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Ouro Branco-MG
Setembro de 2015
KATIALAINE CORRÊA DE ARAÚJO
Ouro Branco-MG
Setembro de 2015
1
Ficha catalográfica elaborada pela Divisão de Biblioteca da UFSJ
A663c Construção e otimização de sistemas bioeletroquímicos para utilização no tratamento de efluentes da alta
carga fermentescível [manuscrito] / Katialaine Corrêa de Araújo. - 2015
89 f. : il.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de São João del-Rei. Mestrado em Tecnologias para o
Desenvolvimento Sustentável.
Referências: f. 75-89.
1. Energia microbiana - Células – Teses 2. Reator eletro-assistido – Teses 3. Carvão ativado – Anodo –
Teses 4. Microfiltração – Membrana - Teses I. Xavier, Bruno Meireles de (Orientador) II. Universidade
Federal de São João del-Rei. III. Mestrado em Tecnologias para o Desenvolvimento Sustentável IV. Título
CDU 66.087
2
3
AGRADECIMENTOS
4
“Somewhere, something incredible is
waiting to be known.”
Carl Sagan
5
RESUMO
6
LISTA DE FIGURAS
7
LISTA DE EQUAÇÕES
8
SUMÁRIO
1. Introdução 9
2. Objetivos 12
2.1. Objetivo Geral 12
2.2. Objetivos Específicos 12
3. Revisão Bibliográfica 13
3.1. Cadeia Alimentar Anaeróbia 13
3.1.1. Fermentações 19
3.2. Células de Energia Microbiana 24
3.2.1. Princípio de funcionamento 24
3.2.2. Microbiologia das CEM 28
3.2.3. Construção 32
3.2.4. CEM no tratamento de efluentes 37
4. Material e Métodos 40
4.1. Construção do dispositivo 40
4.2. Preparo do meio de cultura 41
4.3. Avaliação do inóculo 42
4.4. Produção de potencial com diferentes membranas 42
4.5. Efeito da adição de carvão na câmara anódica 43
4.6. Operação do reator como Reator Anaeróbio Eletro-assistido 43
4.7. Adsorção de lactose por carvão ativado 44
4.8. Avaliação da demanda química de oxigênio (DQO) 44
4.9. Análise da produção de ácidos orgânicos por Cromatografia Líquida de 45
Alta Eficiência (HPLC)
5. Resultados 46
5.1. Avaliação do inóculo 46
5.2. Produção de potencial com diferentes membranas 47
5.3. Efeito da adição de carvão na câmara anódica 48
5.4. Operação do reator como Reator Anaeróbio Eletro-assistido 49
6. Discussão 52
7. Conclusão 73
8. Referências Bibliográficas 75
9
1. INTRODUÇÃO
10
que possam melhorar o cenário para o fornecimento contínuo de energia, com baixo custo
e minimizando os efeitos nocivos ao meio ambiente [4].
Nesse contexto, Células de Energia (CE) têm atraído atenção especial dos
formuladores de política energética e pesquisadores. Dentre estas, Células de Energia
Microbiana (CEMs) são particularmente interessantes devido à possibilidade de utilizar
águas residuais para produzir energia elétrica, podendo-se produzir energia e reduzir a
demanda bioquímica de oxigênio (DBO) do efluente simultaneamente. Trata-se de
dispositivos eletroquímicos que convertem a energia química de matéria orgânica, como
carboidratos e ácidos orgânicos, em eletricidade usando os micro-organismos como
catalisadores [7, 8].
Embora a produção de eletricidade por microrganismos ainda seja vista como
novidade científica, já em 1910 Potter demonstrou que culturas de Escherichia coli e
Saccharomyces sp. podiam produzir energia elétrica, embora em pequenas quantidades,
quando dispostas de forma adequada para a utilização de eletrodos de platina como
aceptores de elétrons [9]. Porém, a transferência extracelular de elétrons não gerou muito
interesse até 1980, quando foi descoberto que a densidade da corrente e de potência
podiam ser melhoradas pela adição de mediadores [10-12]. Deste modo, embora o
fenômeno seja conhecido há algum tempo, a pesquisa de tecnologias que usufruam deste
conceito ainda estão em fase inicial de estudos [13].
Apesar de promissor, o amplo uso desta tecnologia é limitado atualmente por
problemas tecnológicos que culminam na baixa produção de energia, de modo que as
únicas aplicações práticas descritas são CEM que utilizam matéria orgânica nos
sedimentos marinhos para gerar energia e alimentar dispositivos de monitoramento
eletrônico [14-16]. Melhorias substanciais serão necessárias para viabilizar outros usos,
dentre eles a aplicação mais promissora de CEMs que é a sua utilização no tratamento de
águas residuais com geração de energia elétrica [17-19].
Existem várias vantagens em relação a processos biológicos convencionais que
tornam a tecnologia de CEM promissora para o tratamento de efluentes líquidos. No que
se refere à eficiência de remoção de poluente, CEM permitem a remoção mais eficiente e
completa, incluindo maior remoção de DQO, garantindo uma melhor qualidade do
efluente. A presença do eletrodo numa câmara anódica favorece reações biológicas e
eletroquímicas múltiplas que facilitam a remoção simultânea de vários poluentes e
potencialmente expande a capacidade de remoção de compostos recalcitrantes. Além
disso, deve-se considerar que CEM propiciam a recuperação de energia in sito. Em
11
sistemas tradicionais de tratamento anaeróbio de efluentes, parte da energia do substrato
é conservada na forma de produtos reduzidos, como metano e hidrogênio. No entanto,
para que a energia seja utilizada é necessário fazer a separação, purificação e incineração
destes produtos. Desse modo, a produção de energia elétrica por CEMs a partir de
resíduos orgânicos pode ser uma vantagem do ponto de vista da utilização em relação aos
processos tradicionais [20].
Usualmente, Células de Energia Microbiana têm o objetivo de capturar a energia
elétrica produzida durante a fermentação, mas conforme dito anteriormente, o baixo
potencial produzido tem limitado sua aplicação [21]. Entretanto, a introdução de um
eletrodo no reator pode favorecer a atividade microbiana, indicando um caminho para a
otimização desses dispositivos, exemplos disso são o aumento da remoção de DQO e a
melhora na degradação de compostos recalcitrantes [22-24]. Seguindo essas observações,
nesta proposta, introduzimos uma diferença de potencial entre os eletrodos a fim de
estimular o processo fermentativo. Isso significa que ao invés de capturarmos o potencial
produzido durante a fermentação, estaremos introduzindo energia no sistema. Apesar de
esse sistema constituir-se como uma CEM operando de maneira inversa, o funcionamento
continua baseado no fornecimento de uma rota alternativa para os elétrons produzidos
durante a fermentação anaeróbica. Para caracterizar essa inovação e melhor representar
sua função de estimular o processo fermentativo, nossos reatores serão referidos como
Reatores Anaeróbicos Eletro-Assistidos (RAEA).
12
2. OBJETIVOS
13
3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
14
favoráveis para o desenvolvimento de anaeróbios estritos dos seguintes gêneros:
Pseudomonas, Bacillus, Clostridium, Micrococcus, ou Flavobacterium [28, 29].
Os ácidos graxos de cadeia curta, outros que não acetato, produzidos durante a
etapa de acidogênese são convertidos a acetato, H2 e CO2 por bactérias acetogênicas.
Nesta etapa, bactérias acetogênicas obrigatoriamente redutoras de prótons estão
envolvidas nas seguintes reações: (i) oxidação de alcoóis, tais como etanol, a acetato e H2
ou outro ácido carboxílico correspondente; (ii) oxidação de ácidos graxos de número par
de carbono a acetato e H2 ou oxidação de ácidos graxos de número ímpar de carbono a
acetato, propionato, e H2; (iii) descarboxilação de propionato a acetato, CO2 e H2; e (iv)
eventualmente, outras reações. Deste modo, embora propionato e butirato sejam os
substratos de maior relevância, lactato, etanol metanol e até mesmo H2 e CO2 podem ser
convertidos a acetato nesta etapa [28, 30, 31]. Diversos micro-organismos estão
envolvidos nesta etapa. Bactérias da espécie Syntrophomonas wolfei degradam ácidos
orgânicos de cadeia linear de quatro a oito átomos de carbono a acetato e H2 ou a acetato,
propionato e H2. Enquanto que bactérias da espécie Syntrophobacter wolinii degradam
propionato a acetato, H2, e CO2. [31, 32]. Bactérias como Methanobacterium suboxydans
metabolizam ácido pentanóico a propionato, enquanto Methanobacterium propionicum
são responsáveis pela decomposição do ácido propiônico em ácido acético [29, 33].
O acúmulo do hidrogênio produzido durante a acetogênese apresenta efeitos
inibitórios sobre os micro-organismos que realizam esse processo. Portanto, a simbiose
entre bactérias acetogênicas com metanogênicas autotróficas é necessária para manter os
níveis de hidrogênio baixos. Em biorreatores, acetogênese é uma fase que representa a
eficiência da produção de biogás, já que a maior parte do metano presente no biogás tem
o acetato como origem [29, 34].
O metano é o composto orgânico mais reduzido e, portanto, o último degrau da
cadeia alimentar anaeróbia. Metanogênicas são responsáveis por essa etapa e de suma
importância para que ocorra a completa mineralização dos compostos orgânicos [35]. A
maioria das metanogênicas são hidrogenotróficas e podem reduzir CO2 a metano com H2
como doador primário de elétrons. A redução de CO2 por esses micro-organismos é feita
sucessivamente, passando por formil, metileno e metil antes de formar metano (Figura
1). Inicialmente, o CO2 se liga à coenzima metanofurano (MFR) e é reduzido a formil.
Neste primeiro passo da redução, o elétron é doado diretamente pela ferrodoxina, que foi
previamente reduzida pelo H2. O grupo formil é então transferido para coenzima
tetrahidrometanopiterina (H4MPT) com a qual forma um complexo (formil-H4MPT). O
15
grupo formil do complexo sofre uma desidratação seguida de redução formando
metileno-H4MPT. Após outro passo de redução forma-se metil-H4MPT. Nestes dois
passos a doação de elétrons é feita pela coenzima F420 previamente reduzida por uma
molécula de H2. Por fim, o grupo metil é transferido para coenzima M (CoSM) formando
o complexo CH3-SCoM. Neste último passo, a coenzima B (CoB ou S-HTP) é doadora
direta de elétrons. Ao transferir o elétron para redução do grupo metil a metano, a
coenzima B se liga à Coenzima M (CoM-S-S-HTP). As coenzimas são regeneradas
através de uma hetero-dissulfeto redutase (MCR) que novamente usa H2 como doador de
elétrons [36-40].
O último passo da metanogênese é importante para conservação da energia das
reações de oxi-redução por esses micro-organismos, já que a transferência de elétrons do
H2 para CoM-S-S-MTP ocorre na membrana produzindo uma força próton motora (Δp)
que pode ser utilizada para produção de ATP via ATP-sintase. Outra etapa também
descrita como sendo relacionada à conservação de energia em metanogênicas é a
transferência do grupo metil da metil-H4MPT para CoSM. Esta reação é exergônica e a
energia é conservada por meio do bombeamento de Na+ para o interior de vesículas
invertidas criando uma força sódio-motora primária que pode ser utilizada para produção
de ATP via um segundo tipo de ATP-sintase. Algumas metanogênicas hidrogenotróficas
podem também utilizar formato como principal doador de elétrons. Nesse caso, quatro
moléculas de formato são oxidadas a CO2 pela formato desidrogenase antes que uma
molécula de CO2 seja reduzida a metano [36, 37, 41]
16
FIGURA 1 - Etapas da metanogênese a partir de CO2: 1, ligação do CO2 a MRF e redução a formil
com doação de elétrons direta pela ferrodoxina previamente reduzida pelo H2; 2, transferência do grupo
formil para coenzima H4MPT; 3 desidratação e 4, redução do formil formando metileno-H4MPT; 5, redução
do metileno formando-se metil-H4MPT; 6, transferência do grupo metil para CoSM, 7 redução a metano
com S-HTP como doadora direta de elétrons e 8 regeneração das coenzimas com H2 como doador de
elétrons. Adaptado de White, 2007 [37] .
17
A produção de metano a partir de acetato segue os seguintes passos: transporte do acetato
para dentro da célula; ativação do acetato a acetil-CoA; quebra das ligações C-S e C-C da
molécula de CH3CO-SCoA com a concomitante geração de CO2, 2[H] e CH3; Formação
do complexo do grupo metil com a coenzima M (CH3-CoM) e, finalmente, redução do
complexo CH3-CoM para formação de CH4 [36, 43].
O íon acetato é transportado para o interior da célula por Methanosarcina sp via
antiporte bicabornato/acetato. Antes da clivagem, a ativação do acetato, pela conversão a
acetil-CoA é feita por meio das coenzimas acetato quinase e fosfotransacetilase. Nesta
etapa de ativação é gasto um mol de ATP para cada mol de acetato. Deste modo, os passos
seguintes precisam formar mais de um mol de ATP para tornar o processo vantajoso. Em
Methanothrix a ativação do acetato ocorre em apenas um passo por meio de uma acetil-
CoA sintetase. Nestes micro-organismos, a ativação de um mol de acetato requer dois
moles de ATP. O uso deste dispendioso meio de ativação é um fato surpreendente do
metabolismo desses micro-organismos, uma vez que a produção de ATP precisa ser
superior a 2 mols de ATP por mol de acetato, que é considerado um substrato pobre.
Embora Methanosarcina sp tenham o ônus de produzir um maior número de enzimas, o
elevado custo energético da ativação do acetato em Methanothrix faz com que o
crescimento destes microrganismos tenha menor rendimento e menor taxa [37, 43].
Após o processo de ativação, a molécula de Acetil-CoA se combina com a
coenzima monóxido de carbono desidrogenase (CODH) que catalisa três reações: a
quebra da ligação C-S, liberando a CoA; a quebra da ligação C-C, formando carbonila
[CO] e metil [CH3]; e a oxidação do grupo carbonila a CO2. Em seguida, o grupo metil é
transferido para H4MPT que o transfere em seguida para coenzima M. Assim como na
via hidrogenotrófica, a redução do metil a metano é feita com a participação da CoB (S-
HTP) formando CoM-S-S-HTP. A regeneração das coenzimas M e B, isto é, a redução
do CoM-S-S-HTP, é feita pelo elétron removido do grupo carbonila e é justamente a via
de transporte de elétrons que une esses dois passos que gera o Δp a partir do qual tais
bactérias são capazes de produzir ATP [37, 43]. A via de produção de metano a partir de
acetato está representada na figura 2.
18
FIGURA 2 – Produção de metano a partir de acetato: 1, Ativação do acetato com gasto de ATP
formando acetil-CoA; 2, Formação do complexo com a CODH e quebra da ligação C-C da molécula de
acetato; 3, Quebra da ligação S-S com liberação da CoA; 4, oxidação do grupo carbonila a CO2 e
transferência do grupo metil para coenzima H4MPT; 5 transferência do grupo metil para CoSM, 6 redução
a metano com S-HTP como doadora direta de elétrons e 7 regeneração das coenzimas usando H2 como
doador de elétrons. Adaptado de White, 2007 [37].
Para que a cadeia alimentar anaeróbia proceda até a completa mineralização dos
compostos orgânicos, é necessário um eficiente equilíbrio entre as taxas de reação dos
vários passos que a compõem. A fase da acidogênese é geralmente a etapa mais rápida da
digestão anaeróbia, de modo que a produção de ácidos ocorre rapidamente quando o
substrato está disponível. Por outro lado, a hidrólise constitui a etapa limitante, de modo
que a liberação lenta do substrato evita a acidificação do sistema, o que prejudicaria as
demais etapas. Uma vez que o equilíbrio é quebrado, o processo metanogêneses é
interrompido [44, 45].
19
3.2. Fermentações
Conforme descrito, a cadeia alimentar anaeróbia é composta por quatro etapas:
hidrólise, acidogênese, acetogênese e metanogênese. Nas etapas de acidogênese e
acetogênese diversos ácidos são produzidos por meio de diferentes rotas metabólicas
conhecidas por fermentações. Entende-se por fermentação processos biológicos
quimiorganotróficos que não envolvem cadeia respiratória. Isso é verdadeiro
independente se o aceptor final de elétrons da cadeia respiratória é oxigênio, o que
caracterizaria um processo de respiração aeróbia, ou outra molécula, como por exemplo
nitrato, sulfato ou fumarato, o que caracterizaria a respiração anaeróbia. Desta forma,
durante a fermentação, as moléculas reduzidas produzidas na oxidação da matéria
orgânica, especialmente NADH, são reoxidadas pelos metabólitos produzidos pela via
fermentativa [37, 41].
Lactato é um produto muito comum em fermentações bacterianas. Bactérias que
produzem lactato como único ou principal produto de fermentação são conhecidas como
bactérias ácido-láticas, o que inclui bactérias dos gêneros Lactobacillus,
Sporolactobacillus, Streptococcus, Leuconostoc, Pediococcus e Bifidobacterium. As
principais vias utilizadas por esses micro-organismos são as fermentações
homofermentativa e heterofermentativa. Nesta primeira, a bactéria utiliza a via glicolítica
Embden-Meyerhof-Parnas (EMP) para oxidar glicose a piruvato, que em seguida é
reduzido pelos elétrons produzidos na via oxidativa formando lactato. Esta via tem o
rendimento de duas moléculas de ATP por glicose. Já a via heterofermentativa tem como
produtos de fermentação CO2 e etanol além de lactato. Micro-organismos que utilizam
esta via oxidam a glicose por meio de uma via conhecida como via das pentoses-fosfato.
Nesta via, reações de oxidação, descarboxilação e isomerização produzem xilose-5-
fosfato como intermediário, esta molécula é então quebrada formando fosfogliceraldeído
e acetil fosfato. A partir daí, o fosfogliceraldeído é oxidado a piruvato e o piruvato
reduzido a lactato por meio de reações semelhantes às que ocorrem na via homolática. Já
o acetil fosfato é reduzido a etanol. Nesta via, o rendimento é de apenas um ATP por
molécula de glicose [37, 41].
Embora fermentações sejam caracterizadas pela produção de compostos
reduzidos, os quais servem de destino para os elétrons removidos durante a oxidação da
matéria orgânica, alguns micro-organismos ainda são capazes de produzir ATP neste
processo. A produção de ATP durante a fermentação pode estar associada à produção de
acetato. Apesar da possibilidade de gerar ATP durante a fermentação, o rendimento é
20
limitado pela necessidade de produzir aceptores de elétrons. São exemplos disso as
fermentações propiônica e ácido-mista.
A fermentação propiônica pela via succinato-propionato (Figura 3) é realizada por
propionibactérias, as quais metabolizam hexoses e lactato produzindo propionato, acetato
e CO2. Nesta via, de cada três moléculas de lactato, apenas uma é direcionada para
produção de ATP. Isso ocorre justamente devido à necessidade de produzir um aceptor
de elétrons para destinar os elétrons oriundos da oxidação do substrato, permitindo o
balanceamento da via metabólica. Quando três moléculas de lactato são oxidadas a outras
três de piruvato, seis elétrons são transferidos para moléculas carreadoras. A estes se
somam mais um par de elétrons oriundos da oxidação de uma molécula de piruvato a
acetato com produção de ATP. Os oito elétrons gerados são utilizados ao longo de uma
via redutiva que culmina na formação de duas moléculas de propionato [37, 46]. Deste
modo, dois terços do piruvato formado por este micro-organismo deixam de ser utilizados
para produção de ATP devido à necessidade deste micro-organismo de produzir seus
aceptores de elétrons.
21
FIGURA 3 – Fermentação propiônica pela via succinato-propionato. A reação 1 é catalisada pela
lactato desidrogenase (uma flavoproteina é o aceptor dos elétrons formados); a segunda reação é catalisada
por piruvato desidrogenase com NAD+ como aceptor de elétrons; a produção de acetato com geração de
ATP (3) é catalisada pelas enzimas fosfotransacetilase e acetato quinase. Já a produção de propionato é
catalisada pelas enzimas: 4, Metilmalonil-CoA carboxitransferase; 5, malato desidrogenase; 6, fumarase;
7, fumarato redutase; 8,CoA transferase e 9 metilmalonil-CoA racemase. Adaptado de White, 2007 [37].
22
e formato. O acetil-CoA pode ser oxidado a acetato e produzir ATP ou sofrer duas etapas
de redução com o consumo de quatro elétrons para produção de etanol. A produção de
succinato é feita a partir do fosfoenolpiruvato, intermediário da via glicolítica de Embden-
Meyerhoff-Parnas, o qual é carboxilado formando oxaloacetato o que é convertido a
succinato após dois passos de redução que consome ao todo quatro elétrons.
Naturalmente, a formação dos produtos é determinada pela produção de elétrons durante
a glicólise, de modo que apenas algumas proporções são compatíveis com o balanço das
reações [37, 47].
23
Deste modo, este microrganismo produz duas moléculas de H2 ao oxidar uma molécula
de glicose a duas moléculas de piruvato e outras duas ao oxidar as duas moléculas de
piruvato a outras duas de Acetil-CoA. A partir daí, uma molécula de Acetil-CoA é
oxidada a acetato com produção de ATP enquanto outra é destinada à produção de etanol
em uma via redutiva [37, 41].
24
3.3. Células de Energia Microbiana
3.3.1. Princípio de funcionamento
O conceito de produção microbiana de eletricidade foi demonstrado
primeiramente por Potter em 1910, quando usou culturas de Escherichia coli e
Saccharomyces sp. para produzir pequenas quantidades de energia elétrica, utilizando
eletrodos de platina como aceptores de elétrons [9]. Células de energia microbiana
(CEMs) são dispositivos baseados neste princípio, nos quais a energia armazenada em
compostos orgânicos é convertida em energia elétrica por meio de reações catalisadas por
micro-organismos [21, 48, 49].
Uma CEM típica é constituída por duas câmaras separadas por membrana semi-
permeável. A câmara anódica contém micro-organismos que oxidam substratos formando
H+ e outros produtos metabólicos. Os elétrons resultantes da oxidação do substrato são
transferidos para o anodo e transportados para o catodo através do circuito externo, onde
podem ser utilizados para realizar trabalho. Desse modo, para que haja geração de
corrente elétrica, a câmara anódica deve ser anaeróbia evitando que micro-organismos
degradem o substrato utilizando o oxigênio como aceptor de elétrons [8, 21, 48, 49]. Os
H+ formados durante o processo fermentativo formam um gradiente de concentração entre
as câmaras, o qual estimula a passagem desses cátions através da membrana em direção
à câmara catódica, onde podem se combinar com oxigênio para formar água.
Alternativamente, os elétrons podem ser diretamente usados para a produção de gás H2
caso a câmara catódica seja também mantida em anaerobiose [12, 50].
A figura 6 mostra o esquema de funcionamento de uma CEM típica, como
descrito, com câmara catódica aeróbia, formando água como produto final.
25
FIGURA 6 – Representação esquemática do funcionamento de CEM. Em CEM típicas o substrato
é oxidado a CO2 por meio de micro-organismos que catalisam a reação e transferem elétrons a um anodo.
Os elétrons gerados são conduzidos a um catodo por um circuito externo. A oxidação do substrato acarreta
na formação de H+, que atravessa uma membrana semipermeável devido à diferença de concentração e
reage com elétrons e oxigênio produzindo água [11].
26
fermentativos e metanogênicos sem produção de eletricidade. A abundância e a
renovabilidade de materiais lignocelulolíticos a partir de resíduos agrícolas torna-os uma
matéria-prima promissora para a produção de energia renovável. No entanto, a
degradação da estrutura lignocelulósica até mono ou oligossacarídeos é muito lenta, de
modo que é necessária uma aceleração da degradação inicial, por meio de processos
físico-químicos e enzimáticos, para favorecer a geração de eletricidade em CEM [54]. Os
custos, inclusive energéticos, desses pré-tratamentos ainda são fatores limitantes para o
uso de celulose como fonte de biomassa para a produção de energia, de forma que fontes
abundantes de substratos mais simples ainda são o principal foco de estudos em CEM
[52], tais como resíduos da indústria de alimentos.
Efluentes da indústria de alimentos são considerados ideais para a geração de
eletricidade por CEM devido ao rico conteúdo orgânico, alta biodegradabilidade e
disponibilidade abundante [20]. Uma grande variedade de efluentes da indústria de
alimentos tem sido investigada para a geração de eletricidade usando CEM, incluindo
resíduos de cervejaria [61], laticínios [59], efluentes da produção de amido [58] e outras
indústrias de processamento de alimentos [57].
Dentre os efluentes passíveis de tratamento por CEMs, o soro de queijo destaca-
se por suas propriedades físico-químicas, custo e abundância. O soro é a parte aquosa do
leite que se separa da massa no processo de produção de queijos. O soro representa cerca
de 85-95% do volume de leite, retém 55% dos nutrientes e é altamente biodegradável [62,
63]. A maioria da lactose do leite, cerca de 39 a 60 kg/ m3, permanece no soro de queijo,
constituindo a fração principal (90%) da carga orgânica [64]. A produção de soro é
estimada em 0,8-0,9 L por L de leite processado, ou 9 kg por kg de queijo produzido [65].
Devido ao grande volume produzido e à elevada carga orgânica, que lhe confere elevado
potencial poluente, o soro é o principal subproduto da indústria de lacticínios [66]. Por
outro lado, elevada biodegradabilidade e elevado volume produzido também fazem do
soro de queijo um substrato interessante para ser usado em CEMs.
Substratos complexos ajudam a estabelecer uma comunidade microbiana
diversificada, mais robusta e eletroquimicamente ativa em CEMs, enquanto substratos
simples melhoram a produção de energia elétrica. A eficiência e viabilidade econômica
de conversão dos resíduos orgânicos em bioenergia dependerão das características e dos
componentes do efluente, de modo que sua composição química é de grande relevância.
A conversão dos resíduos orgânicos em eletricidade é eficiente quando estes são oxidados
completamente a dióxido de carbono, indicando que houve máxima conversão do
27
substrato em energia elétrica. Por outro lado, a formação de compostos reduzidos é
indicativa de baixo desempenho energético da CEM [17, 52, 55].
Para que se expandam as utilizações práticas de CEM, é importante conhecer
quais fatores influenciam sua eficiência. A potência de saída da CEM é dependente da
taxa de degradação do substrato, da taxa de transferência de elétrons a partir de bactérias
para o anodo e da transferência de massa de H+ no líquido [18]. Fatores como difusão
de reagentes (substratos, elétrons, mediadores) e cinética das reações, ambos na superfície
do eletrodo, determinam se o desempenho será limitado pela atividade microbiana ou pela
transferência de massa. A atividade microbiana está intimamente relacionada à densidade
de micro-organismos no reator e à sua afinidade pelo substrato. Em outras palavras, a
cinética microbiana afetará diretamente a eficiência da CEM, o que inclui a taxa máxima
do crescimento específica das bactérias (μmax) e da constante de afinidade pelo substrato
(Ks) [19]. A transferência de massa e a cinética das reações, por sua vez, são influenciadas
pela vazão, presença de solutos em ambas as câmaras, pela área disponível para o
transporte de solutos entre o anodo e o catodo, condições de biofilme e por características
do eletrodo, tais como tamanho, forma, arranjo, material e propriedades químicas da
superfície. Em baixas densidades de corrente, perdas de desempenho ocorrem devido à
energia de ativação que deve ser superada pelas espécies reagentes. Em densidades de
corrente medianas a perda de desempenho predominante é devida à condução iônica e
eletrônica. Em densidades de corrente elevadas, por volta de 3 Wm-2, o fator que acarreta
a maior perda de eficiência são as limitações de transporte de massa [21, 67, 68].
Embora a maioria dos estudos de CEM sejam conduzidos em escala laboratorial,
a necessidade de ampliar a escala desses biorreatores é premente para alcançar os níveis
de energia interessantes e tornar o dispositivo adequado para aplicações reais, tais como
instalações de tratamento de águas residuais. Altas densidades de energia foram
alcançadas usando reatores laboratoriais pequenos, porque eles têm baixas perdas
ôhmicas, devido à distância entre os eletrodos ser pequena e ao tempo de difusão de
prótons ser curto. Além disso, o aumento do volume do reator leva a um aumento da
resistividade por volume. O aumento de escala de CEM exige melhor compreensão dos
efeitos do desenho do reator e de modo de funcionamento em densidades de potência
volumétricos [12, 67].
Desse modo, considerando as possíveis causas de perda de desempenho, várias
medidas podem ser feitas com o intuito de minimizá-las, como por exemplo: seleção dos
28
micro-organismos, mediadores e substratos, bem como modificações no projeto,
incluindo redução do espaçamento e melhorias na estrutura dos eletrodos.
29
Alguns micro-organismos podem utilizar compostos que ocorrem naturalmente,
inclusive metabólitos, como mediadores. Ácido húmico, antraquinona, sulfatos e
tiossulfatos são exemplos de mediadores naturais, pois são capazes de transferir elétrons
do interior da célula para anodo [48]. Porém, se este não for o caso, mediadores exógenos
sintéticos, tais como vermelho neutro, azul de metileno, tionina, 2-hidroxi-1,4-
naftoquinona e Fe(III)EDTA, podem ser adicionados aos reatores com o intuito de
favorecer a transferência de elétrons. No entanto, o uso de mediadores pode causar
problemas ambientais indesejáveis e aumentar o custo de operação [21].
Na década de 1990, foi relatado que algumas espécies de bactérias são capazes de
realizar a transferência de elétrons a taxas significativas sem a necessidade de adição de
mediadores, isto é, são capazes de formar biofilmes na superfície e transferir elétrons
diretamente para o anodo. Estes micro-organismos são operacionalmente estáveis e
proporcionam uma elevada eficiência elétrica. Estas descobertas favorecem a tecnologia
de CEM, pois mediadores são dispendiosos e podem ser tóxicos, o que faz de CEMs
baseadas em bactérias capazes de fazer transferência sem a adição de mediadores mais
adequadas a aplicações práticas. Inicialmente, relatou-se o crescimento de Shewanella
putrefaciens utilizando eletrodo como o único aceptor de elétrons, sem a adição de um
mediador artificial [70]. Subseqüentemente, foram relatadas outras espécies bacterianas
igualmente capazes de utilizar eletrodo como aceptor de elétrons, incluindo Shewanella
oneidensis, Geobacter sulfurreducens, Rhodoferax ferrireducens, Pseudomonas
aeruginosa, Clostridium butyricum, Aeromonas hydrophila, Enterococcus gallinarum, e
Geobacter metallireducens [12, 69, 71]
As investigações de como as bactérias redutoras de metais utilizam óxidos como
aceptores de elétrons levaram à descoberta de diversos mecanismos de transferência
extracelular de elétrons. As bactérias podem produzir mediadores extracelulares
(moléculas carreadoras), como foi descrito para espécies de Shewanella, Geothrix sp. e
Pseudomonas sp, ou transferir diretamente elétrons pelos citocromos de membrana,
conforme apresenta a figura 7. Alguns micro-organismos, por exemplo, Shewanella
oneidensis, utilizam os dois mecanismos de transferência extracelular de elétrons [12].
Novas investigações revelaram também um terceiro mecanismo potencial que envolve
pili capazes de transferir elétrons chamados nanofios. Este método foi proposto em
Geobacter sulfurreducens, e comprovado quando a deleção do gene responsável pela
produção do pilus levou à incapacidade de geração de corrente [69, 71].
30
FIGURA 7 – Mecanismos de transferência de elétrons a anodos por micro-organismos.
Alguns micro-organismos são capazes de transferir elétrons a um anodo sem que haja adição de mediadores.
Para isso, os micro-organismos podem produzir os próprios mediadores ou realizar a transferência direta
através de estruturas proteicas. Adaptado de Rabaey e Verstraete, 2005 [19].
31
que muitos, senão a maioria, dos micro-organismos ligados ao anodo podem estar
utilizando-o somente como uma superfície para a fixação. A fixação de micro-organismos
que não são eficazes na produção de corrente pode afetar consideravelmente a eficiência
da conversão da matéria orgânica em eletricidade [17], pois consomem o substrato sem
que isso represente a conversão do mesmo em energia elétrica.
A capacidade real de redução do eletrodo pode ser melhor determinada com o uso
de culturas definidas. Uma estratégia comum para isolar micro-organismos capazes de
reduzir o eletrodo é empregar Fe (III) como um aceptor de elétrons, pois muitos dos
micro-organismos eficazes na produção de corrente são Fe (III) redutores, porém, nem
todos os micro-organismos produtores de corrente reduzem eficazmente Fe (III). Outra
estratégia é isolar micro-organismos capazes de utilizar aceptores de elétrons alternativos,
como é o caso de micro-organismos anaeróbios facultativos [17].
Embora a capacidade de redução possa ser melhor estabelecida para culturas
puras, deve-se considerar que, dependendo das condições operacionais, consórcios
microbianos são mais eficientes se comparados a culturas puras, pois promovem
versatilidade microbiana na utilização de substrato [55]. Espécies dos gêneros Geobacter,
Shewanella e Rhodopseudomonas, por exemplo, foram classificadas como bactérias
produtoras de alta potência em culturas puras, porém, as maiores potências foram
alcançadas em consórcio [71]. Quando a CEM é alimentada com substratos orgânicos
complexos, como é o caso de efluentes, é de esperar que alguns micro-organismos
fermentem estes compostos produzindo substratos mais simples que possam ser usados
por micro-organismos que reduzem o eletrodo. Tais micro-organismos fermentativos
podem ter pouca ou nenhuma capacidade de transferir elétrons para o anodo, mas o seu
metabolismo é importante para o funcionamento das CEMs. Deste modo, para avaliar o
potencial de micro-organismos para doar elétrons aos eletrodos, pode ser importante
considerar a importância destas comunidades bacterianas heterotróficas no sistema como
um todo. A análise da taxa de transferência de elétrons para eletrodos em diferentes
condições de tensão, de potencial do anodo, de resistência externa e de densidade celular
pode ajudar na compreensão da capacidade de produção de energia, não só de culturas
puras, mas também de comunidades microbianas [17].
3.3.3. Construção
A construção das CEM afeta consideravelmente sua eficiência. O anodo é um
aspecto de extrema importância, seu potencial de oxi-redução é determinante para o
32
metabolismo bacteriano e, portanto, para a produção de energia. Outras propriedades
físicas e químicas do eletrodo, tais como a área de superfície, condutividade elétrica e
estabilidade química, são determinantes na adesão microbiana, na transferência de
elétrons e na velocidade de reação na superfície do eletrodo [19, 73]. A membrana
separadora é outro componente determinante para a eficiência de CEM. Embora CEMs
de câmara única estejam sendo testadas [74-76], a ausência de um separador aumenta a
difusão do oxigênio e do substrato, o que reduz a eficiência elétrica e a atividade dos
micro-organismos no anodo [53]. Além disso, o uso de membranas aumenta a resistência
interna total e os custos de uma CEM [53]. Embora a eficiência seja um fator determinante
para viabilizar o uso de CEM, deve-se também considerar a importância de conciliá-la a
um custo apropriado, uma vez que este é um fator determinante para o sucesso desta
tecnologia.
Para o funcionamento adequado de CEM, o anodo tem que proporcionar um
ambiente adequado para que os micro-organismos possam aderir e transferir elétrons,
enquanto que o catodo deve facilitar a ocorrência de reações de oxidação. Os principais
requisitos para anodos são: alta condutividade; elevada área superficial, conferir boa
adaptabilidade dos micro-organismos, estabilidade química, resistência mecânica elevada
e de baixo custo. Materiais carbonáceos são os materiais mais utilizados para anodos de
CEM devido à alta biocompatibilidade, estabilidade química, condutividade e baixo
custo. Diferentes apresentações desses materiais estão sendo utilizadas para aumentar a
área superficial e a capacidade de adesão dos micro-organismos [18, 21, 73]. Os materiais
carbonáceos mais usados são: (i) bastão de grafite, usado devido à boa condutividade
elétrica e estabilidade química; (ii) Papel e tecido de carbono, cuja principal vantagem é
a redução da distância entre os dois elétrodos; (iii) feltro de carbono, que por ser um
material espesso confere mais espaço para o crescimento bacteriano; (iv) escova de fibra
de carbono, especialmente atraente devido à sua elevada área superficial e baixa
resistividade elétrica; (v) carbono vítreo reticulado, menos utilizado devido à sua baixa
condutividade; (vi) nanotubos de carbono, promissor devido à sua grande área superficial
específica, excelente estabilidade e condutividade; e (vii) não carbonáceos como aço
inoxidável e titânio, cuja superfície lisa não facilita a adesão de bactérias de modo que
densidades de potência satisfatórias não são atingidas [18, 21, 69, 73].
O aumento da área superficial do eletrodo é uma forma eficaz de melhorar o
desempenho de uma CEM, pois aumenta a área para a transferência de elétrons [77]. Para
aumentar a área de superfície disponível para as bactérias, o uso de eletrodos à base de
33
carbono em formas de enchimento está se tornando cada vez mais comum. De modo
semelhante a um filtro biológico, o compartimento do anodo pode ser preenchido com
um material condutivo granular ou de forma irregular [18]. A partícula de grafite é o
material de enchimento mais utilizado no compartimento do anodo, mas carvão ativado
granular, utilizado em processos de tratamento de águas residuárias, tem demonstrado
elevado potencial de uso por se tratar de um material barato, durável e com uma elevada
área superficial que pode melhorar significativamente a adesão bacteriana [78].
Os materiais do catodo também têm um grande impacto sobre a capacidade de
CEM, devendo ter um elevado potencial redox e facilidade de capturar H+ [18]. Assim
como para o anodo, a área superficial também é um critério para seleção do catodo, bem
como a sua propensão a catalisar reações de redução. Aliar a capacidade catalítica do
catodo a um custo viável tem sido um grande desafio na construção de CEMs. O eletrodo
de platina é conhecido por sua excelente capacidade catalítica, no entanto, o alto custo
limita a escala de operação. Metais como ouro e titânio são inertes e destacam-se por sua
estabilidade, mas, assim como a platina, não cumprem os requisitos de desempenho e de
custo [21].
Embora ainda pouco comum em estudos com CEMs, micro-organismos podem
catalisar as reações de redução na câmara catódica. Nestes sistemas, eletrodos de baixo
potencial doam elétrons indiretamente para micro-organismos através da produção de
hidrogênio ou da redução de moléculas que atuam como transportadoras de elétrons. No
entanto, os micro-organismos também podem aceitar elétrons diretamente da superfície
do catodo oxidando-o [79]. Os chamados biocatodos têm atraído grande interesse devido
às suas vantagens sobre os catodos abióticos, por exemplo, redução de custos e operação
sustentável. No entanto, investigações detalhadas são necessárias para a caracterização e
otimização de biocatodos para aplicações práticas [13, 21].
No que se refere a CEM de câmara única com catodo exposto ao ar, estudos em
escala laboratorial têm utilizado catodos constituídos por tecido de carbono enriquecido
com partículas de platina (Pt), que atuam como eletro-catalisadores na redução do
oxigênio. O tecido de carbono pode ser substituído por uma malha de aço inoxidável,
sendo que essa configuração do eletrodo destaca-se pelo baixo custo, baixa resistência e
flexibilidade para construção de catodos planos ou tubulares. No eletrodo de aço
inoxidável as partículas de platina podem ser substituídas por outros catalisadores tais
como cobalto (Co), tetra-metil-piridil-porfirina de cobalto (CoTMPP) e polipirrol (PPy).
34
Estas substituições significativas de materiais de catodo podem aumentar a viabilidade da
aplicação prática de CEM [18, 73, 80].
Similares às células de energia química, as câmaras da CEM são separadas
fisicamente por membranas que permitem o transporte de íons para a câmara catódica de
modo a sustentar produção da corrente elétrica [81]. Trata-se de um componente
determinante da eficiência de CEM. Embora qualquer material permeável possa
funcionar, teoricamente, como separador de câmaras em uma CEM [82], existem algumas
características desejáveis como alta condutividade de prótons, baixo coeficiente de
difusão de oxigênio, baixo custo e resistência mecânica [83]. A retirada da membrana
pode causar diversos inconvenientes ao funcionamento de uma CEM. Para superar o
efeito negativo de difusão de oxigênio, os eletrodos devem possuir um maior
espaçamento, o que resulta em um significativo aumento da resistência interna. Além
disso, a difusão do substrato contamina o catodo e causa incrustações que prejudicam o
desempenho da CEM, especialmente tratando-se de efluentes complexos cujas condições
favorecem a prevalência de consórcios microbianos [53, 84]. Se por um lado a separação
é necessária para assegurar o funcionamento eficiente de uma CEM, por outro lado o uso
do separador também provoca uma série de problemas.
A principal limitação causada pelo uso de separadores entre as câmaras de CEMs
é a limitação na transferência de H+, o que leva ao aumento do pH na câmara catódica e
sua diminuição na câmara anódica, desestabilizando o sistema e acarretando perda de
desempenho. A adição de separador também pode afetar o desempenho de uma CEM
caso aumente significativamente a sua resistência interna [82]. Além disso, durante a
operação, podem ocorrer incrustações na membrana, principalmente biofilmes que
comprometem não somente o desempenho das CEM, mas também sua viabilidade uma
vez que a membrana danificada precisa ser recuperada ou substituída, aumentando os
custos de manutenção. Por fim, os sítios de ligação de H+ em membranas trocadoras de
prótons (PEM) podem ser rapidamente substituídos por íons metálicos presentes no meio,
além do custo elevado que é uma grande barreira ao seu uso, especialmente para
aplicações práticas [53, 85].
Não obstantes às suas limitações, as membranas trocadoras de prótons são as mais
amplamente utilizadas em CEMs devido à maior condutividade de cátions e menor
resistência interna se comparadas a outros materiais de separação aplicáveis, tais como
membranas de ultrafiltração, membranas de troca catiônica e membranas de troca
aniônica [11, 85]. A membrana de troca catiônica mais utilizada em CEM é a Nafion®
35
(DuPont, EUA), que consiste de uma matriz hidrofóbica na qual grupos sulfonato,
hidrofílicos, estão fixados. Essa construção confere alta condutividade para vários
cátions, mas tal inespecificidade limita a eficiência da membrana de troca catiônica em
CEM. Tal fato ocorre devido ao transporte competitivo de outros cátions, que contribui
para o acúmulo de H+ na câmara anódica e inibe a atividade dos micro-organismos.
Devido à ineficiência de membranas de troca catiônica no transporte de H+, alguns
pesquisadores voltaram seus olhos para membranas de troca aniônica. As membranas de
troca aniônica realizam a transferência de H+ utilizando fosfato ou carbonato como
transportadores (Figura 8), cujo efeito tampão também contribui para um melhor
equilíbrio do pH [53]. Recentemente, têm-se avaliado o uso simultâneo de membranas de
troca catiônica e de troca aniônica. As chamadas membranas bipolares, ao contrário das
membranas monopolares, que transportam apenas íons positivamente ou negativamente
carregados, permitem a difusão simultânea de H+ e íons hidróxido, o que melhora a
estabilidade do pH nas câmaras [53, 86].
37
3.4. CEM no tratamento de efluentes
Atualmente, o tratamento de águas residuais ricas em compostos orgânicos é feito
biologicamente, consistindo-se em duas etapas consecutivas: tratamento anaeróbio e pós-
tratamento aeróbio. A etapa anaeróbia tem por objetivo remover substancialmente a carga
orgânica da água residual, porém o efluente dessa etapa raramente atende aos padrões de
emissão vigentes. Portanto, uma unidade de pós-tratamento para remoção da carga
orgânica e inorgânica não degradada é necessária. Esta etapa é geralmente realizada por
meio de processos aeróbios devido à sua elevada capacidade de remoção de matéria
orgânica, compostos sulfurados e nitrogenados [87]. No entanto, as operações desses
reatores, tais como os reatores de lodo ativado [88], demandam grande quantidade de
energia, principalmente na etapa de aeração. Além disso, o processo leva à geração de
grande quantidade de biomassa, que deve ser posteriormente disposta ou tratada
adequadamente. Tais características aumentam substancialmente o custo de operação
[20].
Os tratamentos anaeróbios possuem um grande potencial no tratamento de águas
residuárias devido à sua baixa produção de sólidos, baixo consumo de energia, baixos
custos de implantação e operação, tolerância a elevadas cargas orgânicas e possibilidade
de operação com longo tempo de retenção de sólidos [89]. No entanto, o uso de
tratamentos anaeróbios em larga escala é limitado por demandar grande volume de
fermentação e por apresentar teor residual elevado de matéria orgânica no efluente após
o tratamento [37, 87].
Pelos fatores limitantes explicados anteriormente, a aplicação mais promissora de
CEMs é o tratamento de águas residuais. De fato, CEMs apresentam muitas vantagens se
comparadas a outros processos de tratamento biológico de águas residuais, tais como a
elevada taxa de conversão de energia teórica e redução da produção de lodo [18].
Efluentes da indústria de alimentos são substratos atraentes para gerar eletricidade a partir
de CEMs devido à alta concentração de carboidratos biodegradáveis, o que tem suscitado
um grande número de pesquisas com estes efluentes [57-59, 61].
Quando o tratamento de efluente é o principal objetivo de uma CEM, o parâmetro
de maior interesse é a remoção da Demanda Química de Oxigênio (DQO). Este parâmetro
é um indicativo da eficiência de remoção/oxidação da matéria orgânica pelo sistema. As
propriedades cinéticas do processo de fermentação são o reflexo de propriedades
intrínsecas da atividade microbiana anaeróbia. Em processos aeróbios, a capacidade de
utilizar oxigênio como aceptor final de elétrons e a maior diferença de potencial de oxi-
38
redução entre os substratos e produtos possibilitam taxas de crescimento microbiano mais
elevadas e maior remoção de DQO do que aqueles obtidas em regimes anaeróbios [37,
90]. Embora CEMs sejam sistemas anaeróbios, o uso do eletrodo como aceptor final é o
principal fator que determina a dinâmica favorável destes sistemas. Diante do estímulo
elétrico, a degradação de compostos orgânicos pode ser melhorada de modo que tem sido
relatado um aumento da remoção de DQO. A tabela 1 mostra a remoção de DQO e
produção de eletricidade em CEMs alimentadas com diferentes efluentes.
Efluente de
CEM de câmara única com catodo
processamento 98% 239,4 mW/m2 [91]
ao ar e anodo de papel-carbono
de amido
39
CEM de câmara única com catodo
Efluente
ao ar e anodo de nanofibras de 85% 3,50 W/m3 [98]
doméstico
carvão ativado
40
4. MATERIAL E MÉTODOS
FIGURA 9 – Construção do dispositivo: Vista explodida (2-A) e reator montado (2-B). O reator
foi montado utilizando tubos de PVC soldáveis fechados em uma das extremidades utilizando tampões
(CAPs) e conectados entre si utilizando junções do tipo “luva”. Foram feitos furos nas câmaras para
instalação dos eletrodos, inoculação e retirada de amostra. Os furos foram fechados com borracha butílica.
41
FIGURA 10 – Instalação da membrana: As membranas foram instaladas nas junções tipo “luva”
com o auxílio de um anel de tubo PVC com 50 mm de diâmetro, isto é, mesmo diâmetro dos tubos usados
nas câmaras. A figura 3-A mostra a membrana de troca iônica instalada e a figura 3-B mostra a membrana
de microfiltração instalada com o auxílio de uma tela de aço inoxidável.
42
As CEMs foram montadas conforme descrito utilizando membranas de troca
catiônica como separação das câmaras. As membranas de troca catiônica (Membranes
International - Ringwood-NJ, EUA) foram ativadas em solução de NaCl 5% a 40°C por
24 horas antes da montagem das células seguindo as orientações do fabricante. As
câmaras anódicas foram preenchidas em 80% do volume interno total com carvão ativado
granular (Bonechar-Brasil) previamente lavado exaustivamente com água destilada. Os
reatores foram alimentados com 100 mL da solução de soro na câmara anódica e solução
eletrolítica contendo KCl 0,1 gL-1, NH4Cl 0,2 gL-1 e NaH2PO4 0,3 gL-1 na câmara
catódica. Os inóculos foram obtidos de efluente de biodigestor anaeróbico, lodo de uma
lagoa local (Lago Soledade- Ouro Branco, MG), amostra de solo retirada próxima ao
aterramento de torres de alta tensão e de amostra de outra CEM previamente inoculada
com lodo de lagoa. As CEMs foram varridas com N2 e incubadas a 27°C com o circuito
externo fechado por resistor de 10 K𝝮. A geração de potencial foi monitorada diariamente
por 18 dias pelo método de Potenciometria de Circuito Aberto utilizando potenciostato
(Compacstat 10V@30mA, Ivium, Eindhoven - Holanda).
43
utilizando potenciostato (Compacstat 10V@30mA, Ivium, Eindhoven - Holanda). Após
o período de incubação mediu-se o pH final nos reatores.
44
4.7. Adsorção de lactose por carvão ativado
Para avaliar a interferência do carvão na remoção de lactose, fez-se a análise da
capacidade de adsorção do mesmo. Tubos de anaerobiose estéreis com diferentes
quantidades de carvão (0,00; 0,25; 0,50; 1,00; 2,00; 3,00 e 4,00 g) foram incubados com
10 mL de solução de soro de queijo em pó (Tangará Alimentos, Vila Velha - ES)
reconstituído com DQO inicial de 15.000 mgO2L-1 como na preparação do meio de
cultura da alimentação das CEMs. O experimento de adsorção teve duração de 2 horas e
foi realizado à temperatura ambiente. A lactose remanescente no sobrenadante foi
analisada por HPLC.
𝐷𝑄𝑂𝑖𝑛𝑖𝑐𝑖𝑎𝑙 −𝐷𝑄𝑂𝑓𝑖𝑛𝑎𝑙
𝑅𝐷𝑄𝑂 = ( ) 𝑥 100 (Equação 1)
𝐷𝑄𝑂𝑖𝑛𝑖𝑐𝑖𝑎𝑙
45
Os produtos de fermentação foram analisados por Cromatografia Líquida de Alta
Eficiência (HPLC) em cromatógrafo Dionex Ultimate 3000 Dual (Dionex Corporation,
Sunnyvale, EUA) acoplado a detector de índice de refração Shodex RI-101. As amostras
foram centrifugadas (5000 g por 5 min.) e posteriormente filtradas em filtro de
nitrocelulose 0,22 µm (Unifil - Carvalhaes Produtos Para Laboratório Ltda-RS, Brasil).
Para cromatografia, utilizou-se coluna de troca iônica Phenomenex Rezex ROA
300x7,8mm (Phenomenex Inc. Torrance, CA, EUA) mantida a 40ºC. Como fase móvel,
utilizou-se solução ácida de H2SO4 5 mmol L-1 com fluxo de 0,7 mL min-1. A curva
analítica foi construída a partir da diluição seriada de uma solução estoque contendo o
substrato utilizado nesses experimentos e ácidos orgânicos comumente produzidos
durante uma biodigestão anaeróbica. A solução padrão continha lactose (150 mmol L-1),
succinato (10 mmol L-1), ácido láctico (10 mmol L-1), ácido fórmico (10 mmolL-1), ácido
acético (20 mmol L-1), ácido propiônico (10 mmol L-1), etanol (150 mmol L-1), ácido
butílico (10 mmol L-1), ácido isovalerico (5 mmol L-1) e ácido valérico ( 10 mmol L-1).
A remoção de carbono nos reatores foi calculada com base nos resultados obtidos
através da seguinte formula:
𝐶𝑟𝑒𝑚𝑜𝑣𝑖𝑑𝑜
𝑅𝐶 = ( ) 𝑥100 (Equação 3)
𝐶𝑙𝑎𝑐
46
5. RESULTADOS
47
5.2. Produção de potencial com diferentes membranas
Embora a geração de potencial tenha sido possível com todas as membranas
testadas, o potencial gerado foi dependente do tipo de membrana utilizada, de modo que
CEMs dotadas de diferentes membranas apresentaram diferentes magnitudes de ddp
conforme mostra a figura 13. A membrana de microfiltração apresentou ddp máxima de
62,2mV e ddp média de 40,7mV em 16 dias. A membrana de troca catiônica chegou a
produzir até 31,2 mV, porém a ddp média foi de apenas 11,8 mV. A membrana de troca
aniônica apresentou geração de ddp média de 11,7mV. As medidas de pH dos reatores
com diferentes membranas não apresentaram variações importantes. O pH mais elevado,
de 6,33, foi o do reator contendo membrana de microfiltração, seguido pelo reator com
membrana aniônica, 6,16, e por fim o reator com membrana de troca catiônica com pH
de 6,02.
48
5.3. Efeito da adição de carvão na câmara anódica
A adição de carvão na câmara de fermentação também influenciou a intensidade
do potencial detectado nas CEMs (Figura 14). A CEM não-adicionada de carvão
apresentou geração de ddp média de 8,7mV. A ddp gerada nesta CEM não foi duradoura,
extinguindo-se quase completamente após sete dias de incubação.Por outro lado, CEM
com adição de 45g de carvão ativado à câmara anódica, 0,45g/mL de fermentação, teve
ddp média de 29,1mV. A ddp gerada foi estável, isto é, sem perdas consideráveis da
geração de potencial no período observado. Em CEM adicionada de 90g de carvão
ativado a ddp média foi 33,3 mV.
Assim como a produção de potencial, o pH dos reatores foi afetado pela presença
de carvão nas câmaras de fermentação. O pH final da CEM não-adicionada de carvão foi
3,84, já das CEMs com 45g e 90g de carvão foi de 5,85 e 6,23 respectivamente. O pH
inicial do substrato foi 6,34.
49
5.4. Operação do reator como Reator Anaeróbio Eletro-assistido
A produção de ácidos orgânicos e lactose residual foi avaliada em RAEA e CEM,
utilizando como controle uma CEM em circuito aberto. Não foi detectada lactose residual
na fase líquida de nenhum dos reatores. Da mesma forma, ácido succínico e ácido láctico
não estavam presentes nas amostras em níveis detectáveis. O ácido fórmico foi detectado
apenas no reator controle, não sendo detectado em nenhum dos sistemas
bioletroquímicos. O ácido acético foi produzido em diferentes quantidades pelos três
reatores analisados. Deste modo, RAEA, CEM e controle produziram 218,1, 184,9 e
177,2 mmolL-1 de ácido acético respectivamente. A produção de ácido propiônico
também apresentou diferença entre os reatores. Reatores bioeletroquímicos apresentaram
produção média de 10,7 mmol de ácido propiônico por litro contra 7,5 mmolL-1 no
controle. Da mesma forma, a produção de ácido butírico em sistemas bioeletroquímicos
foi de 78,2 mmolL-1, em média, contra 66,4 mmolL-1 do controle. As produções de lactato,
etanol, ácido isovalérico e ácido valérico não foram expressivas ou não apresentaram
diferença relevante para esse estudo. A produção de ácidos orgânicos nos reatores está
representada na figura 15.
250
200
150
mmol/L
100
50
0
formiato acetato propionato Etanol butirato isovalerato valerato
50
A remoção de matéria orgânica foi medida em termos de remoção de DQO e
remoção de carbono baseando-se na concentração inicial de lactose no leite e na DQO
inicial do meio de cultura. A remoção de carbono foi de 29,3, 39,2 e 32,3% para RAEA,
CEM e controle respectivamente. Já a remoção de DQO, seguindo a mesma tendência,
foi de 30, 34 e 35%, como mostra a figura 16.
45
40
Remoção de matéria orgânica (%)
35
30
25
20
15
10
0
Controle CEM RAEA
51
FIGURA 17 – A avaliação da adsorção de lactose pelo anodo/leito de carvão ativado: Solução
de soro de queijo ultrafiltrado reconstituído com DQO inicial aproximada de 15.000 mgO 2L-1 foi adicionada
a tubos contendo diferentes quantidades de carvão. Após duas horas de incubação a concentração de lactose
na fase líquida foi avaliada apor meio de HPLC. A regressão linear desses dados indica que o leito de carvão
ativado adsorve lactose em uma proporção de aproximadamente 30 mg de lactose por grama de carvão.
52
6. DISCUSSÃO
53
eletrodos. Embora experimentos que comprovassem a ocorrência desse processo por
diferentes mecanismos tenham levado algum tempo para serem amplamente aceitos,
atualmente é evidente a interação direta por nanofios bem como a produção de
mediadores pelos micro-organismos eletro-ativos [112, 113]. Tais processos sustentam a
hipótese de que processos fisiológicos governam a interação dos micro-organismos com
a superfície do eletrodo. Dessa constatação, decorre que alguns micro-organismos podem
ser especializados nesses processos, sendo então favorecidos pela presença de eletrodos,
os quais podem ser utilizados por estes micro-organismos como aceptores finais de
elétrons. Tais conclusões são fortalecidas por pesquisas mostrando a capacidade de
estruturas flagelares [114] e mesmo proteínas [115] de transmitirem impulsos elétricos,
inclusive funcionando como semi-condutores [113, 116].
Do comprovado envolvimento de estruturas celulares no processo de interação
com o eletrodo, decorre a hipótese de que amostras ambientais com composição
microbiana diversificada, quando utilizadas para a inoculação de CEM, deveriam
acarretar eficiências variadas nesses dispositivos, uma vez que as diferentes condições
ambientais potencialmente favoreceriam o desenvolvimento e prevalência de espécies
eletroativas. De fato, sabe-se que micro-organismos desempenham um papel importante
na obtenção de energia com CEMs e embora bactérias do gênero Geobacteraceae
predominem na colonização de anodos, outros micro-organismos podem prevalecer em
alguns casos, variando a composição microbiana de acordo com a fonte de inóculo [117,
118].
Em nossos experimentos, visando testar a hipótese da seleção de microrganismos
em sistemas bioeletroquímicos, utilizamos diferentes fontes de inóculo e avaliamos o
desempenho das CEMs em que foram utilizados. Os resultados obtidos (Figura 12)
indicam que de fato a magnitude do potencial gerado e a capacidade de manutenção deste
potencial ao longo dos dias variaram conforme o inóculo utilizado. CEMs inoculadas com
lodo de biodigestor não foram capazes de gerar potencial elétrico, indicando a ausência
de bactérias eletro-ativas, enquanto em CEMs inoculadas com sedimentos de lagoa
estabeleceu-se potencial rapidamente. O estabelecimento destes valores de potencial,
embora não tenham sido tão elevados quanto em outros experimentos a serem descritos
adiante, indicam a presença de microrganismos capazes de interagir com eletrodo.
Quando o efluente de uma CEM inoculada com sedimento de lagoa foi utilizado
como fonte de inóculo para uma segunda CEM a produção de potencial aumentou em até
400% em relação a CEM original (Figura 12). Além disso, embora o tempo de
54
aclimatação da CEM inoculada com sedimento de lagoa tenha sido de apenas três dias,
na CEM inoculada com amostra de outra CEM o potencial foi observado já no primeiro
dia. A persistência do potencial também foi afetada, uma vez que a CEM inoculada com
sedimentos de lagoa cessou a geração de potencial no oitavo dia e a CEM inoculada com
uma amostra desta primeira não apresentou queda expressiva da geração de potencial em
todo período de monitoramento, que totalizou 12 dias. Por fim, a CEM inoculada com
amostra de solo também foi capaz de gerar potencial superior ao da amostra de sedimento
de lagoa e embora o potencial tenha cessado completamente no nono dia, o mesmo foi
mantido próximo ao valor máximo durante toda a fase de geração de potencial.
As diferenças de potencial obtidas nos sistemas inoculados com diferentes
amostras ambientais foram atribuídas à composição microbiana na câmara anódica, uma
vez que o inóculo foi o único parâmetro que variou entre elas. De fato, a prevalência de
determinado micro-organismo em uma CEM está relacionada à origem do inóculo e sabe-
se que alguns microrganismos são capazes de interagir com o eletrodo por meio de
mecanismos específicos que melhoram a eficiência e promovem maiores densidades de
potência [17]. Além disso, a quantidade de biocatalisador é um dos fatores críticos para
o desempenho de CEM. Se por um lado a melhora do desempenho de uma CEM pode ser
alcançada por meio do aumento da área da superfície do anodo, o que aumenta a
quantidade total de bactérias, por outro o número de células metabolicamente viáveis que
contribuam para a transferência de elétrons em uma determinada superfície também
determina a eficiência de produção elétrica [119]. Por fim, nos sistemas inoculados com
cultura mista, bactérias eletroativas precisam competir pelo anodo com outros grupos,
tais como bactérias fermentativas, acetogênicas e metanogênicas, de modo que a
prevalência destes é crucial para geração de energia [120].
A escolha de utilizar amostra de biodigestor e lama de lagoa em nossos estudos
baseou-se no fato de que desde os estudos pioneiros com CEMs, efluentes hídricos e
sedimentos marinhos terem sido amplamente utilizados como fontes de micro-
organismos eletroativos [121]. Lodos de esgoto anaeróbio são considerados bons
candidatos para inoculação de CEM por serem facilmente obtidos de estações de
tratamento de águas residuais e por conterem comunidades microbianas altamente
variadas [122], o que inclui estirpes de bactérias eletroquimicamente ativas [123-126].
Possivelmente, em amostras de efluentes, a diversidade de micro-organismos redutores
do ferro e potencialmente relevantes para a produção de eletricidade pode se estender
além de espécies dos gêneros Shewanella e Geobacter comumente estudadas em CEMs
55
[127]. No entanto, neste trabalho, a inoculação de CEM com efluente de biodigestores
anaeróbios não resultou em diferença de potencial expressiva ou duradoura, indicando a
ausência de micro-organismos eletroativos. Por outro lado, deve-se considerar que o
biodigestor utilizado como inóculo era alimentado apenas com dejetos bovinos, de modo
que a microbiota residente era provavelmente oriunda do rúmen, que é um ambiente com
uma cadeia alimentar anaeróbia bem definida onde ocorrem processos que concorrem
com a eletrogênese, como é o caso da metanogênese [128, 129]. Além disso, a falta de
um estímulo que favorecesse o desenvolvimento e estabelecimento de micro-organismos
eletroativas no biodigestor pode ter prejudicado o enriquecimento do inóculo com esse
grupo de micro-organismos.
Apesar da ausência de produção de potencial este resultado é um indicativo
importante do funcionamento do sistema. A não geração de potencial nesta CEM, que era
físico-quimicamente semelhante às demais, indica que a geração de potencial observada
em outros sistemas neste estudo é, de fato, de ordem microbiológica. A influência do
ambiente na obtenção de um inóculo que seja mais ou menos eletro-ativo é novamente
evidenciada nas CEM inoculadas com solos ou lodo de lagoa. Embora solos tenham sido
relativamente pouco explorados como fontes de inóculo para CEMs, eles oferecem uma
biodiversidade microbiana abundante, podendo ser uma fonte interessante de
microrganismos eletro-ativos [130-133]. Além disso, os estímulos elétricos causados pelo
aterramento das torres podem ter favorecido o enriquecimento de bactérias eletroativas,
o que explicaria o bom desempenho deste solo como fonte de inóculo para CEMs. Quanto
a CEM inoculada com lama de lagoa, a geração de potencial sugere a presença de micro-
organismos eletroativos que pode ser explicada pela presença de minério de ferro e
atividades de mineração na região.
Sog et al (2012) inocularam CEMs com diferentes sedimentos de um lago e
demonstraram que a produção de potencial nas CEMs foi diferente para os diferentes
locais testados. Além disso, a produção de potencial estava relacionada ao teor de ferro
do sedimento, de modo que a amostra sedimentar a partir do local com o maior teor de
Fe (III) levou à produção da tensão mais elevada. Além disso, as comunidades
microbianas nos anodos apresentaram diferença significativa entre si, de modo que
bactérias eletro-ativas redutoras de ferro dos gêneros Geobacter, Shewanella, e Geothrix
foram encontradas apenas na CEM cujo inóculo foi retirado da amostra de lama de lagoa
com maior teor de ferro [134]. A influência do teor de ferro na prevalência de micro-
organismos eletroativos também foi demonstrada por Kim et al (2005) [122]. De fato, foi
56
relatado que o mecanismo de transferência de elétrons é semelhante para óxidos de ferro
sólidos e eletrodos [135], o que possibilitaria microrganismos eletro-ativos obterem
vantagem energética em ambientes com alto teor de ferro, justificando sua prevalência
nestes ambientes. Tais mecanismos de transferência de elétrons em espécies de Geobacter
despertam interesse porque o óxido de Fe (III) insolúvel é recurso primário para redução
dissimilatória de ferro. Além disso, Geobacteraceae são predominantes em diversos
ambientes sedimentares onde a redução deste óxido é um processo importante [135]. Para
a tecnologia de CEM, esse mecanismo desperta interesse devido à prevalência desses
micro-organismos redutores de Fe(III) dentre as espécies eletroativas utilizadas na
geração de eletricidade a partir de resíduos orgânicos [121].
Desde os primeiros estudos com Geobacter, tem-se relatado a participação de
citocromos na redução de Fe (III). Citocromos são carreadores de elétrons que possuem
Heme como grupo prostético. O grupo Heme é formado por quatro anéis pirrólicos unidos
entre si formando um anel maior com um átomo de ferro no centro covalentemente ligado
aos quatro átomos de nitrogênio dos anéis pirrólicos. O ferro do grupo Heme é
responsável pelo transporte de elétrons por citocromos, mudando de estado de oxidação.
Embora possuam o grupo Heme, bem como a maior parte da estrutura em comum,
existem diversos tipos de citocromos, que se diferenciam pelas cadeias laterais e que
proporcionam que os mesmos possuam diferentes potenciais de oxi-redução [37]. Em G.
sulfurreducens, diversos citocromos do tipo C foram reportados, os quais incluem: o
citocromo MacA, que acredita-se estar associado à superfície interna da membrana
periplasmática; o citocromo PpcA e outros citocromos periplasmáticos de baixo peso
molecular; e OmcB, citocromo de membrana externa [135].
A importância dos citocromos no metabolismo de Geobacter fica ainda mais
evidente pela análise do genoma, o qual contém mais de 100 genes putativos para os
citocromos do tipo C. Este valor é substancialmente maior que o encontrado em outros
organismos intensivamente estudados como ferro-redutores, incluindo Shewanella
oneidensis [135]. Em Geobacter sulfurreducens foram encontrados citocromos do tipo
Omc ao longo do pili, estrutura filamentar utilizada por estes microrganismos para
transferência de elétrons, dispostos de maneira que o espaçamento entre as moléculas
sugere que estes citocromos facilitam a transferência de elétrons através do filamento
[136]. Os mecanismos de interação destes micro-organismos com o eletrodo têm
implicações não apenas na escolha do inóculo, mas também na construção de CEMs. Se
por um lado o uso de inóculo extraído de um ambiente com alto teor de ferro pode
57
favorecer a obtenção de bactérias eletroativas, por outro o eletrodo da câmara anódica da
CEM precisa fornecer um ambiente propício para troca de elétrons, o que inclui facilidade
a adesão e elevada área para troca eletrônica por contato direto.
Por fim, os resultados (Figura 12) também indicam que os micro-organismos que
são capazes de interagir com os eletrodos podem ser selecionados em CEMs, uma vez
que a inoculação de uma CEM com o conteúdo da câmara anódica de outra levou a
potenciais elétricos mais elevados (Figura 12). Um fenômeno semelhante foi observado
por Kim et al (2005), que obtiveram o enriquecimento de microrganismos eletroativos
através da transferência em série do biofilme formado no anodo para um eletrodo
novo[122]. Os resultados apontam o aumento da potência gerada, de modo que estratégia
foi sugerida para reduzir o tempo de aclimatação em CEMs.
Embora a composição microbiana e a presença de micro-organismos adaptados
ao uso do eletrodo como aceptor de elétrons influam consideravelmente na geração de
potencial, a produção de energia também pode ser limitada por outros fatores estruturais.
Mais do que isso, a viabilidade econômica desta tecnologia depende de alternativas
capazes de conciliar custo e desempenho. Em CEMs, um elemento estrutural que impacta
simultaneamente estes dois fatores são as membranas utilizadas como separadores das
câmaras. A presença de um separador é necessária para manutenção do potencial e para
evitar a formação de biofilme no catodo, o que causa a deterioração do desempenho [84].
No entanto, se por um lado o separador é necessário para assegurar o funcionamento
eficiente e sustentável de uma CEM, por outro, ele aumenta a resistência interna das
CEMs e retarda a transferência dos prótons produzidos na câmara anódica para câmara
catódica, onde é reduzido [53]. Deste modo, os materiais e propriedades de transferência
de massa de separadores são fatores importantes para melhorar a densidade de potência
em CEMs [81].
Em nosso trabalho foram testados três tipos de membranas, duas delas,
membranas de troca iônica, são classicamente utilizadas em CEMs [53]. A terceira,
membrana de microfiltração, foi testada como uma alternativa de menor custo. Em nossos
experimentos a membrana de microfiltração foi a que apresentou melhor desempenho,
isto é, maior valor registrado, maior média e geração duradoura de diferença de potencial
(Figura 13). Comparativamente, a utilização de membrana de microfiltração aumentou a
geração de potencial média em 257% em relação à membrana de troca catiônica e em
246% em relação à membrana de troca aniônica. Por outro lado, a geração de potencial
não diferiu expressivamente entre CEMs com membrana troca catiônica e aniônica. As
58
diferenças observadas na geração de potencial para diferentes membranas podem ser
explicadas com base em dois importantes aspectos da construção de uma CEM:
resistência interna e transferência de massa.
CEMs que utilizam membrana de troca catiônica apresentam limitações na
transferência de H+ devido a seu princípio de funcionamento. Ocorre que em CEMs,
outras espécies como Na+, K+, NH4+, Ca2+ e Mg2+, estão presentes em concentrações de
até 105 vezes maiores do que a concentração de H+ [137]. Deste modo, todos estes cátions
presentes em maior concentração na solução competem com o H+ pelos sítios de ligação
na membrana, retardando o transporte através da mesma e acarretando no acúmulo de H+
e perda de desempenho da CEM [137-139]. Já em membranas de troca aniônica, a
transferência de massa através da membrana é assistida por íons fosfato e carbonato que
servem de carreadores para o H+ [139]. Deste modo as moléculas de HPO42- e CO32-
presentes na câmara anódica são protonadas formando H2PO4- e HCO3-, que atravessam
a membrana e fornecem H+ para reação de redução que ocorre no catodo. Neste caso, o
funcionamento da CEM torna-se ainda mais complexo, tendo a transferência de massa
afetada por outros fatores, como o equilíbrio dos íons fosfato e carbonato em solução.
Diferentemente de membranas de trocas catiônicas, membranas de filtração são
permeáveis a pequenos íons independente de suas cargas, e podem, portanto, ser usadas
como separadores em CEMs [139]. Tais membranas são alternativa interessante para
construção de CEMs em grande escala, tanto em termos de geração de energia quanto em
relação aos custos de construção [140]. Além de serem geralmente mais baratas que as
demais, membranas de microfiltração têm melhor aplicabilidade para o tratamento de
efluentes [53]. O melhor desempenho da CEM com membrana de microfiltração,
observado em nossos experimentos (Figura 13) pode estar associado à redução da
resistência interna e à melhora na transferência de íons entre as câmaras. Membranas de
microfiltração fazem o transporte inespecífico de íons, pois não apresenta grupos
carregados, sendo seletivas apenas quanto ao tamanho das partículas. Deste modo, o uso
destas membranas pode facilitar a locomoção de íons e evitar a formação de gradientes
de espécies carregadas dentro das CEMs.
Sun et al (2009) demonstraram uma redução substancial da resistência interna
quando membranas de microfiltração foram usadas no lugar de membranas trocadoras de
prótons. A resistência interna obtida foi similar à de uma CEM sem membrana, com a
vantagem de manter as câmaras separadas, sem que houvesse contaminação do catodo
por micro-organismos. Além da redução da resistência interna, a melhora de eficiência
59
de quase 100% foi atribuída à elevada permeabilidade da membrana de microfiltração,
que facilita a transferência global de cargas [82]. O efeito da membrana na geração de
energia também foi demonstrado por Hou et al (2011) em CEMs usadas para
descoloração de azo corante com concomitante geração de energia [84]. Neste estudo,
CEMs construídas com membranas de microfiltração também apresentaram redução da
resistência interna e aumento na geração de potencial se comparadas a CEMs construídas
com membrana de troca catiônica. Novamente, a diferença na geração de potencial foi
atribuída às alterações nas resistências internas e pelos diferentes coeficientes de difusão.
No entanto, o aumento de eficiência não foi observado quando membranas de
ultrafiltração foram comparadas a membranas de troca iônica [139]. Ao contrário,
membranas de ultrafiltração aumentaram a resistência interna e dificultaram o transporte
de H+ para o cátodo, reduzindo a produção de energia [81]. Deste modo, fica claro que se
o ganho de desempenho com uso de membranas de microfiltração está relacionado à
melhora na transferência de massa e redução da resistência interna, um aspecto estrutural
importante destas membranas é o tamanho do poro.
Além das características de transferência de massa, outro fator que permitiu o
melhor desempenho da membrana de microfiltração foi a escolha por uma câmara
catódica anaeróbia. CEMs podem assumir diferentes construções e operações. Na
construção mais tradicional, a câmara catódica é aeróbia onde os H+ formados na câmara
anódica se combinam com oxigênio para formar água [8, 21, 48, 49]. Nestes sistemas é
importante que o separador permita manter a câmara anódica anaeróbia, uma vez que a
contaminação da câmara anódica com oxigênio acarreta na perda de desempenho devido
ao consumo do substrato por bactérias aeróbias e perda da atividade de bactérias
eletroativas estritamente anaeróbias [141]. O uso de membranas de filtração em CEMs
com catodo aeróbico acarreta na maior transferência de oxigênio da câmara catódica para
câmara anódica se comparado ao uso de membranas de troca iônica [140]. Deste modo,
é possível que o ganho de desempenho observado em nossos sistemas, cuja câmara
catódica é anaeróbia, não seja observado em CEMs com câmara catódica aeróbia.
Outro fator estrutural de extrema importância para a melhoria de eficiência em
CEMs é o material utilizado como anodo. Devido à sua importância, variações de material
e forma têm sido amplamente estudadas para aplicações práticas em CEM [142-146].
Para favorecer a troca eletrônica, além de promover redução da resistência elétrica
interna, a câmara anódica deve fornecer ambiente favorável à atividade microbiana.
Tendo em vista que a transferência de elétrons é um fenômeno de superfície, é desejável
60
que o eletrodo forneça elevada área superficial, porém sem aumentar a resistência interna
e prejudicar a transferência de massa dentro do dispositivo. Por fim, para que seja
operacionalmente interessante, o anodo devem ser robusto, resistente e
bioeletroquimicamente estável [18, 21, 73]. Neste trabalho, utilizou-se carvão ativado e
haste de grafite para produzir um anodo de preenchimento com o intuito de ampliar a área
de troca eletrônica e favorecer a adesão microbiana.
Para avaliar o efeito do volume de leito utilizado sobre o desempenho da CEM,
foram testadas três condições: câmara anódica sem preenchimento de carvão ativado,
câmara anódica parcialmente preenchida e câmara anódica preenchida em 80% do
volume total. Os resultados obtidos demonstraram que a adição de carvão ativado á
câmara de fermentação foi crucial para manutenção da geração de potencial. Além da
baixa geração de potencial, em CEMs sem carvão o potencial gerado não foi duradouro,
extinguindo quase completamente após sete dias de incubação. No entanto, a adição de
45g de carvão ativado à câmara, correspondente a 0,45gmL-1 de fermentação, aumentou
a ddp média em 234% e favoreceu sua estabilização, sem quedas consideráveis da geração
de potencial no período observado. A adição de 90g de carvão ativado aumentou em mais
de três vezes o potencial obtido em relação a CEM sem carvão.
O aumento da geração de potencial causado pela adição de carvão está relacionado
ao substancial aumento de área do eletrodo. Deste modo, a adição de carvão forneceu o
aumento da área disponível para fixação dos micro-organismos e transferência de
elétrons. A importância do tamanho do eletrodo para o desempenho de CEMs tem sido
amplamente discutida na literatura [147-151]. Kipf et al (2013) testaram diferentes
materiais tipicamente utilizados em CEMs como anodo e constataram que o material do
eletrodo tem um efeito significativo sobre o desempenho de CEMs. Dentre os materiais
testados, o eletrodo que continha carvão ativado apresentou resultado superior aos demais
testados, incluindo materiais classicamente usados em CEMs como folha de grafite, papel
carbono e feltro de grafite. A melhora no desempenho foi atribuída à elevada área de
superfície disponível para a transferência de elétrons [152]. Chaudhuri et al (2003)
testaram diferentes materiais carbonáceos e verificaram que embora os materiais com
maior área superficial apresentassem maior desempenho, o desempenho específico, isto
é, ponderado pela área superficial do eletrodo, era similar, o que lhes permitiu concluir
que o aumento da geração de energia estaria relacionado ao aumento da área do anodo e
não ao material propriamente dito. Segundo os autores, isto poderia ser atribuído à maior
concentração de células ligadas aos eletrodos. Estes resultados demonstram que a simples
61
otimização da área de superfície do anodo pode aumentar substancialmente a produção
de energia [153].
Os resultados indicam que o efeito do aumento da área superficial do anodo sobre
a eficiência da CEM é limitado. Ao compararem-se as CEMs adicionadas de 45 e 90 g de
carvão na câmara de fermentação nota-se que o aumento da geração de potencial não é
linear em relação à adição de carvão, isto é, embora a quantidade de carvão na câmara
tenha dobrado, o aumento na geração de potencial foi de apenas 28%. Estes resultados
sugerem que existe outro fator, além do aumento da área superficial, influenciando o
desempenho das CEMs. De fato, existem outros efeitos esperados, já que o uso de carvão
ativado em fermentações anaeróbias afeta a atividade microbiana devido a suas
características, tais como superfície áspera para adesão microbiana, macroporos
adequados para a colonização de micro-organismos, proteção contra forças de
cisalhamento no reator, proteção contra altas concentrações de substrato ou altas
concentrações de toxinas, dessorção gradual do substrato e maior atividade microbiana
devido à disponibilização gradual do substrato [154]. Tais características podem ter sido
determinantes no desempenho das CEMs adicionadas de carvão, especialmente devido à
natureza do substrato utilizado. Apesar da sua elevada biodegradabilidade, a biodigestão
anaeróbica do soro de queijo enfrenta diversos desafios, como a falta de alcalinidade e a
alta concentração de carboidratos solúveis altamente fermentecíveis. A presença destes
carboidratos na forma solúvel, isto é, biodisponíveis, faz com que sejam rapidamente
metabolizados causando a acumulação de ácidos orgânicos e queda do pH, sendo a alta
carga um agravante desse processo [66]. Desse modo, a dessorção gradual do substrato e
adsorção dos ácidos graxos, promovidos pelo carvão, podem ter favorecido
consideravelmente a geração de ddp e a estabilidade da fermentação em CEMs
adicionadas de carvão.
A influência das propriedades adsortivas do carvão em CEMs foi investigada por
Wu et al (2015). Segundo esses estudos, devido à capacidade de adsorção do carvão
ativado, uma grande quantidade de substrato é adsorvida e difunde-se através da estrutura
porosa, alcançando a camada interna do anodo. A difusão do substrato pelo anodo teria
favorecido a homogeneidade do biofilme, garantindo o suprimento de nutrientes a
microrganismos fixados na parte interna do leito. O efeito adsortivo foi considerado
benéfico para estabilizar e melhorar o desempenho de CEMs, permitindo um melhor
aproveitamento de toda a área do eletrodo [155]. Feng et al (2010) também atribuíram o
aumento da geração de potencial em suas CEMs ao aumento de área e às propriedades
62
adsortivas do carvão ativado. Segundo os autores, a grande área superficial e as
propriedades adsortivas favorecem a adesão e o crescimento de bactérias eletrogênicas, o
que consequentemente aumentaria a geração de energia elétrica [156].
Em estudos com CEMs, geralmente o foco é a melhoria da eficiência do sistema,
de modo que numerosos estudos demonstram como os materiais, a conformação e a
operação afetam o desempenho destes sistemas, bem como a diversidade microbiana. Por
outro lado, pouco se discute sobre como a presença de um eletrodo e a possibilidade de
utilizá-lo como aceptor de eletros pode afetar a atividade e o metabolismo dos micro-
organismos presentes na câmara de fermentação. Deste modo, com o objetivo de avaliar
a atividade microbiana na presença de um eletrodo foram construídos três dispositivos:
um reator comum, isto é, com o sem a presença de um circuito externo unindo os
eletrodos; uma CEM com o circuito fechado por um resistor; e um RAEA cujo potencial,
diferente de CEMs não foi gerado pelo sistema, mas imposto por meio de um
potenciostato. O potencial aplicado no RAEA foi constante e o pólo positivo foi mantido
na câmara de fermentação para estimular o uso do anodo como aceptor de elétrons.
Nossos resultados indicaram que a presença de um anodo no fermentador provoca
um acúmulo de acetato na fase líquida desses sistemas bioeletroquímicos. No RAEA a
concentração de acetato foi 23% superior à do controle, já a CEM apresentou
concentração de acetato 4% superior ao controle. Este cenário pode ter sido causado por
duas razões distintas: ou o acúmulo de acetato deve-se ao desfavorecimento da próxima
etapa da cadeia alimentar anaeróbia que deveria consumi-lo, ou a produção de acetato foi
estimulada e ocorreu em maior taxa em reatores bioeletroquímicos.
A primeira hipótese decorre de que a ausência de lactose residual na fase líquida
sugere que este carboidrato foi totalmente degradado em todos os reatores analisados.
Deste modo, embora a concentração de ácidos seja inferior no reator controle, a ausência
de lactose sugere que ácidos orgânicos foram produzidos na mesma extensão dos demais
reatores, porém não permaneceu na fase líquida devido sua degradação, que ocorreu
provavelmente por metanogênese. Por outro lado, o acúmulo de ácidos nos sistemas
bioletroquímicos sugere que o equilíbrio da cadeia alimentar anaeróbia foi quebrado, de
modo que os produtos de fermentação de uma etapa não foram utilizados pelo próximo
grupo de micro-organismos. De fato, o acúmulo de ácidos orgânicos é um indício de que
a metanogênese tenha sido inibida [157].
Os resultados de remoção de carbono e DQO reforçam essa hipótese. A remoção
de carbono no controle foi 34%superior a do RAEA e 21%superior ao da CEM. Do
63
mesmo modo, a remoção de DQO do reator controle foi 16 % superior a do RAEA e 4%
superior a da CEM. Esses resultados apontam que o reator controle removeu uma maior
quantidade de matéria orgânica da fase líquida através da oxidação da mesma com
concomitante produção de gases e/ou de biomassa celular. Em outras palavras, neste
reator ocorreu maior mineralização da matéria orgânica produzindo CO2 e metano. Já nos
sistemas bioeletroquímicos, a maior DQO remanescente deve-se ao acúmulo de ácidos,
especialmente acetato.
A inibição da metanogênese nos reatores observada no presente estudo está
provavelmente relacionada à presença do eletrodo que atua como aceptor de elétrons
alternativo. Em um estudo sobre o fluxo de elétrons e comunidades microbianas em
CEMs, Yu, Park et al (2015) avaliaram a produção de metano em CEM de circuito
fechado e comparam o resultado com os de CEM em circuito aberto e reator controle, o
qual era um fermentador sem eletrodos. Após 10 dias de incubação, o reator controle
apresentou a mais alta produção de gás metano acumulado, seguido pelo reator de circuito
aberto e por fim o reator de circuito fechado. Segundo os autores, os resultados sugerem
que a produção de metano foi limitada pela migração de elétrons para o eletrodo [158].
Em ambientes naturais onde a metanogênese ocorre, compostos orgânicos são
degradados na ausência de aceptores elétrons inorgânicos, tais como oxigênio, nitrato,
sulfato, enxofre ou os íons de metal oxidado, como Fe3+, Mn4+. Deste modo, nesses
ambientes ocorrem apenas processos de fermentação e processos de respiração onde
prótons ou bicarbonato funcionam como aceptores de elétrons [159]. Em solos alagados,
como campos de arroz, a matéria orgânica é degradada pela redução sequencial de O2,
NO3-, Mn4+, Fe3+, SO42-, e CO2. Deste modo, a produção biológica de CH4 começa apenas
quando todos os demais agentes químicos com potencial redox mais elevado tenham sido
reduzidos [160, 161]. Esta sequência segue a proposta, baseada na teoria termodinâmica,
que aceptores de elétrons com um potencial redox mais elevado será reduzido em
primeiro lugar [161]. De fato, metanogênicas somente crescem e produzem metano em
ambientes onde o potencial de redução é inferior a −330 mV. Em CEMs o potencial do
anodo é normalmente superior a 0 mV comparado a eletrodo padrão de hidrogênio. Deste
modo, o potencial do eletrodo na câmara anódica torna a CEM um ambiente desfavorável
à metanogênese [162].
Estudos sobre a competição em ambientes anaeróbios corroboram a afirmação que
a metanogênese seja inibida pela presença de outros agentes redutores. Tais estudos
demonstram que tal inibição não está apenas relacionada à competição com outros micro-
64
organismos que utilizem tais agentes redutores e sua prevalência, mas principalmente à
termodinâmica da produção do metano. Deste modo, a metanogênese não é inibida apenas
pela competição com outros micro-organismos mais eficientes ou outras espécies
redutoras e provavelmente a metanogênese seria inibida mesmo na ausência de tais
competidores. Para demonstrar esse princípio, a variação de energia livre de Gibbs
durante a metanogênese dependente de H2 foi calculada antes e após a adição de aceptores
de elétrons exógenos, tais como Fe3+ e SO42-. Inicialmente, o ΔG’ calculado foi inferior a
-31 kJ por mol de CH4, que é um valor comumente encontrado em solos alagados. Porém,
após a adição de Fe3+ ou SO42-ao solo o ΔG’ aumentou para valores superiores a -17 kJ
mo1 por mol de CH4, o que inviabilizou a metanogênese, já que este nível de energia
livre, equivalente a menos de 1/3 do necessário para a conversão de ADP a ATP, é o valor
limite para que a metanogênese ocorra [161]. A inibição por meio da introdução de um
aceptor de elétrons alternativo também foi relatada para metanogênese a partir de acetato.
Nesses sistemas, a inibição da metanogênese foi evidenciada pelo acúmulo de ácidos
orgânicos na fase líquida, assim como observamos em nossos experimentos [157].
Além do potencial de redução e energia livre de Gibbs, a inibição da
metanogênese pela adição de aceptor alternativo de elétrons ao sistema, no caso o
eletrodo, também pode ser discutida considerando os mecanismo de transferência de
elétrons entre o microrganismo e o eletrodo. A transferência de elétrons a partir do NADH
produzido por bactérias acetogênicas para enzima F420 de metanogênicas ocorre em um
processo de múltiplas etapas: redução de um transportador de elétrons extracelular (H+a
H2, por exemplo), difusão do referido transportador na fase aquosa, difusão a partir da
fase aquosa a uma bactéria metanogênica e oxidação do referido transportador de elétrons
por uma metanogênica, formando a forma reduzida F420[163]. Esta enzima em sua forma
reduzida atua como doadora de elétrons em duas reações de redução da produção de
metano a partir de CO2[37]. Em suma, a cadeia alimentar anaeróbica envolve transporte
extracelular de elétrons através de espécies reduzidas [26], e tais compostos são
transportados através da solução aquosa onde estão susceptíveis à oxidação pelo eletrodo,
impedindo que os referidos elétrons cheguem às metanogênicas.
As enzimas envolvidas no processo de metanogênese são especialistas no
transporte de elétrons e extremamente sensíveis a oxidação. A metil-coenzima M redutase
(MCR), por exemplo, é uma enzima-chave na formação biológica de metano por Archaea.
Esta enzima catalisa a conversão exergônica de metil-Coenzima M (metil-CoM) e
Coenzima B (CoB) em metano e a associação dessas coenzimas (CoM-S-S-CoB) em uma
65
etapa que está diretamente relacionada à obtenção de energia por esses micro-organismos,
uma vez que a restauração das co-enzimas ocorre concomitantemente à produção de
potencial de prótons que esses micro-organismos utilizam para gerar ATP [37, 41]. MCR
contém no complexo F430 no seu sítio ativo que contém um átomo de níquel em seu centro
catalítico. O níquel do grupo prostético desta enzima precisa estar no estado de valência
Ni (I) para que a enzima seja ativa, isto é, a enzima apenas é altamente ativa quando se
encontra na forma reduzida. Foi demonstrado que inibidores potentes da metanogênese,
como O2 e CHCl3, oxidam rapidamente o Ni da coenzima F430 causando sua perda da
atividade. Essas observações sugerem que os processos oxidação da enzima e inibição da
metanogênese estejam relacionados. [164-167]. Nos sistemas bioeletroquímicos é
possível que o eletrodo tenha, de alguma maneira, atuado como inibidor da metanogênese
por meio da oxidação desta e de outras enzimas, mesmo que indiretamente. Esta hipótese
baseia-se no fato do leito dos reatores ser também uma espécie de sumidouro de elétrons
e é razoável esperar que a coenzima M e outras enzimas envolvidas na metanogênese não
sejam mantidas reduzidas nestas condições.
Outro indício da inibição da metanogênese nos reatores bioeletroquímicos é o
acúmulo de propionato e butirato nesses reatores. Em sistemas bioeletroquímicos a
concentração de propionato foi, em média, 43% superior à do controle. De mesma
maneira, sistemas bioeletroquímicos apresentaram maior concentração de butirato, em
média 18% maior do que o controle. O acúmulo destes ácidos indica que a interrupção da
metanogênese afetou a acidogênese, de modo que estes microrganismos foram inibidos
pelo acúmulo dos produtos de fermentação.
O tipo de produto final formado em um biorreator depende de suas condições de
operação, especialmente da concentração de H2. Se o H2 produzido durante a acetogênese
é efetivamente removido por metanogênicas, o acetato será o principal produto de
fermentação. Por outro lado, se a metanogênese é inibida, o acúmulo de H2 favorece o
acúmulo de compostos mais reduzidos como propionato e butirato. De fato, em reatores
anaeróbicos cujo equilíbrio foi perturbado, ou em reatores destinados à etapa de
acidogênese em tratamentos realizados em dois passos, intermediários reduzidos são
produzidos em maior quantidade. Isso ocorre porque propionato e butirato são os
principais substratos da acetogênese. No entanto, quando a concentração de H2 é elevada
esse metabolismo é inibido, levando ao acúmulo destes compostos. Deste modo, a
associação entre bactérias acetogênicas produtoras de H2 e bactérias metanogênicas
consumidoras de H2 é necessária para manter os níveis de H2 adequados para que as
66
reações da cadeia alimentar anaeróbia continuem ocorrendo naturalmente [28, 33]. A
inibição de bactérias acetogênicas pelo aumento da concentração de H2 ocorre porque
nestes microrganismos as coenzimas citoplasmáticas oxidadas não são regeneradas nesta
condição [168]. Além disso, as reações que convertem etanol, butirato e propionato em
acetato possuem energia livre de Gibbs positivas: ΔG0’ de +9,6, +48,1 e +76,1 kJ/reação,
de forma que a formação destes produtos é extremamente desfavorável e só possível
quando a concentração dos mesmos é extremamente baixa [41].
Embora os resultados sugiram inibição da metanogênese nos sistemas
bioeletroquímicos e muito embora esse fenômeno seja justificável, a produção de metano
não apenas é relatada em CEMs como é motivo preocupação. Apesar do potencial criado
no eletrodo desfavorecer a metanogênese, a produção de metano em CEMs tem sido
relatada em diversos estudos [101, 122, 158, 162, 169]. Nestes reatores a produção de
metano está associada à perda de desempenho. Isso ocorre porque a eletrogênese ocorre
quando aceptores de elétrons solúveis, por exemplo, oxigênio, nitrato e sulfato, não estão
abundantemente presentes. Na presença de outro aceptor de elétrons que não o eletrodo
pode ocorrer o desvio destes elétrons para os mesmos, ocasionando uma perda de
eficiência elétrica do sistema. Deste modo, a metanogênese, embora pouco provável,
pode potencialmente competir com a eletrogênese [170]. Assim, a inibição da
metanogênese tem sido alvo de estudos que visam à melhoria do desempenho de CEMs
[171-173].
Antonopoulou et al (2010) realizaram estudos com CEMs de duas câmaras
alimentadas com soro de queijo como substrato, ou seja, sistemas semelhantes aos usados
neste estudo. Nesta ocasião, observaram que a transferência de elétrons para o eletrodo
pode ser prejudicada pela presença de micro-organismos não eletrogênicos. Segundo os
autores, apenas 1,9% dos elétrons, que foram extraídos a partir do soro de queijo foi
utilizado para a geração de corrente elétrica através da ação de bactérias eletrogênicas.
Os demais 98,1% foram utilizados por bactérias não-eletrogênicas contidos nas águas
residuais que competiram pelo substrato. No entanto, nestes reatores não ocorreu inibição
da metanogênese e a fração orgânica do efluente foi utilizada principalmente para a
produção de produtos gasosos, tais como o metano ou CO2 [174].
He et al (2005) demonstram em seus estudos com CEMs alimentadas com águas
residuais artificiais que a metanogênese nestes sistemas está relacionada ao excesso de
substrato disponível. Segundo os autores, este fato tem consequências importantes para
CEMs destinadas ao tratamento de águas residuais, já que a metanogênese deve estar
67
prevista sempre que o substrato estiver em excesso, isto é, quando a concentração do
substrato for superior à maior taxa de transferência de elétrons suportada pelo sistema
[162].Tal fenômeno pode estar também relacionado à afinidade dos micro-organismos
pelo substrato. Na maioria das metanogênicas acetoclásticas o Ks, concentração do
substrato que confere metade da velocidade máxima [37], varia entre 0,85 mmol L-1 e
7,00 mmol L-1 e de acetato. Para bactérias eletrogênicas o Ks relatado é de apenas 0,04
mmol L-1, o que indica que bactérias eletrogênicas podem competir com metanogênicas
acetoclásticas quando a concentração de acetato não é demasiado elevada. No entanto,
quando a concentração de acetato é elevada é mais provável que a metanogênese ocorra
[175]. Deste modo, a introdução do carvão ativado na câmara de fermentação pode ter
favorecido a inibição da metanogênese por um segundo mecanismo, já que o carvão
adicionado à câmara de fermentação adsorve o substrato, o que evita que excesso da carga
orgânica esteja biodisponível nas CEMs. O fenômeno de liberação lenta do substrato foi
descrito por Voice et al (1992) em reatores de leito fluidizado para o tratamento de águas
subterrâneas contaminadas com hidrocarbonetos aromáticos voláteis. Para os autores, em
um primeiro momento, antes de o biofilme estar totalmente desenvolvido, o substrato é
removido por adsorção. Porém, quando o biofilme se estabelece e o estado estacionário é
atingido, o desempenho do sistema é dominado por biodegradação [176]. Esse efeito é
crucial em fermentações onde a alta concentração do substrato pode inibir a fermentação,
como demonstrado por Morsen et al (1987) para degradação de fenol [177]. Em nossos
estudos, embora a lactose não seja tóxica, a alta concentração do substrato não é desejada,
pois sua alta biodegradabilidade leva à rápida produção e acúmulo de ácidos orgânicos
causando um desequilíbrio no reator. Considerando que a metanogênese não é desejada
em CEMs, esse fenômeno torna o carvão ativado um eletrodo ainda mais interessante do
ponto de vista operacional.
Considerando que a metanogênese não é desejada, a conversão de um substrato
em eletricidade é eficiente quando este é completamente oxidado a dióxido de carbono
[17]. Para que isso ocorra é necessário que os microrganismos presentes na câmara de
fermentação sejam capazes de “respirar” o eletrodo. No entanto, o acúmulo de acetato
nos sistemas bioeletroquímicos sugere que, embora a metanogênese tenha sido inibida, a
eletrogênese também não ocorreu eficientemente de modo a permitir à completa
mineralização do substrato.
Durante a respiração, micro-organismos convertem energia bioquímica em ATP
por meio de uma cascata de reações na qual os elétrons são transferidos sucessivamente
68
até que são finalmente são transferidos para o aceptor final de elétrons. No caso da
respiração aeróbia, este aceptor é o oxigênio, mas outros também podem ser usados,
embora com menor rendimento energético devido ao menor Δ G, já que a energia obtida
por bactérias por respiração depende da energia termodinâmica entre o doador e o
receptor, bem como da eficiência do processo de respiração. Bactérias capazes de respirar
o anodo executam uma forma incomum de respiração em que o seu receptor de elétrons
é um eletrodo sólido. Assim, o potencial do anodo regula a energia termodinâmica
disponível para o crescimento destes micro-organismos. Dentre os micro-organismos
capazes de realizar essa modalidade de respiração destacam-se bactérias dos gêneros
Shewanella e Geobacter devido a sua importância para estudos em CEMs [178-180].
A degradação de resíduos em CEMs está geralmente associada à comunidade
microbiana diversificada devido à complexidade dos substratos normalmente utilizados.
Embora muitas bactérias possam transferir elétrons para um eletrodo, o alto rendimento
no uso de um substrato complexo está geralmente associado à presença Geobacteraceae
na comunidade anódica. Microrganismos eletrogênicos usam número limitado de
substratos, sendo justamente o acetato o mais comum entre as diferentes estirpes. Deste
modo, assim como na metanogênese, interações sintróficas são necessárias para
decompor a matéria orgânica complexa em substratos mais simples que podem ser
utilizados por bactérias eletroativas [181]. Deste modo, o acúmulo de acetato nos sistemas
bioeletroquímicos construídos e avaliados neste trabalho indica que bactérias
eletrogênicas podem ter tido seu desempenho limitado por terem que competir pela
superfície do anodo como outros micro-organismos não eletrogênicos que podem ter
utilizado o carvão ativado como suporte. Micro-organismos fermentativos, com algumas
exceções como Clostridium butyricum EG3, Aeromonas hydrophila, Alcaligens faecalis,
Pseudomonas eruginosa, e Enterococcus gallinarum, geralmente não são capazes de
transferir elétrons para o eletrodo. Porém, tais micro-organismos podem utilizar o
eletrodo como suporte e formar biofilme, prejudicando a transferência de elétrons. De
fato, tem sido descrito que a presença de microrganismos fermentativos em CEMs
diminuem a densidade de bactérias eletrogênicas [182]. A formação de biofilme por
micro-organismos não eletroativos pode prejudicar especialmente a atividade de espécies
de Geobacter, uma vez que estes micro-organismos precisam entrar em contato direto
com o aceptor de elétrons para reduzi-lo [135].
O fato dos reatores bioeletroquímicos terem acumulado maior concentração de
ácidos orgânicos na fase líquida, especialmente acetato, comparados ao reator controle
69
foi até aqui discutido considerando que este fenômeno deve-se à inibição da
metanogênese pela presença do eletrodo na câmara de fermentação. Essa hipótese é
sustentada pela ausência de lactose na fase líquida do reator controle, o que nos permitiu
inferir que neste reator teria ocorrido produção de ácidos na mesma extensão que os
demais, os quais teriam sido apenas parcialmente removidos por metanogênicas. No
entanto, é preciso considerar que o eletrodo de carvão ativado é também uma matriz
porosa capaz de adsorver a lactose, interferindo em sua concentração na fase líquida.
Conforme discutido anteriormente, a adsorção do substrato pelo leito pode ter importantes
implicações no funcionamento das CEMs, tais como: (i) a manutenção do equilíbrio do
reator, evitando a produção instantânea de ácidos orgânicos e redução do pH; (ii) a
disponibilização do substrato em toda extensão do eletrodo, uma que o carvão adsorve o
substrato e garante a sua disponibilidade mesmo na parte interior da matriz, o que não
ocorre com outros materiais utilizados como anodo em CEMs; e (iii) a adsorção inicial
da elevada carga orgânica seguida de sua liberação gradativa, o que mantém o substrato
em baixa concentração na fase líquida do reator desfavorecendo a metanogênese. Deste
modo, o carvão adicionado à câmara desempenha outras funções no reator além de anodo
e suporte para o crescimento microbiano devido à sua capacidade de adsorver o substrato.
Ao adsorver a matéria orgânica presente no efluente, o carvão interfere na
disponibilidade da mesma criando um equilíbrio entre a substância na fase líquida e a
substância adsorvida. Acredita-se que o substrato é inicialmente removido por adsorção
e posteriormente, após o estabelecimento do biofilme, o desempenho do sistema é
dominado por biodegradação [176]. Deste modo, a degradação completa da matéria
orgânica depende não só da remoção dos compostos da fase líquida, mas principalmente
da cinética da interação dos mesmos frente à atividade microbiana.
Segundo nossos resultados, o carvão ativado empregado neste estudo adsorve uma
quantidade de 30 mg de lactose por grama de carvão (figura 17) de modo que
aproximadamente 50% da lactose inicial foi adsorvida pelo leito, formando um equilíbrio
entre lactose adsorvida e lactose disponível na fase líquida. Com base nestes resultados,
nota-se que a lactose pode não ter sido consumida integralmente em todos os sistemas,
uma vez que parte poderia ter permanecido adsorvida ao carvão. Assim sendo, deve-se
considerar que a lactose pode não ter sido metabolizada na mesma extensão em todos os
reatores e que a maior produção de ácido nos sistemas bioeletroquímicos esteja de fato
refletindo um estímulo do eletrodo ao metabolismo deste micro-organismos. Tal
consideração mostra-se bastante razoável se considerarmos o metabolismo destes micro-
70
organismos, que em sua maioria precisam formar compostos reduzidos com prejuízo da
produção de ATP para destinar elétrons produzidos durante a oxidação do substrato[37].
De fato, o reator eletro-assistido apresentou concentração de acetato superior aos demais,
sendo 23% superior ao do controle e 18% superior a CEM, que é um sistema teoricamente
semelhante (Figura 15). O que difere o RAEA da CEM é que o potencial entre os
eletrodos não é produzido pela atividade microbiana, e sim imposto artificialmente por
meio de um potenciostato que manteve o potencial de 50 mV durante todo período de
incubação, com o pólo positivo (carente de elétrons) introduzido na câmara de
fermentação (anódica).
Durante a etapa de fermentação, micro-organismos destinam os elétrons que
foram removidos do substrato para re-oxidar o NADH, que funciona como aceptor de
elétrons na oxidação do substrato[37, 183]. Considerando que fermentações ocorrem na
ausência de aceptores de elétrons exógenos, microrganismos anaeróbios heterotróficos
utilizam as vias fermentativas para gerar intermediários oxidados que servirão de
aceptores para os elétrons gerados durante as etapas oxidativas. Consequentemente, a
fermentação é caracterizada pela excreção de uma grande quantidade de compostos
orgânicos reduzidos, tais como ácidos orgânicos, alcoóis e solventes [37, 41]. Por outro
lado, micro-organismos também podem associar essas vias à produção de ATP. Bactérias
fermentativas utilizam um método padrão para produzir ATP sob condições anaeróbicas
através dos seguintes passos: (i) descarboxilação do piruvato a acetil-CoA; (ii) produção
de Acetil-P catalisada por uma fosfotransacetilase; e (iii) produção de ATP e acetato
utilizando uma acetato quinase [37]. No entanto a via metabólica de geração de ATP
durante a fermentação está geralmente associada a uma via paralela na qual ocorre a
produção de compostos reduzidos para que a as reações de oxidação associadas ao
catabolismo do substrato sejam balanceadas. São exemplos disso as fermentações
propiônica, ácido-mista e o metabolismo de Rumicococus albus.O que todas essas vias
têm em comum é a produção de acetato associada à produção de ATP durante a
fermentação e a produção de compostos reduzidos para servir de “elétron sinks”, sobre a
pena de deixar de produzir ATP pela via que gera acetato. Um fato interessante sobre o
metabolismo de Rumicococus albus é que a presença de metanogênicas que consumam o
H2 faz com que a via seja direcionada para produção de acetato. Isso ocorre porque a
redução do H+ tem um ΔG desfavorável e precisa que o produto esteja em baixa
concentração para que esta reação aconteça. Quando metanogênicas mantêm a
concentração de H2 baixa, Rumicococus albus podem utilizar H+como aceptor de elétrons
71
e regenerar o NADH produzido durante a glicólise, de como que o Acetil-CoA pode ser
direcionado a produção ATP por meio de sua oxidação a acetato. Esse metabolismo é um
exemplo de como a bactéria pode direcionar o piruvato para produção de ATP e acetato
quando não existe um acúmulo de NADH oriundo da glicólise [37, 41]. A grande questão
é como micro-organismos fermentativos se comportam mediante a presença de um
eletrodo que é, na verdade, um enorme sumidouro de elétrons e se poderia a presença de
um eletrodo alterar o metabolismo destes micro-organismos de modo favorecer a geração
de acetato.
Em seus estudos sobre geração de eletricidade em CEMs com Lactococcus lactis,
Freguia et al (2009) demonstraram a capacidade desta bactéria de realizar a transferência
extracelular de elétrons produzidos durante a glicólise. De acordo com os autores, na
presença de um anodo esta cultura excreta mediadores redox, supostamente quinonas, que
medeiam a transferência de elétrons, enquanto que o ânodo assume o papel de coletor de
elétrons. Foi proposto que o uso do anodo como aceptor de eletros dobraria a quantidade
de ATP produzido por mol de glicose de 2 para 4. No entanto, fatores cinéticos estariam
limitando a quantidade de elétrons desviados para a via alternativa, de modo que estes
não representavam mais do que 1% [184]
A detecção de uma maior concentração de acetato no reator eletro-assistido abre
margem para uma série de questões sobre como a presença de um eletrodo, que poderia
funcionar como aceptor de elétrons, afeta a atividade de bactérias fermentativas. Grande
parte dos estudos com CEMs exploram bactérias capazes de respirar o eletrodo, ou seja,
utilizá-lo como aceptor final de uma cadeia de transporte de elétrons, com destaque para
bactérias dos gêneros Geobacter e Shewanella. No entanto, sabe-se que, embora esses
micro-organismos sejam especializados e apresentem maiores densidades de potência em
CEMs, a habilidade de interagir com um eletrodo não é específica [9, 17]. Deste modo,
se por um lado é aceito que o uso destes micro-organismos para produção de eletricidade
não se justifica devido ao baixo rendimento, por outro, pouco se sabe sobre como a
presença de um eletrodo afeta as fermentações realizadas por estes micro-organismos. A
possibilidade de favorecer uma rota metabólica fermentativa produtora de acetato pela
adição de um aceptor de elétrons externo suscita uma série de questões, tais como:
mediadores estariam envolvidos nesse processo? Seria o aumento da produção de acetato
proporcional ao potencial aplicado? Qual o potencial onde essa capacidade de estimular
micro-organismos é saturada? Poderia a polaridade inversa estimular a produção de
compostos reduzidos, inclusive metano? Poderia a presença de um eletrodo consumir os
72
elétrons produzidos pela fermentação de acetogênicas sintróficas e permitir que estas
bactérias produzam acetato por mais tempo em culturas puras? Todas estas questões
compreendem campos para estudos futuros com RAEAs e suas implicações na atividade
microbiana, e ressaltam que o estudo de sistemas bioeletroquímicos possui grande
relevância, tanto por sua aplicabilidade em processos fermentativos como, talvez
principalmente, por constituírem uma nova ferramenta para estudar processos fisiológicos
ainda largamente não-compreendidos.
73
7. CONCLUSÃO
74
8. AGRADECIMENTOS
75
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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