclusive assaltos a ônibus
(CRISP, 2003:11).
Seja como for, vários indicadores, a começar pela taxa de homi
cídio, mostram que Rio e São Paulo estão muitíssimo longe de ser as
únicas situações preocupantes no Brasil, a despeito da “espetaculari-
dade” que a problemática da insegurança pública alcançou em ambas
as metrópoles nacionais. Em Recife, conforme já se informou na nota
9, de 1980 a 2000 somente em um ano (1996) a taxa de homicídio foi
superada pela de São Paulo, não tendo em momento algum ultrapas
sado a do Rio de Janeiro.62 Os dados mais recentes reforçam aquilo
que já havia sido apontado na referida nota de rodapé a propósito das
a As taxas de hom icídio (taxa corrigida) de R ecife entre 1980 e 2000 foram as
seguintes: 1980: 37,45; 1981: 43,88; 1982: 43,81-, 1983: 47,03; 1984: 52,39 ; 1985:
57.01; 1986: 59,95; 1987: 57,66 ; 1988: 51,65; 1989: 70,27; 1990: 76,25; 1991:
69,89; 1992: 64,62 ; 1993: 71,45; 1994: 63,85; 1995: 71,36; 1996: 79,98; 1997:
106,01; 1998: 115,18; 1999: 100,60; 2000: 97,79 (dados obtidos em 25/1/2007 no
site do C R ISP da UFMG: http://w ww.crisp.ufm g.br/capitaistaxa.pdO- Entre 2001 e
2 0 0 4 , as taxas brutas, divulgadas pelo M inistério da S aúde, foram as seguintes:
2001: 70,48; 2002: 64,11; 2003: 66,38; 2004: 64,83 (dados obtidos em 22/08/2007
em http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe7idb2006).
208
□
décadas de 80 e 90: em matéria de homicídios, os municípios de São
Paulo e Rio de Janeiro não ocupam exatamente as primeiras posições
no ranking das capitais mais violentas. As duas maiores cidades bra
sileiras apresentaram, em 2006, taxas de assassinato especificamente
por armas de fogo de, respectivamente, 18,1 e 33,4 por 100.000 habi
tantes, enquanto que Maceió, com uma taxa de 75,4, ocupou a pri
meira posição, seguida de Recife (61,5), Vitória (58,9) e Belo
Horizonte (35). Isso, por si só, rompe com a idéia de que Rio e São
Paulo seriam, de ponta a ponta, as campeãs no que se refere à crimi
nalidade violenta - idéia que tem muito a ver com a “superexposi
ção” do Rio de Janeiro e de São Paulo nos meios de comunicação de
massa, sobretudo a televisão.
A capital pernambucana possuía, no ano 2000, pouco mais de
1,4 milhão de habitantes, correspondendo a 43% da população da
região metropolitana. Muito embora o IBGE só reconheça como fave
las, por razões metodológicas, 64 assentamentos, Recife apresentava,
segundo levantamento da própria Prefeitura, cerca de 490 favelas,
onde residiriam 40% da população do município. Mesmo as favelas
maiores são, para os padrões cariocas ou paulistanos, relativamente
pequenas em sua maior parte; por outro lado, há uma miríade de
pequenas favelas. Ao mesmo tempo em que é a capital brasileira com
o maior percentual de sua população vivendo em favelas, Recife
apresenta uma desvantagem em comparação com Porto Alegre ou
mesmo Belo Horizonte em matéria de programas que possam, pelo
menos, colaborar para reduzir o problema da criminalidade violenta.
O programa de regularização fundiária e urbanização de favelas
PREZEIS é interessante e foi pioneiro no Brasil; entretanto, nunca
adquiriu robustez suficiente devido à escassez de recursos - muito
embora, formalmente, 80% das favelas recifenses se achem reconheci
das como áreas ZEIS (Zonas de Especial Interesse Social). Quanto ao
orçamento participativo recifense, com uma “pré-história” que remon
ta aos anos 80 (SOUZA, 2002:493), ele tampouco chegou a adquirir
consistência comparável à que o de Porto Alegre teve nos anos 90.
Observe-se, agora, o caso de C uritiba. No livro C abeça de
p orco , em capítulo intitulado “Nos fundos da cidade-modelo” , o rap-
p e r MV Bill relata seu espanto com os contrastes sócio-espaciais ali
observados e descreve seu contato com a “cena” do tráfico de varejo
local. Um trecho é particularmente interessante:
63 P ara se ter um a visão m ais com pleta, as taxas de hom icídio de C uritiba ao longo
desses dois decênios evoluíram da seguinte m aneira (taxa corrigida ): 1980: 8,60;
1981: 6,55; 1982: 10,11, 1983: 70,25; 1984: 10,90 ; 1985: 10,36; 1986: 9,84; 1987:
11,18-, 1988: 14,14-, 1989: 77,20; 1990: 18,49-, 1991: 15,44-, 1992: 15,21; 1993:
18,56; 1994: 19,52; 1995: 27,97; 1996: 17,59; 1997: 27,63; 1998: 23,87; 1999:
2 6 ,5 0 ; 2 000: 29,17 (d ados o b tid o s em 25/1/2007 no site d o C R IS P d a U FM G :
h ttp://w w w .crisp.ufm g.br/capitaistaxa.pdf). Q uanto ao período de 2001 a 2004, as
taxas brutas, divulgadas pelo M inistério da Saúde, foram as seguintes: 2001: 23,70;
2002: 26,57; 2003: 28,66; 2004: 34,22 (dados obtidos em 22/08/2007 em http://tab-
net .datasus .gov .br/cgi/tabcgi .exe?idb2006).
210
□
Ofícios” , concebido em 1993 e que chegou a ser selecionado no con
curso de best practices coordenado pela agência Habitat da ONU e
realizado em 1996 em Dubai, tinha de fato os seus méritos, apesar do
toque tecnocrático e um pouco autoritário que tem caracterizado a
gestão municipal da capital paranaense: previa-se a transferência da
população residente em uma determinada favela geralmente para
área muito próxima, e para substituir as casas precárias construíam-
se prédios de dois pavimentos nos quais, no pavimento superior,
localizam-se as moradias, e no térreo funcionam locais de trabalho
(oficinas etc.) - Os moradores têm de passar por uma (re)qualificação
profissional para ter acesso às moradias, integrando-se, compulsoria-
mente, trabalho e moradia. O principal problema do programa, ao
lado de seu caráter tecnocrático, é a reduzida dimensão, o que foi
observado pela própria agência Habitat, que fez a ressalva de que “os
resultados positivos do programa são inquestionáveis, mas o número
de pessoas que se têm beneficiado dele poderia ser muito maior se
outras instituições, governamentais ou não, tivessem proporcionado
financiamento” (HABITAT, 2007). Como várias outras coisas em
Curitiba, também o Programa Vilas de Ofícios pareceu antes um
“programa-vitrine” que algo realmente de largo alcance; seja como
for, um objetivo - estratégico ao que parece - foi concretizado: “lim
par” de suas últimas favelas o entorno da área central... (Não foi à toa
que a primeira “vila de ofícios” , cujas primeiras 21 habitações foram
entregues em 1995, foi a Vila Pinto, localizada a somente dois quilô
metros do Centro.) Devido à carência de financiamento, o programa
perdeu impacto e, dez anos depois, nem sequer foi mencionado no
Plano Municipal de Habitação e Habitação de Interesse Social elabo
rado pelo IPPUC e pela COHAB (cf. IPPUC/COHAB, 2006).
Por outro lado, muito embora Curitiba esteja longe de represen
tar uma metrópole com tecido sociopolítico-espacial claramente
fragmentado, um esboço de fragmentação, já observável em função
tanto da formação de territórios ilegais quanto da complexificação da
auto-segregação, pode, todavia, ser constatado (ver, sobre isso,
SOUZA, 2000). Por mais que essa incipiente fragmentação empali-
deça diante do quadro do Rio de Janeiro ou de São Paulo, ela não
deve ser subestimada. Até certo ponto, Curitiba pode ser usada coma
um exemplo de um tipo de cidade em que não se pode falar ainda do
uma fragmentação muito evidente do tecido sociopolítico-espacial,
ao mesmo tempo em que, inexistindo um estilo de gestão e planeja
mento aberto à participação popular e verdadeiramente comprometi
do com objetivos redistributivos, concorre para tomar o nível já exis
tente da problemática sócio-espacial do tráfico de drogas suficiento
para criar empecilhos a tentativas sérias de democratização da políti
ca urbana e, às vezes, para criar algumas dificuldades até mesmo para
atividades menos ou mais rotineiras do Estado.
Quando o autor do presente livro realizou trabalhos de campo na
capital paranaense (em meados de 1994 e, novamente, em meados de
1996), não foi nada fácil obter informações sobre assunto tão delica
do quanto o tráfico de drogas em uma cidade tão ciosa de sua imagem
de “Capital Ecológica” , “Cidade Sorriso” e “Capital de Primeiro
Mundo” (três das nada modestas expressões que recheiam o city-
marketing local). Apesar disso, foi possível colher depoimentos sufi
cientemente reveladores acerca dos efeitos negativos do tráfico de
varejo sobre associações de moradores de favelas (ou, como elas são
chamadas por lá, à semelhança de Porto Alegre: “vilas”). Por exem
plo, uma assistente social que trabalhava para o IPPUC revelou ao
autor, em julho de 1994, que, anos antes, quando de uma eleição para
nomear uma nova diretoria da associação de moradores da Vila
Pinto, os traficantes do local haviam apoiado e tentado eleger uma
das chapas, levando a população a pedir auxílio ao Estado para evitar
que a chapa apoiada pelos traficantes ganhasse as eleições (e, de fato,
ela perdeu). Em 1996, quando de um segundo trabalho de campo na
Vila Pinto (já rebatizada como Vila das Torres), uma freira que
desenvolvia atividades junto à população favelada revelou que o trá
fico continuava presente no local mesmo após a urbanização parcial,
e que funcionários da Prefeitura tinham dificuldades em realizar tra
balhos no local, justamente por causa dos traficantes. Conforme a
entrevistada, tanto a Igreja quanto a Prefeitura haviam já entrado em
atrito com os traficantes devido às atividades que objetivavam retirar
as crianças da delinqüência. Ela informou, ainda, que as duas asso
212
□
ciações existentes na Vila Pinto estariam sob influência de trafican
tes (no momento da entrevista, o presidente de uma delas, aliás, se
achava preso por suposto envolvimento com o tráfico). Não foram
constatados pelo autor, durante os trabalhos de campo realizados
naquela época, problem as enfrentados pelo Programa Vilas de
Ofícios que tivessem ligaçko direta com os efeitos do tráfico de dro
gas, ao estilo dos observados no Programa Favela-Bairro, no Rio.
Entretanto, além de isso não significar que inexistissem problemas, é
fácil conjecturar que eles eram perfeitamente possíveis. Indícios
nesse sentido foram colhidos pelo autor quando uma assessora da
presidência da Fundação de Assistência Social (FAS) comentou que
“[a população] fica meio refém da coisa”; “eles ficam entre a cruz e
a caldeirinha; então eles preferem calar e suportar aquela situação” :
“[p]orque existe um pequeno troco... a proteção... Mas é uma vida de
cão.” E justamente esse “pequeno troco” é que, conforme a entrevis
tada deixou escapar naquela ocasião (junho de 1996), seria responsá
vel pelo medo da Prefeitura de que os moradores da Vila Parolim
rejeitassem a remoção para outra área, conforme teria sido registrado
por outro funcionário durante reunião da qual ela havia participado,
devido à vantagem locacional da favela no que se refere ao tráfico de
drogas:
64 C f . h t t p : / / c e l e p a r 7 c t a .p r .g o v .b r / m p p r / n o t i c i a m p .n s f / 9 4 0 l e 8 8 2 a 18 0 c 9
bc03256d790046d022/27a0afflaa 536d53d83256fcb0063b672?O penD ocum ent
Traficantes da Região M etropolitana de C uritiba estão
matando líderes comunitários que tentam impedir o aliciamento
de menores e a venda de drogas em plena luz do dia. Levan
tamento da Federação de Associações dos Moradores de Curi
tiba e Região Metropolitana mostra que, somente nos últimos
três anos, 19 presidentes de associações de moradores que pres
tam serviços voluntários em bairros de periferia foram mortos.
(...)
Diante dos crimes em série contra dirigentes de associações
(somente este ano foram quatro mortes), muitos estão mudando
de endereço até três vezes por ano ou deixando o estado. Com
medo, líderes comunitários estão pedindo destituição do cargo.
(...) Nos dois últimos anos, 15 dirigentes deixaram o serviço
voluntário em regiões violentas após ameaças
214
□
provavelmente como resultado de uma mistura de persistência de
conflitos não-urbanos em muitos m unicípios, como aqueles pela
posse da terra, com o surgimento de novas dinâmicas sócio-espaciais
que propiciam a incidência de formas de violência tipicamente urba
nas, decorrentes do crescimento de cidades médias e de uma mescla
de modernização com manutenção de assimetrias sócio-espaciais.
Por outro lado, apesar de todo esse aumento de complexidade,
há uma escassez de iniciativas que, ainda que com limitações, bus
quem ultrapassar os reflexos, em matéria de políticas públicas, da
polêmica entre “redistributivistas” e “institucionalistas” . Na escala
nacional, como apontou Luiz Eduardo Soares acerca do Programa
Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), lançado
em agosto de 2007 pelo Governo Federal, o que se tem não é uma
verdadeira política de segurança com unidade sistêmica, mas sim um
conjunto fragmentário de propostas, ainda que, aqui e ali, potencial
mente útil: “[o] Pronasci resigna-se a ser apenas um bom plano des
tinado a prover contribuições tópicas.” (SOARES, 2007:94)
A literatura internacional traz alguns exemplos interessantes de
iniciativas de tratam ento integrado do problema da insegurança
pública. Na África do Sul, país assolado por altíssimas taxas de cri
mes violentos, há uma pletora de programas com objetivos e de por
tes variados, alguns desenvolvidos em parceria com entidades e
governos estrangeiros (ver KAGEE e FRANK, 2005; DPLG e GTZ,
2005). Um dos projetos dignos de menção é o de violence prevention
through urban upgrading em Khayelitsha, uma township localizada
a 27 quilômetros da Cidade do Cabo (vide KREDITANSTALT FÜR
WIEDERAUFBAU e CITY OF CAPE TOWN, 2002). Khayelitsha
apresentava uma população de cerca de 420.000 habitantes no ano de
2001, com pelo menos 33% da população em idade de trabalhar
desem pregada.65 Apesar de uma significativa heterogeneidade
215
■
socioeconômica intema em Khayelitsha, a maior parte da população é,
a exemplo das outras townships sul-africanas, pobre, e uma grande par
cela mora muito precariamente em áreas de ocupação ilegal. Diferen
temente de abordagens mais tradicionais de slum upgrading, excessiva
mente concentradas em soluções meramente urbanísticas, a experiência
de Khayelitsha baseia-se na utilização de melhoramentos físicos/infra-
estruturais como um pano de fundo, no âmbito de um programa nacio
nal de “renovação urbana”, ao mesmo tempo em que diversas iniciati
vas são tomadas para tentar lograr uma redução da violência. O eixo em
tomo do qual gira o projeto é a idéia dos safe nodes, pontos no espaço
onde, graças a uma integração de serviços públicos (incluindo transpor
te) e policiamento comunitário, seriam evitadas situações de risco.
Nesse contexto, medidas usualmente associadas à estratégia dos defen-
sible spaces, como atenção para com as condições de iluminação, não
deixam de ser consideradas (cf. KREDITANSTALT FÜR WIEDE-
RAUFBAU e CITY OF CAPE TOWN, 2002:81,86,90), mas o enfo
que, nesse caso, não parece padecer de sabor xenofófico.
O projeto de Khayelitsha ainda estava, em 2005, em fase de
implementação, não sendo ainda possível fazer um balanço. Apesar
disso, deve-se notar que a idéia dos safe nodes, por interessante e pro
missora que seja, possui, apesar de pragmática, um alcance restrito -
como ocorre com a intervenção no Morro das Pedras, em Belo
Horizonte, sob os auspícios do Programa Fica Vivo, e como, aliás,
inevitavelm ente ocorreria com qualquer programa pontual desse
tipo. Experiências como essa, contudo, em que se percebe uma certa
consistência em integrar medidas de naturezas distintas - provisão de
infra-estrutura, programas sociais e, no que tange especificamente ao
policiam ento, não somente um community policing mas também,
mais amplamente, um enfoque no estilo community safety 66 con
trastam com situações como a do Rio de Janeiro (e de outros estados
o núm ero de 600.000, mas mencionam estim ativas que chegam a 1,5 m ilhão de habi
tantes. Q uanto aos dados sobre desem prego, K R E D ITA N ST A LT FÜ R W IED ER-
A U FBA U e CITY O F CA PE TOW N (2002) registram que “other sources speak of
o ver 60% ” (pág. X).
66 E n q u an to o p o liciam en to co m u n itário , m esm o rep resen tan d o um a p ro p o sta de
m aior e m elhor integração entre os cidadãos/usuários e a instituição policial, geral
m ente constitui um a estratégia e um a form atação especificam ente desta últim a, a abor
216
□
brasileiros também), em que o comportamento da Polícia Militar
pode ser descrito, para usar a terminologia empregada por SKOLNIK
e BAYLEY (2002:61), como “patrulhamento preventivo agressivo”
(ou melhor: Wperagressivo), sobretudo em áreas faveladas.
Agora, algumas poucas palavras sobre a controvertida experiên
cia de Bogotá. As taxas de criminalidade violenta decresceram sig
nificativamente na capital colombiana na segunda metade dos anos
90, o que tem sido freqüentemente atribuído à estratégia de seguran
ça pública aplicada pelos prefeitos Antanas Mockus e Enrique
Penalosa, baseada em ampla disseminação da informação, em uma
melhoria da comunicação entre a administração pública e a popula
ção e em rotinas de accountability. No entanto, objeções têm sido
levantadas contra o que parece ser uma superestimação da relação de
causa e efeito entre aquela estratégia e a queda das taxas de crimes
violentos. Um dos trabalhos que põem em dúvida essa relação causai
é o estudo de Pablo Casas Dupuy e Paola González Cepero (DUPUY
e CEPERO, 2004), que mostraram convincentemente, entre outras
coisas, que já havia, pouco antes do início da implementação da alu
dida estratégia em Bogotá, uma tendência nacional de redução da
criminalidade violenta, perceptível também em outras cidades do
dagem m uitas vezes conhecida por community safety baseia-se em um a am pla rede de
atores e responsabilidades (ver, sobre isso, EDW ARDS e B EN Y O N , 2000). É possí
vel entender o policiam ento com unitário, desse ponto de vista, com o fazendo parte ou
devendo fazer parte de um enfoque mais abrangente por parte do E stado no cam po
estrito da segurança pública, em vez de vê-lo com o um non plus ultra em m atéria de
política de segurança pública participativa e com accountability. A inda que o commu
nity safety approach m ereça, em grande parte, as mesm as ressalvas endereçadas ao
policiam ento com unitário (risco de aum ento da fragm entação do tecido sociopolítico-
espacial), além de um outro tipo de ressalva m ais específica, concernente às questões
e riscos inerentes a um alegado “com partilham ento de responsabilidades” com a socie
dade civil (transferência, por parte do Estado, de certos ônus e responsabilidades adm i
nistrativos e p o lítico -im ag élicos para organizações da sociedade c iv il), da m esm a
form a se pode inserir essa abordagem em um contexto em que ela seja valorizada não
com o “a ” resposta, m as com o parte de uma resposta pragm ática. L ogo, em bora mais
ab ran g ente q u e o p o liciam en to c o m u n itário em si, m esm o o com m unity safety
approach deve ser encarado com o um a política de segurança pública que precisa ser
integrada a vários outros tipos de políticas públicas, em várias escalas, caso se queira
lograr um a m elhoria substancial e duradoura em m atéria de desenvolvim ento sócio-
espacial.
país. Mesmo que não seja o caso de negar que a referida estratégia
tenha dado alguma contribuição ao longo do tempo, o que os dois
mencionados autores demonstram é que os níveis de criminalidade
em Bogotá, no geral, apenas retomaram aos níveis “normais” ante
riores ao atípico período de altíssima violência que vai de 1984 a
1991 (entre 1960 e 1984 a taxa de homicídio média foi de 25 por
100.000 habitantes, e é a esse patamar que a taxa retornou, depois de
ter alcançado níveis três vezes mais altos na segunda metade da déca
da de 90). Mais uma vez se vê, pelo exemplo de Bogotá, o quanto o
assunto da eficácia das estratégias de segurança pública é complexo
e polêmico.
Para concluir este capítulo, é oportuno examinar um outro tipo
de situação concreta, exemplificada pelo caso de São Paulo no come
ço da primeira década do novo século. Verificou-se, em anos recen
tes, uma redução da taxa de homicídio na escala do estado e também
no município de São Paulo, mesmo na ausência de investimentos
maciços em políticas públicas como as advogadas no início deste
subcapítulo. Segundo estudo realizado pelo Ministério da Saúde em
parceria com o Ministério da Justiça (MINISTÉRIO DA SAÚDE,
2007), no estado de São Paulo os homicídios haviam vitimado, em
2000,15.581 pessoas, número que passou a ser de 13.901 em 2003 e
7.274 em 2006. A taxa de homicídio saltou de 42,1 por 100.000 habi
tantes em 2000 para 35,9 por 100.000 em 2003 e 17,7 em 2006. No
que tange, especificamente, à mortalidade por arma de fogo, a taxa
caiu de 50,1 em 2003 para 25,9 em 2006, perfazendo uma redução de
48,3%. A queda de algumas taxas de crimes violentos (homicídios,
seqüestros e roubos de veículos) por anos seguidos renovou o otimis
mo de muitos no tocante à eficácia do receituário “institucionalista”.
Afinal, apesar da presença de uma teia de envolvimento de diversas
entidades (destacadamente ONGs e igrejas) que realizam trabalhos
ditos de “inclusão” em áreas periféricas da metrópole paulistana, o
que salta aos olhos é o fato de que os investimentos públicos na
modernização da polícia e no aumento do número de policiais cons
tituíram o ceme dos esforços de redução da criminalidade violenta no
estado de São Paulo.
218
□
Seja salientado, contudo, em primeiro lugar, que, no que tange
aos homicídios, em especial aos assassinatos por arma de fogo, o que
parece ter-se instaurado é uma tendência nacional de redução dos
índices, e não especificamente própria de um município ou estado. O
número de homicídios no Brasil, que havia sido de 45.360 em 2000 e
atingira seu pico, com 51.043 vítimas, em 2003, foi de 44.663 em
2006. A taxa de homicídio do Brasil como um todo, que em 2000
estava em 26,7 por 100.000 habitantes e em 2003 atingiu 28,9, em
2006 ficou em 23,9. Durante as décadas de 80 e 90 e ainda durante os
primeiros anos do novo século os homicídios cresceram de maneira
contínua, decrescendo ligeiramente depois disso. As taxas de homi
cídio, e mais particularmente de assassinato por arma de fogo, caí
ram, portanto, não somente em São Paulo, mas também em muitos
estados da Federação, inclusive no Rio de Janeiro, onde a taxa de
mortalidade por arma de fogo registrou uma queda de 22,3% entre
2003 e 2006.0 destaque a ser conferido a São Paulo tem a ver, basi
camente, com a expressividade da queda aí registrada (48,3% de
redução na taxa de mortalidade por arma de fogo entre 2003 e 2006),
mas os dados apontam para a necessidade de se compreender a reali
dade paulista nos marcos de processos operando em escala mais
ampla. Outros estados, além de São Paulo, experim entaram um
decréscimo expressivo a respeito do mesmo índice, enquanto que
outros registraram, diversamente, uma piora do quadro. No total,
quatorze outros estados, além de São Paulo, e mais o Distrito Federal,
apresentaram uma evolução favorável, entre eles alguns dos estados
onde o problema se achava cronicamente mais concentrado (Rio de
Janeiro, Pernambuco e Espírito Santo).
Algumas críticas foram endereçadas a esse estudo, como aquela
de que ele teria pecado ao deixar na sombra os homicídios não come
tidos com arma de fogo. Ora, considerando que 70% dos homicídios
cometidos no Brasil são realizados por meio de armas de fogo, uma
objeção desse teor padece de uma certa superficialidade. Não parece
haver margem para muitas dúvidas de que houve, de fato, uma
melhoria quanto a determinados tipos de crime violento, a começar
pelos homicídios - a despeito de todos os usuais problemas com os
dados disponibilizados no Brasil, como a subnotificação e a classifi
cação errônea de óbitos por assassinato como mortes com causa
“indeterminada”. O que precisa ser esclarecido, por outro lado, é: até
que ponto o enfoque “institucionalista” e seu “arsenal” têm sido cor
roborados por essa realidade? Uma análise cuidadosa e exigente das
evidências empíricas não dá margem a qualquer grande otimismo.
O estudo do Ministério da Saúde apontou, como prováveis cau
sas principais dessa melhoria, dois fatores interligados: a razoável
eficácia no recolhimento de armas de fogo, após a aprovação do
Estatuto do Desarmamento, e a existência de uma estrutura munici
pal para lidar com o desafio da segurança pública, habilitando o
município, inclusive, a receber investimentos de recursos oriundos
da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Governo Federal.
Conforme o estudo, foram principalmente os estados e os municípios
que lograram maior eficácia no recolhimento de arma de fogo e que
receberam maior volume de recursos que apresentaram a mais
expressiva diminuição no índice de assassinatos por arma de fogo.
Inversamente, os estados e os municípios nos quais o empenho ou o
sucesso no recolhimento de armas foi menor e que, além disso, rece
beram menos recursos, foram os que apresentaram a evolução mais
desfavorável (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007:9 e segs.). Essa lei
tura tem sido corroborada, ainda que com nuanças e com otimismo
apenas moderado, por diversos estudiosos de segurança pública
(WAISELFISZ, 2007; SOARES, 2007:91).
Um aspecto que não deve passar despercebido, e para o qual o
estudo do M inistério da Saúde aponta, é que as m elhorias mais
expressivas se verificaram nos estados mais problemáticos porque
neles, justamente, se concentraram também os investimentos e os
esforços de cooperação intergovernamental. Apesar disso, se as taxas
de homicídio (e também de seqüestro e roubo de veículos) em São
Paulo diminuíram, as taxas de roubo e furto aumentaram. E o tráfico
de drogas se expande a todo o vapor. Ademais, as taxas de homicídio
permanecem elevadas: em São Paulo, a taxa padronizada para 2006
foi de 18,1 por 100.000 habitantes (a taxa bruta foi de 18,7); no Rio
220
□
de Janeiro, a taxa padronizada foi de 33,4 e a bruta, de 31,7; e n Belo
Horizonte as taxas foram, respectivamente, de 35 e 35,5; em \itória,
de 58,9 e 59,3; em Recife, de 61,5 e 61; em Maceió, de 75,4 e 74,8.
O resumo feito por Waiselfisz é eloqüente:
222
□
faz necessário é que a classe média aprenda a investir simbólica e
praticamente em laços de solidariedade com os pobres, para além da
filantropia e das aproximações midiáticas e de ocasião. E que se
criem as condições para que as intervenções “sociais” do Estado não
se circunscrevam a um assistencialismo de “inclusão” , potencial
mente desmobilizador, que se vem afirmando como um indispensá
vel coadjuvante das ações de figurino “institucionalista” . Isso não é
somente uma precondição para avançar na direção de um desenvol
vimento sócio-espacial profundo, pautado pela oposição à heterono
mia. É, também e mais especificamente, a melhor maneira de evitar
uma deterioração ainda maior do “clima social” .
6. Os “ novos desafios” para
a democratização da cidade
e as lacunas no discurso
e na agenda da reforma urbana
224
□
Por conseguinte, entre as lacunas no discurso e na agenda da
reforma urbana é preciso mencionar, antes de mais nada, a violência
e a criminalidade violenta. Conforme o autor vem insistindo hí anos
(cf. SOUZA, 2000; 2003; 2004), torna-se cada vez mais difíci pen
sar com realismo intervenções estatais em favelas e outros essaços
segregados de grandes e até de muitas médias cidades - “urbaniza
ção”, regularização fundiária, implementação de rotinas consis:ente-
mente participativas - sem considerar e sem enfrentar o desalo da
territorialização e do controle impostos por traficantes de diogas.
Como se não bastasse o estreitamento do horizonte propositi/o no
trato da reforma urbana, os temas pertinentes, como a regularização
fundiária e a participação popular na elaboração e implementação de
planos diretores, seguem sendo freqüentemente abordados como se
os impactos do tráfico de drogas de varejo fossem coisa de sonenos
importância.
Não seria cometer injustiça sugerir que, sob o aspecto da abertu
ra para a incorporação da temática da criminalidade violenta to seu
rol de preocupações profissionais, muitos planejadores e estudiosos
de planejamento e gestão urbanos continuam se comportando como
se vivessem ainda nos anos 70. Somente de uns poucos anos a esta
parte é que vêm sendo notadas maior acuidade e maior coragem a
esse respeito, mas ainda não se trata de uma postura bastante disse
minada, e muito menos se atingiu um patamar operacional.
É bem verdade que, de sua parte, os pesquisadores brasileiros da
área da segurança pública nem sempre dão suficiente atenção à
dimensão espacial. Mas a multiplicação no Brasil, a partir dos anos
90, das pesquisas sobre segurança pública, incluindo alguns relevan
tes estudos sobre “áreas de risco” e a “geografia do crime”, denons-
tra que, apesar de ainda faltar muito por fazer, há, freqüentemente,
uma significativa receptividade potencial da parte dos estudiosos da
segurança pública e da criminalidade para o diálogo com os profis
sionais da pesquisa, do planejamento e da gestão urbanos.6' Para
pela própria existência de cam pos já bem conhecidos e até consagrados, com o a ge-
ography o f crime (típica interface de colaboração entre geógrafos e crim inologistas)
e a environmental criminology, e de outros propostos mais recentem ente, com o a “lo-
pography o f crime" (FELSON, 2002). KOCSIS et al. (2002:44) resum iram da seguin
te m aneira o interesse dos especialistas em segurança pública pela dim ensão espacial:
“ [fjorensic psychologists and crim inologists have long been interested in the geogra-
phical distribution o f crim es. Data on the spatial concentration o f crim es in specific
urban and rural regions are relevant, for exam ple, to the study o f the dynam ics of
crim e rates ( ...) and to the developm ent o f social policy initiatives for allocating
p o lic e an d su p p o rt se rv ices in acco rd an ce w ith d em o n strab le n eed ( ...) . M ore
recently, how ever, the spatial distribution o f the offences o f the individual crim inal
have attracted the attention o f researchers in relation to the issue o f psychological
profiling.” A esses exem plos deve-se acrescentar o interesse pela organização espa
cial em sua materialidade (na escala da construção, da vizinhança e do bairro), repre
sentado pela abordagem CPTED ( Crime Prevention Through Environmental Design)
(ver, sobre isso, C R O W E, 2000). N o Brasil, estudos assinados por especialistas em
crim inalidade e segurança pública que revelam sensibilidade espacial incluem , entre
outros, C A N O (1997) e BEATO e PEIXOTO (2005).
226
□
espacial profunda - como vem ocorrendo, também, com “orçamento
participativo” . É algo que vai além de um “tecnocratismo de esquer
da” por parte de alguns pesquisadores e técnicos; é uma disseminação
de uma espécie de “hipocrisia institucional” em meio a uma conjuntu
ra política e ideológica avessa a ousadias contestatórias (em várias
escalas: internacional, nacional e, geralmente, também local).
Tudo isso remete à necessidade de se compreender o espírito de
um país no qual é necessário pensar duas vezes antes de se crer que o
rótulo de qualquer coisa efetivamente condiz com sua fórmula. Um
país em que a aparência amiúde contradiz (e recobre) a essência; um
país em que o que parece ser não é, e aquilo que não parece ser, de
fato, é. Um país em que quase a metade dos municípios possuía, em
2000, menos de 5.000 habitantes, muitos deles abrigando sedes tão
pequenas e tão dependentes do setor primário da economia que difi
cilmente poderiam merecer a qualificação de “cidades” .68 Um país
em que, em muitíssimas prefeituras, aquilo que o órgão que nominal
mente cuida do planejamento menos faz é um planejamento minima
mente consistente de qualquer ponto de vista técnico. Um país em
que a maioria dos municípios sobrevive economicamente à custa de
transferências obrigatórias e voluntárias dos governos federal e esta
duais - e, em grande parte, com base em emendas de parlamentares
aos orçamentos da União e dos estados, reproduzindo-se assim o
patrim onialism o, o clientelismo e o fisiologismo das relações de
dependência que se alimentam da corrupção e, por sua vez, a retro-
alimentam. Um país em que, para além das situações que envolvem
atividades propriamente criminosas, como a corrupção policial, o
entrelaçamento entre o “legal” e o “ilegal” inclui múltiplas situações
quotidianas e várias nuanças, envolvendo uma infinidade de pessoas
“comuns” que não se vêem e não são vistas socialmente como “cri
minosas” , mas que toleram e se servem de vários tipos de trocas e
relações formalmente ilícitas.69 Um país, enfim, em que laços de
68 É bem verdade, por outro lado, que a população urbana de todos esses m unicípios,
som ada, n ão chegava a 5% da população urbana do país.
*» C o n su lte-se, a respeito, M ISSE (2007). Vale a pena Ier, suplem entarm ente, TEL-
LES e H11RATA (2007).
dependência e fisiológica “lealdade” - no “melhor” estilo da “servi
dão voluntária” sobre a qual discorreu Étienne de La Boétie no sécu
lo XVI - se deixam embeber em um caldo de cultura saturado de dis
simulações, “esperteza” e “jeitinho” , ingredientes de uma mistura
corrosiva que coopta, emascula, entorpece, estupidifica, bestializa,
torna cínico, faz hipócrita. E ao mesmo tempo, nesse mesmo país,
organizações de movimentos sociais realizam, muita vez com notá
vel competência, uma espécie de “planejamento insurgente” e uma
“gestão de territórios dissidentes” . É preciso não perder de vista tam
bém este lado da realidade, no qual desabrocham valores e práticas
que vão na contramão daquilo que coopta, emascula, entorpece, estu
pidifica, bestializa, torna cínico e faz hipócrita. Mas é igualmente
necessário perceber a gravidade das ameaças e pressões a que, em
uma fobópole, estão submetidos os movimentos sociais
Depois desse pequeno desvio, seja aprofundada, agora, a discus
são da questão da regularização fundiária. Na esteira da regulariza
ção de uma dada área, geralmente uma favela, no mínimo dois efei
tos adversos, ligados à presença controladora dos traficantes de dro
gas de varejo, podem ter lugar: 1) em um primeiro momento, uma
regularização tentada em ritmo rápido poderá assustar os traficantes,
ao ameaçar, aos olhos deles ao menos, o seu controle territorial... (e,
se isso ocorrer, que tensões, conflitos e riscos poderão daí advir?...);
2) outra possibilidade, a qual não exclui a primeira, é a de que os tra
ficantes possam, até mesmo, pelo contrário, reforçar a tutela que já
impõem aos moradores, uma vez que poderiam querer posar junto
aos favelados como “beneméritos” que “permitiram” que os títulos
de propriedade fossem distribuídos e que controlaram o processo de
titulação, ao controlarem a associação de moradores. Além do mais,
ao “negociar” com os traficantes a execução do programa de regula
rização (e sem a anuência deles, como já se viu, atualmente nada
acontece na maioria das favelas do Rio de Janeiro, apenas para citar
o principal exemplo...), ou ao fechar os olhos para o fato de que, ao
menos no Rio, eles já controlam a maioria das associações de mora
dores, o Estado os legitimaria. É de se recordar que os traficantes já
realizam uma série de atividades de extorsão junto aos moradores:
228
□
“alvarás” para o comércio nas favelas, cobrança de taxas, “toque de
recolher” ... Como evitar que a regularização fundiária venha a ser
aproveitada e (ab)usada por eles?
É necessário que se atente para algumas questões, toda vez que
se tentar implementar de modo participativo programas de regular -
zação fundiária. No que tange à regularização fundiária das faveks
controladas por traficantes de drogas, é tentador imaginar que, sem
ações que permitam a expulsão destes, seria necessário, no mínimo,
tomar certos cuidados quando da preparação de cadastros, para não
assustar e criar de saída conflitos com os criminosos. Tais cuidados
não eliminam, porém, as seguintes questões: será o cadastro elabora
do recorrendo-se ao auxílio das associações de moradores controla
das por traficantes? Como “separar o joio do trigo” , em matéria ce
associações de moradores, sem ser de modo arbitrário? E quem con
trolará, portanto, quem é morador, e desde quando ? Se os traficantes
o fizerem, distorcerão e desmoralizarão o processo, ao beneficiar
apaniguados e se utilizar disso para exercer ainda maior influência...
Essa é, portanto, uma saída perigosa. Deve-se evitar a ingenuidade
ou o “pragmatismo cínico” , o que exige que não se reconheçam corro
interlocutoras legítimas associações de favelas que sejam, sabida
mente, meras fachadas ou porta-vozes de traficantes. Mas tampouco
é razoável, ético-politicamente, pura e simplesmente ignorar as asso
ciações de moradores. É preciso, então, persuadir os moradores de
que eles necessitam se (auto-)organizar novamente, e de que somen
te nessas condições poderá haver uma co-gestão entre o Podsr
Público e a sociedade civil (micro)local. Será, pois, evidentemente
imperioso oferecer proteção aos moradores para que isso possa ocor
rer; por exemplo, mediante esquemas realmente sérios e inovadores
de policiamento comunitário - por exemplo, na versão já adaptada
concebida por SOARES (2000:287 e segs.), os “batalhões comunitá
rios” da Polícia Militar. Mas isso não é fácil, porque os moradores de
favelas temem, e com razão, a polícia (e, também não sem razão,
muitas e muitas vezes têm mais medo da polícia que dos próprios
bandidos). Isso remete, portanto, à tarefa dificílima e imprescindível
de uma reestruturação da polícia, sem a qual esforços de passar uma
imagem diferente dela simplesmente não serão convincentes.
Além do mais, é preciso que medidas referentes à geração de
ocupações e renda sejam consistentemente implementadas, conforme
já se salientou no subcapítulo 5.3, uma vez que o tráfico de drogas é
um fator de geração de renda dentro das favelas - e não apenas para
aqueles mais diretamente envolvidos com essa atividade (SOUZA,
2000:61 e segs.). Por essa razão, uma asfixia do comércio de drogas
ilícitas desacompanhada do oferecimento de um sucedâneo minima
mente atraente poderá ter “efeitos colaterais” sérios para a própria
classe média, como o extravasamento ainda maior da violência e da
criminalidade para a “cidade formal”, com um incremento do núme
ro de crimes violentos como roubos e seqüestras.
Os pontos levantados nos dois parágrafos anteriores sugerem
que, se se quiser que o processo seja realmente participativo, será
necessário fazer com que a regularização fundiária e a urbanização
sejam, de fato, asseguradas com o auxílio de “medidas flanqueado-
ras” de vários tipos. Sem isso, o fracasso será altamente provável. E
a tarefa se mostra ainda mais espinhosa quando se reconhece a neces
sidade de conduzir as várias ações (mobilização popular, garantias de
proteção para a população, regularização fundiária, obras de urbani
zação, introdução de programas de geração de ocupações e renda) de
maneira concomitante e concertada. Por mais que a realização de
tudo isso seja difícil, fazer a “lição de casa” pela metade pode ter
conseqüências nefastas e mesmo desastrosas, como criar uma situa
ção pouco durável, ou permitir que os traficantes, não sendo desalo
jados ou enfraquecidos, venham até mesmo a se aproveitar da inter
venção estatal para legitimar-se e fortalecer-se ainda mais.
Ora, se há um risco de interferência e cooptação por parte dos tra
ficantes, é preciso reduzi-lo ao máximo. No que se refere à interferên
cia, pode-se imaginá-la ocorrendo, conforme já se disse, junto a pro
cessos de cadastramento de famílias, os quais os traficantes poderiam
tentar manipular com o objetivo de privilegiar ou dar cobertura a ami
gos e protegidos, oriundos de outras favelas. Quanto à cooptação, ela
tem a ver, mais especificamente, com a possibilidade de os traficantes,
longe de se oporem à regularização (embora alguns até possam fazê-lo,
230
□
por algum tipo de medo), virem a tentar capitalizar o processo,
apresentando-se perante os moradores como “mediadores”: “foi feito
porque nós deixamos...” seria um epítome dessa tentativa de coopta-
ção, expressão de um neoclientelismo em que criminosos se interpõem
entre o Estado e a população pobre, com a conivência do primeiro. É
evidente que isso, no longo prazo, desmoraliza e enfraquece o Estado,
como foi ressaltado no subcapítulo 2.2, sem que, por outro lado, tenha
qualquer efeito em matéria de “empowerment" do conjunto dos mora
dores das favelas: os grandes fortalecidos são os traficantes.
Ainda sobre a regularização fundiária, cabe aprofundar e deta
lhar um pouco mais o que se expôs anteriormente. Qual é o risco de
fortalecimento adicional dos traficantes na esteira da conversão de
favelas, juridicam ente, em “condomínios” , como decorrência da
aplicação do dispositivo da usucapião coletiva previsto na Lei
10.257/2001 (Estatuto da Cidade )?70 Como evitar que isso possa ser
utilizado em benefício dos criminosos, como cobertura para um pro
cesso de formação de enclave? Isso não invalida, em hipótese algu
ma, a utilização do instrumento. De mais a mais, o argumento de que,
uma vez declarada uma favela como “condomínio” , “a polícia não
poderia mais entrar” , é, se absolutizado, frágil, visto que, em uma
cidade como o Rio de Janeiro, as relações com a polícia j á são assim
(ou seja, a polícia já “não entra” em muitas favelas, por temor, e,
quando “entra” , ou entra de modo atrabiliário e bestial ou, então, sob
a forma de grupos de policiais para submeter os próprios criminosos
a extorsão). Não se trata, obviamente, de relativizar a importância da
regularização. No entanto, é preciso cuidar para que um instrumento
importantíssimo não venha a ser desvirtuado. O que é necessário é
prevenir efeitos indesejáveis. É uma tolice preconceituosa presumir
que a constituição do “condomínio” de que fala o Estatuto da Cidade
facilitará um tal “fechamento” a ponto de significar que as favelas se
tornarão invioláveis “antros de crim inosos” , garantidos por lei
(SOUZA, 2004:259). Um instituto jurídico socialmente tão impor
tante como a usucapião coletiva, concebido para dar suporte a medi
232
□
auto-segregação, ela venha a ser fraca e complacente. O que os
defensores da reform a urbana têm a dizer a respeito da auto-
segregação, afinal de contas? Ela também é, no longo prazo, urn pro
blema dos mais sérios, como já antevia Carlos Nelson Ferreira dos
Santos no começo da década de 80, conforme já se mostrou capítulos
atrás. Um problema que está colaborando para que a própria idéia de
“cidade” vá sofrendo uma mutação, como o autor deste livro susten
tou em trabalho anterior (SOUZA, 2000:217).
Os empresários do setor imobiliário brandem o argumento de
que, enquanto o problema da falta de segurança pública não for solu
cionado, não se pode impedir a classe média de buscar proteção do
jeito que ela puder - argumento que, obviamente, é respaldado pela
mentalidade e pelas práticas de grande parte da classe média brasilei
ra (e, evidentemente, não só da brasileira). Realisticamente, será
muito difícil combater a auto-segregação e persuadir a classe nédia a
dela abrir mão sem que os níveis de criminalidade violenta baixem
antes significativa e sustentadamente - o que remete não ap;nas à
discussão da regularização fundiária e de suas “medidas flanqieado-
ras” (inclusive aquelas diretamente relativas à segurança pÚDlica),
mas também, de modo bem mais abrangente, às injustiças e aos pro
blemas sócio-espaciais do “criminógeno” capitalismo contenporâ-
neo, em particular das suas versões (semi)periféricas.
Por fim, a “cidade vigiada” também é um gigantesco cesafio
para a democratização das cidades e a (re)vitalização de urra vida
pública e dos espaços públicos... Além do mais, passa-se muitas
vezes a impressão de que a proliferação de câmeras de monitoiamen-
to e as restrições à privacidade e à mobilidade dos cidadãos seriam
um inevitável preço a ser pago pela segurança. Inevitável?!...
Para além de certas questões específicas sugeridas pela ‘cidade
vigiada” , pode-se formular a seguinte questão geral: como aunentar
a segurança sem diminuir a liberdade dos cidadãos? Essa é una per
gunta importante e legítima, o que não significa que os temores de
muitas mentes anticonservadoras, ainda que não sejam despdos de
fundamentação ou legitimidade, devam redundar em uma intderável
posição de “tabuização” da segurança pública, conforme 'em -se
argumentando insistentemente neste livro. O que é im pentivo é
construir e lutar para implementar uma “solução não-hobbesiana”
para o quadro “quase-hobbesiano” das fobópoles, tão profundamen
te marcadas por uma “guerra civil molecular” , por um “viver-nos-
limites-da-sociabilidade”. O que é imperativo é construir uma solu
ção que não apele a um Leviatã - ou, mais precisamente, que não
venha a propor o recrudescimento da função coercitiva do Leviatã já
existente.71
234
□
7. As m últiplas escalas do problem a
(e da solução)
Por mais supérflua que ela possa parecer, faz sentido colocar a
pergunta: qual é, exatamente, o problema para o qual se busca uma
solução?
A pergunta faz sentido porque, em parte, se trata de uma questão
de expectativas. Como o autor já disse em um texto de divulgação, a
resposta à questão acerca do que se pode fazer para combater a vio
lência urbana depende, em larga medida, do grau de ambição e da
escala de m udança que se tem em mente (SOUZA, 2006a: 136 e
segs.). Isso remete, para além de todas as controvérsias propriamen
te analíticas e teóricas, a divergências de natureza política. Pode-se,
para simplificar, e a título de exercício intelectual, trabalhar com qua
tro “níveis” : 1) eliminar a criminalidade violenta no Brasil (e no
mundo), completamente e de uma vez por todas; 2) eliminar a crimi
nalidade violenta motivada ou estimulada por fatores socioeconômi-
cos ou outros fortemente vinculados ao caráter “criminógeno” do
modelo sócio-espacial capitalista; 3) reduzir drasticamente as taxas
de crimes violentos e a sensação de insegurança e medo; 4) minorar
um pouco o problema e “administrar a crise”.
“N ível” 1 . 0 objetivo de eliminar a criminalidade violenta com
pletamente e de uma vez por todas é, seguramente, irrealista e mesmo
ingênuo. E mais: é, ainda por cima, um objetivo enganoso. Mesmo
que fossem suprimidas algumas grandes fontes de alimentação de
determinados tipos de conflitos propriamente sociais, tais como desi
gualdade de classes, racismo e intolerância cultural ou política, con
flitos interpessoais certamente continuariam existindo, e pelas mais
diferentes razões: ciúmes, inveja, mal-entendidos... Eliminar inteira
m ente qualquer tipo de crime violento seria algo extremamente
improvável mesmo em hipotéticas sociedades hipertotalitárias, tais
como aquelas representadas pelas antiutopias expostas nos romances
1984, de George Orwell, ou A dm irável mundo novo, de Aldous
Huxley. Se existissem anjos, possivelmente entre eles reinaria a mais
absoluta harm onia - uma eterna e perfeita harmonia celestial...
Entretanto, as preocupações do autor deste livro são terrenas, e não
transcendentais ou metafísicas.
No entanto, indague-se: uma sociedade sem conflitos, caso fosse
possível (o que, felizmente, não é realista esperar), só seria viável,
talvez, na base de uma domesticação e de uma uniformização plenas
das personalidades e das vontades. Isso não seria um Paraíso
Terreno; seria, isso sim, uma sociedade de autômatos (a propósito:
haveria algo mais monótono e enfadonho que o Paraíso bíblico?...). É
bem verdade que se pode imaginar, por pura hipótese, uma socieda
de que, apesar de fundamentalmente justa e tolerante, não desconhe
cesse inteiramente os conflitos, sobretudo não aqueles de tipo inter
pessoal, e que, apesar disso, tivesse características tais que evitariam
que o dissenso (e a cobiça, a inveja, o ciúme...) dessem ensejo à vio
lência e a crimes violentos (crimes passionais, assassinatos políti
cos...). Uma sociedade, por assim dizer, na qual o “agir comunicati
vo” habermasiano pudesse florescer sem grandes entraves e grandes
distorções. Uma sociedade basicamente autônoma seria, aliás, prova
velmente, assim. Não obstante, mesmo que a inexistência de profun
das e estruturais assimetrias de poder e riqueza colaborasse enorme
mente para reduzir as tensões, dessa forma contribuindo até mesmo
para reduzir os conflitos de tipo interpessoal, seria pouco razoável
esperar alguma coisa como uma eliminação completa da violência
(inclusive física) associada à transgressão, aqui e ali, do nóm os,
mesmo que esse nómos tivesse sido acordado pelo corpo de cidadãos
de modo radicalmente democrático. Em uma sociedade complexa,
mesmo a superação da heteronomia não poderia, jamais, garantir a
extirpação total da possibilidade de algum “Caim” matar, por alguma
razão torpe ou vil, seu irmão “Abel” .
236
□
“N ível” 2. No tocante à meta de eliminar a criminalidade violen
ta motivada ou estimulada por fatores socioeconômicos ou outros
fortemente vinculados ao caráter “criminógeno” do modelo sócio-
espacial capitalista - bem, essa é uma meta difícil, somente cogitável
no longo ou longuíssimo prazo, mas não é fantasista. É evidente que
uma transformação digna de nota terá de vir de mãos dadas com uma
mudança sócio-espacial radical, ultrapassando-se o modo de produ
ção capitalista e a “democracia” representativa.
Como parte de sua “lógica” imanente, o capitalismo produz não
somente riqueza, mas também desigualdades. E, portanto, pobreza,
ao menos relativa. Ele gera não somente oportunidades de consumo
mas, também, desemprego estrutural e tecnológico e, por conseguin
te, privação. Ele não somente propicia alegria e diversão para alguns
(ou para muitos, dependendo do país e da região a que nos estivermos
referindo), mas também frustração e ódio para outros tantos, ou para
muitos (ou muitíssimos, dependendo, mais uma vez, do país e da
região). O modelo social capitalista é ótimo para produzir riqueza,
mas péssimo para distribuí-la com eqüidade.
Quanto à “democracia” representativa, ela eqüivale, na prática, a
uma tutela das elites governantes sobre os governados. Os “represen
tantes” , escolhidos por um processo filtrado pela assimetria de poder
derivada da concentração de riqueza e da muito desigual influência
sobre os meios de comunicação de massa, recebem quase que um
“cheque em branco” dos eleitores. É esse, no fundo, o espírito do
assim chamado “mandato livre”.
Têm ocorrido, em vários países, esforços de introdução de ele
mentos de democracia direta, conquanto os casos de tentativas real
mente consistentes - isto é, que vão nitidamente além das meras
informação e consulta à população - pareçam bem minoritários (ver,
sobre esse tema, SOUZA, 2006b). Essas tentativas se dão, geralmen
te, em escala local, no planejamento e na gestão das cidades. Em
nível nacional, institutos jurídico-políticos como plebiscitos e refe-
rendos se acham previstos em muitas constituições, mas não passam
de um “tempero” que, nem de longe, chega a alterar o característico
“sabor” da “democracia” representativa. Em escala regional ou sub-
regional, tampouco se pode falar de experiências que tenham real
mente obtido êxito (a implementação do orçamento participativo em
escala estadual, como ocorreu no Rio Grande do Sul sob o governo
de Olívio Dutra, não foi muito feliz). Seja como for, mesmo em esca
la local e na presença, aqui e ali, de rotinas sérias e arrojadas de par
ticipação popular (como em Porto Alegre, especialmente na década
de 90), o contexto geral e dominante permanece sendo o sistema
representativo.
No âmbito do binômio capitalismo + “democracia” representati
va, o enfoque hegemônico em matéria de combate à criminalidade
violenta ainda é o “institucionalista” , seja em suas formas mais
“puras” (como a abordagem conhecida como “tolerância zero”), seja
em suas modalidades mitigadas pela preocupação em implementar,
ancilar ou subsidiariamente, “programas de promoção social” , even
tualmente combinadas com formas “soft” de policiamento (como o
community policing). As medidas tipicamente repressivas, em parti
cular, parecem ser aquelas de mais fácil digestão pelo “sistem a”:
aum entar o número de policiais e treiná-los e armá-los m elhor,
melhorar os sistemas de “inteligência” e prevenção ao crime, endure
cer as penas, lotar as prisões já existentes e construir novas... Além
disso, elas têm contado, muitas vezes, com o apoio de uma classe
média atemorizada, em vários países.
O receituário “institucionalista” não é, porém, verdadeiramente
promissor, conforme já se argumentou mais atrás neste livro. Por
outro lado, as mudanças sócio-espaciais que seriam necessárias para
instaurar, em escala abrangente, instituições sociais não-“criminóge-
nas” , isto é, que não dêem ensejo à produção maciça de assimetrias
materiais, de predisposições social-psicológicas e de um padrão de
subjetividade propícios a fazerem prosperar frustrações, ressenti
mentos coletivos, atitudes agressivas e pseudo-soluções individualis
tas, não estão nem sequer à vista, no momento. Mas isso não signifi
ca que seria absurdo ou “anticientífico” postular que essa mudança,
de toda maneira, está posta como uma possibilidade. Pelo contrário:
“anticientífico” seria ignorar que nenhuma instituição social é eterna
e definitiva, e que a história segue o seu curso, ao longo do qual
238
□
mesmo os impérios mais sólidos entram em colapso e desmoronam,
e mesmo as instituições mais duradouras conhecem o fim. É claro
que não se pode prever como e quando isso ocorrerá; equívocos pre-
ditivos, cometidos nos séculos XIX e XX sobre as bases de uma
visão teleológica e excessivamente otimista, têm, quando menos, o
valor de reforçar a imunização contra tentações dessa natureza. Por
ora, na verdade, não se vê nem muito bem que rumos a coisa poderia
tomar, ainda que as contradições estejam a agravar-se em todas as
escalas, mostrando que, “objetivamente” , pensar em uma superação
do status quo econômico e político faz muito sentido, não só ética
mas também politicamente. Até porque, igualmente, faz muito senti
do colocar a questão de saber se e em que condições a espécie huma
na sobreviverá ao binômio capitalismo + “democracia” representati
va, que não apenas é profundamente “criminógeno” mas, ainda por
cima, também antiecológico.
É lógico que uma maior justiça distributiva e uma eliminação da
separação entre dirigentes e dirigidos não significa que a violência
primariamente motivada por causas étnicas e culturais (intolerância,
racismo etc.) automaticamente também desaparecerá. Além disso,
neuroses e outras psicopatologias continuarão existindo; a violência
não será banida da face da Terra em meio à instauração de algo como
uma perpétua harmonia... Repita-se, retomando a metáfora bíblica: a
instauração de uma sociedade pós-capitalista, fundamentalmente
mais justa, não im pediria que algum “Caim” matasse seu irmão
“Abel”. Entretanto, reduziria enormemente a chance de que a moti
vação do assassinato tivesse algo a ver, direta ou indiretamente, com
exploração, opressão e alienação social sistem áticas - e isso já é
muito.
“N ível” 3. Se, por acaso, o objetivo for o de reduzir drasticamen
te as taxas de crimes violentos e a sensação de insegurança e medo,
tendo por meta “pragmática” deixar para trás o “clim a de guerra
civil” que hoje se faz presente, segundo a percepção popular, em
metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo, por meio de uma redu
ção substancial da criminalidade violenta e de um combate aos fato
res da fragmentação do tecido sociopolítico-espacial, então resulta
dos sólidos, ainda que de difícil obtenção, poderiam ser alcançados já
no médio prazo (vale dizer, em uma escala de tempo de alguns anos).
Não é nada trivial combinar medidas institucionais e medidas sócio-
espaciais de largo alcance (redistributivas e outras), conforme suge
rido neste livro. Isso é válido especialmente para um país semiperifé-
rico como o Brasil, no qual, por força de restrições externas (serviço
da dívida externa e medidas de “ajuste estrutural” exigidas por agên
cias internacionais como o FMI) e obstáculos internos (para começar,
patrimonialismo e corrupção generalizados), a margem de manobra
econômica para os investimentos maciços que se fazem imperiosos é
restrita. Em cidades como o Rio de Janeiro ou São Paulo, então, o
desafio é particularmente grande: não se trata, nesses casos, de evitar
a fragmentação do tecido sociopolítico-espacial ou o seu agravamen
to além dos limites do “tolerável”, mas de reverter um quadro já há
muito tempo instalado e há muito tempo intolerável. Perseguir algo
menos que isso, porém, é que não seria realista.
“N ív e l” 4. Por último, caso o objetivo seja tão-somente o de
minorar um pouco o problema e “administrar a crise”, então, nesse
caso, incorrer-se-á em um equívoco: providências paliativas, ao
meramente adiarem um enfrentamento, fazem com que o problema
se agigante mais e mais. Contentar-se com isso, saudando com espe
rança medidas institucionais desacompanhadas de ações de largo
alcance sócio-espacial, corresponde a apostar em uma falsa solução.
O presente autor não alimenta qualquer veleidade quanto a ima
ginar que medidas como aquelas expostas no subcapítulo 5.3 elimi
narão a violência e a criminalidade violenta, seja nos espaços segre
gados, seja nas cidades em geral. Tome-se o caso do tráfico de dro
gas e seus efeitos: sendo um fenômeno verdadeiramente global em
sua logística, ele não poderá, jamais, ser combatido meramente por
meio de providências de alcance local ou (sub-)regional. Aliás, nem
mesmo uma ação concertada entre os níveis de governo local, esta
dual e nacional seria suficiente. Enquanto certos fatores do tráfico de
drogas, a começar pelas facilidades para a lavagem de dinheiro em
escala internacional, não forem adequadamente enfrentados, o pro
blema permanecerá gerando sofrimento nas cidades do Brasil e de
240
□
muitíssimos outros países, centrais e (semi)periféricos. O máximo
que se pode esperar (e que não é tão pouco assim) é que medidas
como as propostas naquele subcapítulo, uma vez implementadas com
consistência, possam traduzir-se em um enfraquecimento do poder
dos traficantes de varejo em nível local, por interferir diretamente em
suas bases espaciais e sociais de apoio logístico e recrutamento. Ao
mesmo tempo, o sucesso das organizações de movimentos sociais em
impedir que o crime e a violência as bloqueiem e desfigurem pode
significar, como se sugeriu no Cap. 3, a diferença entre contar ou não
com a existência, o fortalecimento e a expansão de atores potencial
mente capazes de promover e forçar um desenvolvimento sócio-
espacial digno de nota, na esteira da luta conta as iniqüidades e a
heteronomia. No que concerne a possíveis soluções parciais de curto
e médio prazo para a problemática da violência e da insegurança,
cumpre aceitar que o papel do Estado é muito importante, mas que,
sem a pressão e a ação dos movimentos sociais emancipatórios -
inclusive para cobrar um maior controle dos cidadãos sobre a polícia
e para evitar que a balança penda, cada vez mais, para o lado das
ações estatais repressivas e “duras” - , a construção de uma socieda
de fundamentalmente mais justa transforma-se em um clamor vazio
ou contraditório.
A contribuição de medidas sócio-espaciais como as expostas no
Subcapítulo 5.3 para a redução da criminalidade no curto e no médio
prazos não deve ser nem superestimada nem subestimada; a questão
do “desenvolvimento sócio-espacial como a melhor prevenção” não
deve ser barateada ou distorcida, e precisa ser pensada de modo mul-
tiescalar e considerando diferentes níveis de profundidade. Menos
prezar e até minimizar a importância da redução da pobreza e das
desigualdades e da implementação de políticas públicas voltadas
para a satisfação de necessidades básicas (materiais e imateriais) não
é, no limite, uma mera questão de posicionamento político e teórico,
mas de miopia: afinal, até mesmo em uma escala espacialm ente
muito acanhada (microlocal: uma favela, por exemplo) e dentro de
limites não muito ambiciosos, já há evidências empíricas que susten
tam que programas bem desenhados e adequadamente implementa
dos, com a finalidade de reduzir a criminalidade violenta na esteira
do desenvolvim ento urbano, podem gerar resultados nada des
prezíveis. O problema é que, conforme se disse no subcapítulo 5.3,
ao serem brevemente focalizados alguns exemplos nesse sentido, os
limites de tal tipo de experiência são estreitos - e nem poderia ser
muito diferente.
Quando se lida com uma escala meso ou macrolocal - uma cida
de ou uma metrópole como um todo a coisa muda um pouco de
figura. Conforme se ressaltou no subcapítulo 5.3, embora políticas
públicas como um orçamento participativo arrojado e consistente não
tenham o condão, tomadas isoladamente, de neutralizar fatores e pro
cessos que amiúde se originam e operam em escalas supralocais, a
ação conjugada de programas e políticas públicas de tipos variados
(como, precisamente, os cinco blocos mencionados no referido sub
capítulo) pode gerar uma sinergia pródiga em matéria de impactos
positivos dignos de nota.
Políticas públicas em si mesmas consistentes no curto e no
médio prazos podem, no longo prazo, revelar-se incoerentes e até
mesmo nocivas em face de propósitos mais ambiciosos que a simples
“reforma” do “sistema” , uma vez que não sejam conscientemente
concebidas para servir a esses propósitos. Em outras palavras, sua
finalidade não pode esgotar-se nos benefícios mais ou menos imedia
tos que podem trazer. Pelo contrário: elas devem colaborar para acu
mular forças para novos avanços e para rupturas, sob a forma tanto de
ganhos materiais quanto de uma ampliação da consciência crítica e
de direitos e da experiência de (auto-)organização popular. Objetivos
ambiciosos não são necessariamente inimigos do talento para explo
rar vitórias modestas, desde que estas não venham a constituir-se em
armadilhas desmobilizadoras.
A pergunta inteligente, portanto, não é se as medidas sócio-
espaciais preconizadas no subcapítulo 5.3 são relevantes ou não no
curto e no médio prazo. A questão fundamental tem a ver com os
limites maiores ou menores da margem de manobra do Estado e dos
atores da sociedade civil em determinadas escalas e conjunturas e
sob determ inadas condições. Como será a dinâmica econômica e
242
□
política nas escalas supralocais? Será alcançada uma maior coopera
ção intergovemamental? A conjuntura econômica ajudará?...
O papel do Estado local é algo que precisa ser equilibradamente
avaliado. Apesar de alguns êxitos parciais, relatados em SOARES e
GUINDANI (2005), a passagem do cientista social Luiz Eduardo
Soares por Porto Alegre em 2001 (como consultor de segurança
pública do município) parece não ter sido, nem de longe, tão marcan
te quanto fora sua experiência no estado do Rio de Janeiro entre
janeiro de 1999 e março de 2000, quando ele havia sido subsecretá
rio de Segurança e, posteriormente, coordenador de Segurança,
Justiça e Cidadania. Uma das razões, aliás bastante óbvia, é o fato de
que, em Porto Alegre, se lidava com uma escala de governo que, em
face da distribuição de competências formais entre os níveis de
governo no Brasil, é secundária no que tange ao problema da segu
rança pública. Isso não significa, com certeza, que os municípios não
tenham uma contribuição relevante a prestar; eles têm, e ela tanto tem
a ver com investimentos inteligentes na criação ou aprimoramento de
corpos de guarda municipal como com uma dedicação especial ao
que Luiz Eduardo Soares chamou de o “fron t social” (SOARES,
2005:32 e segs.) - ou seja, medidas que reduzam a pobreza e a priva
ção, a vulnerabilidade (sobretudo dos jovens) e a estigmatização.
As terapias para a violência urbana costumam ser, especialmen
te diante da gravidade e da complexidade de um quadro de fragmen
tação do tecido sociopolítico-espacial da cidade e de manifestação
aguda da “guerra civil molecular”, parciais e insuficientes. É seguro
que elas não darão conta da problemática focalizada neste livro. Essa
é a diferença de fundo relativamente a propostas como as contidas
em SOARES (2005) e em alguns outros trabalhos que, mesmo
conhecendo e valorizando (às vezes privilegiando) ações típicas do
ambiente “institucionalista” (reforma do aparato policial e outras),
nem por isso descuram ou menoscabam o “front social” : enquanto
esses trabalhos parecem contentar-se, quanto ao “front social”, com
as providências e as reformas viáveis no interior do status quo (uma
vez que não se explicita e discute o caráter “criminógeno” deste), no
presente livro a ultrapassagem do modelo sócio-espacial capitalista é
o verdadeiro “front”, em relação ao qual todos os outros são, por
assim dizer, simples “trincheiras", ainda que imprescindíveis.
Uma conclusão a que se pode chegar sem dificuldade é a de que é
mais fácil discernir o que não se deve fazer do que encontrar uma solu
ção adequada. O que se pode, de todo modo, assegurar, é que qualquer
coisa que mereça o qualificativo de solução não poderá ser algo como
uma medida simples e isolada, ou mesmo um conjunto de medidas
extraídas de uma única abordagem entre as examinadas no subcapítu
lo 5.2. Tampouco será decorrência de um ato volitivo de qualquer
governante individual, diferentemente do que o lugar comum sobre a
“falta de vontade política” costuma fazer crer. Uma sinergia de muitas
e diferentes providências parece ser imprescindível, e a isso ainda é
bom acrescentar a necessidade de circunstâncias favoráveis parcial
mente dependentes do acaso (ou seja: não basta a virtú, a fortuna tem
de ajudar também...). Um amálgama construtivo das contribuições
tanto de medidas de tipo institucional (como uma completa reforma do
aparato policial, apenas para ficar em um exemplo) quanto de estraté
gias voltadas para a redução da pobreza e de desigualdades sociais é
algo dificílimo de ser executado, sendo a implementação dificultada
por fatores tais como imediatismo, (alegada) escassez de recursos, cor
rupção estrutural e resistência das instituições. Não parece, entretanto,
existir alternativa convincente a essa linha de ação.
Enquanto isso não ocorre, é claro que os administradores públi
cos e os estudiosos identificados com o ideário da reforma urbana e
comprometidos com uma maior democratização do planejamento e
da gestão das cidades não podem ficar de braços cruzados. Apesar do
papel que o acaso sempre desempenha, sinergias se constroem ou,
pelo menos, podem muitas vezes ser induzidas. É preciso evitar dico-
tomias no estilo “pragmatismo” versus “radicalismo” . Ir à raiz dos
problemas não exclui (antes exige) saber valorizar o que é próprio de
cada escala espacial e temporal, com o objetivo de preparar grandes
mudanças com a ajuda, muitas vezes, de mudanças modestas fnorém
associadas a um projeto orientado por metas estratégicas).
O nível político-administrativo local, por exemplo, certamente
possui muitas limitações, mas seria tolice deduzir, com base nisso,
244
□
que ele não possui um potencial relevante e abriga uma margem de
manobra importante. Questões como a melhoria do nível médio de
renda e uma distribuição de renda menos desigual dependem, segura
mente, de ações de grande envergadura e largo alcance, amplamente
remissíveis a processos e decisões atinentes à escala nacional, além
de serem, ainda por cima, fortemente dependentes de fatores concer
nentes ao plano internacional. Não obstante, políticas públicas de
médio alcance, sob a forma de orçamentos participativos e progra
mas de regularização fundiária e urbanização de favelas em que os
aspectos p a rticip a çã o e geração de ocupações sejam seriamente
contemplados, podem oferecer uma contribuição significativa, con
forme já se argumentou no subcapítulo 5.3.
Em cidades ainda não (claramente) fragmentadas sociopolítico-
espacialmente é imperativo fazer o máximo possível para evitar que
o processo se instale e cristalize. Isso pressupõe, por exemplo, que se
combata eficazmente tudo aquilo que consolida a posição dos trafi
cantes de varejo: a pobreza, a estigmatização sócio-espacial, a repres
são policial arbitrária... Daí se conclui, aliás, que a contribuição de
uma conjuntura político-administrativa favorável no nível estadual é
um complemento importantíssimo das ações locais.
Entretanto, mesmo em cidades onde a problemática da fragmen
tação do tecido sociopolítico-espacial já se encontra plenamente ins
talada, como Rio de Janeiro e São Paulo, é possível, talvez, ao menos
estancar e parcialmente reverter o processo, apesar da força de inér
cia das instituições já gangrenadas, das territorialidades já consolida
dos e da atmosfera de medo, desconfiança e ceticismo já instalada.
Mesmo nesse caso, contudo, é lícito conjecturar que não apenas é
necessário tentar algo, mas também que as tentativas podem ser, ao
menos em parte, bem-sucedidas.
Vale a pena registrar que, mesmo no Rio de Janeiro, exemplo
notoriam ente “didático” em matéria de fragm entação do tecido
sociopolítico-espacial, nem todas as favelas se acham controladas
por traficantes de drogas; e, mesmo no caso daquelas por eles territo-
rializadas, nem sempre o relacionamento entre eles e os moradores é
do tipo “duro” (embora esse estilo se tenha disseminado muito), o
que parece oferecer alguma margem de manobra para iniciativas
autônomas dos moradores. Esquemas, rotinas e políticas públicas
com o um orçamento participativo ou um am bicioso programa de
regularização fundiária e urbanização de favelas realmente participa
tivo decerto esbarrarão, freqüentemente, em obstáculos. Isso prome
te ser especialm ente verdadeiro naqueles espaços territorializados
por traficantes em que estes exercem uma dominação tirânica, amea
çando líderes associativos e restringindo ou manipulando as associa
ções de moradores. Em contrapartida, é razoável pensar que em
outros locais, não-territorializados ou frouxamente controlados, as
barreiras a serem vencidas serão bem menores. N ão se pretende
sugerir, com isso , que o êxito em alguns locais possa compensar o
fracasso em outros, mas tão-somente que um “efeito de demonstra
ção” de intervenções estatais bem-sucedidas em favelas onde o pro
blema do tráfico não seja ainda muito grave pode, a médio ou longo
prazo, criar um clima crescentemente desfavorável para os trafican
tes naqueles locais em que a participação popular e as suas conse
qüências positivas se virem bloqueadas. Seja com o for, é preciso
admitir que tudo isso será provavelmente inócuo ou se diluirá, caso
não venham a ser criadas condições para a desterritorialização gra
dual dos traficantes de varejo. Em cidades já claramente fragmenta
das sociopolítico-espacialmente, portanto, de nada ou muito pouco
adiantará experimentar um planejamento e uma gestão urbanos parti
cipativos se estes não forem garantidos por uma política de seguran
ça pública inovadora e democrática - no mínimo como a preconiza
da pelo ex-subsecretário de segurança do estado do Rio de Janeiro,
Luiz Eduardo SOARES (2001), ou ainda mais ousada que ela. Mais
uma vez se constata, assim, a necessidade de uma conjuntura política
favorável na escala estadual, visto que a atuação estatal na área de
segurança pública basicamente a ela remete.
Tendo-se em mente os “níveis de ambição” mencionados no iní
cio deste capítulo, forçoso é reconhecer que são formidáveis as difi
culdades para uma mudança sócio-espacial radical (que faculte a eli
246
□
minação da criminalidade violenta motivada ou estimulada por fato
res socioeconômicos ou outros fortemente vinculados ao caráter “cri-
m inógeno” do m odelo sócio-espacial capitalista: “nível 2”) ou
mesmo “apenas” muito expressiva (que permita reduzir drasticamen
te as taxas de crimes violentos e a sensação de insegurança e medo:
“nível 3”). Um movimento consistente na direção de alguma coisa
construtiva não será - não nos iludamos - uma iniciativa das elites,
nem mesmo, talvez, de grande parte da classe média. Grande parcela
da classe média brasileira (e de outros países semiperiféricos), nota-
damente de seus estratos mais elevados, tenderá, provavelmente, a
continuar se enclausurando em seus “condomínios exclusivos” ,
podendo, no limite, chegar a “bulir com os granadeiros” , cobrando
mais e mais “extravagâncias do Poder Militar”, relembrando a fala de
Castello Branco à qual se fez alusão ao final do Cap. 4. A cobrança
mais decisiva e a principal pressão organizada terão, certamente, de
continuar a vir dos pobres, em aliança com setores mais esclarecidos
ou menos aquinhoados da classe média.
Impõe-se, nesta altura, grifar mais uma vez a importância do
papel dos movimentos sociais e suas organizações, complementando
o que se disse páginas atrás e a análise contida no Cap. 3. É preciso,
inclusive, que, para além da sua capacidade de contestação, mobili
zação e pressão, eles exercitem e aperfeiçoem sua capacidade de pro
posição. Tanto para praticarem a ação direta como para não se dei
xarem cooptar em meio à luta institucional (utilização de canais par
ticipativos instituídos pelo Estado, interlocução com o aparelho judi
ciário do Estado etc.), tanto mais preparadas estarão as organizações
dos movimentos quanto mais aprimorada for a sua capacidade propo-
sitiva. Com efeito, complementar e refinar propostas como aquelas
enfeixadas no subcapítulo 5.3. e no Cap. 6 deste livro não é uma tare
fa que deva ficar a cargo apenas de pesquisadores universitários e
técnicos de órgãos de planejamento e gestão do Estado. Os movi
mentos sociais e suas organizações não podem vir simplesmente a
reboque. Futuros avanços referentes ao “nível 3” provavelm ente
dependerão muito de seu papel proativo; e, quanto ao “nível 2” , per
seguir as condições que propiciem a sua concretização não é algo que
se deva esperar como iniciativa do aparelho de Estado.
Uma questão fundamental a ser enfrentada, e que nos obriga a
considerar certas características e certos limites dos próprios movi
mentos sociais contemporâneos, é a seguinte: a sociedade civil vem
passando por transformações enormes nas últimas décadas e, nas
cidades dessas “sociedades de risco” semiperiféricas, grande parte do
que se vê sabota os sonhos “revolucionários” ou mesmo apenas
“reformistas” das esquerdas mais tradicionais. Quer queiramos, quer
não queiramos, já há um bom tempo não dá mais para construir uma
imagem no estilo do “virtuoso proletariado” , “sujeito da história” ,
bastando, para isso, expurgar moral e politicamente, das camadas
pobres, o “lumpemproletariado” , como o fizeram Marx e Engels
(ver, a respeito, por exemplo, SOUZA, 2000:185 e segs.). O “confor
mismo generalizado” é, aqui e ali, desafiado brilhantemente (Porto
Alegre, do orçamento participativo ao Fórum Social Mundial; os
jovens contestadores da “globalização” ; o protesto do hip-hop...).
Mas não é possível negar que ele predomina. O hedonismo, o indivi
dualismo e os valores conservadores, dos quais uma sociedade civil
intimidada, desesperançosa e na defensiva se toma presa fácil, não
podem ser ignorados e eliminados da análise. É preciso, diante disso:
248
□
de cooptação e domesticação. Avanços possíveis no curto e no médio
prazos, na base de políticas estatais permeáveis à participação popu
lar, podem parecer modestos de um ponto de vista estrutural; porém,
podem ajudar a pavimentar a estrada que aponta para uma perspecti
va de longo prazo. A diferença entre um “reformismo desfibrado”
(sem falar no simples e grosseiro oportunismo eleitoral) e macrorre-
form as com um certo conteúdo estrutural (visto que, se não abalam
as estruturas, pelo menos as afetam e não são a elas indiferentes) pre
cisa ser preservada, para evitar açodamento, sem que para isso seja
preciso “baixar a guarda” em matéria de senso crítico. Macrorrefor-
mas com um certo conteúdo estrutural podem ser, também, entendi
das como “reformas (potencialmente) revolucionárias”, por cavarem
trincheiras importantes que facilitarão e apoiarão investidas cada vez
mais arrojadas no futuro.
250
□
Sem ações de desenvolvimento sócio-espacial, falar em seguran
ça pública acaba tendo, de fato, um sentido conservador... Como,
porém, e em que termos, devem ser concebidas ações de regulariza
ção fundiária, urbanização de favelas e outras, úteis do ângulo do
desenvolvimento sócio-espacial? E como se daria a relação entre as
ações diretamente atinentes à esfera da segurança pública e as
demais? Exemplos concretos já existem, no Brasil e em outros paí
ses, mesmo que imperfeitos e limitados. Alguns foram mencionados
no subcapítulo 5.3. É necessário aprimorar as estratégias que, ainda
que falhas, já se tenham comprovado como positivas, ou mesmo que
se mostrem ainda apenas com o promissoras, e cuidar para que,
tomando-as como fontes de inspiração (mas nunca como “receitas de
sucesso” a serem simplesmente copiadas), a implementação de estra
tégias de espírito similar se tome possível também em outros lugares.
Uma espécie de “policiamento comunitário crítico” , submetido a
amplo controle popular e combinado com medidas com o educação
para a cidadania e discussão dos problemas da cidade, a fim de não
dar ensejo à xenofobia e ao temor histérico direcionados contra os
“de fora” (do bairro), é uma das providências de cunho institucional
que podem vir a ser integradas com várias outras, igualmente discu
tidas no subcapítulo 5.3, a fim de promover avanços já “aqui e agora”
no campo da segurança pública sem aumentar ainda mais a heterono
mia na sociedade.
O Estado pode, ademais, contribuir para enfraquecer e reduzir a
fragmentação na medida em que desestimule a auto-segregação e
estimule a manutenção e o incremento da vitalidade de logradouros
públicos e espaços de encontro com o praças, centros históricos e
CBDs e seus arredores. É preciso resistir ao “abandono” desses espa
ços públicos decorrente do clima de insegurança que neles se vem
instalando em muitas cidades. Note-se que, aqui, muito mais do que
ações propriamente urbanísticas (remodelações do substrato espa
cial), o que é necessário são programas e ações de “recriação” de
imagens espaciais e incentivo à freqiientação daqueles espaços.
É conveniente, no entanto, que a valorização de medidas viáveis
“aqui e agora” seja constantemente temperada pela consciência de
que elas são, e sempre serão, apenas um começo - e isso na melhor
das hipóteses. Vale dizer: quando coerente e ousadamente imple
mentadas. Tome-se novamente um caso dos mais complicados, o do
Rio de Janeiro. Considerando que a lucratividade do tráfico de vare
jo tem apresentado, há vários anos, uma tendência de queda, em
decorrência de diversos fatores (barateamento das drogas, custo da
extorsão e da repressão para os traficantes e perda de territórios
importantes para as “milícias” paramilitares), seria lícito supor que o
tráfico estaria tornando-se menos atraente para os jovens pobres - e
que as atividades legais, ainda que mal remuneradas, estariam
tomando-se mais competitivas. Há razões para pensar que a realidade
não é tão simples assim. Em primeiro lugar, deve-se levar em conta
que, apesar dos pesares, a importância do tráfico como fonte direta e
indireta de renda não parece, globalmente, estar perdendo muita
importância, a despeito da necessidade que os traficantes têm sentido
de diversificar suas atividades, passando a explorar o comércio de
botijões de gás, a cobrar por “alvarás” e “pedágio” etc. Em segundo
lugar, ingressar no tráfico não é somente uma questão de renda, é tam
bém um fator de “poder”, “prestígio” e integração grupai. Tais cons
tatações por si sós bastam para indicar a precipitação de se achar que
estaria ficando muito mais fácil oferecer com êxito medidas puramen
te paliativas como substitutivo para o comércio de drogas de varejo.
Por conseguinte, é seguro que as políticas públicas delineadas,
comentadas e recomendadas nos dois capítulos precedentes e reto
madas neste, as quais seriam relativas às esferas administrativas
municipal e (no caso dos assuntos especificamente vinculados às
polícias) estadual (sem esquecer as necessárias parcerias com a
União), podem, na melhor das hipóteses, reduzir bastante os proble
mas - caso sejam implementadas com muita consistência e muito
arrojo - , mas não, propriamente, superá-los. É muito provavelmente
impossível superar o desafio representado, principalmente, pelo trá
fico de drogas e seus efeitos sócio-espaciais negativos, contando-se
apenas com a margem de manobra econômica e político-institucional
passível de ser aproveitada em um país capitalista semiperiférico
enquanto tal. Por quê?
252
□
) Suponha-se que, como que por magia, fosse possível eliminar o
comércio varejista de drogas ilícitas de uma hora para outra, sem
recorrer ao expediente da legalização (por exemplo, encarcerando
dos pequenos aos grandes traficantes e seus sócios e facilitadores).
O que sucederia? É razoável esperar que grande parcela da popu
lação favelada seria tomada de gradual desespero, uma vez que o
tráfico de drogas de varejo representa, hoje, uma nada desprezível
fonte de renda para muitos dos que residem em espaços segrega
dos - seja direta ou indiretamente (ver, sobre isso, SOUZA,
2000:61 e segs.)- A criminalidade violenta poderia, com isso, par
cialmente “migrar” para a cidade formal, devido ao súbito “de
semprego” de “soldados” , “olheiros”, “vapores” e “endoladores” .
Evidências disso já existem: basta observar o que ocorreu, sempre
que, por alguma razão (como o aumento da repressão), o negócio
das drogas se viu dificultado ou um pouco asfixiado. Pode soar
contra-intuitivo para muita gente, mas é real: ao mesmo tempo em
que o tráfico ilegal de drogas é, em um sentido amplo e profundo,
um problema social (e não apenas policial), ele apresenta, em um
sentido palpável e específico, aspectos de uma perversa “solu
ção” ... Combatê-lo inteligentemente não pode ser feito com base
em mera repressão e encarceramento. Em última análise, é impres
cindível oferecer a reais e, sobretudo, potenciais pequenos trafi
cantes e seus coadjuvantes alternativas econômicas e sociocultu-
rais críveis: ocupações pelo menos razoavelmente bem remunera
das; educação, saúde e lazer; estratégias de desestigmatização e
melhoria da auto-estima coletiva (o que tem a ver, em boa medida,
com intervenções no espaço, sob a forma de slum-upgrading, ofe
recimento de moradias dignas, segurança jurídica da posse etc.). É
realista esperar que isso venha a ocorrer, no médio prazo, nas cida
des brasileiras?... É lógico que, no interior de uma sociedade hete
rônoma, dependendo de como se dê o processo, melhorias como
essas sempre correm o risco de ser manipuladas de modo a estabi
lizar o “sistema” , dificultando rupturas devido ao “amansamento”
dos agentes potencialmente disponíveis para a mobilização e a luta
anti-sistêmicas. Todavia, os eventuais fãs de um enfoque no esti
lo “quanto pior, melhor”, que equivocadamente crêem que o for
talecim ento e a disseminação das “organizações” crim inosas
podem colaborar com a desintegração do “sistema” e sua substi
tuição por um mundo novo e melhor, podem ficar tranqüilos: as
chances de que avanços como os apontados venham a ter lugar a
médio prazo não são nem um pouco grandes.
254
□
uma panacéia. Não é algo que possa ser simplisticamente encara
do como totalmente promissor no curto prazo ou que seja isento de
ressalvas. É imprescindível ter em mente o seguinte: a) descrimi-
nalizar apenas a maconha não seria suficiente para quebrar o poder
dos traficantes, pois se trata de uma droga mais barata, à qual se
associa um poder comparativamente menor; b) a descriminaliza-
ção de drogas pesadas como cocaína e heroína, que poderia ter
esse efeito politicamente desejável, certamente se faria acompa
nhar, ao menos em um primeiro momento, por um aumento do
consumo, com possíveis conseqüências negativas;73 c) é preciso
não subestimar as possíveis reações, inclusive violentas, daqueles
que perderiam com uma eventual legalização; d) a resistência cul
tural a esse passo ousado, na maioria dos países, é gigantesca (no
caso do Brasil, é grande até no caso da maconha, comprovada-
mente uma droga leve e cuja periculosidade para a saúde costuma
ser tremendamente exagerada); e) além do mais, a pressão contrá
ria de países estrangeiros (especialmente dos EUA) a medidas de
legalização ou descriminalização em um país como o Brasil seria,
certamente, formidável, o que configura um grande obstáculo de
natureza geopolítica. Por todas essas razões, uma eventual legali
zação necessitaria ser planejada e preparada com muito cuidado,
considerando os ensinamentos da experiência internacional, nota-
256
□
camente, porém, é preciso criar as condições para que ao menos cer
tas modalidades de crime violento não tenham mais razão de ser.
Mais do que isso : embora oprimidos muitas vezes oprimam outros
oprimidos, se desejamos levar a sério e às últimas conseqüências a
admissão de que o capitalismo (a heteronomia) é “criminógeno” , não
basta advogar, como solução, uma mera “composição” de medidas
institucionais (policiais, jurídico-penais etc.), cultural-educativas e
econômico-sociais (redistributivas, programas de geração de renda e
ocupações, regularização fundiária, programas de construção e faci-
litação de acesso a moradias dignas para os pobres etc.). Isso seria um
“simpático” reformismo, e nada mais. Embora possa ter valor tático,
não deve ser o horizonte estratégico. E tampouco basta enfatizar que
o autêntico desenvolvimento sócio-espacial é a “melhor prevenção” .
Isto é correto, mas não é suficientemente enfático. O que cabe, como
meta estratégica, é questionar a instituição g lo b a l da sociedade
(binômio capitalismo + “democracia” representativa), sem o que não
se questiona a essência do modelo social que incessantemente cria
formas mais complexas de opressão e que engendra a segurança
como paradigma de governo.
E aqui é possível tomar mais sofisticadas e profundas as formu
lações oferecidas ao final do Cap. 3. Se os bandidos não são, apenas
por serem fenomenicamente “inimigos do meu inimigo” (ou seja, do
Estado enquanto instituição em última análise heterônoma), necessa
riamente meus “amigos” , podendo, isso sim, por partilharem interes
ses e valores capitalistas, ser meus “inimigos” , um olhar ainda mais
exigente os revela, ao mesmo tempo, como produtos de uma ordem
sócio-espacial que precisa ser elim inada, uma vez que ela joga
pobres contra pobres, oprimidos contra oprim idos, cria ilusões e
fabrica tragédias. O traficante de varejo, na qualidade de agente não-
em ancipatório, é o elo mais frágil e exposto do “capitalism o
criminal-informal” . E os “soldados” são a “bucha de canhão” básica
deste último. “Bucha de canhão” que, hoje em dia, é cada vez mais
constituída por adolescentes e até mesmo por crianças - os adoles
centes armados e os meninos-soldados da “guerra civil molecular” do
Rio de Janeiro, de São Paulo... (da Cidade do México, de Medellín,
de Joanesburgo, de Caracas...)- Portanto, não somente esses “inimi
gos” são, de certo modo, ambíguos, como, além disso, a palavra “ini
migo” , se não vier aspeada, pode nos tomar cúmplices de uma per
versidade sistêmica: se seu “compromisso” com a ordem capitalista
é, apesar de acrítico e via de regra irrefletido, efetivo, por outro lado
é impossível aplicar sem ressalvas essenciais um termo como “inimi
go” a jovens que, crescentemente, não passam de indivíduos recém-
entrados na adolescência e mesmo meninos impúberes. Não somente
por não se estar diante de “inimigos externos” - que são os potenciais
oponentes tradicionais das Forças Armadas, treinadas para lhes dar
combate em circunstâncias determinadas durante uma guerra entre
países - , mas também para contrapor-se à escalada de uma “militari
zação da questão urbana” em que grande parte dos “inimigos” pode
ria e deveria estar na escola ou brincando em vez de empunhando
armas, é que se reclama a serenidade para perceber que enfrentar a
“guerra civil m olecular” não exige a participação sistem ática do
Exército, mas sim um conjunto de ações e engajamentos de outra
natureza.
Em meio ao “hiperprecariado armado” há, certam ente, um
“estrato superior” , formado pelos “donos” das bocas-de-fúmo, e um
“estrato intermediário”, composto pelos “gerentes” desses pontos de
venda. Ainda que tenham origem pobre e favelada quase sempre,
trata-se de indivíduos jovens, porém geralmente adultos e compro
metidos com a “lógica” e os valores do “capitalism o crim inal-
informal”. Há, todavia, um amplo e largamente majoritário “estrato
inferior”, formado por um variado espectro de agentes que vai dos
“olheiros” , “aviões” e “vapores” aos “soldados”. Esses agentes são,
muitas vezes, adolescentes e crianças deformados pela violência e
pelo consumo de drogas, filhos e filhas de lares desfeitos e problemá
ticos, que encontraram nas quadrilhas do tráfico de varejo não somen
te um meio de obter renda, “prestígio” e “poder” , mas também um
grupo de referência, talvez um Ersatz da família. Triste a cidade -
triste a sociedade - cuja classe média cada vez mais aceita tomar esses
adolescentes e meninos-soldados como uma personificação do Mal.
258
□
CONCLUSÃO:
vivendo e resistindo em Dodge City
(e sem a “ajuda” do delegado W yatt Earp)
260
□
além de amedrontarem e humilharem moradores de favelas e outros
espaços pobres e segregados. Mas, seja como for, não se deve imagi
nar nenhum “W yatt Earp” como sendo uma boa solução, muito
menos a melhor ou a única solução.
Se Wyatt Earp ilustra o quanto o cartesianismo ético contido na
frase “polícia é polícia, bandido é bandido” nunca foi plenamente
válido, é hoje em dia, sobretudo (mas não só, é claro) em países peri
féricos e semiperiféricos, o Far West do sistema mundial capitalista,
que as expectativas nesse sentido tendem a se esboroar com mais
facilidade. Esse tipo de expectativa, aliás, cada vez menos existe,
sendo substituída pelo cinismo e por comportamentos fascistóides,
por parte dos muitos que, diante do esfacelamento da “ordem” for
mal, tendem não a proceder a uma crítica dos fundamentos dessa
“ordem” e de sua deterioração, mas sim a clamar por uma “nova
ordem” mais repressiva e mais autoritária.
A lembrança de Dodge City nos fornece o componente dramáti
co necessário para pensar em como é dura a missão de alguém que se
proponha a pensar e implementar estratégias de mudança sócio-espa
cial de um modo menos heterônomo em meio a balas zunindo de lá
para cá e de cá para lá. E ainda mais dramática é a tarefa de quem
busca colaborar não somente para uma abertura consistente do
Estado para a participação direta da sociedade civil no planejamento
e na gestão urbanos por ele conduzidos, mas também e principal
mente para que a sociedade civil se (auto-)organize - o que significa,
crescentemente, colaborar para resistir construtivamente ao status
quo em espaços segregados territorializados pelo “hiperprecariado
armado” , o qual mantém vínculos materiais e simbólicos ambíguos
com esse mesmo status quo capitalista e estatal. No entanto, o que se
faz necessário, nas nossas “Dodge Cities” contemporâneas, não é a
ajuda providencial de um deus ex machina à la Wyatt Earp, mas sim
que se gerem, na sociedade de cada “Dodge City” e no conjunto das
“Dodge Cities” , novas articulações e novas sinergias sociopolíticas.
A violência e a criminalidade violenta são, cada vez menos, fato
res “como quaisquer outros”. A “fala do crime” , isto é, “(...) todos os
tipos de conversas, comentários, narrativas, piadas, debates e brinca
deiras que têm o crime e o medo como tem a” (CALDEIRA,
2000:27), habita mais e mais o nosso quotidiano. O medo é nosso
companheiro cada vez mais constante, o imaginário associado às
grandes urbes (no mundo inteiro) é mais e mais povoado por signifi
cações vinculadas a medo e vigilância. Em cidades como o Rio de
Janeiro, nas quais se vive “nos limites da sociabilidade” , tem-se um
“laboratório” riquíssimo para se observar o quanto essas questões
perpassam aquilo que de relevante se pode pensar a respeito do futu
ro das grandes (e não só grandes, como se viu) cidades. Violência e
criminalidade violenta vão assumindo, crescentemente, uma espécie
de papel “integrador” de representações sociais e discursos, e não há
esforço interpretativo (inclusive de desconstrução de mitos, precon
ceitos e ideologias) ou estratégia de mudança social (de políticas
públicas mais modestas a bandeiras mais audaciosas) que possa fazer
vista grossa a isso, sob pena de autoconfinar-se em um gueto intelec
tual e perder eficácia. Isso se aplica, sem sombra de dúvida, ao plane
jamento e à gestão urbanos promovidos pelo Estado, mas igualmen
te à práxis dos movimentos sociais e ao discurso acadêmico sobre
eles. O desafio é como “juntar as peças” , montar o quebra-cabeça,
persuadir de que um verdadeiro diálogo é necessário e urgente - e
pode ser até muito gratificante.
Diante da realidade política de uma gradual constituição da
segurança pública em um “paradigma de governo” , um a mente
incauta ou acrítica poderia até cair na tentação de sugerir que a segu
rança pública deveria ser tomada, também, pelos cientistas sociais
como um “paradigma” - mais concretamente, como algo que unifi
que diferentes esforços analíticos com o objetivo de resolver proble
mas urbanos e transformar para melhor as cidades. Com isso, porém,
estar-se-ia não somente, uma vez mais, maltratando o termo “para
digma” - j á tão usado e abusado desde que Thomas KUHN (1987),
físico de formação, o consagrou em sua obra seminal sobre as revo
luções científicas mas também, o que é ainda mais grave, incorren
do no evidente risco de fazer coro com e legitimar o conservadoris
mo das práticas políticas hegemônicas. Chame-se a problemática da
segurança pública (com suas “palavras-chave” como violência urba
262
□
na, criminalidade etc.), assim, simplesmente, de um elemento verte-
brador. Isto é, um elemento que permite “costurar” esforços intelec
tuais dispersos, mobiliza corações e mentes e mexe com o imaginá
rio, estando na ordem do dia.
Um elemento analítico vertebrador remete a vários outros (cau-
salmente, a montante, e por suas implicações, a jusante) e, por isso,
não pode ser, jamais, ignorado. Por seu alcance e por suas implica
ções, ele ajuda, ao lado de outros (como, por exemplo, a [hiperjpre-
carização do mundo do trabalho e das condições de vida na contem-
poraneidade), a montar quadros explicativos abrangentes para fenô
menos complexos, sem que, por outro lado, seja preciso cometer o
equívoco de aderir a explicações monocausais. É preciso, no entanto,
que esse elemento vertebrador em especial seja tratado com cautela,
pois, tradicionalmente, foi trazido embalado por um discurso conser
vador, que se poderia denominar discurso “lei-e-ordem” (leia-se: das
atuais leis para defender a atual ordem sócio-espacial). Se esse ele
mento puder ser tratado de modo socialmente crítico, será capaz de
propiciar, por outro lado, uma oportunidade ímpar para a discussão
da autonomia, da liberdade, da justiça e da qualidade de vida nas
cidades - e, mais amplamente, na sociedade. Reinserir-se em um
novo contexto analítico, mudar prioridades, estabelecer novas cone
xões e cambiar de mentalidade é o que se espera, nessa direção, de
teorias e estratégias de mudança sócio-espacial que almejem, real
mente, mudar a cidade em um sentido mais amplo, fazendo a crítica
do planejamento tecnocrático em suas diversas vertentes, tal como
sublinhado em SOUZA (2002 e 2006b).
Uma coisa nem precisaria ser repetida para o leitor: de maneira
ainda mais nítida que muitos outros assuntos, o “complexo temático”
criminalidade violenta/(in)segurança pública repele explicações e
propostas simplistas e dicotômicas. Tratar dele com propriedade sig
nifica, com uma clareza talvez maior que em outros terrenos, ter de
combinar dimensões de análise, escalas e instrumentos. Significa,
também, moderar (não eliminar!) paixões em nome do bom senso,
compreendendo que, algumas vezes, o que cumpre fazer não é nem
uma opção do tipo “ou isso ou aquilo” (“policiamento mais eficaz”
versus “redistribuição de renda” , por exemplo) nem uma opção no
estilo “isso e aquilo” , caso esta seja encarada simplisticamente (como
se propostas, instrumentos e mecanismos com origens teóricas e
ideológicas distintas pudessem, simplesmente, ser postos em um
“liquidificador analítico” para se gerar uma imbatível “proposta
ultravitaminada”), mas, sim, uma combinação de elementos diversos
em que muitos deles sejam recontextualizados, reciclados, adapta
dos e transformados, para que a sua integração não resulte em algo
incoerentemente eclético e mesmo irresponsável.
Pensar a segurança pública à luz do planejamento e da gestão
urbanos e das contribuições dos ativismos sociais e, como uma via de
mão dupla, pensar o planejamento e a gestão das cidades e a dinâmi
ca dos ativismos sociais à luz dos problemas e demandas de seguran
ça pública - isso constitui uma integração necessária e urgente, fasci
nante e não-trivial, devido à complexidade dos assuntos, cada um
deles mergulhado em seu próprio pântano de controvérsias, e devido
às dificuldades teóricas, epistem ológicas e políticas de diálogo.
Como ficou nítido ao longo deste livro, o planejamento e a gestão das
cidades não são entendidos pelo autor como atributos exclusivos do
Estado. Embora soe estranho (estranheza essa tematizada e desafiada
pelo autor em outros lugares: vide SOUZA, 2002; 2006b; 2006c), as
estratégias espaciais e as práticas de gestão territorial dos próprios
movimentos sociais merecem ser amiúde entendidas, em sentido
ampliado, como planejamento e gestão urbanos - e, além do mais,
como formas de planejamento e gestão insurgentes que, em uma
fobópole, se acham sob diferentes tipos de ameaça. Isso não impede
que se perceba que, pragmaticamente, não se pode abrir mão de pres
sionar por ações de planejamento e gestão conduzidas pelo Estado
que possam contribuir para reduzir disparidades e situações de priva
ção e injustiça, por mais que o aparelho de Estado seja, em última
análise e estruturalmente, uma instituição heterônoma, por conse
guinte limitadíssima e ardilosa de um ponto de vista libertário. O
mesmo se aplica à incontomável participação do Estado no tocante à
problemática da segurança pública. Expandir consistentemente a par
ticipação direta da sociedade civil tanto na modelagem do planeja
264
□
mento e da gestão urbanos promovidos pelo Estado quanto no poli
ciamento e em outros aspectos da segurança pública em sentido res
trito é um objetivo tático que não precisa, de todo modo, ser incom
patível ou contraditório com uma postura que valorize, acima de tudo
e estrategicamente, as ações protagonizadas pelos próprios movi
mentos sociais emancipatórios com o fito de transformar a vida e a
organização espacial das cidades e tentar criar as condições para uma
segurança pública sem a tutela do Estado capitalista.
Buscar um desenvolvimento urbano autêntico, que não se tradu
za como um “desenvolvimento” capitalista do espaço em detrimento
de interesses sociais mais amplos ligados à justiça social, à proteção
ambiental e a outras metas, exige, conseqüentemente, que não se
perca de vista uma preocupação com a eficácia tanto tática quanto
estratégica em matéria de capacidade de proposição e ação - inclusi
ve e sobretudo das organizações dos ativismos sociais. Em outras
palavras, exige que não se perca de vista uma preocupação com o
aumento da capacidade de planejamento e gestão, de elaboração de
(coníra)propostas e (coHfra)projetos, e isso a serviço de um combate
à heteronomia instituída. Contudo, mobilizar o que pode ser mobili
zado em matéria de recursos locais e chamar a atenção para a neces
sidade de se construírem articulações para influenciar as escalas
supralocais (no espírito apresentado pelo autor sobretudo em
SOUZA, 2002 e 2006b, e antes disso já em SOUZA, 2000, por exem
plo) reclama a consideração de vários fatores indigestos, como o
papel do “hiperprecariado armado” a serviço do “capitalism o
criminal-informal” . A grande maioria dos autores progressistas tem
tido muitas dificuldades para lidar com esses fatores e com a temáti
ca da (in)segurança pública em geral, mas esses fatores se tornam
cada vez mais importantes e assustadores e essa temática cada vez
mais incontornável. A fragmentação do tecido sociopolítico-
espacial, a “guerra civil molecular” e a militarização da questão urba
na extravasam mais e mais dos limites físicos das grandes metrópo
les e não poupam nem cidades de porte médio, impondo-se como
fenômenos nacionais e globais. Os ganhos de autonomia, as parce
rias e as alianças estratégicas entre a classe média e os pobres, a cons
trução de uma contra-hegemonia, o oferecimento de alternativas ao
imaginário capitalista: tudo isso passa por uma ducha de água fria e,
diante da violência e do horror, diante do crescente individualismo e
das pseudo-altemativas escapistas dos privilegiados, diante da “cul
tura do medo” - em suma, diante da “fobopolização” exige-se não
uma capitulação perante o conservadorismo, que é a saída mais fácil
no curto e no médio prazos, muito menos uma tentativa de manuten
ção do discurso tradicional (que vai deixando de ser simpática para se
revelar, apenas, ingênua e político-socialmente autista), mas sim uma
atualização das perspectivas da liberdade e da justiça em face das
condições cam biantes do mundo contem porâneo. Exige-se, para
expressá-lo nos termos mais caros ao autor, uma concretização do
projeto de autonomia.
As pessoas costumam ter uma quase irresistível predileção pelas
explicações simples. É compreensível. E isso não se aplica apenas ao
leigo, ao não-pesquisador, mas, muitas e muitas vezes, também aos
cientistas sociais. Um livro como este que ora chega ao final, em que
críticas, diagnósticos e recomendações são multidimensionais e plu-
riescalares, tem, desse ponto de vista, um apelo menor que trabalhos
que ofereçam explicações monocausais. Variando conforme a con
juntura histórico-política, o lugar e o grupo, a popularidade de enfo
ques analíticos e políticas públicas “institucionalistas” , “culturalis-
tas” ou “redistributivistas” tem a ver, em grande parte, com essa
inclinação psicológica. O problema é que a realidade sócio-espacial é
complexa - muito complexa. É possível e necessário tomá-la inteli
gível-, se, em alguns momentos, isso resultar em uma explicação (apa
rentemente) simples (isto é, não-complicada), tanto melhor. O com
promisso com o hermetismo não deve ser um programa digno de
adm iração, nem intelectual nem muito menos politicam ente.
Todavia, reduzir a complexidade do real ao ponto de deturpá-lo sig
nifica agredi-lo, traí-lo. A simplicidade da conclusão não necessaria
mente nega a complexidade do real (e da análise). O simplismo, sim.
Se, depois deste percurso sem concessões e repleto de pormeno
res, ao autor for permitido atrever-se a condensar em poucas linhas a
mensagem essencial deste livro, uma síntese razoável seria a seguin
266
te: cumpre ousar questionar a instituição global de nossa sociedade, a
qual é, em larga medida, “criminógena”; mas convém, igualmente,
valorizar na medida certa as conquistas táticas viáveis no curto e no
médio prazos, alcançáveis dentro dos limites estreitos de nossa socie
dade heterônoma. Por fim, é essencial que esses ganhos mais modes
tos (mas muitas vezes significativos), factíveis mesmo nos marcos do
capitalismo e da “democracia” representativa, contribuam para avan
ços mais profundos, material e político-pedagogicamente, e de modo
algum atrapalhem as metas mais estruturais e estratégicas. Será isso
fácil? Ninguém disse que é! Mas é possível ? Pois bem: e por que não
seria?... E, afinal de contas: é imprescindível.
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índice remissivo
“Institucionalismo”,
“Redistributivismo”,
“institucionalistas” 176, 177,
“redistributivistas” 176, 177,
179, 181, 187, 188
181-4, 187, 188
“Mercado da segurança” 32 (corpo Regularização fundiária
do texto e nota 5), 69, 78, 152, - e tráfico de drogas 64, 110 e
154, 158, 260 segs., 225, 228 e segs.
“M ilitarização da questão urbana” Reforma urbana 11, 13, 97 e segs.,
35 (corpo do texto e nota 7), 49, 167, 169, 203, 224 e segs., 244,
68, 105, 140 e segs., 258, 265 250
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sociais) Segregação residencial 11, 22,
56-7, 5 8 ,6 8 , 162 (nota 4), 168,
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