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Esta

é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.

São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa


obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento por escrito de sua criadora.

2019 – Camila Marciano

Todos os Direitos reservados


Entonces imaginas todo lo que hemos pasado
Entonces imaginas hasta donde hemos llegado
Entenderás que imaginar es acto de rebeldía y enamorarse es infinita revolución
Late el corazón y lleva al hombro y actos sin risas
Que no hay vacuna que inmuniza el porvenir
Estoy contigo en la batalla, estoy contigo y no me quiero ir
Decir que te amo significa construir

Qué passará - Moral Distraida


Prólogo

Mentir para mim, ou mentir para o mundo. Eu era muito nova quando tudo fez
sentido. Eram essas as opções que eu tinha: Mentir para mim, e viver uma vida
tranquila, mas nunca feliz; ou mentir para o mundo.

Eu escolhi a opção mais difícil.

Todos os caminhos me levavam a eles. Era o maior momento da minha vida.


Todos os meus trabalhos entrando pela porta da frente na Pinacoteca. Era o
maior momento da minha vida, toda a minha família estava ali, feliz,
comemorando comigo.

Mas era como se faltasse todo mundo.

Entrei pela galeria com os meus trabalhos expostos em painéis de vidro sob
uma salva de palmas que, provavelmente, o assessor puxou. Os flashes piscaram
como se eu fosse uma modelo, e os jornalistas voavam em minha direção.

Caminhando sozinha, como se eu fosse uma noiva cujo pai já morreu,


avancei em direção ao púlpito, do outro lado da galeria, sorrindo e agradecendo
a presença de todos.

— Bom, – brinquei, testando o microfone – tomara que agora alguns dos


senhores retornem meus e-mails.

A risada aristocrática de quem nunca precisou trabalhar na vida ecoou pela


plateia distinta e eu deixei que rissem enquanto percorria os olhos pelas pessoas.
O governador estava lá. O prefeito também, o diretor da Fundação, alguns
reitores e suas esposas. Gente importante que eu queria impressionar com meu
trabalho, e jornalistas. Um senhor que já foi cliente da minha mãe sorria
incrédulo percebendo o quanto a secretária da Miller & Miller cresceu.
E então… antes que o silêncio ficasse esquisito, assumi o microfone para
agradecer a presença de todos, mas não pude falar. Achei quem faltava. Depois
de tantos anos… Segurei para não chorar. Olhei para as minhas próprias mãos,
engolindo a emoção, sentindo o sorriso orgulho deles para mim. Agora eu podia
me dar ao luxo de comemorar. Gabriel estava lá, de terno e gravata, nunca vi tão
lindo e tão arrumado.

Do lado dele… Rafael. Sorrindo orgulhoso de mim, os olhos molhados e o


rosto apaixonado.

Começou da forma mais besta que você pode imaginar. Não começou num
amor tórrido cheio de loucura e sexo quente no elevador. Éramos garotos do
quarto ano do ensino fundamental. Veio muito antes da putaria de dois homens
com uma mulher e sem a gente perceber que era amor.

Um pouco por dia, repara:


Capítulo Um

Éramos nós três contra o mundo. Sempre fomos. A professora do quarto ano, eu
tinha só oito anos na época, me separou das minhas amigas porque eu falava
demais e me colocou entre dois meninos chatos e na primeira fileira: um deles
ria de mim, o outro, entrava mudo, saía calado, e tirava notão. Nem conversava
com ninguém e eu ficava pensando se ele tinha alguma doença. Ele nunca falava
nada, nem respondia chamada, só olhava para a professora quando ela dizia:
"Rafael!". Nunca tinha ouvido a voz dele e a gente estudava na mesma classe
desde o primeiro ano.

Eu chegava em casa triste porque a escola, que era legal por causa das
minhas amigas, tinha ficado um saco. Só as via no recreio e elas se uniam entre
elas e começavam a me deixar de fora. Fiquei quieta como a professora queria
que eu ficasse, mas isso não melhorou meu desempenho. Eu só ficava quieta
porque eu tinha medo dos meninos do meu lado.

Um dia eu esqueci meu estojo em casa e tive que falar com um deles. O
Lipe, meu irmão mais velho, pegou meu lápis emprestado, isso lá em casa, e eu
emprestei, mas não guardei o estojo de volta na mochila.

Pensei comigo quando me vi sem o estojo, se eu não tiver que copiar nada da
lousa até o recreio não vai ter problema. Depois peço um lápis emprestado para
as minhas amigas.

Só que o professor de matemática entrou na sala pedindo para a gente copiar


da lousa. Então, com o queixo enfiado no peito, mortinha de vergonha de falar,
pedi:

— Me empresta um lápis? Esqueci o estojo.

Vieram dois lápis, de duas direções. Eu nem sabia de quem pegar.


— Faz assim: você usa o lápis dele – O menino que nunca fala nada
respondeu – E a borracha você usa a minha.

Já era abril. Lembro que foi depois do aniversário da mãe porque no dia do
aniversário eu caí da cadeira e ralei o joelho no tapete da sala enquanto
pendurava balão na sala. Lembro que o ralado no joelho ainda estava lá quando
abri minha boca.

Eu, que era muito faladeira, fui colocada entre dois meninos para ver se eu
calava a boquinha, mas verdade é que quase perto das férias eu era faladeira de
novo e o pai me chamava de canto para conversar depois da reunião porque "eu
era uma ótima aluna, aprendizado rápido, mas eu dispersava muito porque falava
demais".

Ninguém acreditava que eu fui capaz de fazer o mudo falar. Rafael falava
comigo, até já respondia "presente" na chamada, e a mãe dele me deu um beijão
no rosto quando descobriu que eu era a responsável por fazê-lo ser menos
tímido.

A mãe dele dizia que o filhinho tinha fobia social, isso meu pai me contou
depois, os pais sempre compartilham os podres dos filhos nas reuniões de escola
e a mãe do Rafa compartilhou o podre do filho com o meu pai que contou dos
meus podres. O Rafa tinha uma timidez tão grande, sempre introspectivo e
caladão, mas quando eu pedi um lápis, se ficou nervoso de falar comigo, nem
demonstrou.

Com o Gabi, o que me emprestou o lápis, ele tinha a mesma história que eu:
foi separado dos amigos porque falava demais e estava detestando não ter com
quem conversar, por isso, depois de me emprestar o lápis, aliviado por ver que
eu não era muda que nem o outro, ele mesmo puxava conversa.

Logo as professoras viram que foi um mau negócio colocar Gabriel do meu
lado, lá na primeira fila, só não sei porque elas não nos separaram. Deixaram a
gente lá, junto e falando muitão, acho que só por causa do Rafa, que passava a
interagir conosco e rir das nossas piadas.

Depois do Rafa contar para a mãe dele que eu repartia com o Gabi os
docinhos que ela mandava, ela passou a mandar três docinhos pela lancheira do
Rafa. Meu pai sempre dizia que dia de doce é sexta e eu só levava doce na sexta,
sempre um bombom só, mas a mãe do Rafa mandava docinho para a gente todo
dia.

Em Agosto, quando voltamos das férias, o pai do Gabi falou com os meus
pais e me chamou para o aniversário dele. O Rafa também foi convidado e a
gente foi. Depois de um dia inteiro num parquinho eletrônico, cheio de coisa que
eu gosto, de carrinho de bate-bate, montanha russa, videogame, roda gigante e
tudo o mais de legal que tem no mundo, a gente virou amigão mesmo. O Rafa, o
Gabi e eu. Até parei de me importar com as minhas ex-amigas que me excluíram
do grupo.

No recreio agora andávamos nós três. O problema é que nossos pais agora se
conversavam e meu pai descobriu que eu comia doce todo dia. A nova regra era
que cada dia um pai mandava uma coisa para os três. A mãe do Rafa estava
muito feliz de ver que o filho tinha amigos e ela queria desculpas para a gente
continuar falando com ele. E meus pais também, sempre abastecendo a gente
com guloseima, com fruta, com suco de caixinha, o que fosse, cada dia alguém
levava alguma coisa em triplo para dividir.

E, quando chegou o meu aniversário, em outubro, no dia do Halloween e é


por isso que todo mundo em casa me chama de Monstrinha, eu os convidei para
o meu aniversário. Mostrei para eles a impressora 3D que o Lipe me deu quando
foi para a faculdade, e nem quiseram saber de comer bolo. Ficamos brincando de
imprimir brinquedo a tarde toda. O Lipe tinha me mandado um e-mail com um
projeto de carrinho cheinho de engrenagem. A gente começou a fazer naquele
dia, mas levamos um mês todo, eles vindo na minha casa todo dia, para a gente
terminar.

Virou costume, no quarto ano, no quinto e no sexto, a gente viver um na casa


do outro. Fizemos um monte de projetinhos, até ajudamos o Lipe e a mãe no
modelo de aeroplano deles. Eu, o Rafa e o Gabi fizemos a carcaça, o Lipe e a
mãe fizeram a parte eletrônica e elétrica. No dia que colocamos o avião para
voar, a Mona, minha cachorrinha, o abateu no ar e eu chorei muito. A culpa não
era da cachorra, tinha um negócio voando no território dela, o Guto, meu outro
irmão, tentava explicar, mas eu fiquei com muita raiva.

O Gabi e o Rafa choraram também. Era o nosso avião! E deu muito trabalho
de fazer, o projeto que pegamos da internet não encaixava direito e a gente lixou
muito cada pecinha até tudo caber certinho. Éramos três tontos trancados no
banheiro da minha mãe, cada um chorando a sua parcela, olhando para o outro, e
todo mundo triste.

Eu lembro que o Gabi foi o primeiro a parar. Quando parou, limpou o rosto,
secou o ranho na manga da blusa e fez nós dois pararmos de chorar, também. Me
deu um pouco de papel, deu um pouco de papel para o Rafa e sorriu.

Foi a primeira vez que eu me vi admirando um menino. "É só a gente


consertar", ele disse. Tinha uns olhos tão azuis, tão azuis, mais azuis que os das
Botelho, minhas primas. Quando chorava, como naquele banheiro, em volta do
azul ficava bem vermelho, junto da pontinha do nariz.

Ele ainda ia descobrir, éramos muito tontos no sexto ano, mas no sétimo ano
ele percebeu: Era o menino mais bonito da sala. Era o único menino que recebia
correio elegante na festa junina. Eu recebi um, uma vez. Fizeram troça comigo,
não assinaram o nome, e só escreveram "de um admirador secreto".

Descobri depois que foram eles, para rir de mim, mas eu não sei porque,
guardei. Enquanto eu não sabia quem era o "admirador secreto", eu queria que
fosse um deles e, no fundo, fiquei feliz que tenham sido os dois.

Mas não falei nada. Essas coisas não se fala quando se tem 12 anos. Você
fica pensando qual dos dois vai ser seu marido, quantos filhos vai ter e essas
coisas que as meninas pensam, mas eu nunca me decidia. Uma hora eu queria
que fosse o Gabi porque o Gabi era muitíssimo bonito, mas quando o Rafa
chegava partindo o bolinho de baunilha dele comigo (só porque ele sabia que eu
gostava muito de bolinho de baunilha) eu me derretia toda.

Os problemas começaram aí. Começa uma pressão de todos os lados para


você perder seu BV. Quem está beijando quem, quem está namorando com quem
e todas essas coisas. Todo mundo queria fofocar de todo mundo. No fundo, no
fundo, você nem quer perder o BV, beijar nessa idade é estranho, ninguém sabe
direito como é que faz, fica nessa pressão de beijar logo porque ninguém quer
ser o único que não beijou ainda.

E comigo foi a mesma coisa. Estava na hora, todo mundo beijando, você tem
que beijar. Tem que namorar alguém, alguém tem que gostar de você. E lá estava
eu, sem amigas para falar dessas coisas. Enquanto as meninas atrás de mim
ficavam toda hora trocando bilhetinhos, eu não tinha com quem trocar. Com
quem falar disso? Com os meninos não dá para falar disso.
Pensando bem, por boa parte da minha vida eu só tive a minha mãe de
mulher para conversar. Em casa só tinha menino e na escola só tinha menino. As
minhas primas eu só via nas férias e, com a Alicinha, a mais nova, eu conversava
disso porque ela perguntava.

Uma vez as mães do Rafa e do Gabi os deixaram viajar para Poços conosco,
no meio do ano. Era época de frio, então usamos pouco a piscina, ficávamos
mais na fazenda de gado do Tio Carlos porque a Bia levava a gente para lá.
Levamos nossa 3D também e, com o Lipe, a gente fez muita coisa legal. No fim
da viagem a Alicinha perguntou qual dos dois eu gostava, porque ela dizia que
os dois gostavam de mim e eu não entendi o que ela quis dizer, só sei que a
minha cabeça deu um nó:

Se os dois gostavam de mim, o nosso trio não ia durar para sempre. Uma
hora ou outra a gente ia se separar porque eu sou só uma e eles são dois. Se eu
gostasse de um, como o outro ia se sentir? Isso me deixava triste e, na volta para
casa, os dois não entendiam do porquê de eu ter ficado tão quieta.

Começaram os problemas com o "escolher". A pressão de beijar e a pressão


de escolher. O Gabi ria de mim, ele já todo desenvolvido, os pelos começando a
nascer, as meninas no pé dele, ele já não tinha mais medo de beijar até mesmo
porque ele tirou boa parte do BV das meninas. Arrastava-as para a garagem onde
as tias da van guardavam as vans de levar os alunos para casa e dava beijinho
nelas. Demorou para perceber que era o menino mais bonito da sala, mas quando
descobriu, demorou pouco a tirar proveito.

Enquanto eu e o Rafa... a gente ouvia ele contando das coisas, do como as


meninas beijavam, do como ele fazia para arrastá-las para a garagem das vans,
mas a gente não respondia nada, só ouvia. Ficava com medo de dizer alguma
coisa que desse na cara de que nós não tínhamos beijado ninguém.

Um dia, fomos nós três no cinema e aquele dia foi o mais estranho de todos.
Era muito esquisito. Sentei no meio deles, como sempre, um menino de cada
lado, do jeito que a gente se sentava na escola. Era o lançamento de um filme
que estávamos doidos para ver e já tínhamos cansado de ver o trailer. Com muita
pipoca e coca-cola, num dado momento, o Gabi segurou na minha mão. Só catou
e segurou.

Doida de nervoso de ver o Gabi com a minha mão, vem o Rafa segurar a
outra. Coração mais rápido que o meu? Não tinha.

Manuela Miller Ferreira, morta por AVC aos doze anos.

— Você pode soltar da minha mão, se quiser. – O Rafa disse, cochichando.


Ele era quietão, mesmo. Sempre foi, mas era cheinho dessas simplezas.

— Não é isso.

— Sua mão tá suando.

— É que o Gabi tá segurando a minha outra.

— E qual das duas você quer?

— Eu vou ter que escolher? – E falar era pior do que pensar.

— Só se quiser.

Fui falar com o Gabi, do meu outro lado:

— Gabi.

— O que foi?

— Rafael tá segurando a minha outra mão.

— Eu sei.

— Sabe?

— É, a gente combinou de fazer isso. A gente é amigo, mas um dia você vai
ter que escolher um de nós, e o outro vai ter que ficar bem com isso.

Eu nem sabia o que dizer e ele continuou:

— Eu queria que você escolhesse o Rafa.

— Por quê?

— Porque eu vou ficar bem se você escolher ele, mas ele não vai ficar bem
se você me escolher.

Dei um beijo no rosto dele sem nem saber como lidar com isso. O mesmo
medo que eu tinha era o medo que eles tinham. Não era só eu a doida que se
atropelava na pressão de beijar logo. Eles sabiam que isso ia acontecer e se
conversaram: quem a Manu escolher não importa, era o que aquelas duas mãos
me diziam. Nem soltei a mão de ninguém. Assisti ao filme muito mais tranquila
porque a pressão se dividia e eu não sofria mais sozinha.

Terminamos o filme que foi bem menos empolgante que o trailer, fomos
comer na praça de alimentação, depois o pai do Gabi nos deu carona para casa.
A gente nunca se beijava de tchau, era sempre o "até amanhã" e pronto, mas
quando eu saí do carro, eu quis beijar o rosto dos dois e, mesmo o pai deles
estranhando muito, beijei e depois saí.

O mesmo olhar que o Rafa tinha, o Gabi tinha. Os dois felizes e tristes pelo
beijo. E eu também. Dá para escolher? E se a gente nunca mais pensasse em
beijo? Dia seguinte cheguei na escola, tudo igual sempre, e a gente se esperava
para subir para a sala. Sentamos. A primeira aula era de ciências. Não falamos
mais nem do beijo, nem sobre a escolha, nem nada. Continuamos normal até o
intervalo, quando o Gabi foi atrás de uma menina, enquanto Rafael e eu
ficávamos sozinhos.

— Não consegui dormir direito, ontem. – Ele disse. Com doze anos a gente
não levava mais lancheira, comprava na cantina. Tínhamos acabado de rachar
uma coca-cola, dois canudos, um para mim e outro para ele e eu terminava meu
salgado na escada perto do pátio.

— Por quê?

— Pensando.

— Pensando em quê? – E eu sabia que o assunto sério ia começar.

— Tudo bem se você escolher ele. – Baixou a cabeça, se ocupou do canudo,


tudo para não me olhar. – Eu quero que você me escolha, mas tudo bem se você
quiser ele.

— Eu não consigo escolher, Rafael – Confessei.


— É fácil: É só ver de quem você gosta mais.

Eu gostava do Rafa porque ele era simples. Sempre muito calmo, analítico e
inteligente. Ele colocava ordem onde eu era só brincadeira. Ele liderava
naturalmente, a Gabriel e a mim. O Rafa era intenso para dentro e eu gostava
muito dele por isso.

Só ficou bonito de verdade no ensino médio. A puberdade dele foi um caos,


espinha, pelos no rosto, a voz trocando e ficando engraçada, tudo desregulado,
mas quando floresceu, floresceu. Aos doze anos, era comum. Sem nada demais,
só um moleque que parecia ter cem anos a mais do que tinha e com as melhores
respostas enroladoras do Universo.

Mesmo quando ele não tinha estudado para a prova, mesmo quando ele não
estava seguro da matéria, ele explicava, desenhava gráfico, enrolava a professora
até tirar notão. Já fizemos um trabalho em quinze minutos só com o dom que
aquele menino tinha para enrolar professor. Ficamos vendo luta livre no Youtube
até cansar em vez de fazer o trabalho e depois minha mãe me ligou dizendo que
estava indo me buscar. Quinze minutos e duas pesquisas no google, e voilà, um
trabalho que rendeu dez pontos.

Mas o Gabi... O Gabi era burro para matemática, ria de mim porque eu era
boa demais em matemática para uma menina, tirava sarro da minha cara com
tudo, chamava meus peitos de azeitoninhas, mas eu adorava ele. A gente ria
muito, o Rafa e eu, com ele. Era o dia todo rindo, a gente passava horas o
ouvindo falar das garotas, do como elas beijavam e de que algumas até o
deixavam passar a mão na bunda delas. Ele quem tinha sempre as melhores
músicas e os melhores nomes para projetos. Vivia tirando foto da gente. O que o
Rafa era intenso para dentro, o Gabi era intenso para fora.

E lindo. Nasceu lindo, cresceu lindo, sempre foi lindo e demorou muito
pouco para se acostumar com menina no pé dele. Era um babaca com elas, mas
comigo e com o Rafa, ele era legal e a gente sentia que faltava um pedaço
quando ele faltava. Sempre faltava um pedaço quando um de nós faltávamos.

Mas, eu tinha que escolher. E eles queriam que eu escolhesse.

— Talvez eu não devesse escolher nenhum. – Respondi, enfiando na boca o


último pedaço do meu salgado, naquele mesmo intervalo.
— E vai perder o BV com quem?

— Sei lá, não tô com pressa – Imagina, euzinha, com pressa.

— Vem comigo.

Me arrastou, sem dizer nada, só me arrastou lá para onde todos os alunos vão
para perder o BV. Eu queria? Queria. Mas, e o medo? Mas, e o Gabi? Fui, meio
arrastada, meio por vontade. Nos enfiamos num escurinho atrás da van da escola
e ele me beijou.

A gente nunca tinha beijado, então não sabia como era, quem coloca a cara
onde. Primeiro um selinho e depois mais. A gente não sabia como era, mas já
tinha visto os outros fazerem. Nos beijamos. Era esquisito, ele tinha gosto de
coca-cola, era melado e dava coisas lá embaixo. Ele colocou a mão na minha
cintura sem mexer um centímetro, nem para cima, nem para baixo, e eu coloquei
as mãos nas costas dele.

— Eu queria perder o meu com você. – Ele disse. No fundo, eu também


queria perder o meu com ele, já que o Gabi já sabia beijar e não esperou
ninguém.

— Eu já falei que não vou escolher.

— Uma hora vai, sim.

Gabi escolheu por nós. Saíamos do esconderijo das vans e ele entrava com
uma menina da nossa classe. Ele viu meu rosto vermelho, viu a gente saindo e
entendeu tudo. A carinha que ele fez dá vontade de chorar até hoje. Pareceu que
eu estava matando ele. Ele ia beijar outra menina, mas quando me viu com o
Rafa, parou. Congelou no lugar e segurou o choro. Depois saiu correndo e a
menina ficou lá, parada sem entender nada, humilhada por ter sido abandonada e
depois, ela também saiu correndo.
Capítulo Dois

— Lipinho, eu posso perguntar uma coisa? – Na mesa do jantar, sozinhos em


casa, o Lipe não era mais o moço de riso fácil e da piada idiota. Os dias escuros
chegaram para ele, formado Engenheiro, com méritos, mais rápido que qualquer
outro aluno de sua turma, ele queimava seu potencial numa construtora de
prédios com terraço gourmet e a mãe não podia ouvir de seu trabalho sem perder
a linha.

Não criou seu filho para isso, Dona Fernanda dizia. Engenheira formada que
sonhava com os filhos seguindo pelo mesmo caminho, ela se revoltava. Dizia
que não criou filho para sofrer tanto por amor do jeito como sofria ali, e como
sofreu por muitos anos mesmo depois deste episódio.

Por isso, por ver um tubarão numa lata de sardinha, eu sabia que era para ele
quem eu tinha que perguntar.

— Sempre. – Ele respondeu, pousando o copo de coca-cola ao lado do prato


– O que foi?

— É uma pergunta cretina.

— Tudo bem, – e se preparou – o que você quer saber?

— Quando… – vermelhinha de vergonha, o rosto enterrado entre os ombros,


a menina de quinze anos se dividia entre o que esperavam dela e o que ela
realmente queria. Gaguejou e sentiu as mãos frias, mas tentou disfarçar
perguntando outra vez – Quando foi que você soube que amava a Dê?

Lipinho Lindo, era assim que a Manu pequenininha chamava seu irmãozão.

— O coração bate diferente. – Ele respondeu.


— É?

— É, sabe, não tem uma hora perfeita em que você entende que tá
apaixonado, você vai caindo. A fulana… ou, o fulano no seu caso, vai ficando
maior. É um pão de queijo que a filha da puta faz, é um café, e você nem gosta
de café, é uma toalha que ela guarda para você, são sempre essas coisas
pequenas que te fodem.

Como quando o Rafa chegava pertinho só para mostrar como funcionam os


números complexos e, de repente, você não consegue respirar?

— Quer dizer, – ele retomou, se arrumando na cadeira, brincando com a


toalha da mesa entre o polegar e o indicador – eu não sei como as outras pessoas
são, mas comigo foi assim. Eu percebi que a gente ia se separar por causa da
faculdade, que ela não estaria disponível para me ver todo fim de semana que eu
fosse lá para Poços, e eu… sei lá, senti que deveria fazer alguma coisa.

— Você se arrepende da escolha que fez?

— Nesse momento? – Essa é que era a pergunta cretina, Manu percebeu. Ver
o irmão engolir em seco e cerrar os lábios a fez perceber que sim, cinco anos
namorando separado para depois terminar por telefone são o desenho perfeito de
uma escolha errada – É engraçado.

— O quê?

— Não foi como se eu tivesse escolha.

— Então você não se arrepende? Mesmo com toda essa merda rolando?

— Não, eu me arrependo muitão. Olha pra mim, Manu. Eu vivo de trabalhar


num emprego que eu não gosto, e de cuidar de você que não precisa de cuidado.

— Mas…?

— Mas eu olho para trás… – Ninguém toca no assunto da Vaca Megera


porque, é ele se lembrar, que ele chora. Ali, o Lipe não chorava mais, vivia de
segurar lágrima, virou profissional do disfarce, mas ninguém consegue enganar
família – E é como se não fosse um erro.
— É porque não é um erro.

— Não, não é. Parece que quando a gente faz as coisas por amor, por mais
que se foda depois, nada parece um erro. Nunca foi um erro com a Dê, mesmo
doendo, nunca foi errado. Nunca pareceu errado, nunca me senti errado. A gente
se magoa, não vou falar que é perfeito, mas acho que quando a gente percebe
que tá amando alguém, erro é uma palavra que não existe.

— Exceto traição, né?

— Você tá falando de amor, Manu, eu tô respondendo coisa de amor. Traição


é outro rolê.

— Eu sinto que eu errei com alguém que eu amo.

— É? O que você fez?

Ela não conseguiu dizer. Irmã mais nova que segue a cartilha de
comportamento do irmão, mesmo sem perceber, travou a saliva na garganta,
procurou alguma coisa para ocupar as mãos e disfarçou as lágrimas. Já faz três
anos. Três anos em que decidiu perder o BV com o Rafa, porque eram os únicos
que não tinham beijado, e o Gabi viu.

E essa sensação de ter cometido um erro com o Gabi soava como uma
traição, mesmo que ela não tivesse nada com ele.

Foram três, até o sétimo ano. O Gabi, a Manu e o Rafa. Juntos contra tudo e
contra as provas de matemática, desde o quarto ano, desde que ela foi realocada
para a primeira carteira, a mais perto da professora, para não tagarelar mais com
as meninas sentadas mais no fundo.

Eram eles três, o Menino de Pedra, o Menino de Água, e Manu que é feita do
destruir e do andar junto. Fez o menino com fobia social ter amigos e o menino
brigão pedir desculpas. Ria, da barriga doer, quando o Gabi fazia piada sobre o
jeito do Rafa e defendia o Rafa de quem quer que fosse. Nunca andava só.

Na verdade, desde que nasceu, nunca andou só.

Mas o coração doía, muito mais do que o necessário, por andar manca, pelos
três anos seguintes, sem o Gabi. É o que parecia, agora, só acompanhada de
Rafael, nunca mais com Gabriel.

— Toma. – Lipe estendeu uma latinha de cerveja aberta, lavada e gelada. –


Que eu preciso beber para poder dormir e não quero beber sozinho.

— Eu quero tomar mais que uma, hoje.

— Eu não vou fazer com você o que a mãe fez comigo, Manu, esquece. – E
ele falava do seu primeiro porre, na mesma idade que ela, sobre sua primeira
namorada e um chifre que não doeu nem dez por cento do que dói a ausência da
outra.

— O que a mãe fez com você?

— Ela ri disso toda vez que pode, não joga comigo, que cê sabe que a mãe
me deu um porre.

— Eu não quero vomitar, Lipinho.

— Só quer se anestesiar um pouco, né?

— …

— O Guto vai chegar para o futebol, daí a gente bebe junto.

Assistiram a novela porque não queriam ficar sozinhos. O pai no restaurante,


a mãe dando aula. Olhavam para os diálogos, as cenas, as músicas, mas não
ouviam. Cada um, ao seu modo, dentro de seu universo particular.

O Guto chegou da faculdade com a mochila mais pesada que qualquer


Ferreira já carregou na vida, e só queria saber o que tinha de janta. Misturou
tudo na mesma panela, requentou, tudo isso sem olhar o que fazia, só morria de
fome e o bandejão foi às cinco da tarde. Passou da cozinha, com a panela na
mão, para as escadas até o quarto. Tinha trabalho de farmacologia para entregar.

— Oi. – Cumprimentou apressado e subiu.

Só parou para reparar nos irmãos quando não recebeu nem mesmo um Oi de
má vontade. O clima não anda bom, ele sabe, para todo mundo comer junto tem
sido um parto, é assim quando as pessoas crescem, ninguém tem tempo de nada,
tudo é mais urgente, o prazer fica para depois e as pessoas enfiam o riso entre os
intervalos de trabalho.

Mas não dar nem Oi é um pouco demais.

Com o garfo enfiado na panela, olhou para os dois sacos de batata sentados
no sofá. O Lipe não chorava, mas a Manu, sim. A pequena veio com defeito, as
glândulas frouxas, ele sempre se derretia com ela primeiro. Bastava um “A”,
mais alto, sempre foi assim, que ela fazia bico de desaprovação e depois vinha a
água.

— O que tá acontecendo?

O Lipe respondeu que estava tudo bem. Conseguiu conversar e perguntar


como foi o dia do Guto na faculdade, mas a Manu nem sequer moveu o olho.

Desceu as escadas todas de novo, engoliu a comida que tinha na boca e


passou o braço por trás da irmã, parando a panela sobre o colo. A tomou num
abraço sem dizer nada, só para puxá-la de qualquer universo que tem estado.
Aspirou os cabelinhos da menor e deu-lhe um beijo na testa.

— O que foi?

— A gente ‘tava esperando você chegar.

— É? Para quê?

— Para ver futebol.

— Você não gosta de futebol.

— Ninguém gosta, só você. – O Lipe respondeu.

— Então por que… ?

— Para a gente poder beber e depois dormir. – A Manu retomou.

— Estão me esperando para beber?

— É.
O Guto de vinte e um anos nunca entenderia o que é beber de amor. O Guto
de vinte e um acha o Lipe um covarde, ficou puto quando soube que terminou
com a namorada, brigaram de sair no soco porque, para o Guto, o Lipe tinha que
ser melhor que um cara que espera. Tinha que fazer o que quer que fosse para
continuar junto.

O Guto de vinte chorou com a cunhada pelo telefone, mais de uma vez.
Disse o que achava e o que sentia, sempre achou a ideia de cavalo uma ideia de
merda, nunca a privou de sua opinião.

E aquela cara do Lipe era tão comum, que o Guto só sabia ter raiva dela.

A novidade era a cara de amor fugido impressa na Manu.

Porra que tá acontecendo com todo mundo?

— Eu amo vocês dois, tô aqui para tudo, mas não dou a mínima para
covarde. – Voltou a atenção para a sua panela, mas não arredou o pé – Beber não
resolve nada. Beber vai te dar dor de cabeça amanhã e a falsa noção de coragem
agora, não vai mudar porra nenhuma e vocês dois têm que ser melhor que isso.

— É fácil falar quando você não ama ninguém. – E o Lipe não aguenta ser
chamado de covarde bem quando se vê do exato lado oposto.

— Pelo contrário, eu amo todo mundo, a questão é que eu não me desfaço


por ninguém. – Segurou o rosto da irmã com uma mão, mãozona que abraçava o
rosto dela inteiro, e a obrigou a olhar para dentro dele – O que a mãe fala pra
você?

— Para, Guto, me deixa em paz.

— O que a mãe fala pra você, caralho?!

— “O que você quer, você pega”.

— Exato. O que você quer, você vai e cata. Tem casa, tem comida, tem gente
que te ama, tem um babaca e um idiota para chamar de irmão, a gente é grande e
cata quem for na porrada por você, deixa até trabalho de farmaco de lado, fica
aqui com cara de enterro assistindo novela e a puta que pariu toda: Mas na hora
que você quiser alguma coisa, você vai, toma vergonha nessa cara, e você cata.
— Guto… – Explodia o que a vinha consumindo há anos e tem ficado pior
nos últimos meses. A careta de dor que o Guto via no Lipe, via nela também. A
mesma dor que ele sabe que não é covardia, por mais que cante o nome errado,
por mais que a odeie, por mais que não faça sentido para ele. A mesma dor nos
olhos cheios da Manu que viram insônia e vitupérios quando chega no coração
do Lipe.

— Mas que porra que tá acontecendo com você?

É a única forma de molhar os olhos do Guto, também. É quando aparece o


irmãozinho feito para cuidar e quando ele larga essa raiva antiga que ninguém
sabe de onde vem. Largou o rostinho curto da irmã menor só para achar um
canto para sua panela, e depois a abraçou profundamente, com tanto carinho e
enrolando os cabelinhos dela nos dedos, até que ela parasse de chorar.

— O que você precisa? – É bruto, mas só até a página dois.

— Eu só quero assistir futebol.

— Só isso?

— …

Lipe já tinha três cervejas abertas. Os irmãos maiores não se olharam, nem
precisam. Manuzinha foi aninhada entre os dois, o faminto e o calado e,
enquanto o narrador do jogo apresentava os times, os três bebiam.

Foi só depois da terceira cerveja que a Manu desembestou a falar. Todo


mundo sabia que ela era tagarela, sempre foi, dê-lhe um ouvido e ela vai até o
Chuí, só de falação, mas ninguém sabia que, bêbada, ela cantava igual um
passarinho.

Ou pior:

Colocou o coração em cima da mesa de centro, para o Lipe e o Guto se


assustarem. Namora o Rafael desde o primeiro beijo, vive com ele para cima e
para baixo, ninguém sabe do namoro, ela tem vergonha de falar disso com os
pais porque todo mundo vai rir e achar o maior barato a menininha com o
menininho, mas a questão…
A questão é que a sístole bate por um, a diástole bate por outro. O Gabi tá
definhando, vive fumando escondido, tá andando com um pessoal errado, tá
deprimido, tá briguento, tá burro. O Gabi, depois de flagrar o beijinho mínimo
que ele viu como traição máxima mesmo que ninguém tenha assinado um
contrato de relação, nem use aliança, tem definhado.

— Continua lindo, Deus do céu, não é isso que eu tô falando.

— Ninguém quer saber se Gabriel é lindo.

— … dói, saca? Eu não quero largar o Rafael por nada nesse mundo, mas eu
não sei como juntar o Gabi com a gente de novo. Eu não sei, Lipinho, e nem o
Rafa sabe. A última vez que o Rafa tentou se aproximar do Gabi, eles saíram no
soco, e tem mais de um ano. Ele tá muito esquisito, cês têm que ver, tô
preocupada, mas eu não aguento mais só olhar para ele de longe.

— Você já falou tudo isso para ele? – O Lipe entregou a quarta cerveja para a
menina.

— Desse jeito, não.

— O Rafa sabe que você ama o Gabi?

— Eu acho que o Rafa ama o Gabi também, Guto.

— Como é que é?! – O Lipe não sabia se ria do estado da pequena, ou se


chorava pelo que ouvia.

— Eu sei do que tô falando.

— Mas ele leva de boa esse lance de gostar de um cara?

— Eu ainda não contei para ele que ele ama o Gabi.

— Beleza, agora eu tô confuso. – O Guto decidiu só rir.

— Acho que tá bêbada, Guto, vamos levar ela para a cama.

— Não tô! Não tô, tira a mão de mim, ninguém vai me levar para a cama!

Estava, sim. Ninguém lhe contou, e aquilo nunca saiu daquela sala, mas
estava bêbada, sim. E com metade da quarta cerveja na mão, cantou amor por
dois meninos como se fosse mulher adulta, como se soubesse o que fazia, como
se fosse tão claro para ela, que ela tornava claro para todo mundo.

O Guto olhava incrédulo e o Lipe culpava a bebida. Os dois se olhavam e


não entendiam. Tá certo, Manu viveu colada, desde os oito anos, com dois
meninos. Eles viviam na casa dela, fizeram muito projeto na impressora 3D, a
mãe de um deles até colocava três docinhos na lancheira, todos os dias, para os
três mosqueteiros. Dona Fernanda, mãe da Manu os chamava por Carrapato Um
e Carrapato Dois, e o pai, Seu Rodrigo, os abraçava e sempre perguntava da
escola. Os pais dos três se conheciam, se convidavam para aniversário,
adoravam o fato de que seus filhos tinham amigos inseparáveis e ficavam felizes
e orgulhosos por ser confiável uma menina ficar segura e feliz no meio de dos
meninos mesmo quando a puberdade avançou.

Mas disso, para um beijo flagrado num pátio de escola e, do beijo, para amor
resolvido trocado entre três? Porra de juventude era essa?!

— Tô velho, é isso. – Lipe achou a solução primeiro.

— Estamos.

— Eu tô bêbada, não é?

— Tá, sim.

— Tá tudo meio rodando.

— ‘Tomar um café forte e deitar, né, Monstrenga? – O Lipe tirou o restinho


de cerveja da mão dela e se levantou, recolhendo o lixo e a panela vazia do outro
irmão – Chega de cerveja para você, vamos todo mundo cuidar de deitar, porque
já chegamos no nosso limite e eu não quero saber o que vem depois da tua quarta
cerveja.

— Tô preocupado. – Era como se o Guto visse a irmã envelhecer cinquenta


anos em dez segundos. O gol do seu Corintcha aconteceu e ele nem vibrou.

— Agora não. – O Lipe continuava com a rédea na mão. – Que a gente não é
pai dela. Vem, Manu, vou te colocar para deitar e já te levo um café.
Ainda era uma menina aos olhos do irmão mais velho. Um saco de osso de
não mais que cinquenta quilos. A segurou no colo, por baixo dos joelhos, e a
carregou escadas acima ouvindo o soluço progressivo de uma mini-bêbada que
tornava a chorar.

O Guto foi esquentar água para dar o tal do café, mesmo sendo contra dar
café, mesmo achando melhor só deixá-la dormir.

E quando o Lipe voltou para a cozinha, os dois se olharam pensando no


monstro que tinham criado.

— Será que é por causa da gente? – Lipe procurava um porquê.

— Eu não fiz merda nenhuma.

— Será que é porque somos dois caras cuidando dela, que ela acha que tá
apaixonada em dois meninos?

— Porra, fosse assim, eu tinha que estar apaixonado numa mulher e num
homem.

— Guto, pega leve.

— Se isso fizesse sentido, todo mundo cuidado por pai e mãe devia ser
bissexual e eu te garanto, não sou.

— Tá, que seja, não dá para conversar com você.

— É que cê tá comendo merda.

— Não importa se é tempestade em copo d’água, o que provavelmente é, é


importante para ela. Manu tá chorando lá em cima e não para.

— E cê quer que eu faça o quê?

Decidiram não abrir a boca sobre isso. Nunca. Que ela quem teria que contar,
se quisesse. Eles eram irmãos, não pais, e os irmãos servem para proteger e
cuidar; vigiar e punir é coisa de pai e instituição. Decidiram se calar, era um
assunto delicado demais, a sexualidade da Manu sempre foi tópico para a mãe,
não para os meninos, e se a Manu não se abriu nem com a mãe, sinal que não era
território para ninguém.

Por isso, quando o Lipe subiu com um café e a encontrou dormindo com o
celular na mão, ele só a cobriu, colocou o celular no carregador perto da cama,
fechou a porta do quartinho de cientista maluca, e desceu.

De fato, até o dia em que ela decidiu contar para todo mundo, os irmãos
nunca mencionaram uma vírgula desse assunto.

Mas isso não quer dizer que Manu tenha se decidido entre um ou outro.

Capítulo Três

Acordou tonta. Ainda estava bêbada? Ela, de fato, ficou bêbada? Lembrou-se
do que tinha dito antes mesmo de abrir os olhos, e já se arrependia. A manhã
normal de uma adolescente que bebe demais da conta. Seu celular vibrou e ela
sabia que era Rafael dando bom dia, sorriu de pensar nele, abriu o aplicativo de
mensagens e teve um mini-infarto.

Rafael dava bom dia, sim, por texto, igual todo dia de manhã, mas a questão
é que, logo embaixo, tinha uma mensagem nova de outro remetente. Gabriel?!
Sentou-se na cama, de susto, a cabeça tilintando estilhaço, nunca doeu tanto. O
quarto girava e era quinta-feira, dia de aula, os pais lá embaixo, preparando café,
provavelmente sem saber que ela bebeu quatro cervejas sem gostar de sequer um
gole.

Se gosto é cultural, crescer ouvindo o pai falar que prefere destilados


desenhou um gosto na menina também. Ou era isso, ou o gosto rançoso de
cerveja que sobrava na boca.

Abriu a mensagem de Gabriel depois que soube sua posição no mundo, viu a
mensagem de voz que mandou para ele, morreu de vergonha sem conseguir
apertar o play, e leu a resposta dele:

— Você está muito bêbada, Manu. Tem alguém aí com você?

Bonitinho: três anos que partiu seu coração, nem mesmo uma palavra
trocada, nem um “feliz aniversário!” e mesmo assim, depois de ouvir uma
mensagem pensada sóbria, mas enviada bêbada, a preocupação dele era se ela
tinha quem lhe vigiasse.

Não respondeu por não ter onde enfiar a cara. E porque levantar da cama
parecia um desafio maior que as questões-pegadinha que os professores
colocavam nas provas. Foi direto para o seu banheiro e fez como nos filmes e
nas dicas que pescava dos irmãos: seis horas da manhã e o chuveiro jorrando
água gelada.

E só desceu quando sabia reconhecer sua própria cara no espelho, quando


calçou os tênis, vestiu o uniforme e separou os livros que tinha que levar para
aquela manhã de aula.

Não enganou ninguém. O pai ria com o rosto escondido no cangote da mãe.
A mãe, atrás da sua xícara, a olhava como se terminasse um batizado que
começou lá no Lipe. Os olhos de guaraná, iguais aos da menina, como raios-
laser, testando sua resistência e o quanto ela própria estava preparada para ver
sua filhotinha mais nova crescer.

— Cê tá legal? – O Lipe quebrou o silêncio primeiro.

— An-hãn.

— Senta, amor meu, pai vai esquentar torrada para você. – Seu Rodrigo,
sorriu, deu um beijo no topo da cabeça da filha e, cheirando a colônia e banho,
foi para a bancada da cozinha.

— Com a cerveja, pelo menos, matou quem te matava? – Dona Fernanda, a


mãe, sorriu, um pouco mais sábia, um pouco mais analítica e nem um pouco
idiota.

— Não sei se eu matei, mãe, ou se eu criei um monstro.

— Provavelmente um monstro. – Lipinho conhecia tanto a irmã porque ela


era a versão feminina e chorona dele próprio. – Mas, de todo jeito, estamos aqui
pra te apoiar.

— Pra apoiar, Lipinho? – Se ela mandou áudio bêbada, o que cacetes foi que
falou para o Lipe e para o Guto?!?!?

— Mas caralho, que escolha a gente tem? – O outro paladino entrou na


cozinha de cuecas e camiseta só para roubar as torradas que o pai colocou para
esquentar para a outra filha e saiu, sem passar nada nelas, com ambas na mão,
sem bom dias e olheiras de estudante que não sabe o que é dormir não porque
tem o privilégio da insônia, mas porque tem o privilégio da faculdade pública.
— Podia ser pior, Nina. – Rodrigo falou para a esposa olhando torto para os
três filhos, apaziguando a mãe que se sentia ofendida com a comunicação
cruzada que ela não entendia.

— Não salva a princesinha não, Dio, que mais tarde nós duas vamos
conversar.

Conversaram, mas não ali. Manuela tinha medo do que tinha feito, do que
faria, e do como entraria na escola sabendo que o Gabi tinha ouvido seu
discurso-lamúria. Entrou no carro pelo banco de trás, evitou olhar para o Guto,
no banco da frente, e para o Lipe, que a examinava como se ela fosse um
datasheet, pelo retrovisor.

— Para de olhar pra mim, Lipe.

— O olho é meu, eu olho para onde eu quiser.

E dizem que ele é o irmão mais velho.

Roeu os cantinhos dos dedos, as unhas, e não largou o celular até chegar à
porta do colégio. Os pais não são religiosos, nunca praticaram, o pai gosta de
dizer que quem tem amor basta para ir para o céu, mas o colégio é religioso e
tem uma santa, de gesso, de tamanho natural, colada em cima do portão de ferro.

Dez para as sete da manhã ela não queria abrir a porta do carro. Não queria
saltar, não queria entrar na mesma sala de aula que Gabriel, não queria ter que
contar para o Rafael o que disse para o outro, não queria soltar a mão do amigo
que já tinha e, ainda assim, queria pegar na mão do amigo que lhe faltava.

— Quer convite dourado para sair do carro, Manu?

— Me deixa, Lipe, não me irrita.

— Manu, cê tá atrasando o Guto, tá me atrasando e eu ainda tenho que voltar


para casa e devolver o carro para o pai. Anda! Pula do carro!

— Tô indo!

— Agora vai, e tenta passar o dia sem dar vexame.


— E bem vinda ao mundo dos adultos. – O Guto deu a palavra final – A
gente bebe para ter coragem e depois é sóbrio que enfrenta a merda.

— De todo jeito, – é como se soubessem que ela mandou mensagem para


quem não devia – Boa sorte.

Passando a portaria, há um grande corredor até as escadas que levam os


alunos para as salas de aula dos andares superiores, e, esse corredor é a única
coisa que separa a portaria das quadras esportivas. É um colégio imenso,
Manuela cresceu dentro daqueles portões, o Lipe se formou ali, o Guto se
formou ali, e a rapinha do tacho era como uma filha para muito professor que,
em reuniões, já cumprimentavam seus pais com um beijo no rosto e uma
advertência:

— Ela é a cópia feminina do Felipe.

— …mas notícia boa cê não tem, né? – Rodrigo ria escondendo o orgulho de
ter a filha bem do jeitinho que ela era.

Era de praxe, todo dia de manhã, Rafael se sentar nas escadas que separava o
corredor das quadras, bem onde bate sol, para esperar por Manuela. Antes, era
costume do Gabriel também. Os dois adiantados esperavam o atrasado e, quando
minguou a presença de Gabriel, Rafael manteve o costume porque achava
estranho se sentar sozinho na sala de aula.

Naquele dia, Rafael tinha fones de ouvido. Nem percebeu quando Manu
chegou, nem quando ela se sentou ao seu lado, mas percebeu quando recebeu um
beijinho na bochecha. Tirou um dos fones, deixou o outro, pausou o que quer
que ouvisse e não retribuiu o carinho.

— Que que foi? – Ela perguntou.

— Recebi sua mensagem.

— A de bom dia?

— A que você mandou para o Gabi – Amargo, raramente Rafael vai chorar.
Ele só fez o gesto que sempre faz quando desaprova alguma coisa: trava os
dentes e aperta a boca. – Pelo menos um de nós teve coragem de tocar nesse
assunto.
Fosse o nome de Gabi a palavra mágica que o trouxesse de volta, não tinha
surtido tanto efeito. Acabou de entrar pelo portão da escola, capuz do moletom
cobrindo as orelhas, e mochila nas costas, o tênis colado com silvertape não
porque não tivesse outro, mas porque gostasse dele daquele jeito. As pulseiras do
Senhor do Bonfim, uma mais surrada que a outra. O menino mais bonito da
escola, o Instagram mais solitário, e o rosto de raiva quente mirando os dois ex-
amigos que o traíram e que ele nunca perdoou.

Manu nem parou para pensar se era bom falar com ele, simplesmente foi. O
parou no meio do passo, engolindo em seco, só impulso, nenhuma coragem, e
esperou que as palavras brotassem de sua boca do mesmo jeito que brotaram
com as quatro cervejas no estômago.

Verdade é que bastou olhar para ele, sempre alto, sempre mais encorpado, e
ver os olhos azuis vermelhos de quem chorou feito um condenado. Desde o
quarto ano que ela sabe os seus detalhes e se sentiu culpada por vê-lo daquele
jeito. Quis abraçá-lo: será que pode?

Pior: na frente de toda a escola?

— … a gente pode conversar?

— Eu tô atrasado.

— Por favor, Gabi.

Não adiantava nem mensagem de bêbado. Gabriel ainda tinha uma faca
cravada no peito e Manuela, mais perdida que cego em tiroteio, ficou parada
onde o amigo esteve, olhando-o partir, e sem entender, desde o dia em que beijou
Rafael, porque é que Gabriel podia beijar todas as meninas da escola, e ela não
podia beijar só Rafael.

O sinal soou, Rafael pegou a própria mochila e foi na frente. Ainda não sabia
o que fazer com a mensagem bêbada simplesmente porque Manuela falava
demais sobre tudo, sobre eles, sobre Gabriel, sobre do que ela não tem nem ideia
do como chama.

Se por um lado a mensagem sequer fazia sentido, por outro, fazia todo o
sentido.
— Rafa, – ela o cutucou para pedir atenção enquanto ocupavam suas
carteiras, uma colada na outra, bem na primeira fileira – eu fui muito louca?

— Eu quem te pergunto.

— É sério.

— Você chegou a ouvir o que mandou para ele?

De verdade, não. Morria de vergonha só de imaginar as atrocidades que


disse.

— Então escuta, Manu. Depois me diz.

Apertou play na mensagem que enviou para o Gabriel e correu para colocar
o celular na orelha antes que alguém ao redor ouvisse qualquer sílaba de sua voz.
“GABRIEL, EU ME ARREPENDO DE TER TE CONHECIDO” foi o
suficiente para que ela se escondesse dentro do capuz do moletom e corasse.

“VOCÊ É O PIOR AMIGO QUE EU JÁ TIVE. VOCÊ NÃO PODE FICAR


BRAVO COMIGO DEPOIS DE BEIJAR TROCENTAS MENINAS SÓ
PORQUE EU BEIJEI O RAFAEL!”.

E, tudo isso, aos berros. Manuela olhava para Rafael que segurava o riso, e
queria que o mundo terminasse em abismo. “EU TE AMO, GABRIEL, MAS
EU AMO O RAFA TAMBÉM E VOCÊS DOIS PEDIRAM PARA EU
ESCOLHER, MAS EU NUNCA QUIS ESCOLHER NINGUÉM, ME OUVE,
GABRIEL, METE ISSO NA SUA CABEÇA, DEIXA DE SER UM MOLEQUE
BURRO QUE SÓ POSTA FOTO DE SI MESMO NO INSTAGRAM E VOLTA
PRO LADO INTELIGENTE DA FORÇA!”.

— Não ficou claro se era declaração de amor ou o quê.

— Cala a boca, Rafael.

— Manuela, desligue o telefone. – Porcaria de professora chata!

— Você falou que ama ele. – Rafael abria os cadernos e tirava o livro da
mochila, mas não trocava de assunto.
— Eu tava bêbada.

— Foi por isso que disse que me ama, também?

— Não fala disso comigo agora.

Rafael não disse mais nada até o intervalo, nem quando ela quis trocar de
assunto, quando riu de alguma piadinha do professor de física, nem quando a
menina mais metida da sala começou a se gabar (de novo) pela sua viagem à
Disney e chacoalhar os berloques de sua pulseira, e nem quando Manu
perguntou porque é que ele tinha aquela mensagem, sendo que ela só mandou
para o Gabi.

— Rafael, eu tô falando com você!

— E daí?

— … e daí que eu quero que me responda!

— Você tem que decidir se não quer que eu fale com você, ou se quer.

— Eu quero! Mas não sobre o conteúdo da mensagem.

— Então não vamos falar nada.

Saco de Rafael que, quando quer, é pior que o Guto! Respirou fundo,
nervosa, querendo brigar sem ter motivo, querendo brigar estando errada, sem
saber o que fazer com a dor de cabeça que ia e vinha, com medo do que disse
aos irmãos, com o medo de ser rejeitada de novo por Gabriel, e, pior, agora por
Rafael também.

Uma hora, sem querer, ela olhou para trás. Gabriel, no fundão, olhava para
ela com tanta raiva, que Manu virou-se de volta para a lousa e não deixou mais
os olhos escorregarem para a direção dele.

— Ele tá com raiva de mim. – Cochichou.

— Também, o que você queria?

— Me ajuda! Que saco, Rafael, assim cê só me atrapalha.


— Aqui. – Ele colocou o próprio celular sobre a mesa dela, por cima dos
livros, e mostrou a tela para ela.

“Vamos conversar no Intervalo?” Rafael mandou a mensagem para o Gabi.

“Só eu e você?”

“Não, ela também”.

— É só comigo que ele não fala?!?!?!?

— Manu.

— Ele tá falando com você, só comigo que ele fica mudo????

— Manu, fala baixo!

— Manuela. – Até o professor, escrevendo na lousa, ouviu o que ela tinha


para dizer. – Presta atenção na aula.

Ela ficou quieta. Baixou os olhos, a cabeça, e não olhou para ninguém.
Vontade de chorar. De nunca ter bebido nada do que o Lipe ofereceu, de ter pego
o celular na mão quando bêbada. Respirava fundo, com vergonha, as lágrimas
pingando dos olhos.

— Prô, – Ela pediu, sem nunca conseguir disfarçar o que sentia – posso ir no
banheiro?

No banheiro sim ela chorou e chutou a porta. Tinha o cabelão preto


comprido, seu maior xodó da vida era aquele cabelo, mas naquela hora, até isso
a atrapalhava. Escondeu-se atrás das mãos para chorar feito criança pequena
quando está com sono, esfregando os olhos, nem sabia mais pelo quê. Só queria
as coisas normais de novo. Se arrependia, todo dia que via Gabriel, de ter
aceitado o convite de Rafael para a garagem.

Fosse BV ainda, nunca que eles tinham se separado.

E o que mais doía é que Gabriel ficava burro. E burro, para uma menina que
foi criada com um irmão no ITA, o outro estudante de Medicina, era a única
coisa que ela nunca toleraria. Burro, não. Nunca. E o Gabi tirou dois na última
prova de química.

Dois é o tipo de nota que não existe. O professor de química brinca falando
que vai dar dois pontos se o “meliante” – é assim que ele chama os alunos menos
esforçados – conseguir escrever o nome sem errar.

E o que mais doía é que Gabriel vivia cheio de amigos, mas não tirava foto
de nenhum. Vivia rindo e fazendo piada, cheio do encanto que era dele, que faz
você rir junto, que faz você assumir o lado dele, por mais errado que estivesse,
mas parecia, ao mesmo tempo, que ele não era amigo de ninguém.

Censurou o próprio choro porque aluno que demora demais no banheiro


toma bronca de professor. Ainda mais alunos do ensino médio, todos
adolescentes, que dão um braço inteiro só para faltar um dia na escola.

Prendeu o cabelo no elástico, afastou a franja do rosto só para lavar os olhos,


se convenceu de que não parecia que estava chorando, e saiu.

Gabriel esperava do lado de fora. Era o único que não tinha medo de levar
bronca da inspetora que rondava os corredores em busca de um aluno matando
aula.

Não disseram nada. A vontade de chorar voltou todinha, cerrou os lábios


para segurar as lágrimas, tudo confuso dentro da cabeça da menina. Gabriel
sorriu como quem sorri para um filhote de cachorrinho, um jeito meigo, meio
bobo, e aí sim que ela teve vontade de chorar de verdade.

— Não chora.

— Tá bravo comigo, não tá?

— Tô, mas, porra, não chora.

— Eu tô tentando!

— ‘Tava sozinha quando gravou a mensagem?

— ‘Tava.

— Mas cê tava em casa, né?


— Tava, ué.

— Não é bom menina beber sozinha na rua.

— Obrigada, mas você não é meu pai.

Decidiu ficar brava. Era tudo tão confuso, que ver o Gabi calmo e sem falar
com ela, foi mais enraivecedor ainda. Era como se todo mundo soubesse o que
fazer e ela não, como se só ela fosse a louca que faz tempestade em tampinha de
garrafa.

— Eu tô esperando cê pedir desculpas. – Gabriel retomou, andando atrás,


enquanto ela disparva de volta para a sala de aula.

— Eu já te pedi um monte de desculpa! – Ela dizia sobre beijar o Rafa.

— Tá, mas por que cê não me beijou também? – E ele também.

— GABRIEL, – Ela parou no meio da escada – VOCÊ FICOU LOUCO??

— POR QUE VOCÊ SÓ BEIJOU ELE??

— Eu vou fingir que eu não tô ouvindo isso. – E voltou a andar para a sala.

— AH CLARO, PORQUE VOCÊ MANDAR MENSAGEM BÊBADA


PODE, AGORA TIRAR SATISFAÇÃO NÃO PODE?!

— CALA A BOCA, FALA BAIXO!

— VOCÊS DOIS! – Até que demorou para a inspetora perceber. – Para a


minha sala! Já!

Bronca de professora por estar com o celular dentro da sala de aula. Bronca
de professor por não prestar atenção na aula. Advertência de inspetora minutos
antes do intervalo começar. Calaram-se, pegos em flagrante, no meio do
corredor. Todo mundo diz que a inspetora tem um prazer imenso de dar canetada
na molecada. Age como um general quando não tem poder nem de dar
suspensão. E vive de mandar as meninas fecharem as pernas, mesmo com todas
elas de calça.
Entraram no cubículo apertado que a inspetora chamava de sala. Um cômodo
com dois ambientes, um, onde os alunos ficavam, outro, com a mesa e o
computador dela. Sentaram-se no banco dos alunos que aprontam, Manuela
chorando, vermelha, e Gabriel tão calado que, se a inspetora estivesse
preocupada no porque ele não tentava se defender da advertência, perceberia
que, na verdade, a menor das preocupações do garoto é se o pai receberia mais
um papel idiota.

— Eu só quero nós três juntos de novo – Ela cochichou enquanto a inspetora


foi imprimir a primeira advertência do dia.

— Você quem escolheu o Rafael!

— Eu não escolhi ninguém!

— Como não? EU VI!

— Mas e daí?! Você beija todo mundo!

— Vai dizer que você beijou o Rafael só por beijar?

— Não, claro que não – Falou, e nem percebeu que falou sem pensar.

— Pois é.

— Mas isso não quer dizer que eu goste só dele!

— Isso não existe, Manuela. Pelo menos fala que me quer de amigo e ele de
namorado.

— Não! Não é isso.

— Como que não? Sou eu quem tô louco, então?!

— Se isso é tão importante para você, eu termino com ele! Tá feliz? É isso o
que você quer? Eu faço, Gabi, pronto. Você vai andar com a gente de novo se
nós três formos só amigos?

— O Rafa nunca vai me perdoar.

— E nem eu quero isso!


— Que ótimo, então vamos fazer assim: Não manda mais mensagem bêbada,
esquece que eu existo, e da próxima vez que eu receber uma merda sua, vou
espalhar pra classe inteira!

— Gabi…

— Chega, vocês dois. – A Inspetora voltou com um papelzinho para casa,


uma caneta vermelha, vários checks marcados nos quadrados da lista de
advertência (de gritaria no meio do corredor durante o período de aula, até a
burlar professor e pedir dispensa para banheiro) e deu para cada um deles
assinar. – Assinem e voltem para a aula. Os pais de vocês receberão no e-mail.
Gabriel, se comporta, mais uma e eu encaminho você para a coordenadora.

Gabriel já contava com duas, mas Manuela nunca tinha sequer pisado
naquela sala. Curioso é que a menina não estava nem um pouco preocupada com
a punição da advertência e Gabriel, se inventasse qualquer desculpa, até que era
perseguição da inspetora, o pai acreditaria.

Aquele papel, para ambos, naquele momento, era o mesmo que nada.
Queriam mais tempo para brigar pois nada tinha ficado resolvido.

— Vai para o intervalo comigo? – Ela pediu quando os dois saíram da sala da
inspetora.

— Não. Vou copiar o exercício de matemática da Caty.

— Por que você não fez?

— Por que eu não quis.

— Por que não quis ou por que não sabe?

— Os dois. Que diferença isso faz pra você?

— PARA A SALA DE AULA! – A inspetora gritou.

— Na minha casa, então. – Ela tentou, como último recurso. – Cê vai?

— Cê sabe o que vai acontecer, não sabe?


Claro que sim: Quebrar o coração de todo mundo.
Capítulo Quatro

Tudo o que não queria era fazer o que estava prestes a fazer. Contou tudo para o
Rafa, menos a parte em que planejava terminar com ele. Contou sobre o Gabi na
porta do banheiro enquanto dividiam uma coca-cola às nove da manhã. Contou
sobre a advertência e Rafael odiou ouvir essa parte.

É como se a Manu fosse disciplinada só porque o Rafa o era. E ela se sentiu


envergonhada de mostrar o papel para ele muito mais do que ficaria se mostrasse
para a mãe. Baixou os olhos sentindo o rosto queimar só de ver as marcações de
caneta vermelha, e trocou de assunto:

— Mas cê vai lá pra casa, né?

— Eu te conheço, Manu.

— Cê quer um parabéns por conhecer sua amiga?!

— Você vai fazer o que o Gabi quiser fazer. – Rafael fingiu que não ouviu o
que “amiga” queria dizer.

— E você acha que eu tô errada?

— Eu só acho que não vai dar certo.

— Por quê?

— Por que cê vai terminar comigo e vai me obrigar a andar do seu lado até o
terceiro ano.

— E você vai andar, Rafael? – Novamente, mal secou as lágrimas por causa
de Gabriel, já chorava por causa do outro.

— Não.
— Então eu vou mandar vocês dois para a puta que pariu e vou andar
sozinha! Que quié, palhaçada! Vai treinando ficar sozinho, Rafael, porque ou nós
três andamos juntos, ou eu ando sozinha!

O que Manuela esqueceu é que Rafael foi sozinho a vida inteira. E que talvez
não seja uma opção, para ele, voltar a sê-lo.

Mas Rafael não disse nada, deixou Manuela escorrer direto para a biblioteca,
deixando até a coca-cola, ignorando qualquer coisa que ele disse e ficou de
carinha virada, mesmo com a carteira colada na dele, durante todo o resto do
período.

Gabriel, por outro lado, não parava no lugar. Vivia passando bem do lado da
carteira da Manu, um milhão de vezes, detonou um lápis inteiro de tanto apontar
só para poder jogar as casquinhas no lixo atrás da porta de entrada, bem perto da
primeira fileira. Ia e vinha, Manu sentia o coração acelerar de tê-lo por perto,
parecia que ia ter um ataque a qualquer segundo, e, de ver o sorriso dele,
flagrante, sentiu-se o bicho mais volátil e besta do Universo.

É como se a pele fosse feita de vidro e todo mundo soubesse o que se passa
dentro. Os dois meninos sabem, o Lipe sempre soube, o Guto nem pergunta, só
sabe; só faz o que ela quiser fazer, nem que seja uma volta no quarteirão, nem
que seja um sorvete, nem que seja um par de ouvidos para ela poder tagarelar.

E os pais sempre andam de risinhos porque vêem na menor um copia-e-cola


dos mais velhos, rompendo um ciclo de hospitais, rompendo um ciclo de filhos
homens, rompendo uma maneira de paternidade que o pai arrastou até o filho do
meio.

— Veio para quebrar tudo, não é? – O pai ria com a mãe e a Manu revirava
os olhos, toda vez, toda vez, porque ela não queria ser o copia-e-cola de
ninguém, queria ser só ela, Manuela Miller Ferreira, o que quer que isso
signifique ou o que venha a significar.

Não é, por exemplo, pensava consigo voltando de ônibus para casa, que ela
não fizesse questão do Rafa. Aprendeu um monte de coisa com ele. Vivia com
ele, Rafael era seu mundo e seu tesouro, ficava lindo quando sorria, mas lindo
mesmo era quando ele fechava a cara e ia beijá-la. Ou quando dizia as coisas
sem dizer, quem entendesse tanto melhor, quem não entendesse, que pegasse o
próximo bonde.
Rafael parecia mais que quinze anos há muito tempo, sempre caladão e
introspectivo, inteiro para dentro, pensa melhor do que fala e raciocina como
ninguém, mas o melhor dele é quando ninguém está olhando e ele se abre só
para ela ver.

Parou de sorrir igual uma tonta quando o homem em pé no ônibus sorriu de


volta. Ela é uma menina com quinze anos, cinquenta quilos, e que sempre pega o
mesmo caminho para casa. Na rua ela não sorri nunca, para ninguém, nem
mesmo para o motorista e cobrador que são os mesmos desde que aprendeu a
pegar ônibus sozinha.

Saltou no seu ponto e foi andando. Na rua, dobrando a esquina da avenida


para entrar nos bairros, voltou a pensar no Rafa e o sorriso vinha sozinho, feito
refrão de música, e ia se esticando pela cara inteira lembrando de quando ele
perguntou se podia beijá-la no pescoço ou segurar sua mão no intervalo.

A grande mágica dele é que ele sempre sabe. Não importa a pergunta, o Rafa
sempre tem uma resposta.

E, se não tem resposta, ele enrola tão bem, mas tão bem, que faz parecer que
tem resposta.

Por outro lado, era isso o que a deixava perdida. Se o Rafa sempre sabe a
resposta, por que é que ele não dá uma solução para tudo isso? Por que ele a
deixa chorar e por que briga com ela, se ele sabe no que tudo vai dar? Por que
ele deixou o Gabi ficar afastado esse tempão todo, se ele sabe exatamente o que
fazer?

Vai ver ele não sabe, né?

Na porta da casa dela, conforme o combinado, depois do almoço, Rafael


esperava Gabriel chegar. Sabia exatamente o que fazer, a solução que vai agradar
todo mundo, mas, primeiro, tinha coisas para resolver entre os dois.

Manuela vai terminar com ele e Rafael não vai aguentar a voltar ser sozinho.
Há três anos quase perdeu a voz quando Gabriel se foi e só não perdeu por
completo porque Manuela ficou. Sempre teve medo do dia em que Manu
também se fosse porque sabia que se afundaria. Não era uma escolha. Manuela
mantinha sua cabeça fora d’água, respirando, ativo. Parcialmente feliz.
Socialmente incluído.
Mas com Gabriel ele se sentia inteiro. Ele não precisava viver com ódio do
mundo porque, com Gabriel, ele se sentia livre. Podia fazer e ser o que quisesse.
Com Gabriel sentia-se protegido porque era como se acendesse as luzes do
mundo e dissesse:

“Tá vendo? Não tem perigo aqui!”

E pensar em perder tudo isso de novo… Por isso Rafael não tocou a
campainha quando chegou. Precisava estar pronto para qualquer coisa, inclusive
para o pior. Tremia por baixo da pele, nem almoçar conseguiu. Enquanto, para os
outros, era só questão de relacionamento e quem-beija-quem, para ele sempre foi
questão de sobrevivência.

Temia ficar sozinho, temia se separar da Manu. Temia perder Gabriel outra
vez. A conhecia tanto, que sabia que ela preferia passar a vida sem beijar
ninguém, do que perder seus amigos. A questão é que Rafael não sabia mais ser
só amigo.

E se… e se Gabriel não aceitasse ser só amigo? Gabriel chegou com os olhos
apreensivos, sem olhá-lo. Desde criança que Rafael sabe quando Gabriel está
nervoso.

— O que cê tá fazendo aqui fora? – Gabriel não entendeu.

— Eu não quero entrar sem uma solução.

— Mas é por isso que a gente tá aqui, porra.

— Manu vai terminar comigo e nunca vai beijar você.

Claramente, isso também não era o que Gabriel queria.

— Você conhece ela. – Rafael insistiu.

— Mas não é isso o que eu quero.

— O que você quer, Gabriel?

— … eu não sei bem o que eu quero, nem o que vim fazer aqui.
— E veio mesmo assim.

— Vim, claro. Eu quero ser três de novo.

— Do jeito que a gente era?

— É, pô.

— Igual era? – Pensa bem para responder, Gabriel.

— Com impressora 3D, carcaça de drone, falando merda e assistindo filme


velho. Cê já esqueceu como era bom ser moleque de tanto que vive dentro da
calcinha dela, caralho?

— Não fala isso.

— Mas cê não tá namorando ela?

— Tô. – Só que, no fundo, sempre sentiu como se faltasse alguma coisa.

— Só não estão transando – Gabriel presumiu – Pois a Manu que eu conheço


já teria te virado do avesso.

— Tentamos.

— E cê deixou a menina na mão?!?!

— A gente sempre achou que estava te traindo.

— E estavam. – Gabriel pensou bem antes de dizer isso?

— Só que eu não te devo nada, Gabi.

— Nem vem, Rafal que eu tô na merda.

— Isso porque é um egoísta do caralho.

— Tá, Rafael, não vou brigar de novo.

— Você cata todo mundo daquela escola, porra!


— É, mas cê nunca perguntou o por quê?

— Porque cê quer, caralho, porque todas querem!

— Eu deixei Manuela pra você. Porque você é um moleque viado que não
olha para ninguém e chupa a calçada por onde ela pisa. Eu sabia que qualquer
coisa entre vocês dois ia acabar acontecendo, então deixei o caminho livre.

— E ficou puto por quê?

— Por que eu não sou de ferro!

— Foi porque cê percebeu que nenhuma é ela.

— Manuela não tem a boceta de ouro.

— Repete isso.

— Manu não é especial, mas o foda dela não é isso. – Gabriel repetiu, mas
repetiu do jeito dele – É só ela olhar e sorrir, é só ela falar meu nome. A
namorada é sua, eu tô ligado, mas você não é idiota e eu vim aqui só para me
ferrar. Rafael, você sabe que eu amo ela e não é de hoje, mas você precisa dela
porque não sabe se enturmar, você não confia em ninguém e não merece ficar
sozinho de novo. E Manu precisa de você porque, comigo, ela só vai descambar.
Nunca vou ficar de boa com isso, mas foi o que eu escolhi. Só vê… – Ele fungou
para não chorar – só vê se cuida melhor dela, porque não tá legal esse negócio
dela beber e me mandar mensagem.

— Aí é que tá:

— Aí é que tá o quê?

— Não tem como ser suficiente pra ela.

— Vocês se esforçam.

— Eu não sou você, Gabriel. Não dá certo de dois. Não é falta de amor, não
é falta de tesão. O tempo todo a gente tá esperando você chegar. Ninguém nunca
falou isso em voz alta, mas eu sei.
— Eu já pensei nisso.

— Pensou.

— … mas nunca falei nada porque ‘cês diriam que sou retardado.

— Vem, Gabe.

Manuela atendeu a porta, depois que Rafael tomou coragem para tocar a
campainha, e, para Gabriel, tudo continuava igual ali dentro, só a cachorrinha
Monaliza que não existia mais. Sentiu o aperto de saudade de tudo. O sofá onde
assistiam todos os filmes favoritos da Tia Fê, as fotos em cima do rack, a
cozinha, palco de todas as brigas e risadas da casa. Puxando da memória,
conseguia sentir o cheiro de café que o tio passava de tarde e a pipoca
estourando entre um filme e outro.

Ver Manu ali, crescida, encheu seu coração de arrependimento. Podia não ter
sumido por três anos. Podia ter aceito que Manuela era namorada de Rafael, e
ter se contentado em ser amigo.

Mas como olhar o sorriso e ouvir a voz, rir das piadas e aceitar que nunca vai
beijá-la ou fazer o carinho que sempre quis fazer?

A vontade que ele tinha não era nem de lavar a roupa suja, era só abraçá-la e
dizer que está crescendo e ficando linda. Toda vez que ela prende o cabelo, ele
queria dizer isso, toda vez que ela prende o cabelo ele se desconcentra. De
vestido e descalça, ela olhava para ele sem sorrir. Ninguém sabia o que dizer e
Manuela quase chorava, também presa ao passado, olhando os olhinhos de seu
Gabi se encherem d’água, louca para saber o que ele tem feito de bom pelos
tempos em que só compartilhavam a classe, mas não foram nem um pouco
amigos.

— O negócio é o seguinte: – Manuela quebrou o encanto porque alguém


teria que quebrar, e trouxe os pés de todo mundo de volta para a terra – Ou
somos três, ou eu vou andar sozinha. E acabou.

— É. – Gabriel coçou o nariz e depois se sentou no sofá sem ser convidado


porque aquela casa ele conhece desde quando era molequinho. – Pois é. Me
contaram.
— Mas eu tô com um ódio de vocês dois!

— Eu estava bem antes de você mandar mensagem bêbada.

— BEM??? – Bem um cacete, Gabriel – Você copia exercício daquela


patricinha besta!

— E que diferença faz? Eu não vou virar um Einstein e tá bom pra mim
passar com cinco.

— Você é burro, Gabriel. Um BURRO!

— Manu, por que tá com ciúmes da Caty? – Rafael se intrometeu só para


fazer sangrar.

— Eu não tô com ciúmes!

— Desde que a Caty entrou na escola você só sabe falar mal dela.

— É porque ela é uma nojenta!

— Mas cê nunca nem falou com ela…

— O santo não bateu e eu não sou obrigada!

— O santo não bateu ou… você tá com ciúmes porque a Caty fala com o
Gabi e você não?

— Olha… – Até perdeu o fio do discurso depois de uma pergunta ridícula


daquelas – Eu já me arrependi de mandar mensagem bêbada, tá legal?!

— É importante saber se você tem ciúmes da Caty.

— Cê tá com medo que eu namore a Caty, né, Manu? – Gabi nem escondeu
o sorriso.

— Ano passado você não quis colar a gente do mesmo jeito que quer colar
agora. É, ou não é por causa dela?

— Não é!!
— Então porque você quer colar a gente logo agora?

— …até o apelido dessa menina me dá nojo! Eu nem conheço ela, e não


aguento mais ouvir sobre a sua viagem para a Disney! Meu Deus, e aquela
pingentaiada fazendo barulho!? Ugh!

— Tá, eu mudo a pergunta: Por que três anos atrás cê não me beijou
também? – Gabriel voltou para a estaca zero.

— Meu Deus do céu, gente, vão embora da minha casa.

— Eu quis perder meu BV com a Manu porque você já tinha perdido o seu,
Gabi. – E Manu nunca vai saber que aquilo era armadilha de um Rafa que
conhece a amiga muito mais do que ela supõe. – Eu sei que a gente combinou de
esperar ela decidir com qual de nós dois ficaria, mas ninguém naquela escola me
beijaria, e eu nunca iria atrás de ninguém.

— E eu achei que você não fosse ligar, Gabi, porque você beijava um monte
de menina e vinha contar para a gente como é que tinha sido. Você sempre fez
parecer que beijo não é nada demais.

— Eu queria que você escolhesse o Rafa, Manu.

— Você disse isso pra mim no cinema. – Manu fechou a porta de casa e fez o
Rafa se sentar no sofá também, enquanto ela ficou parada no meio da sala, sem
sentar nem do lado de um, nem do lado do outro – Gabriel pediu para eu
escolher você, Rafa.

— Ouvi quando ele falou.

— Ouviu? – Até o Gabi ficou surpreso.

— Pois é. Foi aí que eu soube que você não ia escolher nenhum de nós. É ou
não é, Manu?

— Eu não quero escolher ninguém e não vou! Ou a gente anda de três, ou eu


ando sozinha!

— E se você não tivesse que escolher? – Não era, nem de longe, a primeira
vez que Rafael pensava nisso.
— Se eu fosse duas, já tinha uma Manu com cada um! – Talvez tenha saído
sem passar pelo cérebro?

— Mas não é o caso.

— Lógico que não, Rafa, por isso que eu tô falando: a gente termina, eu e
você, e nós três ficamos amigos. – Com certeza isso não passou pelo cérebro.

— E você acha que vai tudo ser como antes.

— Tem que ser!

— E você acha que eu nunca mais vou querer te beijar de novo?

— …

— Você também nunca mais vai querer me beijar? – Era uma pergunta, mas
Rafael fazia parecer constatação cínica de óbvia.

— A gente se esforça!

— E eu também, então, nunca vou poder te beijar? – Gabi entrou na


discussão só para rendê-la.

É, pessoal, isso não vai dar certo.

— A gente nunca mais vai ser igual, nunca mais vai ser criança, a gente
nunca mais vai ser amigo que nem era. – Rafa sempre dois passos na frente já
previa o começo, o meio, e o fim.

— Tá dizendo que prefere ser sozinho do que ser só meu amigo?

— …Não, não é nada disso.

— Então o quê?

— Talvez a gente ainda consiga andar de três. – O Gabi se levantou e o Rafa


não reagiu – O problema é que eu descobri que errei feio quando te falei para
ficar com o Rafa.

— Você queria que eu tivesse escolhido você?


— Também. – Foi chegando pertinho.

E perto, com aqueles olhos azuis, parecia que ele a acalmava. Silenciava a
cabeça rodando rápido, esfriando uma raiva e uma angústia que carregava desde
que viu o Gabi chorar, depois de ser flagrada beijando Rafael, isso, há quase três
anos. Ela não quis se afastar quando sentiu a mão dele tocar seu rosto, nem quis
se afastar quando via o rosto dele se aproximar do seu.

— Então, o que foi? – Para falar a verdade, quem visse de fora diria que ela
estava hipnotizada.

— O erro foi achar que eu poderia encontrar outras garotas.

— Não tem outra menina, Manu. – Rafael se levantou e o coração dela batia
no ouvido. – Eu nunca abri mão e não vou abrir mão agora.

— Por que ’tão os dois perto?

— A pergunta tá errada. – Gabriel chegou mais perto e Rafael chegou


também. Tão perto, mas, tão perto, que ela sentia o calor do corpo de um nas
costas, o calor do corpo do outro no rosto.

E isso era a pior parte. Nunca ficaram tão perto assim e, quando ficaram, ela
não tinha idade para pensar maldades. Já reviu essas situações, com os dois bem
perto, imaginando outros desfechos, mas só na calada da noite, quando não tinha
ninguém para julgá-la, quando a porta do quarto estava fechada e todo mundo
dormia. Só assim, pensando nos dois, sabendo que isso estava muito errado,
imaginando um Rafa adolescente e não menino, imaginando Gabi crescido
também, que ela se permitia pensar em tanto calor.

Só que daquela vez era de verdade, não era imaginação de menina pós-
púbere, era tão real que o sorriso do Gabi se espalhava e a contaminava de um
jeito pueril que não tinha como estarem os três, errados, todos de uma vez.

Rafael encostou o corpo primeiro porque sempre teve mais coragem e


porque os seus toques não eram novidade para ela. A segurando pela cintura,
revisitando a quentura e o toque macio que já conhecia, encostou a boca no
ouvido dela só para estourar:

— A pergunta certa é se você é capaz de escolher só um de nós e para qual


de nós é capaz de falar não.

Capítulo Cinco

Podia escolher a si mesma. E isso passou por sua cabeça. Era esse o discurso
que tinha quando desceu e atendeu a porta. Ou eram os três (amigos, pelo amor
de Deus!), ou ela andaria sozinha. E nada de ficar cedendo para um e para o
outro, nada de ficar aceitando baixar a cabeça e fazer a vontade de um, depois a
vontade de outro, para ser infeliz consigo.

Mas, talvez, olhando o Gabi tão pertinho, possuída por um Rafael que parece
nascido só para o desvio, menininho lindinho da fobia social só da porta para
fora, talvez dizer sim para os dois seja escolher a si mesma.

Talvez, mesmo que não dure, mesmo que briguem semana que vem, mesmo
que saiam na porrada e digam baixarias, talvez, beijar um com o outro colado
nas costas seja dizer sim para uma espécie de atrevimento e uma espécie de
coragem que é exatamente o que a mãe espera dela.

Dona Fernanda, quando cata a pequenininha para conversar, sempre diz para
que ela siga o coração. Quinze anos, não é nenhuma neném, já pode beijar, já
pode transar e, se bobear, pode fazer filho. Dona Fernanda, quando abre a boca
para falar de sexo, usa o Lipe de exemplo e diz que sexo tem que ser com a
pessoa por quem você esperaria cinco anos, dez anos.

Segurando as mãos de seu Rafael na cintura, sorrindo, minimamente mais


calma por ter tomado uma decisão, avançou com a boca para o Gabi, com
vontade demais, por tempo demais, de beijá-lo. Talvez fosse um beijo bem
merda, pensou, de menino de língua muito dura e que não sabe receber a boca de
uma menina. Se fosse um beijo bem ruim seria fácil escolher. O beijo do Rafa é
bom e dá calor, deixa você tilintando de vontade de fazer mais, de beijar mais, de
deixar ele brincar com a borda da camiseta e tocá-la por baixo.

Se o beijo fosse uma bosta, era só aceitar que não, eles jamais funcionariam
como três de novo e o Gabi podia procurar seu próprio rumo. Pronto: Vida que
seguiria.

Mas o leitor sabe que não foi nada disso. Gabriel encostou o lábio e Manuela
perdia o caminho de casa. Perdeu os parafusos da cabeça, esqueceu como
raciocinava, assumiu que a tal da Caty era um ciúme pontudo, doído de maldoso,
que comia seu calcanhar toda vez que a outra respirava ao redor dele.

E virou o seu Gabriel desde o toque dos lábios.

Gabriel ficou marcado feito gado, com ferro quente, vá ser gauche na vida,
vá andar torto e esquecer como é o direito! Gabriel cantando o como a vida é
bela com uma menina para chamar de musa e para quem sempre vai voltar.

Manuela, que não queria abdicar de nenhum dos dois, agora os queria. As
mãos do Rafa na cintura subiam para suas costelas, com o Gabi na boca, dançava
pelas costas, o Gabi sempre na boca, ela sentiu o toque do Rafa na pele nua de
seu pescoço e foi ela, não eles, quem decidiu que vai cantar o torto e assumir que
é melhor assim, e aceitar qualquer castigo pelo desvio.

E foi ela quem deu o voto de Minerva para o plano de um Rafael que passa
tempo demais dentro de própria cabeça.

O Gabi é o louco, vai dizer sim para tudo, a Manu é quem não é. Ela puxou o
Gabi para mais perto de si, a mão subiu para a nuca, olhou para ele pensando no
como ele deve ficar bonito quando está sem roupa, e disse, com todas as letras,
que nunca vai ser capaz de escolher.

— E se eu ver você copiando lista, a casa vai cair, Gabriel.

— Tá bom, Manu.

— E amanhã você volta para a primeira carteira, do meu lado e do lado do


Rafa.

— Vamos os três para o fundão, vai?

— Não. – Rafael jamais abandonaria a primeira carteira porque é bolsista.


Moleque bolsista tem que se esforçar duas vezes mais, se quiser continuar
bolsista. E depois porque não tem disciplina para prestar atenção na lousa com
muito barulho em volta.
— Eu sou avoada, Gabi. Se eu for para o fundão, fico que nem você.

— E que mal tem?

— Eu morro, mas não fico burra.

— Para de me chamar de burro.

— VOCÊ TIROU DOIS EM QUÍMICA!

— Ok, Manu, essa não é a hora. – Por trás da Manu, Rafael escondia a risada
alta. Parte feliz, parte encaixado, mas a maior parte dele se sentia finalmente em
paz.

— Só porque dei beijinho, cê acha que eu vou te perdoar por ter ficado
burro?!

— Manu… – Rafael mordeu os lábios para não rir alto.

— Quer beijar de novo, Baixinha?

— Só quando você tirar sete!

— Me deixa em paz, é só a escola!

— E que mais cê faz da vida?!

— Nem meu pai me dá sermão, Manu, me deixa!

— Pois é, mas se seu pai fizesse o trabalho dele, eu não teria que falar nada.

— Ei. – Rafael tentou de novo – Sem briga.

— Vai dizer que tá feliz com a nota do Gabi, Rafael?

— Feliz não tô, mas tem muita hora pra brigar, não precisa ser agora.

— Tem muita hora pra brigar, Rafael, inclusive agora!

— Mas que caralho, Manuela, eu esqueci o como você era chata! – Gabriel
revidou.
— Chata?!

— Nossa, meu, já vou pra frente com vocês, já vou perder toda a diversão do
fundão, tem que ficar torrando a paciência por nota que eu já tirei e que nem
lembrava?

— Você nem gosta tanto assim do fundão. – Rafael cutucou.

— E como você sabe?

— Suas fotos do Insta.

— O que tem elas?

— Tá sempre sozinho.

— Quer saber por quê?

— Eu sei o porquê.

— Pois é, culpa sua.

— Eu sei.

— Eu poderia gostar mais do fundão se fosse para lá com vocês. – Esperança


é a última a morrer, não é?

— Desculpa, Gabi. – Rafael se intrometeu.

— Pelo quê? Por ser um merda de um nerd que nunca vai para o fundão?

— Não, eu não me arrependo de me dar bem na escola.

— Então, pelo quê?

— Por afastar você da gente. – Essa parte não estava nos planos. – Fui eu
que estragou tudo.

— Ei, Rafa. – Gabi dava outro tipo de sorriso e, antes que ele dissesse,
Manuela entendeu tudo. Talvez não precisasse explicar, afinal de contas, que um
gosta do outro do mesmo jeito que ela gosta dos dois.
— Tô te ouvindo, não precisa me chamar.

— Quer me beijar também?

— Sai fora.

Gabriel não entendia. Todo aquele discurso do lado de fora da casa da Manu
para que, então? Para compartilharem a mesma menina como se ela fosse um
brinquedo que só tem um, mas os dois querem? Ninguém está pronto para
entender que o motivo dos dois aceitarem dividi-la era porque se importam, um
com o outro, na mesma proporção em que a querem?

Rafael tá doido ou tá só confuso?

— Rafael… – Manuela já tinha tomado sua decisão. E se estava pronta para


arcar com os resultados, esperava que eles também estivessem – Cê não quer
saber como é beijar em três?

Manuela queria. Mais do que beijar Gabriel ou Rafael, Manuela queria saber
como é beijar em três. Virou-se, entre os braços dos meninos, para Rafael. Um
sorriso que ele já conhecia, mas Gabriel ainda não teve a chance. Sorriso de
menina arteira cobiçosa e que enlouquece devagar.

— Não me testa, Manu.

— Todo mundo tá testando todo mundo…

— Não quero. – Rafael deixou bem claro.

— É mesmo? – Convivia com ele por tempo demasiado para saber que
aquelas bochechas vermelhas são coisa de quem está com tesão – Você tem
certeza?

— Tô assim por sua causa, não por causa dele.

— Não tá assim por causa de tudo, não?

— Não. – Taxativo – Não inventa moda.

— Eu vou te beijar, Rafael. – Manuela amaciou – E se você quiser parar, é só


dizer.

— Gabriel, você é viado?


Capítulo Seis
— Viado é bicho. – Sorriu, olhando para Rafael, por cima dos ombros da
Manu.

— Que seja. – Rafael não tem paciência para rodeios – Você beija menino?

— …e menina também.

Mesmo que tudo apontasse para um final feliz, Rafael deu um passo atrás.
Isso não estava no plano, não fazia parte do que ele queria, e estava muito além
do que ele estava disposto a abrir mão. Olhou para Manuela, de Manuela para
Gabriel, os dois sorriam e pareciam malucos iguais.

— Se você quiser nós dois, vai ter, mas ele não. – Rafael respondeu para
Manuela e Gabriel emendou um “por enquanto”, dentro da própria cabeça, mas
não se atreveu a dizê-lo.

Manuela teve que imaginar o que teria acontecido se Rafael tivesse beijado
Gabriel. Se Rafael não tivesse enfiado uma estaca nas vontades. De madrugada,
estava tão acordada, que incendiava o quarto inteiro. Beijá-los desencadeou uma
urgência louca que não se calou até a hora em que conseguiu ficar sozinha,
dentro do seu quarto escuro, no meio da noite, onde ninguém pudesse rir
daquilo, nem chamá-la por puta.

— Manu, tá acordada?

Imaginava um cenário nu, suado, cheio de mãos e línguas, Rafael misturado


no Gabriel, muito, muito, muito melhor que pornô. Ninguém gemia berrando.
Todo mundo sorria. Quem não sorria, suspirava. E, quando o Lipe chamou, com
dois toquezinhos tímidos na porta, todo mundo se contorcia.

E ela estava quase lá.

— Manu?

Podia fingir que estava dormindo. Podia ignorar o chamado, ficar bem
quietinha, e continuar quando ouvisse o irmão voltar para o próprio quarto.
O único problema disso é que, quando o Lipe chama, no meio da noite, é
sinal que ele não consegue dormir. Sinal que o amor lhe mordeu com mais raiva.

— Tô acordada. – Ela respondeu, se levantando da cama, lavando as mãos


rapidinho em seu banheiro pequeninho, e procurando dar ordem à cabeça, ao
corpo, e às ideias. Prendeu os cabelos e só abriu a porta quando conseguia mentir
para si que estava só sem sono, e não quase nas estrelas.

E Felipe perceberia as bochechas vermelhas, a boca mais rosa, a raiz suada


do cabelo, se não estivesse muito dentro de seu próprio universo particular.
Entrou já querendo colo, procurando aconchego, porque era assim, desde quando
ela era muito pequena, toda vez que tinha problemas para dormir.

— Eu não vou atrapalhar? – Perguntou só por perguntar, mas para quem está
pecando, qualquer centelha parece inferno.

— Não, claro que não. – E ela já morria de vergonha só por imaginar o irmão
rindo da sua intimidade. – Você quer colo, né?

— É, mas hoje eu não tô pensando na Andressa, não.

— Ish, vou falar para o Guto levar guarda-chuva para a faculdade amanhã.

— É sério.

É sempre sério, mesmo quando é sobre a Dê, é sério para a Manu. Nenhum
dos Ferreira riu, nem nunca vai rir, da situação do Lipe. Sentou-se na própria
cama encostada na parede, e esticou as pernas para que ele deitasse a cabeça.
Sem nenhuma cerimônia, ele se deitou, igual quando era menor, de lado, usando
as pernas da mais nova de travesseiro.

E ela também, como todas as mulheres da vida dele, tentaram dar jeito no
mafuá. O cabelo dele nunca ficou arrumadinho e penteadinho, e nem nunca vai
ficar.

— O que foi dessa vez?

—Tô pensando em largar o emprego.

— A mãe vai ficar feliz. Ela odeia o seu emprego.


— …

— Vai largar o emprego por causa da mãe?

— Não e sim.

— Lipe, se você veio aqui me contar uma coisa, VOCÊ CONTA ESSA
COISA.

— Monstra, o que você acha da ideia da mãe e eu largarmos o emprego?

— Cê tá maluco?

— … – O Lipe riu um pouquinho antes de continuar – Porque a mãe tá de


saco cheio de dar aula, dá aula porque isso mantém a casa, mas você sabe que;
por ela, ela só seria pesquisadora e ‘taria mais que bom.

— Hã. – E contou novidade para um total de ninguém.

— Eu tô pensando em chamar ela para a gente abrir a nossa consultoria.

— Você e a mãe de sócios numa construtora?

— Não, aí é que tá: A mãe é doutora, acabei de virar mestre. Ela conhece
Deus e o mundo do ramo de engenharia, cê sabe.

— A mãe é fodida, tá, e daí?

— Então: tô querendo ver com ela se ela aceita a gente colocar todos os
estudos na prática. Tem muita construtora por aí, inclusive onde eu trabalho, que
contrata consultor freelance para uns projetos especiais. Às vezes até time
inteiro.

— A mãe vai curtir muito isso.

— Cê acha?

— Se você largar o emprego hoje, ela larga o emprego amanhã.

— O foda vai ser o pai. – Ele já tinha pensado em tudo.


— É, mas isso não tem nada a ver com ele.

— Eu sei, mas se o pai falar que a ideia é ruim, a mãe não vai fazer.

— Eu digo pro pai ficar quietinho e lindo no cantinho dele.

— Cê acha mesmo que ela aceita, Manu?

— Aaaaaaaacho – Bocejou, vencida pelo longo dia.

— Posso dormir aqui com você, hoje?

— Mas cê vai dormir, ou vai ficar se remexendo igual da outra vez?

— Dormir. – E bocejou também – Fui andar de bike agora de noite e trombei


um pessoal. Tô morto.

— Tá, então apaga lá a luz. E vê se não rouba a minha coberta!

— Você era mais legal quando era mais nova.

— Lipe? – Ele já tinha a mão no interruptor quando ela o chamou.

— Quié?

— Posso ser a secretária de vocês?

— A mãe vai gostar muitão disso.


◆◆◆

A molecada demorou pouco para perceber o que estava acontecendo. A


primeira fofoca, a óbvia, entre os alunos que nunca trocaram de escola e que
viveram para ver o popular junto dos nerds, foi que eles voltaram a ser amigos.
O Gabi de volta com o Rafa, a Manu sempre no meio. Foi a primeira vez que o
Gabi abriu o caderno, no ano, e eles já passavam de setembro. Manuela perdeu a
paciência quando viu tanta folha em branco, o Rafa franziu as sobrancelhas, mas
não disse palavra. Brigavam com ele mais que seus pais e, mesmo que o Gabi
quisesse, não conseguiria alcançá-los antes das férias de dezembro.
A segunda fofoca surgiu quando o Gabi abraçou a Manu, no meio do
intervalo (e adolescente bom é adolescente que chama recreio de intervalo), e o
Rafa não fez nada. Todo mundo sabia que o Rafa era louco pela Manu, desde
que se conhecem por gente. Ele nunca fala nada com ninguém e ninguém nunca
viu o Rafa rir longe dela.

Algumas meninas até achavam bonitinho o jeito dos dois porque parecia que
ele era feito só para ser dela. Ninguém gostava da Manu, mas ela ficava
suportável quando estava do lado do Rafa.

Caty foi quem percebeu primeiro. Ela sentiu a ausência do Gabi, detestou
não ter mais seus exercícios copiados, sua vaidade animada, seu ego lambido,
mesmo que por interesse. E o jeito estridente da Manu de brigar com ele porque,
mais uma vez ele foi burro e não fez a tarefa, enquanto ela, a Caty, entregaria sua
tarefa feita bastasse pedir, era o que mais a consumia.

Discretamente, um pouco por dia, avançava para as fileiras da frente. Vivia


de remoer ciúmes. Copiava a lousa, olhava para os três, ouvia o professor
explicar ótica, olhava para os três. Até que… de tanto caçar cabelo em ovo,
achou: Manu de mãos dadas com os dois por baixo da mesa. Enquanto o
professor entregava as provas corrigidas.

Mas isso não era fofoca suficiente. Amigos seguram mãos. Contou para o
fundão que também se viu sem seu líder, eles até deram trela para a fofoca, mas
não era fofoca o bastante. Não dá para xingar a Manu porque ela segurou a mão:
é século vinte e um, pessoal. Se quisessem provocar a raiva num desafeto seu (e
Manu era alvo fácil de desafeto), tinha que ser por mais que mãozinhas dadas.

O Instagram do Gabi voltava a ter outras pessoas além dele. Manu sempre
sorrindo, o Rafa sempre colado. Um dia ele tirou uma foto dela dormindo no
colo de alguém, a cabeça apoiada nas pernas, mas não dava para saber se era a
perna do Gabi ou do Rafa.

Caty se atreveu a puxar conversa e fazer o trio virar quarteto. Manu nem
respondeu, ela tinha um limite ciumento claro, fazia cara feia, menina de vidro
quando não gosta, não faz nem questão de mentir. O Gabi respondia
tranquilamente, mas não puxava assunto novo. Teimosa, ela se convidou a
estudar com eles no fim de um dia qualquer, cansada de dar murro em ponta de
faca, depois da aula, sugeriu que talvez até comessem alguma coisa na cantina,
mas Manuela deu desculpas de que precisava ir para casa, Rafael só disse não
queria.

Mas Gabriel aceitou.

Ótimo! Gabriel aceitou. Gabriel estudando? O time do fundão inteiro


apareceu para estudar com o Gabi, algazarra na biblioteca. Precisavam saber o
porque ele, do nada, parou de ser o líder da manada. Por que ele, que sempre riu
dos nerds da primeira carteira, estava lá com eles. Todo mundo achou que talvez
fosse Manuela. Quer dizer, ela até que é bonitinha, mas não é maravilhosa, e
ainda tinha Rafael.

E, se fosse para escolher amigo pela beleza, todo mundo sabe que a Caty
ganha.

Ele abriu o caderno na frente de todo mundo, falou que Memórias Póstumas
era facinho de ler, riu com as piadas toscas. Gabriel aceita conversa e ri com
qualquer um, nunca se indispôs com um babaca porque, dos babacas, ele sempre
foi o maior.

Só não contava que Caty veria o coraçãozinho de caneta gel e rosa com três
iniciais na borda do seu livro de português: GMR. Manu sempre no meio.
Gabriel comentava sobre o último episódio de uma série da Netflix com outro
colega, nem se lembrava mais que tinha um coração na borda de seu livro, mas
Caty percebia aquilo como um predador percebe a presa.

Ali, olhando Catarina alvejar o coraçãozinho simbólico que Manu vivia


fazendo em todos seus livros desde que voltaram a ser três, ele engoliu em seco e
contou com a burrice dela.

— É por isso que você agora tá na primeira carteira, Gabriel? – Catarina nem
falou baixo, nem escondeu. Sorria com cara de detetive que descobre o bandido,
vencedora, pronta para soltar um escândalo e acabar com o reinado daquela
Manuela que se acha mais especial que qualquer um.

Mesmo que ninguém desse a mínima para ela, Catarina dava. E se comia de
inveja e ciúmes sem nem nunca ter parado para pensar no porquê.

— Eles foram meus amigos desde praticamente quando eu nasci. – Ele sorriu
com seus dentinhos brancos, a cara toda contagiada, num disfarce perfeito que o
faria rei do mundo se fosse menos sonhador e mais ambicioso.

— É, mas agora não são mais.

— E quem controla isso? Você? – Ele chegou com o rosto bem perto do rosto
dela, todo mundo parando de falar para perceber o clima. Por baixo da mesa, o
resto dos alunos se cutucava para disfarçar e prestar atenção na novidade que
surgia entre os livro abertos. – E o que isso muda na sua vida?

— Não é o que muda ou o que não muda pra mim, Gabi – O que tinha de
boba, tinha de venenosa. E antes que percebessem sua bobice, com certeza
provariam de seu veneno – É o que muda para você e os seus amigos.

— Tá certo… – O coração descompassado e a boca seca. Só de pensar o que


falariam de Manuela quando descobrissem, ele seria capaz de entregar o que
quer que Catarina pedisse. – O que você quer, Caty?

— Nada, ué. Cada um que cuide da sua vida.

Mas Gabriel previa a vida até a formatura. As risadinhas, as brigas, as


confusões. Manuela chorando porque a chamavam de puta, Rafael brigando com
todo mundo e sendo expulso. Ele levando a fama de viado e de corno, ao mesmo
tempo, por ter o coração derretido em duas direções.

— Não é o que você tá pensando. – Ele preferiu dizer.

— Eu não achei que fosse, – e o xeque-mate: – mas agora que você tá se


explicando, eu sei que é.

— Deixa a Manu fora disso.

— É? E o que eu ganho, hein?

— Tá sempre atrás de mim. – Ele disse, a voz mais baixa, só para ela ouvir,
sabendo exatamente o que ela quer, mas sem um pingo de vontade de dar. De
todas as meninas que Gabriel já esteve, esta era a única que ele sempre fez
questão de manter distância: não porque fosse feia, Catarina é linda, tem um
cabelão do jeito que ele gosta, tem peito, tem bunda, é toda certinha nas formas e
nos redondos do corpo. A questão é que ela é a única capaz de infernizar a vida
de um sujeito até dobrá-lo ao meio e enfiá-lo no bolso. Pisar tanto até só sobrar o
capacho. E Gabriel não estava disposto a ser capacho de menina nenhuma – Tá
sempre me dando os cadernos para copiar. Me viu encostar na Manuela, e se
convidou para estudar com a gente. E você vive falando mal dela.

— Essa menina é intragável.

Intragável. Três anos de exílio, era assim que se sentia, três anos de rejeição,
conversando com paliativos e beijando paliativos até finalmente ser aceito de
volta, e é assim que essa menina chama a sua Manu? Se houvesse alguma
vontade de beijo antes de Catarina falar mal de seu amor, ali, não haveria, nunca
mais, e nenhuma.

— Mas a gente não tá falando dela. – Ele sorriu, o coração batendo repulsa, a
cabeça acusando dever. – Eu tô falando é de você, Catarina. O que você quer de
mim?

O grupo de estudos inteiro entendia que ia dar romance, Gabriel melava o


sorriso e Catarina caía na conversa.

— Vem comigo.

A puxou pela mão, correndo da Biblioteca para a garagem das vans


escolares, o esconderijo de todos os beijoqueiros da escola. Por entre as frestas
de luz da porta automática que está sempre um pouco aberta, ele a olhava e se
empenhava no mel falso.

— Você é a única menina da escola a quem eu nunca quis beijar. Sabe o por
quê?

— Porque eu sou feia?

— Não, Caty, muito pelo contrário. – Era linda, mas de tanto olhar, ficava
feia. E não tinha nada a ver com o corpo – É que você é a única que não se
contenta em beijar. Você sempre quis a alma e a devoção, e isso eu nunca vou
dar para ninguém.

— Só para ela.

— Não, – exato, só para quem ele escolhesse – para ninguém, eu disse.


— E Manuela… ?

— Manuela não exige nada. Ela só quer que eu vá bem na escola.

— Isso eu também quero!

— Mas Manuela tira notas melhores que você. – Verdade. – É por isso que
eu estou lá com ela e o Rafael.

— Eu sei que você e o Rafael sempre foram apaixonados nela.

— Apaixonados é um pouco demais. Manuela é legal.

— E eu sei o que aquele coração quer dizer, Gabriel, não me enrola.

— Eu vou por minha mão aqui… – Rouco, baixinho, colocou uma mão na
cintura dela e sentiu o suspiro de menina com pressa. – E você coloca sua mão
onde quiser.

Ela não se moveu nem mesmo um centímetro, então ele puxou as mãos dela
para seu ombro, ouvindo o tilintar dos seus pingentes da Disney, e se esforçando
para não rir.

— Catarina… – Suspirou o nome dela como quem suspira Manuela.

— O que foi?

— Rafael não sabe que Manuela gosta de mim – Ele inverteu o jogo – E isso
vai quebrar o coração dele. Rafael é meu amigo desde que a gente entrou nessa
escola e, se Manuela separou a gente, eu ainda sou amigo dele.

— Gabe…

— Por tudo o que você mais ama, não espalha que Manuela me quer. Isso vai
acabar com o Rafaeal.

— Eu tô com dó dele, mas eu super entendo ela.

Rafael não precisa de dó. Nem Manuela de compreensão. A única coisa que
os três precisam, Gabriel incluso, é de uma nariguda que nem essa bem longe.
— Será que você pode fazer esse favor, Cá? Guardar o segredo da Manuela?

— Posso, claro – O sorriso de quem ganhou o que queria – Mas por um


preço.

— Qual o preço?

Pergunta feita de besta. Gabi poderia ser mais um pouco babaca e se


aproveitar dela, beijar com a mão em tudo, subir para os peitos e descer para a
bunda. Uma semana atrás seria exatamente o que faria. Antes de ir até a casa que
ele costumava chamar de segundo lar, antes de fazer as pazes não só com
Manuela, mas com seu melhor amigo, antes de entender que só pediu que
Manuela escolhesse o Rafa para que o Rafa nunca ficasse sozinho.

Antes de entender que se importava com o coração do Rafa também.

Encostou a boca com nem dez por cento de vontade. Ela suspirava alto,
respirando descontrolado, e o Gabi só conseguia pensar em traição. Em como vai
contar isso para seus amores. Em como vai fazer para sair dali e se desvencilhar
daquela menina, e como deixá-la a cem metros de distância para sempre. Sabia
que a verdade era pior que a mentira, que se ousasse falar que estava apaixonado
no Rafa, apanharia todo dia. Se ousasse contar que Manuela era menina de dois
namorados, ela seria humilhada todo dia.

Tentou pensar na Manu enquanto beijava Catarina, mas tudo nela era
esquisito. Tinha gosto de morango e cheiro doce de perfume, ele até gostava de
perfume e o gosto era bom, mas Manuela nunca foi menina de muito cheiro e ele
sabe que Rafael jamais cheiraria a perfume de mulher. Beijava com o lábio
encostado e o coração distante. Uma semana antes ele teria infernizado essa
moça até que ela aceitasse o toque por baixo da blusa e o apertão na bunda:

Uma semana atrás tudo era muito mais fácil.

Descolou os lábios quando já estava a ponto de chorar. Foi rápido perceber o


desrespeito com Rafael e Manuela, mas demorou muito mais para perceber o
desrespeito consigo.

— Quer voltar para a Biblioteca? – Ele perguntou depois do beijo, doido


para ir embora.
— Depois.

Intragável.

Tentou pensar no Rafa quando Catarina o atacou, mas nem se usasse toda a
sua imaginação fortíssima. Nenhum toque o acendia, nenhum beijo o fez
suspirar, nenhum suspiro dela sentenciava seus ouvidos. Era tão plástico como
assistir pornô sonhando com seu pretendente, tão artificial quanto beijo de
novela.

Mas para Catarina era de verdade. Ele poderia pedir o que quisesse. Tinha o
reino inteiro da coitada da menina. Ouviu o tilintar dos pingentes e sorriu de
lembrar que Manuela, quando fica com birra, fica engraçada.

— Vem, Caty. – Ele segurou na mão dela e a puxou para fora da garagem –
Eu preciso ir embora.

— Ainda não, Gabi.

Era como se vendesse a alma para o diabo.



Capítulo Sete

Catarina fez questão de ser beijada na frente de todo mundo quando o Gabi
implorou para ir embora. Ela queria mostrar para todo mundo, os que viram ao
vivo e os que ficaram sabendo depois, que agora Gabriel era dela. Que ela tinha
vencido em qualquer competição por atenção.

Quase chorando, Gabriel entregou o prêmio e correu para fora. O coração


espremido entre as costelas. Era questão de consciência e traição, de segurar na
mão de uma menina e querer outra, de ouvir Manu chorando quando ele
contasse, de saber que Rafael vai ficar muito bravo, mesmo que jamais
admitisse. Rafael ainda tinha medo de ser bicha.

— Rafa? – Ele ligou assim que se viu numa distância segura daquela
biblioteca – Tá em casa?

— Tô. Cê ainda tá na escola? Como tá o estudo com aquele bando de


jumento?

— ‘Cabei de sair. Me encontra no cinema daqui a pouco?

— Hoje não, cinema tá mó caro hoje.

— Rafael, me encontra na frente do cinema e chama a Manu.

Gabriel insistente assim e com esse tom nervoso?

— O que aconteceu?

Por telefone não disse nada. Desceu a pé para o shopping e ficou sentado na
frente do cinema, batendo os pés, a mochila nas costas, sem saber o que fazer,
nem como conversar, nem como convencer todo mundo de que foi uma situação
idiota, mas foi sua única saída.
Certamente Catarina se esqueceu que viu GMR dentro de um coração e, com
certeza, agora escrevia um milhão de GC dentro de um milhão de corações nas
bordas de seus próprios livros e diários.

Manuela chegou primeiro e não usava roupa da escola. Ele sorriu se


acalmando só de vê-la, quis correr para abraçá-la e o fez, pedindo desculpa em
cada beijinho tímido na borda de seu rosto, sempre evitando a boca, a segurando
no abraço o mais forte que podia e repetindo “Eu sou burro, você tem razão”
enquanto ela ria e se surpreendia com o carinho de surpresa.

— Você não é burro, Gabe, me desculpa ficar falando isso de você. – Ela deu
um beijinho em seu rosto só porque ele não a deixou beijá-lo na boca. – Você só
não tá nem aí para a escola, ué.

— Não, Baixinha, eu sou muito burro.

— Falando assim você me assusta.

— Deixa o Rafael chegar.

Ele se ofereceu para comprar um milkshake para ela, mas ela não quis. Se
ofereceu para comprar sorvete, ela também não quis. Passeou pelos pôsteres dos
filmes em cartaz e perguntou qual deles ela queria ver. Manu, entendendo o
nervosismo dele, não quis saber de nenhuma das ofertas. Só queria saber o que
tinha acontecido.

— Moça, – Ele perguntou para a atendente da fila vazia do cinema – qual é a


sala mais vazia de todas?

— Desculpa, não entendi. Qual o filme você quer ver?

— Entendeu sim, – conforme Rafael demorava, mais Gabriel perdia a calma


– eu quero três ingressos para a sala mais vazia que você tiver.

A atendente olhou para a menina que o acompanhava, deu um risinho baixo


porque já foi adolescente, olhou para o rosto nervoso do menino, e, como uma
fada madrinha casamenteira, achou a sala que só tinha um par de ingressos
vendidos e que começava em quinze minutos.

— Vocês têm carteirinha de estudante?


Rafael chegou e também não estava de uniforme. De camiseta preta e calça
jeans demonstrava um potencial de homem que não demoraria a aparecer.
Quinze anos, gigante de alto, os ombros largos, as mãos grandes. E um sorriso
acendido lindo, doido para cumprimentar os seus como se deve. Um sorriso feliz
de amor novo que ainda não matou todas as vontades que tem.

— Gabi comprou três ingressos para a sala mais vazia do cinema – Manuela
era mais fácil de cumprimentar que o Gabi, então, depois de um selinho tímido,
porque estavam em público, ela cochichou para ele.

— É? – Os olhinhos do Rafa brilharam só com a ideia.

Só o Gabi que não ficou feliz com uma sala escura e vazia.

— Que que foi, Gabi? – Manu perguntou.

— Cês não querem entrar antes de eu falar?

— Por quê? Aconteceu alguma coisa?

Gabriel entrou primeiro, arrastando Manu pela mão, Rafa seguiu atrás. Mais
desconfiado que curioso. Não sabiam qual filme era, mas nem importava. A
mocinha que fica na porta do cinema rasgando o ingresso deu um sorriso
cúmplice para Gabriel porque já sabia que ele era o menino que pediu pela sala,
não pelo filme, mas Gabriel estava tão nervoso, que nem respondeu.

Por um lado, ele sabia que estava errado: era traição. Se combinou dividir
Manu com Rafael e se Rafael estava disposto a isso, e se foi esse o trato entre
eles, então tinham um compromisso. Entrando pela sala do cinema, sentia-se
como o pior garoto da escola, o mais mesquinho, o mais idiota. Sentindo nojo da
própria boca, tudo fazia sentido. Mais do que poder beijar Manu quando quisesse
e ter que aceitar Rafael fazê-lo também, beijar Catarina deu uma dimensão de
certo e errado que o fazia se sentir traidor, não de um tratado que divide a posse
entre dois donos, mas de algo que parecia vital para ele.

Olhando Rafael e o jeito calmo de quem sempre sabe o que fazer, ele
entendia que não era só a Manu quem ele traía.

— O que quer que seja, – Rafael sorriu com ternura – tá tudo bem.
— Não, – Gabriel escondeu os olhos nas mãos e abafou um pranto que ele
nem percebia acumulado – cê vai me odiar.

— Não tem como.

Gabriel queria achar o que procurava. Rafael vai baixar a guarda? Vai, pelo
menos, considerar um talvez? Vai repensar seu termo estreito de amor unilateral
e na sua generosidade de amigo?

Numa lufada só, ar que entrou e que não saiu até sua última palavra de
desculpa, Gabriel contou quem beijou e o porquê. A sala do cinema ainda estava
clara, sequer os comerciais pré-filme começaram, então Gabriel contava e as
lágrimas presas nos cantinhos dos olhos confirmavam.

Gabriel podia ser burro, Manuela confirmava enquanto sentia a bolinha de


gude entalada na traqueia, mas nunca foi mentiroso. Dos três, Gabriel sempre foi
o mais verdadeiro. Talvez por isso que seja o mais popular, o mais bonito, e o
que todo mundo queria andar do lado. Gabriel, com quem ele ama, não conhece
a palavra não, nem a palavra mentira.

— Você podia só ter fechado o livro – Rafael foi o primeiro a abrir a boca.

— E você acha que Catarina ia deixar barato?

— Não, Catarina tem instinto de podre. – Manu defendia seu Gabriel?

— Eu não gostei, eu juro que não, eu tentei pensar em vocês dois, eu quis
pensar em vocês, mas ela ficava balançando aqueles pingentes e...

— Cale a boca, Gabriel. – Rafael interrompeu quando ouviu que Gabriel quis
pensar não só na Manu, mas "em vocês dois" – Nada do que você disser vai
melhorar.

— Porra, cê queria que eu fizesse o quê? Não fosse isso, amanhã a Manu
seria a puta, e você, o viado! Ninguém deixa puta e viado em paz naquela
escola!

— É muita cara de pau dizer que fez isso para proteger a gente. – Manuela
entendia, mas não gostava.
— Eu não tô nem aí para o que me chamam. Ninguém tem coragem de vir na
minha cara e falar que eu sou bicha porque eu já briguei por menos. Meu pai
nem vai mais na escola quando a diretora chama. A questão é que vocês dois se
importam com isso. Você, ainda mais que a Manu.

— Ninguém ia me chamar de bicha. – Rafael revidou.

— Claro, porque é bem normal dois caras e uma menina, né? Se por usar
camisa rosa o povo já chama qualquer um de viado, cê vai ser bem machão por
namorar a mesma menina que eu, tá? O que menos vai doer vai ser te chamarem
de corno! E outra, que Manuela tomou um papel para levar para casa, e você já
ficou todo brabinho. Quer saber o que vai acontecer quando todo mundo
começara a chamar a Manu de puta?

— Não vou falar que gostei da Manu advertida.

— Não é pra gostar, É ADVERTÊNCIA, NÃO É FLOR.

— Gabi, não grita. – Manu interviu.

— Porra que não grita, Manuela, a sala tá vazia.

— Não tem que gritar, cê tá errado.

— Eu tô, mas cês dois não entendem!

— Que o quê? – Manu entendia, mas não gostava – Que você sempre quer
beijar o maior número de pessoas que conseguir?

— Não foi por causa disso, foi porque eu precisei!

— Cala a boca, Gabriel. – Rafael repetiu.

A tela do cinema acendeu e demorou pouquíssimo para que todo o cinema


ficasse escuro. Com tudo vazio, acharam qualquer lugar para se sentarem e
ficaram incomodados com a barulheira dos comerciais.

— Eu não tô pronta para contar para todo mundo que sou puta. – Manuela
ponderou, aumentando o tom da voz para que os três se ouvissem.
Naturalmente, Gabriel e Rafael, sentados, um de cada lado de Manuela, se
curvaram em direção a ela para ouvi-la melhor.

— É por causa disso que eu beijei a Catarina!

— Você não é puta, Manu. – Rafael respondeu.

— Por quê? Só porque eu não vou cobrar?

— AH, PUTA MERDA! – Gabriel reclamou. – Porra de puta, o quê! Tem


menina santinha naquela escola que já fez comigo três vezes mais do que você
sonha em fazer com qualquer um de nós!

— Cala a boca, Gabi.

— Vai tomar no cu, Rafael, cale a boca você!

— Não brigam. – Manuela insistiu.

— O cara me mandou calar a boca três vezes, vá se foder! Porra de calar a


boca o quê!

— Em vez de ajudar, cê atrapalha. – Rafael argumentou – Primeiro fala que


beijou a Catarina, agora me fala que fez coisa pior com outra menina.

— Eu só tô falando que...

— Eu sei, mas fica quieto para a gente gostar mais de você.

— Rafael... – Manuela ouviu exatamente o que e pelo que aqueles dois


brigavam. – Cê também tá com ciúmes da Catarina?

— É claro que ele tá, Manuela, você também!

— Eu tô mesmo, mas a minha pergunta é se ele tá também.

— Rafa, – Gabriel escondeu um sorriso gigante – Tá com ciúmes de mim?

— Tô. – Rafael nem titubeou para responder.

— tá? – Gabriel falou sem pensar, mas assim que Rafael assumiu que tinha
ciúmes, Gabriel se assustou – Tá?!

— É, – Deus abençoe o cinema escuro, a tela distante e o fato de que


ninguém conseguia vê-lo corar – um pouco.

— Por quê? – Manu insistiu.

— Ele sair por aí beijando outras pessoas faz parecer que isso aqui, o que a
gente tem, não importa o que é que temos, é só um brincadeira.

— Não fala assim – Manu ainda não tinha pensado desse jeito – Isso é sério
para mim, também.

— Eu não beijei Catarina porque quis. – Gabriel diminuiu o grito e esfriou


da raiva. Ficou um bom tempo sem falar nada só para conseguir traduzir o
porquê, exatamente, beijou Catarina.

De todo o tempo, desde que partiu da escola, até estar sentado ali, ele não
parou para pensar. Funcionou no fast-forward, sempre avançando, sempre muito
rápido, doido para se explicar, para que todo mundo entenda, para que ninguém
sem zangue com ele.

Beijou porque era mais fácil convencer Catarina de que ela teria o que
queria, do que ter que aceitar que levarão chumbada na escola a cada passo que
derem.

Por um lado, foi fácil beijá-la. Parece que tem feito isso a sua curta vida de
beijoqueiro inteira. Beijou porque podia. Porque era bonito. Porque todas as
meninas o queriam. Porque seu pai lhe deu olhos azuis e porque ele o incentiva a
beijar (e ir além!) com o máximo de moças que puder.

Não é que seu Guilherme fale "Gabriel, vai lá e arrebenta", mas toda vez que
o pai passa por seu celular e vê um nome de menina na mensagem, já comemora
com "Esse é meu garoto!".

E é fácil se moldar nessa forma de beijar todo mundo, o tempo inteiro, duas
meninas por semana, andar de mãos dadas depois, rir de qualquer coisa, carregar
o livro de uma, sorrir grande para outra. É fácil porque, enquanto ele ri e briga
com qualquer um, por qualquer motivo, ele não precisa se preocupar com quem
ele não está.
— Desde que a gente teve idade para beijar, – concluiu – eu acho que eu não
beijei ninguém porque eu quis.

— No fundo, – Rafael sorriu pequenininho – eu sei disso.

— Mas então, – Manuela entendia exatamente o que Gabriel dizia, mas não
entendia o porquê – por que você beijou?

— Não achei que tivesse outra opção.

— No jeito que a classe ia, ninguém teve outra opção.

— Talvez a gente devesse ter adiado o beijo e não cedido à pressão de todo
mundo – Manuela segurou a mão de um, depois, a mão de outro – Por que toda
essa história de beijo separou a gente e, de certa forma, sempre soubemos que
éramos três.

— Não concordo. – Rafael interrompeu.

— Não concorda com o quê?

— Não concordo sobre adiar o beijo.

— É fácil falar, Rafael, ela te beijou primeiro!

— Não, não por isso. Eu acho que foi só por causa do BV da Manu que eu
tirei, Gabi, que agora cê tá aqui com a gente. Só porque você começou a dar trela
para a Catarina que a Manu te mandou mensagem bêbada. Só porque você
beijou a Catarina que agora Manuela entende, e você entende, que somos três de
verdade.

— Eu já sabia – Manuela se defendeu – A questão, Rafael, é que você sabe


que somos três?

— Fui eu quem deu a ideia!

— É, mas... – Bêbada, Manuela já teria dito, mas, sóbria, ela não tinha
coragem.

— Manuela tá falando sobre nós dois. – Gabriel não tinha medo. – Porque é
bonito falar que somos três, Rafael, mas na primeira oportunidade de sermos três
você correu.

— Tá falando que tá faltando eu beijar Gabriel para ser trio, Manu?

— É. – Cara de pau, pelo menos para assumir, tem.

— Gabi, – Rafael engoliu o sorriso – é isso o que tá faltando para a gente ser
trio?

— Ou a gente é trio, ou dupla de três.

— Quê? – Manuela não entendeu nada.

— Duas duplas, mas só com três pessoas.

— Ah...

— Eu nunca beijei um cara. – Rafael ponderou.

— Olha aí a oportunidade. – Gabriel falou, e Manuela rachou o bico.

— Eu nunca tive vontade de pegar um cara.

— É porque ‘tava faltando uma coisa, Rafael.

— Ah, é? O quê?

— Nenhum deles eram eu.

Por cima da cadeira da Manu, pelo moletom do uniforme, Gabriel puxou


Rafael para um beijo. Para calar a risada alta e os anseios. Para fazer virar trio,
para aprender e mostrar que pode ser bom daquele jeito, mesmo quando a língua
não é macia, os toques são mais fortes e a pele que encosta em seu rosto é tão
dura quanto a sua.

Em nada se parecia com o beijo de Manuela, exceto pela euforia que brotava.
Menino é criado sem limite, feito para explorar o que as meninas são treinadas
para guardar, então quando os dois se encostaram, diferente da trava que tinham
com ela, as mãos percorriam conforme as vontades, sem ninguém querer dizer
para parar.
Manuela que se intrometeu quando não se aguentava mais só de assistir.
Encostou a mão no rosto de um, sorrindo feito uma maluca, encostou a mão no
rosto de outro, e os dois se abriram para ela caber no beijo de três.

Nunca ninguém tinha ficado tão fora da casinha como quando juntaram-se as
três bocas. Era melado, meio desengonçado no começo, são três línguas, as
bocas se encostam, mas parecem que não se engolem, o fogo vai ardendo
diferente, e o foco vai alternando.

Mas quando se encaixou, não havia um que tivesse coragem de parar. Nem
vontade. Manuela esqueceu como respira, e Gabriel se perdia. Ia no embalo, sem
saber para onde ia o certo, para onde ia o errado; só ia. Rafael puxou o cabelo
dela para lamber o pescoço e as bocas que sobravam se consumiam, se perdiam
e se encontravam, nem dava para saber qual mão era de quem, e nem importava.
Todo mundo podia fazer o que quisesse, o cinema estava vazio.

E estava escuro.

Gabriel puxou o restante do cabelo da Manu para lamber também, a menina


mal se mexia. Se perdia entre as chamas acesas e os sentia escorregar, Gabriel
abandonando a cadeira para ajoelhar no chão, bem mais perto dela, Rafael que
veio depois.

Meninos vão fazer o que os meninos fazem, sem saber o que é freio e qual é
o fim. Rafael ocupado com Manuela na boca, com Gabriel nas mãos, Manuela
perdida sem nem saber onde colocar as mãos e Gabriel encaixado, finalmente,
no casal que ele jurava que tinha se fechado para ele.

Rafael empurrou o braço da poltrona para trás, queria empurrar os dois


braços da poltrona de Manuela para trás, mas só um cedeu, o seu lado, então ele
se sentou na poltrona do lado que o braço cedeu, puxou Manuela para o colo, e
deixou que Gabriel ocupasse a poltrona da menina.

Automaticamente, Gabriel se curvou para sua Baixinha, enfiando a mão por


entre os dois, aquela era primeira vez que tocaram na cintura da Manu não num
carinho virginal, mas com vontade de gasolina. Pronto para combustão. Rafael
se ajeitou para caçar o moletom do outro. Não perguntou nada, nem pediu, só
foi. Violou o cós da calça dele e entrou sem perguntar nada.

Gabriel parou na hora. Pronto para ir além, dê-lhe um sim que ele atravessa o
planeta, olhava para Rafael, para Manuela inteira virgem, e ficou com medo por
ela achar demais.

— O que foi, Gabi? – Manuela sussurrou quando percebeu a parada de


súbito.

— Manu... – Até o jeitinho dela de falar. Até o jeitinho dela de sorrir.

— O que foi? Quer parar?

— Coloquei a mão nele, Manu, é isso o que o Gabi tá querendo te dizer. –


Rafael cochichou com voz feita de quebrar.

— O que tem?

— Coloquei a mão nele. – Assoprou para dentro dela de um jeito que ASMR
nenhum na vida seria capaz. – Quer por também?

Meninas vão fazer o que meninas fazem. Ela sorriu, não com o que
pensavam dela, do jeitinho de menina que inventa moda na impressora 3D
herdada do irmão mais velho, mocinha que não cresce e que chora por tudo.
Houvesse luz e eles veriam que o sorriso de cobiça e curiosidade se acendeu
inteiro, louca para fazer o mesmo que o Rafa, louca para ir onde eles não tinham
ido, para sanar esse arrepio que brotava e fluía como se fosse um só, e entre os
três.

Ela seguiu o caminho da mão de Rafael sem responder. Também queria.


Beijou Gabriel até que se perdesse, sem controlar a língua, de olhinhos fechados
e deixando que fizessem com ele o que quisessem.

Rafael, que tinha um igual, sabia como fazer. Recebeu a mãozinha da menina
dentro da calça do outro e a embrulhou com a sua, duas mãos ao redor de um
menino, num mesmo ritmo, a calça atrapalhando muito. Manuela trocou de colo
para facilitar. Sentada no Gabriel, Rafael avançou sobre os dois e estes dois
descobriram logo que a calça de Rafael tinha botão.

Aos poucos, Manuela assumia. Com os dois na mão, o beijo dos dois meio
descompassados, olhava para eles, sorria feito desequilíbrio, Gabriel que gemia
baixinho e Rafael que suspirava, sempre colado perto, sempre perto demais,
perto para que visse, que entendesse o rostinho inchado, transfigurado de desejo,
contorcido, e a boca de maldizeres.

Nunca foram tão longe assim, mas o que Manuela mais amava em Rafael era
quando ninguém o via. Rafael perdia o status de mocinho estudioso bolsista que
não se concentra na barulheira, e virava o cão. O desvio dos controlados é
sempre além.

Gabriel gemia baixinho e deixava-se ir, nem fazia questão da condução, mas
Rafael assistia Manuela entender que ia sempre na frente, que ela quem sempre
mandaria, quem sempre decidiria e, quando ela entendeu que tinha ambos na
mão, não só o corpo, ele sorriu feito o homem que ainda vai ser. Homem de
assumir o que quer, para quem quer, na hora que quer.

Homem que não tem medo de parecer viado, nem de assumir que gosta de
um cara.

Por isso, olhando para Manuela como se previsse seu passado e seu futuro,
tudo ao mesmo tempo, Rafael colocou a mão na borda do jeans da moça. Não
disse nada, mas também não colocou para dentro. Esperou que ela se perdesse
mais.

Gabriel cantava uma música boa demais para não abalar ninguém. Rafael se
abria, virando o demônio, turvando a água, só esperando o momento perfeito em
que Manuela, não a amiga de longa data que paga uma boiada para não entrar na
briga, mas se entra, não sai; Manuela, a parte onde ela é pior que a mãe.

Capítulo Oito
— Por favor, – Gabriel pediu baixinho – Parem.

Ele nunca achou que falaria uma coisa dessas no plural. Rafael consumia
Gabriel, seria capaz de continuar aquilo até o final de todas as sessões, a boca
colada na dele, a mão lá embaixo, e Manuela entre eles, beijando os dois,
lambendo onde a roupa não chegava, ambas as mãos ocupadas, fechando as
pernas cada vez mais forte porque não se controlava.

Entrasse o Lipe em seu quarto àquela noite, seria recebido a sapatadas.

Gabriel só via vermelho. Enlouquecido entre um e outro, a espera


compensava. Beijar bocas erradas compensava. Beijava Rafael e queria atacar
Manuela, mas não podia, ela era menina, criada diferente, feita de negações.
Queria abrir aquela blusinha preta dela, cheia de botões, e descobrir se ela usa
sutiã de abrir na frente, ou de abrir atrás.

Descobriu há muito tempo que Manu fica linda de cabelo preso. Como
quando ela vai prender o cabelo e passa um tempão agrupando todos os fios para
caber no elástico. Tem uma mágica naquilo que ele nunca conseguiu dar conta.

Com Rafael segurando, a mágica ficava maior. Manuela com a boca


entreaberta e os olhos fechados, Rafael lambendo-lhe o queixo e a linha da
mandíbula. Menino que tira tanta foto no Instagram porque era feito de olhar.
Rafael suspirando sem nunca gemer, travando os dentes enquanto Manuela
brincava, sorrindo, um sorriso novo que não dá paz para ninguém.

Antes que ela conseguisse o que buscava, Rafael procurou permissão no


rosto dela. Ninguém nunca tinha ido depois do cós de sua calça, e ninguém iria
sem que deixasse. Manuela sorria grande, desafiadora, o jeito mais lindo que já
sorriu, e Rafael entendeu que aquilo era um sim.

Abriu o primeiro botão da calça dela, a calcinha não tinha cor porque dentro
do cinema era tudo azul, viu Manuela se endireitar no colo do Gabi, respirar
mais fundo, e parar ambas as mãos.
Gabriel percebeu e, fosse um ano mais velho, um pouco mais experiente,
teria enfiado a mão por trás da calça dela, para atingi-la de outro ângulo, mas ali,
segurou a menina pelas costelas, depois por baixo da blusa, pela barriga linda de
tabuinha, Rafael brincando onde só ela brincou e Gabriel ocupando o lugar do
sutiã.

Ela não conseguia parar quieta, nem falar baixinho. Cada vez que respirava
vinha um ganido junto. Tudo por baixo da pele de vidro queimava, até o jeito
como Gabriel a mantinha imóvel, a segurando pela barriga, para não machucar a
mão de Rafael no zíper.

Gabriel quis entrar junto da calça dela, mas a calça era muito apertada, mal
tinha espaço para um, então Rafael tirou a mão e deixou o Gabi entrar.

— Devagar, Gabi – Rafael guiou – Assim vai machucar ela.

— Assim, Baixinha?

Manuela não tinha voz, mas balançou a cabeça achando que dizia sim.

Rafael sorriu feito um demônio e passou a mão melada na boca do Gabi. De


primeira instância ele demorou para entender o que, ou de quem aquilo era, mas,
olhando Rafael sorrindo e pelo gosto salgado e leve daquilo, entendeu logo e
ficou louco.

Manu não sabia se aceitava se perder de ver os dois se beijando, ou com a


mão do Gabi que assumia um ritmo só certo. Fato é que eles se juntaram à boca
dela só para ouvi-la gemer de pertinho, porque beijar não conseguia. Rafael tinha
a mão mais pesada e, quando subiu para o seu peito e se ocupou com a novidade
para fora da blusa, Manuela só desistiu de aguentar.

Mais rápido do que quando brinca sozinha. Mais forte do que quando só
vivia de imaginar. Ela não conseguia beijar, nem respirar, nem ficar de olhos
abertos. Gabriel perguntou se ela queria por dentro ou por fora, ela só disse
“fora” como quem fala “não para”, Rafael perguntou se ele podia beijá-la onde
tinha as mãos, e ela só sorriu. Com a camiseta erguida até o limite do braço e
dois meninos, qualquer um que a visse diria, não, soletraria, o que é que aquela
menina é.

Mas para Manuela aquilo não tinha nada de putaria. Era perfeito. Aprendem
que encaixam-se os três, Manuela que vai cantando para hipnotizar dois, Rafael
sorri para Gabriel, ela quase chega, quase está lá, está quase todo mundo lá, só
falta estímulo e espaço entre as poltronas, e ela se vai: fecha as pernas e machuca
os dedos de Gabriel no zíper. Segura Rafael por dentro da calça, pede para o
Gabi ir também e ele se ajeita para Manuela ficar perfeita em cima dele.

No colo, Gabriel morde quando chega, Rafael nunca para de beijar, beija o
que vê, e Manuela não pensa em nada. Soubesse que seria tão rápido, tinham
feito mais devagar.

— Banheiro – É a primeira coisa que ela diz quando volta para a Terra –
Preciso ir no banheiro.

— Todo mundo precisa, Baixinha, – Gabriel sorriu sem deixá-la sair do colo
– mas fica aqui mais um pouco.

Com todo o amor do depois, a felicidade de darem certo os três e o alívio do


pós, Manuela sorriu beijando Gabriel, enchendo o rosto bonito dele de beijinho,
e depois foi para Rafael.

Rafael tinha fôlego e vontade para mais. Um só e tão rápido não deu graça.
Rafael respirava ofegante, o rosto ainda desfigurado, encostado no braço imóvel
da poltrona para olhar para os outros dois e não entendia o porque dos beijinhos
de cuidado quando ele só queria mais lenha para poder queimar.

Manuela entendeu logo que ele vai odiar qualquer amasso no cinema.
Qualquer escapada rapidinha, qualquer promessa sem cumprir. Sorriu gostando
de ver, com as pernas bambas por já ter-se ido, e cochichou qualquer coisa de
amor para ele.

— Não fica com essa carinha, Rafael.

— Não é de propósito. – Ele se defendeu.

— Eu sei que não.

— O que foi? – Gabe juntou o rosto ao rosto deles – Rafa não conseguiu
terminar?

Mesmo se não tivesse conseguido, os créditos do filme começaram e as luzes


se acenderam. Rapidamente, Manuela baixou a blusa, fechou o zíper, e os
meninos fizeram o mesmo. Tinha um outro casal lá na frente, já passando pela
saída de emergência que a moça do cinema abre quando acaba o filme: a moça
de saias, mais esperta e mais velha que a Manu, e o moço alisando a camisa.

— Vamos? – Ela perguntou, as bochechas coradas, a boca inchada, e todos


os sintomas de amor pregados no rosto. Todo mundo diria, só de olhar para ela, o
que foi que aconteceu.

— Por que tá bravo, Rafael? – Gabi insistiu.

— Não tô.

— Tá! Tô vendo.

— Gabi, essa cara não é de Rafael bravo.

— É carranca de que, então?

— Essa cara, – Ela cochichou o mais baixinho que conseguiu – é cara de


quem quer mais.
◆◆◆

Enquanto esperavam o ônibus de volta para casa, lambiam, cada um, uma
casquinha. Sensação de terem ganhado, de dia feliz. Gabriel era o único que
ainda tinha amor impresso no rosto, as bochechas vermelhas e o sorriso solto,
em Manuela só existia a raiz do cabelo molhada, e em Rafael, não havia nada.

Sentados no banco do ponto, vazio para as seis horas da tarde, se olhavam.


Queriam soltar qualquer piada, fazer qualquer comentário, rir de qualquer coisa
só para interagirem um pouco mais. Tudo estava errado. Nem na rua podiam
com mãos dadas, mas, ao mesmo tempo, o que sobrava era a sensação de
completude. Entre eles, estavam certos. As mãos ainda se perdiam um pouco,
ainda tinham que adivinhar certas coisas, o mundo é feito para duas pessoas se
amarem, nunca três, mas eles iam assim mesmo.

Rafael olhava para a Manu e via, não mais imaginava, a via; lembrava de
como ela ficava quando chegava lá. Olhava para Gabriel e o viu, andou
imaginando isso nesses últimos dias, e lembrava como ele ficava quando
chegava lá. Se fosse moço de talento para desenho, certamente o tinha feito.

Mas Gabriel era. E, se chegou na escola, dia seguinte, com olheiras debaixo
dos olhos, é porque passou boa parte da madrugada desenhando com uma ereção
gigante, e sem saber como esfriar para dormir.

Chegou sorrindo, lunático que era, encontrou a Manu sentada com Rafael, no
lugar de sempre, bem onde bate sol, os dois de risinhos. Ele chegou, doido de
vontade de beijá-los como não podia, rindo também, a folha na mão: Manuela
numa versão de aquarela e lápis de cor, sentada nele, o rostinho vermelho e os
olhos fechados. Rafael do lado, as poltronas do cinema e nenhuma tela ou filme
para ver: eles eram o espetáculo.

— Não contente em cometer um crime, o filhote dos infernos ainda traz a


arma para a escola! – Manuela adorou o desenho, mas detestou vê-lo no pátio
aberto.

— É só para você ver, ô, já vou guardar. – E virou-se para Rafael antes de


ouvir o resto da bronca – Gostou?

— Eu tô com vontade de te beijar. – Rafael disse, baixinho.

— É? – Gabriel mal se continha. – Por causa do desenho?

— Não. – Quer dizer, também.

— Gabriel, guarda essa merda! – Ela, em pânico, tirou o desenho da mão


dele antes que o quarto elemento se aproximasse:

Catarina. Ah, é. E alguém se lembra que Gabriel deu beijo nela?

— Bom diiiiiiiiiiia, meu amor – Catarina tomou o rosto de Gabriel na mão,


o mundo dela inteiro girou ao redor dele, todos os pingentes da Disney giraram
ao redor dele desde o beijo.

— Ôpa – Ele cumprimentou quase destroncando o pescoço para desviar do


beijo inevitável – Subir, né, pessoal?

Manuela e Rafael subiram na frente, detestando ter que deixar Gabriel para
trás. Gabriel, que nunca odiou ninguém, finalmente odiava. E odiava com raiva,
cheio de fúria, doido para achar uma desculpa para não ter que nunca mais vê-la,
ouvi-la ou tocá-la.

Mas Catarina nutria um amor antigo. Desde o ano anterior que Gabriel é seu
crush.

O seguia e des-seguia no Instagram só para que ele a notasse e a seguisse de


volta. Ia toda perfumada para a escola, toda arrumadinha, passou a fazer todas as
lições para que ele tivesse de quem copiar.

E o beijo repentino foi a doce constatação de que ele também gostava dela,
mas, como era menino, não era muito bom de demonstração.

Fosse Manuela, ela diria que Gabriel é muito bom de demonstrar o que sente,
mas Catarina não sabia, nem nunca vai saber, como é quando o Gabi se
apaixona. Mesmo quando ela fez questão de entrar na sala de aula de mãos
dadas, mesmo quando se sentou com a carteira colada na dele, na primeira
fileira, acompanhando Manuela, a Intragável e o psicopata que ela tem por pet.

Gabriel, que passou quase a noite inteira acordado e desenhando, deixou que
a menina se sentasse ao seu lado, quatro carteiras na primeira fileira da sala de
aula, atrapalhando todo mundo na passagem, o professor da primeira aula se
espantou com tudo aquilo de camarote tão próximo, mas não disse nada.
Entendeu logo que Catarina estava ali por causa de Gabriel, mas não entendeu
como Gabriel foi parar ali na frente.

Também, pouco importava. Prestassem atenção e não atrapalhassem, estava


tudo mais do que bom.

Catarina quis puxar conversa, combinar de almoçarem juntos, quis ajudá-lo


com os exercícios, explicar a matéria que o professor tinha acabado de explicar.
Moveria o mundo todo por só uma chance de atenção, mais um beijo, mais um
carinho… Mas Gabriel só ria e só conversava com os outros dois.

Catarina se envolveu com os outros dois para aliar-se aos inimigos por um
pouco de atenção, vai que ela consegue algum holofote por causa deles. Puxou
assunto, perguntou o que era a tal 3D que eles conversavam, mas ninguém lhe
respondeu. Ninguém nem ouviu o que ela tinha para dizer.
E, no intervalo, Gabriel deu a desculpa de que ia jogar futebol com os
amigos (fossem quem fossem) e conseguiu dar um perdido nela tempo o
suficiente para ficar todos os vinte minutos de descanso com os seus, e mais
ninguém.

Correram para comprar qualquer coisa na fila da cantina e subiram, sempre


desviando de qualquer conhecido, até o quinto e último andar, de escada, o
corredor da sala de Expressão Corporal, bem onde ninguém ia, onde não tinha
câmera, onde todo mundo sabia que existia, mas não fazia questão de ir porque
era muito longe e tinha muita escada para subir.

E só lá conseguiram um pouquinho de atenção e cuidado como queriam.


Rafael de beijinho de amor por cima dos seus, Manu com carinhos mansos,
quase não-ela, toda sorrisos. E Gabriel conseguiu respiro. Se livrou da tensão de
ter que aguentar um peso, suportar uma menina. Beijou os seus, deitou no peito
de Rafael, e estacionou. Cansado: antes das dez da manhã.

— Eu tô me sentindo mal por ela. – Manuela comentou. – É chata pra cacete,


não gosto dela, mas ela gosta de você, Gabriel.

— Eu não sei porque ela tá no meu pé.

— Você beijou ela, o que você queria? – Rafael respondeu.

— Beijei, mas não pedi em namoro, não.

— É, mas também não contou para ela que era só um beijo.

— E se ela me ver beijando outra pessoa? – Gabriel tem uma queda por ideia
idiota que só por Deus. – Tipo: eu cato outra pessoa, deixo a fofoca correr.

— É, Gabe, ótima ideia – Era ironia de Manuela, mas Gabriel não percebeu
– Por que você não coloca outra menina no seu pé e deixa elas brigarem por
você enquanto você não quer nenhuma, não é?

— Se você não quer ela, melhor falar que não quer. – Rafael constatou – Não
é bonito fazer o que está fazendo.

— Vou mandar uma mensagem.


E mandou. Catarina respondeu imediatamente. Disse que eles poderiam se
encontrar e conversar, ele não quis. Ele esclareceu que foi só um beijo, que não
tinha mais que isso. A menina ficou o resto do intervalo digitando, mas não
enviou nada.

Gabriel, que não estava nem aí, largou o celular de lado e continuou nesse
misto de carinho e amizade, rindo de qualquer coisa, ouvindo Manuela contar
das boas-novas de sua família, que ele ainda não sabia, depois de tanto tempo
afastado.

— Caralho, seu irmão ainda tá esperando a namorada????

— Todo mundo lá em casa acha que ela volta.

— Será que volta? – Rafael perguntou.

— Tem que voltar, Rafa. Se ela nunca voltar, vai acabar com a vida do meu
irmão.

— Eu não sei se eu teria paciência para esperar tanto. – Gabriel comentou –


Eu não sei, cara…

Deram seus últimos beijinhos antes de voltar para a sala de aula, assim que o
sinal tocou. Catarina esperava por ele na porta da sala, os olhos molhados, o
rosto de menina que não aceita perder, não quer perder, e está ultrajada do como
esta Intragável consegue destruir tudo o que toca.

— Não tem nada a ver com a Manu, Catarina… – Gabriel não tinha nem
paciência para se justificar – Pelo amor de Deus, cara, foi só um beijo.

— Gabriel, você não é doido de me dispensar.

— Ó, vamos fazer assim, então: você fica onde quiser, quer sentar do meu
lado? Que sente, o mundo é livre, então se quiser sentar do meu lado, fique à
vontade, mas me deixa em paz.

— Tá me dispensando.

— Não, Caty, a questão é que cê tá vendo coisa onde não tem.


E entrou, nem falou mais nada, duas meninas viram e, quem não viu e nem
ouviu, ficou sabendo depois. Causo agigantado e, pelo que corre nos corredores,
Gabriel dispensou Catarina por causa de Manuela.

— Mas Manuela não tá com o nerd?

— Sei lá, deve só usar ele para ganhar nota.

Gabriel voltou para seu lugar de direito, na primeira fileira, deu graças a
Deus quando Catarina desgrudou, mas foi fuzilado, mortalmente, por Manuela
que odeia esse tipo de coisa.

— Gabriel, isso vai ter troco.

— O que foi?

— Cê sabe ser educado, por que é que não foi?

— Cacete, eu fui educado pra caralho.

— Te aguarda, que Catarina vai dar o troco e quem vai tomar no cu somos
nós todos.

— Deixa vir.

Capítulo Nove

Adolescente não espera o prato da vingança esfriar para comer. Não tem a
maturidade de um adulto para cozinhar a vingança em banho-maria, deixar o
carma resolver, ou que a justiça divina seja feita. Adolescente quer ver o mundo
queimar, inimigo explodir, e o quer para ontem.

Catarina só conseguiu esperar até o dia seguinte, na aula de educação física.


Era o bimestre de vôlei, todo mundo era obrigado a jogar, os meninos numa
quadra, as meninas em outra. Era o professor quem escolhia o time, não os
alunos, mas Catarina encheu o saco até ficar contra Manuela.

Manuela, que sempre foi a filha esquisitinha que nunca se deu bem com
esportes e prefere passar seu tempo livre junto da sua impressora 3D e dos seus
projetos doidos, sabia que ia levar pau no vôlei de uma Catarina que faz tudo, até
balé. E só não disse nada porque não tinha, entre as meninas da sala, com quem
contar para se defender.

Sequer do time ela fazia parte. A bola chegava nela, ela passava para alguém
melhor e, se conseguisse, evitava que a bola rendesse ponto para o adversário.

Não queria dizer, por exemplo, que ela soubesse sacar. Queimou os seus três
saques jogando a bola ou muito fraco, ou muito torto, e ficou envergonhada de
pedir desculpas quando viu o resto das meninas do time fazendo cara feia.

Mas foi só quando ela foi para a rede que Catarina viu a oportunidade
perfeita. Na rede, se o jogador é baixinho, não há muito o que fazer além de
pular e esticar os braços esperando que isso sirva de bloqueio da bola do
adversário, mas, se a jogadora é mais alta, coisa que Manuela é, a rede não
protege o impacto da bola e as chances de levar bolada na cara, num corte, é
muito alta.

Pois foi com isso que Catarina contou quando cortou a bola na rede, não
esperando fazer ponto, mas direto no rosto de Manuela que pulou o mais alto
que conseguiu para evitar deixar a bola passar.

De primeira, ninguém socorreu. Bolada na cara dói, mas foi na Manuela, né?
Ninguém gosta dela. E Catarina já tinha dito para metade das meninas, as com
quem ela conversava, que aquele era o dia de acertar as contas.

Algumas até riram quando Manuela baixou com o rosto, o enfiou entre os
braços e se dobrou ao meio para conter a dor queimando no rosto inteiro.
Catarina não disse nada, mas sentiu o veneno escorrer, o rosto brilhando de amor
vingado e algumas meninas até pediram para Manuela parar de frescura para
continuarem a jogar.

Foi só quando a primeira gotinha de sangue manchou o chão e ela não


conseguiu conter o choro, que correu dali para o banheiro. O professor apitou
para o jogo parar, pediu para que uma das meninas fosse ajudar Manuela no
banheiro, e, quando nenhuma delas se predispôs, foi que ele entrou.

Com o rostinho curto todo vermelho, Manuela saiu do banheiro toda


congestionada de chorar. Até o professor tinha cara de dó. Desde que é
pequenininha, quando cai, a brincadeira acaba. Sempre foi mocinha de manha.

Encolhida no banco de reserva, com um pouco de papel na mão, Manuela


ficou chorando sozinha.

Na hora, mesmo contra a ordem do professor, Rafael largou seu time,


Gabriel largou o saque, e foram atrás dela. Toda a classe viu. Gabriel se
ajoelhando na frente da menina, Rafael sentando do lado, Gabriel beijando a
palma da mão dela, Rafael a envolvendo num abraço e um beijo na testa. Todos
os olhares de cuidado, ternura e proteção voltados para ela. Manuela sentadinha
no banco da reserva e dois príncipes encantados protegendo o reino.

Teve quem achasse aquilo bonitinho. Todas as meninas, no caso, menos


Catarina. Elas queriam que aquilo tivesse sido com elas, Gabriel é o cara que dá
bolada, não é o menino que beija palmas de mão e sorri gentil.

E Rafael, que todo mundo acha que um dia vai chegar atirando na escola,
tomava Manuela num abraço tão cheio de afeto, que quando todo mundo viu,
ninguém foi capaz de pensar maldade.
— O que que foi, Baixinha? – Gabriel, no fundo, sabia.

— Carma, Gabriel – E chorava. Limpava mais os olhos com o papel que o


professor deu, que o nariz.

— Que carma, Amor? – Rafael também não entendeu.

— Catarina tá puta, né – O queixo tremia – Quem você acha que deu uma
bolada em mim?

Tão esperta, mas, ao mesmo tempo, tão bobinha. Nem capaz de revidar foi.
Nem capaz de devolver bolada. Sentiu o impacto queimar no rosto e só foi capaz
de chorar, nem de sentir raiva foi. Rafael foi buscar mais papel para ela, e
Gabriel se sentou onde o outro esteve.

— Eu vou jogar nude dela no grupo da sala. – Gabriel só tem ideia imbecil.

— Não fala isso nem de brincadeira. – Manuela parou de chorar na mesma


hora.

— Cê vai ver, Manu, eu vou fazer a vida dela um inferno.

— Isso é culpa sua, Gabriel – Rafael voltou com mais papel e deu a ela,
ajoelhando onde Gabriel esteve – Você tratou Catarina igual bosta, olha no que
deu.

— Porra, mas que culpa eu tenho, caralho?!

— Que que a Manu te falou? Que ia ter troco, não é?!

— É, mas…

— Quem é o lado mais fraco, Gabriel?

— Do que cê tá falando?

— Quem, de nós três, é em quem Catarina pode descontar a raiva? Quem é o


lado mais fraco, Gabriel?

— Ah, porra…
— Eu só não te dou um murro aqui, porque eu sou bolsista. – Bravo. Bravo
de verdade.

— Desculpa, Manu – Gabriel, Manuela sabe, Gabriel só faz merda atrás de


merda nas melhores das boas intenções. Nunca pensa que está prejudicando
alguém e que suas ações têm consequências. – Eu só queria dar um pé nela, eu
juro!

— Eu sei, amor, eu sei – E quem toma a bolada é quem tem que sair por aí
colocando panos quentes. Ela segurou na mão dele, até já tinha esquecido que
estavam em público – Não tô brava.

— Eu não pensei nisso, Rafa – Gabriel, mais um pouquinho, choraria


também.

— Pois pensa, porra. Para de agir feito um retardado e respeita as pessoas


que gostam de você.

— Não fica bravo, Rafael.

— Manuela, quando eu ficar bravo, não fala para eu não ficar.

Calaram-se. Gabriel só sabia beijar o rosto e as mão de sua Manu. E Rafael


não olhava para ninguém. Combinavam de comer juntos, Manuela e o Gabi, de
irem para a casa dela depois da aula, de estudarem para a prova da semana
seguinte, mas Rafael não esfriava e dava para saber só pelo jeito como ele
respirava.

— Eu vou tomar mais cuidado, Rafa. – Gabi barganhou.

— Eu te conheço, Gabriel.

— Vou tomar mais cuidado, sim. – Estivessem sozinhos, Gabriel teria


beijado o rosto de seu moço. – Foi a Manu quem eu machuquei, hoje. Eu não
quero isso acontecendo outra vez.

— E cê acha que vai diminuir? Ela já não é flor que se cheire, cê ainda
coloca a menina mais insuportável da sala contra ela, você quer o quê?

— Obrigada pela parte que me toca.


— Tô sendo realista. – E voltou para Gabriel – Só, pelo amor de Deus, vê se
presta atenção com quem você mexe. Tudo rebate na Manu.

— Fosse um cara que tivesse dado a bolada, eu já tinha resolvido – Gabriel


reclamou. – Mas, não, tem que ser menina.

— Você ainda vai me fazer ser expulso dessa escola.

— Não tem nada que me preocupe mais que estudo, Rafael – Manuela puxou
o rosto de Rafael para si e deu um beijo – Não pensa que eu sou de vidro.
Quando eu decidi ser puta, eu sabia o tamanho do problema, e você não vai ser
expulso daqui!

— Não fala que é puta, isso corta o coração.

— Você sabe o que eu quero dizer. Vê se se controla, tá legal? Não vai bater
em ninguém, nem hoje, nem nunca.

— Te amo.

— Vai se controlar?

— Te amo, Manu, cê sabe disso, não sabe?

— … mas o amor não é maior que teu futuro. – Sorria grande, doida para
voltar ao cinema escuro onde ninguém podia julgá-los – Vai se controlar, ou não
vai?

— Vou.

— Promete?

— Prometo.

— Também te amo, Rafael – Cochichando mais baixo, sorrindo feito uma


maluca, a cara nem doía mais. – E é também por isso que eu tô aceitando o que
vier.

— Eu sei que não pode, mas queria te beijar, agora.

— Então cê tá melhor que eu, porque eu vivo com vontade de te beijar. –


Sorrindo. Inteira boba. E Feliz. Manu virou para Gabi, nunca largando a mão do
Rafa – E você… vai lembrar que o Rafa é bolsista e que todo mundo me odeia,
antes de fazer merda?

— Desculpa ser burro. – Gabriel tentava não chorar, mas, ao abrir a boca, as
lágrimas vieram.

— Você não é burro, amor – E retirou o que vem dizendo há dias – Não
deixa ninguém te chamar de burro, nem eu. Você é inteligente, e não saber a
matéria não te faz burro. Tem só que estudar mais.

— Não, – Rafael se intrometeu – você é burro, mesmo.

— Para, Rafa!

— Mas eu vou fazer o quê? O cara briga com a menina mais irritante da sala
e achou que não ia ter retaliação!

— Eu só pensei no que ela podia fazer contra mim – Limpou o canto do olho
e deu a mão para Manu – Se eu tivesse pensado no que ela poderia ter feito
contra você…

— Foi só uma bolada, tá tudo bem, pessoal. A questão é daqui para frente, o
que todo mundo da sala vai falar agora que vieram os dois cuidar de mim, e o
que Catarina ainda pode fazer.

— Tá doendo muito? – Gabriel deu um beijo no rosto dela e Catarina, que já


não jogava há muito tempo, queimava de mais ódio ainda.

— Só tô sentindo gosto de ferro. Meu nariz tá sangrando ainda?

— Tá não, Baixinha.

Quando o sinal tocou indicando a troca de aulas, os três se levantaram do


banco de reservas. Gabriel deu um abraço bem apertado na sua Baixinha, e
Rafael se segurou com tudo o que pôde, para não abraçá-los também.

E, na volta para a sala, andaram os três, de mãos dadas, com Manuela no


meio.
Ela achou que tremeria de medo de alguém pensar qualquer coisa sobre ela,
mas, andando com os seus, pela primeira vez na vida, um de cada lado, Gabriel
já fazendo qualquer piada sobre qualquer coisa e Rafael sorrindo porque sentia o
mesmo que ela, tudo o que ela conseguia era ser feliz.

Mesmo com a bolada na cara que ainda doeria por mais algumas aulas, o
vermelhão na maçã do rosto e os olhos cozidos de choro, andando com os seus,
na frente de todo mundo, tudo o que ela conseguia sentir era liberdade e a
sensação de que ninguém podia contra ela. Que ela tinha tudo o que precisava
bem ali.

Entraram na sala, Manuela no seu lugar, os meninos em seus devidos


lugares, e, só porque era filha de quem era, feita de beliscão de unha, ela beijou o
rosto de Gabriel olhando para trás, procurando Catarina.

E deu um sorriso de “eu tenho o que você quer”.



Capítulo Dez
(Manuela)

Com a minha impressora 3D e a micro retífica que meu pai deu para a minha
mãe de aniversário – e que ela quase nem usa! – fritei por quase cinco horas
seguidas. Desenhei do zero, juro, cada voltinha de filamento que a impressora
colocava no anel foi invenção minha.

Primeiro, como todos os namorados, eu pensei em comprar. Cacei em site,


no Mercado Livre e tudo, mas não tinha. Alianças são sempre duas, nunca três, e
comprar três anéis iguais não era a mesma coisa que alianças. Então fui fazer a
minha.

Com o programa de projeto aberto, fui fazer a minha de plástico preto e


chutando o tamanho dos dedos deles. Se ficasse grande ou pequeno demais, era
só fazer outra, mas eu queria acertar de primeira.

Olhei tanto os dedos deles durante a aula, que eles acharam que eu estava
triste. Vivia cabisbaixa. Fui de anel, e eu nem era de usar badulaques, só para
que eles tentassem colocá-lo. Meu anel no dedo do Rafa não passava no nó
maior do anelar, e no do Gabi ficava entalado bem no meio. Era essa a minha
referência. Detonei quase cem metros de PLA preto, o meu favorito, mas acho
que deu certo.

Com a micro retífica arredondei os cantos, lixei as partes ásperas e, quando


terminei as três alianças, me senti orgulhosa do resultado. Três anéis, um muito
grande, um grande, e um pequenininho, com um triângulo equilátero, perfeito,
vazado no centro. Quis ter habilidade para escrever bonito dentro das alianças,
mas o máximo que eu consegui foi esquentar a pontinha de uma agulha e
escrever GRM dentro de cada anel.

Só que eu não queria entregar o presente e pedi-los oficialmente em namoro


ali no pátio do colégio. Tinha que ser especial, e o único lugar especial que eu
conheço era o restaurante do meu pai.

Se fosse só um, até dava para pedir um jantar grátis e aguentar meu pai se
roendo de ciúmes depois, mas eram dois. E jantar romântico, no restaurante do
meu pai, com dois, era suicídio demais.

Pensando melhor, qualquer lugar público era arriscado. Todos os clichês de


casal estavam fora de cogitação porque a gente não ia ter paz suficiente para
namorar se todo mundo passasse e ficasse nos olhando como se fôssemos de
outro planeta.

Então, conformada com a minha escolha e das coisas que eu abria mão, os
chamei para irem lá em casa, depois da escola, e tomei um não do Rafael.

— Por quê?

— Não dá. Minha mãe perdeu um cliente importante e isso afetou demais o
orçamento de casa. Para dar conta de tudo, ela pegou uns trabalhinhos mais
chatos e eu estou cuidando das entregas das clientes fixas dela. Ou seja… não é
que eu não queira, Manu.

— Ah, – disfarcei a frustração o melhor que pude – tudo bem, não tem
problema.

— … mas é urgente? Se for, eu dou um jeito de passar lá depois.

— Não, não… – Urgente não era, então me contive – Amanhã dá?

— A princípio dá, mas se a minha mãe terminar uma encomenda enquanto


eu estiver na escola, daí eu vou ter que ir para casa.

A mãe do Rafa era a costureira mais de mão cheia que eu já vi. Faz cada
vestido lindo, cada roupa, que dá de dez a zero em qualquer loja de
departamento. Por isso também que é ela quem costura os vestidos de noiva
desses lugares ultra chiques: os estilistas pensam o vestido, mas dão o desenho
na mão da Dona Lúcia para trazê-lo à vida.

Mas, também, passei a tarde inteira olhando para as alianças. Tinha o dobro
do significado só porque fui que fiz, sabe? Era tão especial para mim, que eu
nem pensei que eles talvez não a quisessem. Por isso, quando deu o dia seguinte,
a primeira coisa que perguntei era se o Rafa podia ir. E, para a minha sorte, ele
disse que poderia.

— Por que tá querendo tanto que a gente vá para a sua casa, hein? – Cheio de
malícia, Gabriel entendeu coisas que não saíram da minha boca. – Tá com
saudade?

— Gabriel, fica quietinho. Não é para fazer o que você tá pensando.

— Mas eu não tô pensando nada!

Saímos da escola e eu não continha as pernas. Estava doida para dar a


aliança, nem queria saber de almoço, nem de estudar. Eu só queria que eles
subissem até o meu quarto, abrissem a caixinha que comprei e que cabia,
encaixando perfeitinho depois de alguns ajustes com a tesoura, as três alianças, e
dissessem que queriam usar.

Um olhando para o outro sem entender o meu nervosismo, entraram na


minha casa vazia, se esparramaram no sofá como fazem desde que somos
crianças, e eu os mandei lá para cima, talvez um pouco ríspida demais, porque o
jeito como eles me olharam parecia que a mãe deles tinha acabado de dar
bronca.

— Manuela, se vai terminar com a gente, termina logo – Rafael também


entendeu coisas que não disse – Essa espera é só tortura.

— É para isso que você trouxe a gente aqui, Baixinha?

Sorrindo feito uma maluca e tentando esconder, fechei a porta do quarto,


puxei a caixinha de veludo de dentro da gaveta do criado-mudo, e abri.

— Não é para terminar! – Sorri, o coração batendo bem rápido, a certeza de


estar certa, fazendo o que eu queria, doida para que as alianças coubessem – É
bem o contrário!

— Isso é… ?? – Gabriel entendeu e olhava para a caixinha.

— Tentei achar para comprar, mas não tem aliança de três, então eu… –
Ainda tinha pó de PLA sobre a minha mesa de estudo, tirei o excesso, mas não
passei o aspirador direitinho – Então eu fiz.

— Você fez! – Gabriel se estendia em sorriso e só faltava me encher de beijo.


Eu gosto do quanto ele é espontâneo e como se empolga rápido.

Só que Rafael olhava e não dizia nada. Olhava da caixinha para o nosso
sorriso, o meu e do Gabe, em um silêncio tão profundo, tão denso, que eu
murchei.

— Você não gostou, né? – Com a mesma velocidade que tinha para sorrir, já
quase chorava.

— Não é isso, Manu.

— Então o que foi?

— Achei que você ia terminar.

— Não, Amor, de jeito nenhum!

— Te amo, Manu. – Gabriel disse e puxou o lábio de baixo para dentro da


boca, como se sentisse o gostinho das palavras. Escorria um sorriso lindo pelo
rosto dele, todo feito de amor, pronto para me beijar e pegar a nossa aliança.

Mas a droga do Rafael não se mexia!

— Rafa, – eu queria muito beijá-los e continuar na parte romântica, mas


Rafael não falava nada! – o que tá acontecendo?

— Achei que fosse terminar comigo.

— Tá, isso você já disse e eu tô falando que não vou!

— Mas eu achei… – Isso era uma lágrima no olho dele?

— Ai, meu Deus, não! – Eu queria sorrir para aquilo, porque era muito
bonitinho, mas também queria chorar porque eu nunca vi, em todos os anos em
que andamos juntos, uma lágrima cair do rosto dele.

Tomei-o num abraço, puxando a cabeça dele para o meu ombro, sentindo o
abraço apertado, meio aliviado, meio não querendo nunca me perder. Chorei
junto, porque sou tonta, muito bobona. Fui agarrada como a coisa mais
escorregadia do mundo, como se fosse escapar, entortada do jeito que a minha
coluna não é feita para envergar. Rafael deixou escapar uma lágrima e eu já me
esvaía inteirinha.

— Não faz isso comigo, não…

— Mas, Rafa!

— Nem de brincadeira…

— Rafael, amor, eu não vou para lugar nenhum…

Rafael não queria saber. Valia pelo susto. Puxou Gabriel para o abraço
também, enchendo o nosso rosto de beijinho, fazendo as pazes de uma briga que
nem tivemos.

— Eu amo vocês – Ainda não estou acostumada a falar isso no plural – E


não chamei os dois aqui para terminar.

— Eu sei, Manu, tô louco para pôr a aliança. – Gabriel deu um beijinho na


ponta do nariz do Rafa, de puro carinho, e colocou a mão no rosto dele como pôs
no meu.

— Tá?

— Acho que é a coisa mais legal que você já fez.

— Impossível. – Porque eu me gabo demais do Drone que a gente fez


quando não tinha idade nem para saber o que era voltagem.

— Pra mim, é.

— Deixa eu ver?

— Aqui, olha – Abri a mão e a caixinha que eu já tinha deixado em segundo


plano depois de ver meu Rafa chorar – O que você achou?

— É linda.

— É?
— Põe em mim?

— É tudo o que eu mais quero.

Puxei a maior aliança da caixinha, a do fundo, porque na hora de guardar,


organizei em tamanho, e olhei bem para o rosto do Rafa, só para guardar a
reação dele, o sorriso se abrindo, o olho vermelho de quem segura o choro e não
vai deixar sair de jeito nenhum, e os olhos felizes.

— Rafa, – antes de colocar a aliança no dedo, segui o protocolo – quer ser


meu namorado?

— Quero.

— Quer ser meu namorado também? – Gabriel perguntou e eu puxei a mão


dele para segurar o anel junto comigo.

— Quero.

— Quer? – Não entendi o porquê Gabriel se espantou.

— Ué: – Rafael também não entendeu.

— As vezes eu acho que vocês só estão comigo para eu não trocar de escola.

— Gabriel…

— Não briga, Baixinha, tô falando sério.

— Gabriel, você acha que eu prefiro tomar bolada na cara em vez de te ver
em outra escola?

— Eu sei, mas…

— Cê só não acredita que eu te amo, né? – Rafael sorriu.

— Eu não sou bom de matemática, eu não sou bom de estudar, eu não sou
bom em quase porra nenhuma…

— Que merda é essa, você é bom em tudo!


— Não enche a minha bola, Baixinha, eu sou um lixo na maioria das coisas.

— Tá, você tem que estudar mais, mas isso não tem nada a ver com
qualidade!

— Às vezes eu também não acredito na sorte que eu tenho – Rafael


comentou – Sabe, a maioria das pessoas leva a vida inteira para achar amor, e
tudo o que precisei fazer foi emprestar um lápis.

— E querer a mesma garota que eu. – Gabriel sorriu.

— É, teve isso também.

— E depois, – sorri – querer o mesmo garoto que eu.

— É…

— Tudo o que eu precisei foi esquecer o estojo. Acho que foi o único dia da
vida que isso aconteceu. – Com ajuda do Gabi, empurrei a aliança pelo dedo do
Rafa.

— Não esquece mais o estojo, tá? – Rafael me beijou o rosto, beijou o Gabi,
e olhou para o próprio dedo – É, Manu, essa é a coisa mais legal que você já fez.

— Não é!

— É sim, presta atenção: – Gabriel pegou, da caixinha de veludo, a aliança


menorzinha. – Não é uma aliança qualquer, que você compra ali, manda gravar,
e jura amor para sempre. Você, tipo, fez! Do zero! E está perfeita!

— Perfeita eu não diria…

— Pra mim está. – Com a mão do Rafa junto da dele, Gabriel empurrou a
aliança pelo meu dedo – Tá vendo como é perfeita?

Aquilo era plástico, só isso, que eu passei um tempão lixando, mas no meu
dedo, com o triângulo equilátero arrumado no centro, aquilo era o símbolo
máximo de compromisso, cuidado e amor.

— E você, – A maria-mole já chorava porque não presta para ficar cinco


minutos emocionada sem começar a derreter – por favor, não se afasta mais, não.
O que quer que seja, Gabi, conversa com a gente. Tira satisfação, briga, não sei,
faz o que tiver que fazer, mas não vai mais, não. Doeu tanto…

— Eu não queria ir, Manu…

— Então não vai. – Dei um beijinho no rosto dele, tirei a aliança que sobrou
de dentro da caixa e, junto da mão do Rafa, coloquei a aliança no dedo do Gabi.
– Te amo, encrenqueiro e garoto do fundão. E não gosto quando você decide
dormir em vez de estudar.

— É que é uma escolha tão fácil… – Ele riu, beijando a gente.

◆◆◆

— Guto, – é sempre para o Guto que eu peço conselhos de coisas que me


dão vergonha. Para o Lipe eu peço conselhos sobre amor porque ele é o totem do
amor para mim, mas, para todo o resto, é ao Guto a quem recorro – o que faz
uma menina ser vagabunda?

Ele lavava o jaleco no tanque com sabão de coco. Ele tem todo um processo
de lavar jaleco, nunca o deixa misturado com as outras roupas, nunca põe na
máquina, deixa de molho antes, e esfrega só com sabão. Não sei se é o certo, se
todo médico faz isso, mas era assim que ele fazia. Quatro horas da tarde, sol para
caramba.

E, para variar, ninguém em casa.

— Porra de pergunta é essa, Manu? – Desligou a torneira do tanque, limpou


as mãos ensaboadas no jeans e me olhou como se eu tivesse comido merda –
Estão te chamando de vagabunda na escola?

— Não, eu não, – menti – só quero saber.

— O discurso da mãe sobre isso é melhor que o meu, por que tá perguntando
pra mim?
— Porque eu confio em você.

— Mas que caralho. – Largou o jaleco no tanque e me puxou para a cozinha.


Deu para perceber que ele queria ganhar tempo enquanto colocava suco de
laranja de garrafa em dois copos.

— Vai ficar me enrolando mesmo?

— Homem adora uma vagabunda. – É por isso que eu falo dessas coisas com
o Guto. Porque ele é diretão e não fica me enrolando passando lição de moral
que nem a mãe – Quer fazer um cara feliz, dá uma vagabunda pra ele. Tem uns
que não aguentam, se apegam e querem fazer ela “endireitar” para que não seja
vagabunda com mais ninguém. Eu não. Gosto de vagabunda mesmo, quanto
mais, melhor.

— Ok, isso foi desnecessário.

— Tá perguntando o que é que eu acho, então fica quieta.

— Nossa, já até me arrependi.

— Inclusive, tô precisando muito de uma vagabunda. Mas vagabunda


mesmo, que dá em pé na sala do chefe, que geme alto quando tem gente do lado,
que puxa o cabelo e põe gente para chupar…

— GUTO! Guto, pelo amor de Deus!

— Mas puta que me pariu, Manu. Olha a pergunta que você me faz! Cê quer
saber o que é uma vagabunda, eu tô te contando!

— Eu quero saber por que os homens chamam as mulheres de vagabundas,


não o que as mulheres fazem quando não tem ninguém olhando…

— Ah. Cê quer saber só da fama da vagabunda?

— É.

— Putz. – E coçou a cabeça. – Vai falar com a mãe, vai.

— Mas meu Deus do Céu, vai se ferrar!


— Tá, beleza: – Alisou a cara e puxou a cadeira para se sentar. – Senta aí,
Ogra, que o negócio é mais embaixo.

Sentei, mas já de saco cheio do meu irmão que não responde o que eu quero
saber.

— Só não é chamada de vagabunda a mulher que não viveu.

— Como é?

— A mulher que não fez porra nenhuma da vida, que aceitou a regra de todo
mundo, que obedeceu, que fechou a perna para sentar, que nunca saiu de casa
sem calcinha. Só é mulher direita a que sempre aceitou que a defendessem, que
falassem por ela, e que se calou quando viu alguma coisa errada. De resto, são
todas vagabundas.

— A mulher que tá certa é a vagabunda da história?

— Sempre. Vai se acostumando, que é por aí mesmo. – E deu o golpe de


misericórdia – Acha que sua mãe é mulher direita? E que é por ela ser direita que
o pai arrasta um bonde por ela?

— Eu nunca pensei assim.

— Essa conversa cê devia ter com a mãe, Ogrinha, ela te daria tanto tapa na
cara, que ia até cair teu dente. – E deu um gole no suco me olhando boquiaberta
– Metaforicamente falando, digo. – E continuou: – A gente domina essa merda.
O presidente é homem, os médicos são homens, os cientistas são homens, os
engenheiros são homens, os garotos da sua escola já sabem que mandam, e os
professores de matemática têm certeza que os garotos são melhores que você e
que vão tirar notas maiores se quiserem. Todo mundo daquela escola, que é
homem, tem certeza que você só tem dez em matemática porque ninguém está
competindo contra. Porque eles estão te deixando ganhar essa.

— Não, Guto, nem a pau!

— Não tô falando o que é verdade, tô falando o que os meninos e os


professores da sua sala acham.

— E o que vagabunda tem a ver com isso?


— Você acha que ninguém nunca te chamou de vagabunda? Certeza que um
moleque já disse que você só tira dez em matemática porque dá o cu para o
professor. Tudo é motivo para a mulher ser vagabunda.

— Eu morro de medo de ser mal falada na escola.

— Você já é, pode ter certeza, só não chegou nos seus ouvidos ainda.
Vagabunda é a que não está nem aí e sai andando na contramão do mesmo jeito.
Os caras seguem todos iguais, tudo com o pau para fora mostrando quem manda,
e as que eles chamam de vagabunda estão sempre se destacando, sempre
sorrindo, sempre felizes. Manuela, não vai ser fácil. Vai ter sempre um cara na
sua cola apontando o dedo e rindo, mas daí eu te pergunto: você quer ser feliz,
ou você quer ser bem falada? Porra, você tem quinze anos! Que diferença vai
fazer, quando você tiver quarenta, que te chamaram de vagaba no ensino médio?

— Você tem razão.

— O Lipe uma vez chamou uma menina da escola de vagabunda. Pensa na


bronca que ele levou.

— E você? Nunca chamou ninguém de vagabunda?

— Só trepando.

Capítulo Onze

Manuela fazia um simulado da FUVEST com o cronômetro rodando porque


tinha parafuso a menos e achava aquilo divertido. Cresceu desafiada pelos
irmãos, vivia atrasada. Eles faziam báscara, ela fazia conta de somar, eles faziam
química orgânica, ela ainda tinha ciências, Lipe foi fazer cálculo, ela ainda
desenhava linhas retas dentro de planos cartesianos. Sempre dois passos atrás e
sempre dois irmãos estudando muito. Calhava que acreditava que estudar fosse
seu jeito de viver dois passos na frente deles.

E sempre, é claro, falando muito.

Manuela estuda e atrapalha quem estiver do lado. Se está escrevendo, está


ditando ao mesmo tempo. Se está lendo, está lendo para ela e quem estiver do
lado. Fala enquanto pensa só porque não consegue ficar calada.

E foi enquanto murmurava seu raciocínio e tentava lembrar a massa atômica


do chumbo, que sua mãe entrou, vestida e com a bolsa no braço, no seu
quartinho de cientista maluca.

— Cacete, Manu, tá cada dia pior.

O ruído de fundo do quarto era a impressora 3D, instalada em cima de um


gaveteiro de plástico, sempre funcionando. O cheiro de fundo era de PLA
queimando. Nas paredes, fotos de seus amigos e de sua família misturada com
tabela química, com fórmula de física, com apanhadão de biologia feita com a
letra dela e muito pôster dos filmes do Tarantino porque a mãe, que gostava
muito, ensinou o porquê gosta para a menorzinha.

— O que, mãe?

— Que bagunça de quarto.


Menina que nasceu vendo a mãe se desdobrar para tirar seu doutoramento
cresce assim. E o pai nem fala mais nada porque sabe que não adianta.

— Mas não tá sujo – Manuela se defendeu – Só tem muita coisa, ué.

— Pois é – “Ué”.

— Cê precisa de alguma coisa, mãe? – Ela terminou de copiar a equação no


caderno e o fechou.

— Hm, não e sim.

— O que foi?

— Vou cortar e pintar o cabelo. – Tinha mais do que isso na frase, mas Manu
não pescou – Quer ir comigo?

— Quero, claro.

— Dá para a gente ir agora?

— Dá, pô. Só colocar o tênis.

— Te espero lá embaixo, então.

Ela, que não é besta, nem nada, mandou mensagem para o Lipe, pedindo
socorro: “Lipe, o que tá acontecendo? A mãe tá me chamando para cortar o
cabelo, ela sabe que eu odeio tesoura, o que foi que aconteceu????”

Resposta óbvia que, se ela não estivesse tão preocupada com seu próprio
mundo, teria percebido sozinha: “Manu, eu já larguei o emprego, a mãe vai
largar o dela amanhã. Ela tá indo pintar o cabelo para criar coragem”.

Ahhhhhhhhh! E tem que pintar cabelo para ter coragem?

Calçou o tênis e checou a quantidade de PLA no rolo antes de sair. Será que
se ela pintar o cabelo vai ter coragem de pedir uma extrusora de filamento para a
mãe? O pai ia gostar da economia, porque, como ele diz, vai uma grana violenta
com polímero, todo mês, só para fazer a menorzinha feliz, mas, quando ela
contasse quanto custa (e qual o tamanho dessa máquina) ele teria um treco. Com
certeza.

— Eu não sou cardíaco, Amor, mas assim o pai fica – E ria, sozinha, de
imaginar o que o pai diria.

Desceu as escadas, a mãe ainda tinha a bolsa no braço, mas o pensamento


estava tão longe, que Manuela nem teve coragem de chamá-la. Esperou, no fim
da escada, que a mãe a percebesse ali.

— Tô parecendo uma doida, né? – Fernanda perguntou.

— Tá não. – Tá sim, mas não é de agora. – Já sabe onde quer ir, mãe?

— Vamos lá no salão da Vivi.

— Tem certeza?

— Eu confio no corte dela.

— Da outra vez você saiu reclamando.

— É, mas ela sempre fala que o corte só vai ficar bom depois de um mês. E
ficou, cê lembra.

— Mas você precisa do corte bom amanhã.

— Eu só preciso de algum corte, Manu, eu preciso mais sair de lá com cara


renovada, do que entrar para cortar.

— Então tá.

Entraram no carro, cinco da tarde, e foram para o salão que cuida do cabelo
das meninas Ferreira desde que se mudaram para lá. A cabeleireira, que conhece
Manuela desde o berço, sempre chega com beijo e abraço, o que Manuela nunca
gostou muito, mas não reclama porque a mãe gosta de lá.

— E então, o que vai ser? – A cabeleireira perguntou assim que colocou


Dona Fernanda sentada na cadeira, de frente para o espelho. – Corte e pintura?

— É.
— Algum corte especial… ?

— O de sempre, Vivi, repica embaixo, mantém redonda as pontas, e não


mexe no comprimento.

— E a pequenininha?

— Quer cortar o cabelo também, Manu?

— Não. – Taxativa – Mas obrigada.

— Manuela acha que cabelo não precisa cortar.

— O meu não precisa.

— Não quer tirar só as pontinhas?

Para quê? Para essa doida arrancar metade do seu cabelo e falar que foram só
as pontinhas? Não, nunca. Educadamente, agradeceu negando e esperou, com a
bolsa da mãe, que ela fosse lavar os cabelos. Achou um banquinho abandonado
por aí e o colocou ao lado da cadeira giratória onde a mãe se sentaria assim que
voltasse, longe o bastante para não atrapalhar a cabeleireira, mas perto o
suficiente para poderem conversar.

— Tá pronta para largar a Faculdade, mãe? – Manuela focou no assunto da


mãe, para não focar no próprio.

— Vou te falar: pronta PRONTA, não tô. – Fernanda olhava para a filha
através do espelho, enquanto a cabeleireira secava seus cabelos com uma toalha
– Mas acho que tá na hora, né?

— Na hora de abandonar o que você construiu por todos esses anos? –


Touché.

— Não fala assim.

— Ué, mãe, não é o que você quer?

— É, e não é.

— Você tá indo na do Lipe só porque ele é um desocupado?


— Manuela, não fala assim do seu irmão.

— Mãe, eu só tô perguntando o que você tá fazendo e porquê.

— Minha especialização é sobre ponte e cordas, Manu. Tá cansada de saber.

— Sei, mãe – Dona Fernanda tem motivo para encher sua filhinha mais nova
com eletrônicos e impressoras 3D..

— Só que desde a Estaiada só estudei o tema, nunca mais coloquei em


prática…

— Se a senhora quer a minha opinião, eu acho que tá fazendo mais do que


certo de largar a academia e ir para o mercado.

— Mas eu fico com medo de dar tudo errado…

— Não tem como uma coisa entre você e o Lipe darem errado. Se alguma
coisa de vocês der errado, o que vai ser do Guto e de mim?

— Eu fico pensando nisso…

— Não, – e se corrigiu – se alguma coisa que você fizer com o Lipe der
errado, qual a chance do Guto e eu darmos certo na vida?

— E o que o cu tem a ver com as calças?

— … Mãe, o pai (QUE É O PAI) deu certo com o restaurante dele! E é o pai!
O que o pai tem de bom é lábia e ele leva todo mundo no bico! Você é estudada,
é inteligente, é maluca, é corajosa, pisa em todo mundo com salto quinze e ainda
samba, por que é que vai dar errado?!

— Eu não sei se você tá me elogiando ou falando mal de mim e do seu pai.

— Eu tô elogiando!

— Ah, é? Monstra, tá precisando fazer uns curso de elogio.

— Cê não me chamou aqui para dizer que você é bonita, mãe.

— Aqui é um salão, aceito qualquer elogio sobre beleza! – Fernanda disse, e


a cabeleireira riu.

— Tá, mas elogio de beleza você arranca do pai.

— Você tá mais grossa que o normal, o que tá acontecendo? Tem alguma


coisa te incomodando?

— É que você sempre fala para eu não ter medo das coisas, mas você tá com
medo!

— Filha, é um passo gigantesco para mim. É o meu nome, é o nome da


minha mãe, eu já passei dos cinquenta, é o nome do meu filho também que está
em jogo, o que você queria? Eu falo para você não ter medo sim, porque eu tô
aqui para segurar suas pontas e amaciar sua queda, mas atrás de mim não tem
ninguém!

— Nossa, mãe, que ingrata.

— Filha, eu não tenho quinze anos.

— É, mas falar que tá sozinha nessa é muito feio! Enquanto cê tá aqui,


criando coragem para pedir demissão, o Lipe já pediu e tá caçando sala para
vocês alugarem!

— Eu sei…

— Então como que não tem ninguém para segurar suas pontas, se o pai, o
Lipe, o Guto e eu, estamos aqui por você?

— Você não entenderia…

— Eu sei que cê tá com medo de perder dinheiro, que é um passo comprido


para você, eu sei, mãe, mas ‘pera lá, né? Um puta mulherão desses com medo, se
você tiver medo, o que sobra pra mim?!

— Manuela, eu odeio quando você tá certa.

— Você quem me criou – Isso tem que servir de desculpas, né?

— Sabe o pior?
— Hã:

— É que eu odeio lidar com pessoas.

— Não me diga?? – E surpreendeu todo mundo, Dona Fernanda.

— Imagina eu e o Lipe lidando com cliente, Manu?

— O Lipe sabe lidar com cliente, mãe. Nessa parte, ele é o que mais se
parece com o pai. E ele também não é nenhuma criança, não, sabe se virar. Quer
saber o que eu acho?

— Hã:

— Eu acho que vocês dois vão formar um puta time.

— Cê acha?

— Ah, eu acho. Pode apostar que a sala que vocês alugarem vai parecer um
chiqueiro, vão ter que catar até copo sujo do meio da mesa quando um cliente for
visitar vocês, mas, mesmo assim, vão ser um puta time.

— Também acho. – Parado na porta do salão, o Lipe encostava sua bicicleta


– Onde posso por minha Bike, Vivi?

— Encosta ela no banco da visita, Lipe.

Ir com a mãe para cortar o cabelo, antes, era também trabalho do Lipe. E
assim que a Manu mandou mensagem falando sobre cabeleireiro, Felipe largou a
imobiliária que tinha ido e foi para lá.

— Tá fazendo o que, aqui?

— Apoio moral, ué. – Ele respondeu, limpando o suor da mão nas calças.

— De novo sem capacete – Manu resmungou.

— Pois é, esqueci no carro do pai.

— Quer cortar o cabelo também, Felipe? – A cabeleireira perguntou


buscando três tons de tinta para Fernanda escolher.
— Pra quê? Ninho de passarinho não tem jeito, não.

— Tá vendo? – Manu reclamava com a mãe – Não sou só eu quem odeia


tesoura.

— Ué, pra que vai pintar o cabelo? – Lipe olhou as três tintas na mão da
profissional e para a cara da mãe – Tá querendo trocar de personalidade?

— Cobrir os fios brancos, filho.

— Pra quê?

— Por que eu tenho que estar apresentável tanto para pedir demissão, quanto
para os próximos clientes.

— Ah, para com isso.

— O que foi?

— Cê quer pintar cabelo branco, beleza, eu entendo, mas por causa dos
outros?!

Manuela ama quando o Lipe confronta a mãe. Tivesse pipoca, ela puxaria
para ver o pau comendo.

Capítulo Doze
— Não é por causa dos outros – Fernanda se defendeu.

— Claro que é.

— É que tem muito.

— E daí?

— E eu quero cobrir eles, filho. Tá na minha cabeça, é o meu cabelo, me


deixa em paz.

— Então a história de que a gente tem que assumir o que a gente é, é só


fachada para filho? – Na ferida.

— Tá falando que eu tenho que assumir que estou velha?

— Não, mãe – Manuela interviu porque não tinha como o Lipe sair dessa
sem ofender – O Lipe só tá dizendo que, se você vai fazer alguma coisa por
causa dos outros, não tá assumindo quem você é. Tá sendo falsa com você
mesma.

Falou e engoliu as palavras. Falou, soltou as navalhas, e se cortou com todas.


Engoliu em seco, sentindo o baque, arregalou os olhos quando se percebeu
falando demais. Anda se escondendo na escola, fazendo carinho por baixo da
mesa, escondendo beijo que queria dar, engolindo palavra de afeto para não levar
chumbo da classe.

O irmão e a mãe continuaram a discussão, deixando a cabeleireira sem saber


o que fazer, com três tintas na mão, esperando alguém se decidir para ela saber
se guarda as tintas, ou se ela mesma escolhe uma. Manuela, no banquinho, se
cortava com as próprias frases. Vivia de se esconder. Amar duas pessoas ao
mesmo tempo lhe rendeu uma bolada na cara. Já lhe rendia inimizades com
quem nunca foi amiga. Rendia ótimos momentos, mas sempre escondida,
sempre no escuro, sempre pelas costas.

Devia tomar a mesma coragem que a mãe, a de abandonar o certo entediante


e correr atrás do duvidoso. Dona Fernanda, aos cinquenta e poucos, largava o
emprego estável de engenheira professora universitária e se arriscava numa
consultoria com seu filho mais velho, igualmente engenheiro.

Enquanto o Lipe e a mãe discutiam o sexo dos anjos por causa de uma tinta
de cabelo, Manuela enxergava o que tem feito de errado. Podia contar para os
pais e receber castigo, mas, mais que isso, podia parar de se dobrar em tantas
partes só para caber num molde que não lhe condiz.

— Mãe, se você for pintar o cabelo, eu posso pintar também?

— Logo você, que nem de tesoura gosta?

— É. – É, logo ela, que nem de tesoura, nem da norma gosta.

— Que cor que você quer?

— Vivi, que cor doida você tem?

— Cor doida… você quer dizer colorido?

— É, cor não-natural de cabelo.

— Tenho todas. Azul, rosa, verde, cor pastel… dá pra fazer ficar grisalho
também, mas daí depende do seu cabelo.

— Mãe, pode pintar de azul?

— Azul, Manu?

— É.

— Pode, ué.

— Manu, caralho, me ajuda! – Lipe pediu, percebendo que perdia a guerra e


que, sem a aliada, não tinha como ganhar.

— Lipe, – A mãe entendeu exatamente o porquê do Lipe ser contra mudar a


aparência. Sua gordinha que não bronzeia permanecia gordinha, mesmo com
todo mundo enchendo o saco, e ele sempre achou isso lindo – é só cabelo. Se a
gente não gostar, é só pintar por cima, só esperar crescer. A gente tem cabelo
liso, então não é nem questão de identidade, é só cosmética. Eu me sinto melhor
quando não tenho cabelo branco. E a Manu só quer pintar.

— Tá certo. – Ele sentenciou, visivelmente descontente, olhando para as


duas mulheres de sua vida, e deu o braço a torcer – Se é pelo bem de um novo
começo, vamos lá. Vivi, com a tinta que sobrar o cabelo da Manu, pinta o meu
também.

— Lipe, - Manuzinha nem acreditava – Vai pintar também?!

Pintou. Mas, ao contrário de mãe e filha, ele ficou horrível. E o Guto riu
disso por anos.
◆◆◆

Dia seguinte entrou pelo portão da escola com cabelo novo. Não disse para
ninguém, só apareceu. Branquinha como era, magrinha como era, esticada como
era e de cabelo colorido, a menina parecia a noiva cadáver. Rafael olhou o
cabelo dela e achou que era peruca, vai saber, né? Gabriel olhou e, como ele tem
menos parafuso, começou a rir.

— É cabelo mesmo? – Confirmou com Rafael.

— É.

— Meu Deus do Céu, Manu, parece que cê já morreu!

Fosse filha única e não raspinha do tacho, se abalaria com a risada. Olhou
para Gabriel, do Gabriel para Rafael, e não disse nada. Sentia-se mais corajosa.
No que importa, o espelho onde ela se vê, sentia-se mais bonita. Fora do
uniforme escolar e com suas roupinhas pretas, sentia-se a menina mais linda do
mundo.

E, criada por quem foi, isso mais que bastava.

O tipo de menina que tem coragem de devolver bolada e responder com o


nariz colado no lustre. De tirar dez e não se sentir mal por ser boa. Nem por ser
melhor em matemática que os outros, nem por ser ruim com esportes. Perde a
paciência com qualquer um que não aprende na mesma velocidade que ela. O
tipo de menina que pode falar de PLA e ABS por duas horas e ainda ter fôlego
para tentar convencer o pai a ganhar uma extrusora que custa o que seu colégio
custa por ano.

O tipo de menina que ela já era, mas com força para colocar regras claras
onde não tem e não deixar Gabriel nunca mais beijar outra menina, pelo tempo
em que eles forem o que são.

Mas, primeiro, ela tinha que fincar cerca onde já era seu. Por isso que pintou
o cabelo. Para ter coragem de fazer o que ninguém jamais se atreveria, nem
Gabriel.

Coragem para colar Puta depois do Ferreira.

Enquanto a cabeleireira descoloria seus fios, ela planejava o que fazer. Ela de
um lado, a mãe de outro. Ela sabia que Catarina não daria sossego e o que
começou com um coração partido terminaria com birra e briga de ego. A bolada
era só a primeira briga, depois teriam mais. Cada menina daquela sala ainda vai
tirar uma casquinha dela, ainda vai cutucar esperando que Manuela chore e corra
para casa, vire motivo de piada, vire cachorro chutado só para todo mundo ter o
gostinho de humilhar.

Pois se vão humilhar, ela pensava, subindo com seus amores para a sala de
aula, disfarçando a mão dada e o coração berrando nervoso, se vão humilhar, que
humilhem a garota que tira dez. A melhor aluna da turma.

E se calhar de cair, vai cair chutando.

E, para nunca mais beijar escondida, nunca mais ter vergonha de fazer o que
fazia por amor, parou na frente da sala de aula. Olhou para o Gabriel, depois para
Rafael.

— Manu, você sabe que eu não tenho medo de nada, não sabe? – Às vezes
parece que Gabriel lê pensamento.

— Sei. Rafa, você tá com medo?

— Vocês vão ter que me proteger da expulsão.


— O tiro quem toma sou eu, Rafael. – Gabriel sorriu, prevendo e sabendo o
que seria dali para frente.

— Mas você vai ter que se controlar, porque a gente não vai poder te
proteger se você bater primeiro.

Entraram na sala de mãos dadas, não porque tinham um troco a dar a alguém,
ou porque queriam que Catarina se doesse, mas porque queriam. Manuela fala
com as mãos. Depois que se prometeram que não se importariam com o que
diriam os outros e passaram a se preocupar apenas com o que queriam e o que
sentiam, Manuela vivia com as mãos nos dois.

Para Rafael fazer o mesmo com Gabriel, levaram meses. Manuela podia
colocar a mão e demorar a cabeça no ombro, mas era muito raro que os meninos
trocassem carinhos. É permitido que as meninas sejam carinhosas (e Manuela o
é, totalmente), mas é proibido que um menino demonstre qualquer coisa além
daquilo que faz um homem ser homem.

Ou seja: nunca demonstrar nada.

— Até que tá bonito. – Gabriel se corrigiu quando se sentou na cadeira que


lhe é direito – Mas tá bem estranho.

— O quê? O meu cabelo?

— É. Eu gostava dele da outra cor.

— Gabriel, – Dia de coragem. – você vai achar meu cabelo bonito da cor que
ele estiver.

— E vai desenhar também – Rafael sorriu.

— Cê gostou, Rafa?

— Gostei.

— É? – Bastou para iluminar um sorriso gigante na cara dela.

— Mas vai ficar mais bonito quando estiver na minha mão.


Aos poucos a molecada entendia a mecânica dos três. Chamava atenção
desde que Gabriel parou de andar com a turma do fundão para virar nerd. O jeito
de sorrir do Rafa para o Gabi, o jeito que Manuela andava sempre no meio, o
como os três viviam com cara de retardo, um olhando para o outro, o como a
mão do Gabi ia parar na perna da Manu e o como ela vivia com a mão nos dois.

Não demorou muito que desconfiassem dos dois meninos, também. Os três
são muito próximos, tem muita melação entre eles para ser só amizade. Rafael
falava, Gabriel ria, e Manuela completava. Manuela perdia a linha tentando
ensinar alguma matéria para Gabriel, Rafael intervinha só para azeitar. Muito
sorriso para ser de amigo. Muito toque e muito abraço.

Aos poucos, como quem procura, acha – acharam. Catarina inventou de ir


até o quinto andar, só para se certificar, e levou uma testemunha consigo.
Encontrou Manuela e Gabriel deitados na perna do Rafa. Depois veio o beijo de
três e Catarina quase deu um grito.

Só não gritou porque contar a novidade para os outros era melhor. Espalhou
para a classe inteira. Os três fazem suruba todo intervalo, foi assim que chegou
nos ouvidos de quem não viu. Que Gabriel e Rafael comem Manuela enquanto
se comem, num bacanal bem debaixo da Santa que vigia e guarda toda a escola.

Todo mundo ficou alarmado, mas, de início, ninguém achou que fosse
verdade. Gabriel não pode ser viado, olha o tamanho do desperdício. Catarina
também não andava bem falada entre as meninas porque ela não sabia aceitar o
fim do relacionamento (era assim o que as meninas da sala falavam do mini-
beijo de três segundos e várias salivas intragáveis: “relacionamento”) e que
vivia de falar mal de Manuela.

Os meninos é que não conseguiram ouvir a palavra viado.

Gabriel nunca entendeu o que a vida dele tem que ver com a vida dos outros
e, quando os cochichos de “viado” começaram pelos corredores, ele só se
conteve em mandar beijinho. Rafael quem não tinha geleia correndo nas veias.
Ouvia a palavra “viado” e parava de andar, estivesse onde estivesse, e olhava
para o remetente.

Conseguiu calar a boca de muita gente só com o olhar de cão. As meninas


mal olhavam na cara dele porque ainda acreditavam, mesmo viadinho, que
qualquer dia ele entraria com uma metralhadora na escola. E os meninos, se não
estivessem em bando, engoliam o sorriso e a piada para não engolirem os dentes.

— Mas cê é viado mesmo, porra – Gabriel não entendia o que tanto essa
palavra incomodava o Rafa. Cada um chupando um pirulito de cinquenta
centavos, na hora do intervalo, mesmo descobertos, eles ainda frequentavam o
quinto andar.

— Amor, – Não tinha palavra no mundo que Manuela gostasse mais do que
essa. Virou para Rafael, as mãozinhas no ombro dele, toda derretida no menino,
na palavra, e no jeitão rude dele – deixa as pessoas falarem. A gente sabia que
seria assim, não sabia? Não dá para bater em todo mundo.

— Odeio ser chamado de viado.

— Cê odeia ser chamado assim, ou de ser asim? – Com o pirulito na boca,


Gabriel virou para ele e o confrontou – Assim parece que você odeia estar
comigo.

— Não, – E Rafael ainda nem sabia como se explicar – não é isso.

— Então é o quê? – Manu ainda tinha os braços em cima dele, mas apoiava
Gabriel – Porque eu não ia tocar nesse assunto, mas já que o Gabi tocou, eu
também quero saber.

— Não tem o que saber.

— Te faz menos homem gostar de mim, é isso?

— Também.

— Então… ser homem é gostar de mulher? – Era como se os dois tivessem


ensaiado aquele labirinto que catava Rafael no pulo.

— Não, eu não falei isso.

— Falou, Rafael. – Gabriel tentava olhar nos olhos dele, mas Rafael
desviava.

— Eu só não gosto que todo mundo saiba. Eu não gostava nem que todo
mundo soubesse quando era eu e a Manu, porque eu ia querer que todo mundo
soubesse agora que somos três?

— Não sei se você percebeu, – Manuela cuspindo ácido com mãos de seda –
mas a gente não tem muita escolha. Não é como se a gente erguesse uma faixa:
OLHA, A GENTE TÁ JUNTO! É que ninguém dá sossego.

— E você aceitou parar de fingir que não estamos juntos no dia em que a
Manu trocou a cor do cabelo. – Gabriel lembrou.

— …

— Então o problema não é sermos três, é você gostar de mim. – Gabriel


deduziu e detestou.

Rafael ainda estava confuso demais, perdido demais, sem entender como que
foi gostar tanto do beijo do Gabi lá no cinema, se sempre só se interessou por
meninas. Conversa com a mãe e a psicóloga, mas, mesmo assim, ainda não
estava tão certo de si para andar por aí com o arco-íris no peito e de mãos dadas.

— Eu só não…

— O que foi, Amor?

— Eu só não sei quem eu sou quando me chamam de viado. – E, para ele


soltar uma frase como essa, sinal que já a tinha elaborado há dias. – Eu sou o
único homem da minha casa. Eu conserto as coisas, a pia entupida, o chuveiro
quando queima, eu carrego as coisas pesadas da minha mãe, eu fui ensinado a
ser útil.

Para não demonstrar o que sente, para ser carinhoso e lindo só com aquela
que merece, a que ele escolheu, para não sorrir para todo mundo, nem dar
conversa. De onde ele vem, com o histórico que teve, ser homem era ser tudo o
que o pai não era. E viver de tratar mulher bem.

Ninguém falou nada sobre gostar de homem.

— Quando me chamam de viado parece que eu não sou o Rafael. Eu sei, é


besteira, a Clarice já me disse que Rafael é a soma das coisas que eu sei que sou
com as coisas que ainda não sei, mas o juízo que eu faço de mim mesmo não
inclui gostar de outro cara.
— E tudo isso só pra dizer que não me quer mais?

— O quê? Não! Eu tô trabalhando para aceitar o fato de que ser bissexual faz
parte do Rafael que eu ainda não conheço.

— Talvez a gente devesse parar de forçar a palavra viado, então – Manuela


sugeriu.

Um gênio, uma vez, disse que, para quem nunca diz nada, as palavras têm o
dobro de peso.

— Bissexual é novo pra mim – Gabriel chegou mais perto, fechando a roda,
encostando o queixo no ombro da Manu e sorrindo por trás do cabelo dela –
Quer dizer, essa palavra eu já ouvi, mas é a primeira vez que eu penso que eu
sou Bi.

— Já eu, só sou puta, mesmo.



Capítulo Treze

Rafael ainda não entendia tudo sobre ser trio, sobre gostar de outro menino, e
talvez nunca entendesse. Talvez só se contentaria com alguma solução paliativa
que explicasse o que o deixa tão fora da casinha quando misturam-se os três e
isso talvez seja o suficiente para que ele.

O que ele sabia é que era feito de terra. Gabriel não queria estudar, Manuela
perdia a paciência, e ele colocava todo mundo nos trilhos. Ele sempre sabia o
que era preciso. Nem sempre o que era melhor, ninguém no mundo tem esse
poder, mas ele sabia o que era necessário e para quem. Quando viu Manuela de
cabelo pintado entendeu que aquela era a forma dela de lidar com tudo. Quando
viu que Gabriel fazia merda atrás de merda só porque ele andava perdido
demais, entendeu, mais do que precisar de explicações para isso, ele o entendeu.

E, em alguns momentos, o odiou por isso.

Em todos os outros, o encaixou no abraço e só esperou a euforia passar:


Gabriel era assim. E pronto. Não dá para mudar uma pessoa enquanto ela não
perceber que está errada.

Mas foi a classe se meter de besta com Gabriel que vai na onda e acredita em
todo mundo, que a terra úmida de onde tudo brota e para onde tudo volta se
consumiu quente e virou lava.

Eram um dos últimos dias do ano. Enquanto ninguém mexesse com eles, o
trio não fazia nada além de cuidar de si, subir para o quinto andar no intervalo,
roubar uns beijos no cinema, e recuperar o tempo de estudo perdido de Gabriel.

Um dos garotos mais velhos, de um ano na frente, ouviu a palavra viado


numa festa. Enquanto eles só combatiam a classe, era uma briga possível, mas,
quando avançou para as demais idades, segundos e terceiros anos do colégio, foi
que eles entenderam que não vai bastar cair chutando e deixar a vida seguir seu
rumo porque o mundo é maior que eles.

Primeiro começaram os gritos. Gabriel passava do outro lado da escola,


alguém, que ele nunca nem viu mais que duas vezes vida, berrava:

“VIADO!”.

Gabriel não se importou. Já estava amigado com a palavra.

Depois começaram as piadinhas: Gabriel ia para a fila da cantina, alguém


empurrava alguém e o empurravam. Decidiram voltar a trazer lanche de casa
para não terem que enfrentar fila, nem cantina, e o sossego voltou para o estado
normal.

Então descobriram que Gabriel não era viado sozinho, mas que tinha um
colega de sala para acompanhar e, de quebra, uma menina. Logo, os berros de
“BCDF” começaram. A piada nova era que Manuela tinha o cu e a boceta,
ambos de ferro. Ela era magrinha demais para aguentar os dois moleques que ela
andava junto, então só podia ter a genitália de ferro.

E ainda casava com o fato de que ela, CDF por ser esforçada demais,
arrancava ódio de metade das meninas da classe. E o desprezo de todos os
garotos.

Manuela insistiu que ninguém a defendesse. Deixem que chamem, que


digam. A cabelo azul já tinha sua blindagem natural contra esse tipo de coisa, se
pintou para se proteger, e funcionava. E se chorava no banho pensando nos
outros dois anos que ainda tinha pela frente, era só quando já era época de pintar
de novo.

E então o dia de lava chegou. Sete horas da manhã, Manuela esperava pelos
seus. Veio um menino já de barba, provavelmente repetente, e encostou nela.
Sentou junto, nem perguntou nada, só sentou e a abraçou como se ela fosse um
corpo público.

De todas as coisas que ela previa, nunca pensou que alguém encostaria sem
permissão.

Imediatamente, sem esperar ninguém, Manuela se levantou e saiu. Não disse


nada, não deu palco para maluco, viu outros dois meninos encostados na grade
do canteiro e o jeito como riam dela quando ela se afastou e entendeu que aquilo,
o que quer que tenha feito o moleque repetente chegar encostando, era
premeditado por mais de uma cabeça.

Encontrou os seus só lá dentro da sala, deu uma desculpa qualquer por não
esperá-los e continuou com a vida. No intervalo, assim que o sinal tocou, os três
moleques mais velhos estavam plantados na frente da sala dela.

Manuela deu meia-volta, entrou na sala, e deu a desculpa de que tinha


esquecido a colher de seu danone.

— Manu, – Gabriel deu meia-volta também, mas Rafael ficou plantado na


porta da sala – o que é que tá acontecendo?

— Nada. – Ela não queria que eles tomassem suas dores porque sabia o que
aconteceria. – Eu só esqueci a colher. Vai lá com o Rafa que já chego.

Gabriel parou na frente da porta da classe e entendeu para onde Rafael


olhava com cara de tão poucos amigos.

— Achou a sua colher? – Rafael perguntou, sem desgrudar os olhos do trio


parado do outro lado do corredor.

— Achei. – Na hora que ele perguntou, Manuela já tinha entendido que a


pergunta não era sobre a colher, mas se ela estava pronta para sair da classe.

— Então vamos.

Deram as mãos. Manuela suava. Rafael apertou a mão dela com mais força,
querendo dizer que estava tudo bem, que nada de ruim lhe aconteceria.

Mas ela sabia que não.

Os três moleques mais velhos seguiram atrás deles, as pessoas no corredor


rareavam, todo mundo descia para a cantina na hora do intervalo, só eles que
subiam. O moleque barbado, provavelmente repetente, não teve paciência
suficiente para provocá-los quando estivessem a sós e começou, pelo corredor
mesmo, a berrar o “viado” de costume.

— Cabelo Azul, se você quer rola, não é com viado que cê vai achar. – E
depois, conforme o xingamento óbvio não surtia efeito, ele apelava para os
outros – Cê até que é gostosinha, porque não fica com quem vai te dar o que
você quer?

Os outros dois idiotas atrás riam sobre o apelido “Cabelo Azul”.

— Continua andando, Rafael – Gabriel disse.

Eles já tinham o plano claro dentro da cabeça. Se Rafael perder a linha, é ele
quem vai expulso. A escola não vai nem pensar duas vezes: um bolsista a menos,
menos gasto, menos problema. Um garoto pobre a menos abre espaço para um
garoto com dinheiro e livra a escola dos garotos-problema.

Manuela só lembrava de Rafael falando: “Se der merda, Manu, quem você
acha que eles vão expulsar? O garoto que tem pai pagando, ou o garoto que tá
aqui de graça?”.

— Quer platinar o cabelo com porra, novinha? – Funcionava de piada para


eles. O barbado era o líder e os outros dois da matilha agiam para impressionar o
mais velho.

— Faço esse azul ficar branco rapidinho.

— Continua andando, Rafael. – Se Rafael segurou a mão de Manuela na


hora de sair da sala de aula, agora era Manu quem segurava forte a mão dele, não
para dar segurança, mas para obrigá-lo a andar.

O maxilar apertado era sinal de um Rafael muito puto.

— Se você tá com esses dois viadinhos porque tá procurando ficar larga,


vem cá.

— É, Cabelo Azul, tem três aqui, maior que essas bichas, e mais grossas
também.

— Te como com tanta vontade que amanhã cê não tá nem andando.

— É, tipo, quem dá para dois, dá para três, e quem dá para três, dá para um
bonde.
E riam.

— Podem até ficar olhando, vocês dois. Na punheta, que eu não gosto de
viado.

Bastou. Rafael estacou olhando o chão vermelho de caquinhos quebrados,


clássico de colégio velho, e se virou para os três. Colérico. Quem via Rafael
jurava que ele podia acabar com os três meninos, de uma vez, fossem mais
velhos ou não, fossem em maior número ou não, fossem maiores, mais fortes, ou
o que fossem.

Manuela o puxou o máximo que conseguiu. Gabriel já tinha começado a


subir as escadas para seu santuário no quinto andar. Rafael se virou, pronto para
queimar o que fosse tocar, e então:

Antes que Rafael fizesse besteira, Gabriel colocou a mão no ombro dele, o
puxando para trás, e foi.

Pode ser moleque livre, fruto de pai idiota com mãe omissa, mas não é de
ferro. Pode ser do primeiro ano, pode ser burro, pode ser mais fraco, pode ser
bom de desenho e péssimo de matemática, pode até meter os pés pelas mãos e
não entender nada sobre meninas e o quanto cabelo importa para elas.

Mas na hora em que mexem com seus amores, Gabriel é homem. E não vai
ver Rafael expulso enquanto puder evitar.

Chegou no barbado, não disse nada, só deu. Delícia de soco tardio, vingando
os um milhão de “viado” dito para perfurar. O barbado revidou, Gabriel deu
outro, os outros dois quiseram segurá-lo, três contra um e o maricas é Gabriel?!

Manuela foi também. Podia apanhar, que se danasse, no que é dela, ninguém
tasca.

E, quando Manuela deu o primeiro passo adiante, soltaram a coleira de


Rafael, o psicopata feito de pet, e todo mundo da escola entendeu que a vadia e
os dois viados têm mais poder de fogo que qualquer um deles.

A briga foi feia. Manuela foi molestada, o menino que bateu nela puxou
cabelo, pegou tetinhas, apalpou sua bunda; ela arranhou a cara e chutou o saco
dele, mais de uma vez, e chorando.
Quando a supervisora de corredor viu a briga, teve que chamar segurança.
Não houve apito e berro de repreensão que esfriasse a raiva acumulada de quem
se fingiu de cego, surdo e mudo, só para não fazer o que fizeram ali.

Ninguém podia dizer que o trio de Manuela levou pau. Pau não levaram.
Gabriel tinha um roxo no olho, Manuela também, Rafael não, mas o outro trio
estava bem pior. O moleque que tomou chute no saco abriu um berreiro que,
poucas horas depois, virou meme no grupo de WhatsApp da escola. O barbado
tinha o supercílio cortado e um dente mole. O outro ninguém viu, nem ficou
sabendo, porque foi caso de hospital.

Depois da enfermaria foram todos para a diretoria. Um aluno por vez, salas
separadas. Coisa mais particular que B.O. em delegacia. Manuela e os seus nem
combinaram o que diriam porque para falar a verdade não precisa teatro. Os
outros três meninos, mais velhos, com aulas em outro corredor, é que tiveram
que se explicar.

Com Manu suspensa e com notificação direto no e-mail dos pais, Fernanda
mandou Gustavo ir buscá-la na escola e deu carona para Rafael, com apenas um
arranhão no rosto, nada mais, mas ainda furioso.

— Ninguém vai te expulsar, Rafael. Eu faço o inferno naquela escola. Se ele


te expulsar, eu saio e Gabriel sai também.

Rafael não disse nada porque Gustavo estava ali, olhando para eles pelo
retrovisor. Tentando entender se o que Manuela disse enquanto bêbada era coisa
inventada, ou se era de verdade.

— Tá me ouvindo, Rafael? Se eles te expulsarem e não expulsarem ninguém


mais, pode ter certeza que eu vou fazer o inferno naquela escola. Foram eles
quem começaram, a gente só se defendeu, a gente deixou quieto, a câmera viu
tudo, tá tudo filmado!

— Manu, – Rafael respondeu baixinho – tá tudo bem.

A vontade de Manuela era se aninhar nele. Puxar o braço dele por cima do
ombro, se encaixar nele, sentir o cheirinho confortável que ele guarda no
cangote, chamá-lo de “amor” por um milhão de vezes e se acalmar. Queria se
acalmar nele, não em casa. Não queria contar o que houve, não queria tomar
sermão de mãe, não queria reviver a briga ao se explicar e inventar mentiras para
não ter contar sobre seu trio.

Só queria acalmar.

— Tá entregue. – Gustavo disse assim que puxou o freio de mão do carro do


pai – Manda um beijo para a Tia Lúcia e vê se não mata ela do coração, Rafael.

— Vou tentar.

Rafael teve que se despedir sem beijo. Só um abraço encurtado para não dar
na cara, olhou o rosto roxo da menina, engoliu o lamento, o carinho que queria
fazer, o cuidado que tinha para dar, e entrou.

— Pula para frente – Gustavo mandou antes que ela terminasse de


acompanhar, com os olhos, Rafael entrando pelo portão de ferro.

Sem dizer nada e sabendo que ia levar chumbo, Manu largou o banco de trás,
que ocupou com Rafael, e foi para o banco da frente. Sentiu o hematoma
examinado pelo estudante de medicina, o beijo de carinho de irmão, mas não
conseguia parar de se preocupar com Rafael que entrou em casa.

— O que eu quis, eu fui lá e catei, Gutão – Bastou abrir a boca para


choramingar.

— É? – Ele sorriu soltando o freio de mão – E qual a sensação disso?

— Uma merda.

— Tudo tem consequência, Monstrinha.

— Eu quero saber o pau que eu vou levar do pai e da mãe quando eles
souberem.

— Você tem que pensar qual a história que vai querer contar para eles. – Era
óbvio: Gustavo sabia. Só Manuela, com o corpo e a cabeça muito quentes, é que
não entendeu a deixa dele – Porque, dependendo do como você falar, ou vai rolar
castigo, ou amanhã o pai tá na escola para comer o toco da diretora.

— Eu defendi o que era meu, Guto. – E tudo o que ela falava afirmava o que
Guto já sabia. – E se tiver castigo por causa disso, eu pago. Pago com gosto
porque eu tô certa!

— Ogra, você precisa de aliados. – Ele parou o carro na vaga para idosos da
farmácia e abriu a porta – Nem todo mundo tá contra você. Coloca teu pai e tua
mãe do teu lado, que nós cinco compramos a sua briga. Prepara direito o que vai
falar para eles, que você sempre vai ter com quem contar. Vê se não come
merda.

Saiu, e só voltou com uma sacola com água boricada e alguns analgésicos.

Manuela, na mesa do jantar, olhava o pai, a mãe e os irmãos. Depois do e-


mail, o pai até correu no restaurante para poder estar à mesa quando todo mundo
se reunisse. Era o pátio sagrado deles. Tudo naquela casa acontece ao redor de
uma mesa e com comida servida.

— Tá, – a mãe foi a primeira a largar o garfo – agora que estamos juntos,
mas o que caralho aconteceu na escola, Ogra?

Sabiamente, Manuela encheu os pulmões de ar. Já tinha se acalmado. Já


tinha ligado para os seus, conferido como eles estavam, já tinha ouvido mil
músicas e cuidou de si mesma o máximo que podia: pintou as unhas dos pés e
das mãos, esfoliou a pele, banhou o cabelo de creme e depilou até onde o sol não
batia. Tudo isso para fazer as pazes consigo de uma briga que sequer tinha
começado.

Por isso, na hora de contar para os pais, chorou, mas não doeu. E não disse
toda a verdade.

Contou só que a escola inteira achava que seus dois meninos eram gays
porque andavam muito juntos.

— E eles são gays?

— Não!

Quer dizer, um pouco.

A questão é que a escola inteira achava isso e não adianta alvo da acusação
rebater com qualquer coisa, porque adolescente é foda. E os quatro Ferreira
ouvintes sabiam bem como adolescente é uma merda quando se junta para catar
alguém para cristo.

— Você bateu num menino mais velho, Manu? – O pai perguntou.

— Bati! Fiz igual cê me falou para fazer: saco e unhada!

— E funcionou?

— Pai, se funcionou não sei, mas que ele berrou de dor, berrou!

— Coitado desse menino, Dio. – Fernanda riu um pouquinho.

— Tá mais que certa, filha. Amanhã eu vou na escola.

Tinha um aliado.

— Eu só sei que, se expulsarem o Rafa, eu saio daquela escola também!

— Por que expulsariam o Rafa?

— Porque ele é bolsista!

— Sim, e com mérito. E desde menininho. Ninguém daquela escola tira mais
nota que ele. – Fernanda ainda não entendeu o espírito da coisa.

— É, mãe, mas se um bolsista causa com um aluno pagante, cê acha que eles
vão expulsar quem?

— Ah, mas não vão. – Pronto: dois aliados – Se aquela escola expulsa o
Rafa, eu sou a primeira a ir lá plantar barraco. Que quié! O menino devia
apanhar calado? É xingado e tem que ter sangue de barata?

— Mãe, eu entendo que eu esteja errada em bater em alguém, mas eu juro


que eu não comecei. Há meses a galera está nos provocando, e ninguém faz
nada!

— Por que você não falou disso com a gente antes?

Porque aí ela teria que explicar o porquê tá todo mundo chamando eles
assim.
— Cê sabe como essas coisas são, mãe. – Gustavo interviu porque Manu não
tinha como responder sem se denunciar – Eu também não falaria.

— E mesmo que eles fossem gays. – O pai voltou a pauta para o eixo – Isso
não é motivo para a coordenação não fazer nada.

Daí sim que Manuela não conteve o choro. É como se alguém finalmente
dissesse o que ela precisava ouvir.

— Que que foi, Ogra? – A mãe juntou cadeira com cadeira e puxou a
filhinha mais nova para um abraço apertado – Não chora, cê tá certa, eles que
estão errados.

— Mãe…

— Que que foi, amor? Tá achando que nasceu de chocadeira, é? Seu pai e eu
casamos junto de duas lésbicas, cê acha que a gente se importa se tem mais
viado na família? Que venham os viados, as lésbicas, as putas, as
brigoooooonas…

Manuela riu quando a mãe falou “brigonas”, mas se identificou mesmo é


com puta.

— É, Chaveirinho, não fica triste não, guarda lágrima para chorar choro de
alegria, que de tristeza não vale a pena.

— Te amo, mãe.

— Também te amo, Ogra. Não gostei de saber que você estava com
problema na escola só agora que deu briga, mas… Tô orgulhosa que tenha
defendido seus amigos.

— … E que tenha dado chute no saco de moleque folgado – O pai


completou.

— Alguém gravou o menino estrebuchando no chão e fizeram meme dele. –


Manu sorriu lembrando da mensagem que Gabriel mandou pouco antes do
jantar.

— Filha, o que é meme? – Se Seu Rodrigo um dia entender de tecnologias,


não vai ser Seu Rodrigo.

— É tipo uma imagem engraçada.

— Depois cê me mostra?

— Cê vai rir?

— Provavelmente não. Nenhum homem que eu conheço ri quando outro cara


leva um chute no saco.

— O Gabi riu.

— Mas o Gabi não conta, o Gabi é retardado.

— Falando nisso, faz tempo que eles não vêm aqui – Fernanda retomou –
Traz eles para comer, qualquer hora.

Depois da janta, quando cada um se recolheu em seu quarto, Manuela foi


para o quarto dos irmãos sabendo que não encontraria o Lipe, que
provavelmente andava de bike com outra galera, mas encontraria o Guto.

— Obrigada por hoje – Ela interrompeu seus estudos e se sentou na cama


dele – Me salvou.

— Você se salva sozinha, só ‘tava mal assessorada. – Ele respondeu sem tirar
os olhos do livro.

— Obrigada pela assessoria? – Era para ser um agradecimento, mas ela não
entendeu o que ele quis dizer.
◆◆◆

Gabriel chegou em casa, no carro da mãe, o rosto roxo e o coração acelerado,


disse que defendeu o amigo que foi chamado de viado e ouviu a sentença:

— Se era viado, devia ter deixado baterem.



Capítulo Catorze

Não tinha um centímetro do coração dela que procurasse sexo quando Gabriel
tocou a campainha. Só queria saber de carinho. Encontrou o rosto machucado de
um Gabriel sorridente e só soube beijá-lo. Cada cantinho arranhado e
machucado, cada parte do rosto macio e lindo. Abraçou-o com carinho e
apertado, mas o soltou assim que ele se encolheu: tá machucado mais onde,
Gabe?

As costelas dele estavam roxas de um lado. Por baixo da camiseta, fora ele,
ela era a primeira a ver. Não mostrou nem para os pais. Ela viu, não conseguiu
esconder as lágrimas, quis beijar cada um dos ossinhos, fez um carinho bem de
leve e o abraçou com mais cuidado.

— Obrigada por ter protegido o Rafa. – Ela cochichou.

— Eu falei que o chumbo era meu, não falei? – Gabe ficava lindo quando
sorria. E mais lindo ainda quando não metia os pés pelas mãos. – Ele só não sabe
se controlar, né? Nem você.

— A gente não ia deixar você apanhar sozinho, Amor.

— Uau, você me chamando assim é novidade.

— Que mentira!

— O que sobra para mim é sempre a bronca.

— Se a bronca sobra, Gabriel, é porque você merece!

— Só hoje, Manu.

— O quê?
— Me trate bem. Só hoje.

— Mesmo quando eu tô te dando bronca, – Ela sorriu pequenininho e enfiou


a cabeça no peito dele – não tô te tratando mal.

Rafael chegou e nem parecia que tinha brigado. Tinha o sorriso do tamanho
do mundo e os olhos brilhantes. Agora sim. Olhou para Gabriel, o chumbo que
levou, a briga que começou, a que ele quis brigar sozinho, e tascou um beijão
bem dado, sem porquê nem quando, só deu. Para Rafael tudo chega antes, mas
demora para passar. Vai se acumulando. Só a raiva que ele sente via sedex. Todo
o resto vem de burrinho.

— Te amo. – Foi a primeira coisa que Rafael disse. Antes do oi e de checar


se está todo mundo bem – Tá bom, tá feliz? Odeio o fato de que você fala muito,
do como faz piada com tudo, o como nunca pensa nos outros, o como nunca
acha que as coisas têm Feedback, mas eu te amo.

— Eu já falei uma vez, mas cê não tava aqui para ouvir, então tô falando de
novo: O chumbo sou eu quem leva.

— É, mas não faz mais isso. – Gabi sabia que Rafael tinha uma mão muito
boa de beijar pesado e pegar na carne, mas não sabia ainda como era a mão de
fazer carinho. Com as pontas dos dedos, do mesmo jeito que ele usava para
acarinhar Manu, ele sentiu o toque no rosto, por cima dos machucados,
afastando os cabelos dos olhos e o beijo, símbolo de carinho máximo, na testa. –
Eu levo três na porrada, mas você não. Então não tenta.

— Agora eu entendi o por que você é mais carinhosa com ele, Manu –
Gabriel disse, os olhos molhados, o sorriso frouxo, feliz e calmo como ele não
conseguiu ficar desde que a briga começou.

— Por quê? – Rafael puxou Manu para o meio do abraço dos três e beijou-
lhe o topo da cabeça – O que eu perdi?

— Manu me chamou de “Amor”, hoje. – É impressionante o quanto o Gabi é


carente.

— Ela nunca tinha te chamado assim?

— Vocês namoram entre vocês e, às vezes, me beijam.


— Aff, Gabriel, para. – Manu pediu.

— É sério. Vocês me tratam diferente do que se tratam.

Manuela queria brigar e tirar satisfação. O Rafa só aceitou que Gabriel


precisava de mais carinho e cuidado, e cedeu:

— E você acha que a gente consegue recuperar o tempo perdido, hoje? – Um


sorriso lindo no rosto. Os dedos pelo corpo, num abraço, feito só para dar
carinho – A gente se esforça.

— É, – Manu também cedeu, beijando o cantinho da boca dele – deixa a


gente namorar você hoje, Gabriel?

Gabriel não precisa mais do que menção de centelha. Sorriu afogando a


carência de ter feito seus próprios curativos, de não ter amparo dos próprios pais,
beijando Manuela com carinho e lentidão.

— Esqueci de responder isso para você, Rafael: Te amo também, só que não
tem nada em você que eu odeie.

— Calma, que cê ainda vai achar. – Manu riu para o Rafa.

— Oi, Amor – Rafael sorriu para a Manu e ela pode ver esse sorriso mil
vezes por dia, que ainda se encanta todas as vezes. – Sinto muito te botar no
meio da briga.

— Oi, Amor. – Ela colocou uma mão no rosto dele e o beijou no único
arranhão – Eu briguei e brigo de novo, se precisar.

Então, sem medo de serem vistos ou pegos no pulo, beijaram-se os três.


Sorrindo e esquentando brandamente, matando a carência de ter, cada um, feito o
próprio curativo e não unidos como queriam que tivesse sido, procurando
encaixe para se sentir seguro.

Sorrindo, e não mais desesperado como no cinema, não mais como se o


mundo fosse acabar no dia seguinte, Rafael tirou a camiseta do outro pela
cabeça, cumprindo a promessa de recuperar o tempo perdido. Viu o hematoma
na costela, pediu para tocá-la, e se abaixou para um beijo bem ali.
Olhou para cima só para ter certeza do que via: Gabriel já tinha se esquecido
do roxo no corpo porque tinha Rafael abaixado, de joelhos, bem na sua frente.
Gabriel sorria sem implorar nem pedir, só sorria. Os olhos é que se expandiam
no desejo.

— Vem, – Manuela puxou os dois pela mão – vamos lá para o meu quarto.

Gabriel não colocou a camisa para subir e, diferente de como foi no cinema,
os outros dois agora podiam ver. Gabriel não se cansava de ser bonito, não tinha
limite. Esguio, tudo no corpo dele era marcado e sem pelos. A pele imaculada,
nem mesmo uma cicatriz, uma marca de espinha. Ele subia as escadas na frente
dos seus, percorrendo o caminho que sabia de cor porque não era de ontem que
ele frequentava aquela casa, Manuela se encantava com o movimento das costas,
dos ombros, dos braços. E Rafael sorria olhando os dois andando na frente,
querendo baixar-se de novo, ficar de joelhos, e beijá-los mais um pouco assim.

Gabriel sentou na cama dela, olhando o quartinho de cientista maluca. A 3D


trabalhava, para variar. Rafael roubou sua atenção e ajoelhou-se na frente dele e
beijou-lhe o hematoma.

Percebendo Rafael ajoelhando depois que fechou a porta, Manuela pensou


em toda sorte de besteira. Não conseguiu deixar de pensar nelas, o sangue
escorrendo da cabeça para o resto do corpo, as bochechas inchando,
automaticamente, só de pensar no que fariam.

— Eu vi o como você olhou para o Rafa quando ele baixou para beijar aqui.
– Ela disse, se ajoelhando do lado de Rafael.

— É? – Ele sorriu sentindo Manu encostar em seu machucado.

— É. Parece que você gostou.

— Não foi por causa disso que eu olhei para ele.

— É? – O Rafa sorriu, não o sorriso da saudação, mas o sorriso que Gabriel


só conhecia no escuro – Por que foi, hein?

— Porque você é lindo, Rafael. – Gabriel chegou bem pertinho do rosto dele,
namorando suas sobrancelhas, mordendo o lábio e enlouquecendo devagar.
— Só isso? – Rafael é quem sabe conduzir a sedução. Tardou o beijo, o
máximo que pôde, só para fazer Gabriel desejar. Só para vê-lo, mais um
pouquinho, implorar sem dizer nada, e cobiçoso.

— Não.

— Não?

— Ãh-ãh.

Rafael o beijou, e Manuela abriu o zíper. Gabriel não sentiu nem o zíper nem
a calça, mas sentiu quando Manu o pegou na mão, quando lambeu a gotinha que
escapava, e quanto o enfiou na boca. Gabriel gemeu contido, com a boca
ocupada, os olhos cerrados com força, uma mão no cabelo azul dela, outra mão
no rosto dele.

Com cuidado, Rafael o deitou de transversal na cama e não coube, a cabeça


batia na parede e ele se encaixou o suficiente para descansar as costas, mas
conseguir ver Manu e os olhos lindos, a boca ocupada, e Rafael que descia,
lentamente, até encontrá-la.

Gabriel não conseguia nem manter os olhos abertos quando Rafael se juntou
a ela. Os dois o beijando juntos, Manuela lambia, e Rafael o lambia até lamber o
rosto da Manu também. Lambia até encontrar Manu, do outro lado de Gabriel,
beijá-la enquanto o lambia, olhar para ela com rosto de troça e de cobiça, os
olhos abertos e lindos, os dela também, as mãozinhas de menina que aprendeu a
dar unhada porque não sabe socar encostadas no abdómen liso e marcado dele,
subir para o peito e para o rosto. Gabriel beijou a palma da mão dela, com o
mesmo carinho que da outra vez, mas mais perdido.

— Eu amo isso – Era a primeira vez que recebia assim, de duas bocas, de
seus amores, como um pirulito lambido por dois que brincavam de se atiçar
enquanto o chupavam. – Puta que pariu…

Por cima das pernas dele, Rafael segurou o cabelo da Manu. E Gabriel nem
sabe mais quantas vezes desenhou essa cena.

— Seu cabelo fica mais lindo – Rafael lembrou, aos cochichos, coisa de
amor falada baixo para ninguém invejar – quando tá na minha mão.
Capítulo Quinze

Viramos o ano e eu era o topo da cadeia alimentar. Não que isso fizesse muita
diferença ou que usasse para alguma coisa, mas, quando você chega no terceiro
ano, o povo mais novo cria uma certa distância e, sendo eu namorada de dois,
tudo o que eu mais queria era distância.

Terceiro ano, quase alforria, meu cabelo nem era mais azul: passei por uma
miríade de tons, quase sofri corte químico, dei um tempo nas cores de cabelo e
ando com ele quase branco, senão branco totalmente, é só por falta de matizador.
Meio azul, meio verde, não importa muito. Importa é que de longe todo mundo
da escola sabia que eu era a menina com os dois caras.

Vida que segue, não é? O foco ainda é o mesmo, sempre pensando no


vestibular, no próximo passo, no meu futuro do lado da minha mãe, trabalhando
com ela de tarde como sua secretária, pensando no quanto vou demorar para ser
como ela e no quanto vou ter que ralar também.

Naquele dia, no escritório da Faria Lima que a minha mãe mantém com o
Lipe, os dois dando consultoria para construtoras, com contratos importantes ao
redor do mundo e muito prazo apertado (para variar), o Lipe não funcionava. Eu
sei o porquê, mas não produzia. Se ele era sem cor e sombrio no meu primeiro
ano da escola, não queira saber o zumbi que ele virou no meu último ano.

É aceitável que todo mundo pense que ele esteja feliz com o fluxo de
trabalho sempre crescente, sempre ocupado, mas a verdade era, e eu via, que sair
de um trabalho cheio de gente para conversar e viver dentro de um escritório
vazio, o levou para um caminho bem depressivo e melancólico.

Meu Lipinho Velho só vivia para trabalhar e brigar com a mãe. Raramente
fazia uma piada, raramente saía para alguma coisa. Encontrou uma mulher no
meio do caminho, mas não durou muito. Provavelmente brigou feio com ela
porque um dia chegou cheio de gesso, da cabeça aos pés, e chorando feito
criança novinha.

Confesso que eu nunca senti pena do Lipe, ele merecia mais que isso, muito
mais cortesia da minha parte e da parte da minha família. Mas eu percebia que
aquela lembrança de amor que ele tinha, por uma prima que foi embora, fazia
muito mais mal do que bem.

Então, como forma de alegrá-lo, pedi para o Gabi ensiná-lo a desenhar. Isso
faz tempo e ele aprendeu porque o Lipe ama aprender, e quando ficava
amuadinho, vivia rabiscando. Aquele era um dia desses. Com um lápis bem
duro, diferente dos lápis macios que a mãe usa, ele rabiscava, pela enésima vez,
uma moça gorda. Tá sempre desenhando ela, parece fixação, e já me perguntei,
mais de uma vez, se não era melhor que se tratasse.

— Cê vai me achar louco se eu quiser fazer tatuagem? – Ele perguntou


porque percebeu que eu olhava para ele.

— Se for desenhar a cara da Dê, vou te achar louco, sim.

— Nah, a cara não – “A cara não”. Logo…

— Vai, Lipe, fala logo o que você quer. Não me enrola!

— Tô pensando em tatuagem só, ué. – Ué – Tô até com uns desenhos


prontos, mas…

— Mas o quê? Tá faltando coragem?

— Tá e não tá – Ou seja: tá.

— Posso ver?

— Estão em casa, só quis saber o que você acha…

Tinha mais coisa aí, conheço meu Lipe. Ele não vem puxar conversa do nada
e, quando tem coisa na cabeça, esquece até de bom dia, boa tarde e derivados.
Voltou a riscar, mas puxou uma Bic, riscava com a caneta pequenos detalhes.

Ele vai desenhar a Dê, sim. Só que ele não ia desenhar a cara dela. Lipinho
nunca foi um garoto óbvio e desenhar rostos é a coisa mais brega que alguém
pode fazer.

Sábado de manhã estávamos nós dois e a carteira dele num tatuador que ele
achou online e parecia bem recomendado. Tinha o desenho em uma folha A3,
porque queria desenhar no braço inteiro. O tatuador, experiente, cheio de
prêmios e piercings em cantos duvidosos, olhou para o desenho e disfarçou um
olhar arregalado.

— É essa a sua ideia?

— É.

— Precisaremos de umas vintes sessões. – Ele comentou – E não vai sair


barato.

Não faltava dinheiro e tempo para ele. Faltava coragem, e coragem a gente
conquista.

— Você tá fazendo para ela? – Perguntei sem querer ofender.

— Não sei se um dia ela vai ver. – Tô cansada de ver esse sorriso triste na
cara dele.

— Mas é, ou não é?

— Também.

Virei para o tatuador, que ainda analisava o desenho, e perguntei:

— Quanto custa para fazer isso? – Desenhei, rapidamente e no celular, a


contagem clássica dos dias de um presidiário: vários pauzinhos em pé, e, a cada
três, um risco cortando eles na metade.

— Cem reais, que é o meu mínimo.

— Beleza, tatua aqui: – Baixei a gola da camiseta, do lado esquerdo do peito

— Tá doida? – O Lipe queria esconder o sorriso.

— Vem, Lipinho, vamos achar uma brincadeira nova para você.


Eu não sei, com total certeza, o porquê o Lipe quis começar a se tatuar, mas
ele queria, e para mim, isso bastava. Ele também nunca soube o meu porquê de
pintar o cabelo, mas o meu querer, para ele, bastou. Aquilo era uma irmã
devolvendo a cortesia.

Deitei na maca só de sutiã, e saí de lá com dez pauzinhos na teta esquerda.


Fui primeiro, do mesmo jeitinho que o Lipe fez comigo. A dor dele era a minha
dor, a espera dele era a minha espera, e se o meu irmão queria acompanhamento,
eu era sua opção. Sempre fui, sempre serei.

E, no final das vinte sessões, o menino tinha um braço fechado de tatuagem:


pirações matemáticas que beiravam o espiritualismo, beiravam a astrologia, e, se
tinha cor, era sempre azul: da cor dos olhos dela. E ganhou, de brinde, a mesma
tatuagem, na mesma teta que eu. Dez anos de espera. Será que ia valer a pena?

Se ia, não sei. Mas virou a nossa piração. E eu amei cada pinguinho de tinta
que coloquei no corpo, mas, para ser sincera, eu gostava muito mais quando me
lembrava que boa parte das minhas tatoos foram feitas com o meu irmão.

Era uma espécie de pacto só nosso: feito de tinta e sangue.


Capítulo Dezesseis
Gabriel

A primeira vez que te chamam de bicha você se assusta. Eu, bicha? Cê vê na tv


que bicha é um cara que desmunheca, veste rosa com branco, balança a bunda
como se usasse salto. Meio mulher no corpo de um cara.

Eu tenho um amigo assim, é o Ângelo, você racha de rir com ele, mais ácido
que qualquer membro da família Ferreira. Puta arquiteto, tem olho para
combinar texturas e manja de planta quase igual as mães manjam.

Mas a impressão que você tem é que todo viado e bicha seja meio mulher. Só
trabalha como cabeleireiro ou manicure, só tem amigas mulheres, é o amigo gay
de toda mulher e vive para te fazer rir.

Bissexual não existe. Mulher bissexual é bonito e tal, as pessoas entendem


que ela dá uns pegas numa outra mulher quando tá bêbada (mas namora fixo um
cara e de vez em quando convida uma amiga para brincar), mas ninguém leva a
sério. Como se mulher bissexual fosse coisa de festa e de quem quer chama
atenção. E homem Bi quer dizer que é viado. E que às vezes pega mulher para
passar um pano para a família.

Ou você gosta de um, ou você gosta de outro. Ninguém entende que dá para
gostar de tudo. Que dá para amar alguém só pelo que é, não importa se é homem
ou mulher.

A primeira vez que eu me lembro de gostar de alguém, foi Rafael. E a gente


é levado a crer que é melhor amigo, sempre nesse limite de amizade. Ele
defendia um tema, eu erguia a bandeira. Ele queria jogar futebol, eu ia buscar a
bola, ele trazia um doce para mim e eu salivava, feliz, sabendo que ele era
mesmo meu amigo.
Porque quando você é pequeno, a gente só divide doce com melhor amigo. E
olhe lá.

Manuela… Manuela veio. Foi abrindo espaço entre as costelas. Veio se


alojando enquanto me aporrinha me xingando de burro e dando piti, porque ela
nunca admitiu que alguém não entendesse o que era simples para ela. Rafael era
meu amigo, mas Manuela… Manu fazia parte do pacote.

Tanto é que as meninas da sala já tinham peito, e eu ria achando idiota o


como ela não usava sutiã. Rafael pedia para eu parar de rir só quando Manuela
estava quase chorando. E você sabe o quanto é fácil fazer Manu chorar. Um
pisão mais forte para assustar basta.

Ninguém achou que qualquer coisa vingaria enquanto eu cuspia chiclete para
cima, tentando catar de novo. Ou enquanto Rafael fazia mágica com carta só
porque passava tempo demais sozinho e queria fazer alguma coisa para se livrar
do tédio. Ou enquanto Manu se gabava pela enésima vez da impressora 3D que
ela nem tinha idade para mexer, mas já tinha no quarto.

A gente seguia com a vida, crescia. E estava tudo bem ser amigo de brigar e
defender. Estava tudo bem porque ninguém, de nós três, sentia necessidade de
ser mais do que amigo de escola. Mesmo quando eu fazia aniversário e quase
pulava de excitação e ansiedade enquanto eles não chegassem, mesmo eu não
fazendo questão nem dos meus primos irem para a festa.

Nem quando os pais da Manu nos chamou para fazer um acampamento na


sala, a minha primeira noite fora de casa, e os irmãos dela passaram a noite
inteira assustando a gente ao ponto de dormirmos, os três, numa tenda
improvisada debaixo da mesa da cozinha, a lanterna ligada e abraçados. No chão
frio e tudo. Era dia de Halloween, eu lembro bem. Aniversário da Baixinha.
Ninguém nunca contou que eu chorei de medo do Gustavo e da história dele
sobre a loira do banheiro. E Rafael nunca falou também que eu pedi para a gente
ir junto no banheiro, porque vai que a loira do banheiro aparece.

Isso é que é ser amigo.

A gente era tão amigo, que até se esquecia que Manuela era menina. Até
esquecia que tinha que tratar ela diferente, que tinha que cuidar dela mais.
Manuela era uma de nós, a pior de nós, a mais encrenqueira, mesmo que não
aguentasse nem um peido, era sempre ela quem arrumava as brigas. Eu lembro
que ela colou chiclete no cabelo da Isabela, a gente não tinha mais que dez anos,
só porque ela disse que Rafael era feio. Eu sempre achei Rafael muito feio, até a
adolescência quando ele começou a ficar ajeitado, mas defendi Manuela e o
chiclete que ela colou como se o Rafael fosse o cara mais lindo da escola.

Mesmo ele passando longe, digo, beeeeem longe disso.

Só com a pressão da classe que a gente foi lembrar que estava crescendo. A
gente tinha uma coleção de interesses em comum, interesse demais para pensar
em beijo e amor de namorado. De videogame antigo montado em arduíno, de
quadrinhos subversivos em japonês que a gente catava online para ler (a maioria
pornô pesado, e terror gore), de filmes de ficção científica inventados antes da
gente nascer, até o raio da impressora 3D que eu implorava para a Manuela me
deixar fazer uma arma, mas ela nunca deixou porque a mãe dela já tinha dito que
o dia que ela desenhasse arma de fogo na 3D, podia dizer adeus ao brinquedo.

Mas, como é de se esperar, o drama do quem-beija-quem e quem não-beija-


ninguém chega para todo mundo. E eu nasci bonito. É fácil escolher quem beijar
quando seus pais te dão cara de pau e olho azul. Você cisca para o lado de uma
menina até ela começar a ficar nervosa, daí você sabe que ela é sua, e a arrasta
para um canto. Foi assim que eu comecei.

E nos rolês, ser bonito, só ajuda. Mesmo que você vá sozinho, as pessoas te
incorporam na roda. Você entra no rolê com dois reais, sai trançando as pernas e
mais trinta amigos que não vão te fazer falta nenhuma, mas que vai ser bom
saber que eles existirão num próximo rolê em que você chegar com zero reais.

Só quando eu via Manuela de mão dada com Rafael é que eu sabia que
alguma coisa estava errada. Não vou falar que o coração doía e que eu tinha
vontade de chorar, quando você tem catorze anos o amor não importa muito,
você só quer saber de conhecer o máximo de coisas que conseguir, e beijar o
máximo que puder.

A coisa que eu mais senti falta era ter para quem contar que eu estava no
topo do mundo. Quando me chuparam eu não tive a quem contar, quando tomei
um porre e parei no hospital, não tive a quem contar. Quando beijei uma menina
mais velha e ela fazia comigo o que queria porque eu não sabia como fazer nada,
eu não tive a quem contar.

E, dos doze aos quinze anos, até a briga, eu me apaixonei e des-apaixonei um


milhão de vezes. Todas se pareciam com a mulher da minha vida, mas só
enquanto elas estavam com a boca em mim. No segundo em que saíam, eu não
conseguia pensar muito nelas ou o que significavam.

E quando um cara me achou bonito e veio perguntar “se eu beijo meninos”,


eu quase quebrei a cara dele.

Depois, esse mesmo cara veio perguntar a mesma pergunta cretina, mas,
quando eu estava bêbado. E o golpe foi baixo.

E eu estava bêbado.

Bêbado, sozinho, na rua, e com um cara com a mão dentro da minha calça, a
minha mão dentro da calça dele, e todo mundo mais para lá do que para cá.

Não sei como, mas acordei em casa e com um puta chupão no pescoço, que
eu menti falando que era de uma menina para fazer meu pai sentir orgulho do
filho comedor mirim, e daí ganhei um Engov.

Meus pais, também, nunca se importaram muito. Não sei se era porque o
sonho do meu pai era ter sido um moleque livre para fazer besteira como eu fui,
ou se ele achava que era só fase. Só sei que meu pai falava “deixa o menino”, e a
minha mãe parava com a lição de moral.

Eu só me toquei da quantidade de merda que eu fazia quando me vi com eles


de volta. Sempre soube que não era certo, mas entre coisa que não é certa, e
merda, tem, tipo, um mundo no meio. Manuela me olhou com pena e Rafael nem
me olhou na cara quando contei da bebedeira que terminou no hospital.

— E seus pais? – Ela perguntou.

— Que tem eles?

— Levaram de boa?

— De boa não levaram, mas não pegou nada.

— Fosse meu filho…

Isso, quando ela tinha quinze anos. Nunca vi menina gostar mais de dar
sermão que ela. Queria me corrigir, queria me educar, queria me ensinar, me
obrigava a estudar com ela, todo santo dia, até eu aprender. Dava piti quando eu
não estava a fim de fazer tarefa e ainda levava Rafael a dar sermão junto. Cê já
viu Rafael bravo? Rafael não fica bravo, porque quando ele fica bravo, não tem
cristo que esfrie o gênio do filho da puta.

Ao mesmo tempo, enquanto eles faziam questão de me obrigar a coisas que


nem meus pais me obrigavam, eu me sentia amado de um jeito que eu acho que
eu nunca fui. Um jeito novo e meio petulante, porque Manuela é a encarnação da
petulância, mas de um jeito que fazia questão de tirar sempre o melhor de mim.

O único ruim deles é que eles eram muito quadrados. Não, espera, eles ainda
são muito quadrados. Seguem a norma, bonitinho, como se fosse a única coisa
que houvesse para viver. Para Manuela largar o lápis e sair para beber? Esquece.

A puta treinava para a FUVEST com cronômetro!

Falaram que o desvio dos certinhos é sempre beeeeeem fora da curva.


Descobriram que Manuela namorava com dois e ela pintou o cabelo, tomou
coragem para demonstrar amor na frente de todo mundo. Rafael no último ano,
meteu um beijão em mim, no meio do pátio, no intervalo de um jeito que fez até
o inspetor virar a cara com nojo.

Inclusive, depois disso, se qualquer aluno olhasse duas vezes para ele, Rafael
já virava o demônio e peitava, perguntando “O QUE É?!” como se fosse um
animal fora da jaula. Ainda mais quando os dois meninos que mexeram com a
Manu foram convidados a se retirar assim que acabou o segundo ano, que daí
sim, Rafael olhava para um aluno que o encarasse, e parecia que virava o
satanás.

Por um lado, funcionou. Porque ninguém nunca teve coragem de virar para o
psicopata e falar que ele queimava a rosca.

Segurando meu copo de Cuba Libre, eu olhava de Manuela para Rafael, e


tremia de ansiedade. Estava doido para subir para o quarto. Era a nossa
formatura, o dia da alforria, nos primeiros dias de janeiro. A gente tinha tudo
planejado, tudo perfeito, do jeito que a gente queria. Convencemos nossos pais
de que queríamos sair para comemorar só nós três, nada de Festa depois da
colação de grau, e tínhamos, somado, grana suficiente para virarmos a noite
inteira acordados e só fazendo merda.
Manuela e Rafael dançavam perto da nossa mesa, Rafael quando decide
dançar te deixa com tesão só de ver, porque as mãos dele vão sempre no quadril
dela, sempre na bunda, sempre nas costas. Tudo toque aceitável, mas meio
proibido.

E eu só não dançava porque o pau marcava muito na calça. Falei que estava
doido para subir, não falei? Pois é. Eu só queria, desde que catei o canudo vazio,
tirar o lacre da Manu. Eu estava roxo de vontade de comer a Baixinha. Essa
menina tem esse rostinho doce de santinha, mas é um demônio na provocação.
Um dia antes teve a audácia de roçar meu pau na entrada, só na rachinha, com
carinha de menina que não sabe o que aquilo é de quem não faz por mal.

Quem conhece Manuela, se compra, é porque comeu merda. Nada do que ela
faz é sem querer. Nunca.

Estávamos numa rebimboca só de puta e viado. Excluídos das baladas


normais, dos bares normais porque sabíamos que aquilo não era para a gente,
nos refugiamos na nossa Embaixada. Tem gay e lésbica que olha para a gente e
estranha, mas não é a mesma censura de quando você se enfia num bar de
hétero. Os gays olham sem entender como que três dão certo, e não querendo sua
cabeça porque alguém falou que aquilo é errado.

Era a única rebimboca do mundo que somava o útil com o agradável: Tem
coisas que acontecem na vida da gente só para provar que Deus existe, né? Um
dia tomávamos cerveja no balcão, ninguém tinha idade suficiente, só Rafael que
já tinha feito aniversário de dezoito, e o barman entregou uma chave para um
casal gay. Claro, na hora achamos que fosse do banheiro, mas daí vimos os dois
subindo pela escadinha caracol e lateral, do lado oposto dos banheiros, e então
perguntamos o que era.

Era a definição de sossego. Uma cama honesta com lençóis limpos, preço
baixo, e a promessa de que ninguém vai te perturbar. Depois ficamos sabendo
que não era só um quarto, mas vários quartos. Uma balada no andar de baixo,
com música famosa na comunidade LGBT+, bebida barata, e, se o tesão batesse,
qualquer um podia pagar e subir.

Por isso que eu olhava para os dois, dançando, e me tremia inteiro. Porque eu
sabia qual seria o final da noite, para onde a gente caminhava, o que seria
quando estivéssemos a sós. Manuela se esfregando em mim e Rafael pelado.
Rafael duro fazendo cara de cárcere esfomeado e Manuela com a carinha cínica
de mulher que não presta e o sorriso pregado no rosto, porque ela sempre teve
cara de trapaça e de golpe baixo.

— Gabi, – ela me puxou da mesa, mas eu insisti para ficar sentado – cê não
vem dançar, não?

— Não.

— Por quê?

— Porque não dá.

— Por que não?

Eu podia ter dito, mas daí não teria Manu sorrindo. Coloquei a mão dela em
mim, bem onde cê tá pensando, e mostrei para ela o porque era melhor eu ficar
sentado no meu canto.

— Ótimo, é assim mesmo que eu quero você – E só colou a boca na minha


orelha para eu não aguentar nem cinco minutos quando a gente fosse subir –
Porque Rafael tá do mesmo jeitinho.

Rafael na pista de dança, parado, olhando para nós dois e um sorriso de cão
na cara. Um outro cara olhou para ele, até colocou a mão nos seus ombros, mas
Rafael é nosso e de mais ninguém. E eu amo o como ele não tem olho para mais
nada quando a gente tá perto.

Presta atenção: eu sou um cara que ouve muita música. Eu trabalho com
música, dirijo com música, tomo banho com música, vou dormir ouvindo
música, estudo e leio ouvindo música. Eu vivo de fone de ouvido. Tipo, o tempo
todo.

Mas quando Manuela colou a bunda em mim e virou para o Rafa, se tinha
música, nunca me contaram. Rafael catando a nossa Baixinha por baixo, não
muito colado para que ela o olhasse nos olhos, eu com a mão na cintura dela,
grudado, nós três em qualquer ritmo, seja o que seja, eu tenho memória visual
boa, mas não sou máquina fotográfica. Nem câmera.

Ela deitou a cabeça no meu peito, mirando Rafael, e acredito que ela sorria
muito. Sobrevivíamos ao colégio, à caça às bruxas, sobrevivíamos juntos, cada
dia com menos vergonha, mais unidos, entendendo sinais claros de amor, tendo
menos piti. Lentamente me convertia à nerdice dos dois. Cada dia um Gabriel
novo entendendo de química orgânica e PV-NRT. Tanto é, que a gente só estava
ali, pronto para perder o cabaço, porque a segunda fase da FUVEST tinha sido
no fim de semana.

Para você ver: volta no tempo e fala para o Gabriel de catorze anos que se
interna em hospital por causa de álcool que ele vai passar para a segunda fase da
FUVEST, e ouve a risada de deboche que ele vai te dar.

Força mais ainda a barra: Volta no tempo e fala para o Gabriel de catorze
anos que ele não só passaria para a segunda fase, como ele perderia a virgindade
que manteve, só por muito esforço e hashtags “eu escolhi esperar”, na
Embaixada dos gays.

Mentira, não fui eu quem escolhi esperar, só fui valsa. Por mim, tinha
perdido a virgindade no mesmo dia em que beijei Manu. Até antes, porque eu
sou idiota e cabaço não quer dizer porra nenhuma para os meninos.

Para as meninas é que é um grande negócio. E tem o sangue, o medo, o


melindre, o isso e o aquilo, pinto entrando onde dedo já entrava, pinto entrando
onde vai doer, ainda mais que são dois e tal. Paciência, mesmo, não tive
nenhuma. Eu só ouvia o não da Manu e parava. E me roía de vontade de meter.
E queria meter no Rafael, Rafael queria meter em mim, um louco para comer o
outro, e nada de Manuela liberar.

Para colocar os pingos no Is: Eu teria ido melhor na primeira e segunda fases
da FUVEST se não estivesse com a cabeça no colo do útero dela. Era o tempo
inteiro, cara, eu juro para você. Manuela sorria, Manuela brigava, Manuela
aparecia com o canoli, seu doce favorito da vida. Qualquer coisa, cara. A merda
do tempo todo.

E de Rafael também. Se você tá achando que o único com o pau no lugar do


cérebro sou eu, esqueça. Não tem um santo nisso daqui.

Também, não sei que porra Manuela tinha na cabeça para convencer a gente
a perder o cabaço só na Formatura. Para ajudar, a escola cogitou adiar para
depois do carnaval e eu quase explodi. Ainda bem que fizeram logo no começo
de janeiro ou você veria um Gabriel louco, resmungão e puto da vida.
Ali, ela sorrindinha olhando Rafael porque aquilo era tudo o que queria, até
dei o braço a torcer. É grande coisa para as meninas. É nela que vai doer e não
vai adiantar eu nascer de novo e virar um cara de pau fino, ou evocar o santo da
paciência e autocontrole para entrar nela bem devagar, porque vai doer do
mesmo jeito.

E por isso a gente esperava ela. E cada vez que ela falava que só queria
pensar nisso depois da escola, eu fingia ser um cara legal, falava um “Tá bom,
Baixinha”, e descascava toda a mandioca que podia.

A minha e a de Rafael.

Mas, também, assim que ela cansou de dançar, disse que queria tirar as botas
altas, eu só conseguia pensar: É AGORA.

Chegava tremer de ansiedade. Meu aniversário de dez anos de novo,


Manuela e Rafael que não chegavam, meus primos brincando entre eles na sala e
eu olhando a janela, louco para ver o carro da Tia Fê encostar logo para receber
os parabéns que eu merecia.

Rafael tinha mais dom de ator que eu, só isso. Estava tão ou mais louco de
vontade, mas fingia melhor. Pediu a chave para o barman e não esperou nem
Manuela terminar de subir as escadas para começar. Manu, também, veio vestida
de má intenção dos pés à cabeça. Um vestido sei lá se de seda ou outro pano
brilhante, preto (para variar), meias que a gente sabia que iam só até a metade
das coxas porque ela dançava puxando o vestido só um pouco para cima para
mostrar o limite das meias.

Rafael puxou o vestido dela para cima, no meio do corredor do andar


superior, pegando na bunda, nas pernas, enchendo o rosto e o pescoço dela de
beijos.

Me puxou para adiantar o passo, pelo cinto, e, sem largar a Manu, fez
comigo, no rosto e pescoço, o mesmo que fazia com ela.

— Cê tem certeza que vai ser hoje, Manu? – Eu não sei porque que ainda dei
chance para ela desistir, mas dei. Porque eu sou trouxa.

— Hoje, Gabriel.
— Pode falar para parar na hora que quiser, Amor – Mas ninguém tem
coragem de falar para Rafael parar quando ele começa. – Não é porque decidiu,
que tem que ir até o fim.

— É, – ela pegou a chave da mão do Rafael, abriu a porta do quarto, e


acendeu a luz. – mas eu também não aguento mais esperar.

No meio do quarto, sem esperar a gente entrar, como se ela tivesse treinado
diante do espelho mil vezes antes de fazer ao vivo, puxou as alças do vestido
para o lado e o deixou cair. Engoli em seco e salivando. Meia preta, sutiã preto,
calcinha minúscula e preta, enfiada na bunda, com laço para parecer coisa de
mocinha comportada. O cabelo que eu não sei mais de que cor que é, se é azul,
se é cinza, ou se puxa para o roxo, só sei que não é cor de cabelo, solto no meio
das costas. Perna até onde os olhos podem ver, e os peitinhos pequenos. A boca
incrivelmente vermelha, mas não era de batom.

A boquinha era vermelha de natural e os olhos grandes. É linda e faz você


pensar o quanto que os pais dela estavam inspirados quando conceberam aquela
ali.

— E então? – A filha da puta sorria porque aquilo, de se vestir daquele jeito,


de ir na frente, de vestir aquela calcinha pequena, tudo tinha sido planejado –
Vocês vão ficar só olhando?

Capítulo Dezessete

— Você tem sorte porque eu prometi que vai ser do jeito que você quiser. –
Falei, entrando no quarto depois do Rafael, fechando a porta, indo atrás de uma
Manuela que era só sorriso de maldade e nenhuma vergonha.

— É? – “Ain, Gabriel, mas não pode xingar o amor da gente”. Mas daí eu
chamo ela de quê? De mulher da minha vida? Eu chamaria sim, quando tô de
bem até falo uma coisa dessas, mas quando ela provoca sabendo que vai dar
ruim, não é de amor que eu chamo, não. – Por quê? O que você quer fazer
comigo, Gabriel?

Nem falei nada. Na conversa essa menina sempre me levou no bico. Sabe
que eu dou conversa até para mendigo bêbado e usa isso sempre contra mim.
Rafael veio junto, beijo de três, a melhor coisa que já inventaram, Manuela
desabotoando o meu jeans, o cheiro de colônia do Rafael, o cheiro do perfume
dela, o gosto de bebida na boca de todo mundo e, de repente, minha camisa no
chão. Vai saber quem foi que tirou, eu nunca presto atenção nisso.

Manu veio para cima de mim, me abraçando com as pernas, me tomando a


boca. Rafael veio atrás dela, empurrando a gente contra a parede. Ele a segurava
assim como eu, Manu nunca pesou muito, Rafael tirou o sutiã dela, lambia tudo
o que via, eu me perdia na boca dela tão fácil, que não senti a mão do Rafael
entre a gente, procurando o grelo dela por dentro da calcinha.

— Já tá melada, Amor? – O jeito como Rafael fala quando tá com tesão.


Puta que me pariu.

— Desde antes de subir. – Ela gemeu baixinho, os braços por cima do meu
ombro, esmagada entre nós dois.

Rafael mexia nela e ela endireitava as costas, empinava a bunda. Rafael por
trás e eu na frente, me dessem seis meses a mais, não fosse a nossa primeira vez,
você podia apostar que seria assim.

Rafael mexia nela, e ninguém tinha paciência. A enrolação ficou na pista de


dança, lá embaixo. Ali em cima a gente só queria saber de meter ferro na boneca,
até porque essa boneca já me gastou em tudo o que podia, só provocando minha
ruína.

Sorte minha é que eu não era o único. Qualquer um que conhecesse Rafael
como eu conhecia, veria que ele só queria saber do mesmo que eu. E Manu, que
não precisa conhecer para saber, só pelo jeito que gemia baixinho e como
aceitava a nossa investida, entregava que, na verdade, nem ela aguentava mais o
próprio doce.

Sorrindo e feliz, ela saiu do meu colo. Tirei a camisinha da carteira, Rafael
baixou meu zíper, Manuela rasgou o pacote, e eu coloquei. E, depois, subiu em
mim de novo. Rafael apertou Manuela entre a gente ainda mais, a segurando
pela bunda, afastando o fundo da calcinha da entrada dela.

— Manu… – Eu gemi, olhando dentro dos olhos dela, a feição de tesão que
ela tinha na cara, os olhos brilhantes, doidos de desejo, a boca vermelha, as
bochechas quentes. Rafael voltou com a mão para o clitóris, ela fechou os olhos,
Rafael lambendo Manuela pelas costas, pelo pescoço, segurando o cabelo dela
longe da área que lambia.

— Põe, Amor – Ela pediu, gemendo muito – Por favor, por favor, por
favor…

Menina dos meus sonhos. Todos eles, os secos e os molhados. Entrei pela
primeira vez, olhando para o jeito dela, o como apertou os dedos nos meus
ombros, o como travou os dentes. Preocupado e em êxtase ao mesmo tempo, e
eu nem sabia que dava para sentir duas coisas assim. Rafael preocupado em
mantê-la no auge do tesão, a segurando pela cintura, sempre na mesma posição.
Macia. Deus do céu, que mulher macia. Rafael forçou a cintura dela para baixo,
para entrar mais fundo, e ela me apertou ainda mais.

Rafael veio me beijar, doido de tesão e para brincar também, as mãos dele,
que já são pesadas, ficam piores quando ele tá morrendo. Ele abria Manu para
mim, segurando as pernas dela, mas a boca era minha.

Forçou Manu para baixo outra vez e ela não reagiu da mesma forma que
antes. Parei de beijar o Rafa para ver Manu e ela não tinha uma cara muito boa.

— Tá doendo muito? – Rafael foi mais rápido do que eu.

— Tá – Ela respondeu, escondendo o rosto no meu ombro.

— Não é para doer – Eu falei, saindo de dentro dela.

Esfriamos. Ela desceu de mim e eu olhei para a camisinha. Pela quantidade


de sangue, esfriei muito. Deve ter doído muito desde a hora que entrei, e o Rafa
ainda a forçou.

Com carinho, não mais como se fosse morrer, o Rafa a puxou para a cama.
Deitamos, ela no meio da gente, virada para o Rafa, beijando devagarinho. Tirei
a camisinha para não sujar o lençol todo e me senti culpado.

— Espera que eu vou no banheiro. – Ela disse antes que eu pedisse


desculpas.

— Vamos deixar isso para outro dia. – O Rafa propôs.

— Não, eu só quero me limpar.

— Então a gente espera.

Esperamos. Rafael olhando para mim, os dois deitados na cama. Acho que
foi a primeira vez na nossa vida que estávamos numa cama em que cabíamos. Se
a Manu não deitasse em cima de um de nós, não cabíamos na cama de solteiro
de ninguém. Ali, na cama de casal, Rafael olhava para mim e parecia que ele
queria dizer um monte de coisa, mas não disse nada.

Ele me beijou em vez de dizer, o Rafa beija e nunca é só um beijo, mexe com
você inteiro. A gente prometeu esperar a Manu, mas eu já acendia de novo,
respirava mais comprido, já queria brincar outra vez, mesmo que ninguém
entrasse em ninguém e a gente só ficasse como tem ficado desde o começo do
trio.

Rafael quando tá com tesão sorri com os olhos. É muito lindo o jeito como
ele fica. Parou de me beijar para ficar me olhando, sorrindo, as mãos no meu
zíper aberto.
— A gente vai esperar ela voltar, Rafael.

— Claro que vai.

Mas ninguém o impedia de me provocar. Quando Manu chegou, estávamos


quase pelados, os dois suspirando igual uns loucos, prontos para retomar do
ponto em que paramos e ir além.

— Achei que eu tinha acabado com a graça – ela falou, tirando as botas e
deitando do meu lado.

— Cê tá bem? – Rafael perguntou, apoiando o cotovelo na cama para olhá-la


melhor.

— Tô. Achei que ia sangrar mais.

— Melhor deixar tudo isso para outro dia. – Comentei.

Sorriso de menina arteira quando confrontada sobre culpa. Coisa de


criminoso incendiário que volta à cena do crime para ver como a chama se
espalhou. Veio toda cheia de graça para cima de mim, lambendo meu pescoço,
minha orelha, e o que mais conseguisse lamber enquanto eu estava entre os dois.

— Precisa dizer, Manu – O Rafa insistiu – Quer parar e tentar outro dia?

— Não, eu quero continuar.

— É? Tem certeza?

— Rafael, o sangue já foi. E eu ainda não gozei.

É só ela falar essa palavra, cara. Acaba comigo porque eu lembro como ela
fica quando goza. O som que faz, o jeito como abre a boca, o como se mexe.
Parece que cê vira o rei do mundo dela por cinco segundos e se sente assim por
todo o tempo do depois.

Nenhum de nós dois sabíamos como encostar nela de novo porque tínhamos
medo de machucar. O bom foi que ela percebeu. Manuela entrou de volta no
quarto e a gente só ficou de beijinho, que nem menino de primário, mesmo que
cinco segundos antes dela entrar a gente já estivesse quase lá.
Então, ela, que nunca prestou para muita coisa, veio por cima de mim, ainda
de calcinha e meias, e beijamos em três.

O bom do beijo assim é quando ele encaixa. Não dá para encostar toda a sua
boca na boca de duas pessoas como faria quando beija uma só. Você, tipo, tem
que chupar a língua das pessoas e, quando a coisa engrena, quando o ritmo vai,
todo mundo fica com tesão junto e só quer saber de encostar mais.

— O bom de ter dois – ela falou, baixinho, olhando na nossa cara, quente de
novo – é que eu escolho quem vai me comer.

— Não se engana, Baixinha: ainda vão ter os dois te comendo.

— Hoje não, Gabi.

— É, hoje não, – Rafael não deixa barato – mas cê não tem escolha.

— Eu gostei – ela disse, lambendo a boca do Rafa, acho que falando sobre
trepar.

— Mesmo com a dor? – Foi o que o Rafa entendeu, pelo menos.

— Ã-hã.

— Quer tentar de novo?

— Você quer, Rafael?

— Manuela, eu sonho com você desde quando eu tinha medo de gente.

Eu não sei fazer declaração bonita assim, mas fico feliz quando o Rafael fala.
Manuela sempre abre um sorriso lindo. Saiu de cima de mim, Rafael baixou as
calças, e eu o ajudei a tirar. Peguei outra camisinha da carteira e dei a ele, mas
ele não quis por sozinho. Pediu para mim.

Manuela o beijou enquanto eu desenrolava o plástico nele, e, quando eu


terminei, Manuela me sorria.

— Vem por cima, Baixinha – Ele usou o apelido que eu gosto de usar –
assim cê controla quando dói.
Manu tirou a calcinha antes de subir no Rafael. Subiu, e foi descendo
devagarinho, apoiada em mim, Rafael vermelho de dente travado sem desviar os
olhos dos dela, doido como eu para entrar nela, louco de tesão. Ele raramente
geme, fica só suspirando bonito, nem quando goza solta algum som, mas foi a
Manu escorregar por ele, devagar e gentil, que Rafael gemeu e, nós dois, tanto
Manu quanto eu, perdemos a cabeça.

Ela subia e descia nele, devagar para não se machucar, Rafael com as mãos
atoladas nela, apertando muito, cê não sabe o quanto isso é bom porque não sabe
o tamanho da mão do Rafa.

Porra, para ajudar, Deus me fez muito voyeur. Acho graça só de ficar vendo.
Manuela esquentando devagar, subindo e descendo, devagarinho, você via o pau
do Rafa entrando e aquilo me subia um arrepio na espinha que parecia que era o
meu que entrava nela.

— Gabi, – ela falou, – me lambe.

E, para a gente dar certo sendo três, também teve que aprender a falar. Com
dois ainda rola de você só sinalizar o que quer porque seu único foco é o outro,
mas, com três, tem que falar. Tem muita mão o tempo todo.

— Manu, – Rafael pediu – vai devagar.

— Devagar, Amor? – Ela sorriu mordendo o lábio e diminuindo o ritmo –


Assim?

— Ele já te poupou alguma vez, Baixinha? – Cochichei no ouvido dela. –


Rafael já foi bonzinho com você algum dia da vida?

Ela gemeu porque gostava de ouvir e gostava de saber que a gente


enlouquecia por causa dela.

— Então por que tá sendo boazinha com ele?

Ali estava a Manu que eu gosto de ver. Sorriu como o demo e aumentou o
ritmo só para ver Rafael se perder. As mãos dele me encontraram, foram direto
para o meu pau, Manuela também veio, a mão no meu pau também, desci a boca
para as tetinhas dela, as que eu já ri um dia e que hoje amo de paixão, mordi
porque sei que ela gosta, ela gemendo mais fundo, mais forte, mais alto do que
geme sempre, e a gente entendeu, Rafael e eu, que se a gente se esforçar, essa
vira a melhor primeira vez da história.

— Gabi, – ela sorriu, Manuela quando tá com muito tesão sorri tão bonito
que nem parece que nasceu para destruir tudo – quer vir no meu lugar?

Queria. Eu não tinha pensado nisso, mas, quando falou, eu quis. Manuela
saiu de cima dele, Rafael esticou o sorriso para nós dois e ela me colocou onde
esteve. Me segurando pela mão e tudo. Rafael veio me beijar, se curvou na cama
e Manuela o ajeitou para a minha entrada.

— A seco vai machucar ele, Amor – Rafael falou para a Manu.

— Pera aí.

Lambuzou Rafael e eu com o que saía dela. Ele já estava melado com a baba
dela, mas eu não.

— ‘Pera – Ele sorriu, entrando com os dedos nela – ainda tá pouco melado.

Rafael, com a mão que saiu dela, veio me lambuzar também e eu, mais para
lá do que para cá, cheguei bem perto de gozar só com os dedos.

— Vem, Amor – E foi para mim que o Rafa disse – vem você, que eu não
quero machucar.

Manu ajeitou o Rafa para a minha entrada de novo, segurando o Rafael para
eu sentar. Rafael perdia o sorriso da cara enquanto eu entrava, e eu, que não
tinha prática nenhuma com isso, demorei muito tempo para encarar só dois
centímetros.

— Te amo tanto que não cabe. – Ela sorriu, pegando no meu pau,
sussurrando no meu ouvido e subindo no Rafa de costas para ele, só para ficar de
frente para mim – Eu te amo tanto, Gabriel, que eu faria qualquer coisa por você.
– Enquanto sussurrava, me abria. Endireitou a minha coluna para eu ficar ereto e
de pernas abertas, encostou o nariz no meu, e sorria – Eu te amo tanto, mas
tanto, mas tanto…

— Manu…
— O que foi, Meu Lindo?

Escorregava devagar. Entrava melhor do que achei que entraria. Manu


falando minou com metade dos meus problemas, a voz que ela usa quando quer
te convencer a fazer merda (e você faz, ela sempre ganha com essa vozinha) me
acalma e, naquela hora, não tinha um puto nesse mundo que me fizesse parar.

— Eu te conheço tanto, Amor, – Sussurrou no meu ouvido, largando lava por


onde passava – que eu sei que cê vai gostar disso.

E me empurrou, pelos ombros, para baixo. Tudo de uma vez. Rafael gemeu
de novo, eu gemi, Manu, para ajudar, ainda pegou no meu pinto, brincando com
ele, falando um monte de coisa para mim. Só não gozei porque segurei muito.

Ela saiu de cima do Rafa e eu o vi. Inteiro vermelho, mordendo a boca para
se conter. Ele já tinha recebido Manu antes de mim, o esforço dele para não
gozar foi maior que o meu. E agora me comia. Rafael estava tão vermelho e
lindo, que até seus ombros estavam vermelhos. Ela o beijou e ele me segurou,
com as duas mãos, pela cintura. Me puxando e empurrando.

— Já vai? – Ela sorriu para mim. – Não vai nem me esperar?

— Vou, Baix… – Rafael me puxando e empurrando.

— Me espera para eu ir também. – Não sei para onde ela foi, só sei que
voltou com uma camisinha aberta e a desenrolou em mim.

Na hora eu não entendi o que ela queria com aquela camisinha, mas, quando
se virou de costas para mim e me enfiou dentro, eu percebi que até isso ela tinha
planejado. Manuela não faz nada de impulso. Cada dia eu percebo que eu
encontrei a jogadora número um de qualquer jogo.

Baixou para beijar o Rafa, comigo dentro, na minha frente. Minha mão foi
direto no grelo dela e gostei de ver que estava inchado e muito gostoso. Rafael
veio com a mão por cima da minha, achou a minha sobre a Manu, e fez carinho.

Aos poucos, com todo mundo encaixado, a gente achava um ritmo. Todo
mundo no mesmo ritmo, tipo dançando. Primeiro devagar, Rafael com a mão nas
tetinhas dela e na minha perna, dentro de mim, Manuela com uma mão na minha
perna, a outra se apoiando na cama para não colocar todo o peso no Rafa. E eu
com uma mão nela. O pau dentro. A outra mão segurando a tetinha dele.

Depois, crescendo, todo mundo gemendo, Manuela começou a rebolar em


mim, eu nem sabia que ela sabia rebolar assim, mas achei lindo, ainda mais de
costas para mim, segurei no cabelo dela e Rafael pegou o peito dela com mais
força. Daí para diante, foi só ladeira.

Fizemos Manu gritar. Às vezes a gente acha que grito nessas horas é grito
mesmo, igual vê em pornô, mas não é. Não chega nem perto, é muito melhor.
Manuela gemendo alto, deu um tapa na cara do Rafa e ele aumentou o ritmo em
mim. Eu passei a xingar porque eu sempre xingo mesmo, amaldiçoando todo
mundo, mordendo as costas da magrela, lambendo o que eu podia. Rafael de
olhos abertos olhando para mim. Rafael de olhos fechados, a boca contorcida,
quase chegando lá. Gemia. Gemia tão bem, tão lindo, que Manuela o mandou
calar. Gemia e acabava com a gente, todo mundo muito perto do final.

Rafael sorria para mim, olhando a nossa Baixinha se acabar, cara de quem
queria muito aquilo e eu sorri de volta, um pouco envergonhado. Não sei por que
fiquei com vergonha.

— Cê sabe que eu te amo, não sabe? – Rafael de sorriso mau no rosto, a


ponta da língua encostando nos dentes. Parece que ele nasceu só para trepar.

— Rafael, – Eu amo falar o nome dele. Ele inteiro também, mas gosto do
jeito como o nome dele sai da minha boca.

— Sabe, não sabe?

— Rafael…

— Cala a boca – Manu choramingou entrando e saindo de mim mais rápido.

— Por que, Amor? – Ele sorriu, lascivo igual eu nunca tinha visto, e falante.
– Não gosta quando eu falo?

Aos poucos ela parava de gemer. Fazia tipo um chorinho repetindo que nem
louca “Eu vou gozar, eu vou gozar” e, nessa hora, Rafael a segurou pela cintura,
a empurrando com força contra mim e, ao mesmo tempo, metendo em mim com
mais vontade, o ritmo que ele ditava em nós dois, um barulho só, seco, de bate-
estaca. Manuela gemia alto, Rafael gemia alto, eu só sabia morder, nem xingar
fui capaz.

Ali.

Ali eu soube que a gente não ia se separar. Acontecesse o que acontecesse.


Segurando Manu como se eu fosse morrer, abraçado na minha Baixinha como se
aquele corpo pequeno fosse todo o meu porto seguro, tudo o que eu precisasse
para viver, invadido por um Rafael que nasceu só para ser meu melhor amigo e
virava meu tudo, eu só parei de segurar o que sempre veio muito rápido quando
eu estava com eles.

Acho que essa foi uma das poucas vezes na vida que eu gozei falando um
“eu te amo”.

Manuela nem se deu ao trabalho de sair de mim. Só deitou no peito do Rafa,


o rosto vermelho, o sorriso de menina que ela dá quando tá se sentindo amada,
cabelo colado no suor do rosto, e Rafael sorrindo também. Beijei os dois antes
de sair de cima do Rafa e tirar a camisinha de nós dois. Amarrei as pontas juntas,
joguei no lixo do banheiro e voltei para o quarto. Manu ainda estava deitada no
peito dele.

Quando eu deitei, os dois se viraram para mim. Rafael nunca tinha ficado tão
lindo. Eu sei, eu falei que ele era feio e foi um moleque feio enquanto durou a
puberdade, mas, depois, cada vez que você olhava um pouco, mais bonito ficava.
Quieto, só fala para atirar e quando não consegue ser compreendido por sinal de
fumaça. Nunca mandou um áudio por WhatsApp na vida.

O rosto vermelho e a boca inchada, os olhos felizes, segurando Manuela com


o braço mais longe de mim, me deu espaço para eu caber no ombro dele. Senti o
beijo de carinho na cabeça, o rosto dele roçando no cabelo, e depois um monte
de beijinho curto.

— Não me abandona mais, Gabriel – Falei ou não falei que ele só abre a
boca para atirar? – Não dá mais para viver se você.

Manuela me olhou já com os olhos cheios d’água. Beijou os meus olhos, o


meu nariz, e a minha boca, sorrindo feliz, os cabelos sem cor definida todo
embaralhado, mas de rosto limpo.

— Eu não vou te abandonar, Rafael – Estiquei para beijar o rosto dele e senti
as lágrimas. Rafael nunca chora. – Você é a minha casa, agora. Você e a
Baixinha.

— Você é a minha casa também, Gabriel. E você sempre foi a minha, Manu.

— Depois da faculdade – Era um pedido dela, mas também era uma ordem –
Casem comigo.

A gente sabia que nunca ia se casar. É crime ser três, mas sei exatamente o
que a Manu queria dizer.

E, no fundo, eu queria a mesma coisa.



Capítulo Dezoito
(Manuela)

O Lipe foi mudo a viagem inteira. No carro do meu pai, eu ia espremida entre
ele e o Guto. Quatro horas de viagem: A viagem mais muda desde que eu nasci.

Voltávamos para Poços de Caldas, cidade onde meu pai nasceu, depois de
dez anos. Quando o Lipe se separou da namorada, ele não quis mais ir lá, nem
mesmo no Natal, e nós respeitamos isso, tanto que é que nunca mais fomos e só
voltávamos porque um tio do meu pai, que eu nem lembro o rosto direito,
morreu.

Todo mundo pulou do carro quando chegamos à velha fazenda do meu


falecido tio, onde o corpo seria velado, menos o Lipe. O Guto não aguentava
mais o chororô do meu Lipinho, mas eu sou besta, sempre vai ter colo meu para
ele.

— Se você não quiser entrar, – Interrompi o fluxo de pensamento dele – É só


você catar o volante que a gente arruma uma distração nessa cidade.

— Minas inteira me lembra ela.

— Porra, assim você me complica.

— Por que você acha que eu não voltei pra cá?

— Mas Minas é gigante!

— Pra mim não é.

Pálido: Ali ele não conseguia fingir felicidade e demonstrava a verdadeira


face de um homem infeliz, amargo e deprimido. Ele me ofenderia se sorrisse ou
se propusesse algum outro esquema maluco, só para fugir da dor.

Ali eu só via um Lipe encurralado, doente, apático. Tiraram as carnes do meu


irmão, um pouco todo dia, e só sobraram os ossos. Um Lipe esvaziado que se
envergonha de chorar porque o ensinaram que ele tinha que ser forte para a irmã
menor.

— Lipe, – interrompi de novo – você me ama?

— Manu, não força.

— Se você me ama, seja honesto.

— Eu nunca minto.

— Você tá com medo de se encontrar com ela, não está?

— Não – Acabei de pedir para ele não mentir! – Estou com medo de ver a
verdade.

— Qual verdade?

— Que nunca foi para ela o que foi para mim.

— Lipe…

— Eu tinha a sua idade quando falei para ela ir para Portugal. E se era só
fogo no rabo de adolescente?

— Você sentia como se fosse só isso?

— Não, claro que não. Pra mim sempre foi pra sempre.

Pois é: a mesma sensação que tenho com os meus.

— Só que faz tanto tempo… – Ele continuou – Tanta dor, Manu, tanto
choro…

— Lipinho…

— Olha ela ali.


O meu coração pulava como se fosse o meu único amor passando. A
gordinha que nunca bronzeia. O azul da tatuagem dele, a mulher da bunda
grande, o vestido colado, salto alto e cabelo lindo. Ela era gorda, não essas
mocinhas com um pouquinho de barriga: não, ela era gorda. E o Lipe amava isso
também.

E eu amava isso nela, neles, no jeito como o Lipe perdia a fala e segurava o
suspiro só de ver, de longe, o amor de uma década passar sem vê-lo.

— Puta merda, parece que foi ontem. – O rosto manchado de choro e a


pressão caindo. Pálido, se segurou no banco da frente, enfiou a cabeça entre os
braços e fechou os dedos no estofado como se fosse ter uma crise de ansiedade.

— Calma, Lipe, se acalma.

— Me deixa sozinho.

— Eu não posso.

— Por favor, Manu. Eu não quero descontar em você.

— Só eu sei o quanto você ama aquela mulher. Só eu sei o quanto você


sentiu falta dela. Eu estou nessa, com você, desde os meus oito anos, Lipinho.
Eu te amo, você sabe, tô aqui por você e para te proteger de si mesmo.

— Eu não sei o que fazer. Não posso entrar lá e fingir que não passaram dez
anos, mas também não posso virar para ela e dizer que fiquei esperando por ela
por todo esse tempo.

— Calma, Lipe.

— Como que calma, porra?

— Calma, Nino. – A origem do apelido Nina é a herança mais linda que a


minha família tem. Meu pai só chama a minha mãe assim quando tá amando
muito ela. – Eu sou seu Oráculo, hoje.

— Você sempre foi.

— Beleza, então me deixa fazer meu papel. Hoje é dia de enterro, ela veio
aqui prestar as condolências, igual a gente. Ela não voltou para o Brasil, não está
de volta por você. Hoje é dia de enterro e só disso.

— Eu sei, mas…

— Então hoje ela é família.

— Ela sempre foi!

— Não, ela sempre foi seu amor. Hoje ela é família. Ela é só a sua prima, a
menina que cresceu junto com a gente, uma conhecida. Ela está de passagem,
Lipinho, não está aqui para ficar. Percebe a diferença?

— Não posso implorar para ela ficar.

— E nem vai! Hoje não tem beijo e nem declaração.

— E se ela estiver com outro cara?

— Não tá – Falei com a certeza vinda do coração, não dos fatos – A vida
dela tá uma bosta igual a sua.

— Você não viu a foto dela na Forbes?

— E você não é o garoto prodígio que terminou engenharia em três anos e


tirou mestrado?

— Bom ponto.

— A vida pessoal dela tá tão destruída porque essa mulher nasceu para ser
sua, assim como você nasceu para ser dela.

— Essa é uma mentira que eu queria muito acreditar, Monstra.

— Meu coração nunca mentiu, Lipe. Ouve o seu oráculo e confia nele.

— Então que merda que eu faço?

— Família: lembra disso.

— Essa porra não me convence. Eu quero que família se foda!


— Tá certo: – Ajeitei as palavras para ferirem melhor – Aquela filha da puta
não veio para trepar com você. Ela não tá pronta pra você, não quer seus filhos e
nem seu ideal de casamento de novela das seis. Aquela puta gorda, gananciosa,
desgraçada, que fodeu com a vida e a cabeça do meu irmão, o cara mais gente
boa e lindo desse mundo, veio só para ver um corpo morto, do tio que ela nem
lembrava que tinha, ser lacrado numa caixa de madeira e enfiado na terra. Tá
feliz com essa resposta?!

— … !

— Ótimo. Presta atenção, Felipe: você vai entrar lá, ajeita esse cabelo e essa
camisa, você vai entrar lá e vai se lembrar da puta gorda e gananciosa todas as
vezes que teimar em olhar para ela. Não vai ter sexo de reconciliação hoje, nem
juras de amor. É corpo morto socado na caixa. Tá me ouvindo bem? Que se ela
sentir cheiro de homem mole, vai te enrolar por mais dez anos!

— Depois de cinco anos sem vê-la, tudo o que eu não estou é mole.

— Usa esse pinto hoje, que eu arranco ele na faca!

— Tá, tá – ele quase sorriu – tô brincando.

— Eu tô falando seríssimo! O foco é essa puta gorda tomar vergonha no


rabão dela e voltar para casa. Não tô falando para pisar nela e ser escroto, tô
falando de deixar no limbo.

— Entendi.

— Acha que consegue fazer isso?

— Vou tentar.

— Não beija. Se esforça, não amolece. Faz só isso que já está bom.

— … mas não chama ela de puta mais não, tá?

— Enquanto ela não voltar para ficar e te fazer feliz, ela é puta sim!

— Te amo, Manu. Sério mesmo.


— É, eu sei. E se serve de consolo, ela é a puta gorda mais linda que eu já vi.

— Cê também achou que ela tá gata pra caralho?

Ê, Lipinho…
◆◆◆

Eu esqueci que era época de resultado de vestibular. Com tanta coisa


acontecendo, o Lipe e a ex-namorada, meu pai e a morte do tio dele, que quando
a gente voltou para casa, eu só esqueci. Mandei mensagem para os meus
avisando que cheguei, contei como foi o encontro do Lipe com a Andressa, e fui
deitar.

E, antes que a internet pudesse me lembrar, meus dois irmãos me tiraram de


casa. Um, o Guto, finalmente de folga do plantão, só o pó da rabiola, amargo e
cansado, e o outro, curiosamente, mais feliz.

Não quis dizer nada, mas bastou meu Lipinho ver a mulher dele, que ele
tinha um outro ânimo. Como são engraçadas essas coisas de amor. O fiz me
prometer que a trataria como família e sei que ele seguiu minha cartilha, mas,
mesmo assim, mesmo sem beijo de namorado, só de vê-la, só de falar com ela, já
era o suficiente para ele.

Por isso, depois de me encherem o saco para saírem de casa, saí. Vi a


mensagem do Gabi me dando bom dia e desejando boa sorte para o resultado, e
depois me desliguei. O Guto queria comprar roupa, logo ele, que, se não ganha
roupa da gente, usa as mesmas calças e camisetas batidas de quando ele era
calouro.

Estranhei as compras de viagem, primeiro uma mochila nova, depois botas


de trilha, então fomos numa loja esportiva e o vi comprar canivete, cantil,
lanterna recarregável e mais essas coisas de quem sai para acampar. Não entendi
nem um pouco o que estava acontecendo e, quando ele cansou de gastar
dinheiro, fomos para uma padaria com mesinhas na calçada, e ele me contou o
motivo de toda aquela comprança.
— Tô indo embora.

Eu devia ficar surpresa, mas não estava. O Guto tá de saco cheio de tudo faz
tempo. Ele vive dentro do hospital, de comer pouco, trabalhar muito, de reclamar
da vida e dormir mal. Você olha para ele e vê que ele não aguenta mais. Tipo um
balão muito cheio que está quase a explodir. Ele não fala nada sobre isso, se abre
quando você precisa de conselhos e te dá o que você pedir, mas ele, com ele,
todo mundo sabia, estava nos limites.

Olhei para o Lipe, que ainda olhava o cardápio como se não tivesse nem
prestado atenção no Guto, e entendi que aquela era a despedida e era para mim.
O Lipe já sabia de tudo há um tempão.

— Quando você vai?

— Hoje a noite.

— E tá me falando só agora?! Pra onde você vai?

— Eu não ia nem te falar que ia embora.

— Guto, você é uma putinha!

— Não briga. – O Lipe pediu.

— Porra que não briga! Deixa de ser manso, Lipe! O Guto tá indo embora,
não quer falar para onde, e vai hoje! Foi para isso que me tirou de casa, né? Para
dar tchau numa padaria, porque assim cê acha que não vou dar vexame? POIS
SAIBA QUE EU NÃO LIGO!

— Não é por isso, Manu. – O Guto se defendeu.

— Então é pelo quê? Hein?

Ele pegou na minha mão, me olhando bem fundo, até prendi a respiração
porque boa notícia não seria, mas ele desviou os olhos e não disse nada. Um
frouxo. O Guto, o meu Gutão, o cara que sempre foi o mais decidido, o mais
forte, o mais homem dessa família, tá finalmente virando um frouxo.

Se fosse combinado não sairia tão perfeito. Meu telefone, jogado em cima da
mesa, tocou e era o Gabi. Gabriel me ligando? Estranhei, mas saí de perto, um
pouco com vergonha dos meus irmãos ouvirem a minha conversa com meu
namorado (que eles não sabem que é meu namorado) e atendi.

— Manu… – Era voz de choro. Choro?

— Gabriel, o que aconteceu? – Quente ainda pela frouxidão do Guto, atendi


o telefone sem paciência.

— Baixinha…

— Mas o que aconteceu?!

— Saiu o resultado do vestibular. – Gabriel chorava como se tivesse perdido


um braço na linha do trem.

— E daí? O que foi? Você não passou?

— Não… – Choro que não acabava mais e a minha paciência socada no rabo
– Eu passei…

— Então o que é? – Manu em condições normais de temperatura e pressão


tinha pulado de alegria por ver seu amor passar no vestibular – Eu tô no meio de
uma coisa importante aqui, Gabi. Posso te ligar depois?

— Você ainda não olhou o resultado do vestibular, né?

— Não, não deu tempo.

— Baixinha…

— Mas meu Deus do Céu, mas que porra de notícia é essa?!?!



Capítulo Dezenove

Passei. Por Deus, passei. Com o celular na mão, olhando o meio-fio, tudo seria
desculpado. Todas as minhas mazelas, o meu jeito de amar, o meu jeito de me
portar, as minhas tatuagens, meu cabelo colorido, minha boca dura e meu
coração mole. Toda a minha loucura vai ser perdoada porque eu tenho um trunfo
na manga.

A minha mãe, a mulher mais foda do universo, não vai me odiar. Não vai me
esquecer, não vai me tratar diferente. Passei. Respirei aliviada sem perceber que
andava angustiada. Gabriel passou, eu passei. E, por Deus, Rafael passou
também.

Todas as brigas de escola ficaram para trás, todas as risadinhas, todas as


vezes que me xingaram de puta e promíscua. Meu coração não mente, não estou
errada por seguir pela vida do jeito que eu sinto ser o certo. Meu coração não
mente. E eu estou feliz por segui-lo.

— Vem, Guto, ela descobriu que passou. – O Lipe sorria, se levantando da


mesa e me abraçando com carinho como se eu ainda tivesse uns dez anos.

— Êta, Ogra… – O Guto veio também, enchendo a minha testa de beijo.

Voltei à época em que eu dormia na sala, deitada no peito do Lipe, os pés no


Guto. Morrendo de cócegas até fazer xixi nas calças, a camiseta erguida, o
cabelo escuro e a boca banguela. Meus irmãos me dando os parabéns e me
levando para comer fora. Eles já sabiam, só não tinham me contado.

— Parabéns, Monstra. – O Lipe sorriu, me devolvendo para o chão – Vê se


para de estudar com cronômetro rodando, agora, tá?

— Tá feliz de ter passado?


— Tô! – Chorei um pouquinho, mas escondi as lágrimas.

— Beleza, vem para a mesa, vamos comer alguma coisa, que tô com fome.

— Ainda tô de mal de você, Gutão.

— Sabe o que a gente devia fazer? – O Lipe me ignorou completamente –


Devíamos almoçar lá no pai. A mãe tá lá com ele, a gente devia ir, contar a boa e
a má notícia.

Fomos. Com as sacolas do Guto no porta-malas, entramos no carro que o


Lipe pegou emprestado da mãe, e paramos no estacionamento conveniado com o
restaurante do pai. Doida para contar que passei, fui na frente, quase nem esperei
o Lipe passar o alarme.

Bem na hora do almoço, o pai atendia uma mesa e ria daquele jeitão especial
dele. A mãe, com um copo de chopp na mão, namorava o pai à distância, sentada
no bar, um sorriso meio erótico na cara, provavelmente pensando um monte de
putaria que eu não quis saber, nem olhar duas vezes.

Foi entrar, que o pai largou a mesa dos clientes e veio comemorar comigo, os
braços abertos, um sorrisão orgulhoso na cara, me pegando por baixo dos
sovacos como se eu ainda tivesse seis anos de idade.

— Monstrinha linda do pai… – Me abraçou enchendo de beijinho e eu


chorei. – Tô feliz que tenha conseguido o que queria, filhinha. – E cochichou
entre risinhos – Tua mãe não sabe falar de outra coisa desde a hora que acordou
e eu arrastei ela para cá, que senão cê não teria sossego. Pega leve com ela hoje.

— Pai…

— Não entendo metade das coisas que o Lipe e ela brigam, então perdoa se
eu também não entender tudo o que você falar sobre a sua faculdade, tá?

— Você não é obrigado a saber.

— … mas tudo o que você quiser contar, mesmo que eu não entenda muito,
saiba que tô aqui para ouvir.

— Te amo, pai.
— Ô, filhinha… – Ele também chorou, me enchendo de beijo – Mais que
tudo no mundo. Agora vai lá dar um beijo na sua mãe, que o que essa mulher já
chorou hoje…

— A mãe tava chorando?

— Mas não fui eu quem te contei, tá?

O pai me colocou no chão e eu voei para os braços da mãe, que nem saiu do
balcão do bar porque não queria dar pinta que chorava. A abracei com todo o
amor do peito e a ouvi repetir um “obrigada” em loop infinito e de voz
embargada.

No fundo, eu fiz aquilo por ela. Por ela, e a mulher com a foto colada no
painel de Professores Eméritos da POLI, a mãe dela. Estudei muito e me gabei
disso porque a filha da Dona Fernanda não pode dar bobeira. Como mulher no
espaço de homens, tanto em casa como na rua, a gente dorme de olho aberto e
trabalha enquanto eles saem para contar vantagem.

— Chora não – Limpei as lágrimas dela e ajeitei o lápis que derretia no


cantinho do olho.

— Não tô chorando. – Ela riu, secando a lágrima do canto da boca – E teus


carrapatos? Passaram?

— Passaram – Carrapato é o jeito como ela chama meus amigos


inseparáveis.

— Dio, – A mãe chamou o pai – cê tá muito ocupado?

— Hoje não, Nina. O que foi?

Sentamos juntos para comer, numa mesa do fundo do palco, onde pouca
gente fica durante o almoço porque a área da janela e do bar são bem mais
bonitos. Um dos garçons ofereceu sangria e encheu os copos. O Tio Antônio,
sócio do meu pai, mandou vários tira-gostos e eu só sabia sorrir feito uma louca.

— Tá certo, – a mãe limpou a boca com o guardanapo de linho e eu sabia


que viria chumbo – agora que você tá dentro da seita dos Miller, quando é que
você vai assumir que seu sonho é ser arquiteta?
Quase engasguei e a mãe rachou o bico.

— Eu cresci com você falando mal de arquiteto. – Devolvi. Para cima de


mim essa conversinha, Dona Fernanda? – Que arte é coisa de quem não sabe
calcular, constrói casa quem não tem cu para construir prédio, nem ponte, nem
nada que dure. É ou tô louca?

— É. – O pai riu mordendo um bolinho – Mas o peixe morre pela boca.

— Então eu não tenho que assumir nada!

— Manu… – Ela pegou na minha mão, fazendo piada com a minha cara, e
beijou os meus dedos – Então você mexe melhor que eu e o Lipe no AutoCad
porque quer desenhar ponte?

— Você me criou engenheira, Mãe. Herdei a impressora 3D, herdei lego dos
meninos, você me mandou consertar um computador horrível de velho e colocá-
lo para funcionar, isso se eu quisesse ter computador no quarto. Você me educou
para pensar como resolver problemas, vibrou com cada nota alta minha, e agora
vem com papinho de arquitetura?! Lembra quando o Lipe defendeu a dissertação
de mestrado dele e você me levou para ver o painel dos professores, com a sua
foto do lado da foto da sua mãe?! Lembra o que você me disse naquele dia?!
Você me fez querer ser que nem você. Você me fez desejar participar da ponte do
Chile, e agora tá me empurrando para arquitetura?

— E você aprendeu a desenhar com o Gabi, arruma os desenhos do Lipe,


aprendeu desenho técnico no Youtube só porque quer ser uma boa engenheira?

— A minha monstrinha de seis anos ganhou uma impressora 3D e me disse


que queria crescer e construir casa. – O pai também não estava muito a fim de
colaborar. – Nunca falou sobre ponte até ficar grandinha.

Nunca falei sobre ponte, verdade, mas ninguém nunca me perguntou sobre
arquitetura porque sempre foi óbvio que o meu lugar é na engenharia. Seguindo
os passos dela, juntando mais um Miller para o time, engrossando o caldo das
pontes e estruturas, e fazendo história.

— Eu sei… – Cedi e retomei – E ninguém nunca falou para eu passar na


USP, nunca pressionou, sempre só ficou feliz e me deixou escolher meu próprio
caminho… A questão é que você é a mulher mais fodida do universo e eu sou a
sua filha. E eu quero ser a segunda mulher mais fodida do universo, entende?

— Eu não faço as coisas que faço querendo ser a mais fodida.

— Eu sei que não, se fizesse, não seria. Só que olha a nossa casa, mãe. Olha
o nosso pai! O pai arrasta o chifre no asfalto por você, e não é porque você é
linda. É porque você é foda! E eu me cobro para ser igual, porque acho um
desperdício ser qualquer coisa, se a minha mãe, num tempo bem mais ferrado
que o meu, consegue ser maravilhosa.

— Arquitetura não é menos que engenharia.

— Para você é! Não seja hipócrita comigo. Você passou a vida inteira
falando mal de arquiteto, porra! Você ri de arquitetura como se não fosse
trabalho sério, fala que só vira arquiteto quem não tem cu para mexer com
matemática séria, e me dar esse refresco para eu ser arquiteta… me ofende.

— Não foi nada disso o que eu quis dizer.

— O que a mãe tá querendo dizer… – O Lipe tentou. Ele sempre vai ser o
guarda-costas dela, mesmo que ela não precise de um.

— Deixa, Lipe, que a mãe tem boca e se vira. – Rebati.

— O que eu quero dizer, Manu, é, que se você quiser, só se quiser estudar o


que você já faz lá no nosso pico, essa parte de projeto, design, urbanização,
paisagismo e o escambau, a POLI tem uma espécie de graduação híbrida que,
em sete anos, você sai Engenheira Civil e com certificado de Arquitetura.

— E você nunca me disse isso?!

— Eu não, credo, vai que você desiste de ser engenheira para virar arquiteta!

— Nina… – O pai riu.

— O que eu tô falando, princesa, é que dá para ser os dois. Estudar com o


Rafa na POLI, com o Gabi na FAU, e ser essa engenheira meio hipster de cabelo
colorido e tatuagem até onde o Sol não bate.

— Dá para ser tudo, filhota. – O pai continuou – É só isso o que sua mãe tá
querendo te dizer.

— Porque a mulher mais fodida do universo fez um milhão de homem


engolir o riso quando foi ela quem abriu uma consultoria, aos cinquenta anos, e
largou o emprego de professora. – O Guto só abre a boca quando é para dar
show – A filha da fodida tem que fazer a própria mãe e um milhão de homem
engolirem o riso, não é? Tem que fazer ela entender que arquitetos sabem
matemática, talvez até melhor que muito engenheiro, mas se preocupam mais
com pessoas do que com ferramentas.

— É impressionante como sempre tem um ovelha negra na família – A mãe


sorriu com a doçura que ela não possui – Né, ô, Doutor Gustavo?

— Doutor não, mãe. Doutora só a senhora, que fez doutorado. Eu sou


médico.

— É agora que você estraga o momento feliz e dá a notícia ruim, Guto? –


Perguntei.

— Você quem sabe, Ogra. A festa é sua.

— Vai, Guto. Conta para a mãe o que você me contou agora de manhã.

— Gutinho… – A mãe perdeu o sorriso e procurou a mão do meu pai por


baixo da mesa – O que foi, filho?

O resto do almoço desceu mais amargo do que desceram os tira-gostos.



Capítulo Vinte

O Lipe colocou a única mochila de lona que o Guto levaria para seu novo
destino no porta-malas e eu insisti, pela última vez, para que ele ficasse. Com
um sorriso triste e carinhoso ao mesmo tempo, ele segurava no meu queixo, os
olhos molhados, mas não cedeu.

— Espera pelo menos a minha matrícula – Tentei – É semana que vem!

— Manuela…

— Por favor, Gutão.

— Meu coração chamou, Manu. Não tem nada que você diga que me faça
ficar. Eu não sou como você e o Lipe, que escutam o coração todo dia. Meu
coração nunca falou comigo. Desde que abriu o edital que tô querendo ir, então
eu vou. Se vai ser bom? Não sei. Se tem alguma coisa pra mim por lá? Não sei.
Só sei que eu tenho que ir.

— Não vai dizer onde é?

— Não.

— Se cuida, tá?

— Vou poder te ligar de vez em quando?

— Mas que pergunta idiota!

— … mas você promete que nunca vai me ligar?

— Não faz isso, Guto.

— É importante pra mim, Nina.


— E se eu precisar de conselho?

— Já te dei dezoito anos de conselho. E os meus são iguais aos da mãe, a


diferença é que ela passa a mão na sua cabeça, e eu falo para chacoalhar.

— E se eu precisar de ajuda?

— Manu… – Me olhava como se eu tivesse dez anos. Você nunca vai ver o
Guto chorar. – Você é a minha melhor amiga. A única amiga que eu tenho e que
sabe tudo de mim. Eu que vou precisar de ajuda, você vai ficar bem. O Lipe tá
aqui, a mãe está. E o pai. Eu sei que você vai ficar bem, Pequena.

— Você está com medo?

— Se eu falar que sim, você vai rir de mim?

— Não…

— É… esquisito. Eu nem pensei em me inscrever, só fui. Eu sinto que, se eu


não for, vou acabar enfiado num buraco que nunca vou conseguir sair. Eu
preciso disso, Manu. Mais do que querer, eu sinto que eu preciso.

— Então me liga quando quiser, Gu. Tô sempre aqui, vou sempre te atender.
E quando quiser voltar… estaremos aqui. Todos nós.

— Cuida da mãe por mim?

— Sempre.

— Quando eu entrar pelo portão de embarque, você diz que eu amo ela?

— Não!

— Por favor. – Por que isso basta para ele quebrar?

— Guto, isso não é coisa para eu falar.

— Ela não acredita em mim, Ogra. Faça a ponte.

— Vem cá… – O abracei com ternura e chorei de saudade por antecipação.


Ele tinha vergonha de chorar. Queria que todo mundo fosse se despedir dele
no aeroporto, mas não é homem de espetáculo, então não pediu para ninguém, a
gente que se prontificou a ir. Sorri lendo nas entrelinhas, dando um abração bem
apertado nele, sabendo que o Guto é o único homem que eu conheço que
reclama de perfume e maquiagem, sendo espremida até quase virar suco.

Senti os pés saírem do chão, os beijinhos no cabelo e na testa, o suspiro de


saudade prévia e segurei o choro só porque eu conheço meu irmão.

— Manuela, é tudo tão mais difícil quando é com você.

— Não é. – Respondi voltando os pés para o chão e limpando o nariz na


blusa – Você que é mole.

— Se cuida, tá? E põe aquela molecada para correr atrás de você.

Eu nunca contei. Mas ele sorria como se soubesse.

— Nunca é bom homem ter certeza do amor. – Como eu vou viver sem esses
conselhos?! – Então põe a molecada para correr, que senão é você quem vai
viver de correr atrás.

Ele nos fez prometer que não leríamos os letreiros dos embarques e
desembarques, e nem investigaríamos para onde ele iria. Disse que, se não quer
nos contar, então não é nosso dever saber. Disse para não olhar no Diário Oficial,
nem procurar no Google. Entramos em Congonhas, o Lipe segurando a mala, o
Guto fez o check-in eletrônico e a única coisa que eu percebi é que não era uma
viagem internacional.

O pai, no andar de embarque doméstico, perguntou se era isso o que o Guto


queria e, chorando, lhe deu um último abraço. A mãe, miúda, ela sempre fica
minúscula quando fica com o coração na mão, deu um beijo no Guto e ele pediu
a bênção dela.

Acho que, em toda a minha vida, eu nunca vi ninguém pedir sua bênção.

— Deus te abençoe, Amor da Mãe.

Quando o Lipe chorou abraçado no Guto que eu percebi porque foi tão fácil
aceitar o Rafa e o Gabi como meus. Vi o Lipinho pedir desculpas para o Guto,
por todos os anos em que o usou de muletas para seguir pela vida, por todos os
anos que não cuidou melhor de seu irmão mais novo, e essa foi a única vez que
eu vi lágrima no rosto do Guto.

— Me perdoa, Guto.

— Não faz isso agora, Lipe. Não tem que pedir desculpa por porra nenhuma,
tudo o que eu fiz por você, até os porres que a gente tomou junto, fiz porque te
amo. Não pede desculpa por isso, que eu vou me sentir em débito contigo.

— Me liga.

— Você sabe que não vou ligar.

— Se você me ama, você vai ligar. E vai me atender quando eu ligar.

— Te amo. – O Guto falou para o Lipe, mas parecia que era para mim.

Num puxão do Guto, entrei no meio do abraço só para desmanchar.

— Eu vou sentir tanto a sua falta…

Eu nunca entendi o quanto ele precisava ir, até o dia em que voltou. Ali,
dando tchau com sua única bagagem, o rosto limpo e os olhos vermelhos
segurando o choro que ele nunca vai deixar sair, eu só senti que aquela era a
maior burrada da vida dele. Médico recém-formado saindo da cidade mais
avançada do país para ir para onde? Onde é que ele vai vingar melhor do que
aqui?

Falei para a mãe, assim que ele atravessou o portão de embarque, o que ele
me pediu para dizer. E parece que fui eu quem enfiei uma faca no coração dela.

◆◆◆

Semana seguinte combinamos de ir todos juntos. Meus papéis de matrícula


numa pasta de plástico, a foto 3x4 que eles pedem para levar, meu certificado de
conclusão de ensino médio e a procuração assinada no nome da minha mãe.
Tudo agrupado com antecedência porque eu era a personificação da ansiedade.
No dia, só coloquei a roupa mais surrada que tinha porque a intenção era voltar
manchada de tinta dos pés à cabeça ou, no melhor cenário possível, não voltar
tão cedo.

Rafael e Gabriel também se matriculariam no mesmo dia, então nossos pais


combinaram de ir todos juntos, numa festa só. Duas da tarde meu pai parou o
carro na frente da FAU e, na multidão de calouros com os pais, demoramos para
achar Rafael e a mãe, Dona Lúcia; e Seu Guilherme e a esposa, ambos esperando
que Gabriel saísse da sala de matrícula.

Mas, quando nos vimos, o pai do Gabi só faltava beijar a minha mãe, de tão
feliz que estava. Ele também nunca achou que o Gabi fosse fazer uma faculdade.

— Olha, Dona Fernanda, não precisava nem ser USP. Sempre achei que esse
moleque nunca ia acordar para a vida.

— Gabriel só não pode ficar sozinho – A mãe recebeu o abraço de obrigado


do pai do Gabi, rindo porque acha a maior graça todo mundo o nivelar por baixo
– Se ficar sozinho, ele se perde, mas com a companhia certa, todo mundo vai pra
frente.

— Manuela, – o pai do Gabi tinha o mesmo olho claro do filho, mas não era
nem dez por cento tão lindo – por tudo o que você mais ama, vê se casa com o
meu filho. Dona Lúcia, a senhora que me perdoe, sei que Rafael é um páreo duro
para o Gabi porque seu menino é um bom partido, mas Deus queira que Manuela
escolha o meu garoto.

Todos os olhos em mim. Era unânime que eu respondesse. Vermelha e sem


saber onde enfiar as mãos, qualquer resposta parecia errada.

Rafael olhava para o pai do Gabi, que não se percebia olhado, e, se a mãe
dele não estivesse presente, eu tenho certeza da resposta que ele daria.

— Tio, – optei pela saída mais simples quando o silêncio começou a ficar
esquisito e meu coração pulava da boca – não me leve a mal, mas não vou casar.

— Ah, mocinha, isso é fase. Toda mulher quer casar.


A carranca da minha mãe foi impagável. O pai deu um apertão no braço dela,
por isso ela não disse nada, mas a vontade que a minha mãe tinha era de fritar o
pai do Gabi, mastigar, e cuspir.

Gabriel saiu sozinho do auditório da matrícula e foi nos encontrar no


gramado todo cheio de veteranos e pais. Toda vez que nos encontramos eu morro
de vontade de beijá-lo e cumprimentá-lo como um casal normal faria, mas, por
estar todo mundo ali, de testemunho, tudo o que pude fazer foi dar um beijo no
rosto e um abraço.

— Matriculado? – O pai dele perguntou.

— Tô sim.

— Ê, garoto!

Mais feliz que o pai do Gabi não tinha. Parecia que tinha ganho na loteria.
Rafael sumiu e apareceu pouco depois com tintas que ele provavelmente roubou
do centro acadêmico. Deu um pote para o pai do Gabi, um pote para a mãe, e
outro para mim.

— Cê não quer ser pintado pelos veteranos do seu curso? – Perguntei.

— Caguei para eles.

Com carinho e fazendo graça, o pintamos com tinta lavável. Do mesmo jeito
que quando o Guto passou em medicina, minha mãe pintou os lábios de tinta e
deu um beijo na testa dele.

— Obrigado, Tia – Gabriel só faltava chorar – Por tudo.

— Minha filha falou que eu sou a mulher mais fodida do universo – Não sei
porque a mãe falou isso, mas ela falou.

— É, sim. – Gabriel concordou, e o meu pai rachou de rir no fundo.

Descemos à pé para a POLI. A minha vontade era limpar o rostinho feliz e


sujo do Gabi, tirar a tinta fresca que escorria, e dar um monte de beijinho de
parabéns, mas o máximo que consegui, ali, com toda a nossa família olhando, foi
sorrir e seguir de mãos dadas com o meu pai.
Minha mãe pode ter saído da POLI, mas a faculdade de engenharia nunca
saiu dela e nem a esqueceu. Todo mundo que a via e sabia quem ela era, parava
para cumprimentá-la. Os ex-professores e orientadores do Lipe o
cumprimentavam como se ele fosse um garoto de dez anos, e com a mãe, eles a
tratavam como se ela fosse a autoridade mais célebre do campus inteiro.

Eu gosto de ver como o pai fica quando a mãe se enturma, porque parece que
faz valer o sacrifício dele. Com muito palavrão e piada ácida, a mãe entrava no
campus para matricular a terceira engenheira da família. Me enchia de beijo
porque, pode até falar que não, que eu sou livre para fazer o que quiser, mas eu
sei que entrar naquele campus com o nome na lista de aprovados era o que a
minha mãe sonhava para mim.

Por isso, eu só sorri e acenei, esqueci o nome de todos os professores,


concordei com alguma reunião entre professores e a minha família, e dei a mão
para o Rafa, que a mãe também apresentou como se fosse seu quarto filho, toda
cheia de orgulho, apresentou a mãe do Rafa também, e nós seguimos, doidos
para dar as mãos e uns beijos, direto para a sala de matrícula.

Quando a gente entrou e as portas se fecharam atrás de nós, Rafael me olhou


sorrindo tanto, que eu nem fiz cerimônia para beijá-lo. Era o sonho dele, sempre
foi. Para mim, era obrigação, mas, para ele, era um sonho. Ele sorria entre o
beijo, alguns alunos passando atrás de nós, desviando, mas a gente não ligou.
Seria o único momento a sós pelo resto do dia inteiro, então aproveitamos como
conseguimos.

Com a senha na mão e sentados em qualquer par de cadeiras livres, eu fui


chamada primeiro, mas logo veio a vez do Rafa e, como eram muitas pessoas
atendendo, fomos matriculados quase na mesma hora. Rafael sorria tanto, que eu
entendi que aquele era o dia mais feliz de sua vida.

Demoramos para sair da sala só porque do lado de fora não pode afeto.
Nossa família não sabe, o pai do Gabi está doido para que eu case com o filho
dele, meu pai está rindo muito porque para ele não faz diferença quem seja meu
pretendente porque a filhinha dele acabou de passar na faculdade e isso para ele
bastava.

E, mesmo se não bastasse, a filhinha só pode namorar com um. Nunca com
dois.
Rafael me puxou para perto de um grupinho com tinta e pincel, só para pedir
emprestado. Fingiu que não era calouro, disse que era veterano e queria pintar o
amigo e a namorada. Foi assim que ele pegou tinta na FAU, entendi, e era assim
que ele pegava tinta na POLI.

Voltamos para perto de nossos pais e não vi nem minha mãe, nem dona
Lúcia. A tinta já tinha secado na cara do Gabi e ele só faltava chorar de alegria.
Rafael matriculado, eu lia no pranto, e sem ser expulso da escola.

Era um dia de vitória, uma vitória com o pé quebrado porque ainda


fingíamos ser só amigos, mas ainda sim, vitória.

E era toda a vitória que Dona Lúcia queria. Voltou de mãos dadas com a
minha mãe, chorosa como se Rafael tivesse sido atropelado, vislumbrada com o
campus das engenharias e pelo tour que minha mãe deu com ela.

— Tá encaminhado, Dona Lúcia – A minha mãe se emocionava porque sabia


da narrativa de sacrifício dela para Rafael chegar onde chegava. – Você tem um
filho de ouro e ele tá encaminhado.

— Tá, Dona Fernanda. – Num abraço de senhorinhas, Dona Lúcia sussurrou


alguma coisa para a minha mãe que a fez chorar e se envergonhar por isso.

— Páreo duro… – Meu pai riu para seu Guilherme.

— Páreo duro… – E o pai do Gabi teve que concordar.

Rafael não chorava, mas, por conviver tanto tempo com ele, eu sei quando
ele se emociona. Tinha um sorriso gigante na cara, realizado, todo feliz. Deu um
abração na própria mãe, abraço de amor, todo mundo viu Dona Lúcia, miúda, se
perder no peito enorme do próprio filho, e o rosto todo manchado de choro.

Para mim, vestibular na USP era questão de necessidade e orgulho porque


todos antes de mim, na minha família, assim fizeram. Para Dona Lúcia e Rafael
era como deixar um passado onde ele pertence. Venciam. Tinha gosto de vitória
para eles porque não vinham do lar de privilégios de onde eu vim.

— Pinta, mãe – Ele deu o pote de tinta lavável que roubou dos veteranos na
mão da mãe, e baixou um pouquinho para que ela alcançasse seu rosto.
— Pode mesmo?

— Tasca tinta.

Orgulhosa e feliz, Dona Lúcia virou o pote na cabeça do filho, com tudo, e o
lambuzou como se o batizasse. Vez de Gabriel chegar com potes vindos vai
saber de onde, e entregar na mão da gente.

Pelo olhar feliz de Rafael, o jeito como ele olhava de Gabriel para mim, a
gente sabia que a vontade que ele tinha era de meter um beijão na nossa boca.
Rafael tem um jeito só dele de dizer sem falar. Enfiou a mão no bolso para não
ter contato físico com Gabriel, olhava tanto para a boca dele que eu fiquei com
medo que nossos pais percebessem, e depois eu o pintei tomando aquele olhar
quente de quem quer ficar sozinho e arrancar a minha roupa.

Antes que a gente fosse embora, minha mãe nos levou para ver o painel
sagrado com as fotos das Rainhas Miller: A mãe dela, e ela.

— Você é a próxima daí, hein, Manu! – O pai do Gabi disse sorrindo.

— Mas não precisa ser a única – A mãe sorriu olhando para o Rafa, fazendo
o chamado oficial que ele tanto queria.

Capítulo Vinte e Um

Saímos dali e o pai convenceu todos nós de irmos para o restaurante dele. O
Lipe deu um perdido na gente, dizendo que não podia ir para a matrícula porque
tinha muito trabalho, mas não convenceu ninguém. Desde antes de namorar a
mulher que viria a ser sua perdição, ele tem tradições com flores e matrículas de
faculdade, e eu sabia que ele faria algo na minha vez.

O restaurante do pai fecha entre o almoço e jantar, que é para dar tempo de
limpar, preparar o menu, e dar folga paras as pessoas. Todo mundo ali trabalha
muito e, pelo tamanho do lugar, pela reputação que meu pai construía para o
estabelecimento, a gente via que o esforço valia a pena.

E, naquele dia, não foi o pai quem servia de leão de chácara com sua eterna
camisa por dentro da calça jeans e os sapatos confortáveis, mas o Lipe, que com
suas tatuagens pulando da camisa arregaçada até os cotovelos, imitava os
trejeitos do pai só para fazê-lo morrer de rir.

Lipinho Lindo tinha florzinhas de canteiro na mão quando me


cumprimentou. Se alguma coisa explica meu irmão, com certeza é flor de
canteiro. Lipinho nunca compra flor, ele colhe. É tipo a marca dele e, se ele não
fosse terrivelmente bonito e inteligente, teria qualquer mulher no mundo só pelo
jeito como dá flor.

Naquele dia, ele tinha flores para mim. Pediu desculpas por não ter ido à
matrícula, me deu um beijo na testa como um irmão mais velho faria à irmã mais
nova, e levou todo mundo para os fundos do restaurante, o palco, que cheirava a
café recém-passado e pão.

A comida que meu pai serve junto de seu sócio é andaluza. É tipo comida
espanhola, mas mais tradicional, que é a especialidade do chef. Naquele dia a
mesa principal estava cheia de comida de padaria, talvez feita pelo meu irmão,
talvez comprada, porque sabe o que a nossa família gosta.
Sentamos ao redor de uma grande mesa enfeitada com flor e comida, e
passamos boa parte da tarde só rindo e revivendo a nossa época de escola. O pai
do Gabi, feliz e com o rosto todo vermelho, de tão feliz e empolgado que estava,
passou o tempo todo discursando sobre os perrengues que era ter um filho
irresponsável, encrenqueiro, e que só sabia gastar dinheiro.

E, de toda forma, aquilo era um elogio. O pai dele falava mal, mas sempre
tinha um “porém” escondido no discurso, que validava o quanto Gabriel era
importante.

O curioso é que a mãe do Gabi sorria, mas nunca falava nada. E a minha mãe
percebia isso, puxava assunto com a mãe do Gabi, perguntava coisas para ela,
mas a mulher, se falava, era só para concordar com o marido.

Por outro lado, a minha mãe e Dona Lúcia só falavam. As duas nunca foram
muito próximas. Eram mães de filhos que eram amigos e calhavam de se
encontrar, cumprimentar, trocar animosidades, mas nunca foram amigas de
verdade.

Acho que, pelo menos, até aquele dia. Dona Lúcia buscava validação da
minha mãe, e minha mãe só sabia falar com Dona Lúcia. Meu pai teve que dar
conversa para o pai do Gabi, mas o que ele queria mesmo era rir e brincar com a
esposa e a mãe do Rafa.

E nós três só queríamos ficar sozinhos um pouco. Rafael nunca gostou de


reunião com muita gente e claramente se sentia deslocado, mas aguentava tudo
porque a mãe dele estava feliz. E Gabriel procurava a minha mão por baixo da
mesa, estava doido para procurar a mão do Rafa também, mas não se atreveu
sequer a olhá-lo muito por medo do pai.

Já era quase oito horas da noite quando saímos do restaurante. Meu pai
ofereceu carona para a mãe do Rafa e ele, mas eu pedi permissão para a gente
sair e comemorar do nosso jeito, do mesmo jeito que nos deixaram sair para
comemorar a formatura e, como não aconteceu nada demais na formatura e
como voltamos inteiros no dia seguinte, eles não viram problema em nos deixar
sair ali, também.

— Só toma cuidado, tá? – Sem que ninguém visse, o Lipe enfiou uma
camisinha no meu bolso. Sorria o mesmo sorriso sábio e irritante que o Guto
sorriu quando me mandou colocar meus meninos para correrem atrás de mim.
— Sempre. – Não afirmei, nem neguei a premissa dele. Que o Lipe achasse o
que quisesse.

Foi nessa hora, quando as famílias se despediram e nós ficamos pelo metrô
da Faria Lima, foi que meu telefone tocou. Com a quantidade de coisas que
aconteceram num único dia, confesso que esqueci do Guto e só me lembraria
dele quando fosse a hora de deitar.

— Não dá para esquecer, Manu – Ele parecia sonolento do lado da linha


dele.

— E tá tudo bem aí?

— Tá.

— Aí é como você achou que seria?

— Melhor.

— Jura?

— Aqui tem mar aberto e a criançada toda brinca na rua. Pedi autorização do
superior do estado para começar um clube esportivo e tô esperando a resposta.

— Vai virar professor de educação física, Gustavo?

— Vô nada. – Bocejou bastante e depois voltou – Eu quero começar um


projeto com criança asmática e natação, tem bastante criança com problema
respiratório aqui. Tô querendo colocar todas elas para nadar.

— Funcionou com o Lipinho, né?

— É. E aqui é água salgada, né, não é piscina cheia de cloro. Essas coisas
fazem diferença.

— Vai ensinar toda criança asmática a nadar, então?

— Não, criançada daqui já é tudo peixinho.

Por baldear de metrô e falar com ele seguindo meus meninos, eu não percebi
o tom calmo da voz do Guto. Um tom calmo e feliz que eu só ouvi de novo
depois de anos.

— Nina, eu vou desligar para deixar você em paz, tá? Vou aproveitar e
dormir, que amanhã, quatro horas, tô de pé. Se cuida, tá? O Lipe te deu a
camisinha, espero.

— Isso só podia ser coisa sua.

— Tô sempre olhando por você.

Saltamos na Vila Madalena e meu coração deu um nó. Estávamos de volta à


Embaixada, o único lugar do mundo com uma cama limpa, honesta, e que
ninguém nos julgaria.

Por viver mentindo, parece que quando conseguimos ser só nós mesmos, é
como voltar a respirar. Soltei o ar que nem percebi que tinha preso e avancei
para a boca do Gabi, assim que subimos para o quarto, rindo sobre o páreo duro
que o meu pai e o pai dele se conversaram e que não pudemos rir na hora.

Depois que o colégio acabou, tudo estava diferente e nós ainda não
estávamos acostumados àquela rotina. Eu trabalhava período integral com a
minha mãe, o Rafa ajudava a mãe em período integral, e Gabriel foi para a
oficina do pai, nem que fosse só para atender telefone. Como Rafael e eu
ajudávamos nossas famílias, parece que foi natural para o Gabi fazer o mesmo.

E, com isso, somado à faculdade que começaria, nós nos perdíamos mais do
que nos encontrávamos. Ali, de volta ao nosso santuário, a necessidade não era
nem sexo. Era poder se beijar sem se esconder, sem culpa, poder se ver e se
perceber com saudades. Nos fins de semana todo mundo está de folga, todo
mundo sai para todos os lugares. As ruas ficam cheias, e a gente ainda tinha
medo de sair nesses dias porque fim de semana significa família em restaurante e
família significa pai com mãe e filhos.

E raramente a estrutura conservadora olha para uma estrutura livre sem achar
que o mundo vai acabar.

Só uma vez saímos de fim de semana, igual qualquer casal normal, e foi
horrível. Eu segurava na mão de um, na mão de outro, e todo mundo olhava a
gente, curioso, querendo saber quem é que eu vou beijar, e com qual dos dois
estou.
Até os garçons, até os atendentes, até qualquer pessoa. Três é tabu e eu não
vou fingir que não sabia disso. Soube disso desde que aceitei, mas uma coisa é
combater só a sua classe e os alunos da sua idade, num ambiente micro, e outra
coisa, bem pior, é ter coragem de combater no ambiente macro onde um
caminhoneiro atropela, com um dezoito rodas, um pai e filho abraçados, só
porque acha que são gays.

Era mais caro se encontrar na Embaixada só para dar uns beijos, mas era
seguro. E enquanto não éramos adultos e responsáveis por nossos próprios atos,
a gente aceitava se esconder.

— Parabéns por passar, Baixinha. – Gabriel me sorriu, as mãos no meu


cabelo, inteirinho pintado de amor e carinhos. – E obrigado por me ajudar a
passar, também.

Ninguém nunca descreveu o Gabi tão bem quanto a minha mãe. Só não
podemos deixar o Gabi sozinho, que ele se perde. Com um pouco de atenção e
cuidado, ele brilha.

Rafael deu um perdido na gente e saiu do quarto antes que o beijássemos.


Não entendemos, mas esperamos e, sentados à cama, as coisas evoluíam sem
que a gente quisesse se controlar.

No restaurante do meu pai tínhamos lavado o rosto e as mãos, porque depois


de um tempo a tinta lavável começou a descascar e sujava tudo com um pó
muito fino, e ali, tirei a camisa suja do Gabi entre beijos de cumprimento que
cresciam sem a gente ter que se controlar.

— Tá segura de que é isso o que quer?

— Gabi, eu não sou mais virgem, não precisa perguntar isso toda vez.

— Tô falando da faculdade.

— Ah, – eu ri escorregando da cama para o chão – acho que vou fazer a


graduação híbrida de sete anos.

— Arquitetura e engenharia? – Ele sorriu quando abri o zíper do jeans dele e


eu sorri de vê-lo animado.
— É. – O puxei de dentro da cueca, sorrindo por senti-lo e o lambi – Assim
você não vai ter tempo para escolher outra garota.

— Manu… – Ele gemeu um pouquinho, sorrindo divertido – E tem outra?

Eu esperava que não.

Ouvi o click da fechadura, mas não me desconcentrei. Gabriel tinha um jeito


muito único de segurar no meu cabelo enquanto eu o lambia, um jeito muito
peculiar de demonstrar que estava gostando, então, quando Rafael chegou, eu
não percebi.

— Já começaram sem mim? – Rafael sussurrou no meu ouvido, por trás de


mim, colado bem perto.

— Tem espaço para você. – Sorri voltando o rosto para ele, sem largar
Gabriel.

— Onde você foi? – Gabi perguntou gemendo um pouquinho mais quando


voltei a boca para ele.

— Mercado.

— Fazer o quê?

Rafael não quis contar. Deu um beijo de cumprimento no Gabi, matando a


vontade de um dia inteiro de conversas sem beijo e nem afeto, e depois desceu
para encontrar a minha boca, lambendo tanto como eu, e me lambendo o rosto e
a boca de tabela.

— Mais disputada que o Brasileirão – Rafael riu com a língua no Gabi e os


olhos em mim – Não é?

— Morri de vergonha quando o pai do Gabi pediu para eu escolher entre


vocês dois.

— Mas você vai fazer a vontade do pai dele, não vai?

— Rafael…
— E vai fazer a vontade da minha mãe também.

Mas não era assim que o pai do Gabi queria que fosse e sabíamos. Olhando
Rafael seguro, feliz, e lindo, esqueci um pouco da culpa por mentir um dia
inteiro, na frente dos nossos pais, e me concentrei num Gabi que deitava o dorso
na cama e se contorcia devagarinho, suspirando sempre um pouco mais
comprido que da vez anterior.

— Parabéns por passar, Amor – Rafael buscou a boca do Gabi.

— Eu não consigo esperar para ter aula com vocês de novo. – Gabriel
suspirava e sorria, a vista mais linda que eu já vi.

— Não vou me meter com a FAU. – Rafael cortou e até eu parei de lamber o
Gabi para entender melhor.

— Vai sim! – Retruquei.

— Não, – repetiu – de forma alguma. Sempre quis ir para a engenharia


porque nunca fui bom de desenhar, nem sou criativo.

— Não é criativo?

— Não, Gabi.

— Então o que tem naquela sacola não é uma versão comestível de tinta de
pintar calouro?

— Tinta comestível é muito caro.

Não era uma resposta boa. Rafael, quando é para negar, é taxativo. Não tem
titubeio. Levantei para olhar a sacola: ainda bem que ele não é criativo.

— O que tem aí, Manu? – Gabi se ergueu nos cotovelos para olhar.

— Tem… – Sorri tirando a primeira embalagem da sacola – Cobertura de


sorvete.

— E você não é criativo, né?

— Só para o que não presta. – Rafa cedeu num sorriso meio sacana.
— Para isso você assume que é bom.

— O que tá querendo com cobertura de sorvete? – Entendendo muito bem o


que ele queria com cobertura de sorvete, voltei para perto deles, me ajoelhei
entre as pernas do Gabi, e coloquei o pote sobre a cama.

— Tinta comestível é caro – Rafael repetiu, violando o lacre da cobertura – E


faz muita sujeira.

— Hã…

— Então eu peguei uma coisa muito mais prática. Só é mais melequenta,


mas… – Jogou só um pouquinho do caramelo em cima da barriga, descendo
para o umbigo, até chegar no pinto do Gabi – Não é ruim se você lamber direito.

Rafael me olhava, querendo que limpasse a sujeira, como se eu fosse lambê-


lo. A mesma lascívia que ele teria se o caramelo estivesse próprio corpo.
Olhando-o nos olhos, sentindo Gabriel puxar meu cabelo para longe da
melequeira, desci a boca só para ver as sobrancelhas do Rafa se contorcerem.

Era a nossa versão de comemoração. O nosso batismo de calouro de


faculdade. Entramos na escola juntos, viramos o ensino médio juntos, e agora,
iríamos para a faculdade. Era uma vitória nossa, muito íntima e sentimental. O
Filho da costureira, do mecânico, e da engenheira. Todas as vezes que peguei no
pé do Gabi compensaram, todas as vezes que ajudamos o Rafa com as
encomendas da mãe dele, só para que ele pudesse passar mais tempo conosco,
tudo isso compensava.

E os meus estudos… bastaram. Sozinha, talvez tivesse me dado melhor.


Talvez não tivesse só passado, mas encabeçado a lista de aprovados.

Só que quem vai acompanhado vai duas vezes mais longe, não é?

— Baixinha… – Gabriel gemia.

— O que foi, Meu Lindo?

Gosto do como eles se lêem. Rafael me tirou do chão e me sentou na cama,


do lado do Gabi, e ambos vieram tirar a minha roupa.
Primeiro e camiseta cheia de tinta seca, depois a calça. Só não deitei porque
queria ver mais do que sentir. Deixei a calcinha escorregar pelos tornozelos,
Rafael me abriu e me puxou mais para a beirada da cama, e foi a vez de Gabriel
pingar caramelo em mim.

Eles se beijavam e me beijavam também, lá embaixo, bem onde eu me perco.


Se sorriam, felizes, nós três passamos para a faculdade. Rafael apertava as
minhas ancas e beijava Gabriel onde conseguia, fosse na boca ou pelo dorso,
enquanto Gabriel me lambia e puxava os lábios para cima, com a palma da mão,
só para sentir meu clitóris inchar.

— Deita – Gabi pediu, o polegar na minha barriga e os dedos nas minhas


costas, e eu deitei sentindo Rafael puxar as minhas pernas para cima,
flexionadas, para que pudessem me beijar melhor ali.

Senti dois dedos dentro e eu não sabia de quem era, nem importava. Sentia a
boca, os chupões, os estalinhos de beijo, e as quatro mãos.

Aos poucos e no colégio, enquanto todo mundo trabalhava e a gente se


reunia na minha casa sob a desculpa do estudo, a gente aprendia como fazia e
como gozava. Essas coisas levam tempo, não é do dia para noite que todo mundo
se percebe chegando lá. O caminho guia. Entre tabelas de física e regras da mão
direita, eu ensinava e aprendia como é que eu gostava das coisas.

Entre regras de porque/por quê/ por que, Rafael sempre mais bonito quando
se sente seguro, Gabriel sempre mais seguro quando se percebia protegido, eu
virava o canto, a ruína, e o meio.

Porque toda vez que a gente se fingia separado para um público, e se amava
no silêncio, eu me percebia o meio. Meu lugar é entre os meus pais, entre os
meus irmãos, entre o Rafa e o Gabi. Gabriel gemendo baixinho com um sorriso
no rosto, segurando Rafael na mão, enchendo-me de beijo molhado, seduzido
pelas sobrancelhas contorcidas, embalado pela voz gentil e voraz de um Rafael
que nunca quer parar. Lá que é meu lugar. Deitada entre o caos e a ordem,
tranquila no olho do furacão, sorrindo enquanto chegava rápido num pico de
onde nunca quis sair.

E entre os dois, sentindo mãos e línguas não como se dois virassem um,
porque cada um tinha a sua peculiaridade, mas sentindo o suspiro de um, a
risadinha amorosa de outro, tratada como eu sempre fui, livre dentro de um
quarto de bar, feliz por ter passado, por conquistar mais uma etapa sempre do
lado dos meus, eu fui.

Bem quando eu voltava Gabriel entrou. E Rafael me tomava a boca querendo


que eu fosse de novo, sem nem me deixar pousar, brincando com meus mamilos
e o jeito como eu fico mole depois que chego uma vez.

— Tô achando que essa sua indecisão é crônica. – Lá estava meu Rafael


falante, que só fala para envergar e quando sabe que palavra é tiro – Não
consegue escolher namorado, não consegue escolher curso…

— Eu sei bem o que eu quero, Páreo Duro. – Com Gabriel estocando com
força, me agarrando pela cintura, Rafael só queria que eu respondesse para
perceber que eu esqueço como fazê-lo.

— Sabe? – Lambendo meu pescoço, guiando minha atenção, ele desceu a


mão para o clitóris.

— Por que se contentar com um, quando você pode ter tudo? – Gabriel
sorriu encostando o corpo pelado no meu, todo vermelho de amor e colapso, me
olhando fundo nos olhos e mordendo o lábio – Esqueça eles, não escolha.

— É, Amor. Fique com os dois.

Eu amo esse olhar. Metade de um sorriso e o desejo pintado nos olhos. Se


Rafael só tivesse rosto, se não fosse inteiro lindo, inteiro grande, inteiro alto, só
esse sorriso e esse olhar me bastava. Nunca vi igual. Parece que ele sabe o que
você está pensando e parece que ele quer exatamente a mesma coisa que você.

Capítulo Vinte e Dois

Amanhecia. Rafael não te come, ele te consome. Se ninguém fala para ele que
já deu, ele atravessa uma semana sem olhar agenda. Felicidade sempre o pintou
melhor.

E Gabriel, entre Rafael e eu, dormia tão calmo e tranquilo, que ninguém
queria nem se mexer para acordá-lo. Deitados assim, com Gabriel respirando
fundo e protegido, eu sonhava com o dia em que isso seria rotina. Quando a
gente teria a nossa própria cama sem ser em quarto de bar, nem escondidos.

Essa imagem, de nós três deitados numa cama que fosse nossa, num quarto
que fosse nosso, com nossas coisas e sem dar satisfação de onde iríamos, ou com
quem, sempre teve um gosto amargo. Ali, fazendo cafuné num Gabriel
dormente, eu pensei no que ainda teríamos pela frente. Tudo bem mentir para a
nossa família na fase do colégio, pensei, nem a gente sabia se esse esquema de
três duraria tanto assim, mas não estava nada bem mentir na primeira fase adulta,
e ainda mais para pais que nos querem tão bem.

— Sua mãe fez o convite oficial – Rafael cortou meu fluxo de pensamento e
eu demorei um pouco para entender do que ele falava – Sobre ir trabalhar com
ela.

— Segunda-feira você começa? – Seria um sonho trabalhar com ele todo dia,
mas seria também um pesadelo.

— Não, ainda não dá.

— Por quê? O que foi?

— Eu quero, Manu, mas as minhas condições não permitem.

— A mãe ofereceu um salário baixo?


— Para um calouro que nem começou curso o salário é bom, mas não é isso.

— Então…

— Eu vou precisar de um ano para arrumar a loja da minha mãe do jeito que
queremos até eu conseguir pegar um emprego na área que eu quero.

— Ai, Rafa…

— Eu não vou ficar feliz se crescer e ela não vier comigo. A minha mãe
costura melhor que muito estilista e muito profissional renomado. Ela sabe disso,
as clientes dela sabem disso, é por isso que nunca precisou colocar placa lá na
frente, nem nada. Tudo indicação.

— E os vestidos da sua mãe são maravilhosos.

— Eu sei. – Ele morre de orgulho da mãe dele e eu acho isso a coisa mais
linda – E eu quero que a ela seja reconhecida pela qualidade. Tô aproveitando
essa férias entre escola e faculdade, fiz um curso básico de e-commerce pela
internet, tô estudando abrir uma loja online e pelo que tô vendo, se as coisas
correrem como previsto, no final do ano a gente consegue contratar alguém para
cuidar das entregas e das embalagens.

— E daí você consegue crescer por si, sabendo que sua mãe tá crescendo
também.

— Fiz as contas: se a gente começar a frequentar feira de artesanato e bazar


todo fim de semana, sobra para a mãe fazer faculdade também.

— Mentira?!

— Ela nunca pensou nisso, mas ver o sorriso dela para mim hoje, o jeito que
ela ficou de me ver entrar na USP, me deu vontade de fazer isso por ela também,
então… não vou poder trabalhar para a sua mãe até que a minha esteja
encaminhada também.

— O que eu posso fazer para ajudar?

— Daqui um ano, quando as coisas estiverem melhor, diz para a sua mãe que
eu quero erguer ponte com ela.
— Não, Rafa. – Corrigi – Eu quero te ajudar a encaminhar a Tia Lúcia
também.

— Eu também quero. – Acordou o dorminhoco.

— A gente tá falando muito alto? Desculpa te acordar, Gabi.

— Não, tudo bem. – Ajeitou-se na cama para poder olhar tanto para mim,
quanto para o Rafa – Acordei na hora certinha para ouvir sobre a Tia.

— É? – Com um beijo na testa dele, Rafael sorriu com ternura – E o que


você acha? Será que eu tô louco de recusar trabalhar com a Tia Fernanda?

— Eu acho que você está certo.

— …mesmo porque não é um trabalho numa multinacional onde você é um


número e como você tem quinhentos iguais – Interrompi – É a minha mãe. E se
você falar que não vai aceitar o trabalho agora porque primeiro quer pôr sua mãe
na faculdade, é capaz da minha mãe chorar.

Eu a conheço. E só ela saberia dar o valor que isso merece. Por isso, quando
amanheceu e nós tivemos que pôr roupa e sair do quarto, nos sentamos numa
balcão de padaria e Rafael desenhou seu projeto num guardanapo.

Gabriel tinha mais experiência com negócios porque o pai dele, dono de
oficina mecânica que só cuida de carros importados, não sabe falar de outra
coisa, então Gabriel entendia uma ou duas coisas de tanto que ouve falar.

E eu não sabia nada de empreendimentos porque o único que sabe sobre isso
eu nunca dei os devidos ouvidos: meu pai.

— A ideia é que ela ponha as próprias criações para vender. Manja? Porque
ela inventa muita coisa, mas se uma cliente se interessa, ela não cobra a mais por
ser uma peça exclusiva, ela vende como se fosse mais uma encomenda.

— Tá, – Gabriel deu mais um gole em seu chocolate gelado – e o que você
precisa para começar?

— Convencê-la.
— Ela tem estoque? Quanto tempo ela leva para fazer um vestido? Dá para
inscrever a sua mãe em muita feira alternativa e coletivo artesanal, mas ela
precisa de um catálogo. E para isso a gente precisa que ela tenha algumas
criações. E fotos. Manu, – Gabriel se virou para mim – você serviria de modelo
para a tia?

— Óbvio.

— Tá, então você tem que convencer a sua mãe, Rafa.

Em coisa de uma semana, bem quando as aulas começaram e nós éramos


calouros ansiosos e nervosos, Rafael me mostrou fotos de três manequins de
vestidos e blazers no quintal.

— Ela disse que esses são para o catálogo. – Sorria. Ver a empolgação e
vitória na cara do Rafa, no meio da aula de Física Geral, era tudo o que eu
precisava para pedir ajuda do meu pai.

Engraçado, porque Gabriel e eu tivemos a mesma ideia sem nos conversar.


Ele pediu ajuda para o pai dele, e eu para o meu. Contei para ele o que Rafael
queria fazer pela mãe, mostrei as fotos dos vestidos nos manequins, e meu pai só
sabia sorrir.

— Manuela, – conselho de pai eu levo duas vezes mais em conta – casa com
esse moleque. Eu sei que Gabriel é bonitinho, mas é esse que eu quero de genro.

— Pai… – Ri porque não tinha mais nem onde enfiar a cara. – Eu tô falando
sério!

— Filhota, também tô. Um cara que ergue a mãe e que a põe como
prioridade é tudo o que eu quero como genro.

— Eu não vou casar.

— Tá certo, Monstrinha. – Mas o sonho do meu pai é me ver casada do jeito


como ele quer que meus irmãos sejam. – Mas pensa com carinho, tá?

— Tá, vou pensar. Mas o que a gente pode fazer para ajudar o Rafa?

— Quanto você tá pensando, em termos de dinheiro? Você quer fazer parte


disso, eu entendi, mas como você quer fazer parte? Quer parte da sociedade
deles, nos gastos e nos lucros, quer só colocar a mão na massa, quer só ser
modelo deles… e aí? O que você quer fazer?

Foi a primeira vez que ouvi sobre investidor-anjo. Pedi um empréstimo para
o pai e a autorização para usar o restaurante dele como cenário para fotos. Em
duas semanas eu posava, na frente do bar que meu pai montou antes mesmo de
eu nascer, com um vestido preto, brilhante, longo, e rendado.

Não era só um vestido, era o vestido. Feito para o meu corpo, com as minhas
medidas e que ficou perfeito com meu cabelo colorido, a luz âmbar do
restaurante, e as minhas tatuagens.

Parecia que a Tia tinha pensado em mim quando criou seu catálogo. Gabriel
contratou um fotógrafo profissional e alugou tanto o coitado do moço, querendo
saber como tira foto, como faz para a luz ficar perfeita, que, se fosse eu, já tinha
me demitido.

No final do mês pegamos o álbum no estúdio do fotógrafo e fomos para um


bar só para ter a sensação de abrirmos juntos e ver como ficou. Aquela menina
de vestido rendado na frente do bar parecia tudo, menos eu. Parecia um
mulherão autoritário que quebra tudo, feito revista de moda, menos eu, a
mocinha com medo de contar para os pais que é incapaz de se decidir entre um
menino e outro.

— Manuéééééééla de Deus… – Gabriel falou primeiro.

Fiquei sem reação porque até eu fiquei com tesão em mim. Não dá para
esquecer uma mulher como a do catálogo. Não dá para fingir que não me viu,
nem me disfarçar atrás do corpo de outras pessoas. Era eu, autenticamente eu.
Meu cabelo que não aguenta mais a troca de cor, minhas tatuagens históricas
feitas com meu irmão, o rosto que eu levo como um estandarte porque é igual ao
da minha mãe, numa versão misturada ao amor do meu pai.

Sem falsa modéstia, eu vou te falar, eu estava uma deusa. Era a melhor
explicação. Gabriel contava o quando o HDR fez diferença, porque parecia que
eu pulava para fora da foto, mas eu não estava nem aí. Eu curtia mesmo é que
aquela mulher da foto podia ser eu e eu queria ser como ela.

Gabriel e eu pedimos dinheiro emprestado, com a promessa de pagamento, e


investimos tudo na Tia. Com o catálogo pronto, uma seleção de cinquenta fotos
com quinze roupas diferentes, tudo combinado e pensado pela Tia, a gente abriu
uma conta no Instagram e impulsionou para que as pessoas conhecessem a
marca. Inventamos uma data qualquer de lançamento do site, depois da P1, a
primeira prova da faculdade, e depois da primeira feira na Benedito Calixto.

Benedito Calixto é tipo a praça das feiras. Lá tem feira de rua que você tem
que pagar para expor, mas que é frequentada por gente influente no Instagram.
Com duas mesinhas de bar, desmontáveis, uma arara desmontável e luzes
piscantes, o catálogo da Tia estava lá, esperando o que viesse.

Para uma primeira feira foi bom, mas longe do ideal dos nossos sonhos.
Algumas pessoas se interessaram, compraram, pediram nosso cartão, Dona
Lúcia tortinha de vergonha porque achava que tinha posto um preço muito alto,
só se acalmou quando viu uma dupla de amigas comentar que o preço era bom e
só não levaram porque a gente não tinha máquina de cartão.

Coisas que fomos aprendendo com o tempo.

Para lançar o site tivemos que refazer as fotos porque para a loja online,
Rafael disse, as fotos tinham que ser o mais neutras possíveis. Naquela altura, o
catálogo já tinha aumentado para vinte e cinco peças. As clientes antigas viam as
novas peças e ficavam interessadas, queriam saber quanto era, quando poderiam
ter e se eram modelos exclusivos.

Em três meses, isso já era quase julho, tivemos que terceirizar o trabalho de
costureira, então, muito esperta e acostumada com o ofício, a Tia mandava o
projeto básico do vestido para que outras costurassem, e só fazia os detalhes,
customizações e acabamentos.

O que cortou o trabalho dela em sessenta por cento e, com o tempo extra, ela
teve tempo de criar mais vinte e cinco peças, mas nenhuma lançada no site.

Paguei o empréstimo do pai na altura de setembro, comecei a ver algum


retorno em outubro, e alugamos um galpão, para tirar o trabalho da casa do Rafa,
na virada do ano. E Dona Lúcia começou sua Faculdade de Moda e Design, na
faculdade que queria, não a que podia pagar, em fevereiro.

Àquela altura, o Lipe já tinha saído de casa porque a mulher de seus sonhos
já tinha voltado ao Brasil, mas o Guto ainda estava fora. Meus pais enfrentavam
uma síndrome do Ninho vazio fodida porque eu era a única que vivia debaixo do
teto deles, mas usava mais de dormitório que de casa.

Mas, ao mesmo tempo, eu construía para mim alguém que eu queria ser
quando crescesse. Você olhava para o Rafa e ele era a personificação da
empolgação. Em público e nas aulas ele ainda era o garoto calado e isso nunca
vai mudar, mas, com a gente, Rafael só sabia sorrir e falar. Ganhava toda uma
cor porque via a mãe dele, antes de vestido florido de tecido barato e abaixo do
joelho, coque apertado e rosto sempre preocupado, ousar colocar um decotão
aberto, soltar os cabelos e passar um batom.

E a mulher era linda. Miúda, sempre foi pequenininha, mas de batom e um


belo de um salto, Dona Lúcia era um mulherão também. O Gabi fez um segundo
ensaio pouco antes de trocarmos o QG da Resist da casa do Rafa para o galpão,
não comigo, mas com ela.

(É assim que a nossa marca chama – Resist!)

Você precisa ver o quanto essa mulher cresce na frente de uma câmera.
Sentada numa cadeira vermelha, num salão de festas que alugamos para o
ensaio, usando o próprio blazer jogado em cima de um vestido, também criação
sua, ela parecia Rainha dos Dragões, a mulher que manda em tudo, a própria
Diretora da Vogue.

Pelos olhos de Rafael, apaixonado na mãe de um jeito muito lindo, ela


sempre foi tudo isso.

Só que para esse segundo ensaio, quando pegamos o álbum no estúdio, nós
não o abrimos em qualquer bar. Nós esperamos um almoço de domingo que
Dona Lúcia ofereceu para o Gabi e eu, com direito a lasanha e coca-cola do jeito
que o Rafa ama porque ele fala que é comida de Natal, e só aí mostramos a
surpresa.

O almoço foi premeditado por ela, na mesa de sua cozinha que ainda tinha
crochê em tudo, o Esporte Espetacular terminando na televisão da sala, e todos
nós com tanta comida na boca, que parecia que não comíamos há dias.

Então ela soltou a máxima que quase me fez cuspir tudo:

— Quando é que vão tomar vergonha na cara e me contar que estão


namorando?

Rafael engoliu o risinho satírico que, na hora, eu não entendi. Como ele
podia rir?! Gabriel cavava um buraco debaixo da mesa, e eu estava que não me
aguentava de vergonha. Olhei de um para o outro, Gabriel vermelho e sem jeito,
e Rafael evitando me olhar.

— Tão independente, menina, tão forte, e fica escondendo uma coisa que tá
na cara de todo mundo há anos. – A bronca era em mim e, sem conseguir engolir
a massa que até então estava muito saborosa, perdi o rebolado.

— Mãe, – Rafael advertiu e eu não vi o sorriso na cara dele porque estava


preocupada demais em esconder o meu choro – pega leve.

— Tia, – ela era como uma segunda mãe para mim. Era como uma segunda
mãe para o Gabi também porque nós doávamos todo o tempo livre que tínhamos
para erguê-la alto o suficiente para que o Rafa pudesse ser quem ele quisesse –
se a senhora quiser que eu vá embora, eu vou.

— Eu sei que meu Rafa ama vocês dois há mais tempo do que vocês sabem.
– Continuou – E me sinto desrespeitada quando os três escondem de mim que
são um casal. Só não sabe quem não presta atenção, porque os três mudam a
postura quando estão juntos, e eu sou velha o suficiente para perceber quando é
amor.

— Tia… – Gabriel nem sabia o que falar.

— Eu nunca fui uma mulher fraca. Eu fui forte o suficiente para criar um
menino para ser feliz. Por favor, assumam que ele o é. Não fiquem escondendo
dos outros uma felicidade que é visível.

— A gente não queria esconder – Engoli o que tinha na boca por falta de
opção melhor, mas não tinha nada bom para dizer.

— Vocês dois entraram na nossa vida e mudaram tudo. É necessário de uma


boa dose de privilégios para elevar uma costureira muito boa ao patamar da Alta
Costura e eu não preciso explicar isso a vocês, mas é preciso muito mais que
isso para erguerem a mãe de um namorado. Vocês dois chegaram aqui moleques
de tudo, Rafael nunca teve coisas caras, nem tênis da moda. Vocês dois vieram
de realidades muito diferentes e eu fiquei com vergonha da minha casa, do meu
modo de vida, e do que serviria para vocês comerem.

— Isso nunca foi importante, tia.

— Eu sei, Gabi, mas nem todo mundo pensa assim. O dia em que ele
conheceu vocês, Rafael cantarolou até a hora de dormir. Vocês já viram Rafael
cantando?

— Nem vão.

— Ai, filho, não fala assim. – Ela sorriu, pegando na mão dele – E naquele
dia eu soube que tudo ficaria bem. Rafael fazia amigos na escola nova, amigos
por quem ele já brigou, se formou com eles e passou na faculdade. Quando Dona
Fernanda disse que meu filho tá encaminhado, quis falar que a filha dela ainda
não estava, mas fiquei quieta. Todas as mães sabem. Gabriel passou na faculdade
por sua causa, e se Rafael sorri e fala com os outros em público, é por você. Eu
não sei como são as coisas na sua casa, mas tenho a impressão de que você daria
o sangue por qualquer um deles e olha o que você é capaz de fazer por mim,
menina!

— Tia…

— Então… como sua mãe postiça, eu não posso te deixar sair daqui sem te
agradecer por tudo, mas também te dar um puxão de orelha: Você é forte e ergue
qualquer um. Você é mais forte do que eu fui na sua idade, a sua decisão é sua,
ninguém a tira de você. Você sabe o quanto pode ser julgada pelas escolhas que
faz, mas se alguém é capaz de lidar com isso, tem que ser você. Não fica se
escondendo atrás dos outros, Princesa, assuma os riscos.

Capítulo Vinte e Três

Depois do almoço fomos para o galpão da Resist embalar os pedidos a ser


despachados na segunda-feira, mas o gosto de não ter que se esconder tinha
mudado tudo. A Tia falou sobre assumir os riscos e isso ecoou na minha cabeça
por meses.

Meu itinerário era uma correria louca revezada entre a faculdade, a


consultoria da mãe, e os cuidados com a marca da Tia. Sábado e domingo eram
os dias que Gabriel e eu íamos para o galpão e ajudávamos como podíamos, mas
o grosso do serviço sempre foi do Rafa.

O ano já tinha virado, mas Rafael estava longe de conseguir largar a empresa
da mãe para ser estagiário com a minha. O fluxo de serviço era intenso demais,
mesmo com um chefe de expedição (é esse o nome da pessoa que embala
pedidos, envia pelos correios ou transportadora, e repassa o código de rastreio) e
uma secretária.

Vivi para ver Rafael vestir camisa para negociar preço de tecidos com
fornecedor, oferecer café para blogueiras convidadas pelo Gabriel para
conhecerem a sede da Resist, e ajudei Gabriel iniciar uma Iniciação Científica
sobre Mobilidade Urbana.

E também comprei logo umas dez revistas quando um vestido da Tia


apareceu no corpo de uma atriz famosa.

A gente não era grande, pelo contrário, nunca viraríamos uma manufatura de
fast-fashion para o consumo em cadeia. Nem podíamos. A Tia ainda costurava,
pedrinha por pedrinha, em cada um dos vestidos, e isso levava muito tempo. A
gente pagava para algum blogueiro famoso colocar a nossa roupa em alguma
festa, para esgotar as cem peças do modelo nas primeiras horas de lançamento na
semana seguinte.
Todo o modelo de negócios baseado na escassez funcionava. Apenas cem
exemplares de uma peça, essa era a proposta. Três meses divulgando um vestido,
ou uma saia, ou qualquer coisa que fosse, para esgotar em três horas. O Rafa
ficava louco e nunca se conformou no como a mãe dele vendia a preços altos
coisas que dois anos atrás as clientes pechinchavam ao máximo.

Tudo porque Gabriel e eu injetamos dinheiro e compramos a ideia do modelo


de negócios do Rafa, escrito em um guardanapo de papel.

Foi mais ou menos nessa época, pouco antes do aniversário do Lipe, que eu
tomei vergonha na cara e fui apresentar a marca da Tia (e minha também) para a
única mulher que faz a minha perna bambear.

E ela atendia por Andressa, a mulher que fez meu Lipe perder a cor e a
devolveu assim que voltou.

Eu já tinha pisado no Jockey de São Paulo, a nova casa do meu irmão. Sabia
que a mulher agora tinha dinheiro, que ela e a irmã racharam de vender sexo
entre cavalos, mas senão por algum almoço em família e obrigação formal, eu
nunca mais trombei com ela.

Usando um vestido lindo da nova coleção da tia, entrei com duas sacolas na
mão pelo portão vigiado por dois guardas, e atravessei o gramado cortado e
devidamente umedecido.

A casa que ajudei o Lipe a construir para si e para a dele está linda. O Sol
bate e resplandece. Parece uma casa comum, mas não é. O andar de cima tem
um quarto-cápsula blindado do mundo por uma camada de óleo, recanto para os
dois, onde ninguém entra sem ser por senha, e de onde não se escuta nada.

Entrei depois que ouvi um “Pode entrar, a porta tá aberta!” e só vi Andressa


sentada à mesa da cozinha com o celular no viva-voz e as mãos atacando o
teclado do computador porque sua sede, do outro lado do Jockey, ainda não tinha
ficado pronta.

— Um segundo, Monstra. – Ela estendeu um dedo para mim, resolvendo


alguma coisa em inglês, e eu esperei até que ela desligasse a ligação, baixasse a
tampa do computador e se levantasse para me receber com braços de amor e
algum carinho.
— Tá tão grande… – Falava como se fosse minha mãe – Ainda não
acostumo.

— E você tá linda. – Linda era pouco. Você olha uma vez para essa mulher e
vê exatamente o que meu irmão viu para ficar tão vidrado.

— O que te traz aqui, Manu? Posso ajudar em alguma coisa?

— Vaca, – quero dizer – Dê, eu… vim te trazer uma coisinha da marca da
minha Tia.

— Pode me chamar de Vaca Megera, não ligo. – E sorriu colocando água


para esquentar numa chaleira – Você toma café?

— Com um pouco de açúcar eu tomo qualquer coisa. – Dei uma das sacolas
de papel com a nossa marca estampada para ela e esperei que abrisse – É a tia
quem faz, esse eu pedi que ela fizesse especialmente para você, e espero que
sirva.

— Ok, vamos lá para cima.

Deixou o café para fazer outra hora, e me conduziu para o próprio quarto, o
cômodo mais lindo da casa. Entrei e evitei olhar muito porque conheço meu
irmão e sei que ele é doido. Consegui evitar olhar a cama, mas não deixei de ver
o belo gancho vazio no canto do quarto. Lipinho finalmente comprou a maldita
cadeira de trepar.

Ri escondido e ela me levou para o Closet. Sabe aqueles espaços dos filmes
onde a mulher tem um monte de arara instalada na parede, uma penteadeira
cheia de maquiagem, e ainda um banquinho no meio para calçar sapatos? O
Closet dela.

E o meu quarto é o mesmo cubículo com banheiro desde que eu nasci. E é na


casa dos meus pais.

Ela puxou o conteúdo da sacola e acarinhou o tecido com algum prazer. Essa
mulher entende de roupas, com certeza. Analisou o vinco da gola do blazer, o
corte, a costura. E só aí vestiu.

— O Lipe te contou as minhas medidas?


— Ele roubou um blazer que você ama e a tia tirou as medidas.

— Roubou.

— Dê, nem briga com ele. – Confessei – Eu chantageei ele para conseguir
isso.

— Posso saber com o quê?

— Não, né. – Que daí essa mulher também usa a minha arma secreta e eu
fico sem nenhuma.

Mas se você quiser saber, eu conto: só pedi fazendo muito beicinho. E daí eu
falei “poxa, vai negar isso para a sua melhor amiga?”.

Funciona que é uma beleza. E nem é chantagem.

— É lindo… – Andressa deu seu veredito.

— Você usaria?

— Claro que sim! Quanto eu devo?

— Andressa, só de você sair com esse blazer de casa, para qualquer festa ou
evento que seja, já garante a nossa estreia no mercado de luxo.

— É isso o que você quer, Manu?

— É muito o que eu quero, Megera.

— Tudo bem, considere feito.

— Tem um vestido branco para a sua irmã, também. Caso ela queira.

— Daqui a pouco ela está aí. Quer almoçar com a gente?

— Eu tenho que ir para o escritório ainda, Dê. Não sei se vai dar tempo.

Tinha que dar. A mulher vestiria meu blazer, não é assim que se agradece
uma cunhada ricaça que te faz um favor. Aceitei, a ajudei a tirar a roupa, e avisei
que só ela e a minha mãe mexeram na peça, então não precisava outra lavagem.
Descemos e mal deu tempo de fazer o café que ela tinha deixado por fazer na
chaleira. Andamos, ela naqueles saltos imensos e vestido colado, pelo gramado
do forte construído para o conjunto habitacional de três casas, e fomos até o
restaurante principal do Jockey.

A Bia parecia outra mulher. Mais triste. Mais acabada. O cabelo


desgrenhado, a pele judiada, olheiras enormes ao redor dos olhos. Perdia o
frescor da juventude da pior forma. Amarga, ela chegava e todo mundo baixava
as orelhas. Silenciosa, era como se cuspisse fogo o tempo inteiro.

— Ô, meu Amor… – Me deu um abração saudoso – Como você tá? Tá bem?


Tá bonitona!

— Tô bem, Bia, vai tudo nos conformes.

— Manuzinha trouxe um vestido para você, Bia – Andressa sorriu puxando a


cadeira do seu lado da mesa para a irmã – É branco e parece muito lindo.

— Agradeço, mas recuso.

— Bia, você nem viu!

— Dê, e precisa? – Apontou para as próprias vestes surradas, de jeans de dez


anos atrás e camisa aos trapos – O que eu tenho tá bom demais da conta, sô.

— É, mas nunca se sabe o dia de amanhã, – Cortei, puxando a cadeira do


outro lado da mesa e sem jeito por me sentar na mesa das presidentes do Jockey
Clube – Vai que aparece um compromisso?

— Se você quer que eu tenha, Manu, então guardo com muito carinho. Mas
saiba que eu não vou usar.

— É, Bia, – logo se vê que a Dê está louca para ver a irmã namorando


alguém – vai que aparece seu príncipe encantado, não é?

Demorou pouco para que elas perguntassem sobre o meu príncipe encantado.

— Príncipe encantado tenho – É mais fácil ser honesta com quem a gente
não conhece, do que com quem conhece. – Mas não me contentei só com um.
— Essa é a minha garota.

— Mas me diz de você, – A Dê acenou para a sua cozinheira, longe de onde


estávamos – o que tem feito de bom?

Dei um panorama geral da minha vida. Contei da faculdade, sobre a


consultoria com o Lipe e a mãe, sobre a marca, o quando ela era importante
porque a Tia Lúcia entendia que era um mulherão maior do que previa, contei do
Rafa e do Gabi, mas sem revelar que eles são os meus príncipes. Elas
perguntaram sobre as minhas tatuagens e eu contei que foi um passatempo meu e
do Lipe, que tinha significado para nós porque foi assim que consegui fazê-lo se
empolgar com algo depois que largou o emprego formal para se aventurar como
freelancer com a mãe, e deixei meu cabelo para lá. Elas não precisavam saber
que eu pintei para ter coragem de ser o que eu sempre fui.

— Então, – A Bia tirou o chapéu assim que a comida foi servida e eu fiquei
feliz em perceber que era comida normal, arroz com feijão, e não comida chique
de quem come só um pouquinho para ficar com fome daqui a pouco – deixa eu
ver se entendi: você doou seu cérebro para a sua mãe e seu irmão, seu corpo e
suas mãos para a marca da mãe do seu amigo, a pele para o Lipe, e tudo o que
você sabe para o seu amigo fazer Iniciação Científica. Inspirador, Gatinha, mas
onde está seu coração?

— Um pouco por todo lugar para onde eu vou.

— Lindo. – E me acertou com um golpe final – E qual parte do seu coração


fica com você?

— Manuela, não tá certo você viver pelos outros, não. – Andressa


concordava com a irmã e, na hora, eu nem sabia o que dizer – Porque essa IC do
seu amigo também devia ser sua. E espero que você esteja tirando algum
dinheiro da marca da mãe do outro amigo, porque depois que eu vestir esse
blazer, você sabe que as vendas dela vão subir, não sabe?

— Foi para isso que eu vim aqui, Megera.

— E sua mãe… tá te pagando o valor de estagiária, ou de projetista?

Os mesmos trezentos reais de quando eu tinha quinze anos.


— Não nos entenda mal, – Bianca voltou para me provocar e feria onde eu
nem percebia que sangrava – já estivemos nos seus sapatos. O progresso dos
outros também é o seu, e a fundação do amor é a doação. Entendo isso como
ninguém e quase perdi esse Jockey para aprender. Só que…

Andressa tem essa voz calma e esse jeitinho de princesa, mas é um demônio
bem disfarçado.

— Se todo mundo for embora amanhã, o que de fato é seu?



Capítulo Vinte e Quatro

Andressa vestiu o blazer por cima de um vestido lindo todo azul na primeira
coletiva de imprensa depois daquele almoço. A temporada de Turfe começou na
Europa e seu cavaleiro patrocinado ganhava a pole position com o cavalo puro
sangue Joaquim. Até o jornal de esporte do meio dia, que só fala de Futebol, foi
para a coletiva dela e falava maravilhas.

Nosso produto ficou na televisão por um bom tempo, e isso nos rendeu muita
visita no site na primeira semana. Pelo Google a gente via a quantidade de
pesquisas relacionadas aumentando. Um blog sobre roupas plus size comentou
sobre as roupas da Dê, os Instagrams começaram a nos marcar e já subíamos o
preço em quinhentos reais pelo blazer que seria lançado só dali três meses.

Progredíamos. Sonhávamos em abrir nossa primeira loja física, em qual


shopping de rico, em qual rua. O Rafa sonhava com a Oscar Freire, do lado de
revendedores da Gucci e da Channel, mas ainda tínhamos muito arroz com
feijão para comer antes de chegarmos lá.

Por outro lado, com o acúmulo de funções, minhas notas minguavam. Quer
dizer, eu passava, mas não era mais referência dos professores. Em faculdade,
professor percebe logo qual aluno é bom, qual aluno não. Uma professora de
Tecnologia dos Materiais me entregou meu cinco passável, mas bem sem graça,
me olhando no olho. Sabia quem era a minha mãe, meu histórico de notas, e
aquela era uma bronca subjetiva e doída.

Eu sabia que fazia coisas demais, mas o que eu podia fazer? Eu já tinha o
benefício do meio-período na consultoria da minha mãe, já não cuidava da
marca da Tia como antes, e nem via meus meninos com a mesma frequência. As
nossas aulas não eram sempre no mesmo período, os interesses por classes
optativas do Rafa e as minhas não eram os mesmos, e a gente tinha muita
matéria para estudar.
Um dia, quando lançamos o blazer da Dê (tinha um nome original e
inspirado na conquista das mulheres, mas, entre a gente, o apelido era esse –
Blazer da Dê), perguntei ao Rafa quando ele vai largar a loja da mãe para se
dedicar ao estágio com a minha, e ele sorriu feliz quando se tocou que já era
possível viver sua própria vida porque sua mãe também estava encaminhada.

A questão é que eu não conseguiria levar o Rafa para trabalhar na minha


mãe, viver com ele o dia inteiro, e fingir que não o amo. Quase dois anos de
faculdade, liberdade pelo campus para ser três, liberdade para ser três na casa da
Tia Lu, liberdade no galpão.

Seria muito difícil voltar a fingir todo dia e, pela minha idade, pela idade
deles, em respeito a nós mesmos, era muito injusto mentir para a minha família e
debaixo do teto do ganha-pão dela.

Então resolvemos esperar o Guto voltar, de onde quer que estivesse, para
abrir o jogo para a minha família.

O único problema é que a volta dele foi turbulenta. O chamado do coração


dele, que o fez sair de casa e atravessar o país, foi uma menininha recém-nascida
e isso inibiu a minha saída do armário.

Por mais um ano nós nos contivemos. Poderíamos ter nos assumido antes,
mas não conseguíamos. O Guto foi morar com o Lipe, nunca mais voltou para a
casa dos meus pais e os deixou numa síndrome do ninho vazio e carências que
eu não era capaz de suprir sozinha.

Ainda mais, porque na casa do Lipe, as coisas não iam muito bem. Andressa
estava grávida e estressada aos limites com um desvio de verba na Matriz de sua
empresa em Portugal. Bianca, a irmã de Andressa, estava toda preocupada em
revitalizar o Jockey que compraram para voltarem ao Brasil com sua frota de
cavalos ultra-rápidos e ultra premiados.

Então fomos atrasando a novidade. Rafael preferiria assim, e eu também.


Gabriel achava que nós nunca encontraríamos um momento perfeito para contar
a nossos pais, porque sempre haveria alguma coisa nos impedindo, mas eu
precisava ter certeza que, pelo menos, as coisas estavam estáveis antes de jogar
uma bomba na minha família.

Com isso, fui testando e comendo pelas beiradas. Cada vez que via meus
irmãos e ia até a casa deles, eu sentia os ares. Se estavam bem, soltava uma
pérola. Deixava no ar.

Até o dia em que estávamos só o Guto e eu na cozinha do Lipe e revelei que


estava namorando.

Quer dizer, não é nenhuma surpresa que sua irmão mais nova estivesse
namorando. Com quase vinte anos, era bom que eu estivesse com alguém. Nem
que só dando uns beijos, poxa vida, alguma hora isso iria acontecer.

— Rafael ou Gabriel? – Ele sabia que só podia ser um dos dois.

— Por que é que tem que ter ou? – E isso era uma Manuela testando seu
irmão.

Lipinho chegou bem nessa hora. Não precisei explicar nada e tomei um olhar
confuso, ameaçador e esquisito. Só não continuamos no mesmo tema porque o
Lipe voltava de viagem de Portugal, quase uma viagem de resgate, e pelo jeito
como ele parecia perdido e preocupado na mesma proporção, sabíamos que ele
precisava da gente.

Conversa vai, conversa vem, colocamos a vida na mesa, e, entre comida


congelada e bife fritando, espalhei a novidade.

— Tô catando os dois. – Pior que fiz parecer que era uma coisa ocasional.
Catando era bem diferente do nosso relacionamento de quase cinco anos.

Nem o Lipe, nem o Guto, gostaram. O Lipe pegou a conversa pela metade,
mas o Guto entendeu todo o contexto e odiou.

— Vocês nunca me enganaram. – O Lipe não ria e ele demorou pouco para
entender quais dois que eu me referia.

— Não dá para apoiar um troço desses – E o Guto deixava o ódio bem claro.

Pelo meu olhar, o meu silêncio, meu jeito de olhar o chão, o Lipe entendeu
tudo. Até minhas tatuagens de triângulo, nossas conversas sobre putaria, minhas
brincadeiras e comentários ridículos. Mais do que mentir, eu omitia.

E me olhando daquele jeitão que ele herdava do pai, ele entendeu tudo e não
precisou que eu esfregasse o coração na mesa, me debulhando toda de chorar.

— Você é que não pode deixar de apoiar porque, quando a mãe souber, essa
daqui vai estar tão fodida, que a gente vai ter que fingir que apoia.

— Fingir, Lipe? – Eu pensei que ele apoiasse!

— Tem dois caras comendo a minha irmã, cê vai ter que me dar um tempão
para assimilar isso.

Todo mundo, quando fica sabendo, acha o mesmo: que eu dou o cu para um,
a xoxota para outro. E não adianta eu falar que não é bem assim, mas que pode
vir a ser, todo mundo acha que é assim que a gente transa. Vi o Lipe trocar a
minha cerveja quente por uma gelada, mas não disse nada porque não pude.

— Não chora. – O Guto mandou.

— Não tô chorando!

— Não chora. Porque se é isso o que você quer, se está segura com isso,
então você não se magoa. – Era claro o desgosto do Guto, mas ele sempre tem
algo a me ensinar, mesmo quando não concorda com a minha postura – Você
impõe.

— Vocês são os primeiros a saber.

Os assuntos fluíam e eu fui para casa, bastante tempo depois, me sentindo


um lixo por ter escondido cinco anos de namoro dos meus melhores amigos, e
por ter falado que estou “catando” como se fosse sem compromisso, os dois
grandes amores da minha vida.
◆◆◆

Para contar para os meus pais levei mais tempo. Eu tinha a ideia de esperar o
melhor momento, mas nunca houve um. Não éramos mais crianças e, quando
percebi que a família inteira se reuniria para mais uma festa na piscina no Lipe,
porque Bianca voltaria ao Brasil depois de não sei quantos meses dando voltas
no mundo com seu cavalo ruim, percebi que era a hora.
— Você tem que entender que vai dar merda – O Guto me advertiu quando
contei que planejava contar para meus pais.

— … deixa o pai ver a princesinha dele com dois caras para você ver.

O único jeito de ver meus irmãos é se eu fosse até a casa deles. Aos poucos,
o Guto se situava no mundo e deixava o Lipe viver sua vida. Assumiu a
administração do Jockey e foi para a terceira casa do condomínio de três casas
onde o Lipe morava. Agora assumia sua própria residência, tinha um emprego
bom, e se virava para cuidar de sua pequena.

Com uma vida cheia, eu não me importava de ir vê-los sempre. Naquela


noite a gente bebia na soleira da porta, o Guto sentado, o Lipe também, mas eu
andando em círculos, fritando de nervosa.

— O jeito é você aceitar que vai levar chumbo e manter a opinião firme.
Quer os dois, tá feliz assim? Então você não abaixa a cabeça, você fala e espera
o chumbo.

— É, Manu – O Lipe completou – se você pedir desculpa por estar com


quem você quer, vai parecer que está errada.

— E você tá errada?

Não, claro que não. Mas a sensação era de que eu estava. Errada por ter
mentido, errada por ter escondido, errada por namorar com dois ao mesmo
tempo, errada por ter feito minha mãe de otária tantas vezes.

Errada. Fui dormir com um gosto muito amargo, sabendo que um dia isso
teria fim e sabendo que era melhor assim do que mentir o resto da minha vida
para a família que tanto me ama e tanto me apoia.

Pensando assim foi que peguei carona com os meus pais para a casa do Lipe
e não falei um pio enquanto o Rafa e o Gabi não chegassem para o almoço nas
Botelho.

Meus dois mandaram mensagem quando chegaram na portaria e eu fui


buscá-los com o Lipe. Morri de vergonha de dar um beijinho em cada um,
mesmo com o meu irmão sabendo, e só os abracei. Murchinha de tudo, fomos
para a piscina, passando por dentro da casa da Dê, e não sem antes cumprimentá-
la.

Rafael diz que entende perfeitamente, toda vez que vê a Dê, o porquê o Lipe
a esperou por dez anos. A mulher é linda, faz a minha perna tremer, mas para o
Rafa é como se ela estivesse na posição de anjo.

Gravidinha então, com essa voz fina e sem tônus, toda bonitinha num traje
de verão, o Rafa a cumprimentou como cumprimenta a própria mãe e não sem
agradecer mil vezes por ela ter vestido uma roupa da mãe dele.

— Falando assim parece que te faço um favor, uai. – “Uai”.

— Mas faz, Andressa.

— Não, jamais. A roupa da sua mãe é perfeita e merece ser vestida.

Gabriel cumprimentou todo mundo, eu os apresentei pelo nome, mas não


disse qual a relação deles comigo, só disse que estudávamos juntos.

— Cacete, tão parecidos que parecem irmãos. – Inocente de tudo e tratando


os meus como se fossem filhos dela, minha mãe deu um beijo feliz em cada um,
abraçando e perguntando da faculdade e como andam suas famílias – Faz um
tempão que não vejo vocês dois.

Rafael e o Gabi sorriram amarelos, envergonhados. Desde o primeiro beijo


que a gente sabe que esse dia chegaria, mas nunca soubemos o como. Contar
para a Tia Lúcia foi tranquilo porque ela sacou tudo antes. Contar para os meus
irmãos foi mais tranquilo porque eu confio a minha vida neles, e a minha
liberdade com eles é quase total. Dou lubrificante a base de cannabis de
aniversário para um e, para o outro, sou confidente. As coisas que o Guto nunca
conta para ninguém, ele conta para mim.

Quer dizer, mais ou menos. Como foi que ele virou pai solteiro demorei
muito para descobrir.

— Mãe… – E eu mal me atrevi a olhar para o meu pai.

— Tá me deixando nervosa, Manu. – Ela disse, sentindo a tensão no ar


quando meus irmãos fizeram uma roda ao redor dos meus pais.
— Tô namorando.

Capítulo Vinte e Cinco

Falei, e meus pais quase riram. Vinte anos de caçula, ora, estava mais do que na
hora.

— Grande coisa. Com vinte anos, se não estivesse namorado, aí sim que eu
estaria preocupada.

— Com ele ou com ele? – O pai ria achando a maior graça na minha
tempestade em copo d’água.

— Só não tô entendendo o porque trouxe os dois aqui, fizeram roda, só para


contar a grande notícia que a minha filha tem…

Entendeu. O rosto de tristeza por ter sido enganada, por tanto tempo, e pela
própria filha. Nós três mentíamos para ela, há tanto tempo, que mentir era a
nossa rotina. Gabriel queria me beijar e fingia que não, me beijava a bochecha.
Rafael me beijava a bochecha e pegava na minha bunda no segundo em que meu
pai virava as costas. A gente mentiu desde quando briguei na escola a primeira
vez, talvez antes. A gente mentiu quando passou na faculdade, quando fez festa
no restaurante do pai, quando pedi dinheiro emprestado para poder investir na
tia. Desde quando o Guto ainda estava na faculdade e eu pedia, cândida como
uma criança, para eu poder levar meus amigos para casa.

(E o tanto de amasso, na minha própria cama, com meus pais crentes que a
gente estudava… isso não estava escrito).

— Mãe…

— Fica quieta, Manu. – O Guto me proibiu de pedir desculpas. – Eles já


entenderam.

— Tudo o que os irmãos têm de bonzinhos, ela tem de desajustada.


Desajustada. Eu sabia que ela diria isso. Toda errada, agora ela percebia.
Não era só a aparência que andava torta: era a filha inteira.

— Mãe, – eu queria ter coragem de olhar nos olhos dela, mas tudo o que eu
conseguia era me esquivar e ficar repetindo esse “mãe” como se pudesse grudar
um “eu posso explicar”, só que sem poder.

Mesmo não concordando com meu namoro, Guto quem partiu em minha
defesa.

— Não adianta ficar brava. Os dois gostam muito dela, ela gosta muito dos
dois.

— Gostam mesmo? Isso me parece dois caras tirando proveito de uma moça.
– E a cara do meu pai era a mesma cara de quando o Guto contou que sairia do
estado sem dizer para onde: Cara de frustração.

— Não vou me fazer de sogra legal e falsa, Manu. Não gosto da ideia. Não
acho que seja assim. Já basta um filho esperar anos por uma mulher, meu outro
filho ser pai solteiro, agora vem essa daí com dois sujeitos. Porra, eu sou normal,
por que eu não posso ter filho normal?

— Normaliza o amor, Dona Fernanda. – Rafael também partiu em minha


defesa e eu queria conseguir engolir o que estava entalado na garganta para
explicar para ela os meus motivos de nunca ter contado. – Diz pra mim o que é
normal. É normal um sujeito casar, ter filhos, largar tudo nas costas da mulher e
chegar de vez em quando só para dizer um eu te amo?

De onde o Rafa e Dona Lúcia vieram isso é mais que normal.

— Normaliza o amor e me diz até que ponto é normal. Traça um gráfico e


me mostra, Dona Fernanda, que eu não sei. A gente já tentou fazer dar certo só
com dois, juro para a senhora, mas não deu. Não completa. Não tem motivo para
me odiar. Eu não estou aqui para fazer mal nem para a Manu, nem para o Gabi.
Eu só estou aqui do mesmo jeito que seu filho mais velho esperou anos, seu filho
do meio é pai solteiro, e seu marido está aí do lado da senhora. Quer me odiar,
me odeie, mas não porque tem alguém lá fora que aceita que o amor seja entre
dois sujeitos abusivos, mas não entre três sujeitos livres.

— Mãe, – tentei, trêmula de tudo e sem conseguir soltar qualquer discurso


previamente ensaiado – eu nasci do amor, não nasci?

— Nasceu, Nina. – Em todas as outras ocasiões da vida, o “Nina” que o pai


fala para mim me derreteria. Ali parecia que eu enfiava uma faca no coração
dele.

— Então por que vocês estão querendo que eu não viva dele?

— Não dá para viver do amor só com um?

— A senhora vive do amor sem o meu pai? – E eu vivo só com metade do


coração?

— A senhora conhece a gente. – O Gabi tinha a voz tão trêmula quanto a


minha porque ali era a primeira vez que ele assumia que gostava de meninos –
Meus pais conheceram a senhora, a mãe do Rafa te conhece, a senhora me
conhece. Acha, que se fôssemos o que a senhora acha que a gente é, que Manu
teria nos aceitado? O jeito que ela fala de você e tudo o que você ensinou para
ela… A gente não é estranho. Não somos dois fulanos que apareceram do nada.
A gente tem história com a família da senhora e com a sua filha.

— Venham, – O Lipe disse e não melhorou em nada – Isso é coisa de mãe


com filha.

— De pai, também.

— Vão lá com o Lipinho, – Porque eu sabia que a minha mãe ia me debulhar


– já vou.

Entramos em casa, fugidos do Sol e dos olhos, e subimos para o quarto de


hóspede. Meu pai fechou a porta, respirou fundo, mas não disse nada. Minha
mãe se sentou na cama, bem brava, e me olhava esperando explicações.

— Se você ensaiou um discurso, essa é a hora de usá-lo. – Ela me disse.

— Você vai se esconder atrás de todo mundo até quando? – Meu pai se
sentou na cama, ao lado da minha mãe, e deu a mão para ela.

— Eu tô mais brava de você ter mentido, Manuela, do que pela situação em


si.
— Não tá brava pelo fato de eles serem dois?

— O como você transa é só problema seu. – Eu não esperava tanta clareza


vinda dela. – Não me diz respeito, não diz respeito a ninguém. O que me choca é
que vocês não começaram a namorar ontem, não é?

— Não.

— Há quanto tempo?

— Algum tempo – Desviei.

— Há quanto tempo, Manuela? – Ela forçou.

— Cinco anos. – Cedi.

— CINCO… – Meu pai perdeu a calma. Ele era como eu, não frita parado.
Quando perde a estribeira, anda para lá e para cá. – MANUELA!

— Pai…

— Por quê? – A mãe quase chorava.

— Por que eu namoro eles?

— Por que escondeu isso de mim por cinco anos? Foi alguma coisa que eu
fiz? Foi alguma coisa que eu falei? A gente não te deu espaço para ser sincera?
Você acha que nós te expulsaríamos?

— Não, mãe, não é nada disso!

— Então por quê? Por que, Manu, por que nunca contou antes?!

— Porque eu também sempre achei errado. – Engoli o discurso empoderado,


as frases de efeito, o jeito decidido e incisivo que escolhi contar para ela, e que
tanto treinei no banho. De frente para a minha mãe e meu pai, os meus dois
pilares, a maior referência de amor e resistência que tenho, eu só pude ser
sincera.

— Mas você quem escolheu, Manu.


— Eu sei, mas… – Achar errado explica a culpa que sempre carreguei, a
necessidade de silêncio, de me esconder, de me doar mais para os outros do que
para mim mesma. Achar errado e me julgar pela minha própria escolha explica
toda a minha vida. – Eu sei como todo mundo me olha, eu sei o que todo mundo
pensa. Eu sei, tá legal? Não precisa dizer.

— O que você acha que a gente tá pensando, Manu?

— Que vocês criaram uma vadia! É ou não é? Eu vi o Lipe e o Guto com a


mesma cara, eu sei o que todo mundo tá pensando, na escola era assim, na
faculdade, dentro da sala de aula, todo ligar que eu vou! Sempre tem um cara
que acha que, se eu dou para dois, posso dar para três. Sempre tem uma menina
que desiste de ser minha amiga porque acha que dois não me basta e vou querer
o namorado dela também. Eu sei, tá?

— Mas foi você quem escolheu, Manu…

— E isso importa, pai? A gente sofre menos só porque fomos nós quem
escolhemos?

— Na verdade, eu tô um pouco aliviada. – A mãe confessou.

— Aliviada?

— Não é o cenário ideal nem de longe, mas… Eu gosto dos dois meninos.
Quero os dois de genro. Seu pai e eu vivemos apostando sobre quem você vai
escolher e toda hora muda. Quando a gente vê o Gabi olhando para você, todo
apaixonadinho, a gente quer que você escolha ele, mas quando o Rafa decidiu se
dedicar ao empreendimento da mãe, seu pai me ligou quase na mesma hora só
para dizer que você tem que escolhê-lo.

— A gente sabe que eles te amam, princesa. – O pai se sentou de novo e me


puxou para o colo.

— Isso é tão a cara da minha filha, que eu não sei porque que eu ainda me
surpreendo.

— É? – Como assim, é a minha cara?

— Quando descobrimos que viria uma menina, seu pai e eu decidimos que te
deixaríamos livre para fazer o que quiser. Não te criaríamos com uma gama
limitada de opções, mas te daríamos tudo o que estivesse ao nosso alcance.
Quando pequena você encasquetou que só usaria uma colherzinha específica, e
guardava num estojo de óculos. Com uns oito anos fez ferramentas para o Lipe
na sua impressora 3D. Quando os meninos começaram a perguntar sobre sexo,
nós te envolvíamos no assunto, você ouvia tudo, nunca escondemos nada. Você é
mais liberal que todo mundo que eu conheço, nunca diz não para nada, sempre
dá um jeito, sempre aceita primeiro. O Guto chegou com a Madalena e você foi
a primeira a chamá-la de família. Você cuidou do Lipe e do rombo de dez anos
da vida dele sem nunca questioná-lo sobre suas escolhas. Seu pai e eu sempre
vimos você como o suporte dos seus irmãos e é isso o que nos deixa triste,
porque na sua vez de precisar de suporte, você escolheu se excluir e a gente
nunca nem se preocupou.

— Por que não disse para nós, Nina? Achou que a gente iria brigar?

— Não contei porque tive medo. – Confessei – Primeiro, porque não achei
que duraria e porque seria um escândalo uma menina de quinze anos namorando
com dois. Depois, porque tive medo do que vocês achariam. Eu sempre tive
medo e nunca gostei do jeito como os outros me viam. O Guto fala para eu me
impor, eu até entendo o que ele fala, mas ele não entende que não adianta se
impor quando você sabe que tá fazendo coisa errada.

Demorei anos para entender que não era errado. E tive que rodar bastante por
aí até perceber qual era o meu problema com namorar dois, e qual era a questão
social envolvida nisso.

Naquela hora, só o alívio de não ser julgada pelos meus pais, de ser aceita, de
não ter mais que esconder, isso já era o suficiente.

Beijei meu pai, minha mãe, os deixei conversando porque eles ainda tinham
coisas para mastigar a respeito do meu relacionamento, e desci. Juro que quase
sorrindo.

— Você fez o certo – Na borda da piscina, sentado entre meus namorados e o


Lipe, o Guto achou que isso me tranquilizaria.

— Grande merda.

— Vocês já sabiam, não é? – O Rafa perguntou para os meus irmãos.


— Claro. – Se o Guto sabia, por que ficou tão puto quando eu disse?

— Eu nunca quis pensar muito sobre isso. No fundo eu sabia, – O Lipe


respondeu no mesmo momento em que o Guto. – e se a gente pensa um pouco,
estava na cara o tempo todo, mas eu nunca quis que fosse verdade.

— Que ótimo, Felipe.

— Gabi, se você tivesse irmã, ia entender o que estou falando. Faço o que for
por ela, a hora que ela me pedir, mas não peça para eu levar de boa dois caras
comendo a minha irmã, que isso não vai rolar.

— Mas que diferença faz quem come quem!!!!

— Manu, com dois caras, parece que você dá para todo mundo. – Foi ou não
foi o que eu tinha acabado de dizer para os meus pais?

— E se eu der?!

— Se você der, tranquilo, a vida é sua. Só que ninguém que dá para todo
mundo sai por aí exibindo como se fosse qualidade.

— Só os homens. – Cutuquei.

— Nem os homens. – O Guto interferiu.

— O Ferreira mais rodado, e pai solteiro, vem me dar lição de moral?!?!

— Comia quem eu queria, mas você não me via por aí espalhando. Casada,
não-casada, noivada, solteira: quem quer que fosse, eu comia e ficava na minha.

— Já deu para perceber que não é questão de sexo, porra. – O Rafa rebateu –
Puta merda, isso aqui não é pornô, não! Ninguém cata a sua irmã e põe no
moedor de carne para você falar desse jeito. Se a gente transa, a gente faz isso
com a mesma intensidade que você faz com a sua esposa, Felipe, e com o
mesmo amor que você tem pela cowboy, Gustavo.

— E se acham que esse amor é o mesmo que comer por aí, – O Gabi sorriu –
então azar das Botelho.
— Não tô falando que meu namoro é normal, nem tô pedindo permissão. –
Tomei coragem – Mas vocês só acham feio porque sou eu. A Ferreira Dramática,
a Ferreira Caçulinha.

— Ninguém disse que é feio, Manu. – o Lipe retraiu – Só é…

Esquisito para caralho. É, eu sei. Já passei dessa fase e nem quero enfiar isso
goela abaixo de ninguém. Se as pessoas são felizes em par, um casando com um
e procriando mais um, beleza, que vão. A única coisa que eu sempre quis é ser
deixada em paz.

A questão é que eu sei bem que não nasci de chocadeira. É importante para a
minha mãe saber que eu escolhi viver assim. Eu quem decidi que é assim que
vou tocar a minha vida porque foi essa a lição que ela me passou. Ela sempre
bateu na tecla da independência: queria que eu tocasse a minha vida sem
depender de ninguém. Às vezes enchia meu saco para que eu vivesse dentro da
consultoria dela, que eu nunca crescesse, quase que eu não consigo fazer parte
da equipe de restauração do MASP, mas também é o jeito dela de me querer
bem.

Engraçado isso: a minha relação com a minha mãe é muito diferente da


relação com o meu pai. Com meu pai eu guardo afeto, mas com a minha mãe eu
guardo admiração e exemplo. Ela quem sempre me guiou pelo caminho das
pedras, quem me deu os melhores conselhos e, se for colocar tudo em pratos
limpos, ela quem me indicou que era assim, entre dois meninos, que eu queria
viver.

Vi meus pais de novo só quando a Bia chegou usando seu chapéu de cowboy,
o sorriso largo, e os olhos cansados. Não fui capaz de cumprimentá-la porque
fiquei com vergonha de apresentar meus namorados para ela e a boca dela que
nunca sabe a hora de se calar.

Capítulo Vinte e Seis
(Rafael)

Nada faz parar de sangrar. Nem o sorriso dele, os afagos no cabelo, ou os


desejos de que vai ficar tudo bem. Ela diz que estamos livres e sorri com a
certeza de que tem o apoio da família, mas eu não compro. Não consigo. Só
estaremos livres o dia em que pararmos de nos culpar. Quando não repetirmos
comportamentos de casal com dois, quando na verdade somos três.

O dia em que nos beijarmos em público sem ser rápido nem escondido.

Se amar é um ato revolucionário e se o padrão é condescendente, eu não


compro o ideal de liberdade enquanto todos nós não formos livres.

Fecho o galpão da minha mãe e me despeço do chefe de expedição que


acende um cigarro no chuvisco para andar até o ponto de ônibus. Vou com ele
até lá, mas não pegamos o mesmo transporte.

Disse para a minha mãe que não jantaria em casa e ela entende que é dia de
festa. Animado pela recepção da família da Manu, Gabriel também quer contar
para seus pais. Os dois creem que é dia de festa também e minha mensagem pelo
WhatsApp endossa, mas meu coração nunca me enganou.

Desço no ponto de ônibus mais perto da casa do Gabi e vou andando. Entro
no mercado e compro um engradado de cervejas só para não chegar de mão
abanando. O celular toca e eu sei que são eles me avisando que chegaram e me
perguntando porquê demoro tanto.

Ela vai de Uber, e ele, de carro.

Toco o interfone e subo, o apartamento dos pais do Gabi são na parte nobre
da cidade, a duas horas de distância da minha casa, dois apartamentos por andar
e sacada gourmet. O tipo de lugar que eu sonho em morar um dia.

A mãe do Gabi me cumprimenta, mas não tem nome. Atende por mãe, vive
para o lar, deixa o jantar pronto para o Gabi e provavelmente engole
comprimidos para dormir.

— Que bom te ver, Rafael! – O pai do Gabi me cumprimenta (a mãe também


não tem voz) e agradece pelas cervejas.

Era Aniversário do Gabi. Manuela me cumprimenta com um abraço e um


beijo no rosto, a última barreira de fingimento, e eu retribuo. Toda vez que ela
fica nervosa, evita me olhar nos olhos. Às vezes eu fico tão quieto que Manuela
me acha espelho.

Cumprimento o aniversariante sorridente, vinte e um anos. Ele sorria largo


de me ver e, se eu pudesse, enquadrava esse sorriso.

— Dez aniversários juntos. – Seu Guilherme, pai dele, comenta. – Êta


amizade boa. Foi com dez anos que vocês três se conheceram, né?

— Com oito.

— Caramba, então já são treze!

Sentamos para comer e Gabriel agradeceu pela comida. Jantar com pompa de
Natal em plena terça-feira, mesa posta com guardanapo de pano e taças – festa
de adultos com o leve silêncio e a falta de assunto que as festas de adultos
costumam ter.

Conversa vai, conversa vem, Manuela assume o lado paterno do DNA e


engata numa conversa sobre sua própria família e estudos. Do ponto de vista
dela, mesmo quando sua família erra, eles são maravilhosos porque as lentes que
ela usa para enxergar seus entes são sempre lentes de amor.

O pai do Gabi fica feliz em saber que seu futuro compadre, pai da futura
esposa de seu filho, vai bem, mas não pergunta vez alguma como vai a minha
mãe porque não é da minha família que ele quer fazer parte.

Este homem sempre me deixou apreensivo porque se parece demais com o


meu pai.
E você já ouviu alguém citar meu pai nessa história?

Como todo patriarca tradicional, ele acredita que sua mulher e filho sejam
suas posses e que tenha poder ilimitado sobre eles. A mãe não abre a boca e
Gabriel não percebe. A imagem dos dois não combinam, o pai falante e a mãe
assustada. Alguma coisa fica de fora enquanto o show se estende, todo mundo se
exibe e faz o aniversário acontecer, mas eu me reservo e não participo. Esquivo.

Meu medo de gente trago de casa. Sei exatamente qual vai ser o fim disso e
me guardo pelo máximo de tempo que consigo.

— E você, Mocinha? – O pai do Gabi finalmente tem coragem de colocar


minha Manu contra a parede enquanto serve mais vinho para seu filho e ela, mas
não o serve para mim – Vai ficar para sempre entre a cruz e a espada?

— Se Deus quiser, sim. – E que Deus proteja a inocência de minha Manu.

— Como assim? – A face de quem não gosta de ser confrontado aparece e eu


fico curioso no como a mãe do Gabi fica desconfortável na cadeira – Você nunca
vai escolher entre Gabriel e Rafael?

— Pai, – se eu pudesse prever, o teria impedido de falar – Estamos


namorando.

Festa na cara do Seu Guilherme. Tudo o que ele mais quer é uma mocinha
decente para que ele possa chamar por Nora e depois povoar a terra com netos.

— Pai, – Gabriel prosseguiu e eu o segurei, pedindo que não falasse.


Balancei a cabeça, olhei dentro dos olhos dele. – O que foi, Rafa?

— Deixa para outra hora.

— O quê? – O pai quis saber. – Meu filho está namorando, o que há nisso
que eu não possa saber?

— Eu não tô namorando só com a Manu. – Gabriel disse e eu fechei os


olhos, só esperando o pior.

Com o coração bom que sei que meu Gabi tem, ele se abria. Contou a nossa
história supondo que o pai o compreendesse. Segurava na minha mão, por baixo
da mesa, suando frio, contando sobre como era inevitável amar Manuela e como
assumimos o meio-termo onde todo mundo sai feliz.

Ficou com vergonha de dizer sobre nós dois. Mais do que isso: ele se sentia
culpado. Sabia que estava errado. Manuela fez a mesma coisa na casa dos pais.
Não disse que meu amor por Gabriel era tão forte como o amor dela por nós
dois.

— E você fica de canto chupando o dedo? – O pai dele não entendia nada,
mas preferiu me cutucar – Tudo porque não aceita perder, Rafael? Um homem
feito como você, arrimo de família, vai se sujeitar a assistir os outros em vez de
procurar uma mulher decente para si mesmo?

— Não é nada disso.

— Como não? – Jogou o guardanapo sobre o prato de comida,


desrespeitando todo o trabalho de sua própria esposa, engoliu a taça de vinho e
entendeu como nós três nos encaixávamos sem que precisássemos dizer toda a
verdade – Gabriel, você é bicha?

— Pai… – Gabriel suspirou – é mais complicado.

— Você tá dando o cu por aí, moleque?

A verdadeira face do monstro aparece. Transtornado e vermelho, longe da


embriaguês obrigatória que serve de desculpa para qualquer um ficar agressivo,
o pai do Gabi se levantou, irado, pronto para esganar o filho que se levantou da
cadeira, assustado, e segurando a mão da Manu.

Não sou de falar. Quando é o nosso familiar, a gente esquiva, nunca revida,
vai sempre se curvar para poder atender. Enquanto não fosse família minha, eu
podia me colocar na frente do Gabi e mostrar para aquele homem que ele não vai
bater em ninguém, porque eu sou maior, mais forte, e mais novo.

— Não faz diferença quem dá o cu para quem – Manu argumentou – Gabriel


está feliz! Isso não basta?

— Saiam da minha casa – Percebendo que não vai poder bater no Gabi
porque eu era um muro que o impedia, ele optou pelo mais fácil. – Eu vou ligar
para o Seu Rodrigo e avisar que ele criou uma puta.
— Ele sabe! – Seu pai criou uma puta, Manu? E você ainda concorda?

— E o frouxo do seu pai não te deu um corretivo?

— Vem, – pedi, puxando o Gabi para o meu lado, empurrando Manuela para
a porta – vamos embora.

— Se eu te encontro na rua, Rafael, te faço engolir os dentes.

Ah, não.

— Por que você não faz isso agora? – Empurrei os meus dois para a porta e
me voltei para o pai dele – Eu tô aqui.

— Rafael, deixa para lá – Gabriel pediu, também me puxando para a porta.

— Vem, Guilherme, dá na minha cara se tem coragem.

— Rafa, por tudo o que você ama, – Manuela pediu também – Vamos
embora.

— Uma bicha dessas… – E cuspiu em mim.

— Para, pai!

— Saiam da minha casa!

Gabriel me deu um puxão e eu me virei de costas para o agressor. Bastou eu


me virar que ele me acertou um soco nas costas, me empurrando.
Automaticamente, me virei e devolvi.

Mais novo, com mais raiva, mais forte. Seu Guilherme caiu de guarda aberta,
no chão, o rosto vermelho e inchado.

— RAFAEL, – Gabriel gritou comigo – VÁ EMBORA!

Num segundo, Manuela e eu olhávamos para a porta trancada. Só era


possível ouvir o choro sentido e magoado de um Gabriel que suplicava perdão
de um pai que não merecia.

Capítulo Vinte e Sete
(Gabriel)

— Desculpa. – Chorei arrependido. No futuro eu vou saber que não tinha


que me desculpar por amar Rafael, mas, ali, diante do meu pai caído, que me deu
todas as asas que pôde, eu pedi desculpa.

— Faz sua mala. – Desorientado e furioso, levantou do chão e gritou comigo


– Eu não tenho filho viado.

Era a minha última chance de dizer alguma coisa, mas eu não tinha
argumentos contra fatos. Eu era assim. Podia falar que não era, como menti por
anos, podia falar que dividíamos Manuela e que seria temporário, mas era
mentira. A grande verdade é que o que nós três temos não vai mudar nunca.

Somos completos assim. Não é funcional nem organizado, mas é assim que
nós somos. Amor não é feito para caber, é feito para ocupar. E tanto Rafael,
quanto Manuela, eram o motivo de eu ser tão feliz como era.

Fui para o quarto e não falei nada. Não tinha o que falar. Fez dinheiro e me
deu o melhor que pôde com a mão na graxa. E, abrindo meu guarda-roupas,
tirando as peças de dentro, nem raiva consegui sentir.

Era mais um vazio. Não tinha um jeito certo de contar isso, uma hora ou ele
descobriria, ou eu teria que me abrir. Escolhi ser sincero, em apostar no amor da
minha família do jeito que Manuela apostou no amor da sua e venceu.

— Depois de tudo o que eu fiz por você – Ele estava na porta do meu quarto,
mais com raiva do que chorando – Depois de todo o sacrifício que eu fiz por
você. É assim que você retribui?! É assim que você vai levar sua vida, Gabriel?
Vai atrás de um moleque degenerado que não tem pai, vai atrás de uma menina
que não tem nada na cabeça? É por isso que você vivia apanhando na escola?!
Porque você era viado???? Você tem uma família, Gabriel! Você tem um pai, eu
sou o seu modelo! O que aconteceu com você?!?!
Continuei quieto. Nada aconteceu comigo.

— Desde quando dá o boga???

Rafael me amando enquanto me comia e, para o meu pai, eu dava o boga.


Adiantava dizer que eu o comia também? Se eu falasse que o comia, em vez de
ser o comido, como se amar alguém fosse questão de quem monta em quem, será
que ele teria me deixado ficar?

Agora eu penso nisso, mas, na hora, eu só conseguia me envergonhar. Cada


vez que meu pai abria a boca, era o meu choro que vinha.

— Cê acha que eu escolhi ser assim? – E quando abri a boca, fiz parecer que
me arrependia.

— SUA MÃE TE PARIU HOMEM!

Eu ainda sou homem.

— Vai começar a desemunhecar e andar rebolando igual aquele bando de


bicha da Paulista?!?!

Eu sentia meu rosto até queimar de tanta vergonha.

— OLHA PARA MIM QUANDO EU ESTIVER FALANDO COM VOCÊ!

Tirei a mão do armário e virei, de cabeça baixa, para ele.

— Cê tá chupando pau, Gabriel?! Tá dando o cu para aquele moleque que


não fala?! Tá virando mulherzinha e usando o vestidinho daquela
desmiolada????

A aliança de triângulo que Manuela me fez. A aliança de triângulo que


Manuela projetou para a gente e que nunca saiu de perto do coração porque a
gente tinha medo que nos flagrassem com o mesmo anel, e que entendessem que
somos três.

Eu falando para eles que a gente tinha que passar pelo colégio com a cabeça
erguida. Que o chumbo era eu quem levava. Que Rafael não seria expulso por
causa de ninguém.
Eu sem conseguir olhar na cara do meu pai porque estava envergonhado
demais, diante dele, para levar o chumbo que sempre foi meu.

— Pois vai aprender a ser homem.

Me catou no armário como se eu fosse bicho.

Me pegou pela camiseta e veio, de murro, de mão fechada, a saliva do Rafael


ainda marcada na minha pele, tinha sido dia de vitória até chegar em casa. Era
meu aniversário e nós passamos o dia juntos. A risada da Manu ecoando no meu
ouvido, fazendo carinho.

Meu pai me enchendo de porrada e a minha mãe escondida no quarto. Meu


pai furioso porque o amor dele era condicional e o meu não.

Amor tão incondicional… Também sou mais novo, mais alto, e mais forte
que o meu pai.

Só que eu não revidei. Afinal, ele era o meu pai e eu o amo acima de
qualquer coisa.

Capítulo Vinte e Oito
(Rafael)

Acontecia e eu previ, só que não fiz nada. O sorriso de ponta quebrada, o soco
nas costas, o cuspe. A audácia do homem que atende por pai em crer que esposa
e filhos são propriedades.

Acontecia e Manuela não chorava. Seis da manhã: passamos a noite inteira


sentados no saguão de seu prédio esperando por ele, chamando por ele, ligando.
Se tivéssemos a coragem de invadir seu apartamento, talvez não o tivéssemos
encontrado assim.

Aos oito anos de idade eu perguntei para a minha mãe se ela queria fugir
comigo. Para longe do meu pai, para qualquer lugar onde ele nunca nos achasse.
Aos oito anos eu tive que ligar para o SAMU, mas não tinha forças para levantá-
la do chão.

Tudo o que a minha mãe fez para o meu pai foi pedir para arrumar um
emprego. Veja bem: pedir. Eu vi a cena. O sorriso desconfortável, as mãos em
punho, a briga unilateral e com só uma voz.

Aos vinte anos esperei Gabriel apanhar sentado num saguão chique.

O pai dele nos expulsou e nós não tivemos coragem de ir embora. Descemos
para esperar no saguão. Sequer sabíamos se ele sairia de casa, mas esperaríamos
o quanto fosse necessário. Duas horas depois de sermos expulsos mandamos
uma mensagem que sequer foi lida. Depois ligamos. Depois perguntamos ao
porteiro se alguém do apartamento 82 saiu pelos estacionamentos. Depois
ligamos de novo.

Cinco horas da manhã invadimos o apartamento na esperança de vê-lo


deitado e dormindo. A maçaneta foi deixada aberta como se alguém soubesse
que nós estávamos no saguão. Manuela entrou atrás de mim com a lanterna do
celular ligada e, como frequentamos a casa deles por anos, sabíamos o caminho
até seu quarto.

Gabriel deitado em cima de uma poça de sangue e o rosto desfigurado. O


guarda-roupas caído em cima dele, a cama quebrada o protegendo de ser
esmagado pelo móvel pesado.

Seis horas da manhã, num saguão de hospital público, esperávamos qualquer


notícia. Gabriel foi conduzido para dentro de portas plásticas e por gente
desconhecida.

— Ele vai sobreviver. – Ela me disse.

Mas a que preço? Vai carregar o medo consigo por onde quer que vá? Vai
ficar surdo de um ouvido como a minha mãe ficou?

No meio da noite, quando levanto para pegar água, eu sei que a minha mãe
acorda e não consegue dormir. Mesmo depois de tudo, mesmo depois do
divórcio, dos trâmites legais que pudemos pagar só graças à Resist, ela ainda tem
medo que meu pai apareça e termine o serviço.

E para completar, eu sou a cara do meu pai.

Por isso não pego mais água no meio da noite. Ela vai deitar e também vou.
Não quero que ela ache que eu sou ele chegando no quarto dela e a fazendo de
vítima outra vez.

Fico pensando no que vai ser do Gabi quando ele acordar e perceber que
quem desmontou seu rosto foi quem o criou.

A família Ferreira chegou em peso, lá pelas nove da manhã, e eu odiei todos


eles. Espalhafatosos, faladores, contaminados. Manuela deitou a cabeça no peito
da mãe e chorou. O pai a abraçou também, os irmãos. Nenhum deles sabe o que
era esse tipo de dor, nenhum deles seria capaz. Abraçaram nosso namoro porque
era o que Manuela queria, e isso bastava para eles.

Todos eles são feitos de plumas. Menos um. Gustavo Ferreira, o pai solteiro
que já tinha se enroscado com a cowboy, olhava para Manuela chorosa e não se
contaminava. Ele mantinha a distância segura da dor alheia, do mesmo jeito que
eu.

Só tem empatia cega por esse tipo de sofrimento quem não sofreu. Quem
sofreu entende de gatilhos e se afasta porque já percebeu que o que temos de
mais precioso é a sanidade.

Quer dizer: algumas pessoas conseguem separar a dor alheia da própria. Nós,
não.

Gustavo tinha os dentes travados e não se juntou à comunhão dos outros.


Ouviu a irmã mais nova falar de “surra corretiva” e parou no mesmo segundo.

Para evitar ficar no meio deles, levantei da cadeira e fui para o lado de fora.
Senti Gustavo colar no meu cangote, mas, por sorte, não me disse nada. Só ficou
parado do meu lado, olhando o movimento da rua.

— Odeio quando todo mundo se compadece – Ele puxou conversa.

— É o trabalho deles. – Ocultei que também odiava.

— Quer ir tomar um café?

— Não posso deixar sua irmã sozinha.

— Ela não está sozinha.

Encostamos num balcão de uma padaria qualquer e pedi um café preto com
pão na chapa. Gustavo não gosta de café, mas gostava que tomassem perto dele
porque isso o fazia lembrar sua casa.

— Tem café o tempo todo lá. – Ele sorriu puxando o suco de laranja do
balcão e olhou para o televisor.

— Briga e café tem em todo lugar.

Em silêncio, mas não sozinho. Ele não precisava dizer, mas sei que me
entendia e agradeci por, finalmente, alguém me entender sem me encher de
perguntas.

Nem toda a terapia do mundo me faria superar o que aconteceu com minha
mãe ao ponto de virar alguém espalhafatoso, gesticular e festeiro. Amo o
silêncio, pouca gente, e o fato de saber que ninguém bate em mim.

Paradoxalmente, alguém que ama o silêncio e pouca gente deu um jeito de se


meter entre dois seres falantes, sentimentais, e que amam manada.

Manuela ama a família, eles são tudo para ela. E Gabriel… Gabriel vai ter
que aprender a ser sozinho.

— Quer que eu te leve para casa? – Gustavo perguntou quando pedi o


segundo pão.

— …

— Você está trêmulo.

— O que você queria?

— Calma, Rafa, não tô aqui para brigar.

Sabia que não.

— Odeio hospital. – Ele trocou de assunto.

— Você não era médico?

— Depois do que aconteceu nas últimas vezes que cliniquei, nunca mais
pisei em um.

— E o que aconteceu?

Indelicado perguntar. Pedindo outro pão, Gustavo evitou responder e eu não


insisti.

— Nunca aconteceu nada comigo – Ele comentou – Mas preferiria que fosse
em mim. Acho que doeria menos.

— Sinto o mesmo.

— Só que a corda nunca arrebenta do lado de quem tá pronto, não é? – Ele


sorriu triste e a Manu já comentou que o jeito de sorrir triste é coisa do Lipe.
Deve ser trejeito que Gustavo assimila pelo contato. – Sempre arrebenta do lado
dos fracos. Minha filha, depois, minha mulher.

— E com a minha mãe. Agora o Gabi.

— Não dá para a gente educar para ficarem prontos.

— E o que eu faço?

— O primeiro que descobrir conta para o outro. – Levantando-se para ir ao


banheiro, ele deu a cartada final – Você só precisa saber que não tá sozinho.

Voltamos para o hospital pouco depois. Gabriel estava em cirurgia, Manuela


fez um escândalo na recepção e funcionou. Contaram que esperaram Gabriel
ficar estável o suficiente e agora estavam em cirurgia. Descolamento da retina.

— Disseram que só recorrem à cirurgia nesses casos em última instância.

Uma semana. Vivi naquele hospital por uma semana. Faltei à faculdade,
evitei entrar em casa para não ter que contar para a minha mãe o que fizeram
como Gabi, deixei o galpão da loja sob os cuidados do chefe de expedição. Vivi
para vigiar Gabriel emudecido e letárgico, e para cuidar de uma Manuela
chorosa e sempre acompanhada por alguém da própria família.

Gabriel não queria conversa com ninguém e eu o entendia. Manuela tentava


alegrá-lo, mas ele não queria ficar alegre, nem podia chorar porque ardia. Me via
e me evitava, virava de costas para mim, me olhava feio. Depositava toda a raiva
em mim e, por mim, tudo bem. Tinha motivo para ficar bravo, uma pena que
descontasse em mim. Eu não fui seu primeiro homem, tampouco serei seu
último. Ninguém faz ninguém virar gay. O máximo que acontece é as pessoas se
gostarem.

— Você não pode ficar puto comigo a vida toda, Gabi.

O olhar magoado me dizia o contrário. Se não fosse eu, seu pai não teria
mais motivos para fazer o que fez. Gabriel talvez nunca precisasse contar que
gostava de meninos se não me namorasse e se não combinasse tanto comigo e
com Manu.

Se não fosse eu, seu pai teria pulado de alegria de perceber que o filho estava
com a nora dos sonhos. Se não fosse eu, Gabriel não estaria com sua vista
comprometida e grunhindo de dor toda vez que se mexia na cama.

Levantar não queria, comer não queria. Me via e se virava, mesmo


reclamando de dor, só para não ter que me olhar na cara.

No final daquela semana perguntei se ele queria que eu fosse embora


temendo que me dissesse que sim. Com o rosto todo roxo e vermelho, muito pus
e muita inflamação, me olhando com um olho inchado e o outro coberto por
gaze, ele disse que me queria fora do quarto.

— Se eu for embora, – o coração batendo nas orelhas, o peito miúdo e


espremido, ameacei por não saber pedir para ficar – eu não volto.

— Não quero que volte. – Gabriel comprou minha ameaça.

— Você não tá pensando direito.

— Tudo isso foi um erro.

O que foi um erro? A gente? Os cinco anos, desde a escola, em que a gente
lutou para ficar junto? As promessas de amor escondidas, as juras de resistência?

Seus olhos fechados enquanto a gente te lambia?

— O que foi um erro? – Puxei a cadeira mais perto da cama e me sentei.


Gabriel tinha razão em ficar bravo, mas não comigo – Eu? Eu sou o teu erro?

Fechou o único olho que conseguia mexer e não pôde chorar porque os
murros do pai dele ainda ardiam.

— Eu vou te contar a única coisa que nunca te contei – Tentei. Se isso não
funcionasse e não o fizesse ver quem estava errado, então nada mais funcionaria
– Posso dizer isso antes de ir embora?

Puxei a mão dele e quis que Manuela estivesse ali também.

— Sabe por que eu tenho medo de gente, Gabi? Algumas pessoas nascem
com fobia, mas eu não nasci.
— Seu pai também te batia?

— Na minha mãe. – Engoli o choro porque era injusto poder chorar e não vê-
lo conseguir. – Eu sou filho do prefeito da cidade. Minha mãe se casou por amor,
não foi por qualquer outro motivo. Ela acreditou que era amor quando casou,
quando ficou grávida e quando eu nasci. Um dia… um dia ela queimou o feijão
porque eu caí no quintal e ela veio me acudir. Meu pai viu. Foi aí que as
agressões começaram.

Eu aprendi, da pior forma possível, que criança calada e invisível não


apanha. Que criança que não fala e não aparece passa despercebido e não toma
cintada. Nem queimaduras de cigarro. Nem chutes na barriga.

Minha mãe não conseguia fingir-se invisível.

— Eu tinha oito quando ele bateu tanto nela, que pensei que tinha morrido.
Como aconteceu com você, ele bateu nela até se cansar. Quer saber o motivo?
Minha mãe pediu para ter um emprego.

Gabriel não tinha nem coragem de olhar na minha cara.

— Uma semana depois ele chegou com flores. Pediu desculpas. Estava tudo
bem, ele não sabe se controlar, homens são assim, perdem a cabeça o tempo
todo.

Te parece familiar, Amor?

— Depois que ela voltou para casa eu fiz a minha mala. Era para a gente
fugir. Não tinha um plano bonito igual o que a gente bolou para a loja, tinha só o
desespero. O prefeito da cidade tem todo mundo à disposição. Não adianta
polícia, nem médico, nem assistente social. Quando você tem oito anos, o
prefeito da cidade é o dono do mundo. Então eu perguntei se ela queria fugir
comigo para um lugar onde ele nunca nos acharia.

Foi aí que te encontrei, Gabi. Bolsista numa escola que nós nunca
poderíamos pagar, usando um tênis que entrava água toda vez que chovia
enquanto todos os meus colegas tinham cinco pares de tênis e competiam entre
si para ver quem tinha mais.

— Então… quando eu te vi caído entre o guarda-roupas e a cama… Não sou


mais um moleque de oito anos, Gabi. A gente pode escolher ficar e enfrentar. A
gente é mais forte do que seu pai e a gente já provou o quanto se ama. Eu sei que
você me ama, é o tipo de coisa que eu coloco a mão no fogo porque não tenho
dúvidas. Nada do que você me disse, em todos esses anos em que nos
conhecemos, me fez pensar duas vezes. Você é o meu melhor amigo, Gabriel. Dá
a mão pra mim e me deixa ficar, porque eu acostumei demais em ficar sempre do
teu lado.

Não me peça para fugir de novo, Gabriel. Não tem outro lugar no mundo
para onde eu queira ir.

Capítulo Vinte e Nove
— Feche a porta quando sair.

— Por favor, não faça isso.

Você sabe o que é depender tanto de uma relação, que não sabe o que fazer
sem ela? Meu mundo se resumia a duas pessoas, porque não existe Manuela e
Gabriel separados. Meu mundo se resumia a eles e à minha mãe, e mesmo
gostando muito de ficar sozinho, não existe Rafael sem eles. Não existe Rafael
como unidade porque todo o meu caráter foi moldado em cima das pessoas que
eu amo e do como elas me reconstruíram a partir do trauma de ver sua própria
mãe caída e ensanguentada dentro do próprio quarto.

Viver sem ele, era como viver sem Manuela, e um mundo sem Manuela não
existe.

Deixei o átrio na mão dele quando saí. Só levei a mochila com as poucas
roupas que usei durante a semana de acampamento naquele quarto.

Fui atacado por braços logo que fechei a porta. Manuela estava ali, e tinha
ouvido tudo. Me segurou pelo pescoço, enchendo meu rosto de beijo, ousando
chorar enquanto Gabriel não podia.

Nos braços dela, sentindo seu cheiro, tão quente, tão familiar, o peito colado
contra o meu, seu choro escorrendo contra a minha blusa, foi que veio o meu.

Doeu para sair. “Rafael nunca chora” é o mantra que ela usa para me
descrever. Como se eu fosse forte e inquebrável, como se eu fosse durável,
alguma espécie de árvore que nunca vai sair de onde plantaram.

Segurando seu corpo esguio e pequeno, que sempre coube perfeito dentro do
meu, chorei como o Rafael de oito anos, arrumando as malas do quartinho na
casa do pai, sabendo que teria que ir embora. Sabendo que só assim minha mãe
sobreviveria.

Chorando com Manuela nos braços, me senti de novo um moleque sozinho.


Não era só como se meu namorado tivesse me dando um pé na bunda. Sem
Gabriel não existe Manuela e eu acreditei demais que ambos fossem a minha
salvação.

Então, quando Gabriel me pediu para ir embora, uma parte de mim ficou
com ele. A outra eu entregaria, aos poucos, para a Manu. Ela sabe que sem ele
nós não duraremos.

Eu só fico com medo… no tipo de pessoa que eu vou ser, se deixar meu
coração com eles. Será que ainda vai Rafael suficiente para seguir pelo mundo?

— Dê tempo para ele. – Ela pediu, aos prantos, o chorinho mais doído que já
ouvi. – Não vai embora, dá um tempo para ele. Gabriel está machucado, está
magoado, ele está perdido. Não leva em conta o que ele te disse, amor, vai ficar
tudo bem.

No mundo dela, todas as coisas terminam bem. Todas as pessoas são boas e
se amam. Essa menina não sabe o que é dor e, em partes, fico feliz por ela.

Nas outras duas semanas em que Gabriel ficou internado, plantamos guarda
na porta dele, mas não entramos. Manuela também foi expulsa do quarto dele.

Problema é que ninguém congela o mundo enquanto isso. As provas vencem,


o aluguel do galpão também, os clientes mandam mensagens perguntando
quando é que seus pedidos serão enviados. O mundo não para só porque seu
coração parou e, num desses dias, precisei sair da guarda montada para resolver
questões de ordem prática.

Manuela foi da faculdade direto para o hospital e não encontrou Gabriel no


quarto. O segurança sequer a deixou entrar na área de internação porque outro
paciente ocupava o leito.

— Gabriel foi para casa. – Manuela ligou para me dizer, enquanto eu


embalava os pedidos acumulados que o chefe de expedição não conseguia dar
conta.

— Como assim? – Colei a etiqueta do Sedex, mas parei o estilete antes de


cortar a fita – Para que casa Gabriel foi?

Gabriel foi para casa, para a própria casa. Escolheu o lado de seu algoz. O
pai que encara amor entre dois homens como aberração, mas espancamento de
pai em filho como um corretivo.
Capítulo Trinta
(Manuela)

“Se todo mundo for embora amanhã” Andressa uma vez me perguntou “O que
de fato é seu?”. Um de cada vez, os assisti partir. Gabriel escolheu a família. Em
qualquer outra situação eu não o culparia. Se o pai só nos reprovasse e o
mandasse escolher, se a família o forçasse se separar de nós, se qualquer outra
coisa tivesse acontecido.

Se o pai dele não o tivesse deixado cego de um olho.

Eu entendo o que é escolher família, eu vivi com o Lipe, que não foi para
Portugal com a namorada também por nossa causa. Doeria? Claro que sim, mas
eu entenderia.

Só que Gabriel fingiu que nada aconteceu entre ele e o pai. Virou as costas
para quem o socorreu, de dentro da própria casa, desacordado e ensanguentado,
e voltou para o mesmo cômodo e para a mesma família.

Como se fosse plausível apanhar por amar um menino.

Liguei para ele tantas vezes, mandei mensagem, pedi uma encontro, nem que
fosse para ele olhar na nossa cara e dizer que não nos queria mais. Implorei.

O vi passar por mim pelo bandejão e não me olhar, como se nós nunca nem
tivéssemos nos tocado antes. O vi estudar na mesma sala que eu e não olhar
sequer para o lado.

O vi deixar cair uma peça de maquete porque ainda não tinha se acostumado
com a diferença de dimensão que a falta de um olho causa e rir como se fosse
uma situação corriqueira.
E chorei todas as vezes.

Rafael, que nunca fala muito, me seguiu por cada um desses cantos, mas não
dizia mais nada. Não me tocava mais, não conversava. Fechou-se num mundo só
dele e me deixou de fora. Depois de saber como era ser três, nós não queríamos
ter que aprender a ser dois de novo. Não queríamos nos contentar um com o
outro.

Vi Rafael se afastar um pouco por dia e não quis pedir para ficar. Sem
Gabriel também não tinha mais Rafael. Cinco anos sendo três, dois não bastará
nunca mais. É difícil beijar uma boca e não se contentar com o gosto dela,
abraçar um corpo e saber que falta um. Rafael sentia o mesmo. Me beijava e
terminava chorando.

O dia que o pai do Gabi fez o que fez acabou conosco. Não adiantava mais
continuar em dois sem a presença do terceiro porque viver em dois também nos
machucava.

Foi assim que as brigas começaram. Rafael chegava primeiro a algum lugar,
e se irritava que eu demorasse um pouquinho. Ele queria estudar e eu queria ir
para o bar, e nós brigávamos sem chegar a um denominador comum.

A loja, a menina dos olhos do Rafa, virava um fardo que ele tinha que
carregar sozinho porque nem eu, nem o Gabi, queríamos mais saber dela.

Tudo acabou de vez quando a mãe do Rafa entrou em cena e contratou um


advogado para acabar com a graça de Seu Guilherme. Depois de perceber o
valor do pró-labore que o filho recebia por sua fatia da Resist, ele começou a
fazer exigências, sempre querendo mais dinheiro, mais posses, controlar uma
empresa que nunca foi dele.

Ligava no celular de Dona Lúcia, como se fosse a hotline para uma


funcionária sua, e pedia mais quinhentos vestidos de um modelo que nós não
produzimos mais do que cem. Dizia que a loja x ou y estavam interessadas e
comprariam por um bom preço. Cagou para o modelo de negócios do Rafa que
funcionava pela alta demanda e a pouca oferta, batia na tecla de que fazer mais
vestidos significava mais dinheiro, e ignorava o fato de que as pessoas que
compravam conosco queriam peças exclusivas e diferentes.

Chegou ao cúmulo de chamar o trabalho de formiguinha da tia de burrice,


porque ela podia terceirizar todo o processo nessas “colombianas que costuram
baratinho no Bom Retiro”, desconsiderando que boa parte dessas “colombianas”
eram imigrantes ilegais e escravizadas.

Questionava o valor dos lucros do Gabriel, pedia o relatório de gastos todo


mês, reclamava do uso de água, eletricidade e telefone do galpão de onde ele
nunca foi embalar uma caixa sequer. Ele só queria ganhar, não importava o quê,
só queria ganhar. Pediu para que o dinheiro do filho fosse depositado em sua
própria conta e mandou que o próximo catálogo fosse enviado no e-mail dele,
como se ele fosse diretor de moda ou entendesse alguma coisa de costuras, para
que ele aprovasse antes anunciarmos para o público.

Tia Lúcia, que dava o sangue por seu trabalho todo dia, que era o principal
motivo pelo qual nós três tínhamos aberto a loja, chorava no telefone toda vez
que falava com Seu Guilherme porque esse homem era exatamente igual ao ex-
marido que ela deixou, com muito custo, para trás.

(E ele obrigava que fosse a Tia quem o atendesse, porque ele jamais
conversaria de novo com o Viadinho, filho dela).

— Eu vou cortar o Gabi da Resist porque esse é o meu único sustento,


Manuela. – Dona Lúcia me disse enquanto tomávamos café e eu não pude
concordar menos.

Se o pai do Gabi é quem queria controlar a empresa, Dona Lúcia, que o


coração da Resist, tinha que entrar em jogo e fazer seu papel antes que o homem
afundasse não só a vida do próprio filho, mas também a de todo mundo ao seu
redor.

Então, conforme combinado pelos advogados, nós três nos reunimos pela
última vez. Parecia cena de divórcio. Gabriel, Rafael e eu, sentados ao redor de
uma mesa redonda, assinando termos de separação de bens.

Cheguei com o Lipe e um advogado da esposa dele e encontrei Rafael


sentado num canto, os olhos vermelhos, ao lado da mãe e do advogado deles. O
cumprimentei com um “olá” sem graça e de coração partido. Gabriel chegou
depois só com o pai, o macho alfa, dono da matilha, o homem com o queixo
encostado no teto.

Gabriel era só a sombra. Não falava, não sorria, e não olhava para ninguém.
Os olhos do Gabi, que sempre foram lindos, continuavam lindos, mas exauridos
de qualquer cintilância ou vida. Gabriel estava morto, mas continuava do lado do
pai.

O cumprimentei em vão, porque sequer resposta obtive.

Nossa parceria que, até então, tinha funcionado tão bem, estava acabada. Era
o nosso enterro e o pai do Gabi dançava em cima. Seu Guilherme disse que só
venderia sua fatia da Resist (observe bem, que ele não disse fatia do meu filho,
ele disse sua) se fosse por um dinheiro alto. Que, pelo que ele percebia, a Resist
era uma máquina de fazer dinheiro se estivesse na mão correta.

— Nunca pensei que esse negócio de vender roupa de mulher desse em


alguma coisa. – Comentava com os advogados e com a Tia – E a gente pode
fazer muito dinheiro se eu te ensinar como.

— A gente viveu bastante tempo sem você. – A Tia disse – E vai sobreviver
quando você passar. Me diz, Guilherme, quanto você quer para me deixar em
paz?

Nessa batalha de dinheiro, Seu Guilherme chegou a dizer quinhentos mil


reais. Por um comércio online. Tudo porque aparecemos na Vogue, porque
Andressa vestiu um blazer nosso, porque alguns artistas apareciam com nossas
peças em aniversários e nos marcavam no Instagram. Ele jogou o valor lá em
cima porque sabia que não tínhamos como cobrir e porque ele queria dominar o
trabalho da Tia e fazê-la trabalhar para ele, porque ele sabia como gerir um
negócio, e a Tia, que tem feito um trabalho maravilhoso, tinha que deixar de ser
“orgulhosa” e ouvi-lo.

— Olha, seu Guilherme – O advogado da Tia entrou no meio – O que


podemos oferecer é trinta mil.

— Trinta mil?! – Ele riu e se voltou para Rafael. – Trinta mil você enfia no
cu.

A discussão era nesse tom. O Lipe segurava na minha mão o tempo todo,
mas isso não adiantava de nada.

— Gabriel, – falei – você sabe que nós não temos quinhentos mil para dar ao
seu pai! A gente começou com dez mil cada um, de onde ele acha que a gente
tem quinhentos para dar?! A marca toda não vale quinhentos mil!

— Fica quietinha, Manuela, deixa os adultos conversarem. – O pai do Gabi


me respondeu.

— Eu não negocio com esse filho da puta na mesa. – Respondi para Gabriel,
o único que devia falar. – Pede para esse bosta sair daqui, Gabriel, porque ele
não é nada da Resist. Não embalou uma caixa, não foi a uma feira, não tirou uma
foto. Ele nem sabia da Resist até ver seu lucro mensal.

— Se você quer negociar a sua saída dessa empresa de viadinho, – Rafael me


apoiou – então põe seu pai para o lado de fora. Não é o nome dele que está no
contrato e ele não assina merda nenhuma.

— Gabriel não é doido de me colocar para fora. Ele tem cabeça de vento, vai
aceitar qualquer valor e só estou aqui porque ele quer. Por mim a gente não
vende parcela nenhuma!

— Gabriel, seja homem e ponha esse bosta no seu devido lugar. É o mínimo
que você me deve! – Reclamei – Porque, se ele não sair, as coisas vão ficar
muito difíceis. Somos em três sócios e esse merda de pai acha que ele é sócio
majoritário, quando na verdade sempre foi a Tia. Nada do que ele quiser para a
Resist será implantado e eu, eu te garanto, eu vou fazer o possível para tirar todo
o poder dele. Se ele não quer vender, tudo bem, nós pagamos a parcela de lucros
que lhe é de direito, mas ele não dá mais um pio dentro da loja da Tia e eu vou
me certificar disso todos os dias.

— Mas olha a audácia dessa…

— Estamos aqui só de cortesia. – Rafael continuou – Porque seu pai quer


que a gente venda um blazer por cinco mil reais e contrate trabalho escravo para
fazê-lo. Essa reunião é para te tirar desse furacão, mas, se você quer continuar
conosco, ótimo, tem espaço para você. Só que para seu pai, não.

— Filho, faça o que seu pai está te falando: não venda. Dona Lúcia e
Manuela são suas sócias, mas nada que um pouco de jeito e mão firme não as
ponha em seus devidos lugares.

— Pai, – Gabriel abriu a boca – me espere lá fora.


— Como é que é?

— Eu só quero o dinheiro. – E a gente sabia que não era verdade. – Me dá


um tempo, nunca quis mexer com roupa. Na hora parecia ser um bom negócio,
mas agora não é mais, e eu quero que a Resist se exploda.

Gabriel falou que quer que a gente se exploda?!

— Filho, pensa lá na frente.

— Lá na frente eu serei arquiteto. – Influenciado pela minha mãe e os nossos


sonhos, não pelo pai que nunca nem botou fé no potencial dele. – Não tenho
nada a ver com roupa.

Incrível como o pai dele se contentou com esse argumento. Xingando Rafael
mais uma vez, ele se levantou, xingou Dona Lúcia e lamentou a ausência de um
pai para Rafael antes de sair.

Dona Lúcia foi a primeira a chorar de alívio. Rafael segurava a mão dela por
baixo da mesa, os dois com os nervos em flor. Só a figura de Seu Guilherme já
servia de gatilho.

Procurei as mãos do Gabi por cima da mesa, aliviada por ele ter dito alguma
coisa, já sonhando com uma reconciliação, nós três de novo, mas ele não
esboçou nenhuma reação e tampouco me deu a mão.

— Cinquenta mil. – Ele disse em tom grave e impassível.

— Gabriel, – eu pedi – volta para a gente.

— Eu estou fazendo isso em respeito à senhora.

— Tudo bem, menino. – A Tia limpou as lágrimas, mas não sorriu aliviada –
Posso pagar de cinco vezes?

— Onde eu assino? – Ele assentiu e se virou para o advogado da Tia.

— Enviamos o contrato semana que vem.

— Então estamos terminados.


Se levantou, com a frieza que nunca vi, sem chorar e nem sorrir, como se
fosse só um homem de negócios, nem com o nosso Gabi ele se parecia mais, e
foi embora.

— Manuzinha, – Dona Lúcia colocou as mãos no meu ombro tentando me


acalmar enquanto eu chorava feito uma louca – eu não quero te ofender, você e
Gabriel me ergueram do zero. Eu era costureira de bairro e agora consigo ser
tudo isso. Não me leve a mal, amor. Te quero como uma filha para sempre, não
importa o que aconteça daqui para frente.

— Tia, – limpei as lágrimas – sempre fizemos a Resist pensando na senhora


e nos sonhos do Rafa. Eu nunca quis saber de lidar com roupa, meu pai tinha o
dinheiro para investir e minha cunhada é influente. Usei os dois para te ajudar a
ser o que a senhora sempre foi, e não me arrependo de nada.

— Me desculpe ser essa pessoa, mas eu gostaria muito de poder comprar a


sua parte também.

Mais do que o divórcio com Gabriel, era a nossa separação por definitivo.
Rafael olhava para o tampo da mesa, sem me olhar nos olhos, o rosto todo
molhado e nenhuma palavra para me dizer.

Eu sabia sobre a intenção deles de comprar a parte do Gabi, só que ninguém


me disse sobre querer comprar a minha parte e seguirem com a empresa sem
mim.

— Eu sei que é difícil ter que ficar no meio de briga de namorado, Tia. –
Chorei – E desculpe fazer a senhora passar por isso.

— Você é como uma filha para mim, Manu, só que a Resist é tudo o que eu
tenho e eu preciso dela.

— Esse é o nosso divórcio, Rafael?

Dei a minha parte para a tia e não peguei um centavo. Como eu poderia?
Doessem o quanto doessem, machucassem o quanto fossem. Das coisas que faço
por amor não me envergonho. E se era para a Resist ser de alguém, com certeza
essa pessoa era a Tia.

Pedi que ela me enviasse os papéis quando o contrato ficasse pronto, e saí.
Era, definitivamente, um adeus.

Capítulo Trinta e Um

Meu WhatsApp não apitou seis hora da manhã, Gabriel não deu bom dia. Seco,
o despertador tocou e chovia dentro do meu quarto. Lá fora estava Sol, todo
mundo feliz, meu pai deu bom dia com um beijo carinhoso, preparou o café da
minha mãe com o mesmo amor de sempre, esquentou minhas duas torradas.

Percorri, sozinha, por todos os lugares por onde andamos juntos pelos
últimos anos. Não era como perder uma pessoa, era como perder uma rotina
inteira.

A POLI continuava a mesma, mas Rafael olhou para mim quando entrei na
sala e não sorriu. Mudou de lugar. Assinei os papéis de separação da loja, dei a
minha parte para a tia, e nós não nos falamos mais. Queria ter fibra para ter
raiva, mas só conseguia ficar triste.

Todos os meus caminhos me levavam a eles e demorei muito para aprender a


andar só. Rafael não queria ser dois já que não poderíamos ser três e as aulas que
frequentávamos juntos eram como tortura. Meus olhos escorregavam para ele. O
professor começava com seus “prove que” e eu me perdia. Não conseguia anotar
nada, pensava em mandar uma mensagem para ele só para saber se estava tudo
bem.

Nunca me toquei que era tão dependente deles até perdê-los. O que Andressa
falou era real, real demais, duro demais. Se todo mundo fosse embora, o que de
fato era meu?

As aulas com Gabriel eram piores. Com o rosto ainda roxo, ele fingia que
não me via. Se Rafael preferiria se afastar, Gabriel esquecia que um dia existi.

Bandejei sozinha e acuada, entristecida, envergonhada. É desconfortável


comer sozinha e eu nunca o tinha feito antes. Desde o dia em que passamos no
vestibular, com direito a festa, no restaurante do meu pai, nunca tinha entrado
sozinha no bandejão da faculdade. Parecia que todas as pessoas estavam olhando
para mim e me excluindo dos assuntos.

Sem eles, eu vivia deslocada. Os dias passavam e eu só conseguia me sentir


pior. Meu pai me pegava chorando no meio de uma cena qualquer de um filme, e
me abraçava dizendo que a dor ia passar. Dizia que sentia muito. Minha mãe me
dava trabalhos desafiadores só para eu ter com o que me entreter, e não
adiantava de nada.

Tudo o que se passava comigo eu compartilhava com os meus dois. Alguma


coisa na família do Lipe, alguma briga entre ele e a mãe, qualquer coisa. Nem
sequer amigos eu tinha, para poder chorar no ombro, e meus irmãos tinham suas
próprias vidas e filhas para se preocupar.

Minguava. Depois do trabalho, eu costumava ir para o galpão da Resist e


ajudar Rafael com os embrulhos. Livres para sermos quem somos, lá a gente
namorava um pouquinho. Rafael sempre de braços abertos e Gabriel sorrindo.

— E se você vier trabalhar comigo? – Meu pai perguntou. – Tem sobremesa


grátis para a Monstrinha que me ajudar no restaurante.

— Pai, eu não tenho mais dez anos.

— Vai ser sempre como se tivesse.

Fui porque ficar em casa era pior. Estudava de manhã, trabalhava de tarde, e
de noite ainda tinha tempo para pensar no amor que perdi. Tarefa e exercício
sempre tem, mas nunca eram o suficiente. No metrô eu conseguia acabar com a
maioria deles, e no trabalho dava fim ao que sobrava.

A primeira vez que perguntei “Palco, janela ou bar?” para um cliente, meu
pai ficou tão contente que não se cabia, e confesso que me ensinou a ser menos
tímida e mais cara de pau com quem não conheço. Trabalhar com o público,
como meu pai trabalhava, obriga a gente a desenvolver algumas habilidades e
perder alguns medos que temos por sermos julgados.

E meu pai, para variar, se gabava da filhinha mais nova, raspinha do tacho,
para todo cliente antigo que aparecia:

— Essa é aquela menininha banguela?


Acredite, trabalhar com meu pai não foi a minha cura, mas me deu um
respiro. Não me dava tempo para pensar, não me deixava olhar o WhatsApp, e
toda vez que um cliente procurava encrenca para sair sem pagar, eu morria de rir
com o meu pai.

E, de fim de semana, eu me enfiava na casa dos meus irmão e olhava as duas


bebês, com o maior prazer, para que o Lipe e o Guto levassem suas esposas para
sair. Geralmente meus pais também ficavam com as bebês, e a gente pedia pizza,
fuçava a adega climatizada da Dê em busca de um vinho suave e bem caro, um
que a gente tinha certeza de que nunca poderia pagar, e assistíamos desenhos
infantis até cair no sono.

Acho que foram meus pais quem me salvaram. E a outra parte, quem salvou
foi o tempo.
◆◆◆

Seis meses depois

Preferi trancar as matérias com eles, porque vê-los me fazia mais mal que
bem, mesmo quando parei de chorar. Pode parecer bobeira, coisa de primeiro
amor de mocinha apaixonada, não ligo. Mas por cinco anos eu vivi um mundo
inteiro à parte. As novelas exibiam triângulos amorosos como parte principal da
trama e a gente ria, achava engraçado o como as pessoas perdiam o cabelo por
uma coisa tão simples de resolver. As pessoas se beijavam em público e a gente
morria de inveja porque nunca pudemos fazer igual.

Todo mundo se formando e a gente trepando feito uns loucos num bar
LGBT.

Todo mundo trabalhando e a gente engatando num projeto para fazer a mãe
do Rafa ser tudo o que ela poderia ser. Vivíamos na contramão e amávamos isso.
O Rafa jogava bola pela POLI enquanto Gabi e eu assistíamos, na torcida só
para fazer piada, porque ele odiava ser espetáculo.

As meninas botando piercing escondido e eu riscando o corpo com mais uma


tatuagem, com o apoio do meu irmão e o aval da minha mãe. Eu pintando os
cabelos para ter coragem de ser chamada de vadia e hoje as mesmas meninas que
me crucificaram postam textões no Facebook sobre mulher livre não ser puta.

É, eu sei, a gente cresce, as coisas mudam. As pessoas evoluem e é por isso


que a gente envelhece.

Só que eu nunca aprendi a ser sozinha. Cada um deles tinha sua própria
família agora, e eu fiquei para trás, no quartinho na casa dos meus pais.

O Rafa já quase se formava engenheiro, deixou a Resist com a mãe dele,


meteu camisa e gravata de definitivo e foi se vender para o banco. Enterrou o
próprio sonho de trabalhar com a minha mãe e já terminava a faculdade de cinco
anos em menos tempo.

O Gabi continuou arquitetura, mas trabalhava na mecânica com o pai.


Venceu um prêmio pela Iniciação Científica que eu o ajudei a criar e já tinha
sido convidado para o mestrado.

E eu continuava atrasada nas aulas, correndo para terminar em nove anos a


dupla certificação que levaria sete se eu não tivesse trancado metade das aulas.
Em faculdade pública, quando você tranca uma matéria, atrasa o curso todo
porque cada matéria só é oferecida uma vez ao ano, nunca duas.

Minha mãe podia deixar qualquer projeto com menos de cinco metros de
altura na minha mão que eu fazia do zero, com o pé nas costas, mas nunca me
orgulhei das minhas facilidades como deveria.

Eu sabia que era boa em muita coisa, mas não boa o suficiente porque faltava
a validação essencial. Se antes eu conseguia uma nota máxima, levava para o
Rafa e o Gabi se orgulharem de mim. Orgulhosos da namorada que tinham,
felizes com o meu progresso, era o que me fazia mais feliz do que tudo.

E foi foda aprender a me orgulhar dos meus próprios progressos.

Só fui ganhar alguma felicidade minha quando o curso intensivo com o meu
pai, no restaurante dele, para ter cara de pau de vendedor, foi dando resultados.
Perdi namorados, mas fui fazendo amigos. Primeiro quando me toquei que era a
única menina da sala, e fui me juntar com outras meninas do meu curso, fui
bandejar com elas, depois quando comecei a tocar tamborim pela bateria da
POLI e depois, quando me enfiei em uns projetos doidos, que o Lipe também
participou quando foi seu tempo de universitário, envolvendo avião sem motor,
Ilhabela, e energético.

Feliz não era, bastava trombar com Rafael ou Gabriel que meu mundo
afundava, mas conseguia viver com a cabeça erguida o que, para quem vivia de
chorar, isso já era uma vitória.

Senão isso, bebendo. Meu pai fechava o restaurante e a gente tomava umas.
Na vez da dor de corno do Lipe foi a mãe quem o embriagou, mas, na minha
vez, foi meu pai. Dizia que corno e bêbado todo mundo vai ser.

— Manguaça, filha. Pode manguaçar que o pai cuida.

Vi propaganda da Resist num outdoor na Paulista e joguei a casquinha de


sorvete nela. Tia Lúcia agora usava uma moça de cabelo branco, tatuada, mas
que não era eu, como garota propaganda. Passei da fase da tristeza para a raiva
tão rápido quanto conseguia detonar uma garrafa de vodka com meu velho.

E, no final do ano… no final do ano já conseguia me convencer de que a


fossa passaria.

Capítulo Trinta e Dois

Pode dizer que sou uma vadia sem coração, você não vai ser nem a primeira,
nem a última pessoa a me dizer isso. Mas parar de ter a vida centrada nos meus
meninos me fez seguir adiante e esse crescimento foi doloroso. Toda vez que eu
me sentia culpada por alguma coisa que fiz por mim, me lembrava de Andressa
perguntando o que vai sobrar quando todo mundo for embora.

Já brinquei com isso uma vez e não gostei do resultado.

Por perceber quem era a pessoa mais importante da minha vida, adiantei
matéria, fiz dois turnos de faculdade, de manhã e à noite, tudo para tentar reduzir
os nove anos de dupla graduação para, quem sabe, de volta aos sete.

Se eu continuasse na vida acadêmica dupla, talvez terminasse até antes.


Deixei a consultoria da minha mãe um pouco de lado, e trabalhei para o pai só
nos fins de semana. Parei de acumular trabalhos, e estabeleci prioridades.

Também, nessa altura da vida, que eu parei para me perguntar o porquê eu


fazia duas graduações ao mesmo tempo. Era porque eu queria, ou porque assim
eu teria aula com o Rafa e o Gabi, e ainda faria a vontade da minha mãe?

A quem eu estava agradando ao fazer a tal da dupla graduação? A mim


mesma, ou aos outros? Quanto mais eu me esforçava para terminar logo, mais eu
entendia que isso não me agradava.

Foi mais ou menos a época em que decidi pegar só as matérias que eu queria
e, se você não conhece o sistema da faculdade pública, deixa eu te explicar: Só
se escolhe as matérias quando se tem nota alta. Nas obrigatórias você tem
prioridade se estiver no seu período ideal, mas nas optativas, quem pode escolher
é quem tem nota alta.

Estudando feito uma louca de manhã e à noite, definindo prioridades, eu


alcançava uma nota que me deixava feliz. E, na hora de escolher minhas
optativas, percebi que as matérias preferidas eram de arquitetura, não de
engenharia.

De engenharia eu só gostava das optativas de plástico e energias renováveis,


autossustentáveis, todas por este caminho eco, divertido, e que ninguém da
minha família liga muito. Se a gente precisa quebrar uma construção antiga para
erguer alguma coisa (e como a gente praticamente só faz ponte, tem que quebrar
muita moradia), ninguém liga para onde o entulho vai. Só chama um caminhão,
alguém recolhe, e pronto, a partir daí começamos.

Essa foi a minha primeira Iniciação Científica: reciclagem de material de


construção. Usei as obras da minha mãe como corpus de pesquisa e ela achou
minha IC a coisa mais besta do mundo. “Tanta coisa para descobrir em metal e
estrutura, vai lidar com lixo?”. Por focar em mim, também passei a perceber que
a minha mãe se preocupa em quem eu vou ser no futuro, mas ela não consegue
entender que talvez eu não queira seguir com a pesquisa dela.

Afinal, se você quebra uma parede e mói, o que sobra é uma areia fina. Será
que a gente não conseguiria criar mais cimento em cima dessa massa, se
adicionasse o que quer que fosse?

— Manuela, cimento não é PLA.

Com o plástico de impressora 3D você pode criar uma peça, derreter e usar
de novo quantas vezes quiser, basta ter uma extrusora. Não gera lixo. Hoje eu
faço uma saboneteira, amanhã o plástico da saboneteira estará num copo, num
vaso de design diferente,

numa aliança (a única coisa que nunca reciclei),

ou em alguma coisa totalmente nova, igualmente útil, e, quando se cansar,


servirá de outra coisa.

Com cimento, não. E demorei bastante para achar um orientador no Instituto


de Química que me ajudasse a sonhar alto do jeito que eu sonhava.

— Mas, afinal, você quer ser engenheira, arquiteta, ou química?

Engraçado, mas quanto mais eu me conhecia, menos nãos eu queria falar. A


soma dos privilégios com a liberdade e a falta de medo de encarar, me dava uma
visão ampla do que a criatividade, o conhecimento e a academia eram.

O meu prazer era descobrir. Era inventar. Eu sou plural. Aos poucos eu
percebia que funciono voltada para um grupo. Antes eram meus irmãos, depois
meus namorados, meus pais, e agora só eu. Enfiar na minha cabeça que eu me
basto e que posso somar onde quer que vá, isso demorou muito.

Aos poucos eu aprendia que era a cara da minha mãe, mas levava o espírito
de equipe do meu pai. Bota meu pai num show de rock ou um terreiro, que ele
sai feliz e com cinco novos amigos. Provavelmente bêbado, não, digo, beeeeem
bêbado, mas alegre, com muita história nova para contar, e contando pela
enésima vez o como foi que ele deixou a minha mãe enfiar um salto agulha no
pinto dele.

A diferença entre ele e eu é que eu contava da vez que namorei dois meninos.
Todo mundo ao meu redor sabia, era a história que eu contava a qualquer um,
com orgulho, feliz por ter passado por essa experiência, mas nunca contando
como foi que acabou porque também entendi que essa ferida nunca vai fechar.

Não doía, mas não estava curada. Sangrava cada vez que eu olhava o
Instagram do Gabi, ou o Facebook do Rafa. Eu tinha saudade das coisas que a
gente vivia, mas também queria contar a eles como que andava a minha vida. O
tantão de coisas que descobri, que aprendi, que inventei, e que amei fazer.

E também queria saber como era a vida de engenheiro que trabalha em


banco, e de arquiteto com mão na graxa. Queria saber se eles andavam felizes
como eu aprendia a ser e a me bastar.

Nessa onda de não dizer não foi que me meti em mais uma. Almoçávamos
na casa do Lipe, todo mundo, os bebês da família dançando entre os abraços,
Madalena do Guto e a Olguinha do Lipe, as duas falando na língua dos bebês, e
nós trocando figurinha do jeito ácido que a mãe conduz todos nós. A Bia
gravidinha com o sorriso calmo, o chapéu no encosto da cadeira, a irmã dela
com um sorriso sereno e preocupada com a comida, enquanto o Lipe conversava
com o pai sobre o restaurante, e o Guto olhava todos nós com um olhar sereno,
meio com jeito de despedida.

— Em pensar que eu achei que você seria o solteirão da família. – Cutuquei.


— E em pensar que achei que você seria uma Felipinha apaixonada pelas
mesmas pessoas a vida inteira. – Ele me devolveu.

— Por mais curioso que isso pareça, eu sou uma solteirona feliz.

— É, também tô feliz com a minha sina.

— Tá mesmo?

— Tô, tô.

— Guto, você já foi melhor de mentir.

— As duas estão querendo levar todos os cavalos para a Europa.

— E é isso o que está te deixando com cara de adeus?

— Elas estão planejando ir também.

— … mas que porra?

— Eu já entendi que a Botelho, a empresa delas, é um negócio mundial,


mas…

— É chato ser casado com quem vive na ponte aérea, né?

— Assim parece que eu reclamo do trabalho delas, mas não é isso, é que a
viagem não é de quinze dias.

Depois do almoço, quando colocamos as bebês para dormir e a Bia também


se deitou, puxei Andressa de cantinho e perguntei qual era o novo
empreendimento delas.

— Finalmente desmembrei meu time de Portugal. Depois do escândalo do


desvio de verba que quase fez seu irmão ficar louco… – Ela sorriu para o marido
que conversava com a mãe e uma garrafa de cerveja entre eles, no pórtico que
dava da cozinha para a piscina – Percebi que quem se recusou a vir para o Brasil
era totalmente dispensável. Tecnicamente, tudo o que eu preciso está aqui.

— E o que isso tem a ver com Europa?


— Desgaste dos cavalos, Manu. É muito cansativo e muito caro levar e
trazer cavalo de três em três meses da Europa para cá. É cansativo para Bianca,
que não dorme se não vai junto com eles, é traumático para os cavalos… se a
gente levar todos eles para a Europa e cuidar deles lá, dá para chegar na Europa
inteira e no Oriente Médio sem precisar de avião, só por trem, ou de navio. E
tenho certeza que nosso desempenho nas corridas melhorariam só por não
termos cavalos desgastados.

— E o Jockey daqui? Você vai se desfazer?

— Não, de jeito nenhum. Aqui é a minha casa, Manu. Eu amo esse lugar. O
espaço que os Premium correm será usado para criação de cavalos, treinamento
e doma, e depois, enviados para correr lá.

— É esperto. - Concedi.

— É. E o bom é que eu casei com um engenheiro, então quem está


projetando o novo espaço de treinamento é seu irmão.

— Ele não me falou nada…

— Não quis te atrapalhar. – Tá parecendo a mãe, já. Entra no meio das


conversas sem ninguém chamar, e interrompe. Com o casco vazio da cerveja, ele
abria a geladeira, um pouco alterado, e se intrometia. – Tá cheia de coisa da
faculdade, então tô omitindo um monte de coisa que só vai servir para encher a
sua cabeça.

— A gente contratou um time de peso na Inglaterra. – A Dê comentou –


Contratamos um especialista em logística e ele acredita, pela quantidade de
escoamentos possíveis, que o Canal da Mancha é o melhor lugar para instalar um
novo centro de treinamento.

— Ogra, – a mãe também se intrometeu e reclamava da demora do Lipe para


abastecer a bebedeira – cê não quer pegar esse trabalho, não?

— Bom, acho que isso é coisa para a Miller & Miller resolver. –
Delicadamente e com classe, Andressa se retirou da conversa – Mas saiba que
você será muito bem vinda ao time, se quiser.

Com uma cerveja nova, fomos os três para a piscina. O Lipe enfiou os pés na
água, a mãe também, mas eu nunca tenho classe quando chego perto de água:
arranquei o vestido e me joguei.

— Cacete, como tá fria!

— Vai tomar cerveja também, Ogra? – Enchendo o copo da mãe, o Lipe


perguntava do meu.

— Nah. – E voltei para o assunto principal antes que ele se perdesse – Mãe,
tá falando sério?

— Sobre o novo centro de treinamento? Tô sim. Você já fez coisa mais


difícil.

— É um projeto grandioso, tem mil acres de terreno, mas não é nada


diferente do que tem aqui: Tem pista de corrida, plainagem de terreno, piscina
aquecida, estábulos. E tem uma estalagem para cavaleiros em época da baixa
temporada, para que eles fiquem no mesmo espaço que seus cavalos.

— É quase a mesma coisa que aqui. – Concluí.

— É.

— … não parece muito difícil.

— Vou falar como Marido e não como engenheiro responsável, tá?

— Beleza, manda aí.

— Se eu tiver alguém lá, para coordenar a obra, as Botelho não teriam que
viajar até que chegasse a hora da remoção dos cavalos, o que vai acontecer em
não menos que dois anos. Com alguém do time Brasileiro em campo, tudo seria
muito mais fácil.

— Ainda mais alguém de confiança. – A mãe endossou.

— E elas pagariam para que isso fosse real. Você conhece a minha esposa e a
Bianca, sabe como elas são com essa coisa de manter o dinheiro dentro da
família.
— Tanto é que elas sabem que existe engenheiro especializado no terreno
Inglês, na construção de estalagem para equinos, mas vieram para o Lipe, porque
confiança é tudo.

— E fui eu quem montei o centro de treinamento daqui. E até hoje elas não
têm do que reclamar, não é?

— Tudo bem, vocês não precisam me convencer.

— E aí, Manu? O que me diz? – Sorria. O Lipe sorria tanto, que mesmo se
eu quisesse negar, pensaria duas vezes antes de dizê-lo.

— E a minha faculdade?

— Você vai ter que trancar.

— Porra, aí não.

— Se esse projeto vai ser seu, você vai ter três meses para arrumar tudo por
aqui, contratar uma construtora lá, e se mudar. A faculdade você pode fazer lá, se
quiser.

— Manuela, não me enrola. – A mãe falou – Faz sua mala e vai!

— Calma, mãe, deixa eu ver quais são as linhas pequenas antes de aceitar!

— Manu! Pelo amor de Deus, você não tem nada que te prenda aqui. Essa é
a sua oportunidade de ouro e que vai abrir tantas portas no futuro, que se você
não for, é porque é burra.

— Eu ia te chamar quando estivesse de férias da faculdade porque sei o


quanto você tem se esforçado, – Se a mãe é dura e fala as coisas na lata, o Lipe
amacia antes – mas eu gostaria muito que você cuidasse desse projeto,
principalmente porque é da Dê.

— Por quê?

— Como marido, eu só quero que esse troço fique pronto o quanto antes,
para que ela volte logo. Como engenheiro, eu sei que tempo e perfeição andam
alinhados. Nada contra Andressa viajar, é o trabalho dela, nunca vou reclamar
daquilo que a faz feliz, mas só de pensar que ela quer viver na Inglaterra por um
ano… isso corta o coração.

— Tá certo, Lipinho.

— Pensa com carinho, Manu. Todo mundo só tem a ganhar se você for, mas
tem que fazer isso consciente de que vai demorar e que vai mudar tudo na sua
vida.

Capítulo Trinta e Três
(Três meses depois)

— Eu só queria te dizer… Que eu não me arrependo de nada. Nem do modo


como nos aproximamos, nem do como fomos felizes, nem do quanto nos
escondemos dos nossos pais. O que aconteceu com o Gabi era uma possibilidade
e a gente devia ter prestado mais atenção ao que poderia ter dado errado, mas…
mesmo assim, eu teria feito tudo de novo, do mesmo jeitinho. Não sei se acredito
em alma gêmea, ou se eu vou ter coragem de me enfiar em outro amor, mas
obrigado por terem me ensinado muita coisa sobre mim mesma. Tanto como
quando éramos três, mas também depois, quando me vi sozinha. Eu vou sempre
amar vocês, não importa para onde a vida me leve. Eu não sei quem eu sou e não
acredito em quem fala que se conhece, mas aprendi muito de mim com vocês. O
quanto eu envergo e não quebro, e o quanto, caso eu quebre, sempre vai ter
alguém para me colar de volta. É horrível dizer isso assim, mas não vou ter outra
oportunidade para dizer, então… estou indo para a Inglaterra. É possível que eu
fique muito tempo lá, e nem sei se eu volto. É por isso que estou gravando essa
mensagem. Obrigada por todos os nossos momentos juntos, e, se a gente se
trombar qualquer dia, que a gente seja mais adulto do que tem sido. Vocês me
evitarem pelos corredores, depois de tanto tempo sendo três, isso acabou
comigo.

Soltei o botão para terminar de gravar, e saí do grupo de WhatsApp intocado


por mais de ano, que incluía nós três. Livre. Sentada na calçada do restaurante
fechado, uma garrafa de uísque que nós roubamos do bar entre os calcanhares,
meu pai fazia carinho nas minhas costas. Minha mãe, sentada do meu outro lado,
deu um gole na sua cerveja e sorriu meio chorosa.

— Em pensar que eu detestei saber de vocês três no começo.

— Detestou mais pela mentira. – O pai cutucou. – Porque os dois ainda são
meus genros no coração.

— Não fala assim, pai. – Engoli o choro porque não tem mais estoque de
lágrima para chorar por eles – Parece que eu nunca vou fechar esse capítulo para
seguir para o próximo, se você ficar falando que são seus genros.

— Coração de pai não falha.

— Falhou quando você achou que o Lipe ia terminar com a Bia. – A mãe
cutucou de volta.

— Acidente de percurso acontece com todo mundo.

— É, Mãe Dinah, mas não fala para a sua filha que eles são seus genros.
Deve ter um cara legal por aí que a mereça mais e que não seja tão filhos puta
que quanto aqueles dois.

Eu já disse que amo a minha mãe?

— Não fala assim, Nina.

— Essa coisa de superar chute na bunda com classe não é comigo. Rafael e
Gabriel são dois frouxos. E acabou, Dio. Bando de frouxo arrombado e que não
merece a nossa caçula.

— Bom, – o pai discordava totalmente, e, em partes, eu também – o que


você quer fazer na sua última noite no Brasil?

— Eu tenho uma ideia. – Da bolsa à tiracolo que carregava, a mãe tirou uma
embalagem de plástico com tampa e em formato cilíndrico. Depois aprendi que
o nome era bagueira, feito para guardar um cigarro, mas na hora eu não sabia.
Puxou um cigarrinho enrolado à mão, deu para o pai cheirar, e eu não entendi
nada.

— Nina, onde você arranjou isso?

— Eu tinha um amigo… – Ela se enrolou para se justificar e eu ri escondida,


porque a única pessoa que deixa a mãe sem jeito é meu pai – na época do
doutorado. Mandei um e-mail perguntando se ele ainda tinha e ele disse que
sim…

— Mãe, se você queria fumar um, porque é que não me pediu? – Não que eu
tenha o vício, mas em roda de amigos, sempre tem alguém que tem.
— Há quanto tempo você usa, Manu?

— Pai, eu não fumo, é que eu sei quem tem…

— Então você nunca deu um tapinha?

— Também não falei isso.

— Bom… – A mãe pegou o cigarrinho da mão do pai, puxou um isqueiro da


bolsa e o acendeu – última noite da minha filha e eu sou uma mulher adulta.

— Mãe, mas isso ainda é crime.

— Melhor ainda, que se a gente for preso, você fica na mesma cela que eu e
nunca vai para a Inglaterra.

— Nina, pelo amor de Deus, olha o que você tá falando… – Enquanto o pai
reclamava, a mãe acendeu, puxou e prendeu. Eu quase tirei foto da cara do meu
pai, de tão escandalizado que ele ficou.

— Vai um aí? – Ela ria quando soltou a fumaça – Provavelmente esse é o


melhor que você já fumou, Manu. Meu amigo me disse que não tem nada além
da planta. Sem bosta de cavalo, sem serragem, e sem alimentar o tráfico.
Orgânico. Veio de dentro da estufa dele direto para a nossa mesa.

— Tá se sentindo mais saudável, já? – Perguntei aceitando o cigarrinho da


mão dela, e puxando a fumaça.

— Eu não gosto nem do cheiro desse treco. – O pai continuou reclamando.

— Mãe, eu tenho que te dizer – Soltei a fumaça – que quando bater, o efeito
do álcool vai triplicar.

— Maravilha.

O pai não quis, mas a mãe e eu dividimos aquele cigarrinho e depois os levei
para qualquer bar legal, com uma calçada mais ou menos segura, para a gente
poder beber. A mãe ria de tudo, o pai bebia e achava a mãe a maior graça, e eu,
que não senti muito o efeito, só fiquei meio tonta, ri entre os dois, das piadas
internas, das histórias que meu pai só conta quando tá bem chapado, e os amigos
que fazíamos na calçada, todo mundo encantado de eu sair de rolê com meu pai
e minha mãe, e a minha mãe tão aérea, que teve que voltar carregada para casa.

Foi, de longe, a melhor saída da minha vida. A única despedida possível,


inesquecível, e que vou querer repetir quando tiver dinheiro e puder levar meus
pais para a Inglaterra para mostrar para eles coisas que eles ainda não viram.

— Tá combinado então, Ogra – O pai segurava a mãe no colo antes de entrar


no quarto deles – Próximo rolê é você quem banca.

— Dio, – a mãe estava tão louca, que não abria nem o olho para falar –
quanto falta pra gente chegar em casa?

— Tá quase, Nina. Bom, – ele deu um beijinho na testa dela e sorriu pra mim
– até amanhã, Manu.

Dia seguinte, antes da gente ir para o aeroporto, a mãe estava com tanta
ressaca, que já tinha tomado dois comprimidos. Com a cabeça apoiada na mesa,
nem bom dia me deu quando entrei na cozinha.

— Suas malas estão prontas?

— Estão. Bom dia, mãe.

— Cacete, por que eu bebi tanto?

O pai ria enquanto contava as coisas que a mãe não lembrava, e eu sentei
para comer. Rabugenta e com sono, ela negava que tinha dado em cima do meu
pai, achando que não era seu marido, e ele mostrava o telefone celular dela,
riscado por ela, nas costas da própria mão:

— Para você não achar que tô mentindo, ó, tá aqui o seu telefone.

— Cê não lavou nem a mão e tá fazendo meu café???

Cara, eu tenho os melhores pais do mundo.

— Para o Café da manhã da minha campeã, – Nem bateu, nem tocou


campainha, o Lipe só foi entrando sem cumprimentar ninguém com uma
sacolinha na mão, e a filha no braço.
— Docinhos!

— Cê não vai sair do Brasil sem antes comer um último rolinho.

Canoli de creme. Risca o que eu falei antes: eu tenho a melhor família do


mundo.

— Cadê dona Andressa? – A mãe perguntou

— Tá no aeroporto, aparentemente eles estão trocando a sua passagem e o


resto sou proibido de contar.

Também não demorei para descobrir. Guarulhos ficava bem longe de casa e
nós saímos cedo. Olguinha no bebê conforto de um carro super caro do Lipe, e
eu no banco de trás do carro do meu pai. Minha mãe dormiu a viagem inteira e,
quando acordou no estacionamento do aeroporto, já se sentia melhor.

— Só sei que fazia muito tempo que não me sentia tão velha. – Ela
reclamava. – Puta merda, tô toda quebrada.

— Mas o que aconteceu ontem que a mãe tá tão dolorida?

Enquanto subíamos para fazer check-in, o pai contou para o Lipe e a


Olguinha o que foi que aprontamos.

— E ninguém nem me convida!

— Ah, filho, você é pai de criança, agora. Pai de criança não pode fazer
essas loucuras.

— Eu perdi a chance de ver você chapada.

— Aí, ó: por isso que não te chamei, moleque.

— Quem sabe quando a minha filha crescer.

Andressa conversava com um cara alto, esguio, de terno, e blindado por


cinco seguranças. Aquele cara eu só conhecia de vista, já fomos apresentados
numa video-conferência em que eu apresentei a planta completa do novo centro
de treinamento. Ele era conhecido como Sheik, aparentemente, isso é status
social, não um nome. O cara era tão rico, mas tão rico, que não entra na Forbes
como um dos homens mais ricos do mundo porque é uma competição desleal
com o Bill Gates ou qualquer outro ricaço que lhe tome o título

Sobre essa parte da vida da Andressa nunca me importei muito. Bastava


saber que ela andou por aí fazendo muito dinheiro com sexo entre cavalos, e
voltou para ser esposa do meu irmão. O como ela ficou milionária nunca foi da
minha conta, mas eu sabia que ela tinha o envolvimento de um Sheik árabe e,
quando soube que o novo centro equino era em parceria com ele, também
entendi que os rumores sobre o envolvimento dela com milícias e o Sheik era de
verdade.

— Manu, esse é o Sheik. – Ela finalmente nos apresentou e ele era muito,
mas muito mais bonito ao vivo.

Ninguém me disse que eu viajaria com ele, porque, se alguém tivesse dito, eu
não estaria de moletom e apoio de cabeça feito de caveirinhas. Cordialmente o
cumprimentei, morrendo de vergonha, e pedi desculpas pela roupa.

— Tudo bem, ninguém deveria voar doze horas em trajes desconfortáveis.

Ele parecia um cara legal. Vestia terno e relógio que provavelmente


custavam mais que minha casa, e duvido que fossem roupas confortáveis.

— All set. – O Guto entrou na conversa avisando que tudo estava ajeitado –
A viagem da Manuela foi trocada para o seu jato particular.

Espera: JATO? Jato de quem? Do Sheik?

A sorte é que meu telefone tocou e eu tive dois segundos para sair de perto
de todo mundo e não ouvir o resto da história sobre Jato, Skeik e Inglaterra,
sendo que no dia anterior eu chapava o coco com meus pais, na calçada de um
bar qualquer, ouvindo aventuras sexuais doidas demais para serem de quem me
criou.

— Faça boa viagem. – Rafael cortou o clima divertido e levemente solene


entre a minha família e o Sheik. – Só liguei para te desejar isso.

— Obrigada. – E o gosto amargo me enterrou.


Se nossas conversas eram divertidas e alegres, agora só restava o silêncio.
Tanto assunto atrasado, que era como se não tivéssemos mais nada em comum.

Eu só queria desligar logo o telefone. Poder esquecer que ele me ligou.


Engolir o gosto amargo, como fiz quando ele me abandonou e fingiu que não me
via pelos corredores, e seguir adiante. Não tinha vontade nenhuma de conversar
com ele, e o que quer que houve entre nós, acho que morreu.

— Bom, acho que é isso. – Comentei – Tenho que ir.

— Claro. Hm… se cuida, tá?

— Certo.

Depois de passar pela alfândega, mostrar meus documentos, meu visto, o


passaporte e me despedido dos meus pais, do Guto e de sua família, Gabriel
ligou, provavelmente escondido do próprio pai.

— Quem sabe a gente não se tromba quando você voltar ao Brasil. – Gabriel
disse e eu estaquei no meio do caminho, olhando assustada para o Lipe e a Dê
ainda foram comigo até a aeronave porque eles tinham que dar algum
documento de trabalho para o Sheik, que foi na frente para preparar sua equipe
para o voo.

— Você quer se trombar comigo, Gabriel? – E só agora que ele me fala isso?
Depois de um ano?!

— Achei que seria mais fácil parar de te amar, Manu.

— Ah, Gabriel, vai se foder.

E desliguei. Um ano depois? Semanas sem conseguir nem sair direito da


cama, meses pastando sem reconhecer a minha própria rotina, e só quando
consigo me erguer é que eles ligam?

Enquanto eu pastava e ligava para um, depois para outro, querendo saber
deles, querendo retomar uma coisa que os dois me fizeram perder, eu era uma
coisinha que poderia ser deixada para depois. Agora que eu literalmente fugia do
meu país para ser qualquer coisa num outro canto do mundo, é que os dois me
ligam?
Mas vão se foder!

Desliguei o celular de raiva. Andressa olhou para mim com um jeitinho


risonho que eu sei que boa coisa não é. O Lipe reclama que ela só mete um
sorrisinho na cara quando tá prestes a te foder.

— Bom, – Ela parou de frente à porta de vidro com um delegado da polícia


federal parado e montando guarda, e me sorriu ao entregar uma pasta com o
logotipo “Botelho – Breed and Race Horses” estampado – aqui está tudo o que
você vai precisar para a sua primeira semana.

— E depois?

— Depois o trabalho começa de verdade. – O Lipe me sorriu.

— … mas até lá, você vai ter que lidar com gente, com festa e coquetel. Eu
sei, Manu, é um saco, mas estamos entrando no universo deles e eles querem
saber mais de nós. O Sheik vai te guiar por todo o caminho, e ele é confiável, –
ela começou a cochichar e eu entendi que vinha bomba – mas, primeiro, ele vai
tentar de tudo.

— Como assim? – Eu não me dei ao trabalho de cochichar.

— O Sheik… – envergonhada, ela continuou – Ele tem dinheiro, foi criado


para ter poder sobre tudo e sobre todos. Quebrar os outros é um passatempo para
ele. Ele me ofereceu coisas absurdas para me convencer a não casar com o Lipe.
Ele é legal, mas você vai pastar muito até ele te deixar perceber isso.

— Seja firme, Monstrinha. – Do jeito que o Lipe parecia tranquilo em


relação a isso, ele já sabia – E põe o sheik no lugar dele.

— Não é porque ele é Sheik que ele te tem, Manu. Estabeleça limites, que
senão ele monta em cima. Você não é funcionária dele, é a minha. E nem eu vou
montar em cima de você, ok?

— Tá, beleza. O lance é dar coice no Sheik, né?

— Em outras palavras, é. Deve ser pelo excesso de dinheiro e porque


ninguém tem coragem de fazer isso, mas ele recua quando você o enfrenta. Dê
logo dois coices nele, que ele amansa rapidinho – Andressa sorriu e me deu um
abração agradecido. Toda vez que ela chega perto a minha perna treme e,
sentindo o cheiro do cabelo dela, eu inteira tremia. – Se cuida, tá? Obrigada por
cuidar de tudo, não tenho nem como te agradecer. Nos vemos em… seis meses?

— O-ok. – Até gaguejei.

— Tira o olho, – O Lipe me abraçou, rindo, com a princesinha dele no colo –


que essa daí já tem dono.

— Lipinho…

— Não vai mostrar sua nova tatuagem para ela, Marido?

— Ah, Dê…

— Lipinho, cê fez outra tatoo?

— Fiz, mas desisti de mostrar porque ficaria muito forçado. Deixa para outra
hora.

— Não, claro que não. Mostra agora!

Na altura do bíceps, do lado de dentro, um triângulo com um monte de


triângulo dentro.

— Tá, muito bonito e simétrico, mas, se tiver significado, vai ter que me
explicar. – Não entendi o porquê da tatoo, mas entendi menos ainda o porquê ser
forçado me mostrar logo ali.

— Quando você chegou, você colou o pai na mãe de um jeito que não era
antes. São três. Quando você chegou, você colou o Guto em mim de um jeito
que não era antes: são três. Quando você chegou, você colou o Rafael no Gabi
de um jeito que não era antes. São três. Colou a Andressa em mim quando
estávamos separados e nunca deixou e acreditar em nós. Colou o Guto e a
Madalena no resto de nós porque foi a primeira a entender que ela era família.
Somos três. Colou a Madalena na Olguinha. São três. O pai chapa com a mãe e
parece que tirou vinte dias dias de férias, de tão feliz que tá. Você cola as
pessoas, Manu. Triângulo de Pascal: você.

— Mas que hora de bosta que cê arrumou para me fazer chorar, hein?
— Tá ficando melosa e ácida que nem a mãe.

Capítulo Trinta e Quatro

Pensei que seria um avião pequeno porque só iriam dois passageiros e a


tripulação, mas não. Era imenso. Olhei para trás só para dar uma última
olhadinha no Lipe, na princesinha e na Dê. Triângulo de Pascal… só o Lipe
para colocar matemática nos sentimentos. O vento da pista era muito forte e eu
escondi o rosto com o braço enquanto caminhava até a escadinha do avião que
me esperava.

Aquele pátio era privado, longe da vista dos outros, e só para o sheik. Se era
dele, não sei, mas parecia.

O encontrei finalmente quando me deu a mão para subir no último degrau de


seu jato. Mais escuro que meu pai, nariz grande, cabelo liso penteado para trás, e
os olhos castanhos. O maxilar quadrado barbeado e inteiro cheirando a dinheiro
alto. Recusei a ajuda de sua mão gentil, e ele esperou que eu me sentasse num
dos oito bancos, quatro de cada lado da aeronave, em parzinho com uma mesa
no meio parecendo várias salinhas de jantar, para se sentar do lado.

Veja: eram oito bancos num avião colossal. Onde que ele foi sentar? Do meu
lado. Não sorri como ele me sorriu, como se fosse tudo bem ser tão invasivo.
Pelo contrário, fechei a cara e coloquei a mochila entre meus pés, procurando
fones de ouvido e qualquer outra distração.

A conversa seguinte só foi para comprovar o que Andressa tinha me


advertido.

— Então… – Um sorriso grande na cara e a certeza de que eu seria dele em


cinco minutos de conversa – Quem é o seu homem?

— Ninguém. – Fiz uma pausa ao reparar no interesse dele no ninguém e me


corrigi – E todos.
— Uma mulher com muitos homens não tem homem nenhum.

— Com quem eu ando não é da sua conta.

Isso num inglês que eu tive que sacar de todas as séries que assisti com
legenda e todos os memorandos da consultoria da minha mãe. O importante é
que eu me virei.

— . – Ele sorriu com a minha resposta, como se fosse um grande jogo, e


acenou para uma aeromoça loira, longilínea, e perfeita – Café ou vinho?

— Nenhum dos dois, obrigada.

— Ora, vamos lá, me deixe ser um bom anfitrião.

Já não gostei do sujeito. Pode ser bonito e rico: caguei.

— Estou sem fome. – Respondi. E voltei a atenção para o celular.

Ele passou o braço por cima da minha cadeira como se fôssemos namorados.
Eu o entendia: a mocinha que viaja para fora do país, pela primeira vez na vida,
e num jato particular, parecia presa fácil. Qualquer um que nos visse entenderia
que eu era sua nova diversão.

A diferença é que eu sou filha da minha mãe. E a única menina da casa tem
que saber se defender. Minha mãe disse isso mais vezes do que sei contar.

Então eu tinha duas reações: uma, dar vexame (e seria totalmente aceitável) e
outra, agir como a filha da Dona Fernanda agiria. E eu queria o trabalho,
terminar a faculdade na gringa, meu nome num projeto inglês, o dinheiro que ele
tem, mas não o queria. E Andressa já disse que o passatempo dele é quebrar os
outros.

Beleza, pensei.

— Sinto muito, – sorrindo feito uma filha da puta, tirei calmamente a mão
dele de cima de mim e atirei – você é muito velho para mim.

A cara dele. Venci o primeiro round. Ele tem dinheiro e eu pareço uma
ratinha nova sem muita vivência. Em qualquer narrativa isso teria dado samba,
mas não comigo. Cresci com dois irmãos, essa coisa de mijar para estabelecer
território nunca funcionou comigo, nem nunca vai funcionar.

— Eu gosto de homens mais novos. – Sorri de novo, trocando de lugar para


ficar de frente para ele, não de lado como estávamos. – E você tem idade para
ser meu pai.

A aeromoça ainda estava lá, com cara de quem não sabia o que fazer. Seu
patrão tomou uma invertida e, em vez de achar ruim, sorria percebendo que
aquela seria uma boa briga.

— Um café. – Pedi para a aeromoça – Doce, se tiver.

O sheik não disse nada, só fez sinal para a moça sair e ela se foi.

— Agora… – Retomei a conversa – Agora que estabelecemos limites, como


foi que você conheceu a Andressa?

— Tem algo de diferente na água dessas brasileiras. – Ele me ignorou


totalmente e ainda me olhava como uma presa, mesmo que nada na minha roupa
indicasse que eu tivesse mais que dez anos.

— Não é a água. – E tome coice – É que você é muito folgado.

— Andressa disse a mesma coisa quando nos conhecemos.

— Ah, então você banca o machão para cima de todas?

— Só por diversão. – Com um charme gigantesco, coisa que meu pai só joga
para cima da minha mãe quando quer alguma coisa, levou o indicador aos lábios
como quem analisa cuidadosamente – Sou feliz com duas esposas.

— Um homem com muitas mulheres não tem mulher alguma. – Devolvi.

— Eu gosto de você.

— É, mas se tentar colocar a mão em mim de novo, eu te mato.

Tudo isso, senhoras e senhores, antes da decolagem.

Nós gastamos um bom tempo, isso ainda no Brasil, para alinhar os desejos
das Botelho ao espaço físico em East Sussex, à demanda do Sheik. Oficialmente,
as irmãs Botelho contrataram o Lipe para desenhar o novo centro de treinamento
na Inglaterra e eu continuava contratada pelo meu irmão e mãe, mas à serviço
das nossas clientes, donas do Jockey de São Paulo. O Sheik entrava nessa como
parceiro das Botelho e, portando, meu chefe também.

Pelo menos, era assim que eu entendia. E foi assim que me explicaram
também.

Dormi pela maior parte da viagem e fui acordada por uma mão gentil e leve.
O Sheik sorria como se eu fosse uma criancinha, filha dele. Disse que chegamos,
e que era bom que eu colocasse um casaco.

Pela janela percebi o jato taxiando na pista, uma chuva fina e um tempo
nublado. Nunca tinha saído do país, e a atmosfera parecia outra. O ar era
diferente. Procurei outra blusa na mochila, porque meu moletom não bastava
nem para dez por cento do frio que fazia lá fora, e me frustrei com o tamanho da
burrice de achar que só uma blusa bastaria.

Vi a tripulação sair das cabines e se arrumarem em fila, pegando a bagagem


do sheik, sorrindo solene para mim e para ele.

— Fique sempre dois passos atrás de mim. – Numa delicadeza que não
combinava com o cara que tinha tentado dar em cima de mim antes mesmo da
decolagem, ele tirou o terno super chique e colocou sobre os meus ombros. –
Depois te explico.

Avançamos pela área não-comercial do aeroporto, mostrei meu passaporte na


alfândega, um homem de paletó de tweed, óculos, e cabelos encaracolados
arrumados com gel esperava por nós com uma pasta aberta e abarrotada de
papéis, na frente de um policial.

O que eu mais observava era o sheik. Nunca estive do lado de alguém tão
importante. As pessoas se curvavam a ele, os policiais se retraíam, os agentes
alfandegários erguiam o focinho em sinal de autoridade. O próprio Sheik não
dizia nada, só seguia por onde seu homem de tweed indicava, acompanhado
sempre por seguranças que o abordaram no segundo seguinte em que pisou em
terras inglesas.

Depois pegamos um carro com motorista e viajamos por mais duas horas em
meio a uma neblina cinzenta, até pararmos num portão de ferro vazado, coisa de
mansão mal assombrada, e então entramos.

Tive certeza de que estávamos no lugar certo porque, mesmo com chuva, eu
conseguia ver os tratores estacionados e muita lama. O futuro da empresa delas é
na Europa e fiquei orgulhosa de pensar no como elas começaram tratando um
cavalo doente e se estenderam para um império.

Uma coisa era estudar o plano, ajudar na criação de um espaço hipotético,


mas outra coisa, bem diferente, era estar lá, perceber tudo. Confesso que isso me
deu muito orgulho por poder fazer parte.

O carro em que estávamos continuou pela estrada de pedra morro acima e,


alguns quilômetros na frente, vi minha nova morada. Eu já sabia, por ter
pesquisado um pouco, que as mansões árabes têm o quintal do lado de dentro,
como se fosse um forte, mas não sabia que podia ser tão lindo. Assim que
abandonamos o carro, fomos recebidos por duas mulheres vestidas como
empregadas e conduzidos para dentro.

A primeira sala era de estar com uma televisão gigantesca, sofás, e uma porta
de vidro para um jardim, enquanto, se eu olhasse para cima, veria o parapeito de
vidro dos corredores dos quartos, e um teto solar que abria automaticamente ao
toque de um botão.

— Habib!

Duas vozes, duas mulheres. Atrás do Sheik, sempre, vi as duas chegarem,


vestidas da mesma cor, com saias e véus vermelhos, cabelos muito negros e
muito compridos, cheias de ouro, e os braços estendidos em sinal de afeto. Uma
o beijou, a mais alta, e a mais baixinha esperou sua vez. Se cumprimentaram em
árabe e eu não entendi palavra, e depois, em inglês, ele me apresentou.

— Aziz, Tahir, essa é Manuela.

Vestidas em trajes tradicionais e sorrisos perfeitos, elas perguntaram de quem


eu era filha, se eu conhecia Andreza (aparentemente, árabe não fala nem LH,
nem o SSA, de Andressa) e se a Olga recebeu seus presentes.

— Quando Andreza nos disse que enviaria a irmã de seu marido, não
acreditei que fosse uma menina tão nova! – Tahir era a mais baixinha, Aziz, a
mais alta. Tahir era a mais falante e que parecia sempre feliz. Aziz, pelo menos
de primeira impressão, parecia mais contida. – Você fez boa viagem? Ai, deve
estar tão cansada!

Fui tomada pelas esposas do Sheik e guiada para meu novo quarto, que elas
disseram ser “bem ocidental e com cara de Pinterest”. Uma delas era apaixonada
nas coisas do Pinterest, a outra preferia seus próprios costumes.

— Vocês quem decoraram? – Perguntei, com vergonha de colocar a minha


mochila surrada em cima de uma cama tão linda e cheirosa.

— Ah, sim, nós decoramos todos os palácios!

— Deixaremos você descansar um pouco – Aziz cortou a empolgação da


outra e se despediu – Você está com fome? Anne está preparando Machboos, a
preferida do meu marido, e ficaríamos felizes em ter você à mesa conosco.

— Claro! – Não comentei nada sobre a minha fome de leão e fechei a porta
do quarto, um tanto quanto atropelada, quando elas saíram.

Andressa não dá ponto sem nó. Em cima da cama havia um vestido de gala
novo e passado, pronto para uso, ao lado de uma caixa de presente, e outra pasta.
Na caixa tinha um celular. Na pasta, o itinerário obrigatório da próxima semana
porque, essa parte Andressa me advertiu no Brasil, a construtora responsável
daria festas e coletivas de imprensa antes do início das obras.

Meu quarto no Brasil era o mesmo quartinho desde quando eu nasci, cheio
de fotos nas paredes e uma impressora 3D ocupando metade da área de estudos.
Ali, o quarto era imenso, gigantesco de tão chique, cheio de branco em tudo
como um quarto de hotel.

Liguei o celular sobre a cama, não o meu, mas o novo, e meu número inglês
já estava adicionado ao grupo da família, já tinha WhatsApp e mensagem me
esperando. Avisei que estava bem, contei que a viagem foi tranquila (não contei
do coice que dei no Sheik porque essas coisas eu vou ter que aprender a guardar
para mim) e fui para o banho – de banheira, o primeiro banho de banheira da
minha vida.

Saí do banho e minhas malas estavam no canto do meu quarto. Peguei um


macacão preto, ainda da marca da tia, com um grande corte em ambas as laterais
e alças finas, e pensei se a minha roupa não ofenderia as duas donas da casa.

Calcei um tênis procurando onde ficava a cozinha e Tahir me encontrou


antes que eu me achasse. Na sala de jantar, do outro lado do jardim, as duas
esposas colocavam os copos e Anne, uma das empregadas, dispunha os pratos.

— Posso ajudar em alguma coisa?

— Oh, querida, não, não. Você é nossa convidada, por favor, sente-se.

Tudo o que eu sei sobre as mulheres muçulmanas é que elas não falam e não
divorciam. E que boa parte delas prefere morrer queimada a ter que se deitar
com seus maridos. Nunca tinha visto, nem ouvido, sobre a alegria delas ou a
hospitalidade com que tratam uma mulher que não é de sua religião.

— Machboos! – O sheik parecia uma criança feliz com sua comida favorita.
De calça branca, nenhum sapato e camisa da mesma cor, ele entrou na sala de
jantar e beijou as duas esposas.

— Podia ter nos dito que a irmã de Andreza era uma mocinha tão jovem. –
Aziz comentou e só se sentou depois de seu marido.

— Eu não sou irmã de…

— Oh, quanta tatuagem! É henna?

— Não, são de verdade, eu que…

— Uh, deve ter doído muito para fazer todas elas! Uma pele tão branquinha
como leite…

— Tahir, por favor, Amor, deixe a hóspede comer. – Escondi o riso quando o
Sheik se envergonhou diante da esposa.

— Não, tudo bem – tentei – pode perguntar o que quiser.

— Você é casada?

— Não, eu…

— Nós arranjaremos um marido para você. Um marido bom e honesto!


◆◆◆

Andressa mandou mensagem assim que voltei para o quarto: “Você já


conheceu Aziz e Tahir?” E eu respondi que estava até tonta com a quantidade de
perguntas e comentários que elas fizeram em não mais que uma hora de refeição.

“Elas são uma bênção. Faça uso delas. Aziz adora maquiagens, então, se
você pedir ajuda para a festa de hoje à noite, ela ficará feliz”.

Vestida com o tecido mais caro da minha vida, uma hora antes do horário
combinado e com os saltos nos dedos, andei pelos corredores do primeiro andar
até ouvir vozes femininas em uma porta. Bati duas vezes, morrendo de vergonha,
e fui atendida.

— Aziz, você pode me ajudar? – Aziz vestia um lindo vestido azul turquesa
quando me atendeu. – Eu não entendo muito te maquiagem.

Manipuladora e precisa. Andressa tinha razão. Aziz abriu um sorriso enorme,


todo feliz e me colocou para dentro de seu quarto.

Pronta e pontual, o Sheik me cumprimentou quando nos encontramos.


Perguntou, mais uma vez, se eu tinha a planta do novo empreendimento das
Botelho, e eu senti que deveria pegá-la, mas não o fiz. Um motorista me
conduziu a um carro chique, e eu finalmente entendi o que era o jetlag que todo
mundo comenta. Sentei e senti o sono chegar, misturado com uma tontura
descabida e bem inoportuna.

— Vá na frente. Vou esperar Tahir terminar de se arrumar.

— Certo. – Comentei quando o motorista fechou a porta para mim e voltou


para o próprio banco. – Então te vejo lá.

Escondi o medo e o receio de estar sozinha no estrangeiro, e numa festa que


não conhecia ninguém. Saltei do carro quase uma hora depois de ter entrado, de
frente a um edifício antigo, fortemente guardado por seguranças e força policial.

Sozinha, puxei um pouco o vestido preto para cima para não molhar nos
degraus, e continuei. Dei meu nome para o leão de chácara, recebi uma chave
em forma de cartão, que, aparentemente me dava acesso a um lounge de
reuniões VIP.

Festa de rico como nos filmes. Caramba, nunca imaginei que entraria num
lugar desse só por conhecer as pessoas certas. Um moço tocava um baixo
acústico e ninguém assistia. Em vez de colocarem uma caixa de som tocando
qualquer coisa ambiente, contrataram um músico. Garçons mais bem vestidos
que todo mundo que eu conheço circulavam entre as pessoas com bandejas na
mão.

Ninguém ria, achei esquisito. Todo mundo se conversava baixo, analisava os


demais, e enchia a cara. Meu celular tocou bem quando eu caçava um garçom
para poder me misturar à multidão.

Outra mensagem da Dê: “Se eu conheço o Sheik, ele te deixou ir na frente e


você está sozinha na festa”. Procurei um canto para responder, e digitei: “Sim,
estou sozinha”.

— Ótimo. – Ela me ligou e eu atendi – Manu, por favor, não me odeie.

— Dê, eu não me importo com o que falam de você. Uma mulher tem que
fazer o que puder para se destacar e você se destacou! Eu não vou te julgar,
porque qualquer homem na sua posição teria orgulho das coisas que fez.

— Você é mesmo filha da sua mãe, não é?

— Ácida e melosa – Eu ri, escondendo a boca na mão para não ser o único
dente aparente na festa inteira – Foi o Lipe que disse, só tô repetindo.

— Tá, Filha da Satanás, me escuta:


Capítulo Trinta e Cinco

A festa era só um pretexto, ninguém resolveria nada entre aquelas pessoas. O


importante era a chave para o lounge VIP. Andressa disse para eu entrar na sala e
assumir a narrativa.

— Ninguém confia em você, meu amor, assim como ninguém confiava em


mim. Você chega com esse cabelo colorido, o corpo tatuado, e ninguém entende
como vai coordenar a construção do centro equino. Mostre para eles. Tem um
concierge na sala só para te servir, faça uso. Ofereça vinho ou café, controle a
narrativa, coloque todo mundo sentado percebendo que você é dona da sala. É
para isso que o Sheik te deixou ir sozinha na frente, e fez isso porque confia em
mim. Ele acredita que eu sei escolher staff, e, se te escolhi, ele acredita que seja
por um motivo. Mostre o motivo para eles, Manu. Se há um dia na sua vida que
você precisa brilhar, esse dia é hoje.

Tremi nas bases pensando o que fazer para dominar a narrativa e a sala super
chique. Pedi papel e caneta para o concierge, que é como um garçom que fica
plantado no canto esperando ordens, e pedi canetas. Eu devia tê-los trazido de
casa, mas não pensei que seria necessário, então me contentei com canetas
esferográficas e sulfites tamanho ofício.

— Quando eles chegarem, – voltei para o concierge, – deixe café e duas


garrafas de vinho prontas.

Eu nem sabia quem é que ia chegar, só sabia que o sheik chegaria.

— Ah, – Andressa disse antes de desligar – e faça o que for, mas não
entregue a planta para ninguém. É o seu trabalho e ele não merece ser copiado.
Se eles quiserem um centro equino como o meu, que te paguem.

— Tô liberada para falar isso?


— Minha Flor, faça o que quiser para ser lembrada.

O Sheik foi o primeiro a chegar, desacompanhado das esposas, e sorriu


satisfeito de me ver sentada à mesa, também sozinha, com garrafas de vinho e
cafés à disposição. Só não gostou de me ver sentada na ponta da mesa pesada e
de vidro, e, para se sentar do meu lado direito torceu o bico, mas fingi que não
vi.

Tobias, austríaco e de quem Andressa já tinha me falado, chegou depois. Riu


de me ver, não sei exatamente o motivo do riso, mas eu ri também e estiquei
tanto o sorriso, que as minhas bochechas doeram. Depois, enquanto o Sheik e
Tobias se cumprimentavam, chegou o presidente da construtora que contratamos,
o parlamentar responsável pelo controle de obras em East Sussex, seu assistente,
o presidente do Jockey Clube de Westminster, seu filho, e o Líder do Conselho
de East Sussex, que funciona como um prefeito.

A mais nova, a mais inexperiente, e a mais pobre, essa pessoa certamente era
eu. Imaginei o que Rafael faria no meu lugar, se tivesse que falar para um grupo
tão distinto, e ri sozinha enquanto o concierge atendia aos pedidos da audiência.

— Obrigada por virem. – Comecei o tema importante.

— Oh, My Dear – Disse o presidente do Jockey Club – Nós não perderíamos


isso por nada.

— Eu quero começar… – puxei uma folha de sulfite – explicando um pouco


sobre os planos do centro equino. Todos concordam? Penso que poderíamos
deixar as questões políticas um pouco mais para frente.

Peguei quatro folhas de sulfite e usei cada uma delas para um quarto da
planta. O prefeito e Tobias, mais distantes, ergueram seus pescoços e eu os
convidei para virem atrás de mim, se quisessem. Comecei a desenhar, com o
desenho técnico que aprendi no Youtube, os maneirismos de arquiteta que se
aprende na faculdade, e o talento que roubei um pouco do Gabi conforme fomos
crescendo, para desenhar e explicar toda a estrutura que os homens da sala já
sabiam porque receberam um memorando explicando passo a passo todo o
conceito, mas que ficava muito mais fácil explicado assim, no papel.

— É deselegante apresentar assim, na folha, – sorri para o presidente do


Jockey Clube Inglês, – mas penso que um Power Point não seria tão didático.
— Essa é a primeira vez que me interesso pelos desenhos de uma criança
desde que meus filhos viraram adolescentes – O parlamentar responsável pela
regulamentação de obras riu e todos riram juntos – Me diga, quantos anos a
senhorita tem, mesmo?

— Vamos deixar estas questões políticas para o final. – Ri também, enquanto


todos riam, escondendo o rosto no ombro – De todo jeito, foco nas baias.

Desenhei por mais quinze minutos e as folhas, quando terminei, passavam de


mão em mão. Apaixonados por cavalos querem saber como os cavalos serão
tratados, e não quanto tudo aquilo vai custar. Entrei na parte política e expliquei,
sem folhas, tudo aquilo que o Lipe e eu discutimos em casa: sobre o quanto a
gente valorizava a produção de energia eólica, e que, se fosse possível,
gostaríamos de instalar nossa própria energia e, ainda no processo de criação do
centro, queríamos vender créditos de carbono porque o plano era desenvolver
uma fazenda ecossustentável e com o mínimo de danos possíveis ao bioma
inglês dos mil acres que ocuparão os cavalos da Bia.

— Sim, – o parlamentar da regulamentação atacava de novo – mas e o lixo?

— Todo lixo orgânico será usado em unidades de compostagem. Na


produção de capim, macieiras e outras coisas que cavalos comem. – Dei a
entender que não entendia nada de cavalos, mas eles não ligaram – E lixo como
plásticos, metais, e derivados, serão devidamente reciclados. A única coisa que
não poderemos reciclar é o lixo hospitalar. Todo o restante será processado e
entregue para comunidades locais.

— Mais alguma pergunta? – O Sheik encerrou a reunião por mim.

— Hm, sim. – O prefeito de Sussex era um chato. – Temos algumas leis…


sobre… hm… pacto de pagamento igualitário e anti-escravagista… que vocês
ainda não…

— Ah, sim – Respondi antes do Sheik tomar ar – Assinaremos quando o


senhor liberar a nossa construção.

— Sobre isso… – Ele respondeu, ainda reticente – Ainda temos algumas


questões pendentes no parlamento e que… você sabe… não cabe a mim…

— Meu querido, – Andressa já tinha me advertido, em casa, que o grande


problema para nós era a aliança que fizemos e quem somos. No século vinte e
um todo mundo tem medo dos árabes. E das mulheres. – Seu problema conosco
é de ordem política, não econômica. Estamos injetando um patrimônio de cinco
milhões de libras esterlinas, o que dá mais que vinte milhões de reais, gerando
duzentas e cinco novas oportunidades de emprego locais. Seremos a primeira
fazenda sustentável de toda Grã-Betanha. Qual é a justificativa plausível para
vetar a nossa entrada no seu país, se o Prime Minister, amigo íntimo do Sheik do
Qatar, já nos deu sua bênção? É porque somos estrangeiros, de terceiro mundo,
e mulheres?

— É disso que se trata essa reunião, George? – O Presidente do Jockey se


manifestou primeiro.

— Olha…

— Eu vou ligar para o Primeiro Ministro – O Sheik se levantou da mesa. Ele


vive tanto entre os ocidentais que se esqueceu que só é aceito pelos círculos que
transita pelo dinheiro que tem, não por quem ele é?

— Dê-me até segunda-feira. – O prefeito reagiu – Alguns membros do


conselho estão relutantes, sim, mas o que eu posso fazer?

— O seu trabalho como líder é justamente fazer. – Rebati e Deus abençoe a


cara de pau que adquiri com meu velho – Porque, se East Sussex não nos quiser,
o Distrito de Thanet nos quererá. E minha chefe já recebeu isenções fiscais lá,
coisa que não recebeu aqui.

Mentira! Eu só sabia que existia um distrito chamado Thanet porque cacei no


Google Maps onde é que ficava East Sussex!

— Um pouco de boa vontade com nossos amigos, sim? – O presidente do


Jockey Clube sorriu, mas dava para ver que ele estava bem bravo.

— Eu não posso resolver isso aqui, assim. Não tenho poder para decidi-lo
sozinho.

— Tudo bem, – me ergui da mesa e aí sim todos se ergueram – esperamos a


sua ligação amanhã, na parte da tarde. Se não a recebermos, então migraremos
para Thanet.
— Olha, é realmente uma pena mudar para Thanet – Tobias comprou o meu
blefe – East Sussex nos parecia ótimo.

— Questão de boa vontade, não é? – Dei um beijo no Presidente do Jockey,


no parlamentar regulador de obras, no filho do presidente, e saí acompanhada de
Tobias e o Sheik.

Para o Líder do Conselho? Nem mesmo uma palavra.

— Estou impressionado. – O Sheik me cumprimentou, entregando uma taça


de champanhe para mim, outra para Tobias – Andressa me disse que você era
corajosa, mas nunca disse que era tanto.

— Eu tenho uma ideia – Brindei com os dois, mas não bebi – Aqui tem
jornalista, não tem? Sempre tem alguém da mídia rondando esses lugares.

— E você sabe isso baseado nas suas experiências com Andressa?

— É que eu vi na TV – Ri para Tobias que mal se aguentou na gargalhada. –


Mas não importa, vai dar certo. Sheik, você tem coragem de apontar o racismo
do City Council para um jornalista?

— Eu não sei se o Líder está atrasando a autorização de obras por causa de


racismo, Manuela.

— Deixa eu te explicar uma coisinha, ô, Árabe de araque – Árabe de Araque


eu falei em português mesmo, nem soube como traduzir “Araque” para inglês –
Eles só não te vêem como homem-bomba porque você tem dinheiro. Eles estão
todos olhando para nós como a menina desmiolada à trabalho das duas
mercadoras de cavalo gananciosas, e o homem-bomba. Se a gente não rasgar
esse véu e não escancarar, só começa a trabalhar daqui seis meses. E eu não
tenho seis meses para ficar aqui olhando para a sua cara sem fazer nada.

— Ok, I’ll give you that. – Ele concordou comigo e eu fui à caça de um
jornalista.

Só algumas linhas para causar um disse-me-disse: “City Council delays new


project due to racism issues” O Conselho da cidade atrasa novo projeto por
questões raciais – Revela Al Kaabi, Sheik militar do Qatar durante sua estadia,
na Grã Bretanha sobre a instalação de um novo Centro Equino no condado de
East Sussex.

Dia seguinte, antes que eu acordasse, o Sheik recebeu a ligação do Líder.


Agora era só questão de pôr a mão na massa.

— Foi entrada triunfal o bastante para você, Chefa? – Ri quando Andressa


me ligou eufórica.

— Manuela… você era a arma que me faltava.

— Pode aumentar meu salário em dez mil se quiser que eu comece a


trabalhar para você. – A oportunidade faz o ladrão, todo mundo sabe disso.

— O quê? – A coitada até engasgou.

— Eu tô aqui para erguer muro. O Lipe está me pagando, através da


consultoria da minha mãe, para eu vir aqui e coordenar a construção. Se quiser
que eu seja o seu meio-de-campo e faça as Relações Públicas, vai ter que me
pagar por isso.

— Mas eu quem estou pagando para o Lipe! Tecnicamente já estou te


pagando.

— É, mas para erguer muro. O que eu fiz ontem por você foi cortesia. Se
precisar de novo, eu vou mandar o prefeito te ligar e você se vira para resolver.

— Ok. – Ninguém engana a enganadora. – Aceito os seus dez mil reais.

— Libras Esterlinas, viu, Dona? E a minha faculdade fica por sua conta.

— Manuela!

— Andressa, você não pode pedir que eu faça uma entrada triunfal, queira
que eu me destaque, funcione como seu braço direito, e não querer pagar por
isso. Eu mereço esse dinheiro. O Lipe merece bem mais pelo trabalho que fez,
você sabe disso, eu sei disso. Se você quiser passar a perna na sua família, pois
pode começar a levantar a bundinha da cadeira e se virar, porque do mesmo jeito
que fiz meu irmão aguentar dez anos até te ter de volta, o faço ver seu lado
escuro em duas semanas!
— Que fique registrado que eu não estou te passando a perna. Jamais faria
isso, Manuela. Você me conhece bem demais para dizer uma coisa dessas. Sabe
o quanto eu amo seu irmão.

— É, mas pelo tamanho do projeto, você sabe que o dinheiro que ele cobrou
não dá nem para desenhar a cerca.

— E você acha que eu não sei? Seu irmão nunca soube cobrar! Eu joguei um
valor que achei honesto, e ele brigou porque achou que estava dando dinheiro
para ele só porque ele é meu marido! Manuela, se ponha no meu lugar, eu sou
uma mulher de negócios que se casou com um homem que não mede valor pelo
dinheiro. Você quer que eu faça o quê? Enfie dinheiro goela dele abaixo?

— Já que ele não aceita, aceito eu! Não dá para ter um RP e uma arquiteta na
mesma pessoa e achar que vou fazer isso por caridade…

— Tudo bem, Manu. Considere feito.

— Diz pro Lipe me ligar. Vou quebrar o telefone na cara dele.

— Só de noite, que ele tá o dia inteiro no telefone pedindo desculpa para não
sei quem.

— A mãe esqueceu a reunião com a D2M, certeza.



Capítulo Trinta e Seis

Enquanto o boletim equino especializado noticiava a grande transformação na


rota de cavalos, sobre a mudança da frota campeã do Brasil para a Inglaterra, os
tabloides comentavam sobre mim e o Sheik. Algum fotógrafo fez a maldade de
nos fotografar enquanto eu soltava alguma piadinha imbecil sobre docinhos
ingleses e, fora de contexto, parecia um olhar apaixonado.

Entre as Botelho e o Sheik, nenhuma palavra foi dita sobre a fofoca, mas
muito foi comentado sobre a reunião no Lounge VIP e os rascunhos técnicos em
quatro folhas de sulfite.

Quem não gostou nada sobre a foto foram as esposas do Sheik. Assim que
saiu no tabloides sobre o possível affair, as duas mudaram completamente
comigo. Aziz trocava de ambiente ao me ver, e Tahir revirava os olhos.

Tahir não poupa nada, nem ninguém. Se ela não gosta, não gosta. E deixa
bem claro. Enquanto eu almoçava sozinha porque nenhuma das duas queriam a
minha companhia, Tahir virou um pote de sal em cima do meu prato e saiu.

Então, com toda a calma do mundo, peguei meu telefone brasileiro, abri a
carteira, e tirei a aliança de plástico que fiz em épocas mais contentes. Cheguei
em Aziz primeiro, em seu quarto, costurando alguma coisa que não entendi, mas
com um fio tão bonito, que pensei ser de ouro.

— Aziz, podemos conversar?

— Sem a minha irmã, não. – Não eram irmãs de verdade, mas se amavam
como se fossem.

— Onde está Tahir?

— Escondida no banheiro.
— Tahir está escondida para não ter que falar comigo?

— Se você tivesse batido antes de entrar, eu também teria me escondido!

— Ah, puta merda! – Como estrangeira, a melhor coisa que tem é poder
xingar na sua língua materna sem ninguém entender.

Entrei sem bater também no banheiro do enorme e colorido quarto de Aziz, e


encontrei Tahir enrolada nos próprios véus como se isso a blindasse de ser vista.

— Se você tem coragem de jogar sal na minha comida, tem que ter coragem
de me olhar nos olhos. – Ataquei.

E então, enquanto as duas olhavam para mim, abri o celular e mostrei a foto
do primeiro desenho que Gabriel fez de nós. Rafael, Gabriel e eu, no cinema,
apaixonados, eufóricos. Foto feita porque queríamos guardar os desenhos, mas
sabíamos que tínhamos que jogá-los fora para que ninguém nos descobrisse.

— Eu não estou com affair com o Sheik porque ainda não me recuperei
deles.

A história era tão comprida, que começamos no quarto, e terminamos no


almoço. Tahir refez meu prato, pedindo desculpas, e nós comemos juntas. Não
vimos o Sheik e fiquei feliz por ele não ter ouvido a minha história.

— Eu não sabia que as ocidentais podem ter dois maridos!

— Não podem, Tahir.

— O que seus pais acham sobre isso?

— A princípio, eles odiaram. Agora meu pai diz que eles são os genros que
ele pediu a Deus.

— Mas vocês não se separaram?

— Nos separamos, mas meu pai tende a não aceitar que as coisas mudem.

— Pelo que percebo no amor que ouço da sua voz, você também não. – Aziz
quem me fez chorar.
Uma semana depois, coloquei um chapéu de obras e fui fazer o meu
trabalho.

— Será que a gente consegue reduzir o prazo de dois anos para um ano e
meio?

— De jeito nenhum – Respondi para a Bianca, na primeira reunião técnica


por vídeo-conferência que fizemos, no horário do meu almoço.

— Por quê? Algum problema com a construtora? – A Dê se interessou.

— Não, na verdade são todos bem solícitos e responsáveis.

— Então… ?

— É um projeto gigantesco – Freei as ânsias da minha chefe – Não dá para


cortar prazo agora, sendo que nem o terreno foi aplainado. A previsão são dois
anos por um motivo.

— Certo… – Ela não gostou da resposta, mas eu não vou mentir só para
agradar. – E se eu te der um bônus, você acha que conseguimos reduzir o prazo?

— Não sou eu quem cola os tijolos. – Eu sou totalmente contra reduzir prazo
porque desde que sou criança vejo problemas nas obras da minha mãe frustrando
promessas de prazo mais enxuto. – Pode ser que achemos um duto, ou alguma
coisa, ou ocorra uma infiltração, ou chova demais, e os dois anos do Lipe é o
tempo perfeito para conseguirmos dar conta.

— Tá certo, obrigada.

E desligaram. Boa coisa não aconteceria, porque o pouco que conheço as


duas Botelho, elas dariam um jeito de adiantar a minha obra mesmo eu falando
que não.

De noite, quando o Sheik chegou, ele tinha folhetos de faculdades de todos


os cantos do Reino Unido.

— Escolha uma. – Ele disse enquanto enchia duas taças de vinho – E


daremos um jeito de te enfiar nela.
— Isso é chantagem das Botelho, não é? A minha faculdade está garantida,
eu vou me formar.

— Vai, sim. Só que vai voltar a estudar daqui seis meses, quando o projeto
estiver em curso. O que eu estou te dando é a oportunidade de começar já.

— Não faço questão.

— Não faz. – Ele repetiu com algum ultraje na voz.

— Diz para as Botelho que eu não vou ser comprada. O prazo são dois anos
e não o diminuo por ninguém.

— Oh, querida, você já foi comprada. O que te damos é a chance de elevar


seu preço.

Então o elevei, mas não naquela oportunidade. Todo sábio adverte, mas a
minha família, que tem mania de ver arco-íris em tudo, não me disse: trabalhar
para parente é uma merda. Eles esquecem que as leis trabalhistas também se
aplicam a você e sempre te ligam nas piores horas.

Elas queriam que eu fosse a Botelho perdida, e confiavam na minha cara de


pau para isso. E não se engane, porque o Lipe também queria que eu fosse. Tudo
ele achava que era uma boa oportunidade para mim. “Vá para Mônaco, Manu,
você não sabe o que te espera lá”. “Vá para Qatar, Ogra, com certeza você vai
sair de lá com uma experiência nova”.

De país em país, fui migrando e fazendo conexões, mas não diminuí o prazo.
O prazo era sagrado e eu tinha que respeitar cada um dos pedreiros e
funcionários da obra. Em segredo, os engenheiros da construtora previam que
demoraríamos seis meses a menos porque transpus a piscina aquecida para o
lado oposto da pista de treinamento, e isso deu espaço para que duas equipes
trabalhassem ao mesmo tempo, mas não contei a ninguém.

A minha faculdade ficava no meio disso. Diferente do que tinha no Brasil,


tive que escolher uma: Ou engenharia, ou arquitetura, e não doeu escolher
arquitetura. O que doía era ter que ligar para a minha mãe e contar para ela que
talvez, mas apenas isso, eu não fosse voltar como secretária da consultoria dela.

Eu só não chorei quando contei que não seria engenheira como ela queria,
porque estava matriculada em Cambridge. O foco deles são construções
sustentáveis e trabalho manual. Entrei uma vez lá, e não quis mais sair.

Parecia um sonho. De todas as coisas, de trabalhar com Sheik porque meu


Lipinho é casado com uma Magnata, de construir acres de fazenda, a pressionar
prefeito por linhas de jornal, o que mais parecia um sonho foi entrar em
Cambridge.

O triste era entrar sozinha. Aluna de intercâmbio, transferi todas as papeladas


da USP para lá, o Guto me ajudou muito nas burocracias, inclusive enviando
papel por correio, mas entrei sozinha. Não tinha pote de tinta, mãe orgulhosa,
nem Rafael me beijando escondido dentro da sala de matrícula.

Era só eu, meu sonho, meu trabalho, a cara de pau que só aumentava. Parte
porque o trabalho exigia, mas parte também porque vim assim de casa.

Foi num curso de férias sobre restauração predial, em Paris, durante as férias
do trabalho e da faculdade, que conheci um brasileiro chamado Bento. Como a
maioria dos brasileiros que estudam fora, ele tinha mais condições de vida.
Formou-se arquiteto em quatro anos, tempo previsto em uma faculdade
particular, e viajava pela Europa para fugir do pai.

Bento era lindo. Esguio como o Gabi e tinha um mãozão bonito como o
Rafa. Falava um inglês melhor que o meu, me ajudava a comprar comida numa
Paris que não tolera estrangeiro que não fale Francês, e me levava para as
melhores festinhas subversivas que já fui. Tinha o cabelo sempre desarrumado,
um jeito elegante de se vestir, e sempre sabia o limite das pessoas.

Depois o pai dele contratou a minha mãe para cuidar das estruturas de alguns
prédios chiques de arcos retorcidos, mas, na época, nós ficamos amigos porque é
muito solitário ser estrangeiro.

Ele era o tipo de pessoa que vivia triste e enfiado nos cadernos de desenho.
Conheci muito ilustrador que, para fugir da depressão, se enfiava nas artes, mas
como o Bento, nunca. Não sabia o porquê na época, mas você olhava para ele, e
parecia um vidro rachando. Senão triste, bebendo. E ele me levava consigo
porque eu aceitava, e não tinha mais o que fazer quando as oito horas de curso
intensivo acabava.

Ríamos quando esvaziávamos duas garrafas e chorávamos na metade da


terceira. Sempre acabávamos bêbados em algum lugar desconhecido, e um
protegia o outro. Era esse o nosso trato: os dois brasileiros sempre andavam
juntos porque assim ninguém tentava nada contra nós.

(E, em alguns lugares, é bem ruim ser imigrante).

Mas, se não estivesse em perigo, ou num lugar mais esquisito, a gente bebia
e eu só queria saber de trepar para provar que a minha xoxota não morreu
quando me separei dos meus namorados.

Essa era a única coisa que eu não conseguia. Ver beleza nos outros eu via.
Me interessar, até me interessava, mas chegar junto, isso, jamais. Bêbada, num
cara que eu conhecia, isso dava.

— Quando você estiver sóbria. – Ele sempre dizia.

— Por quê? – Bêbada eu nem conseguia focar na cara dele, mas continuava
tentando qualquer coisa – Você não me acha gostosa?

Sóbria nunca cheguei. Queria chegar, mas faltava coragem. Estava na hora
de continuar com a vida. Eu estava de saco cheio trabalhar feito um camelo, de
viver só de estudar, de agradar gregos e troianos. Eu estava de saco cheio de
estudar também, a faculdade lá fora tem um período de provas muito intenso,
feito para acabar com a sua saúde mental se tiver que trabalhar para pagar por
ela.

Só bêbada é que eu me lembrava de que era uma mulher jovem, bonita, e


sensual.

Movida por essa sede de ser alguma coisa, fui tentar com o Bento. Primeiro o
chamei para sair e ele aceitou. Só um novo amor para curar o antigo, não é isso o
que dizem?

Até para aprender a me vestir teve que ser do zero, porque as minhas roupas
e o meu estilo era todo da Tia Lúcia e, na Inglaterra a roupa dela era vaporosa
demais para um reino que vive chovendo.

Jantamos qualquer coisa na rua porque a gente adorava entrar em


restaurantes e pedir takeout, comida para levar. Se não estivesse chovendo, a
gente saía mordendo qualquer coisa e conversando no caminho. Bento era ótimo
de conversa. Era um moleque rico, mas rico de verdade, nascido e criado
milionário, e tinha tanta besteira de sua adolescência para contar, que eu me
pegava rindo escandalosamente no meio da rua, e chamando atenção do povo
que passava.

— Abriu um bar novo – Ele disse, roxo de rir também, olhando as horas no
celular – Você quer ir?

Por que não?

— … mas se você ficar bêbada e insinuar que quer trepar, vou te deixar no
Uber e ir embora.

— Você que é frouxo.

— Toda vez é isso, Manuela! – Não, ele não xinga. Foi o primeiro homem
que encontrei que não fala palavrão nem quando está muito bravo.

— Bentinho, você é gay?

— Se eu falar que sou, você vai parar de querer trepar?

— Talvez.

— Eu não sou gay, Manu. Só…

— Só o quê? É eunuco?

— Se a gente trepar, você vai parar de falar comigo. E você é a única amiga
que eu tenho.

— Bento, você também é meu único amigo e quero continuar com a sua
amizade – Tentei – A questão é que eu quero dar.

— Essa é sua conversinha de bêbada, ou tá falando sério?

— Seríssimo. Tô sóbria.

— Se parar de falar comigo amanhã, Manu, vou te largar para pedir comida
sozinha em francês.
— Rico esnobe do caralho.

— Estamos falando de uma coisa vital aqui, Manuela.

— O quê? Dinheiro e o fato de que eu vou morrer de fome?

— Não, você sabe que eu não ligo para dinheiro.

— Então… ?

Ele sorriu, mas não respondeu. Me deu a mão e me arrastou para o bar novo
que abriu, cheio de drinks coloridos, atendentes tatuados e muita música pop
mixada para ser dançante.

Era o suficiente para a gente se esquecer dos problemas por uma noite. Não
bebi até cair porque estava mais do que curiosa para saber como o Bento é
quando não está sendo seu amigo, e tasquei um beijo nele bem quando trocou de
Rihanna para Madona.

É, eu tinha que dar o braço a torcer: bem o maldito beijava. E aqueles


mãozões, eu não estava enganada não, eram bons.

— Amigos? – Ele ofereceu antes de qualquer outra coisa.

— Amigos. Mas você vai me comer.

Foi no banheiro. Seria um clichê dizer que me arrependi de dar e que só


fiquei pensando nos meus meninos, mas não foi isso o que aconteceu, não. O
toque era diferente, eram outras mãos, o cheiro era outro, não tinha um Rafael
falante e um Gabi xingando. Tinha mãos de menos. Mas, depois, quando ele
entrou e disse umas besteiras, a coisa fluiu.

Não fui eu quem terminei, e acho que pastei o suficiente por causa deles.

E, quando finalmente me convenci disso, de que era hora de dizer adeus para
a foto no celular e a aliança na carteira, gozei com gosto de vitória e vodka.
Meus peitos de fora, meu vestido erguido, e Bento sorrindo ébrio me comendo
gostoso com a mão no meu clitóris. Um sorriso safado que ninguém diz que ele
tem, mas que aparece espontâneo bem quando fazemos cara de “O”.
Em cada bar que a gente ia, a gente se comia. Um mês de curso e depois
mais algum tempo de férias. Eu só precisava desalinhar o coração do sexo,
desconfigurar a rota direta aos meus meninos, desmontar o sexo com amor.
Quando um homem te fareja e te conquista ele é o caçador, mas quando você se
deixa caçar e goza, a gente deixa de ser preza.

Bento foi só o primeiro. Depois vieram outros. Cada um com uma qualidade,
um gosto, um jeito. Encontrei uns bem porcarias, mas nem me dei ao trabalho de
dar o telefone para esses.

E, no final do prazo de dois anos, eu me sentia um pouco melhor do que no


começo.

Capítulo Trinta e Sete

Formei e trouxe meus pais para o rolê inglês que prometi. Para a festa de
inauguração do centro hípico a Ferreirada inteira subiu num avião, as minhas
chefes também, Andressa e Bianca, cada dia me odiando mais porque qualquer
extra eu enfiava a faca, não fazia um favor sequer, nem pagava minhas próprias
passagens porque, isso foi Andressa que disse, aprendi quem precisa de quem
rápido demais.

Mas, também, quando Bianca colou os olhos na grama verdinha, as hortas


para alimentar seus cavalos, o capim orgânico, as pás de energia eólica, todo o
dinheiro que arranquei delas valeu a pena. Não era um centro hípico com cara de
shopping center, era um centro hípico de fazenda, sistemas de aquecimento,
sistemas de monitoramento, entradas com rotas de fuga e saídas de emergência
incrivelmente tecnológicas.

A gente pensa “tecnológico” como uma coisa cheia de botão, mas as vezes
ser tecnológico é utilizar os recursos da melhor forma possível. Criamos um lago
artificial para os cavalos, barreiras com folhagens, não tinha cerca, tudo era
plantação. Se ela quisesse soltar todos os cavalos para um banho de Sol, era só
abrir a baia. Não tinha que manter cabresto, nem sela, nem nada. Bastava soltar,
e deixar que seus filhotinhos fossem livres pelos mil acres de terra.

Enquanto Andressa, a parte racional do coração de duas irmãs, mordia a testa


porque eu torrei o dinheiro dela, Bianca, com o filho mais novo no braço, me
abraçou com tanto amor, que parecia que eu tinha lhe dado um presente.

— Eu não achei, – ela chorou – que fosse ficar tão lindo!

Arabi, o Sheik, me advertiu que Bianca choraria. Mais do que testar os


outros, ele enxerga os limites. Tive bons momentos com ele e a família dele na
estadia daquela casa, vi Aziz engravidar e Tahir tratá-la como uma princesa.
Depois, vi Tahir engravidar e Aziz tratá-la com o mesmo amor.
No final dos dois anos do contrato eu tinha dinheiro e liberdade para ir para
onde quisesse. Corri para terminar a faculdade junto do projeto e recusei as duas
ofertas de criações de centros hípicos: um, no Texas, outro, na Alemanha. O que
eu queria era fazer um estágio não-remunerado no Louvre sobre restauração.

E, quando a placa com o nome da consultoria da minha mãe foi rebitada na


entrada do Centro das Botelho, dei um beijo no meu pai, outro na minha mãe, e
voei para a França.

(Mas tomei vergonha na cara: fui estudar essa língua chatíssima que não fala
oitenta, mas quatre-vingts, o que em português dá “quatro-vinte”, só para você
ter ideia da chatice que essa língua é, mas, dou o braço inteiro para torcer na
hora de assumir que eles são bons com arte. O Louvre tem uma escola de
restauração que não existe outra igual no mundo).

A partir daí, um ano pagando par estagiar, praticamente, entrei no negócio de


restaurar edifícios abandonados e históricos. Era isso o que eu queria fazer.
Cuidar de um patrimônio que ninguém liga, só derruba e monta outro em cima.
Desde a minha Iniciação Científica sobre o lixo nas obras que isso era uma
preocupação, e, com um pouco mais de dinheiro, também sofistiquei as ideias.

Então, quando voltaram a me perguntar: “Mas, afinal, você é química,


engenheira ou arquiteta?” Eu respondia, com gosto, que era um pouco dos três.

Liguei para o Sheik, um ano quase sem vê-lo, e perguntei se ele queria que
eu fosse ao Qatar. Saí do Reino Unido só quando contei para ele o que faria no
Louvre e ele próprio pediu para eu ligar quando terminasse o curso.

Trilíngue, se é que essa palavra existe, aumentei o comprimento das minhas


roupas e viajei para o Qatar. Um país lindíssimo, com homens lindíssimos, com
belezas naturais exuberantes e um povo acolhedor. Cheguei no aeroporto e Tahir
estava lá com seu filhinho, protegida por cinco seguranças. Ficou feliz em me
ver e me deu um véu roxo tecido com fios de ouro, dizendo para eu usar em
público, mesmo que não cobrisse todos os cabelos.

Sorrindo, cobri. E com o jeitinho alegre dela, percebi que fiquei bonita.

— Você seria uma esposa tão feliz aqui, Habiba! – Eu entendia perfeitamente
o porquê o sheik se encantou com ela. Tahir é sempre, mesmo depois de mãe,
como uma garotinha feliz com o mundo.
— Não posso só ser uma mulher feliz, Habiba?

— Se depender de mim, você vai ser a mulher mais feliz de todas!

Vinte e cinco quartos e não sei mais quantas salas diferentes. Duas piscinas,
um colosso de palácio. Fazia a casa em que vivi por dois anos na Inglaterra se
parecer com um chiqueiro. O luxo era tão grande, tão ostensivo, que os talheres
eram de ouro, os lustres eram de ouro, diamantes enfeitavam maçanetas e demais
detalhes como se fossem pedrinhas.

E, quando entrei na sala principal, o Sheik brincava de bonecas com sua


filha, e Aziz assistia novelas. Ser humano é igual em todo canto.

— Só dois bebês? – Dei um beijo em Aziz, depois no Sheik – eu estava


esperando uma fila indiana!

— Aziz está grávida de novo. Quem sabe não nascem gêmeos?

— Você parece… – Aziz interrompeu – feliz. Tá feliz, Habiba?

— Estou vivendo um sonho, Aziz!

— É, mas eu acho que seu próximo trabalho será um pesadelo.

Não era. Foi o trabalho mais profundo e sentimental de toda a minha


carreira. Levamos mais dois anos nisso, uma equipe de cinquenta arquitetos e a
consultoria da minha mãe, mas, quando acabamos, levamos um prêmio por ele.

Um hospital sírio que foi praticamente destruído pela guerra. O pai de Aziz
era o diretor responsável. O edifício foi o primeiro hospital do país, erguido em
mil oitocentos e quarenta. Todo dia achávamos ossadas inteiras de adultos e
crianças, e, quando tínhamos menos sorte, achávamos corpos se decompondo na
areia. Tinha uma parte, a ala infantil, que quase ninguém teve coragem de entrar.
A gente chorava só com o cheiro. Tinha sido bombardeado há um ano, mas,
mesmo assim, o cheiro e a história eram capazes de embargar o estômago de
qualquer um.

Para manter o registro histórico, eu tirava fotos. Todos os escombros, os


vitrais coloridos perdidos, tudo o que eu achava, incluindo papéis, eu
fotografava. Quando entreguei a obra, entreguei o álbum com as fotos, não
porque queria mostrar o antes e depois do trabalho, mas para lembrar que aquele
espaço foi bombardeado e que pessoas morreram ali.

Acho que o que faz o meu trabalho importante não é somente resgatar
memórias como se o tempo não tivesse passado, mas lembrar que eu trabalho
justamente porque o tempo passou. Porque pessoas morreram e nasceram
naquele hospital, o pai de Aziz morreu no bombardeio e, quando ela entrou no
hospital restaurado, era como se fosse topar com seu pai na sala dele.

Ela chorou muito e me agradeceu. Só então entendi que aquilo era um


presente do Sheik para sua primeira esposa. De algum jeito, também foi um
presente para mim.

Meus trabalhos seguintes não foram tão nobres, mas rentáveis o bastante
para poder viajar por aí com uma equipe, sempre os mesmos, e abrir meu ateliê
viajante que cabia em dois baús com rodinhas, e que viajou pela Grécia, Roma,
Vaticano e alguns outros circuitos menos nobres.

A única coisa… é que eu não tinha coragem de voltar para casa. Se eu fosse
esperta, pediria para algum contato fazer a ponte entre eu e o prefeito de São
Paulo para restaurar todo aquele centro velho abandonado e sujo, mas é que eu
não queria voltar. Podia comprar alguns edifícios ali na Roosevelt também, pelo
Santa Cecília quem sabe, e restaurar todos para revender muito mais caro depois.

Mas é que faltava coragem.

Oito anos longe de casa. Dois cuidando do Centro Hípico que mudou a
minha vida, dois anos restaurando o hospital, mais quatro por aí. Tempo demais
para chegar de volta à casa dos meus pais e pedir o quartinho deles.

Para falar a verdade, eu nem cabia mais naquele quartinho.



Capítulo Trinta e Oito
Gabriel

Fiquei tão traumatizado que não conheci mais ninguém desde que me recuperei.
Sentia como se não pudesse. Eu vivia com medo de tudo, o tempo inteiro, não
importava o quanto as pessoas eram gentis ou grande o sorriso, eu não
conseguia. Sete da manhã chegava à faculdade e perambulava por lá até às onze.
Não tinha tanto o que fazer que justificasse todas aquelas horas, então eu me
enfiava na biblioteca e inventava o que fazer. Foi assim que minha Iniciação
Científica ganhou um prêmio. Foi assim que entrei no mestrado e me tornei o
aluno mais prolífico do meu curso.

Não era porque eu gostava de estudar, isso jamais, nunca gostei, mas é que
aprendi a gostar de ler e explicar para os outros o que aprendi. Peguei duas
monitorias assim, os calouros me interrompiam no corredor para que eu
explicasse qualquer coisa que fosse, e eu não me importava em explicar. Todo
mundo da FAU, a faculdade de Arquitetura, me conhecia. A única coisa é que eu
andava sempre sozinho.

Perambular virou a minha palavra. Sempre com um livro na mão, um


caderno de desenho ou qualquer papel para riscar, todo mundo podia vir
conversar comigo quando quisesse, mas eu nunca ia ao encontro de ninguém. E
também nunca aceitava convites. Fosse para estudar mais tarde, festa, cervejada,
ou o que fosse. Eu não era mais esse cara.

Quem me vê de frente não sabe, também nunca contei, mas meu olho
esquerdo não funciona mais. Perdi a vista naquele dia e ainda tremo quando fico
muito perto do meu pai. Nem óculos de Sol consigo pôr, me dá agonia, e
qualquer coisa que fique a um palmo do meu rosto dispara minha ansiedade.

A pior parte era dividir o mesmo teto. Eu fugia de casa e passei a fugir da
oficina dele para ficar dentro da faculdade, o único lugar que me sentia seguro.
O único lugar onde ele tolerava que eu ficasse sem ter que dar satisfação.

Também, estudando tanto e com tão boas certificações, nunca mais apanhei.
Troquei a cama de lugar e só entro no meu quarto para dormir, cansado, moído.
E algumas vezes ainda demoro para pregar os olhos e fico me convencendo de
que o que passou, passou.

A única coisa que eu gostava de fazer com outras pessoas eram os simpósios.
Como mestrando, o meu foco de pesquisa eram as avenidas de São Paulo e
constantemente, como pesquisador, eu tinha que sair de casa, geralmente para
outras cidades, para explicar a minha pesquisa a partir do recorte do tema
proposto.

São Paulo, para mim, eram veias abertas. Eu já tinha estudado e escrito sobre
todos os problemas do metrô, sabia de cor cada rota de linha de ônibus, já tinha
brigado com a concessionária do metrô, terceirizada, sobre a inexistência de
metrôs perto de aeroportos. Meu foco eram as ruas e a mobilidade urbana, mas
seria hipócrita desconsiderar todos os meios de transporte que as pessoas usam,
então, quando eu não tinha preguiça, falava sobre a condição dos transportes
públicos e os benefícios, do ponto de vista macro, dos transportes clandestinos
como as vans.

A equipe do Governador do Estado me chamou para um simpósio sobre


mobilidade urbana, mas acho que ele não gostou das minhas conclusões, porque
nunca mais me chamou para nada.

Mas, em compensação, os ativistas pelo uso da bicicleta e a oposição do


governo me amaram. Participei de um TEDx na faculdade, depois fui chamado
para algumas entrevistas em alguns documentários, mas recusei qualquer oferta
de emprego seguinte porque, embora o dinheiro fosse bom e talvez até o bastante
para me tirar da casa do meu pai, assinei um termo no mestrado e com a CNPq
sobre não ter vínculo empregatício enquanto recebesse bolsa.

E o meu porto seguro eram os portões da faculdade, não uma promessa de


fortuna.

Pagava estadias e transportes do meu próprio bolso para poder falar sobre as
minhas pesquisas em outros estados, e as aulas de reforço que eu dava, não só
para os calouros da minha faculdade, mas também de outras faculdades, me
rendiam mais do que o suficiente.
Esse foi o projeto mais legal, também. Reforço comunitário organizado pelos
próprios graduandos. Eu nunca cobrei nada, a proposta era dar aula de graça,
mas eles, entre eles, deixavam uma caixinha na mesa do professor e depositavam
o que podiam.

Os alunos da faculdade particular e que tinham mais condições, geralmente


deixavam algum dinheiro extra também pelos alunos menos privilegiados que
assistam minha aula. Era dinheiro de vaquinha, nunca foi estabelecido um preço,
mas, a cada aula, com cinquenta, sessenta alunos em cada turma, chegava a dar
seiscentos reais, às vezes mil.

Os mais velhos sempre falam mal dos adolescentes e o quanto eles são
desmiolados, mas eu nunca vi nenhum velho da geração do meu pai dar alguma
coisa, de bom grado, além de conselho desnecessário.

Eram aulas autogeridas, os estudantes entravam e saíam quando queriam, os


temas das aulas eram decididos por enquetes no Facebook, o horário eu decidia
conforme a minha carga de trabalho.

Depois, quando me chamaram para dar aula de cursinhos preparatórios


gratuitos, feitos para o pessoal da escola pública que sonha com a faculdade
pública, eu só precisava caçar o que fazer no domingo para poder ficar longe de
casa. Os meus sábados eram completados pelas aulas do cursinho, mas o
Domingo sempre era um martírio.

Meu pai queria que eu ficasse com ele, almoçasse em casa, como se
fôssemos uma família unida. Faustão de domingo, cochilo na sala. Queria que a
gente fosse uma família que nós não éramos e, entendendo o silêncio obediente
da minha mãe, acho que nunca fomos.

O nome dela é Helena. Não atende só por minha mãe. Meu pai conta uma
piada e ela ri por respeito, um riso triste, sempre olhando para a mesa, nunca
escandaloso. Não sei como nunca percebi isso. Agora ela ri olhando para mim.
Um risinho feito como que para agradar, não queria rir. Acho que ela olhava para
mim para ver se eu sentia o mesmo que ela, e eu acho que não chego nem perto.

Cheguei um dia mais cedo em casa porque acabou a luz na faculdade. Não
era mais que sete horas da noite, eu acho. Meu pai já tinha chegado, vi a chave
dele no porta-chaves da entrada, mas não o vi em lugar algum. Só a latinha de
cerveja sentada na pia, como todo dia.
Um choro sofrido me apanhou no meio do caminho da cozinha e eu parei.
Uma fungadinha miúda, magoada, e fraquinha. Minha casa é feita de sala aberta
para a entrada e a varanda gourmet, e corredores de quartos até chegar na
cozinha dos fundos.

O choro vinha do quarto dos meus pais e eu nunca suspeitaria que fosse do
meu pai. Só podia ser da minha mãe, então entrei engolindo em seco, tremendo
de medo sem nem saber exatamente o porquê.

A cama arrumada, mas o tapete na frente da cama todo amarrotado. A


televisão desligada. No fundo, só uma fresta de luz, vinda do banheiro da suíte.

Dei dois toques na porta e perguntei se estava tudo bem. Forcei a maçaneta e
a vi sentada na borda da banheira, mas vestida. A água da torneira, fria, molhava
só seus pés suspensos.

— Tá tudo bem aí? – Suando frio, perguntei e não entendi a cena.

— Tudo bem. – Ela fungou, limpou os olhos e sorriu aquele sorrisinho fajuto
que, aos poucos, vou entendendo que é feito de tanto medo quanto o meu.

— O que aconteceu com os seus pés?

— Ah, filho… – O Queixo trêmulo, os olhos cansados, o sorrisinho


obediente. – Eu caí.

É, engoli amargo, eu também caí. Foi assim que perdi a vista.

— Você consegue dizer isso olhando nos meus olhos?

Conseguia. Ela representava essa cena há muito mais tempo do que eu.

Então eu comecei a chegar cada dia mais cedo. No minuto seguinte em que
meu pai entrava em casa, eu chegava. Ele estranhou, mas ficou feliz de primeiro
momento em me ver mais tempo em casa. Continuamos dançando as entradas e
saídas, meu pai chegava e eu entrava logo em seguida, oferecendo sua cerveja,
abrindo uma latinha com ele.

Então eu saía mais tarde de casa. Minha mãe servia café da manhã para nós
dois e só aí fui reparar no quanto eu era conivente com a situação dela. Dona
Helena colocando e tirando pratos, servindo almoços e jantares, lavando a louça,
limpando a casa, os quatro banheiros, três quartos, e duas cozinhas, a gourmet e
a dos fundos. Nunca se sentou na sala para assistir televisão senão quando tinha
visitas e era de bom tom que fizesse sala.

Levantei para ajudá-la a arrumar a mesa do café e meu pai me mandou


sentar. “Isso é trabalho de mulher”.

— É, pai, mas a mãe está ficando velha.

Não era por isso, mas funcionou como desculpa. Meu pai aceitou que eu me
levantasse da mesa, e, quando Dona Helena me viu arrumar um prato foi o
bastante para ver seus olhos cheios d’água.

— Você não tem aula hoje? – Ele perguntou pegando a chave do carro,
pronto para sair.

— Professor mandou e-mail dizendo que estava doente.

— Tá certo.

E saiu, como sai todo dia, dando um beijo na minha mãe, um beijo e mim, e
um tchau. Meu pai tem o mesmo jeito de sair e chegar desde que me conheço
por gente. Vi minha mãe soltar o ar, como se estivesse aliviada.

— Você quer… hm… – tremendo também, tentei – sair um pouco? Tomar


um ar?

— Daqui a pouco. Preciso arrumar a cozinha, depois tenho que ir no


mercado.

A ajudei a arrumar a cozinha e percebi que ela não esticava o braço. Percebi
o roupão de manga comprida e a leve careta cada vez que se esticava para
colocar um copo no escorredor de louças.

Sem perguntar, nem pedir, arregacei a manda de seu roupão. Ali estava a
confirmação de algo que eu devia ter percebido a minha vida inteira.

Capítulo Trinta e Nove

Ela disse que caiu. Disse que tinha que ir no médico porque se sentia tonta e por
isso tanto machucado. Sorri obediente e me ofereci para terminar de lavar a
louça.

— Faltam só alguns copos…

Sem discutir, também me obedeceu. Não fui para a faculdade o resto da


semana. Cancelei as aulas e uma palestra no Mato Grosso. Fiquei em casa a
semana inteira e meu pai estava a um passo de me xingar de vagabundo e me
enfiar de volta na oficina. Menti uma prova muito importante para ele me deixar
em paz, mas a verdade mesmo é que eu estava de vigia. Se ele tocasse na minha
mãe…

Eu queria acreditar, como sempre acreditei desde que levei surra, que aquele
foi um único rompante. Ele não bateria na mulher com quem se casou, certo?

Mas, e se ele bateu nela nesses trinta anos em que são casados e eu que
nunca vi? E se ele não bateu, mas ameaçou bater, tirou a liberdade para fazer o
que quiser, e fez pressão psicológica? E se ele não me tratou daquele jeito
porque eu mereci, mas porque ele…

Sete anos depois, traumatizado e com sequelas, eu ainda acreditava que tinha
sido por minha culpa. Rafael foi um nome que bani da minha vida. E de
Manuela eu não queria nem saber.

Continuei de campana. Qualquer rangido mais alto, copo caindo, gaveta


fechando, eu ia olhar se alguma coisa estava acontecendo. Por uma semana
inteira nada aconteceu e a sensação desconfortante de estar certo, mas também
errado, era a pior parte.

— Mãe, ele bate em você? – Até que eu perguntei e ela não respondeu. –
Mãe, se ele bate em você, a gente vai embora. A gente faz a mala e some no
mundo, me perdoa por nunca ter reparado, mas me diz o que fazer.

— De madrugada. – Ela cochichou enquanto passava pano no corredor, só


nós dois em casa, e não respondeu mais nada.

Achei que ela fosse me contar de madrugada, então esperei que ela entrasse
no meu quarto e conversasse. Não dormi esperando por ela. Ouvi a porta do
quarto deles se fechando, já passava das onze, e nenhum barulho depois.

Nem uma televisão ligada, nem barulho de porta de guarda-roupas, nem pia
de banheiro. Absolutamente nada, como se eu estivesse sozinho em casa.

Aquilo me deu um comichão esquisito que conheço há anos. Antes mesmo


de apanhar, algumas vezes eu deitava na cama e não conseguia dormir. Deitava,
a cabeça colada no travesseiro, e um incômodo.

De madrugada: era assim que ele batia nela quando tinha o filho em casa o
dia inteiro. Abri a porta do meu quarto, segurei a respiração, e abri a porta do
quarto deles, do outro lado do corredor.

Com um sabonete dentro de uma meia. Era assim que ele batia nela. Para não
deixar marca, nem nas próprias mãos, nem na mãe, ele enfiava um sabonete
numa meia, a fazia ficar em pé com a mão na boca para tapar os gritos, e batia
nela, pegasse onde pegasse.

— Sai do meu quarto, moleque, tô consertando a sua mãe.

Consertando. Engoli essas palavras como se ele tivesse me batendo de novo.


Minha mãe olhava para mim com tanto medo, prendendo a boca com as próprias
mãos, e não me pedia socorro.

Isso é o porquê dela não ter chorado, nem me ajudado quando foi a minha
vez de apanhar. Uma pessoa no chão não levanta ninguém. E a odiei por tanto
tempo por isso, por ter se enfiado no quarto enquanto eu apanhava, que olhando
para o meu pai, sóbrio, o meu pai de todo dia, tudo fez sentido.

— Igual consertou seu filho bicha?

— Aquele moleque sem pai que te desviou. Agora você é homem.


Um homem traumatizado o bastante para não conseguir nem fazer amigos.
Um homem consertado que deixou a namorada ir para a Inglaterra e o namorado
desistir de seus sonhos. Um homem consertado pelas mãos do próprio pai vai ser
sempre um homem quebrado.

— Mãe, faz sua mala. – Mandei.

— Tá louco, moleque?

— Pega só as coisas que você ama, deixa o resto.

— Lena, se você sair daí, o estrago vai ser pior.

— Vai ter que bater em mim primeiro. – Finalmente alguma coragem para
tomar providências.

— Quer ficar cego dos dois olhos?

Nessa hora peguei meu pai pelo pescoço. Mais novo, mais forte, e
consertado. Dona Helena não deu um pio. Meu pai pegou a meia com sabonete e
deu em mim, me fazendo soltar o pescoço dele.

— Alguém precisa consertar o senhor.

Quando você perde a vista, perde também a noção de dimensão. Depois se


acostuma, o corpo dá um jeito para tudo, e ali na briga, eu sabia exatamente onde
batia. Um soco por mim, um por Dona Helena, um pelas histórias que perdi, um
pelas histórias que deixei de contar, um pela narrativa que deixei ele conduzir e
mais um pelo conserto de merda que ele deu na minha vida.

Ela não gritava. Consertada há mais tempo, essa mulher não tinha grito, nem
vontade, nem força. Só choro. Com as mãos arrebentadas, a cabeça do meu pai
estourada, não sei se morto ou desmaiado, olhei para ela. Não houve um dia
mais vergonhoso para mim do que aquele.

Dona Helena, cinquenta e seis anos, um filho. Sem emprego, sem casa para
morar, com os pais mortos em Blumenau e nenhuma amiga. Nem bom dia para o
porteiro ela tem coragem de dar. Nem obrigado para o caixa do mercado ela diz.
Não olha para ninguém, se esconde atrás do meu pai, e está sempre servindo
comida.
E no dia em que entrei na faculdade eu só soube admirar a Tia Fê. Sequer vi
a minha mãe. Me deixei levar pela felicidade do meu pai, da mentoria da Tia,
pela Manu e o Rafa e, se recebi qualquer parabéns vindos dela, não lembro. Não
tinha importância.

— Mãe, me perdoa.

Segurando seu corpinho pequeno, mas nunca frágil, chorei o choro entalado
há mais tempo do que consigo contar. Parte de amar tanto meu pai, é porque
nunca tive amor dela. Parte de correr para ver meu pai se orgulhar de mim é
porque ela nunca se orgulhou. Sempre me deu o que eu pedi, mas sempre faltou
alguma coisa. Sempre faltou presença, confiança e carinho.

E ali entendi exatamente o porquê.

— Faz sua mala – Pedi, puxando uma mala de rodinhas do maleiro – Põe as
coisas que não conseguir deixar para trás.

— Gabriel, eu não tenho para onde ir.

— A gente descobre junto para onde vai.

Ela abriu uma das partes de seu guarda-roupas e tirou uma caixa de sapato
cheia de dinheiro. Não sabia quanto era, nem de quem, mas ela se mexia com
tanta propriedade, que parecia dela. A ajudei como pude, tirei os álbuns de
fotografia que ela queria levar, as roupas, os sapatos. Suas posses, como as
minhas, eram abundantes. Seu Guilherme nunca deixou nada faltar para nós.
Tínhamos tudo o que quiséssemos, e a roupas da minha mãe eram roupas caras.

Com a mala dela feita, fomos para o meu quarto e eu enfiei meus pertences
mais preciosos numa mochila. E então, cada um com sua própria mala, deixei a
chave no chaveiro e encostei a porta.

Capítulo Quarenta

Só parei para pensar quando ela dormiu depois de chorar muito e pedir por
calmantes, no quarto de hotel que alugamos. Metade da visão, metade de um
homem. Era isso o que eu via refletido pelo espelho do banheiro. Com raiva o
tempo inteiro. Nunca prestei atenção na mãe. Nunca reparei que não é normal
uma pessoa ficar sempre escondida atrás de outra.

O supercílio cortado de novo, um dente mole. Só nós dois sabemos o quanto


as mãos do meu pai podem ser pesadas. Não era como se ele tivesse me batido
de novo, era muito pior.

Não senti dor, não era só comigo. As marcas no corpo não eram nada.
Quente ainda, eu queria saídas. Queria tirar o resto das coisas dela daquela casa,
o resto das minhas coisas. Precisava encontrar um advogado, alguém que
separasse a minha mãe do meu pai, que lhe desse o que era de direito e que a
afastasse meu pai, de uma vez por todas, e para sempre.

Precisava só tacar “advogado de divórcio” no Google e mandar um e-mail


para alguns, mas, se alguém pudesse me indicar um… Ah, merda. A história que
Rafael me contou. Agora eu entendo tudo.

Dona Lúcia.

Então fiz a ligação atrasada por tempo demais. Tenho o telefone deles de cor,
mesmo depois que meu pai apagou todos os números do meu celular, nunca me
esqueci. Disquei o telefone residencial de Rafael, e esperei que alguém
atendesse.

— Alô? – Não percebi que eram quatro da madrugada.

— Alô, Tia? – Tentei.


— Quem é? – Oito anos depois.

Chorei quando falei meu nome e ela se apavorou de me ouvir no meio da


madrugada.

— Tia, – respirei fundo, evitando me olhar no espelho – eu preciso da sua


ajuda. Por favor, a gente pode conversar?

Deixei um bilhete na cabeceira da cama, avisando a minha mãe para onde


estava indo. Deixei avisado na recepção de que qualquer coisa incomum no
quarto era para me ligarem. Entrei num Uber e dei o endereço da tia.

O portão dela não era mais o mesmo. Um muro branco e um portão


vermelho, automático. Reformado. Toquei campainha com o coração na mão. A
Tia que se ergueu com a única coisa que sabia fazer na vida e que meu pai quase
deu cabo. Os cinquenta mil do acerto ainda estão na minha conta, eu nunca achei
um gasto útil para o dinheiro e certamente não deixei meu pai colocar as mãos.
Ficou lá, parado, e assim continua.

A mulher que me atendeu de roupão preto luxuoso não se parecia com a


mesma mulher de anos atrás. Era obviamente mais velha, mas, mais nova. Tinha
um vigor que a sogra que deixei para trás não tinha. Sorriu quando me viu, um
sorriso comedido de quem tem muita roupa suja para lavar comigo, e eu a
agradeci pelo encontro.

— Entra, menino. Tá sozinho?

Estava. Balancei a cabeça dizendo que sim, engolindo o choro ao olhar o


quintal onde Rafael, Manuela e eu fomos muito felizes e sonhadores,
encontrando um carro que antes ela nunca teve.

Era praticamente outra casa. Toda reformada, pintada, bonita. A cozinha da


tia ainda tinha algumas coisas de crochê, mas tudo era moderno e caro. A casa
era a mesma, mas não parecia. À pia tinha um homem da mesma idade que ela,
de roupão, um sorriso calmo no rosto, me cumprimentando e se apresentando:

— Carlos, – ele sorriu – o noivo.

— Noivo? – Sorri olhando para a tia, tentando segurar o choro – Vai casar?
— Se Deus quiser. – Ele respondeu, deu um beijo no rosto da tia, e seguiu
para outro cômodo.

— Estou feliz por você. – Comentei quando recebi uma xícara quente de chá,
e ela me indicou o assento.

— E então, – ela pegou uma xícara para si, sentou-se à minha frente, e
bocejou enquanto falava – o que te traz aqui a essa hora?

Àquela altura da vida, eu não sabia nada sobre trauma, gatilhos, ou cuidado
com as palavras. Joguei meus problemas em cima da Tia, sem cuidado, me
esquecendo totalmente de que ela também era uma sobrevivente. Falei e mal
toquei no café. A tia mal tirava sua boca da xícara ou me olhava, e me perguntei,
mais de uma vez, se ela estava me ouvindo.

— Eu vou ligar para o advogado que cuidou do meu caso, mas só posso fazer
isso às oito da manhã. Você quer deitar e dormir um pouco? – Sem criar
qualquer juízo de valor, ela me cortou quando comecei a dizer como Seu
Guilherme espancava minha mãe.

— Eu não sei se consigo. – Aos pedaços, cada vez que abria a boca, me
cortava. Segurava o choro sabendo que tinha uma mãe sedada para dar conta,
que ela tinha motivo para chorar, não eu, e tentava falar sem me afogar.

— O quartinho do Rafa ainda é o mesmo. – Se levantou primeiro e eu me


levantei atrás – Garanto que você vai encontrar alguma paz lá.

— Rafael não mora mais com a senhora?

— Rafael agora é homem crescido. Também está noivo.

Deitar no quarto de quem foi meu namorado no passado me deu uma paz que
eu não estava contando. Não tinha cabeça para pensar em quem era o dono do
quarto, nem nos bons momentos que vivemos. O travesseiro dele tinha cheiro de
amaciante, e a cama continuava pequena. Acho que desde os quinze ele não cabe
mais naquela cama, mas nunca reclamou. Nem quando começaram a fazer
dinheiro com a Resist (como será que ela anda?), ele quis trocar de cama.
Sempre dizia que aquele não era o foco.

O foco do Rafael sempre foi a mãe. E pensando na minha, desamparada


numa cama de hotel, eu entendo exatamente o porquê.

◆◆◆

O advogado da Tia, o mesmo que fez nossos papéis de separação da Resist,


indicou que o único primeiro passo possível era a delegacia para registrar a
queixa, contar os anos de abuso, fazer um corpo de delito, mostrar as cicatrizes,
os registros de hospital dos espancamentos anteriores e procurar por
testemunhas.

— É muito comum que alguém tenha ouvido as surras. – Ele dizia, sentado à
mesa da cozinha de Dona Lúcia, também com uma xícara de café – E, se é tão
frequente assim, é provável que muita gente saiba, só nunca tenha chamado a
polícia. Você conhece seus vizinhos?

— Conheço de oi e tchau.

— Fale com a vizinha. As paredes nunca são tão grossas assim. Dê meu
número a ela e já teremos um bom ponto de partida.

— Tudo bem. – Pelo menos eu sabia o que fazer, tinha alguma direção.
Perdido como estava, com a mãe dormindo e ninguém a recorrer, a minha cabeça
fritava ainda mais. – Sobre seus honorários…

— Querido, cuide da sua mãe – Dona Lúcia me interrompeu. – Deixa que


disso cuidamos depois.

— Não, tia. Agradeço tudo o que a senhora faz, mas já tenho uma dívida
contigo, não quero criar outra.

Não sei se é ironia do destino, ou tapa na cara: a única grana disponível para
saque rápido que eu tinha era justamente o acerto de contas da Resist.

Capítulo Quarenta e Um

Com cuidado, acordei Dona Helena e sugeri que fosse para um banho. Ela
precisava de carinho e seu próprio filho não sabia como fazê-lo. Nunca fomos
próximos. Enquanto meu pai me enchia de beijos e afagos, ela sempre ficava
para depois. Nunca tomava decisão nenhuma e também nunca dava palpites.
Com o tempo, a nossa diferença, principalmente quando a adolescência
começou, virou abismo.

Eu amava meu pai e a minha mãe, isso sempre foi claro para um Gabriel que
crescia. A questão é que ela sempre ficou para depois.

E agora, com uma mãe recém-saída do banho, roupão no corpo, os olhos


cozidos de sono e choro, eu só não sabia o que fazer. Nem como falar, nem se
podia abraçá-la, nem se ela queria que eu a abraçasse. Apática, e sequer a culpo,
ela se sentou à pequena mesa próxima da janela do quarto e lhe servi o café
colonial do hotel. Derramei um pouco de café em sua xícara, mas não coloquei
açúcar porque eu sabia que ela sempre bebeu sem.

— Açúcar, filho.

— Mas a senhora nunca…

— Seu pai nunca deixou.

— Até isso?

O controle era total, em todos os aspectos da vida. Como se vestir, como se


portar, o que uma mulher tem que saber cozinhar, onde aprender, quais canais
podia assistir, quais não. Tudo à vista, sabe? Não era escondido. Enquanto eu
vivia colado no celular, trocando de aparelho todo ano, ela nunca teve um. E não
é porque nunca quis ter, ou faltava dinheiro para esse luxo, mas era porque o pai
não deixava.
— Então, – mordendo um pão de queijo, introduzi o assunto difícil –
conversei com um advogado enquanto você estava dormindo…

Ouviu tudo sem dizer nada. Não comentou se achava uma boa ideia, na
verdade, ela não disse nada. Só comia, pacientemente, como comeu todos os
outros dias de sua vida, de olhos baixos e boca fechada. Comentei sobre o
divórcio e reparei que seus ombros enrijeceram, mas ela também não disse nada.

Falei sobre o B.O. e sobre a delegacia e reparei seu maxilar travar. E então
comentei sobre as possíveis testemunhas.

— Todo mundo daquele prédio sabe.

Foi a única hora em que ela disse alguma coisa.

— Todo mundo?

— Já pedi ajuda para a nossa vizinha de andar e ela bateu a porta na minha
cara.

— Dona Isabel te negou ajuda?

— Dona Isabel me negou abrigo. Seu pai corria atrás de mim com uma faca
na mão e eu pedi ajuda para ela.

— Como isso é possível?

Tia Lúcia, numa outra oportunidade, me disse que isso era mais comum do
que se imagina. E confidenciou, sem chorar, mas com alguma distância e apatia
que via na minha própria mãe, que ela também já correu para pedir ajuda de
vizinhos.

— E então? O que a senhora acha?

— O que você decidir, filho, para mim está ótimo.

Então, naquela tarde, fomos para a delegacia. Dona Lúcia disse seu caso para
um escrivão da delegacia da mulher, e depois para um delegado que no mesmo
momento olhou a minha mão machucada, meu rosto escoriado, e suspeitou que
eu fosse o agressor.
— Não, seu Delegado – Ela disse – Esse é meu filho.

Entendi perfeitamente a suposição do policial e não retruquei. Filhos também


batem em suas mães e ele já deve ter visto casos tão absurdos, que qualquer sinal
de sangue deve significar evidência. Por isso, me recolhendo e pedindo
desculpas, a esperei na recepção e deixei que ela e o delegado se conversassem
sozinhos.

Só depois de longas horas, é que saímos com um B.O. Na tarde seguinte


fomos ao IML fazer corpo de delito e me recusei a sair de perto dela. O local não
cheirava bem, gente entrava e saía chorando o tempo inteiro, viaturas entravam e
rabecões saíam. Minha mãe entrou e foi moída pela máquina. O médico legista,
quando finalmente a atendeu, pediu por evidências que ela não tinha. Seus pés
não tinham marcas, nem sua barriga, nem quase nenhuma parte do corpo.

A única coisa que o legista fotografou foram as hematomas dos braços e isso
não era nem de longe a única coisa que lhe doía. O sabonete na meia,
curiosamente, não deixava marca no agressor, e os golpes na barriga não deixam
marcas nas vítimas.

Voltamos frustrados para casa e, sem perceber, deixei um gosto de


impunidade na garganta dela. Em Manuela e Dona Lúcia, a sessão de fotos foi
para revelar a grandeza que tinham. No IML, a única sessão de fotos que fui
capaz de fazer com minha mãe era só para provar que seus anos de sofrimento
não dariam em nada. Esse era o gosto que senti na língua quando saímos de lá.

Perguntei se ela queria dar uma volta para algum lugar, sair para tomar um
café na rua, e ela quis.

— Sozinha assim nunca saí.

— Onde você quer ir?

— Aonde tenha bolo.

— Ótimo, então eu sei onde.

Em todos os meus anos de vida, nunca vi Dona Helena comendo doces.


Sempre bicava só uma nesguinha, quase nada, uma garfadinha no bolo de
aniversário no pratinho do meu pai, e pronto. Era sempre assim. Doces ela fazia,
sempre que eu pedia qualquer coisa, ela fazia, mas nunca a vi comer.

Olhando ela escolher uma fatia inteira de bolo de chocolate só para ela, um
quase sorriso curvando seus lábios, eu engoli o choro culpado e ofereci mais um.

— Esse bolo de churros é bom? – Respirando fundo, perguntei para a


atendente.

— É o mais vendido.

— Quer um pedaço também, mãe?

— Não, eu vou ficar só com o de chocolate.

Fazia um dia bonito lá fora, então fomos para as mesinhas da rua, cada um
segurando um pratinho, só para olhar os carros passarem. Enfiei o garfo no meu
bolo e fingi não olhá-la. Com a pontinha do garfo, ela riscou parte da cobertura e
o comeu, como tem feito todos os anos em que sou vivo. Olhava de mim para o
bolo, como se não soubesse se realmente pudesse comer.

— Esse bolo tá tão bonito – Brinquei – que se você não comer, como eu.

Deu uma garfada mais generosa e ficou com a comida por tanto tempo na
boca, que aquilo quebrou meu coração. Degustava o doce como se nunca tivesse
comido qualquer coisa parecida. Sorria de olho fechado, o garfo entre as mãos, e
sentia o sabor.

— É tão bom…

— É, não é? – E estiquei o meu bolo de churros para ela. – Quer uma garfada
do meu?

— Filho… – Era quase um sorriso – Você sabe, nada disso é culpa sua.

— É, sim. – Eu não queria estragar sua sobremesa com um gosto amargo,


então troquei de assunto – Quer um café para acompanhar?

— Não. – Pegou na minha mão por cima da mesa e repetiu – Nada disso é
culpa sua, Gabinho.
Era como ela me chamava até meus seis, talvez oito anos. Depois virei
moleque do mundo, travesso, falador, brincalhão, e deixei de ser o filhinho dela.
Mas até àquela parte da vida, eu fui só o filho dela. Nem para o meu pai eu
ligava muito como ligava para ela. A dona do meu mundo.

Onde, no caminho, foi que a perdi?

— Por quê? – Chorei e limpei o rosto porque eu não tinha o direito de chorar
– Por que nunca me contou?

— Quando você entrou na faculdade, eu ia embora e não ia te levar.

— Por quê?

— Seu pai tem um jeito só dele de cativar, e você é filho dele. Sempre foi
sedutor, aquele homem. Ainda é.

— E o que te impediu de ir embora?

— Aquele dinheiro da caixa de sapato era a minha fuga. Mas seu pai também
bateu em você e eu… Não pude ir.

— Você devia ter ido.

— De que jeito? Deixar você?

— Eu pensei em ir embora depois do que ele fez comigo.

— Devia ter ido. – Cabisbaixa, deu outra garfada – Talvez eu tivesse tido
coragem de ir também.

O grande arrependimento da minha vida é não ter dito a ela o quanto a


amava enquanto ainda era tempo. Desculpas pedi, a cada linha de diálogo vinha
um pedido de desculpas, mas aprendi do pior jeito que pedir perdão não é a
mesma coisa que dizer afeto. Devia ter dito, com todas as letras, que a amava.

Talvez, quem sabe… talvez assim…

A próxima parada, depois da doceria, era no advogado. Iríamos até o


escritório dele, na Paulista, só para conversarmos, para apresentá-la para ele,
para que tirasse qualquer dúvida que tivesse, enfim, para começar, com o B.O.
na mão, um processo de divórcio e o começo de um outro capítulo em sua vida.

Só que ela me disse que não se sentia bem.

— Vá você, Gabi, eu só preciso deitar um pouco.

— Não quer que eu vá junto?

— Não, não. Vá você falar com o advogado, dê o B.O. para ele e tire as suas
dúvidas também.

— Mas é importante que…

— Você vai saber resolver isso melhor do que eu. – Sorriu. Finalmente um
sorriso completo. – Chama um Uber para mim?

Inocente e um pouco perdido, chamei. E quando o carro chegou, antes de


entrar e dar tchau, deu um beijo na minha testa, um abraço completo, e disse:

— Não fica com raiva do seu pai para sempre, não. Você não merece.

Capítulo Quarenta e Dois

Eu estava no trem, de Paris para Milão. Era mais barato assim. Entre um
cochilo e outro, abri o celular e vi mensagem do meu pai, fora do grupo da
família. O pai vive mandando mensagem, mas sempre no grupo. Foto de bebê e
áudio do meu pai é o que mais tem.

Mas era a primeira vez, em muito tempo, que ele me mandava mensagem no
privado. Pensei que fosse alguma coisa envolvendo a mãe, talvez algo que
quisesse fazer por ela, alguma dica de presente, não sei.

“Manuela, quando você ouvir essa mensagem, respire fundo três vezes. É teu
pai. Volte para casa, Meu Anjo. Dona Lúcia acabou de ligar para a sua mãe. A
mãe do Gabi se matou.”.

Sem respirar fundo três vezes, desci em Dijon, ainda na França, e briguei no
guichê do aeroporto até conseguir uma viagem para o Brasil que não levasse
trinta e seis horas.

A menor escala que tinha era de Dijon para Paris, de Paris, casa. Quinze
horas. Não dormi, resolvi toda a minha vida na Wifi do avião. Mandei trocentos
e-mails, vários para a minha equipe, vários para os meus clientes, e alguns para o
meu landlord, avisando o tempo fora.

Nunca imaginei que desse para resolver a vida por e-mails até precisar deles.
E, quando pousei em Viracopos, Campinas, ainda levei quase duas horas até
chegar na Bandeirantes.

A bagagem que eu levava era a mesma que ia para Milão, muita roupa de frio
e boa parte do meu ateliê. Os moços do despache nem colocaram as malas no
carrinho, me chamaram por um microfone para buscá-la e fiquei quarenta e
cinco minutos explicando para o guarda o que cada uma daquelas pás, pinças e
pincéis faziam.
O Lipe veio me buscar com uma caminhonete do Jockey e eu nem sei onde
foi que ele guardou todas as tranqueiras, porque do aeroporto fui direto para o
cemitério. A sorte, espera, não foi sorte, é que não tem palavra boa para dar, o
caso é que demoraram para liberar o corpo, então quando cheguei no cemitério,
descobri que o corpo seria velado a noite inteira.

Dentro da sala, o caixão aberto, e apinhado de gente. Era tanta gente, que eu
não via Gabriel. Todo mundo calado, mas não uma quietude comum, em que se
ouve o remexer das pessoas e os cochichos solenes. Era um silêncio sepulcral.

Logo percebi o porquê do silêncio. Alguém tinha tomado um ar depois de


berrar. Olhei para onde as pessoas olhavam, e vi Gabriel, com barba, depois de
anos, os olhos cozidos de choro, transtornado, e cheio de fúria.

— … BANDO DE FILHO DA PUTA! TRINTA ANOS UMA SENHORA


APANHANDO E NENHUM DE VOCÊS NEM PARA AJUDAR! VOCÊ,
DONA ISABEL, TÁ FAZENDO O QUÊ, AQUI?! VOCÊ, CRISTÓVÃO,
DONA CIDA, TODOS VOCÊS! VOCÊS SABIAM! VOCÊS… SABIAM! SE
MINHA MÃE TÁ NESSE CAIXÃO HOJE, A CULPA TAMBÉM É DE
VOCÊS! SAIAM DAQUI! SAIAM DAQUI!

E ele repetia, até acabar o ar dos pulmões, e ninguém se movia. Então uma
senhorinha começou a empurrar todo mundo para fora, pedindo para saírem.
Meu pai, que vinha comigo, também começou a empurrar as pessoas. E o Guto,
e eu. Aos poucos, Gabriel se acalmava com um copo d’água na mão, e as
pessoas saíam. O silêncio permanecia horroroso, mas vinha acompanhado de um
choro sentido, magoado, sobre um corpo arrumado de vestido rosa, cheio de
pedrinhas que eu tenho certeza de que era da Tia Lúcia porque vesti roupas
demais dessa mulher para não reconhecer.

Do lado do Gabi não tinha ninguém. Nem o carrasco do pai, então percebi
Dona Lúcia o segurando pelos ombros, colando a boca em seus cabelos, e
chorando junto. Procurei pela massa humana, que diminuía, por Rafael. Ele
estava falando com um guarda do cemitério. De camisa por dentro da calça e um
porte corporativo que nunca teve, ele empurrava os óculos pelo nariz e falava,
sem nunca chorar, provavelmente sobre como impedir que pessoas fossem à sala
do velório.

Minha mãe chegou no Gabi antes de mim. Ele nem viu quem era, só aceitou
o afago, não largou da mão da própria mãe, e continuou ali. As pessoas com
vergonha na cara, que nunca vi quem eram, foram todas embora. Deixaram
flores, que o próprio Gabi jogou fora, até só sobrarmos nós: A minha família,
parte dela que nem cumprimentei direito, Tia Lúcia, e eu. Rafael não ficou na
sala. Não sei o que ele ficou fazendo, mas não o vi enquanto as duas mães
cuidavam do Gabi.

Sem coragem de chegar perto, olhei para a mulher do caixão e não consegui
chorar. Eu sei que o nome dela é Helena, a minha mãe falava bastante o nome
dela quando éramos pequenos porque mãe sempre tem um correio secreto
correndo entre elas enquanto os filhos transitam entre as casas, mas nunca
conversamos muito.

O pouco que eu lembro dela é isso: comida. Servindo comidas maravilhosas


e evitando conversar muito. E é triste pensar que é disso o que lembro. Sobre ela
se matar… eu não sabia nem o que dizer.

Nem de Gabriel eu sabia muito. Se passou muito tempo desde a última vez
que nos vimos.

Se parecia com um bicho grilo de cabelo e barba. Chorava tanto, pendurado


no ombro da Tia Lu, que eu não tive coragem de chegar.

Acho que era por isso que Rafael ficava tanto tempo lá fora e por isso
também que fui lá.

Ele já tinha me visto e eu também já o tinha visto, mas ninguém ainda tinha
se aproximado. Cheguei, o vi montando guarda na porta para não deixar
ninguém indesejado entrar, e dei oi.

Era dia de derrota. Em qualquer outra circunstância, mesmo se fôssemos


completos desconhecidos, ele me olharia e olharia de novo com o jeito que
sempre olhou. Ali, ele tinha os olhos baixos, o rosto travado, e parecia feito do
mesmo material que a parede atrás de si.

— Obrigada por… – Obrigada pelo quê? – Por trazer a sua mãe. Ela sempre
sabe o que fazer.

— Eu não a trouxe. – Me olhou, mas não manteve contato comigo – Ela foi a
primeira pessoa para quem Gabriel ligou.
— Depois de tanto tempo?

Um senhor mais velho, da mesma idade que meu pai e tão bonito quanto,
mas de um jeito diferente, meio loiro, cumprimentou Rafael com uma mão
enquanto a outra equilibrava uma bandeja com um jarro de água e alguns copos.

— Trouxe água – Como eu, ele se sentia incrivelmente deslocado. Sorria


amarelo e pedia permissão para Rafael para poder entrar.

— Minha mãe e Gabriel estão precisando. – E, pelo visto, o sorriso amarelo


era por causa de Rafael, não pelo clima.

— E você… – Tentei falar qualquer coisa para quebrar o gelo. Rafael era um
muro. Finalmente era para mim o que sempre foi para todo mundo. O senhor
com o jarro saiu de perto de nós, entrou na sala do velório, e colocou a mão em
cima do ombro da Tia num gesto íntimo demais para ser só de amigos. – Você…

— Oh, aí está você! – Linda. Olho verde, altíssima, vestida como ele se
vestia agora, nesse tom frio corporativo, cheio de postura e moral. Os cabelos na
altura dos ombros, a bolsa pendurada – Me perdoe a demora, o trânsito está um
absurdo… Deu algum problema no metrô e fiquei parada na Ana Rosa por vinte
minutos!

Do jeito como ele se virava para mim, como se eu fosse a única luz de seu
mundo, agora ele se virava para ela. Deu um sorriso simples e sincero, segurou
em uma de suas mãos, e recebeu o beijo tímido de cumprimento.

— Como está a sua mãe? Pelo jeito que me disse por telefone… – Pior: ela
parecia uma boa pessoa. Pior: Ela se importava com ele e o amava. – Tem
alguma coisa que eu possa fazer?

— Essa é… – Ele se virou para mim. Finalmente me olhou na cara.

Depois de todos esses anos andando por aí, viajando por aí, conquistando por
aí, Rafael num cemitério, segurando a mão de outra mulher, ainda me faz chorar.
Obviamente eu segurava as lágrimas com todas as minhas forças, mas Rafael
conviveu por tempo demais comigo para não perceber.

Olhou surpreso quando finalmente quis olhar para mim. Como se não fosse
óbvio que eu nunca me recuperaria do como a gente se largou. Gabriel apanhou
do pai e nunca mais quis falar conosco. E Rafael, em vez de ficar comigo, de
esperar Gabriel se curar para tentar qualquer reaproximação, simplesmente saiu
fora.

Ah, como se fosse surpresa para todo mundo, depois de tanto tempo, que eu
me emocionasse.

— Essa é… – Ele pigarreou – É Manuela. Amiga da escola.

— Oh, eu ouvi falar muito de você! – Me deu um abraço como se fôssemos


íntimas e depois me segurou pelas mãos – Sinto muito que tenhamos nos
conhecido assim!

Ela era o oposto dele. Feliz. Sorridente, sociável. Não era dia de festa, nem
perto disso, e ela me tratou com cortesia e simpatia perfeitos para a situação.
Depois deu qualquer desculpa e puxou Rafael de lado.

Sem saber para onde ir, voltei para perto de Gabriel. Bebendo o copo d’água,
coberto por uma blusa que alguém colocou sobre seus ombros, ele não chorava
mais e recebia os abraços da minha família.

— Sinto muito que tenha terminado assim, – Minha mãe disse ao se


despedir, dando um beijo na testa de um Gabriel perdido e desamparado – que
ela encontre a paz que não encontrou em vida.

Aos poucos, todas as pessoas iam embora. O velório seria durante toda a
madrugada e o enterro pela manhã, mas Dona Helena não tinha parentes, nem
amigos suficientes para uma madrugada. Meus pais e irmãos foram embora,
depois o homem que acompanhava Dona Lúcia a levou embora porque estava na
cara dela todo seu cansaço e fadiga.

Depois disso, por um bom tempo, Gabriel ficou sozinho, sentado numa
cadeira, velando o corpo da mãe.

Eu, com vergonha de me aproximar, assumi o posto de Rafael quando ele foi
embora. Filtrava as pessoas que chegavam, negando suas entradas se fossem
condôminos, vizinhos, ou qualquer outra pessoa com a mesma relação de
proximidade. Na prática, eu não deixei, por um bom tempo, que ninguém
entrasse.
Então, cansada de ficar em pé, agrupei cinco palavras úteis, boas o bastante,
e que focasse no acontecido, e não no nosso passado.

“Sinto muito por sua mãe” era o que eu queria dizer quando tomei coragem
suficiente para encará-lo.
Capítulo Quarenta e Três
— Eu sou tão burro… – Ele chorou quando me viu.

Frente a frente, eu não tive coragem de dizer nada. Gabriel nunca esteve tão
vulnerável. Me abraçava apertado e chorava doído, comprido, dizendo o quanto
se arrependia de tudo. De frente para o corpo da própria mãe, Gabriel falava
comigo como se estivéssemos sozinhos.

E eu, que não tinha falado com ele até então por vergonha e medo de
também ser expulsa, fui me quebrando devagarinho. Eu não sabia da história
completa ainda, não entendi o porquê o pai dele não estava ali. Só o vi sozinho,
desamparado, e perdido. Gabriel se segurava em mim como se não soubesse
mais onde se segurar, e chorou o quanto quis.

— Eu não percebi os sinais… eu deixei passar tanta coisa, Manu, tanta


coisa…

— Calma, Gabi… Se acalma.

— Por favor. Não vá embora. Não me deixa sozinho, não vai embora.

De mãos dadas, atravessando a noite, Gabriel me contou suas últimas


descobertas. Enquanto a gente erguia Dona Lúcia com algum dinheiro e muita
força de vontade, Dona Helena apanhava em casa. Imagino a dor dessa mulher
de ver o filho mover mundos e fundos pela mãe de seu namorado, e nada por ela.

— É isso o que mais dói.

— Se a gente soubesse tinha erguido as duas, Gabi.

— Se eu tivesse prestado mais atenção…

— Você não é o culpado, não se culpe…

— Se eu não sou parte da solução, o que é que eu sou, Manu? O que é que eu
sou?
— Você é o que ela sempre quis que você fosse.

— Um cara igual meu pai?

— Filhinho dela. Isso não muda, Gabi. Nem o que seu pai fez, nem nada
muda. Essa mulher amava você, a gente sabe, você sabe. E isso tem que bastar.

— Eu nunca disse o quanto… o quanto eu…

— Ela sabia. E sabia o quanto você ama seu pai, também.

De mãos dadas, sentados num banco lateral, atravessamos a noite inteira.


Gabriel dormiu encostado no meu ombro e eu cochilava encostada na parede.
Meus olhos ardiam de tanto chorar, e Gabriel tinha seus olhos tão inchados, que
fazia caretas toda vez que usava os dedos para limpá-los das lágrimas.

Em qualquer ponto da noite ele inverteu a posição e me deitou em seu


ombro, o problema disso é que se pareceu demais com a sensação de lar que
costumava ter. Me ajeitou no peito e deu um beijo no topo da minha cabeça,
fungando sempre. Com a outra mão, limpou uma lágrima que caiu entre meus
cabelos.

De manhã as janelas abertas tornaram o cochilo impossível. O Sol


resplandecia como há muito tempo eu não via. Não é em toda parte do mundo
que o Sol brilha desse jeito. Acordei, e como tinha Gabriel envolto, não me
mexi.

Com as mesmas roupas do dia anterior, Rafael entrou na sala segurando uma
bandeja de papelão com copos descartáveis fumegantes e uma sacola de papel.
Os olhos cozidos indicavam que ele não dormiu. Os ombros sujos de poeira
indicavam que ele passou a noite encostado.

Sem coragem de chegar perto do Gabi depois de todos esses anos, não é?

— Eu também te devo desculpas – Rafael achou que estivéssemos dormindo.


Deixou os copos descartáveis e a sacola de papel sobre uma cadeira e abriu um
véu transparente por cima do corpo de Dona Helena – Eu sabia. Você nunca
erguia os olhos da mesa, não é? Você sempre andava atrás de seu marido, sempre
acuada, sempre indefesa. Eu vi na senhora o que sempre vi na minha mãe e
deixei a raiva pelo seu filho… Não foi para isso que fui criado. Eu devia saber
melhor.

Falava baixinho. Não era nem para o Gabi, nem para mim. Arrumava o véu
para que não fossem moscas no corpo dela, e chorava. Só aí é que vi o meu Rafa.

Quando ele me viu acordada, limpou as lágrimas e retomou a bandeja nas


mãos.

— Aqui. – Agachado perto de nós, ele ofereceu o café – Vocês precisam


comer alguma coisa.

— Gabi tá dormindo – Cochichei.

— Não estou. Achei que você estivesse.

Sorri pequenininho pensando que ninguém se mexeu para não despertar o


outro e me ajeitei no banco. Com a bunda quadrada e os pés dormentes,
precisava levantar e me esticar, mas Rafael estava ali com café e pãozinho,
depois de ter passado a noite inteira por aí sem coragem de chegar perto.

— Por favor, – Rafael ofereceu de novo – peguem.

— Eu te devo um milhão de desculpas, Rafael – Gabriel pegou os dois copos


descartáveis da bandeja e me deu um – Espero que um dia você me perdoe.

— Eu sinto muito, – Rafael encostou na mão de Gabi e eu chorei também –


eu sinto tanto…

— Tudo poderia ter sido diferente se eu tivesse ouvido… – E o Gabi chorou


também.

— Eu não te culpo.

— Deveria.

— Mas não culpo. – Limpando os olhos, Rafael forçou um sorriso que não
saía e depois se afastou – Por favor, coma. O dia vai ser comprido.

— … – Gabriel evitou limpar os olhos para não se machucar e deu um gole


em seu café. – Obrigado por virem.
— É nossa obrigação – Respondi.

— Não era, – Gabriel tentou sorrir empurrando o copo entre os lábios – mas
me sinto menos sozinho por estarem aqui.

Nove horas da manhã Dona Lúcia voltou para o cemitério, ainda


acompanhada do homem novo, e, logo, meus pais também chegaram. Dez horas
seguíamos o cortejo até a lápide onde seria enterrada Dona Helena.

Dona Lúcia chamou um padre para realizar a cerimônia e Gabriel ficou feliz
pelo cuidado. Nunca tinha lidado com nenhum enterro na vida e jamais pensaria
nisso. Das poucas coisas que Gabriel sabia sobre a mãe é que ela era religiosa e
católica. Então, de ver o padre ali, conduzindo as etapas que ele jamais saberia
fazê-lo, ele se sentiu tranquilo o bastante para chorar.

Rafael olhava sempre para trás, como se esperasse que alguém fosse chegar a
qualquer minuto e me incomodei com o jeito dele. Até que, pouco depois,
apareceu a única pessoa na terra que não podia ter aparecido.

De olho roxo, dentes faltando, e a metade do tamanho, Seu Guilherme,


vestido em sua melhor roupa, estava lá. A minha primeira reação foi segurá-lo e
expulsá-lo, e de Rafael também.

Mas Gustavo, meu irmão do meio, sempre dois passos à frente, segurou meu
pulso e segurou Rafael também.

— Ele precisa disso. – Na hora eu não entendi que quem precisava era
Gabriel, não o pai dele. Gustavo falou e nós dois, tanto Rafael, quanto eu,
congelamos.

Gustavo tira o curativo sem querer saber que está grudado na ferida. Só
arranca. Humildemente e cabisbaixo, sem dar pistas de que chorava, Seu
Guilherme entrou no enterro enquanto os coveiros fechavam o caixão.

— Eu sei que é minha culpa. – Pelo menos, noção tinha. Gabriel estava a um
murro de distância da cara do pai. Vermelho e cheio de ódio, se ninguém o
impedisse, Gabriel seria capaz de acabar com o pai ali mesmo.

— Pois vá pedir perdão outra hora. Vai embora, pai, você finalmente
conseguiu o que queria. Ela parece consertada o suficiente para você? Eu pareço
consertado, agora? Eu não sou um moleque bicha, do jeito que o senhor queria,
mas olha para mim! Olha para ela! Olha para ela, pai!

Seu Guilherme mal olhava para o filho. Imagine para a esposa morta.

— Eu mandei você olhar! – Com raiva, gritou para os coveiros – Deixa o


caixão aberto, espera um pouco: – E voltou-se para o pai. – Olha para ela. Olha
para a sua esposa! Ela parece consertada para você?

— Gabi, filho, – Dona Lúcia colocou a mão em seu ombro – deixa disso, não
vale a pena.

— Eu quero que ele se sinta tão mal quanto eu me sinto.

Na mão, ninguém via, Seu Guilherme trazia uma rosa branca. Sem dizer
nada, deu um beijo nas pétalas, deu um beijo nas mãos frias cobertas por véu, e
enfiou a rosa entre seus dedos gelados. Era seu último gesto. Calado, olhou para
o filho que não conseguia parar de chorar, e se foi.

Dona Lúcia foi a primeira a tirar a rosa branca da mão de Dona Helena. E
então, com o caixão fechado, a mãe do Gabi finalmente teve alguma paz.

◆◆◆

— Vem para casa, Gabi – Dona Lúcia ofereceu quando todo mundo se
despedia – Tem espaço lá para você.

— Eu não quero atrapalhar, tia.

— Se você for para qualquer outro lugar, não vou dormir sossegada. – Com
um lenço, ela limpou as últimas lágrimas que Gabriel tinha no rosto e deu-lhe
um beijo – Vamos lá para casa?

— Posso ir também, Tia? – Nem pensei para perguntar.

— Sempre tem lugar para você, minha Princesa.


— Se vocês quiserem, – O Lipe se meteu – tem uma casa vaga no Jockey.
Podem ficar lá pelo tempo que precisar.

— Obrigada, Lipe – Sorri beijando meu irmão e tomando a minha bagagem


de mão que o Guto tinha pego do carro – Mas acho que o melhor mesmo é ir
para a Tia até as coisas acalmarem um pouco.

Na hora eu não entendi o sorriso do meu pai.

Gabriel não retrucou e eu assumi as rédeas. Alguém precisava cuidar dele e


era injusto que a Tia o fizesse. Então, de carona, fomos para a casa dela e Rafael
não nos acompanhou.

Ela ofereceu comida quando chegamos, disse que faria o almoço, mas
percebi que Gabriel precisava dormir, então nos enfiei no antigo quartinho do
Rafa, inteiro com o cheirinho dele, a cara dele, as antigas roupas dele, e tirei os
sapatos.

Gabriel deitou de tênis e tudo. Exausto. Me juntei um pouco depois sem o


casaco, relógio, pulseiras, e colares. Não percebi o quanto exausta também
estava até deitar a cabeça.

— Obrigado. – Ele suspirou enquanto a gente se aconchegava – Teria sido


muito pior sem você por aqui.

— Você ainda é o meu melhor amigo.



Capítulo Quarenta e Quatro
Uma semana depois

Deitados na cama do Rafa, Gabriel parecia mais calmo. Não chorava tanto. Não
conseguia retornar à rotina, mas o primeiro baque já tinha passado. Dona Lúcia
deixou que a gente ficasse na casa dela pelo tempo que quiséssemos, mas já nos
sentíamos atrapalhando sua rotina com seu noivo, um oncologista honesto,
viúvo, e que sempre aparecia para completar.

Planejávamos sair de lá, mas ainda não estávamos certos para onde. Na casa
dos meus pais tinha mais espaço, já que o Guto e o Lipe não moravam mais com
eles, mas também éramos adultos demais para atrapalhar outro casal.

E, também, tinha o fato de que nós não éramos um casal. A memória


muscular de se caçar para prover ou dar carinho ainda existia e, me peguei vezes
demais deitada no peito dele. Gabriel automaticamente mexia no meu cabelo
como sempre mexeu, como se nada tivesse mudado, mas o fato era que tudo
estava diferente.

Éramos adultos, nossas vidas tomaram caminhos diferentes, ele gostava de


ser professor de molecada e eu gostava de voar. Ele vivia internado na faculdade
estudando o mesmo assunto e conhece as vias de São Paulo como ninguém,
enquanto eu andava por aí caçando novas ferramentas e técnicas para resolver
meus problemas.

Ainda tinha o fato de que ele e o outro quebraram meu coração. E disso,
nenhum de nós conversou.

— E é assim que o hospital se parece agora. – Pelo celular, eu mostrava as


fotos do trabalho que fiz para Aziz depois que terminei meu contrato de dois
anos com as Botelho.
— Parece o mesmo!

— Essa é a minha mágica, agora. – Satisfeita com o resultado, desliguei a


tela do aparelho e sorri. – Legal, né?

— Muito. Parabéns, Baixinha.

Soou como uma faca entrando, tanto em mim, quanto nele. Talvez tenha dito
sem pensar, talvez tenha falado só por costume. Memória muscular. Ficou aquele
silêncio horroroso entre nós e ele se desculpou.

Então eu perguntei a questão grande:

— E então, o que vai ser daqui para frente?

— Manuela, eu sei que você está fazendo um grande favor e eu já tomei


muito do seu tempo. Não pense que não sei disso.

— Não é favor.

— É favor, sim. Você veio da França, do seu trabalho dos sonhos, direto para
cá. Você não é mais uma mocinha, tem uma equipe dependendo de você, e eu sei
que cada um dos seus funcionários parados te custam dinheiro. É um favor e eu
não sei como retribuir, não sei como te pagar, e, me perdoe tomar seu tempo.

— Gabi…

— A questão… – Ele fechou os olhos e respirou fundo para não chorar –


Não vou fingir que nada aconteceu e que você não é minha ex-namorada. Você
é. Eu sei. Você é a minha única amiga e a única coisa que não faz meu mundo
virar de cabeça para baixo. Eu só… não sei o que fazer. Pior, eu não sei nem para
onde ir. Desculpa te chamar pelo apelido antigo, saiu, foi sem querer.

— Só não força.

— Saiba que não quebrei seu coração, lá atrás, porque não te amo. Ou
porque te traí, ou qualquer coisa que os namorados fazem. Foi…

— Eu sei o que foi.


— Então lembre-se disso da próxima vez que um apelido escapar.

— A questão é o como, Gabi. O como você resolveu rasgar o que tínhamos.


Você simplesmente parou de falar. Parou de conversar, parou de me atender.
Frequentava a mesma aula que eu e no entanto…

— Eu estava machucado.

— Ah, então tudo bem machucar os outros enquanto estamos feridos?

— Manuela, eu sou cego de um olho. Por causa do meu pai.

— A ironia do destino é maravilhosa.

— Como é?

— O moleque que nunca percebeu a mãe apanhar do pai perdeu a vista por
causa dele.

Ele não respondeu. E assim que terminei de falar, me arrependi.

— Me perdoa. – Pedi.

— Não, você está certa.

— Gabi, me perdoa. Seu pai quem é o responsável, ele só fez o que fez
porque acredita que pode e eu espero que ele coma o pão que o diabo amassou
por causa disso!

— Mas o garoto que nunca viu a mãe apanhar realmente perdeu um olho.

— Perdeu, meu amor, mas isso não é culpa sua!

— Olha quem está usando apelidos antigos, agora.

— Força do hábito. – Retruquei meio orgulhosa.

— Força do hábito… – O Gabriel que eu conheço, se não estivesse tão


abatido, teria me dado o bote ali mesmo.

Rodei, rodei, rodei (em todos os sentidos) e olha onde vim parar. Descobri
coisas, ganhei presentes, fiz cursos, tive meu nome falado na boca de gente
importante e fiz inimizades mais importantes ainda, mas, deitada no quarto do
Rafa, no peito do Gabi…

Tudo o que me sentia era a mesma menina que ficou no quartinho dos pais,
chorando como uma tonta, seus amores que partiram. Tomando goró com o pai
para esquecer os problemas, e conversando com a mãe. Naquele quarto, deitada
naquele peito, o tempo nunca passou.

— Puta merda, – ele quebrou meu fluxo nostálgico – eu daria um rim para
ter Rafael aqui.

— Parece que Rafael agora tem uma moça.

— É, – suspirando, Gabriel continuou marretando meu coração – é a noiva


dele.

— Noiva?!

— Rafael partiu para outra, seguiu com a vida.

— Não o culpo. – Por fora não o culpo, mesmo.

— Pelo menos não sou o único que não conseguiu seguir adiante.

— Ah, Gabriel, não vou falar que não teve ninguém depois que vocês
terminaram comigo.

— Então sou o único que não conseguiu seguir adiante.

— Gabi, logo você? – Olha a ironia rindo de novo.

— Traumatizei, Baixinha. Se eu te falar que vivo atolado nos livros, então,


você vai dizer que seu Gabriel morreu?

— Gabi, você pega pesadíssimo.

— Não vou mentir, Manuela.

— O quê?
— Eu tô louco para te ter outra vez.

Não era recíproco. Com o rostinho perto do meu, as bochechas


avermelhadas, os olhos lindos. Olhava para os meus e, por um minuto, se parecia
com o meu Gabi. Aquele Gabriel que arrumava briga e saía rindo. E depois
voltava para bater porque tinha se esquecido que Rafael assumiu seu lado e tem
um pavio bem menos comprido.

— Está na minha hora de ir. – Antes que eu aceitasse o convite, levantei da


cama. Gabriel não se mexeu, mas sorriu quando o olhei.

Calcei botas sem meias, e peguei a bolsa. Nem sabia mais para onde ir,
nenhum lugar parecia o meu. Dei um beijinho na cabeça do Gabi, desejei que
ficasse bem, e abri a porta.

— Se cuida, – ele disse erguendo da cama também – te levo até a saída.

No fundo, eu queria que ele tivesse pedido para ficar. Que ele fizesse questão
de mim. Saímos do quarto e Dona Lúcia não estava, nem Carlos. Era umas dez
horas da manhã, mais ou menos.

Rafael, na cozinha, abastecia a geladeira. Tinha sacolas do mercado abertas


em cima da mesa e falava no celular com alguém e, dado pelo teor da conversa,
a própria mãe.

— Você sabe que o Gabi prefere muçarela.

— Ele não muda nunca, não é? – Gabriel, cochichou, atrás de mim – Nem
olha na nossa cara, entra quando a gente tá dormindo, e cuida sem contar para
ninguém.

— Mas cuida. – Sorri cochichando de volta.

Com um puxão, Gabriel me virou de frente para ele e me envolveu nos


braços, não como tem me envolvido desde o fatídico dia do funeral, mas como
homem que eu sei que ele é.

— Eu perdi quase oito anos da minha vida apostando as fichas onde meu
coração dizia para não apostar. Preciso te dizer, Manu, que se tiver qualquer
chance de sermos três de novo, eu quero tentar.
Eu devia ter respondido. Olhando para o jeito quebrado do menino que amei
muito um dia, eu não quis responder nada.

Entrei na cozinha e dei bom dia. Rafael assumiu outra postura, na defensiva.
Desligou o telefone e nem sei se se despediu da mãe. Deu um bom dia duro,
como se eu fosse uma colega de trabalho que ele não gosta, e agrupou as sacolas
de mercado vazias para jogá-las num porta-saco longe da minha vista.

— Quanto te devo? – Perguntei quando ele voltou.

— Deixa disso.

— Não é sua obrigação abastecer a geladeira da sua mãe, Rafael. Então, por
favor, me deixe retribuir.

— Só continua cuidando do Gabi, que tá bom.

— Ah, porque assim você não precisa lidar comigo, não é? – Gabriel entrou
na cozinha também, e não estava nem um pouco feliz – Contanto que eu não
jogue meus dramas para cima de você, você é capaz até de lavar as roupas da sua
mãe.

— Tá louco?

— As roupas brotam sozinhas no varal, Rafael?

— Rafa, – isso é tão a cara dele… – você tá vindo aqui, escondido, para
lavar roupa?

— Quem te contou isso?

— Achei que era mentira do Gabi. – Eu ri.

— Não é, Manu, esse cara é doido. Já vi invadirem casa para assaltar, mas
para lavarem roupa, essa é a primeira vez.

Rafael sem jeito de responder, e vermelho. É certo, ele vai à casa da mãe dele
e diminui os trabalhos de ter hóspede em casa. Congela o jeito do Rafa de evitar
olhar para nós: porque eu amo isso. É tão simples e bonito ao mesmo tempo, que
não dá nem para brigar.
Então, do nada, Gabriel começou a rir. Ria, e eu ri também, porque a
situação era idiota, hilária e besta. E Rafael, contaminado, ria, porque não tinha
resposta para o que estava fazendo, mas não conseguia parar.

— Essa é a primeira vez que eu rio essa semana!

— Tudo porque Rafael tá limpando escondido – E eu ria.

— Nem sei o que tô fazendo aqui, eu odeio vocês. – E Rafael ria.

— Eu nem acredito que tô na cozinha da minha ex-sogra.

O olho que não vê ainda é capaz de sentir e de chorar. A risada foi se


transformando. Virava um riso nervoso pouco engraçado, e, depois, um choro.
Agarrei o Gabi antes que desmoronasse.

— Eu deixei meu pai tomar conta da minha vida – Quebrando num choro
cada vez mais alto, ele se deixou envolver – E olha onde eu vim parar, porra.

— Calma, respira, eu tô aqui.

— Abandonei vocês porque acreditei nele… E agora vocês mal olham na


minha cara!

— Não é verdade.

— Ele me deixou acreditar como um homem deve agir, quis me ensinar


como ser… e eu acreditei nele!

— Ele é seu pai, Gabi, acima de tudo, ele era seu pai…

— Para de chorar – Rafael mandou. Chegou perto da gente, e ergueu a


cabeça do Gabi, forçando um contato visual que ele não queria – Não importa o
quê. Só para. Olha para mim: Olha para mim, Gabriel.

— Deixa ele, Rafa. Não briga, não é a hora. – Soltei Gabriel só para afastar o
Rafa, e acabei no meio deles. – Não pisa. Não é porque você achou um jeito de
superar tudo, que ele tem que engolir o choro. Fica na sua!

— Ah, então você acha que eu superei?


— Olha o garoto prodígio do banco se casando com uma mocinha limpa, que
não sabe de nada do seu passado de moleque bicha, bolsista e com dois
namorados!

— Não fala o que não sabe, Manuela, que fica pior.

— “Essa é Manuela, minha amiga da escola”. Isso o que eu era para você,
Rafael? – Lembrei o modo como ele me apresentou para a noiva dele.

Ah, meu Deus, como eu odeio essa palavra.

— É, Rafael, você pode mentir o quanto quiser. Você ainda é um menino


raivoso, com medo de gente, que explode por tudo e que foge dos problemas!

— Chega, Manuela.

— Fugiu, levou a mãe junto quando era criança; fugiu de novo, e agora vai
se casar. Quanto tempo você acha que consegue ser um mocinho limpinho para a
sua mocinha limpinha até se tornar o seu pai?

— Manuela. – E não era Rafael quem dizia. Era a Tia Lúcia – Vá embora da
minha casa.

— Ótimo. Porque eu não aguento mais carregar um fardo que não é meu!

Capítulo Quarenta e Cinco
“Você quem escolheu voltar”. Era a minha mãe no telefone.

Do mesmo jeito que voltei, planejava ir. Era melhor assim. Pegar minhas
coisas, minhas caixas de rodinhas e ir explicar para outro agente de aeroporto o
que são todas essas pás e pincéis. Era melhor. Não ter dor de cabeça, nem choro,
nem grito. Ir para um lugar onde só tenha eu, palestras, workshops, cursos,
línguas, pessoas e experiências novas.

Era melhor lá fora. As coisas custam um rim, as pessoas te olham esquisito


porque estrangeiro ainda é estrangeiro, mas não estragam a sua vida. Não tem
drama, lá. Não tem ex-namorados e pai batendo em mãe. Só tem eu. E, de vez
em quando, só tem eu, mas acompanhada.

Só não fui direto para o aeroporto porque eu nem sabia mais onde estavam as
minhas coisas. O Lipe enfiou todas elas na caminhonete, mas não sei para onde
levou. Liguei para a mãe para saber o paradeiro, e ela me disse o óbvio.

Não escolhi voltar. Voltei porque era o Gabi e ele precisava de mim. Talvez
agora ele não precisasse mais, então talvez fosse hora de ir.

Entrei pelo portão do Jockey carregando a bagagem de mão e um casaco


muito pesado para o clima. Na bolsa o celular vibrava, mas não quis atender. Me
identifiquei para o guarda do condomínio de três casas e fui direto para a casa da
Vaca Megera.

Embora eu tenha arrancado muito dinheiro dela, não ficou um clima estranho
entre nós. Ela demandava muito, mas queria pagar pouco, a questão é que não
deixei. Se tivesse deixado talvez ela me amasse mais, mas ninguém paga as
contas com amor, então não me importava se ela fosse um pouco menos
amorosa, desde que pagasse o justo.

Não tô nem falando de ficar milionária às custas dela. Ganho bem, mas gasto
muito também. Vivo de aluguel ainda porque casa é ponto fixo, e eu transito.
Abrir a porta sem bater e ver o Lipe ensinando tabuada para uma Olga de maria-
chiquinhas e relógio inteligente, isso me fez entender exatamente pelo que ele
ficou esperando por dez anos.

Demorei um tempo para dar oi, porque ver essa cena, na mesa da sala, me
fez quebrar. Depois de toda a merda que ele passou. Depois de todos esses anos
me usando de oráculo. Depois de tudo, toda a lama, toda a miséria. As tatuagens
do Lipe continuam as mesmas, assim como as cicatrizes.

Mas ele era o homem mais feliz do mundo. E vê-lo com a síntese do amor e
perseverança que errava tabuada básica me deixou sonhar com uma
possibilidade de final feliz para mim, também.

— Três vezes cinco?

— Uma vez cinco, cinco… – Olga contava com as mãozinhas – Duas vezes
cinco – Abriu a outra palma da mão – São Dez. Pai, me dá a sua mão!

— Aqui, Coelha.

— Doze, treze, catorze… Não tira a mão, eu tô contando!

— Três vezes cinco? – Ele sorria com a mão escondida nas costas.

— Tá, já entendi, são quinze.

— Três vezes seis?

— Ahhhhhhhh…

— É só somar mais três, Olga.

— Como que três vezes seis é igual a três vezes cinco mais três?

— Pai vai te explicar: – Ia se sentar no chão e desenhar um esquema maluco


com a mesma sofisticação de quem desenha pontes, mas me viu na porta.

Lipinho, sorri, limpando as lágrimas. Virou um puta pai.

— Titiaaaaaa!

Eu sou uma tia maravilhosa. A mãe dela a proíbe de comer doce antes do
jantar e eu afano um brigadeiro escondido. O pai a obriga subir para tomar
banho e eu ensino como fingir que tomou banho ligando o chuveiro e deixando a
água escorrer.

Seria uma péssima mãe mas, olha, tia, eu tô de parabéns.

— Que saudade que eu estava de você! – Beijei aquele rostinho redondo


igualzinho ao da mãe e quase matei de tanto abraço.

— De que país você veio? – Ela sempre pergunta isso. Toda vez que eu
falava com o Lipe por telefone ou chamada por vídeo, ela enfiava a cabecinha na
frente e tentava descobrir em que parte do mundo eu estava.

— Te dou uma dica: Torre Eiffel.

— França!

— Tá boa de geografia, hein?

— Quando você voltar para lá, me leva com você?

— Menina, cê tá muito grande para caber da minha mochila.

— Ê, Monstra… – Lipinho sorriu abrindo os braços. Continua maior que eu


e ainda me sinto um grão de gente quando ele me aperta assim. – Cê tá legal?

— Tô… – Menti, chorando um pouco no ombro dele.

— A lua de mel já acabou, não é?

— Eu disse coisas tão horríveis!

— Vocês vão dar um jeito, não fica assim…

— Eu acho que não tem jeito para dar, Lipinho.

— Sempre tem, basta querer.

— Eu não sei se eu quero.

— Então você veio correndo, pagou quinze mil numa passagem de avião,
para socorrer um namorado que você não quer mais?
— Falando assim, pareço que sou uma louca.

— Nome nos bois. – Ele me soltou enquanto sorria – Tem que dar o nome
certo aos bois.

Vadia cruel. Se ele quer o nome certo, esse é o meu. Vadia cruel para cacete.

— Eu estava aqui explicando para uma coelhinha… – Lipinho se sentou à


mesa de café da sala e a filhinha dele se sentou ao lado – Que três vezes seis é a
mesma coisa que três vezes cinco mais três.

— Ah, então ela não sabe que multiplicar é somar um monte de vezes? –
Sorri largando a mala e o casaco em qualquer canto para me sentar do outro lado
da Olga.

— O papai não explica assim.

— Engenheiros… – Virei os olhos reclamando e peguei um lápis. Desenhei


vários risquinhos na folha, agrupados de três em três – Se você somar esses, –
circulei um grupo de três – E esses três, e esses três, quanto dá?

— Nove…

— E quanto é três vezes três?

— Nove?

— Se é para errar, que seja com convicção. É nove ou não é, Coelha?

— É…

— Nove ou não?!

— É!

— De novo, vamos lá. Esses três, mais esses três, mais esses – Circulei cinco
grupinhos de três. – Deu quanto?

— Quinze.

— E se eu somar mais esses três?


— Dezoito.

— Quanto é três vezes seis?

— Dezoito também? Papai! Tia Ogra é muito melhor de matemática que


você!

Eu ri alto e achei muita graça no jeitinho do Lipe de ser contestado.

— Termine seu dever que eu vou alimentar sua tia, tá?

— Posso terminar meu dever lá na cozinha?

— Pode, mas vai ter conversa de adulto – Do mesmo jeitinho que a mãe
fazia comigo quando o Lipe queria falar coisa de adulto com ela. – Não é
conversa de criança, meu Anjo. Tudo bem para você?

— Você e o Tio Guto vivem tendo conversa de adulto também…

— Vem, Coelha. – Lipinho guardava os lápis da filha no estojo enquanto a


pequena levava o livro e o caderno para a cozinha.

O bom da casa do Lipe é que sempre tem comida boa. Vira e mexe ou a Dê
está cozinhando alguma coisa muito gostosa, ou a mãe dela está. É
impressionante o como essas duas têm a mão boa.

Como é casa de irmão, já fui para a cozinha caçando coisa na geladeira.


Fome mesmo não tinha, mas a vontade de comer era gritante, então descobri
umas broas de milho dentro de um potinho, e enfiei no microondas.

— Faço um café?

— Se for só pra mim, pode ser de máquina mesmo. – Lipinho não é nem um
décimo chegado em café quanto a esposa dele.

— Quer conversar? – Enfiando uma cápsula na máquina de espresso, ele


puxava conversa enquanto a pequena se instalava à mesa e abria seu estojo à
procura de um lápis – A gente tem tempo, faltam uma hora para levá-la para a
escola. Se a conversa for muuuuuito íntima e se você tiver tempo, pode ser
depois…
— Não, nem sei se fico aqui até dar a hora da escola.

— Veio só se despedir?

— Na verdade, vim por não saber para onde ir.

— Fico feliz que tenha vindo para cá. – Sorriu como o pai costuma sorrir –
Significa que aqui se parece com casa para você.

— É onde tem você. – Tirei a broa do microondas e recebi o café, mas não
me sentei. Fiquei em pé mesmo, do lado do Lipe, encostada no balcão e
dividindo as broas do potinho com ele.

— Você o ama? – Ele perguntou.

— Quem? O Rafa ou o Gabi?

— Não, digo… – E se confundiu todo para reformular a frase – Você os


ama? Como que fala isso? Você os ama, ou você os amam?

— Os ama. Sou eu quem amo, o verbo flexiona com o sujeito, não com o
objeto. – E dei uma risadinha enfiando a broa na boca – Aparentemente, sou
melhor em português, também.

— Então você os ama.

— É.

— Então não tem porquê ir embora.

— Não, Lipe… – Pega num labirinto sintático. Ai, só por Deus.

— Ama ou não ama?

— Amo, você sabe que sim!

— Então… ? Meu oráculo, por acaso, tá quebrado?

— Seu oráculo não sabe fazer previsões para si mesma.

— É, – ele presumiu – todo oráculo tem seu preço. Deixa eu fazer a vez do
vidente, aqui. Me dá sua mão.

— Não, Lipe, essa coisa de oráculo e visão é metafórica, pô, eu nunca li


futuros!

— A mão, Monstra.

— Toma, vai.

— Eu vejo… – Ele pegou a minha mão cheia de farinha de milho e deu um


beijo na palma – Uma moça que não pensou duas vezes antes de voltar para casa
depois que soube da notícia. Que não tá usando calcinha porque sei que só tem
roupa suja nessa mala e você não veio aqui pegar a sua mala maior… Que secou
lágrimas por vezes demais… e que nunca parou num canto só porque sabe que
nenhum deles é sua casa.

— Só errou a parte da calcinha.

— Tá usando calcinha suja?

— O Rafa tá lavando roupa escondido.

— Ele se parece tanto com o Guto que dói.

— O Guto jamais fugiria de uma briga.

— Ah, então você tem que ir lá falar com a Bia antes de assumir uma teoria
dessas. O Guto, machucado, foge de todo mundo. Ou você não lembra de como
foi quando ele trouxe Madalena?

— Rafael tá noivo, Lipe! Noivo!

— Noivo? – Nem o Lipe entendeu essa parte.

— Quem tá machucado não fica caçando saia por aí, caralho!

— Ô se fica. – O Guto se intrometeu entrando na cozinha.

— Minha casa não tem porta, né?

— Porta… – O Guto sorriu, segurando Madalena no colo com o mesmo


penteado que Olguinha, o mesmo uniforme escolar, e a mochila.

— Titiaaaaa! – Madalena tinha um canto doce. Nunca vi igual. Não sabia


que eu estava no Lipe e pulou logo no meu colo, me enchendo de beijo, a
sobrinha mais dengosa que eu tenho é essa pretinha.

— Como que tá o meu dengo? Hein?

— Papai falou que você não ia vir para cá – Ela cochichou no meu ouvido –
Porque estava cuidando de um amigo.

— Seu pai está certo.

— Não ia vir para cá nem para me ver?

— Ô, princesa… – Enchi o rostinho de beijinho e já quase chorava – Meu


amigo perdeu a mãe dele, eu estava cuidando para ele ficar bem.

— Pega leve. – O Guto advertiu.

— Perdeu a mãe? – Madalena olhava de um olho para outro e não entendia o


que significava isso. – Ele deve estar bem triste.

— Ele só chora, Lelê.

— Eu vou fazer um desenho para ele ficar feliz.

— Ele vai ficar muito feliz com o seu desenho. – Ok, eu só não chorava mais
porque faltava ar.

Desceu do meu colo e foi se sentar do lado da Olga. Uma cutucou o cabelo
da outra porque usavam o mesmo prendedor de cabelo. Um cabelinho liso
escorrido, o outro cabelinho todo cheio de cachinho. Eu lembro do Guto
assistindo vídeo no Youtube para aprender a lidar com o cabelo da filha e, a
perceber a qualidade dos penteados, era hora do Lipe ver uns vídeos também.

— Como você tá, Monstrinha? – Gutão abriu os braços e me enfiou dentro


de um abraço antes que eu pedisse. Encheu meu rosto de beijo e bastou para que
eu segurasse o choro que sairia alto e para fora, se não fosse as duas princesinhas
sentadas à mesa.
— Um lixo, Guto. Eu tô… um lixo. – Enxuguei as lágrimas nas mangas da
blusa e forcei um sorriso – Cadê o resto dos meus bebês?

— Com as mães.

— Os três?

— É o ponto do dia em que eles mais dormem. Quem dá trabalho de manhã,


acredite, são essas duas.

Nem acredito que Madalena já tem nove anos e Olguinha, oito. Eu tô ficando
é muito velha.

— Rafael tá noivo, né? – Guto voltou o assunto para onde doía.

— E pior que a coitada parece boa pessoa. Não dá nem para odiar.

— Eu tô lendo a mão dela. – O Lipe é tão babaca que chega a dar pena. –
Quer ler também?

— Já sei o que diz aí. – Disse, já roubando as minhas broinhas.

— Pensa bem o que vai dizer, Gutão, que mais um pouco planto ela na sua
cara.

— Pequena: – ele suspirou resignado – quando machucados, a gente aceita a


luz que vier. É claro que o Rafael está noivo! Você queria que o cara vivesse na
merda por oito anos? Você não viu como me apeguei à Madalena quando eu era
o fodido da vez? Quer falar do quanto o Lipe se apegou a você quando era ele o
fodido? Manuela, você é a única de nós que não se apegou a nada fixo na época
de fossa, mas acredito que pegou e se desapegou de um monte de gente durante
esses tempo.

— Eu me apeguei ao trabalho.

— É, bem original. – O Lipe riu. Foi exatamente o que a esposa dele fez.

— E a mim mesma.

— Ahã, bota original.


— Nina, você não pode chegar querendo que tudo seja igual. Eles não são os
mesmos, você não é a mesma. Meu, você virou um puta mulherão do cacete. Cê
anda na rua e eu passo é raiva. – O Lipe falava e eu ria – Cê já andou com a
Manu na rua depois de adulta?

— Nem quero. – O Guto botou água no fogo para fazer café.

— Meu, nem anda, que é uma merda. Todo bosta que passa entorta o
pescoço. E, tipo… É a minha irmã! Vai entortar o pescoço na puta que pariu!

— Lipe, menos, vai. Vai ter ataque de ciúmes com aquela baixinha ali.

— Eu não quero pensar quando elas crescerem. – Para o Lipe, tanto faz se é
filha do Guto ou dele. São os seus bebês. – O que eu estou falando, Ogra, é que
passou muito tempo. E teve essa desgraça no meio. E o Gabi também está um
lixo, e, meu, não é saudável deixá-lo sozinho, porque para ele ter o mesmo
destino da mãe dele, é um pulo.

— Não fala isso nem de brincadeira.

— Você tem que decidir se quer pular para dentro, ou se quer cair fora. – Nos
armários, Guto caçava filtro de café e um copo alto – Porque, se quiser pular
dentro, é questão de uma semana e estão os três resolvidos. É sentar e conversar,
quebrar o pau, gritar umas patifarias, e pronto, vida que segue. Você sabe que
eles te amam, você os ama. Tá na cara, no enterro mesmo a gente via. Gabriel
parece fraco, mas não é. Gabriel é forte demais. E Rafael parece forte, mas não é
obrigado a sê-lo a vida inteira.

— E você é a estrela-guia. O que você quiser fazer, vai acontecer. Se sair do


país e quiser que eles se fodam, então ninguém nunca verá vocês três juntos de
novo, não importa o quanto eles tentem, nunca serão três. Agora… se você
quiser os dois…

— Tem que saber o que quer, Manu. É desrespeitoso não saber o que quer.

— Eu só quero…

— O quê? O que você quer?

— Eu só estou… – Parei de fingir e assumi para os meus oráculos –


Magoada.

— Eu sei. – Lipe limpou as minhas lágrimas e sorriu – Isso demora para


passar.

— Quanto tempo demorou para você perdoar?

— Resposta de oráculo?

— Resposta…

— Quando eu lembro ainda dói.

— Depois de dois filhos?!

— Mas não dói igual. É como quando você lembra de alguém que morreu
faz tempo. Você não chora porque faz tempo, mas dói.

— Nunca vai passar, não é?

— Não vai, Pequena. – O Guto desligou a água do café e eu vi a dor pintada


em seu rosto – Nunca vai passar.

— É questão de medir o tamanho do amor e o tamanho da mágoa. Se doer


mais do que existe amor, pule fora.

Capítulo Quarenta e Seis
Dois meses depois

Dei tempo para o Gabi poder respirar. Não sei se Rafael precisava de tempo,
mas Gabriel precisava. Uma semana desde a morte da mãe dele era pouquíssimo
tempo para retomar qualquer coisa, então me afastei e o deixei viver.

Não sem antes ligar para a Tia e pedir desculpas pelas coisas horríveis que
disse. Não precisava do barraco na casa dela. Foi desmedido falar que Rafael
fugiu com a mãe, aos oito anos de idade, e querer comparar a noiva com a fuga.
Foi desmedido e desleal. Liguei para dizer isso e é claro que ela me desculpou,
senhora mais doce que ela vai ser difícil de encontrar, mas ainda fiquei com um
gosto amargo na boca pelas coisas que falei.

Depois, só gravei um áudio para o Rafael. Eu não queria ter que falar com
ele. Só queria pedir desculpas, então o fiz sem esperar réplica e fui sincera. Falei
que não tenho nem motivo para odiar a noiva dele, mas a odeio. E falei que me
sentia pessoalmente ofendida por ele ter me trocado.

Igual uma menina de treze anos fazendo drama, mas, pelo menos, falei o que
queria falar. Ele não estava errado de ter tocado a vida, namoros acontecem, eu
mesma peguei alguéns depois que eles terminaram comigo, mas noiva parece
uma coisa definitiva e ele não tinha o direito de fazer isso comigo.

Mesmo a gente tendo terminado? Sim, mesmo. Mesmo eu partindo do país e


nunca dado sinal de vida? Mesmo. Mesmo… foda-se, mesmo assim.

Terminei a mensagem rindo porque sou uma idiota. Brigando com Rafael
porque tocou a vida, na mesma mensagem que era só para pedir desculpas. Vê o
tamanho do ciúmes? Tenho problema mental. Mas pelo menos falei umas
verdades para ele e admiti que oito anos não me fizeram esquecer o como ele me
largou no mundo depois de tudo o que passamos juntos.
Por um lado foi bom. Foi muito bom poder adquirir todas as experiências
que vivi. Nunca me imaginei indo tão longe, mas, talvez, nós três pudéssemos
ter passado pelo que passei e progredido juntos.

Já imaginou? Nós três nos formando em Cambridge, fazendo curso de


restauração, revigorando hospital na Síria? Talvez eles só pudessem ir para a
Inglaterra depois que juntássemos muito dinheiro, mas sei que conseguiria.

Mas, por outro lado, eu não teria essa cara de pau e essa desenvoltura se
sempre seguisse atrás deles. E nunca seria segura de mim se não tivesse me
enfiado sozinha nas coisas.

Alguma coisa dentro de mim parece que se encaixou quando pensei em nós
três pelo mundo restaurando velharias. Quando as estruturas estão muito
danificadas, eu contrato um engenheiro freelance. Rafael é engenheiro. E parte
da minha equipe é feita de arquitetos com as mesmas credenciais que as minhas.
Gabriel era arquiteto, só faltavam credenciais e isso posso dar para ele…

Pensando em trabalho que enviei um e-mail para a Sala São Paulo e mandei
meu portfólio. Depois fiz o mesmo com uma faculdade particular que comprou
um dos prédios mais caídos do centro de São Paulo, ali perto da Santa Ifigênia e
do Instituto Santa Marcelina, e chamei o conselho para um café.

Era só um e-mail, o que eu estava pensando? Que o mercado Brasileiro


olharia para mim só porque lá fora fiz algumas coisas importantes? Quando você
conhece Sheiks e restaura obras importantes pelo mundo, seu e-mail parece que
pisca dentro da caixa de entrada e isso eu vou sempre agradecer às Botelho.

Mas não piscou o suficiente. Nunca me responderam. Anexei meu portfólio


no corpo da mensagem esperando pelo menos um “Obrigado pelo contato”, mas
nem isso recebi. Quis entrar na faculdade na cara e coragem para oferecer meus
serviços, mas sem hora marcada ninguém fala com reitor.

Sempre esteve nos planos voltar ao Brasil e viver por aqui. Senti que era a
hora. Já perdi parte da infância das minhas sobrinhas, perdi parte da vida da
minha família e não queria perdê-los mais. É aqui que eu vivo, aqui que eu amo.
Essa é a minha terra, por mais tranco e barranco que isso se pareça, esse é o meu
lar.

E voltar a trabalhar para a minha mãe, depois de tanto tempo, parecia


regredir, não progredir. Eu queria voltar ao Brasil para fazer o que fazia lá fora.
Sou capaz de restaurar todo o Centro Velho de São Paulo, de manter a fachada
do Theatro Municipal como ele é, de arrumar a estética do Farol do Santander e
tirar essa cara de parapeito alto. E, refletindo um pouco, é exatamente isso o que
eu quero fazer. Só precisava arrumar o contato certo para me apresentar a
reitores de faculdade, governadores e presidentes de banco.

Então entrei na Pinacoteca do Estado e no CCBB. Uma das cartadas tinha


que dar certo. Na cara de pau mesmo, entrei vestida de celebridade, com roupa
cara, e perguntei para a recepcionista como fazia para expor nesses lugares. Daí
fui dizendo meu nome conforme passava de sala em sala até chegar em quem
realmente podia decidir sobre exposições.

Descobri que uma antiga professora minha era agora Diretora Geral da
Pinacoteca. Ela não gostava muito de mim na época, mas, com meu portfólio
impresso num álbum chique, ela engoliu as palavras que me disse, e sorriu
amarelo.

— Veja bem, hm… – Bebíamos café na sala mais alta e mais luxuosa da
Pinacoteca e essa mulher me enrolava – Nós não temos verba para…

— Não, a senhora me entendeu errado! – Quem quer rir faz rir, não é? – Não
procuro patrocínio. Eu quero oferecer. Esse é meu trabalho e estou procurando
um lugar para colocá-lo. Acredito que tenho repertório para encher uma sala
com antes e depois de lugares pelo mundo que os seus alunos, se é que a senhora
ainda dá aula, precisam ver. É este o meu desejo. Quero saber se a Pinacoteca
tem interesse…

Pagando, todo mundo tem interesse em tudo. É por isso que não guardo
dinheiro: Eu invisto. Com uma sala cheia de antes e depois de escombros que
retomaram o antigo prestígio graças à minha mão e à minha equipe, consigo
entrar em lugares onde meus e-mails não entram. E consigo criar um mercado
brasileiro que se interesse pelo que eu faço.

Ainda mais… se eu conseguisse trazer o Sheik e todos os contatos que as


Botelho me deram. O jornal adora uma boa celebridade e, no meu mundo,
celebridade não é televisão.

É assim que uma arquiteta entra em galeria de arte. Pedi para minha equipe
elaborar cada painel de onde passamos e escreverem textos que vão à parede, e,
enquanto isso, meus e-mails voaram: primeiro, para a FAU, minha antiga
faculdade. Convidei os coordenadores do curso para a estreia, depois liguei para
alguns outros arquitetos famosos, depois para o prefeito da cidade (já sabendo
que ele vai aceitar porque o Sheik estaria lá). Tudo informalmente, pescando um
contato ali, usando o nome das Botelho como intermediário e facilitador. Se eu
digo que sou Manuela Ferreira, quem não conhece meu trabalho está cagando
para mim, mas se eu digo, por exemplo, que sou cunhada da Dona do Jockey…

Uma mulher, para conseguir o que quer, tem que ser cara de pau e usar todas
as ferramentas que tem. Inclusive dizer que o Sheik vai para a abertura da minha
exposição sem antes mesmo ligar para convidá-lo.

Usei a terceira casa do condomínio do Jockey como residência. Não era o


meu lar, mas era vazia, mobiliada, e cabia. Estava perto dos bebês, dos meus
pais, e era um espaço só meu. Perto da abertura da exposição auto patrocinada, a
sala de estar parecia estoque. Os tubos das artes impressas chegavam pelo
correio, vindos de diferentes partes do mundo, e terminavam deitados no sofá.
Os folhetos da apresentação, as fotografias, o discurso, tudo espalhado por mesas
e cadeiras, enquanto, na geladeira, só bolacha e pó de café.

Adultíssima, pode apostar.

A melhor parte de aprender a ser sozinha é delegar coisas. Enquanto um


funcionário arrumava a arte da minha exposição, eu tinha tempo para poder
convidar, por vezes, por comunicado de imprensa e matérias pagas em jornais de
grande circulação, gente que antes nunca tinha ouvido falar sobre mim.

Lá fora, um contato vai chamando o outro. Aqui, como era um mercado


totalmente novo para mim, eu precisava captar clientes. Dizer para eles quem eu
sou para que nunca mais ignorassem meus e-mails. Restauradores têm de monte,
mas eles nunca viram uma arquiteta que estagiou no Louvre e que teve o prazer
de encostar na Mona Lisa. Meu trabalho não era pioneiro, mas o modo como eu
fazia, sim. Nunca levaram a restauração de obras de arte fechadas em câmaras
climatizadas para a rua e era por isso, lá fora, que um contato chamava o outro.

Uma galeria com tudo o que eu já fiz, e um motivo para todo mundo beber
champanhe caro às minhas custas, eu acreditava que seria mais que o suficiente
para que o mercado brasileiro me notasse.

Só perto da data limite do meu cronograma é que liguei para as Botelho, para
o Sheik, para Tobias e os chamei. Eu sei que eles vêm porque eles são nomes
fortes, mas são amigos. E prometi que Aziz e Tahir teriam muito o que fazer no
Brasil, se o Sheik as trouxesse.

— Pelo amor de Deus, eu lustro o Taj Mahal inteiro com a língua, se você
vier!

— Oh, eu pagaria para ver isso. – O Sheik ria.

— Diz que vem, por favorzinho, diz que vem!

— Também pagaria para ver a sua cara dizendo “por favorzinho”.

— Velhaco, eu vou perder a paciência com você!

— O que você me pede que eu não faça, Manuela?

— Você tem a opção de ficar na minha casa, que é perto da casa das Botelho,
e tem a opção de hotel chique. Qual você quer?

— Vai pagar a minha estadia?

— Se você quiser economizar um pouco…

— Pergunto a Aziz o que ela prefere.

— Aziz não está bem?

— Está grávida.

— De novo?!

— Nesses casos é “parabéns” que se diz.

— Ah, parabéns. Mas, porra, pegou gosto na coisa depois de velho, Habib?

— Só quando me pede coisa é que me chama de Habib…

Tá ficando velho e manhoso. Eu rio, acho graça. A Folha de São Paulo vai
falar que o Sheik Al Kaabi do Qatar descerá em São Paulo especialmente para a
exposição de Manuela Ferreira, mas a verdade é que ele gosta de ser chamado
para coisas assim. Ele se sente em casa com a minha família e, na última vez que
veio para o Brasil, só a Olga era nascida.

Desliguei o telefone com um sorriso no rosto, depois falei com Andressa e


Bianca, as duas confirmaram presença e mandei e-mail para um assessor
freelance contratado para que ele contasse aos jornais quem é que iria nessa
minha exposição.

Parte da minha equipe veio ao Brasil me ajudar nos preparativos e o Bento


também. Nossas vidas tomaram rumos muito diferentes, mas ele era um bom
amigo. Enquanto eu voltava ao Brasil, ele se lançava em mais um curso no
estrangeiro e só voltava para cá porque pedi.

Ao mesmo tempo em que as manchetes patrocinadas em jornais faziam


parecer que o evento seria grandioso, para mim, era incrivelmente familiar. O
Lipe arrumava as flores clandestinas por mesas e vasos, do jeito como sempre
arrumou nos meus aniversários, e meu pai tomava conta do buffet contratado.
Olguinha corria de mão dada com Madalena e Fernanda Angélica, enquanto
Arthur e Rodrigo os bebês mais novinhos eram mimados pelos avós, em
poltronas confortáveis, ao passo que suas mães ligavam para mais pessoas
influentes que conheciam, os convidando de última hora.

Minha equipe, que não falava português e acostumados com a frieza da


patroa, olhavam a multidão disposta e ajudar, unida por laço de sangue, e
entendia o porquê da minha volta.

— Você não vai convidar seus meninos, Manu? – Meu pai perguntou
enquanto dividíamos uma latinha de coca-cola em cima de caixotes de
champanhe importados, na cozinha da galeria onde minhas obras seriam
expostas.

— Para quê? – Devolvi a pergunta só porque não tinha o que responder.

— Como assim, para quê? Não é para isso que você está voltando?

— Tá me confundindo com a sua nora, Seu Rodrigo. Andressa é que voltou


para o Brasil por causa do Lipe, eu voltei porque quis.

— Depois da morte da sogra. – Guto riu, no canto, enquanto revisava minha


planilha de gastos com todo aquele evento.
— É, tirei uma coisa boa de tudo isso.

— Ogra, – a mãe apareceu na porta – cê não voltou por nossa causa.

— Claro que voltei!

— Ogra. – Meu pai me puxou a orelha e devolveu a latinha para mim – Quer
mentir, tudo bem, mas que seja para mim e para a sua mãe. Para você mesma,
não.

— Não tô mentindo. – Estava escrito na minha testa que os queria de volta,


todo mundo sabia, mas o meu evento era por mim. O mercado Brasileiro é
vastíssimo e eu só precisava conquistar uma única metrópole para todas as outras
me notarem. – É o meu trabalho e essa é a minha casa.

— Sei…

— E não pense que vou comprar casa e estabelecer terreno aqui, porque não
vou. Mesmo quando algum cliente me notar, vou continuar viajando pelo
mundo. É só questão de expandir. Se, nesse meio tempo, Rafael e Gabriel me
notarem, fico feliz, mas, senão, tudo bem também.

— Tudo bem? – Todo mundo parou de fazer o que fazia e me encarou como
se eu tivesse dito que estava com câncer. Minha mãe me olhava sem entender –
Como assim, tudo bem?

— Tô velha demais para ficar correndo atrás. Eu tomei um pé na bunda há


anos, nossas vidas seguiram por caminhos diferentes, Rafael está noivo, Gabriel
está doutorado. Eu não vou me rastejar mais do que já o fiz. Toda vez que vou
atrás deles volto um caco para chorar no ombro de vocês e não quero mais essa
vida. Tá tudo bem assim, do jeito que tá. Se brotar cliente por aqui, eu fico,
senão, aceito o trabalho na Finlândia e sigo o barco.

— Finlândia. – Lipinho cortou mais um galho de flor e revirou os olhos. –


Aham, tá bom que você vai para o cu do mundo.

— Quero você aqui, filhota, comigo. – Colocando o braço ao redor dos meus
ombros, me puxou para o mais perto que conseguiu e me beijou o rosto – Cansei
de falar com você por WhatsApp.
— Então torce para que hoje à noite dê certo e pingue clientes para mim.

— Pai já tá torcendo, Coração Vadio.

— Porra, pai. Coração Vadio dói na alma!

— Cê nunca me enganou, Ogra. E não vai enganar agora.



Capítulo Quarenta e Sete
(Rafael)

Carol entra em casa segurando dois canolis de creme que ela encontrou na nova
doceira que foi com as colegas de trabalho na hora do almoço. Não é meu doce
favorito nem de longe, mas ela sempre me viu comendo, então supôs que fosse.
Nunca contei que comia esse troço demasiado doce e sem gosto só para matar
saudades.

Ela me beija e pergunta do meu dia e eu só sei pensar na Manu. Ela voltou,
está com esse negócio novo de restauração, alguma coisa que eu não entendi
direito, e vai ter uma exposição na Pinacoteca. Ela voltou e Gabriel abriu os
olhos. Percebeu a bosta que tem como genitor e é uma pena que tenha sido tão
tarde.

Mas nunca fechei os olhos. Sempre soube a bosta que o pai dele era, eu o
alertei. Nunca temi amar outro cara, só aceitei que fosse o Gabi, porra, eu
dividiria a minha garota com ele e você sabe como são os meninos quando
amam pela primeira vez. Nunca fechei os olhos, sempre soube das implicações.
Nunca tive dinheiro e se eu não tivesse passado naquela droga de vestibular que
me deixou acordado por mais noites que conto, pode apostar que essa casa por
onde Carol entra, mas Manuela nunca entrou, estaria bem aquém das minhas
possibilidades.

Eles sonhavam enquanto eu andava com os pés colados no chão, e só por


causa deles a minha mãe conseguiu sonhar também. Eles falam e eu só os quero
quietos. Manuela chora por tudo, porra. A merda do tempo todo. E liga para o
irmão Felipe de cinco em cinco minutos, à procura de conselhos de Deus e do
mundo…

E Gabriel não escuta ninguém. Nunca escutou, nunca vai escutar. Não sei
que merda que ele faz da vida agora, mas pode ter certeza que é alguma coisa
idiota que ele faz de graça enquanto alguém faz muita grana em cima, porque
Gabriel é um moleque avoado. Quer se enturmar e faz das tripas coração para ser
aceito.

Carol sugere pizza e eu só aceito que ela peça o sabor que mais ama.

Você sabe, noivar Carol não foi pensado. Ela representa tudo de normal que
um homem quer. Ela quer casamento e filhos, um emprego estável, férias uma
vez por ano e carnaval em Salvador. Sonha com filhos e discute a educação deles
comigo sem saber que eu morro de medo de ser pai.

Manuela está certa de uma coisa: eu tenho o pavio curto e não sei me
controlar. Deus livre qualquer pessoa de ser meu filho, porque o meu maior
medo é virar meu pai.

Ainda não disse para Carol que fiz vasectomia. Ainda não é a hora de ter
filhos, ela diz, porque estamos juntando dinheiro e ainda não nos casamos. De
todo jeito, vasectomia é reversível.

Ela diz que vai para o banho e que é para eu atender o cara da pizza se ele
chegar antes dela sair. Balanço a cabeça dizendo que sim, o controle de PS4 na
mão, e a cena de entrada de Red Dead esperando eu apertar start.

Quero dizer, Carol me salvou também. Nunca fui bom de me enturmar e


fazer amigos, e ela ama gente. Veio conversar comigo porque notou que a minha
camisa estava ao contrário. Me comprou um café, sem nem me conhecer, porque
fiquei cinco horas, direto, conferindo uma planilha. E depois pediu para meu
chefe me dar hora de almoço porque não pode fazer bem um homem ficar tanto
tempo sentado numa mesma posição.

Entrei no banco como estagiário e ela já estava lá, registrada. Fui movido
para a área de investimentos e ela analisava risco de mercado. Hoje ela é
merecidamente a chefe do nosso departamento, logo, minha chefe também, a
mulher mais gentil e humana que já conheci.

O tipo de mulher que dá bom dia até para faxineira. Que recolhe o lixo da
própria mesa, mesmo sendo chefe, e que não abusa da secretária. O tipo de
mulher que doa parte dos ganhos e que briga no mercado se a promoção limita a
venda de mais de uma unidade por cliente, e tem um casal de velhinhos pobres
na frente dela que encheu o carrinho para aproveitar o preço baixo.
Perfeita. Acorda e me pede desculpas por estar despenteada. Levanta mais
cedo para tomar café decente antes de sair de casa para trabalhar. Assina jornal
matinal e o lê, todos os dias. Tem carro, mas prefere alugar um apartamento
perto do metrô, e ir lendo um livro.

Amigável e linda. Tem olho verde e morre de orgulho dele. Fica com
vergonha de colocar roupa curta e sempre pergunta se eu gosto do que está
vestindo. Veja, o problema não é com ela. Carolina é linda, inteligente, amigável,
gentil. É forte, e cativou a minha mãe na primeira conversa. Levou um bolo de
cenoura na primeira vez que a viu. O problema não é ela, o problema nunca foi
ela.

Ela tem cócegas debaixo do braço e está sempre caçando alguma coisa para
fazer junto. Não desconta frustração em ninguém, não xinga, não gosta de falar
palavrão e ainda vai com os pais na missa do último domingo do mês só porque
eles gostam disso.

“Amor!” Ela grita do banheiro “Não esquece a pizza!”

As coisas foram evoluindo, um pouco por dia. Ela me comprava café e eu


fazia questão de devolver o dinheiro, então ela me chamava para cinema, e eu
enrolava. Eu não queria garota nenhuma, estava farto de dor de cabeça, chororô
demasiado. Então ela sorriu maior, abriu o botão da blusa, e subiu um pedacinho
da saia.

Nunca fui de ferro.

E sempre me convencia de que nunca seríamos mais que amigos com alguma
coisa. E ficamos nessa vida por dois anos, só amigos, até que as pressões
começaram e eu me vi obrigado a ceder. Me vi esperando que chegasse, indo
para a casa dela, comprando o absorvente que ela usa.

Então decidimos juntar as escovas e parecia normal. Ela era feliz com um
noivo que limpa banheiro e não reclama das coisas de casa, e eu era feliz com
ela. Funcionava entre nós e, descrente de que Manuela ou Gabriel voltassem, me
convenci que Carol é um tipo de amor que vale a pena.

A morte da mãe de Gabriel certamente foi uma tragédia que podia ter sido
evitada. Eu vi os sinais antes, percebi a relação dos pais dele, mas nunca fiz
nada.
Mas a morte da mãe dele trouxe minha Manu de volta. E Gabriel percebeu
que o pai dele não é Deus.

Então, quando a pizza finalmente chegou e ela saiu do banho, abri o jogo
com ela. Carol é querida demais para que eu mentisse para ela, ou agisse por
suas costas.

E, mesmo que não fosse eu, ela merecia encontrar o amor de sua vida.
◆◆◆

A única coisa que quis de casa foi minha coleção de videogame. Nunca pude
ter, então, quando começou a sobrar dinheiro, foi a primeira coisa que comprei.
Joguei todos os jogos que sempre ouvi falar e isso foi uma das únicas brigas de
Carol comigo. Rafael adulto fingindo-se moleque e varando as madrugadas com
GTA e Red Dead.

Com uma mochila de lona e uma caixa de laranjas, desci do Uber na casa da
minha mãe. Enfiei a chave na porta, encontrei o quintal lavado, mas ninguém em
casa. Se ela não estava em casa, estava no galpão. Deixei a caixa de laranja na
porta, a mochila, e ouvi barulho de descarga.

Ah, pensei, Gabriel agora mora lá. Respirei fundo e deixei as chaves em
cima do rack da televisão.

— Ah, é você. – Ele me evitava e não o culpo – Ouvi barulho de portão e


pensei que fosse…

— Provavelmente está no galpão. – Fui para a cozinha para evitá-lo e abri a


geladeira para pensar. Precisava comprar mais manteiga e limão. Anotei no
aplicativo de listas para não esquecer, e ouvi a pia abrindo.

— Tá tudo bem? – Gabriel enfiava um caneco cheio d’água no fogão.

— Tá.

— Tem uma mochila na porta.


— É minha.

— Eu sei, mas… por quê?

Tão óbvio que doía. Para um moleque quieto, isso é como pesadelo. E me
encontrar encaixado na multidão, com dois pares de mão ao meu redor, no meio
de um casal que fala pelos cotovelos, isso parecia demais para mim. Para um
moleque com medo de gente, isso parece o exato oposto do que ele precisa.

— Não se preocupa, eu durmo no sofá. – Não respondi. – Pode continuar no


meu quarto.

— Não! Não, quero dizer, hm – Ele pigarreou e eu fiz força para não rir –
Pode ficar no quarto, eu… vou começar a caçar outro canto. Não é justo você
dormir… – Gabriel nem queria saber onde iríamos dormir e se confundiu nas
frases que não faziam sentido – Você terminou com a sua noiva?

— Eu não podia mentir para ela sempre.

— Sobre ser bissexual ou sobre ter namorado em três? Ela terminou com
você por causa disso? Rafael… você quer conversar?

— Eu terminei.

— Vo… você?

Acredite quando eu falo que os anos com eles foram os melhores da minha
vida. Eu me sentia livre para falar, para ser ouvido, para parecer fraco e ser forte.
A questão que a gente nunca soube resolver foi a culpa. A gente odiava ser
olhado, julgado, odiávamos que falassem da gente e fingíamos ser imbatíveis
quando éramos três, mas nos escondíamos para beijar. Fazíamos carinho
embaixo da mesa. Nos enfiávamos num pulgueiro clandestino para ter uma noite
de sossego e acordávamos prontos para mentir por mais um dia.

Sabíamos do risco desde o começo, mas adolescente sempre acredita que


está no topo do mundo.

— O que você queria? – Fechei a geladeira e enfiei o celular no bolso. – Não


consigo parar de pensar nela.
— Nela. – Ele repetiu, ansioso para perguntar se eu não conseguia parar de
pensar nele também – Só… só nela?

— O Guto te ligou? – Troquei de assunto.

— O Guto, o Lipe, e uma gringa chamada Aziz.

— E o que você acha?

— Se você quiser ir… pode ir.

— Você quer ir? É um dia especial para ela.

— Não quero estragar tudo de novo.

Então não estrague.



Capítulo Quarenta e Oito
(Manuela)

Era um dia especial e o orçamento estava no limite. Uma cabeleireira cobrou


mil reais para fazer meu cabelo e eu quase morri. Mil reais?! Voei para o hotel de
Aziz com o vestido num plástico, a sandália na mochila e um batom que achei na
bolsa.

Tahir pediu que eu cozinhasse brigadeiro, então passei no mercado para


comprar os ingredientes. Já era quase cinco da tarde e todo o cronograma estava
atrasado porque me indispus com a diretora da Pinacoteca. Ela queria me cobrar
dez mil reais por um risco no assoalho que, obviamente, não era culpa minha. Eu
vivia de reformar coisas, percebia de longe quando um risco na madeira é coisa
antiga e aquele quase buraco estava cheio de pó.

Minha família trocava foto de terno, escolhiam gravatas e vestidos, igual no


último grande evento em casa, o casamento do Lipe e do Guto (é, eles casaram
juntos e eu ainda cheguei carregando florzinha). A mãe me perguntou quando é
que eu ia passar lá na casa dela e tive que fugir do celular porque ela queria se
trocar comigo, mas minha maquiadora oficial era a gravidinha árabe mais
reclamona do universo.

Seis horas eu já devia estar de volta na Pinacoteca, mas nem banho tinha
tomado. Mexia o brigadeiro feito de Nescau porque não tinha cacau em pó no
mercado que fui, e Tahir enfiava grampo no meu cabelo.

O hotel era um flat, com cozinha acoplada, a Dê que me indicou. Tudo de


última geração, mas incrivelmente apertado. As duas esposas do Sheik alugaram
aquele quarto só para que eu cozinhasse para elas, porque o hotel onde elas
realmente dormiam era do outro lado da cidade.

Ofereci a minha casa, mas as duas se recusaram a pisar no Jockey.


Aparentemente o ciúmes por Bianca grita tão alto, que elas não podem nem ver,
nem ouvir falar da mulher que está, quase que literalmente, cagando para o
Sheik.

— Habiba, esse homem, se não tivesse filhos, deixaria a herança para seus
cavalos! – Tahir falava com um grampo preso na boca – E essa mulher faria o
mesmo. Se eu quiser continuar casada, preciso saber o meu limite.

— Tahir, deixa de ser tonta!

— Não é tontice, meu amor, é sapiência. Não vivo sem o Arabi, mas ele vive
sem mim perfeitamente.

Tudo bem, ele é um dos homens mais ricos do mundo, mas se não amasse
suas mulheres, não tinha reconstruído o hospital na Síria, nem dado presentes tão
grandiosos como vejo que ele tem dado ao longo de todos estes anos. Arabi tem
um jeito peculiar de amar as duas, e ama ainda mais o modo como elas se dão
bem, mas ele ama, eu sei disso. Todo mundo sabe.

Esse homem vive cercado de beldade. Ele é rico! Beldade e dinheiro andam
juntas, e, mesmo assim, se ele não está com seus cavalos, está com elas. Ou
comigo. Ou fazendo algum favor impossível por seus amigos.

Tipo, como vindo ao Brasil, às pressas, porque a menininha que construiu


seu complexo hípico agora está debutando para o mercado brasileiro e precisa de
seu aval.

— Habiba, esse vestido é maravilhoso.

— Minha tia quem fez.

— Não sabia que seus pais tinham irmãos…

— Não tem. É tia de coração.

Comprei esse vestido ainda na pré-venda da Tia e ele é escandaloso. Preto,


para variar só um pouquinho, abertíssimo atrás, e abertíssimo na frente. Peitinho
pequeno pelo menos não faz feio quando o decote é gigantesco e o decote do
vestido ia até a boca do estômago.
A saia era saia de princesa e a tia colou pedrinhas pretas de forma que você
só o vê brilhar quando a luz bate. Parecia feito pensando em mim, eu juro.
Pensei em cobrir minhas tatuagens, mas não o fiz. De vez em quando, se o
cliente é muito ortodoxo e velho, eu as cubro com uma boa camada de base,
mas, ali, eu só não quis.

— Habiba, vista isso.

Um colar que eu tinha medo que fosse de diamantes. Era tão lindo que doía.

— E isso! – Pulseiras. Deus queira que não seja de diamantes também.

— Devolvo quando a gente voltar, tá?

Uma olhou para a outra, trocando segredos, mas não me falaram nada.

— O que foi? O que eu perdi? Por que tá uma olhando para a outra com cara
de quem fez coisa errada?

— A gente… – Aziz é mais séria, não serve para mentir. – A gente não fez
nada!

— Ai, Habiba, a gente só quer que você vá bem linda!

Se eu tivesse tempo para isso, teria investigado melhor, mas o fato é que eu
só queria saber de enfiar brigadeiro na boca de uma, terminar meu penteado, e ir
para a Pinacoteca o quanto antes.

— Você devia ter trazido a sua mãe para a gente conhecer… – Tahir fazia
biquinho como se o relógio que corria contra nós fosse só um pernilongo
insistente. Vestida, ela passava pó na cara como se tivesse todo o tempo do
mundo.

— Amanhã, – prometi – amanhã apresento vocês. Ela vai estar na festa hoje
e é claro que vou apresentar vocês para todo mundo, mas amanhã, depois da
festa, eu juro que apresento de um jeito decente, tá legal?

De novo o olharzinho trocado.

— Mas o que está acontecendo com vocês duas?!


— Habiba, amanhã você vai acordar duas da tarde e não vai querer saber da
gente.

— Amanhã eu vou acordar super cedo morrendo de medo do que vão falar
da exposição de hoje.

— Você está nervosa – Aziz disse o óbvio – Tahir, você não devia ter pedido
brigadeiro agora.

— É que é sempre tão rapidinho…

É rapidinho quando você não tem quinhentas coisas acontecendo ao mesmo


tempo!

Sem reclamar, continuei mexendo o doce até ficar pronto e, quando


finalmente enfiei a travessa no frigobar, corri para me olhar no espelho e
terminar com a arrumação.
◆◆◆

Saltamos na frente da Pinacoteca e o Sheik nos esperava rodeado de


seguranças, no jardim da frente. Tudo como eu queria, as luzes instaladas do
lado de fora realçavam as plantas colocadas especialmente para a minha noite.

Policiais, porque o Sheik estava ali, e porque o governador do Estado estará,


montavam guarda com seus cavalos do outro lado da rua. Por minha causa, a rua
da Pinacoteca foi fechada e as entradas foram divididas entre entrada de serviço,
pela lateral, e entrada social, na frente.

Eu estava tão nervosa, que só me faltava chorar. Nunca imaginei fechar uma
rua na vida, ainda mais por causa de exposição. Me vendo congelada na frente
do carro, sem conseguir me mover, Aziz me deu um beijo no rosto e esfregou
minhas mãos geladas.

— Vamos, Habiba, essa noite é sua.

Sabe quando você vai fazendo as coisas que sabe que tem que fazer, e vai
construindo camada em cima de camada, uma coisa vai levando a outra, e não
para para perceber a proporção que tomou? Aquela era Manuela Ferreira de
frente para a Pinacoteca do Estado e seu cartão de visita de cento e cinquenta mil
reais. Cento e cinquenta mil reais para a galera beber champanhe, falar de mim,
e me contratar.

Quem quer rir faz rir, verdade, mas não esperava rir tão alto. As Botelho se
ofereceram para co-patrocinar minha exposição, mas neguei porque sei que elas
não fazem caridade. Tudo para elas tem um preço e, se aceitasse qualquer mimo
que viesse delas, venderia minha alma por mais dois anos.

— Arabi, – Assim que o Sheik nos cumprimentou, engoli o choro e mudei de


assunto – você viu alguém da minha família?

— Estão todos na cozinha. Sabem que você está tremendo de nervosa e estão
todos lá esperando por você.

Circundei a entrada social para ir direto para a entrada de serviço. Prometi


que não olharia a galeria até o último segundo possível, ou nunca terminaria de
arrumá-la, e evitei ir pela entrada principal por isso. Pelo acesso de serviço
algum garçom olhou para mim e endireitou a coluna, pigarreando. Normalmente
eu teria dito alguma piada sem pé nem cabeça porque eu não sou melhor que ele
em nada, mas estava tão nervosa, que só segui, acompanhada do Sheik e de suas
esposas, direto para onde me importava.

Todos lá. Cada um dos Ferreira ali, sentados, fazendo cera, bebendo cerveja
barata só para fazer piada com o champanhe caro que os garçons ofereciam do
lado de fora. O Lipe estendeu um sorrisão, segurando seu filhinho menor,
Arthur, finalmente seu moleque de olho azul veio para o mundo, e se levantou
para me cumprimentar. O Guto quase chorava. Engraçado o jeito como ele tem
amolecido, no sentido bom da palavra, porque agora se sente completo com sua
família.

O pai me cumprimentou antes que eu pudesse cumprimentar a mãe, e


arrumou a alça do meu vestido. Também quase chorava. Me deu um beijo
emocionado, sem me falar nada, e sorria tão grande, que parecia que eu era a
noiva.

— Pequena, – a mãe disse assim que o pai me soltou – tô morrendo de


orgulho de você..
Por que ela foi abrir o bocão? O pai sempre fala, eu nunca levo a sério. A
mãe só fala quando é para causar. Ali, na frente de todo mundo, ela colocou uma
coroa na minha cabeça que ninguém nunca vai tirar.

— Puta merda… – Esperei a vida inteira para ouvir isso, e ela me fala no
único momento do mundo em que não posso chorar?

— Lembro da minha gatinha de seis anos com uma super-máquina de bico


ejetor quente, motor de impressora, carcaça do maior sucateiro dessa São Paulo e
um iPad. Eu lembro ela desenhando uma casinha no rascunho, os olhinhos
brilhando com o lápis de cor rosa na mão, e a sentença: Mamãe, será que dá
para fazer uma casa, em vez de tijolo, só com plástico? Cê lembra o que eu
respondi na hora?

— Que no Brasil faz calor demais para ter casa de plástico. E que essa
impressora era para fazer brinquedo.

— E qual foi a primeira coisa que você fez?

— Uma casinha para as minhas bonecas.

— Lembra quantos finais de semana até a gente conseguir grudar todos os


cômodos? Lembra quanto tempo a gente demorou para desenhar um telhado?

— Eu não lembro tudo, mãe.

— Eu sei, amor, você era muito pequena.

— … mas eu lembro que a gente colocou o pai para lixar e ele lixava os
cômodos até no trabalho.

— Pois é, – o pai reclamou – pra sua mãe fica os trabalhos legais, para mim
só sobra trabalho de corno.

— Você que não quis aprender a mexer na 3D!

— Eu só sirvo pra mexer com gente. – Ele rebateu.

— Que seja: agora seu pai estragou meu momento. – A mãe sorriu, me
segurando pelas duas mãos – O que eu quero te dizer, amor, é que você tem que
se lembrar que é amada. Que é sábia, que é querida. Que nada nesse mundo é
capaz de te derrubar porque suas raízes são fortes. É a sua aventura, é a sua
escolha, nós nunca nos meteríamos nas suas escolhas e, por mais que
quiséssemos que fizesse outras, a vida é sua, só você comanda ela. O seu
quartinho de cientista maluca vai sempre ser o seu quartinho, seu irmão maluco e
seu irmão superprotetor estão aqui, sua mãe rabugenta e seu pai permissivo estão
aqui, e as agregadas, a Vaca Megera, e a Cowboy Desbocada, têm tanto dinheiro
e conhecem tanta gente, que se alguém pisa torto com você, pode ter certeza que
vai ter um assassino de aluguel para dar um jeito nessa pessoa no dia seguinte.

— Eu não afirmo nem nego essa constatação – Respondeu a Vaca Megera.

— E você… – A mãe tinha os olhos molhados e eu sabia que era de amor – E


você veio para destruir tudo, igual seu pai fala, só tem que saber que isso não é
ruim. Eu sempre sonhei uma filha engenheira seguindo meus passos, nunca se
casando, mais virada no Jiraya que eu. E Deus (ou Darwin) me deu um doce de
menina que sempre fala com o coração. Um doce de menina que sonha alto e
não vê o tamanho das próprias conquistas nem quando está vestida para matar e
com uma sala cheia de gente rica esperando por ela. – Ela puxou a manga da
blusa para cima e me mostrou uma pequena tatuagem, no braço, o mesmo
desenho que o Lipe fez, triângulo dentro de triângulos, que ele só me mostrou no
portão de embarque. O pai puxou a manga da camisa para cima também.
Triângulo de Pascal. – De todo jeito, cê tem que saber que é amada, é querida, e
que seu pai e eu morremos de orgulho de você.

— Sinto muito que seus meninos não estejam aqui para ver tudo isso,
princesa – Meu pai disse, erguendo a minha cabeça, limpando os meus olhos e
me beijando a ponta do nariz – Eu sei que você queria eles aqui com você.

Capítulo Quarenta e Nove
(Gabriel)

Ela era um trovão. Não, espera, isso é pouco. Era um pesadelo. Eu estava tão
ansioso para falar com ela, para ouvi-la, para dizer coisas para ela, que não ouvi
uma palavra de seu discurso. Manuela agora fala em público, tem desenvoltura
para isso, e está linda. Ela olhava para nós enquanto discursava, o olho sempre
pregado em nós, e eu me lembrei de uma menina que nunca deu para trás numa
briga.

Nasceu para aquele momento. Nasceu para estar naquele palco, para ter
apoio de sheik, para ser infinita e além. Os rostos na plateia cochichavam entre
si, admirados com o trabalho dela.

Ah, e o trabalho! O antes e depois! Ela entrava em zona de guerra para


restaurar obras perdidas. Colocou um hospital em pé depois de bombardeio.
Restaurou casas de celebridades depois de anos de desgaste, replantou jardins e
repintou murais! Manuela entrou na Capela Sistina! Manuela conversou com o
Clero, e não o clero da cidadezinha escondida no meio da estrada, mas O Clero,
em Roma! Manuela entrou em Museus e segurou o sorriso de Mona Lisa nas
próprias mãos.

Puta merda, que mulher. Puta merda, puta merda, puta merda.

E ela largou tudo isso no segundo em que ficou sabendo da morte da minha
mãe. Puta merda. Ela falava, com lágrima nos olhos, e todos aqueles painéis com
fotos exuberantes da minha Manuela restaurando edifícios, apartamentos,
esculturas, e tudo o mais que desse para colocar a mão eram a prova de seu
discurso.

— Então… – Ela sorriu olhando para nós, no fundo da plateia – Obrigada


por estarem aqui e comemorarem tudo isso comigo.
Tão linda. Meu Deus, a mulher mais linda do mundo. Finalmente ela se
transformava na moça do catálogo da Resist. Chorona, briguenta, escandalosa.
Feita de coração da cabeça aos pés.

Olhei para Rafael só para entender se ele a percebia do mesmo jeito que eu, e
sempre vou me emocionar de vê-lo chorando. Rafael não chora, mas sempre se
emociona quando o tema é a nossa menina. Terminou com a noiva no segundo
em que ela esteve de volta. Voltou para a casa da mãe com os videogames e uma
sacola de roupas.

Meu Deus do Céu!

Caiu em cima de mim como um tijolo. Ficou difícil de respirar e de ver.


Rafael quase chorava de orgulho e eu também, me vesti pensando no que dizer
para ele, arrumei o cabelo e me barbeei pensando no que dizer aos dois, no como
chegar, como pedir desculpas, como voltar a ser trio e percebia, tarde demais,
que, não.

Não dá para ser trio de novo. Mais do que moral e ética, é preciso ter
vergonha na cara.

Eu arruinei tudo uma vez. Meu pai me corrigiu e eu nos separei. Conheço
Manuela e Rafael o suficiente para saber que eles teriam feito tudo por mim,
teriam me abrigado, me incentivado a terminar o vestibular, me induzido a
perseguir meus sonhos, mas eu fui fraco demais, acomodado demais, e virei as
costas para os dois. Segui pelo caminho do meu pai. E dei as costas para a minha
mãe, também.

Porra, segurei o choro, eu faço tudo errado. Fui dormir na tia na noite mais
vulnerável da vida da minha mãe. A deixei sedada num quarto de hotel para
chorar na casa da minha ex-sogra e continuo lá. Há meses!

E Manuela estava ali recebendo cumprimentos do governador, mesmo depois


de tudo o que a fiz passar. Eu não posso fazer isso com ela! Onde é que eu estava
na cabeça? Quem falou que eu mereço uma mulher dessa? Rafael merece, olha
para ele, formado, melhor aluno da classe, termina com a noiva só de pensar em
ficar com outra mulher, volta para a casa da mãe só com as roupas e deixa tudo
para a ex. E eu… E eu!

— Eu preciso ir. – Falei, segurando o choro, sabendo que eles vão progredir
bem mais se não tiverem uma pedra no sapato.

— O quê? – Rafael me segurou pelo cotovelo – Não!

— Eu preciso. – Engoli o choro e sorri entregando os pontos – Cuida dela,


Rafa, eu não posso estragar a vida de vocês dois.

— Estragar. – Repetiu pausadamente sem entender uma vírgula do que eu


disse.

— Eu não posso! Quero dizer, olha para ela, olha para você! Eu não posso
levar mais problemas para vocês dois, eu não posso ser um problema. Quebrei
vocês uma vez, não, se for contar a época da escola, quebrei duas!

— Você não quebrou ninguém, Gabi.

— Eu roubei sua menina no primeiro beijo, depois…

— Depois o quê?

— Depois entrei na casa dela como se vocês dois não fossem namorados…

— E depois?

— Depois invadi a relação de vocês…

— Gabriel, – Manuela estava bem atrás de nós e nunca esteve tão linda – se
você veio até aqui para terminar comigo, de novo, melhor que não tivesse vindo.

Nem se nascesse de novo conseguiria dizer uma palavra. A mulher mais


linda que já vi. Ela sorria achando graça no meu desespero. Sorria olhando de
mim para Rafael esperando que eu respondesse, mas eu só… não queria estragar
tudo.

— Parabéns, – Rafael sorriu gigante e eu podia ver o brilho em seus olhos –


sua exposição está linda.

— Ah, vocês chegaram faz tempo?

— Não, nós… chegamos a tempo de ver você discursar.


— Então venham. – Ela sorriu.

E depois disse a palavra que mudou tudo: “Eu conduzo”.

Segurando nossa mão pela multidão de gente importante, Manuela passeava


pelos painéis de vidro. As pessoas ao lado paravam para escutá-la falar sobre seu
trabalho e nós não desgrudamos dela por um segundo sequer. Ela era a estrela,
todos estavam lá por ela. Conheci mais gente naquela galeria do que conheci
durante o primeiro ano inteiro de mestrado, e fiquei impressionado com a
quantidade de gente, lugares e países por onde ela passou.

Ela sempre foi a garota esquisitinha com uma história idiota para contar, e
essa moça, a quem nunca deixei de amar, virou uma mulher que não conhece a
palavra limite. Ela conhecia todos os lugares, as pessoas, os costumes.
Conversava com um senhor muito mais velho e suas duas esposas novas os
chamando por Habib, que se não falha a memória novelesca, quer dizer querido.

Depois é que descobri que quem ela chamava por Habib era um governante
árabe. E isso explicava toda a polícia lá fora. O governador do Estado, a quem só
vi uma vez e numa cerimônia solene onde todo mundo queria impressioná-lo,
vivia ao redor dela. A convidou para um jantar em sua casa, uma reunião em seu
gabinete, e queria que ela desse os contatos do Sheik.

O assessor a arrastava entre as pessoas. Fazia conexões. Um arquiteto


impressionado com sua pouca idade e número de obras, um reitor de alguma
faculdade, um jornalista de alguma revista importante do ramo que perguntou se
podia bater algumas fotos suas.

Todo mundo estava lá por ela, inclusive nós, e quando ela era arrastada por
alguém a algum lugar, ela olhava para trás, sorrindo, querendo saber se nós
também iríamos com ela.

— Rapaz, – O pai dela nos atravessou enquanto ela cruzava o salão atrás de
alguma outra celebridade podre de milionária – eu vou ensinar vocês dois a
serem maridos.

— Que isso, seu Rodrigo. – Quando o pai da moça te atravessa, parece que é
presidente da república que está te dando bronca.

— Cês estão vendo a moça para lá e para cá a noite inteira, como que não
ofereceram nem água? Vamos tirar a cabeça de dentro da bunda e se mexer, pô.

— A gente não é… – Rafael se atreveu a falar.

— Não é o quê? Marido? – Ele deu uma risadona e saiu resmungando – Meu
Deus, como eu odeio adolescente…

Rafael foi em busca de água, segurando a risada, e eu fiquei parado no


mesmo canto, olhando Manuela arrumar a gola de alguém que nunca vi na vida,
até que uma moça de véu na cabeça, linda de doer os olhos, parou na minha
frente.

— Você fala inglês?

— Of course I do. – Confirmei e entendi que, pelas roupas e o jeito como a


outra moça de véu que a acompanhava olhava, ela só podia ser uma das esposas
do Sheik.

— Nós nos falamos por telefone antes. Meu nome é Aziz.

— Aziz, claro! – Morto de vergonha e não gostando nem um pouco do jeito


como Manuela conversava com o sujeito que não conheço, prossegui pela
conversa sem um pingo de vontade nela – Como você está, tudo bem? Um
prazer finalmente te conhecer.

— Um prazer, também. – E foi logo entrando nos assuntos difíceis – Eu só


queria te dar…

Puxou uma caixinha aveludada de dentro dos véus e enfiou no meu bolso
antes que qualquer pessoa percebesse. Sorria. Não me disse mais nada, só me
deu um beijo no rosto, e saiu.

A caixinha no meu terno pesava e marcava. Não tinha como esconder. Do


jeito secreto que ela me deu, eu tinha certeza que só podia ser um anel muito
caro. Olhei para cima, caçando placas que dissessem “banheiro” e me escondi
assim que achei um.

Dentro de uma cabine, abri a caixinha de veludo preta. A versão adulta da


nossa aliança de criança. O anel de Manuela era de ouro com uma pedra preta
em cima, uma pedra grande, eu não sei qual pedra era, só sei que brilhava muito.
As outras duas alianças eram de ouro com pequenas pedras pretas cravadas ao
redor de todo o anel. Do lado de dentro, o mesmo triângulo da nossa aliança de
criança. Sem nenhuma palavra, nem nada. Só o nosso símbolo.

Limpando as lágrimas e morto de saudade da aliança de criança que meu pai


me obrigou a jogar fora, sorri para o gesto da esposa do Sheik, escondi a
caixinha no bolso o melhor que pude, e saí da cabine com um sorriso.

Só não queria estragar tudo outra vez. Nunca foi falta de amor. Ela olha para
nós e meu coração congela. Ela sorri e eu sei que ela está doida para que
fôssemos três de novo. Rafael fala rude, mas não pensou duas vezes antes de
largar a noiva.

Depois de todo esse tempo… me olhei no espelho só para tomar vergonha na


cara. Como pedir para ela voltar para mim depois de tudo isso? Não tenho um
trabalho, nem casa, nem família. Está tudo uma bagunça e não vou fingir que
essas coisas não me afetam, porque afetam. Intimidam. Manuela foi expor seu
trabalho na Pinacoteca e tem jornal falando dela, enquanto eu, se exponho meu
trabalho, é pagando do meu bolso para fazer viagens longas, de ônibus, e para
acadêmicos tão fodidos de grana quanto eu.

— Você viu que o vestido dela é da minha mãe? – Rafael estava encostado
no batente da porta de entrada do banheiro.

— Não, Rafa, perdi esse detalhe. – Fingi que não estava surpreso não ter
percebido que ele estava no banheiro comigo.

— Pois é. – E se aproximou, devagar, até encostar o peito no meu. – Você


falou sério sobre ir embora?

— Eu acho que só estou…

— O quê?

Nervoso para caralho. Rafael me olhava como se já me comesse e como se


não tivesse parado de me comer nunca. Puta merda, eu amo essa cara que ele
faz. Ele sorri, mas não tá sorrindo demais. Tá só sorrindo o suficiente para dizer
o que quer, e como quer.

— Então… – Falava para estilhaçar e todo meu sangue saída de circulação –


há alguma chance da gente sair daqui juntos?

— Eu, você, e Manuela? – Arrisquei.

— Tem essa chance, Gabriel?

Sorri de volta, nervoso igual um filho da puta, e não consegui responder.

— Vem, – ele segurou a minha mão e me arrancou do banheiro – vamos para


casa.
Capítulo Cinquenta
(Manuela)

Não os via em lugar nenhum. Bento me apresentou ao pai, dono de boa parte
dos IPTUs da cidade, e à mãe. Algumas pessoas já estavam indo embora e todas
sabiam meu nome. Noite de sucesso. As fotos penduradas em painéis de vidro
impressionavam, o antes e depois caiu como uma luva. O Reitor da faculdade
particular para quem mandei um e-mail confessou que planejava demolir o
prédio em vez de reformá-lo porque foi o que alguns consultores o aconselharam
a fazer, mas, visto que sou capaz de recuperar hospital depois de bombardeio, ele
acreditava na possibilidade de manter o edifício.

— Vamos conversar semana que vem, levo pronto um protótipo em 3D e o


senhor me diz o que acha.

Estava com o celular cheio de anotações de protótipos para fazer para as


próximas semanas. Minha mãe, que viu ao vivo grande parte das minhas
construções, passeava pelos painéis e não acreditava que a mocinha dela tinha
mexido na capela Sistina.

Foi um dos primeiros lugares para onde fui depois do Louvre, e paguei para
restaurar. Não pense que fui paga, porque não fui. Eu paguei. Um mentor do
Louvre usava os alunos (que também pagaram para estar lá) de mão-de-obra
enquanto cobrava uma fortuna das instituições, e eu paguei para ele me aceitar
pôr a mão nas obras de Michelangelo.

Todos os painéis do começo da carreira foram obras que restaurei pagando.


Até meu internato no Louvre foi depois de muito esforço e muito chororô. Havia
apenas uma vaga de estágio disponível naquele ano, e não fui selecionada. Um
cara qualquer foi no meu lugar porque era Francês, e eu, Brasileira, fiquei sem a
vaga.
Então comecei a me apresentar no Louvre todo dia como se tivesse sido
selecionada, uns dias conseguia entrar, outros, não. Fiz isso por mais de três
meses até que o mentor, que me deu boa parte dos trabalhos, percebeu a minha
insistência e conversou comigo em particular, me oferecendo uma “segunda”
vaga (que nunca existiu), mas que ele poderia dar um jeito se eu tivesse algumas
dezenas de milhares de euros.

O começo foi assim. Pagando para estar em lugares que ninguém sabia que
eu merecia estar. As Botelho me ensinaram mais do que coordenar uma equipe
grande, elas me ensinaram o valor do dinheiro e o que ele é capaz de fazer por
você. Eu fazia duas refeições por dia, apenas, e bebia cerveja porque às vezes era
mais barata que água, só para estar nos lugares certos. Trabalhei de graça,
pagando, e contrabandeei mais pincéis e tintas que qualquer outro aluno.

Aqueles painéis que as pessoas viam como bonitos, aos meus olhos,
representavam meu tudo. Cada um representava um esforço, uma abnegação, e
um privilégio. Aprender a escalar e fazer parkour para restaurar topos de prédio
foi parte do processo. Aprender história da arte e aprender a copiar obras
renascentistas foi por necessidade. Vendi réplicas pintadas por mim em praças,
quando a grana estava muito curta, principalmente durante o internato no
Louvre, para pagar o aluguel. E já servi de modelo vivo para estudantes de arte
mais vezes do que consigo contar.

E agora, de volta ao meu país, o esforço e o trabalho compensavam. Gastei


muito dinheiro por este cartão de visitas molhado de champanhe, mas no mês
que vem, quando fechar contratos, sei que vai compensar.

— Manuela, – O assessor se provava mais útil do que eu esperava – esta é a


Sabrina, coordenadora do Instituto Tomie Ohtake e ela quer saber se você não
tem interesse em dar um workshop lá…

Para me estabelecer no mercado, não neguei convite algum. E, no fim da


noite, cansada de ficar em pé, dei um dinheiro extra para os garçons e todo
mundo que trabalhou na exposição, para que eles limpassem tudo e deixassem o
lugar com a mesma aparência de quando entramos.

— Isso aqui, – Andressa, a esposa do meu irmão, enfiou um cartão preto na


minha mão – é só um agrado da sua cunhada favorita.

— Você tá competindo com a Bia, Dê, a Bia é que é minha cunhada favorita.
— Ora, não seja maldosa. – Me deu um beijo no rosto e eu não sei porque
ainda tremo só pelo encostar nessa mulher. Vai ver é o poder que ela tem: arrepia
até os cabelinhos do braço – Você sabe que vou ser sempre a sua cunhada
favorita.

— . – Dei uma olhada melhor no cartão de crédito preto e sem limites – Isso
é um agrado, ou uma segunda tentativa de comprar minha alma?

— Bobinha, – sorriu e deu um beijo na minha mão antes de sair – a sua alma
já tenho.

Falava do Lipe. Voltou para perto do marido e dos filhos e me deixou com o
cartão de crédito ilimitado na mão. Vi Rafael e Gabriel saírem vermelhos do
banheiro e cogitei o melhor cenário. Rafael, um passo atrás de Gabriel, percorreu
os olhos pelo salão que esvaziava e parou os olhos em mim. Anos passam, tudo
passa (até as uvas!) e ele continua falando mais calado do que com a boca aberta.

Um dia esse olhar ainda acaba com a minha vida.

Gabriel, que seguia na frente, me viu e já seguiu pela minha rota, sorrindo,
vermelho e dando na cara sobre o que estava fazendo no banheiro masculino.

— Vocês nem me esperaram. – Reclamei.

— Baixinha, – Gabriel sorriu sem culpa por falar meu apelido – acredite: não
fizemos nada.

— Não?

— Manuela, – Rafael tinha mais coragem – você quer sair daqui e ir para
algum lugar?

— Bom… – mostrei o cartão preto que não tinha onde guardar – minha
cunhada acabou de me dar dinheiro ilimitado para eu fazer o que eu quiser,
então, para onde vocês querem ir?

— Você está com fome? – Gabriel me conhecia o bastante para saber que
canapé e pequenos petiscos não são janta.

— Pior que estou.


— A gente pode comer em algum canto, depois…

— Ah, eu sei para onde vamos. – Dei a mão para os dois e enfiei o cartão no
decote.

Só tinha um lugar bom o bastante para ir, e era para casa. Ainda não era a
nossa casa, a minha casa era emprestada, mas um dia teríamos a nossa.

Não me importei em dizer tchau para a minha família porque eu os veria


depois, todos eles queriam que eu fizesse o que estava fazendo e não ficariam
bravos pela leve escapadinha da galeria. Encontrei o prefeito da cidade com sua
esposa na porta, esperando seu motorista, e ele veio ao meu encontro.

— A festa estava linda, Manuela.

— Ah, Roger, – chamei pelo nome como se tivéssemos intimidade suficiente


para isso – fico feliz que tenha gostado.

— Vou colocar o secretário de Infraestrutura em contato com você e depois


conversamos melhor, pode ser?

— Eu posso ligar para ele, não tem incômodo algum.

— Você faria isso? Ótimo, então fico esperando o contato do secretário. –


Sorriu olhando para nós três e depois percebeu as mãos dadas – E então? Qual
dos dois é o bastardo sortudo?

Era o prefeito da cidade. Não era o coordenador da escola, nem meu pai,
nem minha mãe. Era o prefeito da cidade. Se eu quisesse erguer alguma coisa na
cidade dele, tinha que ter cuidado com a resposta. Senti Gabriel apertar minha
mão com mais firmeza e Rafael continuava um muro.

— Bem… – Sorri com mais desenvoltura para perguntas difíceis que a


Manuela de quinze anos – Acho que a bastarda sortuda sou eu.

Com um adeus solene, o prefeito viu que beijei a mão de um, depois de
outro, e nós três seguimos a pé até a estação da Luz.

— De todos os jeitos que achei que essa noite terminaria, – Gabriel puxou o
cartão do metrô da carteira e o passou na catraca para que eu entrasse – nunca
achei que seria no metrô.

— Ai, Gabi, você queria ficar esperando um Uber, ali na frente, e com o
prefeito?

— Não tô reclamando. – Passou para Rafael também, depois entrou no metrô


conosco – É só engraçado.

— Se o prefeito tivesse bom senso, ele também teria pego o metrô.

Provavelmente eu carregava no corpo mais valor do que um apartamento


popular. Só a pulseira emprestada das esposas do Sheik já custavam mais,
certeza, e ainda tinha o colar. Andando até o embarque e àquela hora, todo
mundo nos olhava sem entender. Vi uma moça tirar uma foto, mas não liguei.

Na plataforma, esperando o metrô, Rafael finalmente me segurou pela


cintura, me tomando num abraço, os olhos felizes de desejo e o sorriso que
nunca vai me enganar.

— Acho melhor você ir para casa. – Falei. Não posso ser conivente com a
traição de Rafael à noiva.

— Quer mesmo que eu vá para casa?

— Você tem uma noiva, então, acho que é melhor.

— Não tenho.

— Não tem… ?

— Você me mandou aquela mensagem de desculpa, cheia de ciúmes, e não


consegui mais ser noivo de ninguém. Eu nunca quis te abandonar, amor. Me
perdoa te deixar sozinha. É só que eu…

Maldito metrô que chegou nessa hora.

— A gente pega o próximo – Esperei por anos que Rafael me abraçasse, que
nós nos entendêssemos. Podíamos esperar mais um metrô passar.

— Não quer entrar nesse?


— Termina de dizer.

— … É só que eu não queria ficar sem o Gabi de novo. Metade de um


coração quebrado ainda é um coração quebrado. Quando ele me mandou embora
do hospital…

— Eu sei, Rafael, eu vi. Não te culpo por isso.

— Me perdoa, Rafa – Gabriel se aproximou de nós e me abraçou por trás.


Deu um beijo na minha bochecha e eu chorei sem querer – Devia ter ouvido meu
coração, ter aceitado meus instintos, …

— Não te culpo por acreditar no seu pai.

— É, mas eu me culpo.

— Sei disso, ainda mais com todo o desdobramento, com a situação da sua
mãe… Tá tudo bem. – Rafael colocou uma mão no rosto do Gabi e sorriu – Eu
queria que as coisas fossem diferentes, mas, não tô aqui para distribuir culpas e
apontar dedos. Eu olho para vocês… – Com os olhos molhados, me deu um
beijo na testa – E ainda sinto a mesma coisa que sentia quando tinha quinze
anos.

— Parece que o tempo não passou, não é?

— Não, pelo contrário, passou horrores. – Respondi.

Estávamos em público. No meio do metrô de São Paulo. Todo mundo olhava


para a gente.

Então, sem querer esperar mais um metrô chegar para acabar com o nosso
momento, encostei a boca em Rafael procurando um beijinho de reconciliação,
mas parece que passei tempo demais sem beijá-lo, não me lembrava do como ele
era. Rafael não sabe dar beijinho. Dava para ouvir o suspiro de Rafael e sentir a
vontade dele contra a minha cintura. Criminalmente indecente, Gabriel encostou
os lábios no meu pescoço, ali, na plataforma de metrô, e eu não sabia se deixava
que as coisas tomassem as proporções que quisessem, ou se colocava um limite.

O próximo metrô chegou e nós o pegamos. Acarinhei o rosto do meu Rafa,


com prazer por vê-lo vermelho, cheio de desejo, e me virei para o Gabi.
— Te amo, Baixinha. Me desculpe por tudo, por favor, não briga mais…

E o beijei com a mesma vontade que beijei o outro. Finalmente as coisas se


encaixavam. Tudo o que estava errado conosco, desde uma Manuela menina que
esconde a vida dos pais, até uma Manuela que se esconde do público, tudo o que
estava errado se acertava. Gabriel sorria entre o beijo, me abraçando pela cintura,
e encostado na parede do metrô. Mordia meu lábio e me puxava para mais perto
como se estivéssemos no quarto. Subiu a mão da minha cintura para meus
ombros, mão pesada, maliciosa, delícia.

— Também te amo, Meu Lindo. Não te culpo por confiar no seu pai, tá bom?
E não pense que você estragou tudo.

Cheio de beijinhos, Gabriel me abraçou com carinho.



Capítulo Cinquenta e Um

Entramos pelo Jockey à pé e tirei as sandálias. Rafael se ofereceu para segurá-


las e as entreguei enquanto caminhávamos para o condomínio. Empurrei o cartão
preto ilimitado da minha cunhada por baixo de sua porta e abri a minha casa.

— Está emprestada enquanto eu ficar no Brasil. – E fui me desculpando pela


bagunça.

— Não, – Rafael ria – é exatamente a sua casa.

— A gente vai pedir comida? – Gabriel entrou e fechou a porta atrás de si,
olhando a cozinha intocada – Não tá com cara de que tem comida aqui.

Tinha bolacha e café, que foi a última coisa que comi. Abri a geladeira em
busca de qualquer coisa, e achei vários potes de comida preparada, pronta,
comida boa, coisa da minha cunhada favorita. Tinha um bilhetinho com a
letrinha cursiva e linda da Dê escrito “Cortesia Da sua cunhada favorita” e ri
sozinha.

— O que foi? – Rafael se esticou para a cozinha para poder ler.

— O que tem de tão engraçado nessa geladeira?

Tutu de feijão, batata assada, e costela na pressão. Eu amo uma cunhada.


Minha barriga deu um nó e coloquei tudo em cima da pia. Fui fazendo meu
prato, agradecendo por ter uma família como a minha, e o enfiei no microondas.

— A gente pode falar sobre o elefante branco na sala? – Gabriel foi o último
a sentar à mesa para comer e trouxe, além do prato, uma garrafa fechada de
coca-cola.

— Qual deles? – Mastiguei e engoli antes de perguntar.


— Você segurou a Mona Lisa na mão?!?!

— Ah, esse elefante branco. – Rafael pensou o mesmo que eu.

— Se você pensar que tive uma cachorra chamada Monaliza, praticamente


nasci com ela na mão.

— Manuela, não tô falando da Mona.

— É uma história comprida.

— Maravilha, não tenho para onde ir depois dessa janta. E o metrô já fechou.

Entre comida pesada e forte, coca-cola e jantar nada chique com roupa de
gala, contei para eles sobre o que eles quiseram saber durante a minha vida fora.
Contei sobre a alma que vendi para as minhas cunhadas, sobre como conheci o
Sheik, como extorqui Andressa para que me pagasse mais, sobre Aziz, Tahir, e
todo o resto. Gabriel parecia maravilhado com o mundo de coisa que conheço, e
Rafael parecia orgulhoso.

— Eu não esperava menos de você, Amor.

— E você? Como que foi parar no Banco, Rafael?

— Já que meu sonho não era possível porque envolvia a minha ex-sogra, fui
fazer dinheiro. Estágio em construtora até paga bem, mas nada como o banco.

— O banco paga tão bem assim?

— Não, paga até menos, mas aprendi muito sobre investimento. Eles não
limitam seu conhecimento. Se você quer fazer um curso na área, eles
patrocinam. Então fiz logo vários e apliquei no negócio da minha mãe.

— Tia Lúcia tá casando, eu ouvi direito ou tô doida?

— Casando, cara. – Esfregou a cara com uma mão e não fiquei surpresa de
saber que ele não gostava nada da novidade – Ela é adulta, faz o que quiser da
vida, mas que estou com medo, estou.

— Fico feliz que tenha coragem de recomeçar.


— É, – ele cortou a batata no prato e entendi que não falava sobre a mãe – eu
também.

Acendi o Narguilé que ganhei de presente do Sheik há anos. Era uma boa
coisa a fazer depois da janta, e não dava para transar com a barriga tão cheia.
Sentados no chão da sala, alguma música que Gabriel colocou para tocar,
arrumei as brasas em cima do Rosh e chupei a mangueira.

— É geladinho, experimenta.

— Não acredito que faremos coisas de adolescentes depois de velhos. –


Rafael encostou no assento do sofá e chutou os sapatos para longe.

— Foi a primeira coisa que pensei quando o Sheik passou a mangueira para
mim. – Sorri esperando que ele sugasse a fumaça gelada e docinha – Se serve de
consolo, é comum que os árabes se reúnam ao redor do narguilé para negociar.

— É? – Gabriel foi o último a se sentar e recebeu a mangueira do Rafa – E o


que tem em jogo?

Sorri, mas não disse. Tudo estava no ar, desorganizado, incerto. Algumas
propostas de trabalho surgiram ainda naquela noite, mas a minha equipe é
estrangeira e custaria muito dinheiro trazer todos para cá. Gabriel ainda está
estudando e eu queria que ele passasse a restaurar coisas comigo. E ainda tinha
Rafael.

Não tínhamos nem onde morar, nem sabíamos o que seria dali em diante. A
única certeza, que não tive nem quando estava no mais estável dos projetos, é
que vai ficar tudo bem. Gabriel deitou a cabeça na minha perna, reclamando que
estava tonto pela fumaça do narguilé. Rafael pediu a mangueira porque também
queria saber como era ficar tonto com nicotina. Daí lembrei da primeira vez que
chapei com a minha mãe.

— Ela pediu o telefone do meu pai sem saber que era meu pai, cara.

— Eu amo seus pais. – Gabriel riu mexendo no tecido do eu vestido.

—Você sempre foi a musa da minha mãe. – Rafael reparou na mão do Gabi e
sorriu para mim – Eu acho que ela sempre fez as roupas pensando em você.
— … mas usar uma moça parecida comigo num outdoor da paulista foi
sacanagem.

— Acredita quando eu falo que não foi a mesma coisa.

Nem tinha como ser.

— Tô esperando para ficar tonto que nem ele… – Rafael mudou de assunto –
Mas tá difícil.

— Então não fica.

Ele abriu um sorriso largo e soltou a fumaça branca. Me deu a mangueira e


me estiquei para girar os carvões de coco em cima do bocal. Senti o zíper
escorregando pelas costas enquanto buscava o pegador e o beijo dele pela pele
nua.

As mãos dele vieram depois, com os dedos pelas minhas costelas, o nariz
encostando, lembrando do meu cheiro. Rafael encostou a língua e foi subindo,
brincando com os ombros, com a nuca.

— Tira o vestido para mim – Ele pediu quando terminei de virar as brasas e
me encostei no assento do sofá.

— Agora não, acabamos de comer, não quero ficar chacoalhando.

— Não é para trepar. – Ele entendeu o sentido de “chacoalhar” então fiz que
ia levantar para poder tirar a roupa, mas ele só disse: – Deixa o vestido, senta no
sofá.

Gabriel tirou a cabeça das minhas pernas e me beijou o rosto quando se


levantou. Rafael segurou o vestido e eu me ergui. Só de calcinha, sentei no sofá
e Gabriel empurrou o vestido para longe.

Sem querer esperar, Gabriel se ajoelhou no chão e se debruçou sobre mim, as


mãos pesadas me assistindo, o sorriso no rosto. Tonteira de narguilé não demora
a passar e ele não parecia mais tonto. Me olhava sorrindo, louco para me beijar,
me abraçar, me ter consigo. Me consumiu num beijo suicida, as mãos como duas
línguas ferinas, doido de amor.
Rafael só olhava para nós. Sorria com as sobrancelhas franzidas, gostava do
que via, melhor que isso, sentia falta. Tirou o terno, me olhando na cara, parecia
que estava bravo comigo, mas não era braveza. Fomos amigos e amantes por
muito tempo para que me enganasse. Tirou a gravata, e abriu a camisa.

Cacete, Rafael tá mais gostoso do que era. A noiva dele não passava fome.
Olhava para nós dois com aquela cara de bravo, e Gabriel descia a boca, me
lambendo.

— Vai ficar só olhando? – Provoquei.

E abri as pernas.

Gabriel percebeu o jogo entre mim e Rafael, e também tirou o terno, mas
desajeitado, de qualquer jeito, sem se importar com ele ou a camisa. Só queria
tirar e eu o ajudei, olhando para o Rafa, brincando com o Gabi se despindo e
achando lindo o rosto em chamas do monstro que eu sempre soube domar.

Enquanto Gabriel se propõe camaleão, Rafael não muda. A mágica do Rafa é


que você sabe o que esperar. Rafael quando encosta é, e sempre foi, capaz de
queimar até o dia seguinte, nem que tenha que esperar por anos até conseguir
fazê-lo.

Nem que tenha que esperar por quase oito anos, que foi o tempo em que
estive fora, ele sabe esperar. Me via presa e me via predadora, ao mesmo tempo.
Gabriel puxou a minha calcinha para baixo, na mesma urgência com que tirou as
próprias roupas, e deixei, descolando a bunda do sofá. Senti suas mãos
escorregando pela minha carne, com tanto tesão no toque, que ficaria surpresa se
já não estivesse melada.

Me olhando nos olhos, Rafael aceitou o convite e me escancarou pelos


joelhos, me expondo inteira. Com a mão livre, o puxei pelo cabelo até que sua
língua encostasse em mim e o prazer de tê-lo de volta era do mesmo tamanho
que a língua que me chupava.

Sorri para o Gabi e ele entendeu o sorriso. Prazer de tê-los de volta ao lar.
Agora parecia lar. Agora parecia certo e eu não me perdia mais com a falta de
mãos. Todas as outras vezes, sem eles, não foram ruins, mas não eram a mesma
coisa. Com eles é que eu sei fazer isso. Com eles que aprendi a fazê-lo e, se tudo
der certo, com eles que eu vou morrer fazendo.
Com os dedos lá dentro, Rafael subiu para a minha boca, sorrindo,
enlouquecido do jeito que eu gosto que ele fique, e veio me beijar com o meu
sabor, então Gabriel finalmente o atacou pelo cangote, o beijando também,
sentindo o cheiro de lar que o Rafa tem.

— Você nos faz melhores. – Eu não sei porque Rafael desata a falar nessas
horas, porque eu fico tão transbordante, que nem sei por onde eu choro – Para os
outros pode parecer o que for, mas para mim, você traz vida. Você nasceu para
ser gigante, para quebrar tudo, para colocar o errado em ordem. Todo mundo
sabe disso porque você é justa, meio inconsequente, mas é justa, e nunca fez
nada pensando em abandonar alguém. Prejudicar alguém. Ferir alguém.

— Não é porque não te amo que te abandonei, Baixinha. – Gabriel me disse,


descendo a mão para o clitóris que Rafael deixou vago – Não é porque não te
amo que te abandonei, Rafael.

— Não tá com medo de ser bicha hoje, Gabi? – Rafael sorria. E eu sorria só
de vê-los.

— Não posso dizer que nunca vou ter medo. – Gabi deu de ombros, os olhos
molhados, o sorriso completo e o jeitinho de moço novo que ele nunca vai
perder – Você viu o que aconteceu da vez que tomei coragem.

— Você pode tomar coragem hoje? Só um pouco?

— Só um pouco? – Ele riu.

— Só um pouco todo dia.

— É, sabe, só o bastante para dar um lar e uma jaula. – Completei.

— Senti tanto a falta disso… – A lágrima escorreu pelo canto dos olhos do
meu Gabi e morri de amor de ver Rafael as beijando.

— Não chora. Olha para mim, – Da outra vez que Rafael obrigou para que
Gabi o olhasse, briguei com o Rafa. Daquela vez, deixei. – Não se culpe por ter
feito o que achou certo. Não tô te culpando, Manu também não. O que quer que
tenha feito para sobreviver… fez bem. Não dá para viver sem você.

— A gente não vive sem você, Gabriel.


— E não fale mais que atrapalhou Manu comigo. Nunca fomos só dois e eu
não quis ser só dois quando você foi para a casa do seu pai. Dois não completa,
fica faltando. Fomos três a vida inteira, porra…

— Não chora você também, Rafael.

— Não vou, – ele sorriu me beijando o rosto e me puxando para mais perto
da borda do sofá – eu já chorei quando vocês não viram, não tem o que chorar
agora.

— Vocês não vão se beijar, não? – Sorri.

— Ele tem me evitado desde que voltei para a casa da minha mãe.

— Não queria te beijar sem ela.

— Bom, eu tô aqui, agora.

E, se Deus fez Gabriel voyeur, não quero saber o que Ele fez comigo. Rafael
tomou meu Gabi na boca e eu só queria ter duas bocas para poder beijar o corpo,
um pouco de cada um, ao mesmo tempo. Abri a fivela do cinto do Rafa,
procurando saber como anda quem nunca mais vi, e encostei no pescoço do
Gabi.

Sempre amei o como o Gabi se entrega inteiro. O Rafa nunca se mostra todo,
sempre guarda uma carta na manga, mas o Gabi, se você vai junto, ele pula e não
checa o paraquedas. Ali, arfando devagarinho, procurando dentro da calça do
Rafa o mesmo que eu, Gabriel se perdia.

Memória muscular ou o que seja. Não éramos novos amantes. As mãos se


encaixavam e completavam vazios do jeito que aprendemos a gostar e como nos
parecia perfeito.

— Ainda não é para trepar. – Cochichei no ouvido do Rafa e ele sorriu com o
Gabi nos lábios.

— Você disse que não queria ficar chacoalhando – Gabriel o defendeu.

— Talvez eu estivesse enganada.


— Talvez. – Rafael repetiu e parecia a palavra mais sensual que já ouvi.

Capítulo Cinquenta e Dois

Com um ultimato assombroso, Gabriel derrubou qualquer barreira. Sentou-se


no sofá, pelado, lindo de morrer, ereto, lindo de morrer, duro, lindo de morrer (já
falei o quanto ele era lindo?) e sorriu.

— Quem vem?

Sempre achei morder a boca muito brega, mas, quando é o Gabriel


fazendo… Rafael, um por um, tirou os grampos do meu cabelo. O ajudei nos
mais difíceis e só quando meu cabelo estava solto, foi que me colocou sobre
Gabriel, ajoelhada no sofá, aberta, de costas para ele, e prontinha.

— Oito anos, – sorri sentando devagarzinho, sentindo Gabriel empurrar meu


cabelo para o lado e morder minhas costas, ouvindo-o gemer baixinho, e me
agarrando com a outra mão – eu senti sua falta todos os dias, por todos esses
anos.

— Senta, Baixinha – Lambia o lóbulo da minha orelha com a língua e com


as palavras. – Mata a minha saudade.

Rafael se ajoelhou na nossa frente para nos lamber. Gabriel me segurando


pelo quadril, e Rafael mantendo as minhas pernas abertas.

— Já vai? – Rafael olhou para mim e sorria.

— Não…

— Já vai. – Gabriel não sorria, continuava lambendo.

— Nunca esqueci como ela fica.

— Para de falar.
— Você é linda quando tá rebolando, – Gabriel murmurou, segurando meu
cabelo num rabo de cavalo – mas te amo mesmo quando tá gozando.

— Vai acabar logo, assim. – Chorei um pouquinho – Eu não consigo várias.

— Não te preocupa, – Rafael segurou meu rosto numa mão – essa noite não
vai terminar nunca.

Rafael desceu para lamber. Brincando com o saco do Gabi, Rafael me


expunha, abria meus lábios, e cravava a mão na minha coxa, lambendo meu
clitóris, sugando, sempre um pouco mais forte que a vez anterior, até a hora em
que eu cansei de segurar, sempre fui facinha de gozar, mas nunca consigo várias,
e me levantei do Gabi.

Sem dizer nada, ergui Rafael e dei uns passos atrás. Muito vestido. Muito
falante. Enchendo-o de beijos, sem sorrir, enlouquecida com o orgasmo quase no
limite, mexi em sua braguilha.

— Qual parte do – Gabriel empurrou para dentro de mim, me segurando


pelos quadris, quase me tirando do chão, falando enquanto eu gemia, se
perdendo enquanto me perdia – Qual parte do “temos a noite inteira” você não
entendeu?

Rafael abriu a calça, colocou a minha mão envolta dele, e me curvei para
chupá-lo. Foi o suficiente. Veio tão forte, que as pernas tremiam e eu não
conseguia parar em pé. Gabriel me mantinha entre os braçospara eu não cair, e
Rafael endireitou a minha coluna, me abraçando com força, enfiando a língua na
minha boca, que eu não retribuí porque não conseguia.

— Não era para a festa acabar assim – Era para durar a noite inteira, devagar,
até que caíssemos de sono. Não assim.

— Amor, – Gabriel me deu um beijo gostoso e sorriu – nós temos a vida


inteira.

— Será que tem doce na sua geladeira? – Rafael, fechando a calça, foi para a
geladeira.

— Espera, – pedi, nem um pouco recomposta – onde você vai?


— Por quê? – Gabriel caçava a própria cueca no meio do meu vestido – O
que você quer comer?

— Espera, gente. – Pelada, e a única que teve os finalmentes, não entendi por
que todo mundo dissipava.

— O que foi? – Rafael fuçava na geladeira e quase não prestava atenção em


mim. – Será que tem doce nos armários?

— A gente estava desenvolvendo um assunto aqui. – Tentei.

— E vai desenvolver outros. – Gabriel me cobriu com sua camisa e foi atrás
do Rafa.

— Quer passar no mercado? – Rafael olhou para o Gabriel como se eu não


estivesse entre eles. – Só tem café, mas não tem nada para comer amanhã de
manhã.

— Nada?

— Eu tomo café da manhã na minha cunhada e com os bebês…

— Amanhã o café é aqui. – Rafael parou de olhar pela minha cozinha e se


virou para nós – Coloca a roupa, vamos no mercado.

— O quê? Cê acabou de jantar, como que tá pensando no café da manhã?

— Vai assim? – Ele sorria. – Por mim tudo bem. Só coloca um calçado.

Se eles tinham alguma coisa planejada, não entendi. Devolvi a camisa para
Gabriel e voltei para o vestido. Uma puta viagem de metrô para chegar em
casa… Se era para fazer alguma coisa na rua, porque não fizemos antes de
chegar?

A brasa do narguilé não tinha nem chegado na metade, a brasa deles ainda
não tinha queimado nem a metade. Eles ficavam repetindo que tínhamos a vida
inteira, a noite inteira e não sei mais o que inteiro, mas acabavam com a graça
para irmos – surpresa! – ao mercado.

Me vesti e eles também. Rafael quis afogar a brasa do narguilé para não
deixar coisa acesa dentro de casa, e depois foi olhar atrás da televisão.

— Tudo bem aí? – Rafael pensa muito rápido, mas não fala nada. E eu fico
perdida.

— Tô olhando se tua TV tem entrada para o meu videogame. Preciso fechar


Red Dead, falta pouco.

— Na cabeça dele, nós casamos. – Gabriel riu baixinho, me beijando


enquanto arrumava meu cabelo para trás da orelha e, depois, abriu a porta de
casa.

— E casamos?

— Não tem nada que nos impeça agora.

— Só a lei. – Rafael respondeu por nós. – Bigamia é crime.

— Amante e esposa é normal, tem até direito a herança. – reclamei fechando


a porta de casa – Mas três pessoas que se amam…

— O problema tá no segredo. Em segredo todo mundo pode tudo.

O que Gabriel falou por último me deixou pensando por bastante tempo.
Avançamos para a saída do condomínio e eu lembrei da garagem da Andressa.
Os oito carros que nos deixaram abismados quando ela voltou para o Brasil
foram reduzidos para cinco. E ainda era muita coisa.

— Hoje é dia de festa. – Falei abrindo a porta de pedestre da garagem com


espaço para dez carros. – Escolham um.

— Cacete… – Rafael olhou para cada carro e pareceu uma criança em loja
de doces. Me sinto especial só pelo jeito como ele se abre quando somos só nós
três. Gabriel olhou para mim, por cima do ombro, sentindo a mesma alegria por
ver Rafa ser o nosso Rafa. – A gente pode pegar qualquer um?

— É, ué. Escolhe aí.

— Pode ser uma voltinha no quarteirão com cada um?


— Não tem quarteirão, Rafa, a gente tá vizinho da Marginal.

— Ah…

— Escolhe um. Amanhã a gente pega outro.

— Não, não posso escolher isso. Escolham vocês.

— A gente não liga para carro. – Gabriel cruzou os braços – Escolha você.

Camaro Amarelo. O mais popular de todos os carros da Dê. Ele apontou para
o automóvel já fazendo uma janelinha com a mão, querendo ver do lado de
dentro através do vidro. Olhei para o quadro na parede e peguei as chaves
embaixo do título “Camaro amarelo”.

Joguei a chave para ele, e ele ficou olhando sem entender.

— Não posso dirigir essa coisa, tá doida?

— Ué, alguém vai ter que dirigir.

— Se eu bater um carro desses, vou ter que trabalhar a vida inteira para
pagar.

— Eu divido a conta com você. Vai, Rafa, dirige!

Não precisei falar outra vez. Ele apertou o botão do alarme e parecia uma
criança de frente para seu ídolo. Sentou no banco do motorista, sorriso no rosto,
e Gabriel passou para o banco de trás. Esperamos até que Rafael tivesse
terminado de namorar cada um dos botões, o couro do banco, o câmbio.

— Põe o cinto, Baixinha.

— Como a gente sai daqui?

Em segundos estávamos na marginal. Não sabíamos onde tinha um mercado


daquele lado da cidade, e Rafael estava tão feliz dentro daquele carro, que nós
nem nos preocupamos em olhar. Gabriel lembrava do limite de velocidade e,
quando olhei no celular onde era o mercado mais próximo, ele sabia exatamente
onde ficava.
— Eu decorei essa cidade inteira.

— Rua por rua?

— Não, né. Mas se me der um ponto de referência, vou de boa.

— Se tudo der errado, dá para ser taxista.

— Manu, – Ele enfiou a cara entre o meu banco e o do Rafa – chega de vida
dando errado, né?

Achei que teria algum segredo malicioso no mercado, mas não tinha. Rafael
queria comprar doce, pão para o café da manhã, e comida. Não entendi nada
daquilo, mas o segui atrás de um carrinho de compra. Ele anotava as coisas que
tinha pego num aplicativo de listar e vi quando a nomeou por “Casa”. Não falei
nada, só o seguia, mas morria de felicidade pelas costas dele.

— Quer passar na casa da sua mãe e pegar seu videogame? – Perguntei


quando voltamos para o carro, cheios de compras.

— É do outro lado da cidade.

— E daí? Você adorou dirigir esse carro.

Rafael sorriu fechando o porta-malas que eu pensei que fosse maior, mas nós
não dissemos nada.

◆◆◆

De banho tomado e só de camiseta, desci as escadas. Gabriel beijava Rafael


enquanto ele mexia uma panela no fogão. Pelo cheiro, brigadeiro. Uma música
tocava do celular de um dos dois, na minha cozinha. Sentei no balcão da pia só
para ficar perto, não queria que se largassem.

— Manu, – Rafael sorria, as bochechas vermelhas, a ereção marcando na


calça e Gabriel o comendo pelas beiradas – por quanto tempo a gente vai poder
ficar aqui?

— Não sei, ué. O Lipe não falou que a gente tinha limite de estadia.

— Não… Tô falando sobre Gabriel e eu.

— Ah! O quanto vocês quiserem…

— Então a gente vai morar junto mesmo? – Gabriel, também de bochechas


vermelhas, esticou a mão para pegar na minha perna – É sério?

— Ué, não tá claro desde a lista de mercado do Rafa?

— É lista de mercado, ele faz lista para tudo…

— É lista de mercado, mas Rafael nomeou como “casa”.

— Eu não volto para a casa da minha mãe. Nem você, Gabi.

— Eu acho que… – Desci do balcão e abracei Gabriel também – O que o


Rafa tá com medo de pedir, Gabi, é para a gente não se largar mais.

— Será que ele tá querendo te chamar de esposa e eu de marido?

— Será? – Será?

— E vocês aceitariam uma coisa dessas?

— É, porque, Gabe, veja: – Fingi que não ouvi o que Rafael falou – primeiro
ele checou o que tinha e o que não tinha na minha cozinha sob a desculpa da
falta de doce. Depois olhou atrás da minha TV para saber se o videogame é
compatível. Daí passou na mãe dele… olha, eu acho que, na cabeça dele, essa é
a nossa cerimônia de casamento.

— E eu fiz vasectomia. – Jogou no ar – Não que tenha feito pensando nisso,


não foi, mas é que é bom dizer.

— Será que o gosto muda? – Não entendi se Gabriel falava do gosto da


porra, mas ri achando que sim.

— Tem que testar para saber.


— … E eu tô de DIU. – Revelei também. Não quero ser mãe.

— Filho não é uma opção. – Rafael continuou – Se vocês fizerem questão, a


gente pode sentar e conversar, numa boa, mas é que… nada contra criança, vou
ser um tio bem bom, mas… eu não quero arriscar ter filho.

— É, também não quero ser mãe. Eu sou uma tia maravilhosa, mas, mãe…
nhé.

— Nunca parei para pensar nisso.

— Pois pare. – Sugeri para o Gabi – Acho que faz parte do contrato de
casamento.

— Não, claro que não. A gente pode decidir filhos a qualquer hora, casado
ou não. A questão… – Rafael desligou o fogo e se virou de frente para nós – é
que eu faço questão de viver junto. Só isso.

— Por que você nos ama? – Gabriel sorriu.

— É. – E o Rafa cedeu.

— É? – Gabriel se virou para mim – Baixinha, cê aguenta um round dois?

— A gente pode testar.

— Cê lembra a primeira noite – Rafael saiu de trás do Gabi e me tirou do


chão – que nós perdemos o lacre em pé?

— Lembro da dor – Mentira: laçando a cintura dele, eu lembrava de cada


segundo da nossa primeira noite.

— Só da dor?

— Não, mas é que eu lembro bem dela.

— Não foi como achei que seria. – Rafael sorriu para mim – Sempre achei
que te carregaria até a cama.

— Então carregue.
— Seu quarto é lá em cima?

Sorri beijando Rafael pelos cantinhos do rosto, o olhando fundo nos olhos, e
subimos as escadas até o quarto. Ninguém quis acender a luz. Tinha iluminação
suficiente pelos postes do quintal para que conseguíssemos nos enxergar.

— De nós três, – cochichei para o menino mais bruto e mais calado que
conheci em toda a minha vida – você é o mais romântico.

— Não sou.

— É sim. – Gabriel veio pelas costas, empurrando meu cabelo para o lado e
chegando juntinho no abraço.

— Eu amo o como você é quando não tem ninguém olhando.

— Eu sonho com vocês – ele repetiu a mesma frase que disse quando nos
enfiamos num quartinho de bar para perder a virgindade – desde quando tinha
medo de gente. Esse momento, – beijou meu rosto e beijou o rosto do Gabi, atrás
de mim também – vocês dois, e o videogame na sala, é tudo o que eu sempre
quis.

— Desculpa ter separado a gente por tanto tempo. – Gabriel beijou Rafael
por cima do meu ombro e, finalmente, depois disso, me enfiei no beijo deles.

A gente ainda se encaixava no beijo de três. Sorri sentindo as duas línguas na


minha, matando uma saudade que não percebi ser tão grande. Gabriel gemeu
primeiro, me segurando pela bunda, passando a mão em mim como se eu fosse
de massinha, e Rafael me segurou com mais força.

— Rafa… – gemi baixinho.

Ele sabia o que eu queria. Com cuidado para não me machucar abriu a
braguilha e entrou gentil de um jeito que me fez prender a respiração, feito para
ser perpétuo. Do banho só saí com qualquer camiseta, nem coloquei calcinha
para não ter que tirar, e Gabriel tirou minha camiseta, também tirando a camisa
do Rafa, empurrando a gente para a cama devagar, quase numa dança.

Sem pressa. Sem pular etapas. Senti Rafael quente lá dentro, o beijo que
esquentava devagar, as mãos pesadas e quentes. Gabriel ajudou meu Rafa a se
sentar na cama e o ajudou a tirar a calça. A mão encontrou meu clitóris e brincou
com ele, com meu peito na boca, e Rafael travava o maxilar enquanto eu
rebolava devagarzinho.

— Rafael já foi bonzinho com você, Amor? – Gabriel sorria. – Então porque
tá boazinha para ele?

— Por que senão eu…

— Tá tão fácil assim hoje?

— Tá…

— Então vai fazer esforço para continuar acesa depois de gozar. – Rafael
mandou.

— Promete que vai. – Gabriel mandou também.

— Prometo…

Rafael aumentou o ritmo em mim e eu deixei de me controlar. Gabriel tirou a


boca do meu peito e ficou atrás, brincando com o meu cabelo, as minhas costas,
e, com os dedos melados de mim, os enfiou na minha bunda.

— Se você disser não, é não. – Rafael disse, estocando menos, as mãos nos
meus peitos e os olhos perdidos, vermelho, sensual de doer, e pronto para me
fazer explodir – A gente te ama muito mais do que quer te comer.

— Embora hoje a gente queira te comer muito. – Gabriel, atrás, me olhou no


olho, inteiro feito de desejo e maledicências.

Recebi um beijo do Gabi, e baixei para beijar o Rafa. Foi nessa hora,
curvada, que Rafael meteu tanto, e tão forte, que eu esqueci de beijar, de gemer,
e só sabia me segurar nos braços.

Não levei um susto e não quis que Gabriel parasse. Em todos os anos que
todo mundo supôs que fosse assim que transávamos, aquela era a primeira em
que realmente assim fazíamos. Rafael me comia e Gabriel preparava o terreno,
beijando as minhas costas, o que mais que visse, falando sacanagem no meu
ouvido e brincando lá, no mesmo ritmo que o Rafa, mas com menos força, o
tempo todo.

Foi só quando eu já estava muito pra gozar que Gabriel entrou também. Foi
só aí que vi o tubo de lubrificante caído perto de nós, mas nunca vou saber de
onde ele tirou aquele tubo.

Sorri percebendo o quanto aquilo era perfeito e encaixadinho e Rafael sorriu


de volta.

Os três se perdiam. Gabriel perguntou se doía, se queria que tirasse e eu não


queria nada disso porque, é claro, doeu, mas o tesão anestesiava, fazia parte da
brincadeira. Gabriel por trás, Rafael na frente, os dois sincronizados no meu
ritmo.

— Segura, Baixinha – Gabriel pediu – Não goza agora.

— …

— Não goza ainda.

Para ajudar, Rafael veio com a mão no meu clitóris e eu tive que pedir para
eles pararem.

— Você devia ver a sua cara, agora – Rafael sorria.

— É?

— Tá linda.

— Senti tanto a falta de vocês…

— A gente também – Gabriel voltava a estocar devagarinho, me beijando os


ombros, mais carinho que sexo, as mãos apoiadas na cama para não jogar todo o
peso em cima do Rafa, e o peito contra as minhas costas. – Dói, Manu?

— Não.

Com a marcha reduzida, Rafael voltou a mão para o meu clitóris, devagar,
ainda carinho, e eu voltei a beijá-lo.

— Eu consigo sentir você – Gabriel falou para o meu Rafa.


— Quando eu faço assim… – Rafael estocou fundo, mas só uma vez – Você
sente?

Não sei porque disseram isso. Agora parece óbvio que um sentisse o outro, já
que a pele que divide atrás com a frente é fininha, mas eu nunca pensei nisso.
Rafael estocou, Gabriel gemeu e eu gemi também. A ideia de que os três se
sentiam ao mesmo tempo me comia um resto de neurônio que sobrava. Um
estocando coordenado com o outro também acabava comigo.

Parando de brincadeira, Rafael me puxou para o próprio peito, e Gabriel


abriu a minha bunda, ao máximo, os dois se olhando e olhando para mim, eu
perdida entre eles e quase perdida de mim.

— Pode agora? – Eu pedi.

— Vem, amor – Rafael puxou Gabi para a própria boca, os dois muito
rápidos em mim, e, se alguém disse mais alguma coisa, eu não ouvi.

Capítulo 50

O dia mais bonito da minha vida foi o dia seguinte. Aziz e Tahir tinham razão,
acordei tarde e nem queria saber de procurar a repercussão da exposição no
jornal, nem no celular. A janela aberta deixava o Sol entrar, e não dava para
reclamar dele. Brilhava bonito, feito um carinho, e Rafael estava ali,
adormecido, lindo de doer, e do meu lado.

Só Gabriel que não estava. Imaginei que ele estivesse lá embaixo, então
desci depois de escovar os dentes em tempo recorde, e o achei à pia, passando
um café, e arrumando alguma coisa numa bandeja de ir no forno.

— Bom dia? – Tentei, e ele parecia nervoso – Posso ajudar aí?

— Ai, caramba. – Nervoso, pensei. Definitivamente. – Droga, achei que


você ia demorar mais para levantar.

— O Rafa ainda tá dormindo, então, se você precisa de ajuda em alguma


coisa, tô aqui.

— Não, hm… – Enfiou a bandeja no forno e limpou as mãos na cueca, única


coisa que usava – Você não quer subir e tomar um banho?

— Não, ué.

— Sobe lá, Manu, vai tomar um banho. Me dá mais meia hora.

Subi sem falar nada, escondendo a risada. Entrei no banheiro do quarto


principal e demorei no banho só porque não podia descer. Enquanto ensaboava a
cabeça, senti o vento gelado entrar pelo box, como quando abrem a porta, e
depois vi Rafael.

— Pode entrar?
— Claro, – Intimidades que a gente nunca teve – vem, Rafa.

— Por que tá rindo?

— Não tô.

— Cadê o Gabi?

— Tá na cozinha. Só entrei no banho porque ele não me quer lá embaixo.

— Estranho.

— É…

— Quer que lava as suas costas?

Ele nem passou sabão. Virei de costas para ele, a água caindo sobre nós dois,
e ele me abraçou com tanto carinho, me beijando os ombros, que eu desisti de
tomar banho também.

— Acho que ele vai pedir a gente em casamento. – Rafael falou depois de
algum tempo, enquanto eu segurava o choro de saudades e magoado, ao mesmo
tempo.

— É, também acho.

— E você quer?

É engraçado. Eu devia sentir raiva, não é? Devia jogar mais coisas na cara
deles, devia me rebelar mais. Gabriel me evitou durante a minha graduação, e
Rafael partiu sem olhar para trás. A gente terminou, porra, e foi doído para
caramba!

Mas então a mãe do Gabi morreu e ele não tinha ninguém no velório. E eu
larguei a ida para Milão e voltei direto, sem nem pensar, nem respirar três vezes
como meu pai me pediu. Rafael largou a noiva e a vida que montava para si no
segundo em que mandei uma mensagem de áudio que nunca foi respondida.

As mágoas existem, e meu oráculo disse que elas nunca vão passar. Fico me
perguntando quantas mágoas meus pais têm, de coisas que eles nunca vão contar
para nós, e me pergunto ainda mais se eles fariam alguma coisa diferente.

Sentindo o jato de água acalentando dois corações perdidos, magoados,


atrasados em muitos anos, me perguntei do que é que eu me arrependeria mais,
se partisse de volta para algum estrangeiro e resolvesse que as mágoas são
maiores que o amor que tenho por eles.

Quer dizer, tudo tinha fluído fácil. Vi meus dois na Pinacoteca e quase chorei
na frente de todo mundo. Os conduzi durante a noite inteira e eles me seguiam
com algum prazer. Eu os amo. De verdade. Sempre amei. Foi crescendo
conforme a gente crescia. É esquisito? É. Alguém esperava por isso? Não.

Mas eu vou me enganar até quando? A briga que eu sempre tive foi com os
outros, não com eles. Sempre preferi brigar com o mundo e foi o mundo que nos
separou. Nunca nos traímos, nunca nos ofendemos, nunca nos desrespeitamos.
Vinte anos que os conheço e não lembro de um momento sequer em que fomos
ruins uns com os outros. Ou que tenhamos nos mesquinhos. Em que nos
sabotamos.

Num mundo real, os namorados sabotam as namoradas por medo de que elas
cresçam demais. Num mundo real as namoradas engravidam para segurar os
namorados. As pessoas se largam se um dos cônjuges não quer filhos. Ou se
precisam namorar à distância. Num mundo real os pais batem nas mães e nos
filhos quando eles desobedecem.

Num mundo real nós somos a aberração, os três esquisitinhos.

Dentro daquela casa o mundo real não reina. E sempre acreditei, de alguma
forma, que quando juntávamos os três, vivíamos numa utopia de respeito e
cuidado cego, só feito de amor.

O mundo nos abateu uma vez, pensei, saindo do box e descendo as escadas.
Será que não está na hora de dar o troco?

— Ok. – Gabriel tinha um bolo de fubá quentinho, manteiga batida em casa,


broinhas de milho, café recém-passado e pão francês à mesa. Coisa que eu tenho
certeza que uma das minhas cunhadas, ou meus irmãos, o ajudaram a fazer –
Agora podem descer.

Gabriel não parava um segundo. Andava para lá e para cá enquanto nos


servia. Oferecia iogurte fresco batido com morango e tirava uma jarra de laranja
da geladeira. Perguntava se as coisas estavam gostosas. Andava tão rápido, que
parecia que oferecia café da manhã para um batalhão, não para só nós dois.

Rafael me olhava com um sorriso tranquilo, simples, bonito demais de ver.


Sempre muitos passos na frente, ele sabia exatamente o que Gabriel queria nos
comprando com comida.

— Gabi, – Pedi – Você não vai sentar para comer também?

— Vô, vô. – E voltava a mexer na pia, no forno, na geladeira.

— Gabi, – Rafael pediu também – Por favor.

— Tá, tá bom, beleza. – Respirou fundo, nervoso, e se ajoelhou entre nossas


cadeiras. Pelo pé, ele arrastou nossos assentos até que estivéssemos mais virados
para ele, que para a comida. – Eu sei que não sou um bom partido. Desde que eu
sou moleque vocês dois me acham burro. Beleza, eu melhorei bastante na
burrice, mas ainda sou meio avoado. Como todo pesquisador desse país, a minha
bolsa de doutorado é uma merreca, tô morando de favor na casa da minha ex-
sogra, e sou cego de um olho. Eu meto os pés pelas mãos, não sou bom de ficar
sozinho, e continuo odiando matemática. Às vezes não presto atenção em quem
tá do meu lado e a minha família… é melhor fingir que a minha família não
existe.

— Você se menospreza demais, Gabi. – Interrompi.

— Calma, Baixinha, ainda não terminei. – Gabriel já quase chorava – Eu…


HM… Por muito tempo eu achei que estava errado em ser como eu era, em sentir
as coisas que sentia, e deixei que meu pai controlasse a minha vida porque ele
era meu pai, sabe, ele devia saber o que é melhor para mim. Ele chamou você de
viadinho, Rafa, me desculpe deixá-lo falar de você assim. E te chamou de puta,
Manu. E eu acreditei nele, essa era a pior parte. Ele falou coisas de vocês, que eu
acreditei e quis me afastar ao máximo, porque eu não queria ser como vocês. É
fácil ser homem como ele é, mandar em todo mundo, colocar uma mulher
debaixo do sapato, viver com ódio de todo mundo e acreditar que medidas
extremas é que vão nos libertar. Enquanto todo mundo viver embaixo das
normas rígidas, ninguém precisa pensar sobre o que se trata a liberdade. E é fácil
viver assim, sem tem que pensar.
— Só que o amor liberta, né? – Essa eu nasci sabendo.

— É… e, tipo… – Ele fungou o nariz para não chorar – Parece que eu vivi
com raiva esses oito anos porque eu queria ser como o meu pai, mas meu
coração nunca esteve com ele, ele quebrou alguma coisa fundamental para mim.
Ele me quebrou como se eu fosse um nada, ele quebrou a minha mãe por anos
como se ela não fosse nada! Como que ele pode estar certo, e eu errado, se ele
levou a minha mãe para o caixão?! Como que a norma dele está certa e os meus
sonhos estão errados, se os meus sonhos só me fizeram bem, e a realidade dele
acabou comigo?

— Não chora. – Rafael disse, chorando também.

— Então… – Ele puxou uma caixinha vermelha de veludo de dentro da


gaveta de talheres, atrás de si – Desculpem-me por tudo. Por ser assim, por não
saber ser diferente, por temer ser diferente de todo mundo, por dizer que sou eu
quem leva chumbada e, quando foi a minha vez de levar, correr para o meu pai.
Me perdoem. Eu amo vocês, não dá para viver só com um. Nós somos mais
amigos que qualquer outra coisa e eu amo o quanto ser amigos nos fazem
amantes melhores. Não dá para ser só amigo, porque eu fico com vontade de
beijar vocês a merda do tempo todo. Não dá para ser só amante porque eu tô
doido para saber como é que a Manu reconstruiu um hospital sírio (Sírio, porra!)
e para saber como vai Resist da Tia. Então… – ele pigarreou para continuar o
discurso e para tentar parar de chorar – Então… Se vocês ainda não estiverem
saturados de tanto drama… será que… será que… a gente pode ser três para
sempre?

— Para sempre é muito tempo. – Rafael rebateu e limpou as lágrimas. – Não


aguento tanto drama assim para sempre.

— Gabi, você ainda duvida que a gente te ama e que somos três, não nós
dois tolerando você?

— Não, é que…

— Gabi, eu larguei a Manu porque não dava para voltar a ser dois, depois de
saber como somos em três. Sempre fomos três, desde a escola, nunca vamos
deixar de ser. Terminamos a escola juntos, passamos no vestibular, você me
ensinou sobre amor mais do que qualquer pessoa no mundo. Manuela é o ponto
neutro entre você e eu. Eu não gosto de multidão, você dá palestra por aí. Você
demora para perceber as coisas, e eu reparo em tudo. Manuela seria uma pessoa
muito triste só comigo porque eu sou quietão, e você é festeiro. E ela seria uma
desmiolada se estivesse só com você, porque ela vai na sua onda, sempre foi e
sempre irá.

— Só que ela se deu bem sozinha, tá dando festa com Sheik e governador,
né, Rafa?

— É, e nós dois estamos na merda. Você nunca saiu da faculdade e eu odeio


o meu emprego. É por isso que nós precisamos dela, porque ela tem coragem
para ir e fazer, e ir além, e nós temos medo do mundo.

— E eu preciso de vocês porque a minha vida é melhor quando tem vocês


nela.

— Então… – Rafael deu um beijo no Gabi, e outro em mim – Vê se faz essa


pergunta direito.

— Rafael, Manuela. – Gabriel abriu a caixinha de veludo – Vocês querem


casar comigo?

Um mês depois, Rafael largou o emprego. Conversei com os advogados da


Dê, bigamia é realmente crime, mas já tem precedentes para uniões estáveis
entre três pessoas. Entramos no cartório com um advogado da Dê, sentamos na
frente de um escrivão, e ele não olhou esquisito para nós. Ele sorria, com uma
bandeirinha de arco-íris presa na camisa, estendendo os papéis para que
assinássemos.

Chorando e com a aliança que descobri ser trama das esposas do Sheik,
peguei os papéis que o escrivão me deu, e procurei uma caneta na bolsa. Eu
tenho certeza que separei uma caneta especial para esse momento, só não sei
onde…

Ironias. Ri alto, quebrando o tom solene do cartório, e olhei para os meus


dois.

— Alguém me empresta uma caneta?

Eles também riram alto, entre as lágrimas. Foi assim que tudo começou.
Considerações Finais da Autora

Então: Manuela não é uma personagem nova. Eu nunca pensei que precisaria
escrever sobre ela, então me deixei levar pela loucura e lhe dei dois namorados.
Ela era para ser um personagem totalmente secundário. A Família Ferreira é
composta, a Saga oficial, pelos meninos. O pai, O Lipe, e o Guto.

Manuela… Manuela era para ser só mais um personagem de suporte para a


trama alheia. Me encheram o saco (E as Mendigas, o principal público para
quem escrevo tudo o que já escrevi e o que venho a escrever, encheram o saco
simmmmm!) e eu cedi. De primeira, o que me doía era ter que manter os dois
namorados para uma Monstrenga desmiolada e esquisitinha. Será que eu separo
eles? Será que eu deixo os três juntos?

Você vê: São tempos sombrios para os sonhadores. Escrever é um ato


político, por mais bobo que um livro seja. A gente não pode fingir que escrever e
que as artes servem para alienar, uma vez que escrever é totalmente ouvir o
mundo e se deixar contaminar por ele.

E, por outro lado, isso aqui não é palanque. A gente escreve para se divertir,
para contaminar, para romper barreiras. Eu escrevo para me achar. Para romper
os meus próprios preconceitos. Se você, leitora, conseguiu romper com seus
próprios preconceitos assim como eu rompi os meus enquanto escrevia, e
acredita, assim como eu, que amor basta, então todas nós saímos um pouco
vencedoras.

Acho que, de algum jeito, a arte milita. E eu milito pelo amor. Sem amarras,
sem julgamentos, sem achismos. Aceitando o outro como ele é, não importa
como ele seja e o que viveu para chegar onde chegou, a minha função na arte é
acolher. E que você saia por aí mais forte para lutar suas batalhas, seja quais
sejam, depois de ler esse meu texto.

E, se você chegou até aqui, fica aqui meu profundo agradecimento. Você dá
suporte aos meus sonhos, você também me acolhe.

Algumas pessoas eu preciso nomear os agradecimentos antes de te deixar


seguir para o próximo texto: Marido, que tá sempre me aturando, Débora
Menezes, que sempre manda um acalento e que edita meu texto, Bárbara Nunes,
que anda tão descrente na literatura nacional, mas não descrente o suficiente para
não me dar uma mãozinha na capa e em detalhes que fazem a diferença, Kamila
Cavalcante, que ainda não terminou de escrever ESEM e tá difícil para terminar.

Também agradeço às minhas Mendiguinhas maravilhosas que estão sempre


me ajudando, dando dicas, brigando comigo, me acolhendo e me dando um
motivo para chorar, às três da manhã, escrevendo isso aqui.

Por fim, quero agradecer à você, que não sei por onde me achou, mas o
universo deu um jeito de nos juntar. Espero te ver mais vezes por aí.

Com amor e obrigada por ler,

Camila Marciano.

www.facebook.com/marcianocamila

www.instagram.com/camilamarciano

Da autora:

(Saga dos Ferreira)

1. O Próximo Homem da Minha Mulher Sou Eu;

2. O Único Homem da Minha Mulher Sou Eu;

3. O Último Homem da Minha Mulher Sou Eu;

(Não faz parte da Saga)


Respire Fundo - Ed. Rico

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