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Eni Pulcinelli Orlandi

8ª edição

11a.~sa11õ11 a (impo
Eni Pulcinelli Orlandi

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasllelra do Livro, SP, Brasil)
DISCUBStp1IT11RA
Orlandi, Eni Pulcinelli
Discurso e leitura I Eni Pulcinelli Ortandi. - 8. ed . - São
Paulo, Cortez, 2008.
8ª edição
Bibliografia
ISBN 978-85-249-1255-9

1. Análise do discurso 2. Leitura -Aspectos sociais


1. Titulo.

06-6291 CDD-401 .41

Índices para catálogo sistemático:


1. Discurso : Análise : Comunicação : Linguagem 401.41
DISCURSO E LEITUR A
Eni Pulcinelli Orlandi

Sumário
UFF/PROACINDÇ, Material Livre
Nota Fisc•! 000. i~\009 ~~ç~~,?~~O
Firma Lacier Oº O'} Apresentação
Pre ãoc<.> / 0 Item 0

Un~ade ~ C& T°3'~3ºº~ 5 ~ A polissemia da noção de leitura .............................................. 7


1- MÉTODO/HISTÓRIA
Linguagem e método: uma questão da análise de
discurso .......... ..................... ...................................... ... ......... 15
A função mais própria da universidade e sua
configuração histórica ................................................. ......... 29
Leitura: questão lingüística, pedagógica ou social? ................. 35
As histórias das leituras ............................................................. 41
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização A história do sujeito-leitor: uma questão para leitura .............. 47
expressa da autora e do editor.
li - SUJEITO/SENTIDO
Unidade e dispersão: uma questão do texto e do
C Eni Pulcinelli Orlandi, 1988
sujeito ........................................... ............................................. 53
Nem escritor, nem sujeito: apenas autor .................................. 75
Significação, leitura e redação .................................................. 85
Direitos para esta edição
Cortez Editora Mosaico de falas: muitos pontos de vista e de fuga .......... .. .... 95
Rua Monte Alegre, 1074 - Perdi zes O inteligível, o interpretável e o compreensível ................... ..... 101
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Impresso no Brasil - jul ho de 2008


Apresentação

A polissemia da noção de leitura

Seria interessante, já de inicio, distinguir os vários sentidos com


que se toma a leitura.
Leitura, vista em sua acepção mais ampla, pode ser entendida como
"atribuição de sentidos". Dai ser utilizada indiferentemente tanto para a es-
crita como para a oralidade. Diante de um exemplar de linguagem, de qual-
quer natureza, tem-se a possibilidade da leitura. Pode-se falar, então, em
leitura tanto da fala cotidiana da balconista como do texto de Aristóteles.
Por outro lado, pode significar "concepção" e é nesse sent ido que é
usada quando se diz "leitura de mundo". Esta maneira de se usar a pala-
vra leitura reflete a relação com a noção de ideologia, de forma mais ou
menos geral e indiferenciada.
No sentido mais restrito, acadêmico, " leitura" pode significar a cons-
trução de um aparato teórico e metodológico de aproximação de um
texto: são as várias leituras de Saussure, as possíveis leituras de um texto
de Platão etc.
Em um sentido ainda mais restritivo, em termos agora de escolari-
dade, pode-se vincular leitura à alfabetização (aprender a ler e escrever) e
leitura pode adquirir então o caráter de estrita aprendizagem formal.
Como se vê, poderíamos fazer uma longa enumeração de sent idos
que se podem atribuir a própria noção de leitura.
Evidentemente nos ocuparemos só de alguns sentidos. E o que de-
limita esses sentidos, como se poderá observar ao longo dos artigos que
DISCURSO EUITURA ENI PULONEW Of!lANOI

serão apresentados, é a idéia de interpretação e de compreensão. É esse A questão da legibilidade, para mim, é, além disso, uma questão de
recorte que fazemos na perspectiva discursiva que dará uma direção à "graus" e não de tudo ou nada. Uma questão de condições e não de
nossa reflexão sobre leitura. essência. Como tenho procurado mostrar, é uma questão de história, no
Dito isso, vejamos o que se pode adiantar a esse respeito. sentido amplo.
Desde que se assuma uma perspectiva discursiva na reflexão sobre Por outro lado, sempre me pareceu que a própria categorização
leitura, alguns fatos se impõem em sua importãncia: "este é um texto legível" t raz em si algo de "julgamento" que tem mais a
ver com quem a profere do que com o próprio texto. Ou seja, trata-se
a) o de se pensar a produção da leitura e, logo, a possibilidade de
para mim já de um argumento produzido na relação entre o leitor e o
encará-la como possível de ser trabalhada (se não ensinada);
autor, mediados pelo texto.
b) o de que a leitura, tanto quanto a escrita, faz parte do processo
Daí minha questão: o que joga realmente na legibilidade?
de instauração do(s) sentido(s);
Conseqüentemente, daí também o engano inicial: não há esse real-
c) o de que o sujeito-leitor tem suas especificidades e sua história;
mente que se pode responder inequívoca e definitivamente. A questão
d) o de que tanto o sujeito quanto os sentidos são determinados da legibilidade - como as outras que têm como móvel a linguagem -
histórica e ideologicamente; não pode ser respondida com essa " positividade" e de modo absoluto.
e) o fato de que há múltiplos e variados modos de leitura; A leitura, portanto, não é uma questão de tudo ou nada, é uma
f) finalmente, e de forma particular, a noção de que a nossa vida questão de natureza, de condições, de modos de relação, de trabalho, de
intelectual está intimamente relacionada aos modos e efeitos de produção de sentidos, em uma palavra: de historicidade.
leitura de cada época e segmento social. Há um leitor virtual inscrito no texto. Um leitor que é constituído no
próprio ato da escrita. Em termos do que denominamos " formações ima-
São esses os pontos de reflexão que mantenho no percurso que ginárias" em análise de discurso, trata-se aqui do leitor imaginário, aque-
aqui apresento no estudo da leitura. le que o autor imagina (destina) para seu texto e para quem ele se dirige.
Talvez valha a pena, como introdução a essa coletânea de artigos, Tanto pode ser um seu "cúmplice" quanto um seu "adversário".
falar um pouco sobre o início de meu interesse. Com as considerações a Assim, quando o leitor real, aquele que lê o texto, se apropria do
respeito de minhas próprias questões, poderia estar sendo útil aos que se mesmo, já encontra um leitor aí const ituído com o qual ele tem de se
dedicam ao ensino de leitura. relacionar necessariamente.

O que me levou a tomar o fato de que a leitura é produzida, como Se se deseja falar em processo de interação da leitura, eis aí um
ponto de partida para minha reflexão, foi a problematização do conceito primeiro fundamento para o jogo interacional: a relação básica que ins-
de legibilidade. taura o processo de leitura é o do jogo existente entre o leitor virtual e o
leitor real. É uma relação de confronto. O que, já em si, é uma crítica aos
O que torna um texto legível? O que é um texto legível?
que falam em interação do leitor com o texto. O leitor não interage com
Percebi desde o início que a dita "legibilidade" do texto estava e o texto (relação sujeito/objeto), mas com out ro(s) sujeito(s) (leitor virtual,
não estava no texto. Explico. Percebi que a legibilidade do texto tinha autor etc.). A relação, como diria A. Schaff (em sua crítica ao fetichismo
pouco de "objetivo" e não era apenas um conseqüência direta, unilateral sígnico, 1966), sempre se dá entre homens, são relações sociais; eu acres-
e automática da escrita. Não me parecia verdadeira ~ afirmação: "um centaria, históricas, ainda que (ou porque) med iadas por objetos (como o
texto bem escrito é legível". Eu me perguntava: bem escrito para quem? texto). Ficar na "objetalidade" do texto, no entanto, é fixar-se na media-
Legível para quem? Estas questões, em si, já relativizavam o que muitos ção, absolutizando-a, perdendo a historicidade dele, logo, sua significância.
colocavam como condições da legibilidade: as qualidades do próprio tex- Historicidade do texto, mas também historicidade da própria ação
to. A meu ver, entretanto, é a natureza da relação que alguém estabelece da leitura, da sua produção. Daí nossa afirmação de que a leitura é o
com o texto que está na base da caracterização da legibilidade. momento crítico da produção da unidade textual, da sua realidade signi-
10 DISCURSO ELEITURA ENI PIJLONEW ORIANDI 11

ficante. É nesse momento que os interlocutores se identificam como in- b) a t ransparência do texto, que diria por si toda (e apenas uma)
terlocutores e, ao fazê-lo, desencadeiam o processo de significação do significação; e, ainda;
texto. Leitura e sentido, ou melhor, sujeitos e sentidos se constituem si- c) um leitor onisciente, cuja capacidade de compreensão dominas-
multaneamente, num mesmo processo. Processo que se configura de for- se as múltiplas determinações de sentidos que jogam em um
mas muito diferentes, dependendo da relação (distância maior ou me- processo de leitura.
nor) que se estabelece entre o leitor virtual e o real.
Mas não é só esta relação que pode indicar a dinâmica do processo Na tensa relação entre paráfrase e polissemia. t odos esses compo-
de leitura. nentes das condições de produção da leitura entram não como elemen-
tos únicos, mas justamente em suas posições relat ivas. E é essa relação
Nesse sentido, a relação entre os interlocutores constituiu um dos
de posições histórica e socialmente determinadas - em que o simbólico
componentes do contexto, da situação de leitura, mas não é o único com-
(lingüístico) e o imaginário (ideológico) se juntam - que constitu i as con-
ponente. Há outros componentes igualmente importantes. Entre eles po-
dições de produção da leitura.
demos falar dos modos de leitura (possíveis, propostos ou pressupostos).
Resta lembrar, nessas considerações introdutórias, um outro aspec-
Esses modos são muito variáveis e certamente indicam diferentes
to igualmente importante na produção da leitura: a "incompletude". Da
formas de relação dos leitores com o texto. Vejamos o que cada modo de noção de incompletude podemos fazer derivar duas outras que a defi-
leitura pode colocar como elemento organizador dessa relação: nem: o " implícito" e a "intertextualidade".
a) relação do texto com o autor: o que o autor quis dizer? Quando se lê, considera-se não apenas o que está dito, mas tam-
b) relação do texto com outros textos: em que este texto difere de bém o que está implícito: aquilo que não está dito e que também está
tal texto? sign ificando. E o que não está dito pode ser de várias naturezas: o que
não está dito mas que, de certa forma, sustenta o que está dito; o que
c) relação do texto com seu referente: o que o texto diz de X?
está suposto para que se entenda o que está dito; aquilo a que o que está
d) relação do texto com o leitor: o que você entendeu? dito se opõe; outras maneiras diferentes de se dizer o que se disse e que
e) relação do texto com o para quem se lê: (se for o professor) . significa com nuances distintas etc.
O que é mais significativo neste texto para o professor Z? O que De forma bastante resumida, podemos dizer que há relações de
significa X para o professor Z? sentidos que se estabelecem entre o que um texto diz e o que ele não diz,
mas poderia dizer, e entre o que ele diz e o que outros textos dizem. Essas
E, assim, indefinidamente, haverá modos diferentes de leitura, de- relações de sentido atestam, pois, a intertextualidade, isto é, a relação de
pendendo do contexto em que se dá e de seus objetivos. De certa forma, um texto com outros (existentes, possíveis, ou imaginários).
é de suas condições de produção que estamos falando. Os sentidos que podem ser lidos, então, em um texto não estão
necessariamente ali, nele. O(s) sentido(s) de um texto passa(m) pela rela-
Sem dúvida, constitui parte integrante de toda essa contextualiza-
ção dele com outros textos.
ção a leitura a própria instauração do autor e do leitor em sua relação
como sujeitos, já que, como dissemos, sujeitos e sentidos são elementos Isso mostra como a leitura pode ser um processo bastante com-
plexo e que envolve muito mais do que habilidades que se resolvem no
de um mesmo processo, o da significação.
imediatismo da ação de ler. Saber ler é saber o que o texto diz e o que ele
Nos trabalhos que fazem parte dessa edição, terei ocasião da falar não diz, mas o constitui significativamente.
mais demoradamente dessa relação (autor/leitor/texto) e da instituição
Indo mais além, a propósito do que não é imediatamente visível em
dos sentidos. Gostaria aqui apenas de chamar a atenção para o fato de
um texto mas que o constitui, encontramos o que se chamam relações de
que a relação entre eles nega a possibilidade de pensar-se:
forças.
a) um autor onipotente, cujas intenções controlassem todo percur- Pelas relações de força. podemos dizer que o lugar social dos inter-
so da significação do texto; locutores (aquele do qual falam e lêem) é parte constitutiva do processo de
12 DISCURSO ElEllURA 13

significação. Assim, o(s) sentido(s) de um texto está(ão) determinado(s) pela


posição que ocupam aqueles que o produzem (os que o emitem e o lêem).
Se aprofundarmos mais nessas questões, veremos que a relação do
discurso com as formações ideológicas - representadas nele pela sua
inscrição em uma formação discursiva determinada que se define relati-
vamente e outras formações discursivas - é que, em última instância, vai
produzir as suas diferentes leituras.
Dessa forma, é fácil se perceber que há uma complexidade de ele-
mentos muito distintos que tem a ver com a significação de qualquer
texto, incluindo-se até mesmo a existência de diversos tipos de discurso.
Não se lê da mesma forma um t exto literário e um texto científico, um
conto de fadas e um cálculo matemático etc.
Como vemos, falar em " legibilidade" de um texto pode ser um modo
de simplificar de forma bastante red utora um processo em que entram
determinações bem mais importantes: determinações de natureza histó-
rica, social, lingüística, ideológ ica etc.
De forma geral, podemos dizer que a atribuição de sentidos a um
texto pode variar amplamente desde o que denominamos leitura para-
Método/História
frástica, que se caracteriza pelo reconhecimento (reprodução) de um sen-
tido que se supõe ser o do texto (dado pelo autor), e o que denominamos
leitura polissêmica, que se define pela atribuição de múltiplos sentidos
ao texto.
Vale ressaltar que tanto o reconhecimento quanto a atribuição de
sentidos se inscrevem, ambos, na idéia de produção da leitura.
Ninguém lê num texto o que quer, do jeito que quer e para qual-
quer um. Tanto quanto a formulação (emissão). a leitura (compreensão)
também é regulada. No entanto, ler, como expomos em um dos nossos
artigos nesse volume, é saber que o sentido pode ser outro.
Dessa forma, só a referência à história permite que se diga, de uma
leitura, se ela compreendeu menos ou mais do que " devia". Porque, sem
dúvida, na multiplicidade de sentidos possíveis atribuíveis a um texto -
Rimbaud diz que todo texto pode significar tudo - , há uma determinação
histórica que faz com que só alguns sentidos sejam "lidos" e outros não.
Entre o Homem e a Instituição, numa relação em que o poder e a
ideologia são as constantes, os sentidos balançam entre uma permanên-
cia que às vezes parece irremediável e uma fugacidade que se avizinha do
impossível. E aí ficamos.

Campinas, junho de 1987.


Eni Pulcine/li Orlandi
15

Linguagem e método: uma questão


da análise de discurso*

A questão do método nos estudos da linguagem é questão funda-


mental. E quanto a este aspecto temos uma posição respeitável em
Saussure (1962) : o método, afirma ele, determina o objeto.
Podemos encontrar um desenvolvimento dessa afirmação em Paul
Veyne (1971): diante de várias perspectivas metodológicas adotadas, diz
ele, não se trata do mesmo objeto visto de várias perspectivas, mas de
uma multiplicidade de objetos diferentes. Ou seja, as diferentes perspec-
tivas pelas quais se observa um fato, ou acontecimento, dão origem a
uma multidão de diferentes objetos de conhecimento, cada qual com
suas características e propriedades.
Na ciência da linguagem, portanto, não se pode d eixar de distin-
guir o dado (empírico) e o objeto (científico), que é construído. O que nos
leva a reconhecer a importância da relação entre a metalinguagem e o
objeto que ela constitui.
Por seu lado, a linguagem se mostra em sua ambigüidade: ou como
instauradora (imitadora) de mundo, t end endo para a arte, ou como
desveladora de mundo, como ponta de lança do saber, tendendo para a
ciência .
Condenados a usar a linguagem para falar da linguagem - quer
utilizemos as línguas naturais ou a linguagem lógica, pois esta, afinal,
quando reflete sobre a linguagem repassa-se de linguagem - , so mos

* Conferência proferida no Encontro sobre linguagem-Interdisciplinaridade.


Rio de Janeiro, Depto. de Filosofia, PUC, 1984.
DISCURSO ELEITURA ENI PIJLCINELUORLANDI 17
16

presas fáceis do objeto com o qual trabalhamos. Dificilmente escapamos análise de discurso, um objeto-linguagem diferente daquele instaurado
a essa ambigüidade (circularidade) entre ciência e arte. A tentação, entre- pela lingüística tradicional, porque procura tratar dos processos de cons-
tanto, é optar por um dos lados e, como Rousseau (1970), poder dizer: tituição do fenômeno lingüistico e não meramente do seu produto. Esse
é o recorte teórico inicial (básico) para a análise de discurso.
Ensinaram-nos que a linguagem dos primeiros homens eram línguas de Nessa perspectiva, a definição que se coloca como ponto de partida
geômetras e vemos em troca que foram línguas de poetas. é a que caracteriza a linguagem como transformadora. Ação sobre a natu-
reza e ação concertada com o homem. Não é, pois, ação no sentido, geral,
Não vamos, entretanto, abrir mão da plasticidade da linguagem, em que a pragmática a considera. Para os objetivos da análise de discurso
dessa sua natureza múltipla, pois acreditamos que a linguagem é tudo é preciso que esse compromisso pragmático da linguagem seja mais espe-
isso e, ao mesmo tempo, pode não ser coisa alguma. Tampouco reconhe- cificamente marcado pelo conceito de social e histórico. Um compromisso
cemos uma distância tão categórica entre o geômetra e o poeta . que coloque a capacidade de linguagem na constituição da própria condi-
Retomando a reflexão sobre o método e o objeto, gostaria de acres- ção da espécie, já que o homem não é isolável nem de seus produtos (cul-
centar que partimos de um " dado" e, quando definimos o "objeto" atra- tura), nem da natureza. Dai considerar a linguagem como interação, vista
vés da metodologia, nos comprometemos ao mesmo tempo com uma esta na perspectiva em que se define a relação necessária entre homem e
teoria e com um corpo de definições, de acordo com os quais produzimos
realidade natural e social. Ou seja: concebo a linguagem como trabalho,
as correspondentes técnicas de análise. como produção, e procuro determinar o modo de produção da linguagem
Há uma relação necessária entre o objeto, as técnicas, a metodolo-
enquanto parte da produção social geral (Rossi Landi, 1975). Isso não sig-
gia e a teoria na qual a análise se sustenta. Pressuposta a tudo isso, en-
nifica que, ao estabelecer essa homologia, se esteja descaracterizando a
contra-se uma definição de linguagem que subjaz e que determina os
linguagem de sua especificidade. A diferença é estabelecida pelo fato da
principios teóricos, a metodologia e a análise.
linguagem ser um trabalho simbólico, mas, ainda assim, um trabalho.
A título de ilustração, podemos citar os estudos da linguagem no
século XIX e os do estruturalismo no século XX. No século XIX, a lingua- Uma conseqüência indesejável quando se fala em med iação é a de
gem é definida como "produto da história"; conseqüentemente, o méto- pensá-la no sentido de colocar a linguagem como instrumento. De nossa
do de análise proposto é o histórico-comparado, e as técnicas de análise parte, ao contrário, consideramos a med iação como relação constitutiva,
buscam essas propriedades históricas no objeto. No estruturalismo, a lin- como ação que transforma. Não consideramos nem a linguagem como
guagem é definida como estrutura ("entidade autônoma de dependên- um dado nem a sociedade como um produto; elas se constituem mutua-
cias internas" , diz L. Hjelmslev, 1968); o método é o estrutu ral (o centro e mente. Se assim é, o estudo da linguagem não pode estar apartado da
a noção de diferença) e as técnicas de análise (oposiçã_o de pares .mini- sociedade que a produz. Os processos que entram em jogo na const itu i-
mos, prova de comutação, etc.) atestam essa perspectiva na considera- ção da linguagem são processos histórico-sociais. A análise de discurso
ção do objeto. tem uma proposta adequada em relação a estas colocações, já que no
Resta observar que há sempre algum pressuposto da filosofia da discurso constatamos o modo social de produção da linguagem. Ou seja,
linguagem que muitas vezes desconhecemos, mas que é determinante: o discurso é um objeto histórico-social, cuja especificidade está em sua
na gramática transformacional, temos o racionalismo (Descartes); atrás materialidade, que é lingüística .
de Saussure, Kant e Aristóteles; atrás da análise de discurso, ou o mate- Ao definir a linguagem como trabalho, desloca-se a importância dada
rialismo histórico, ou Foucault e, mais recentemente, a filosofia da dife- à sua função referencial. Essa função tem ocupado uma posição central na
rença (Deleuze) etc. lingüística clássica e daí decorre pensar-se a comunicação apenas sob o
enfoque da informação. Na perspectiva da análise de discurso, entretanto,
tomar a palavra e um ato social com todas as suas implicações: conflitos,
reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidades etc.
Feitas essas considerações, já podemos especificar o domínio no A linguagem, assim, não e vista apenas como suporte de pensa-
qual temos trabalhado. Domínio cujo ponto de vista estabelece, para a mento, nem somente como instrumento de comunicação.
DISCURSO E LEITURA ENI PULCINEW ORLANOI 19
18

Além disso, a definição de linguagem como trabalho desloca p~r­ do ao passarem de uma formação discursiva para outra, pois muda sua
cursos: se faz um percurso que não passa só pelo psíquico ou pelo social relação com a formação ideológica. Por exemplo: o sentido da palavra
estritamente, mas também pelo domínio da ideologia. Desloca também "abertura" e diferente para os que estão no poder e para a "oposição".
funções: importam outras funções além da referencial. Além das intenções, contam, portando, as convenções, havendo uma re-
É preciso explicitar-se, em relação a essa definição, que os ~nter­ lação necessária do d izer com a ideologia.
locutores, a situação, o contexto histórico-social. ideológico, ou sei~:. as O sujeito não se apropria da linguagem num movimento individual.
condições de produção (Pêcheux, 1969) constituem o sentido da sequen- A forma dessa apropriação é social. Nela está refletido o modo como o
cia verbal produzida. Não são meros complementos. sujeito o fez, ou seja, sua interpelação pela ideologia. O sujeito que pro-
Todo falante e todo ouvinte ocupa um lugar na sociedade, e isso faz duz linguagem também está reproduzido nela, acreditando ser a fonte
parte da significação. Os mecanismos de q~alquer for~ação_social têm exclus iva de seu discurso quando, na realidade, retoma sentidos
regras de projeção que estabelecem a rela~ao e~tre as .s1tu~çoes co.ncre- preexistentes. A isso chamamos "ilusão discursiva do sujeito" (Pêcheux &
tas e as representações (posições) dessas s1tuaçoes no inten~r do discur- Fuchs, 1975).
so: são as formações imaginárias. O lugar assim compreen~1?º· ~nquan­ Paralelamente, o sujeito faz uma seleção em relação aos meios for-
to espaço de representações sociais, é constitutivo das s1gnif1caçoes. Tec- mais (produtos) que a língua oferece e ele o faz dentro de um contexto
nicamente, é o que se chama relação de forças no discurso. socia l. O conceito de discurso despossui o suj eito falante de seu papel
Por outro lado, há a relação de sentido (intertextualidade): todo central para integrá-lo no funcionamento de enunciados, de textos, cujas
discurso nasce em outro (sua matéria-prima) e aponta para o utro (s~u condições de possibilidades são sistematicamente articuladas sobre for-
futu ro discursivo). Por isso, na realidade, não se trata nunca de ~m d1~­ mações ideológicas (Maingueneau, 1976).
curso, mas de um continuum . Fala-se de um estado de processo d1scurs1- Assim, a seleção que o sujeito faz entre o que diz e o que não diz
vo e esse estado deve ser compreendido como resultando de processos também é sign ificat iva: ao longo do dizer vão-se formando fam ílias
discursivos sedimentados. parafrásticas que significam.
Finalmente, compõe também a estratégia discursiva prever, situar- Eu diria, então, que o d izer não é apenas do domínio do locutor,
se no lugar do ouvinte a partir de seu próprio lugar de locutor. Ess~ mec.'.'- pois tem a ver com as condições em que se produz e com outros dizeres.
nismo regula a possibilidade de respostas e dirige a argumentaçao: sao Em suma: o dizer tem sua história2 • Por não considerar essa hist ória, o
as antecipações. sujeito tem a ilusão da real idade do pensamento, isto é, o discurso se
Tudo isso compõe as condições de produção do discurso. apresenta como reflexo d e seu conhecimento objetivo da rea lidade
(Pêcheux, 1975).
o princípio teórico fundamental, então, é considerar que há uma
relação entre linguagem e exterioridade que é constit~tiva. E.ssa é uma Visando o conhecimento do processo de produção da linguagem,
relação orgânica e não meramente adjetiva ..Não se d.irá •. ~ss11~, .q~e se o quadro epistemológico da análise de discurso se apresenta como a
acrescentam dados hist óricos para melhor delimitar a s1gnif1caçao, d1r-se- art iculação de três regiões do conhecimento científico:
á que o processo de significação é histórico. 1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e
Por isso tudo, falar não é a mesma coisa que produzir um exemplo suas transformações;
de gramática. As formações discursivas são formações compo~entes da.s 2. a lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos pro-
formações ideológicas' e determinam o que pode e d eve ser dito a part~r cessos de enunciação;
de uma posição em uma conjuntura dadas. As palavras mudam de senti- 3 . a teoria do discurso. como teoria da determinação histórica dos
processos semânticos.

1. formações ideológicas = conjunto de atitudes e . representações que não


são nem individuais nem universais, mas se reportam mais ou menos diretamente 2. O conceito de história de que lançamos mão compreende não só o aspecto
às posições de classe em conflito umas com as outras (Haroche et ai., 1975). cronológico mas sobretudo o de "intriga".
20 DISCURSO E LEITURA ENI PULONEW OfUANOI 21

Podemos, então, definir a semântica discursiva como a análise dos Por outro lado, ao considerar a existência da tensão entre o proces-
processos característicos de uma formação discursiva que deve dar conta so parafrástico e o polissêmico, e ao reconhecer a multiplicidade de sen-
da articulação entre o processo de produção de um discurso e as condi- tidos como inerente à linguagem, a análise de discurso tem, necessaria-
ções em que ele é produzido (Haroche et ai., 1975). mente, que ser crítica em relação a um conceito central para a semântica
lingüística: o conceito de "literalidade".
Da observação da linguagem em seu contexto, e em termos bastan-
te gerais, podemos dizer que a produção do discurso se faz na articula- Uma vez que o contexto é constitut ivo do sentido, abandona-se a
ção de dois grandes processos, que seriam o fundamento da linguagem: posição que privi legia a hipótese de um sentido nuclear. mais importante
hierarquicamente (literal) em relação aos outros. Não há um centro e
o processo parafrástico e o processo polissêmico.
suas margens, há só margens. Dessa forma, t odos os sentidos são de
O processo parafrást ico é o que permite a produção do mesmo sen- direito sentidos possíveis e, em certas condições de produção, há de fato
tido sob varias de suas formas (matriz da linguagem). dominância de um sentido sem por isso se perder a relação com os outros
O processo polissémico é o responsável pelo fato de que são sem- (implícitos).
pre possíveis sentidos diferentes, múltiplos (fonte da linguagem). A sedimentação de processos de significação se faz historicamente,
Esta tensão entre o mesmo e o diferente é que constitui as várias produzindo a institucionalização do sentido dominante. Dessa institucio-
instâncias da linguagem. Aí se situa a relação entre a variação, a multipli- na lização decorre a legitimidade, e o sentido legitimado fi xa-se então
cidade inerente à linguagem e a sua contenção (institucional). Expressa- como centro: o sentido oficial, literal. 3
se assim o conflito entre o garantido, o institucionalizado, o legitimado, e O produto dessa sedimentação, dessa institucionalização, é obser-
aquilo que, no domínio do múltiplo, tem de se garantir, se legitimar, se vado na história da língua: a história dos sentidos cristalizados é a histó-
institucionalizar. A polissemia é o conceito que permite a tematização do ria do jogo de poder da/na linguagem.
deslocamento daquilo que na linguagem representa o garantido, o sedi- Do ponto de vista da história, se podem apreender os produtos
mentado. Esta tensão básica, vista na perspectiva do discurso, e a que como tal. No processo da interlocução, entretanto, o sentido se constitui
existe entre o t exto e o contexto histórico-social: porque a linguagem é a cada momento, de forma múltipla e fragmentaria. E é essa relação di-
sócio-historicamente constituída, ela muda; pela mesma razão, ela se nâmica, é esse movimento entre processo e coisa produzida, que consti-
mantém a mesma. Essa é a sua ambigüidade. tui a linguagem.
Uma conseqüência da distinção desses dois processos e a diferença Essa via de reflexão nos permite dizer que a literal idade é produzida
entre criatividade e produtividade. A produtividade se dá pela obtenção historicamente, enquanto efeito de discurso. Portanto, o sentido literal
de elementos variados através de operações que são sempre as mesmas, não deve ser estabelecido a priori. É o que propõe Benveniste (1976),
que incidem recorrentemente e que, dessa forma, procuram manter o quando diz que "a unidade não preexiste ao em prego".
dizível no mesmo espaço do que já está instituído (o legítimo, a paráfra-
se); a criatividade instaura o diferente na linguagem na medida em que o
uso pode romper com o processo de produção dominante de sentidos e, li
na tensão da relação com o contexto histórico-social, pode criar novas
formas, novos sentidos. Pode realizar uma ruptura, um desloca mento em Até o momento, exploramos mais a relação método/objeto. Há uma
relação ao dizível. segunda passagem metodológica, que é a que se dá entre as técnicas e o
objeto de análise. É aí que encontramos a necessidade de operacionaliza-
A lingüística, tal como vinha se propondo, tendia mais a trabalhar
ção de conceitos.
com os produtos do que com os processos e, conseqüentemente, tendia
a privilegiar a paráfrase. No entanto, não há separação estanque entre o
produto e o processo: o produto se repõe continuamente como processo, 3. Observando-se o funcionamento da linguagem na sociedade (o procedimen-
e tanto a paráfrase como a polissemia devem ser objetos da reflexão so- to dos escritores competentes e dos leitores competentes, por exemplo) podem-se
bre a linguagem. apreender os mecanismos pelos quais fixam-se certos sentidos (e não outros).
22 DISCURSO ELEITURA ENI P\JLONEW ORl.ANOI 23

Tradicionalmente, temos as diferentes lingüísticas e seus objetos de O espaço e o tempo da linguagem são simbólicos e é nisso que
análise, ou melhor, suas unidades: a lingüística da palavra, a da frase. esbarram os modelos com sua segmentalidade, sua descrição e seu cará-
ter categórico.
A análise de discurso tem como unidade o texto. Na perspectiva da
análise de discurso, o texto é definido pragmaticamente como a unidade Outro aspecto a se considerar em relação à incompletude é que,
complexa de significação, consideradas as condições de sua produção. O uma vez que se constitui na interação, o sentido do t exto não se aloja em
texto se constitui, portanto, no processo de interação. cada um dos interlocutores separadamente, mas está no espaço discu rsi-
vo criado pelo (nos) dois interlocutores.
A relação entre o discurso e o texto é a que existe entre o objeto
Como a linguagem tem uma relação necessária com a exteriorida-
teórico e o da análise. Por exemplo, na gramática transformacional, é a
de, a idéia de unidade (de todo) não implica a de completude: a lingua-
relação que existe entre a competência (objeto teórico, objeto da descri-
gem não é uma coisa só e nem é completa.
ção) e a frase (unidade de análise); em Saussure, entre o sistema (a lín-
gua) e o signo. Na análise de discurso, o objeto teórico é o discurso e o Entendemos também como incompletude o fato de que o que ca-
racteriza qualquer discurso é a multiplicidade de sentidos possíveis.
objeto empírico (analítico) é o texto.
Todas essas afirmações nos levam a dizer que a linguagem não é
Enquanto unidade pragmática, que se constitui na interlocução, não
precisa, nem inteira, nem clara, nem distinta.
importa a extensão do texto: pode ser uma palavra, um sintagma, um
conjunto de frases (escrito ou oral), o que importa é que funciona como Gostaria de fazer referência ainda a um outro conceito que é tam-
unidade de signif icação em relação a situação. bém muito importante para a capacidade de operacionalização do mode-
lo proposto pela análise de discurso. Trata-se do conceito de funciona-
A noção de texto, enquanto unidade da análise de discurso, requer mento.
que se ultrapasse a noção de informação, assim como coloca a necessida-
O deslocamento da noção de função para a de funcionamento é
de de se ir além do nível segmentai. O texto não é soma de frases e não é
considerado condição essencial para a const ituição de qualquer ciência
fechado em si mesmo.
que trate do signo (Pêcheux, 1969). Não se descreve a função, mas sim o
Portanto, ao se passar para o t exto como unidade de discurso, se funcionamento.
passa da operação de segmentação para a de recorte. Passa-se da distri- Na análise de discurso esse deslocamento foi possível, isto é, se
buição de segmentos para a relação das partes com o todo, em que se podem conceber unidades superiores à frase como um funcionamento,
procuram estabelecer, at ravés dos recortes, unidades discursivas. cont anto que esse funcionamento se refira à sua exterioridade. Mais uma
Este é um domínio onde não há só o discreto e em que a relação vez é essa relação que permite a sistematização, o encontro de regulari-
com o continuum se faz necessária . Da mesma forma, se faz necessária a dades. A possibilidade de análise em análise de discurso deriva da consi-
relação com o heterogêneo, pois o todo que é o texto tem a ver com as deração do discurso como parte de um mecanismo em funcionamento,
condições de produção, a situação discursiva. Por outro lado, em termos correspondendo a um certo lugar no interior de uma formação social.
de sua dimensão, o texto, além de não progredir apenas em uma direção Tendo definido o funcionamento como a estruturação de um discur-
e não crescer somente para a frente, tem relação com o que não é ele, so determinado, por um falante determinado, para um interlocutor deter-
uma vez que o espaço simbólico (os implícitos) entre enunciados efetiva- minado, com finalidades específicas, esse determinado não é um, mas o
mente realizados é constitutivo do texto, bem como sua relação com ou- circunscrito a nossa experiência social, de nossa época e grupo social.
tros textos. A idéia de recorte remete, assim, à de polissemia. Quando pensado segundo as noções de produto e processo, o fun-
Como os recortes são feitos pela (e na) situação de interlocução, cionamento tem como contrapartida o conceito de tipo. Isto é, se o fun-
compreendem também um contexto mais amplo, que é o da ideologia. cionamento é a atividade estrutura nte, o tipo corresponde a cristalização
Vale ainda lembrar que esse t odo em que se constitui o texto é de dos seus resultados, ou seja: os tipos (produtos) são as fixações de pro-
cessos (funcionamentos) discursivos definidos na própria relação de in-
natureza incompleta. Indo mais além, podemos afirmar que a condição
terlocução.
de existência <;la linguagem é a incompletude.
24 DISCURSO E lflTURA ENI PULONEW ORlANDI 25

Do ponto de vista da operacionalização, a noção de tipo· tem fun- versibilidade tende a zero), em que a polissemia é contida (procura-se
ção metodológica fundamental: permite que se generalizem certas carac- impor um só sentido) e em que o objeto do discurso (seu referente) fica
terísticas, se agrupem certas propriedades e se distingam classes. É um dominado pelo próprio dizer (o objeto praticamente desaparece). O dis-
princípio organizador equivalente ao de categoria. Dada a institucionali- curso polêmico é o que apresenta um equilíbrio tenso entre polissemia e
zação a linguagem - o fato de que há um processo de legitimação histó- paráfrase, em que a reversibilidade se da sob condições, é disputada pe-
rica, das suas formas -. os tipos se estabelecem como produto dessa los interlocutores, e em que o objeto do discurso não está obscurecido
institucionalização e se fixam como padrões, como modelos. Esses pro- pelo dizer, mas é direcionado pela disputa (perspectivas particularizantes)
dutos, os tipos, vão entrar nas condições de produção do discurso, em entre os interlocutores, havendo assim a possibilidade de mais de um
seu funcionamento que, por sua vez, determina aquilo que pode vir a sentido: a polissemia é controlada . O discurso lúdico, que é o terceiro
constituir um novo tipo ou a reproduzir uma forma já estabelecida. tipo, é aquele que tende para a total polissemia, em que a reversibilidade
Resta observar que todo dizer tem necessariamente sua configura- é total e em que o objeto do discurso se mantém como tal no discurso. A
ção . Por isso é sempre possível se reconhecer um tipo em qualquer polissemia é aberta. O exagero do discurso autoritário é a ordem no sen-
instanciação de linguagem. tido militar, o do polêmico é a injúria e o exagero do lúdico é o non sense.
Dessa maneira, a relação entre tipo e funcionamento é um instru- Em nossa forma de sociedade atual, o discurso autoritário é dominante, o
mento decisivo para o analista, pois, em grande parte, a sua tarefa (explí- polêmico é possível e o lúdico é ruptura .
cita ou implícita) é distinguir modelos de discurso, articulando esses mo- Ao dizer que o discurso autoritário e dominante, estamos afirman-
delos sobre condições de produção (Maingueneau, 1976). do que o uso da linguagem está polarizado para o lado da paráfrase. E
Assim, a análise de discurso procura apreender a singularidade do isto se dá também no plano da reflexão. Vale dizer: o discurso autoritário
uso da linguagem ao mesmo tempo em que visa construir um quadro é o discurso do mesmo e isso está refletido, de alguma forma, na con-
geral, isto é, procura inserir o uso particular em um domínio comum . A cepção de linguagem que temos, na forma de estudos da linguagem, nos
noção de tipo é que possibilita que não se excluam as determinações moldes de análise propostos etc. Este é um deslize ideológico que faz
concretas que caracterizam um discurso sem, no entanto, nos perdermos com que se atribua à natureza da linguagem algo que é historicamente
nessa concretude (empirismo?). ficando ao sabor dos fatos, de tal forma determinado e se dá em relação a um tipo de discurso numa determinada
que cada discurso fosse um discurso sem nada a ver com outros. formação social. Se absolutiza o parcial.
Além disso, há outra dimensão operacional importante dessa no- Gostaríamos ainda de dizer que as tipologias devem ser interpreta-
ção: cada tipo estabelece a relevância de certos fatores (e não outros) das, pois não são nem de elaboração nem de aplicação mecânica. A
para as condições de significação do texto, isto é, a tipologia opera um tipologia que propomos, como qualquer outra, tem sua aplicabilidade
recorte que distingue o que no contexto de situação deve ser levado em regulada pelos objetivos da análise em sua relação com a natureza do
conta na constituição do sentido. texto. Se a elaboramos é por considerarmos que ela nos oferece uma
Mantendo como proposta a necessidade de relacionar funciona- perspectiva fecunda na exploração de características dos discursos e da
mento e tipo, procurei elaborar uma tipologia de discursos cujo caráter ideologia.
fosse exploratório. Exploratório no sentido de que essa elaboração se Não creio que se devam estabelecer relações categóricas entre os
apresentasse como uma forma de observar o modo de funcionamento tipos. É preferível, antes, falar-se em tendências: há discursos que ten-
dos diferentes discursos. Essa tipologia que elaborei, mantendo o com- dem para o tipo autoritário, ou tendem para o lúdico etc. Não há, assim,
promisso com os processos que coloco como hipóteses básicas do meu tipos puros, a não ser idealmente.
trabalho, tem como critérios a interação (a reversibilidade, a troca de Por outro lado, tenho procurado, ao longo do meu trabalho, não
papéis ou de estatutos entre interlocutores) e a relação entre polissemia e atribuir um valor específico a qualquer dos tipos, ou melhor, não penso
paráfrase (a possibilidade, ou não, de múltiplos sentidos). que haja um valor que afeta o tipo intrinsecamente: este e melhor que
Assim, o tipo autoritário é o que tende para a paráfrase (o mesmo) aquele etc. O valor dependerá das condições em que o discurso se pro-
e em que se procura conter a reversibil idade (há um agente único: a re- duz. Dessa forma, os tipos em si, na minha perspectiva, não só propostas:
26 DISCURSO ELEITURA EN! PIJLONELU OfUANDI 27

são tentativas de descrição. São propostas quando os aplico a formas de indicam uma relação x ou y com a ideologia (trabalha bem mas é preto, é
discurso institucionais como o discurso pedagógico, ou da mulher, ou da mulher mas pensa, cozinha mas canta, etc.). Quer dizer, há conceitos
história, da religião etc. Na aplicação, e dadas as características das for- mediadores entre o lingüístico e o ideológico.
mações sociais, tenho proposto como um objetivo desejável instalar-se o
discurso polêmico, isto é, aquele próprio a uma sociedade critica.• condições de produção-funcionamento- formações discursivas- formações ideológicas
Analisei vários discursos procurando reconhecer suas característi-
cas, de acordo com os critérios estabelecidos por essa tipologia. Aprofun- +
(marcas e propriedades)
dando então a idéia de que era necessário encontrar traços, isto é, mar-
cas lingüísticas responsáveis pelas diferentes formas de funcionamento
dos discursos, estabeleci uma di stinção entre marcas e propriedades. Conclusão
As marcas dizem respeito à organização do discurso e a proprieda-
de tem a ver com a consideração do discurso como um todo em relação a Os conceitos fundamentais dessa espécie de análise de discurso (há
exterioridade, com a situação (com as instituições, com o contexto sócio- outras) são: processo e produto, contexto histórico-social, interação, tra-
histórico, com a cultura, com a ideologia). As marcas não são suficientes balho, formação discursiva, formação ideológica.
para caracterizar um funcionamento discursivo. Para tal é preciso remetê- Podemos reconhecer Foucault atrás da idéia de disciplina, de insti-
las à propriedade. tuição, de poder etc. Gostaria de me referir, rapidamente, a algum pres-
Ex. Marcas do discurso religioso: suposto da filosofia da diferença.
a) gramaticais: negação, perífrase, imperativo etc. O conceito de uma lingüística não prisioneira do significante
(Chomsky, estruturalismo estrito, distinção significante/significado, lingua
b) textuais: antítese, parábola, metáfora, etc.
enquanto tal etc.) parece depender, para os filósofos, da diferença, da
Propriedade: assimetria entre os planos espiritual e
procura do que eles têm chamado de avesso da estrutura. O avesso da
temporal, não-reversibilidade entre os
estrutu ra é u ma reunião dinâmica de elementos que estão j untos por
planos e ilusão da reversibilidade.
ausência de ligação (constelação, de Hjelmslev). Vale dizer, é um jogo de
combinações cegas. Para J. Monod (1976), por exemplo, é a característica
Além disso, é preciso observar que, sem a consideração do funciona- do outro lado do código genético explícito.•
mento do discurso em suas condições de produção, não há possibilidade
Privilegiou-se a estrutura . Agora se admite que a anarquia também
de distingui-lo, pois o estabelecimento da propriedade do discurso é o
é constitutiva .
estabelecimento do funcionamento típico de suas condições de produção.
Na lingüística, o exemplo visível desses deslocamentos pode ser obser-
Através da caracterização dos funcionamentos discursivos e de sua
vado nos jogos: o jogo privilegiado por Saussure é o xadrez; para Searle é o
relação com os tipos que podem configurar, procuro então estabelecer,
beisebol (o que é normativo e o que é constitutivo), agora é a vez do aves-
com alguma precisão, a relação entre o lingüístico e o ideológico. Isto é,
so. O avesso do xadrez é o go chinês. Que é um jogo que não e posicional,
procuro detectar marcas e propriedades do discurso, analisando seu fun-
só de estratégias. Este jogo não é representativo, só produtivo.
cionamento e estabelecendo a relação entre esses funcionamentos e for-
mações discursivas que, por sua vez, remetam a uma certa formação ideo- É um pouco isso que está suposto quando desloco a literalidade e
lógica. Assim, pode-se dizer, por exemplo, que não é a partícula mas que afirmo que não há um sentido central, só margens. Ou quando penso
é ideológica, mas sim o modo como ela funciona em construções que, que há tensão, e não oposição, entre os processos parafrástico e polissê-
remetidas a certas formações discursivas (da classe média, por exemplo), mico. É ainda a mesma coisa que está imp lícita quando abro mão do
único, do preciso, do definid o. É a idéia de movimento que me atrai.

4. Cabe aqui a questão: qual é o discurso desejável e passivei para o conhe-


cimento? 5. Referências feitas por Luís Orlandi em conversa pessoal.
28 DISCURSO ELEITURA 29

Todo discurso se produz em certas condições. E pensando a lingüís-


tica, pode-se observar, por exemplo, em que condições Chomsky escre-
veu sua gramática: trata-se de dar conta, no fundo, da descoberta de
uma teoria gramatical em condições culturais de pouca tradição gramati-
cal; foi preciso inscrever essa descoberta em uma história da lingüística
suscetível de prefigurá-la, fornecendo-lhe seus títulos de nobreza: é nes-
sas condições que Descartes, senhores de Port Royal e Humboldt atraves-
saram o Atlântico (Gadet & Pêcheux, 1981 ). Alguns, como Martinet, vêem
nisso uma revanche do anglocentrismo sobre as culturas latinas, uma
empresa que visa substituir o velho imperialismo cultural greco-latino pelo
imperialismo anglo-americano, absorvendo-o. A gramática transforma-
cional seria, então, a expressão de uma corrente anexionista visando re-
A função mais própria da universidade
construir diferentes línguas sobre o modelo do inglês, exatamente como
os missionários e exploradores europeus tinham reconstruído, desde o
e sua configuração histórica*
século XVI ao XVII, todas as línguas que encontraram, tomando o latim e
o grego como referências universais (Gadet e Pêcheux, 1981 ).
A que condições responde o discurso da análise de discurso? Para contextualizar o assunto dessa reunião gostaria de falar sobre
as razões que me levaram a propor esse tema: " Leitura, trabalho intelec-
tual e universidade".
Referências bibliográficas Partindo do pressuposto de que se tratava de um grupo de trabalho
específico, inserido em um Encontro cujo tema é "Linguagem, aprendiza-
BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral. São Paulo, EDUSP, 1976. gem e interação", procurei colocar significativamente a expressão "traba-
GADET, F. & PÊCHEUX, M. La langue introuvable. Paris, Maspero, 1981 . lho intelectual" entre leitura e universidade, com dupla finalidade.
HAROCHE et ai. " La sémantique et la coupure saussurienne: langue,
langage, discours". Langages, 24: 93-106, 1971 . 1. A primeira das finalidades é sugerir a relação da noção de leitura
com a de trabalho intelectual e, assim, sair do circuito mais estrito no
HJELMSLEV, L. Prolegomenes à une théorie du langage. Paris, Minuit, 1968.
qual se toma a leitura em seu caráter técnico imediato.
MAINGUENEAU, D. lnitiation aux méthodes de l'analyse du discours. Pa-
Essa via estritamente técnica tem conduzido ao tratamento da lei-
ris, Hachette, 1976.
tura apenas em termos de estratégias, e de relações pedagógicas marca-
MONOD, J. Acaso e necessidade. Rio de Janeiro, Vozes, 1976. das por um exagerado imediatismo. Nessa perspectiva, as soluções pro-
PÊCHEUX, M . Analyse automatique du discours. Paris, Dunod, 1969. postas criticam o excessivo pragmatismo da educação, mas, ao mesmo
PÊCHEUX, M . & FUCHS, C. "M iser au point et perspectives à propos de tempo, colocam à disposição do aluno apenas mais um artefato escolar
l'analyse automatique des discours". Langages, 37, 1975. pronunciadamente instrumental. Na realidade, elas não são críticas, pois
ROSSl-LANDI, F. A linguagem como trabalho e mercado. Rio de Janeiro, refletem (reproduzem) o estado de coisas de que discordam.
Palias, 1975. Em termos do que se lê, tomando-se um texto qualquer, há uma
ROUSSEAU, J. J. E/ origen de las lenguas. Buenos Aires. Calden, 1970. história das leituras desse texto, assim como há a historia específica das
leituras de cada leitor, que não pode se resolver na urgência de relações
SAUSSURE, F. de. Cours de linguistique générale. Paris, Payot, 1962.
VEYNE, P. Comment on écrit /'histoire?. Paris, Seuil, 1971.
* Texto de abertura de uma mesa-redonda sobre leitura, realizada na Semana
sobre Linguagem e Aprendizagem, no IEL, em 1983.
30 DISCURSO E LEITURA ENI PULCINEW ORLANDI 31

de ensino, que passam por cima dessas histórias assim como passam por e como é que se formam esses professores que dão aulas no
cima da história das relações com o saber, tal como se dá em nossa socie- primário e no secundário e que a universidade, ao lhes "prestar
dade, passando ainda por cima da história particular das nossas institui- serviço", os categoriza como "incapazes"? Caberia ainda a ques-
ções do saber no contexto cultural em que existem e atuam. tão: o aluno da universidade está sendo capacitado para sua
Esse pedagogismo que aí se mostra desvincula de seu contexto so- prática?
cial as soluções para os problemas de ensino. Ou seja, decide-se que não 2. A outra conseqüência problemática é que, assim, se "toma o lu-
se sabe ler e se propõem técnicas de leitura para que se dê conta, rapida- gar de", ou seja, se elimina a possibilidade de que aqueles que
mente, dessa dita incapacidade, generalizada, e que alguns até acredi- têm sua prática no primário e no secundário possam formular e
tam que seja inata, de que sofre o brasileiro ("brasileiro não lê"). elaborar adequada e autonomamente suas questões e reivindicar
Eu diria, então, que uma das minhas preocupações é recusar esse condições para viabilizar soluções para suas dificuldades de ensino.
pedagogismo de que padece a tematização da leitura: relativizar "diag-
nósticos", historicizar as dificuldades, pensar essas questões não só a Cria-se o eterno circuito de dependências e tapa-buracos que re-
curto prazo etc. produzem, de forma reiterada, as mesmas dificuldades e problemas. Em
termos práticos, isso significa que - no legítimo propósito de integração
Assim, a expressão "trabalho intelectual", estrategicamente coloca-
dos diferentes estágios de conhecimento e da realização do intercâmbio
da no título, visa deslocar o modo como se tem refletido sobre leitura.
efetivo entre os diferentes graus de ensino - pode-se acabar produzindo
Ler, a meu ver, e sobretudo a condição de base do trabalho intelectual.
uma hierarquização de interesses, cuja direção é dada pela universidade.
Conseqüentemente, se estabelece um circuito de dependências que apri-
li. A outra finalidade é dar, com a expressão "trabalho intelectual",
siona tanto a universidade quanto o 1º e 2° ciclos. Assim, a universidade
uma maior precisão ao modo como se pode tomar o conceito de univer-
tem sido o lugar da explicitação da irracionalidade de um sistema de
sidade.
ensino em que o primário não cumpre seus objetivos, que são adiados
E aqui também minha preocupação é bastante específica. pelo secundário, acudidos pelo cursinho em regime de urgência, e " pre-
Tenho participado de encontros, debates, mesas-redondas, proje- sumivelmente" supridos pela universidade. Dessa forma, cabe a questão:
tos etc., em que se tem falado muito da relação universidade/comunida- quando se vai inaugurar a universidade na universidade?
de. Quando isso é tematizado por pessoas que trabalham com Letras, há Se, por um lado, esse é o prejufzo para a universidade, por outro
grande possibilidade de que a "comunidade" seja vista sob o aspecto lado, o encadeamento de dependências faz com que se cristalize a id~ia
pedagógico e, assim, sem sair do espaço da escola, isso significa dizer: a de que a atividade de dar aulas se distingue categoricamente da pesquisa
relação da universidade com o ensino de 1° e 2° ciclos. e define o professor secundário como um " dador de aulas". Não se inves-
Essa relação com a "comunidade" tem tido a forma da prestação de te em pesquisas do secundário no secundário (a não ser gerenciadas pela
serviços. E muitas vezes isso pode ser traduzido por " filantropia intelec- universidade).
tual", "salvacionismo", uma espécie de pronto-socorro universitário, quan- Em suma, essa função - a de prestadora de serviços - propicia o
do não é mal disfarçado jesuitismo (forma radical de paternalismo que, "estar no lugar de", o apropriar-se do lugar do outro. Aliás, em muitos
por sua vez, é um autoritarismo com disfarces, etc.). t rabalhos, a palavra é "intervenção": intervenção científica, intervenção
Isso traz conseqüências sérias, das quais citarei, a título de exem- da racionalidade, intervenção pedagógica etc. Fala-se até em "interven-
plo, apenas duas: ção pedagógica para uma educação libertadora". Por que não se usa a
1. Essa forma de relação entre a universidade e o ensino primário e palavra "prática"?
secundário não leva a universidade a refletir sobre o seu próprio Não concordo com essa concepção de universidade porque, ai, mais
domínio de ação específico. Isto é, se fazem múltiplas propostas uma vez se está escamoteando a divisão do trabalho e as diferenças esta-
para o primário, para o secundário, e não se reflete sobre a ação belecidas institucionalmente. O que se daria se se estabelecesse uma re-
da universidade na própria universidade. E eu perguntaria : onde lação crítica entre universidade e comunidade que não fosse unilateral.
32 DISCURSO E LEITURA ENI PIJLCINEW ORLANOI 33

Assim, a segunda preocupação é não considerar a universidade como Voltando, enfim, ao propósito primeiro dessa nossa reflexão, eu
prestadora de serviços e, conseqüentemente, questioná-la em relação ao diria que a intenção mais geral - e que abrange as dificuldades 1 e 2
seu próprio espaço. Isso porque, a meu ver, se começa por atribuir fun- apontadas - é colocar em causa, através da idéia de trabalho intelectual,
ções que não são da universidade, como se isso fosse a busca de sua o conceito de "escolaridade" no âmbito da universidade, tal como eta se
função mais própria; mistifica-se, então, a não-distância entre a universi- mostra em seu atual contexto histórico.
dade e a comunidade. Essa não-distância, no entanto, deveria estar em O que temos visto é a escalada, cada vez maior da " escolarização" a
outro lugar que talvez fosse mais fácil de atingir se a universidade se todos os níveis de reflexão, reduzindo-se assim a vida intelectual a meros
aprofundasse em sua relação de trabalho consigo mesma. Porque, para- programas curriculares em que a preocupação maior está em parecer "crí-
doxalmente, quanto mais se fala nessa sua relação com a exterioridade, tica". Dessa forma, o que se visa na realidade é cumprir compromissos
mais a universidade se repete em sua circularidade. Basta observar seu formais e burocráticos: horas-aula, créditos, e até mesmo incluir discipli-
discurso: ele gira reiteradamente em torno de sua própria reprodução. nas modernosas em cursos básicos, para mostrar como se "envidam es-
Ao se voltar a reflexão da universidade para ela mesma certamente forços no atendimento dos interesses e dificuldades reais da comunida-
seremos levados a refletir sob re todos esses outros lugares e suas rela- de" etc.
ções, de forma crítica . Quanto mais se restituir ao trabalho intelectual sua complexidade e
Por que tantas propostas críticas em tantas direções e não em rela- sua realidade histórico-social, menos "escolarizada" estará a reflexão e
ção ao seu próprio trabalho intelectual? haverá mais possibilidade de que a leitura ganhe um contexto em que
Essa forma de considerar as relações da universidade como não precisará de " incentivos" para que se cotidianize. Ela responderá,
prestadora de serviços reflete-se na universidade de maneira a reduzi-la a então, a uma necessidade real.
um "mediador" que reproduz a comunidade tal qual. Sem nenhuma críti-
ca e com bastante anacronismo.
Para se verificar isso - e aqui abro um parêntese - basta prestar
atenção aos conceitos e expressões utilizados quando se tematiza a rela-
ção da universidade com a sociedade: o conceito de "comunidade" (o
que é, de que natureza é esse conceito?); o de " periferia" (tal como para
a comunidade, cabe perguntar por sua natureza; em geral se aplica vaga-
mente a população pobre); a referência infalível às crianças " carentes"
(porque não espoliadas? Tratam como um fato intrínseco, natural, algo
que é produzido socialmente); o apelo cristão à mudança de " atitudes",
ou seja, o apelo à ética social cristã (quando se deveria falar de mudanças
efetivas de relações sociais); ou a oferta, pelos órgãos governamentais,
do "apoio técnico" (o que revela um profundo reformismo e encobre o
jogo das prioridades orçamenteiras: por que não apoio integral do Esta-
do?) etc.
Mais uma vez a linguagem se desprega da prática. Ou, em termos
t écnicos, o que ouvimos é um discurso em que o "dizer" desaloja o "ser",
apagando as distâncias e as diferenças.
O que propomos, então, é que a interação entre a universidade e os
outros setores da sociedade não tenha a forma da prestação de serviços,
mas se articule, enquanto instituição, de forma clara e crítica com as ou-
tras instâncias institucionais.
3S

Leitura: questão lingüística, pedagógica ou


social?*

Método e redução
O título já é, em si, enganador, pois pressupõe a separação categó-
rica entre as disciplinas. Num mesmo fato - a leitura, por exemplo - os
domínios de conhecimento (o lingüístico, o pedagógico e o social) estão
integrados. A d ivisão das disciplinas já é, pois, resultado de uma forma
de recorte estabelecida pelo discurso científico. Essa é a armadilha : sepa-
rar, para conhecer.
De minha parte, quero dizer que não vou esperar o fim do trabalho
para responder à questão proposta. Não será este o fio condutor da minha
exposição. A resposta, então, é a de que a leitura é uma questão lingüísti-
ca, pedagógica e social ao mesmo tempo. Embora cada especialista a en-
care em sua perspectiva, a postura crítica está em não absolutizar essa
perspectiva pela qual observa o fato. Metaforicamente, eu diria que é pre-
ciso não esquecer que o microscópio não é a bactéria que se observa.
... Por outro lado, gostaria de colocar três afirmações que est ão pres-
' supostas a este estudo e que. no entanto, embora pressupostas devem, a
rigor, ser colocadas em d iscussão.'

• Publicado originalmente em Educação & Sociedade. São Paulo, Corte2'/CE-


DES, n. 22, set.-dez., 1986, pp. 93-98.
1. Discutimos alguns desses aspectos no Encontro sobre Linguagem, Intera-
ção e Aprendizagem que realizamos no IEL. Unicamp, em 1983.
36 DISCURSO ELEITURA ENI PULCINELLI ORLANOI 37

1. Não acredito que se deva restringir a reflexão da leitura ao seu que muda as relações sociais, mas o modo de sua apropriação, no qual
caráter mais técnico. Isso conduz ao tratamento da leitu ra apenas estão atestadas as marcas de quem se apropria dele.
em termos de estratégias pedagógicas exageradamente imedia- Este é, pois, o segundo tipo de reducionismo: o da classe média.
tistas. E a leitura deve ter, na escola, uma importante função no No discurso da classe méd ia, ou se tem o conhecimento dominante
trabalho intelectual geral. Na perspectiva imediatista, as soluções ou se tem um menos abstrato, menos rigoroso, o da facilidade, rebaixa-
propostas colocam à disposição do aluno apenas mais um artefa- do. Saber nenhum, portanto. Para mim não é uma questão de tudo ou
to escolar pronunciadamente instrumental. Visando a urgência de nada. Há fo rmas de saber que são diferentes e que têm funções sociais
resultados escolares, se passa por cima de aspectos fundamentais distintas. Há o saber dominante e há outros que sequer são formu lados.
que atestam a história das relações com o conhecimento tal como O fato de se atribuir d iferentes estatutos epistêmicos a essas formas de
ele se dá em nossa sociedade, assim como sobre a história parti- saber está ligado ao fato de que, uma vez que a sociedade é d ivid ida, há
cular de n ossas instituições do saber e seus programas. as formas legítimas e as que não são legít imas (que têm de se legitimar).
Quando se adere ao conhecimento legítimo, através do discurso
Disso resulta uma primeira redução para a qual eu chamaria a aten- que propõe o acesso necessário a ele, se desconhece a luta de classes, a
ção: o pedagogismo. O pedagogismo, para mim, é acreditar em soluções luta pela validade das d iferentes formas de saber e a questão da resistên-
pedagógicas desvinculando-as do seu caráter sócio-histórico mais amplo: cia cultural.
para resolver a questão da leitura se propõem técnicas para que se dê
Daí, a meu ver, se dever reinvidicar politicamente o acesso às for-
conta, em algumas horas semanais, dessa propalada incapacidade.
mas do conheciment o legít imo, mas, ao mesmo tempo, criar espaço para
a elaboração de outras formas de conhecimento que derivem d o conheci-
2. Vejamos agora a questão da distinção de classes sociais na sua
mento efetivo do aprendiz em suas condições sociais concretas.
relação com a escola e a leitura.
Essas considerações remetem ao reducionismo social de classe mé-
Ao contrário do feudalismo, que visava manter diferentes ordens dia que acabamos de expl icitar. Ou seja, a escola, ta l como existe, em
sociais regularmente separadas, a dominação burguesa desenvolve pro- referência à leitura, propõe de forma homogênea que todo mundo leia
cessos de interpenetração das classes dominadas estabelecendo (e atuando como a classe média lê .
em) um terreno de confrontos e de diferenças: essas diferenças são ab-
Para não se submeter a esse reducionismo, deve-se procura r uma
sorvidas para que haja universalização das relações de dominação.
forma de leitura que permita ao aluno trabalhar sua própria história de
O discurso da burguesia se caracteriza pela proclamação do ideal leituras, assim como a história das leituras dos textos e a história da sua
da igualdade, ao mesmo tempo em que organiza uma desigualdade real relação com a escola e com o conhecimento legítimo.
(Pêcheux & Gadet, 1983).
Se assim é, q uando surge o projeto de uma escola democrática, no 3. A terceira afirmação incide propriamente sobre o objeto especí-
interior da sociedad e capital ista, devemos procurar determinar o que essa fico dessa exposição: o que é a leitura?
escola reinstala como diferença, uma vez que a educação é uma educa- Do ponto de vista da lingüística imanente, se poderia tomar a leitu-
ção de classe. Por isso, a afirmação d e que é preciso se apossar da totali- ra como decodificação e se proporiam técnicas que derivassem d o conhe-
dade do conhecimento da classe dominante para que haja transformação cimento lingüístico est rito. Dir-se-ia, então, que o texto tem um sentido e
tem seu compromisso social Mais exatamente, é uma afirmação do dis- o aluno deveria apreender esse sentido.
curso da classe media (Orlandi, 1987). Propõe o acesso a esse conheci- Na perspectiva da análise de discurso, que é a que estou assumindo
mento, mas não especifica quem pode e em que condições sociais isso em relação à leitura, esta seria uma outra forma de reducionismo: o redu-
pode acontecer. Esse acesso, segundo o que penso, não é nem necessá- cionismo lingüístico.
rio, nem suficiente para uma transformação que não tenha direção dada A visão oposta a esta forma de reducionismo não vê na leitu ra do
pela classe dominante. Além disso, não é o acesso ao instrumento em si texto apenas a decodificação, a apreensão de um sentido (informação)
que já esta dado nele. Não encara o texto apenas como produto, mas
38 DISCURSO ELEIT\JRA ENI PIJLCINELU ORlANDI 39

procura observar o processo de sua produção e. logo, da sua significa- A escola, no entanto, evita, escrupulosamente, incluir em sua re-
ção. Correspondentemente, considera que o leitor não apreende mera- flexão metodológica e em sua prática pedagógica a consideração de
mente um sentido que está lá; o leitor atribui sentidos ao texto. Ou seja: outras formas de linguagem que não a verbal e. no âmbito dessa. dá mais
considera-se que a leitura é produzida e se procura determinar o proces- valor à escrita que à oralidade. Isso representa a expressão do maniqueís-
so e as condições de sua produção. Daí se poder dizer que a leitura é o mo escolar, que vê em outras formas de linguagem sua manifestação
momento crítico da constituição do texto. o momento privilegiado do rebaixada. Não se trata da capacidade de compreensão do aluno e, no
processo de interação verbal, uma vez que é nele que se desencadeia o interior desta, da sua capacidade de compreender textos escritos.
processo de significação. No momento em que se realiza o processo da Caberia, pois a questão: qual é a imagem de leitor que a escola
leitura, se configura o espaço da discursividade em que se instaura um produz?
modo de significação espedfico. Como as representações são constitutivas da ação pedagógica, é
Já falei, em outros trabalhos, sobre alguns componentes das condi- preciso saber como é representado esse aluno-leitor. Assim como se cons-
ções de produção da leitura: os sujeitos (autor e leitor), a ideologia, os trói uma idéia do que seja a legibilimidade, há também a proposta de um
diferentes tipos de discurso. a distinção entre leitura parafrástica (que leitor capaz dessa legibilidade, na escola.
procura repetir o que o autor disse) e a polissêmica (que atribui múltiplos Uma vez que a escola tem procedido a uma corte categórico das
sentidos ao texto), assim como tematizei a necessidade de se levar em práticas do aluno que não se definem no espaço escolar, já fica excluído o
conta as histórias da leitura do texto e as histórias das leituras do leitor.2 fato de que o aluno não lê só na escola, mas também fora dela.
Portanto, na definição desse aluno-leitor, já temos duas determina-
ções negativas: exclui-se a sua relação com outras linguagens e exclui-se
Linguagem verbal e não-verbal
a sua prática de leitura não-escolar. Entre as propriedades desse aluno-
leitor podemos então destacar a que o relaciona somente com a lingua-
O que gostaria de acrescentar - e é esta a contribuição específica
gem verbal e no interior da escola. Essa imagem do aluno é que tem sido
que trago para esta discussão - é que o espaço de leitura escolar exclui
o fundamento para as metodologias de leitura que são propostas. E isso
da sua consideração o fato de que o aluno convive em seu cotidiano com
tem sérias conseqüências.
diferentes formas de linguagem.
A relação do aluno com o universo simbólico não se dá apenas por
uma via - a verbal -. ele opera com todas as formas de linguagem na
O conhecimento recusado
sua relação com o mundo. Se considerarmos a linguagem não apenas
como transmissão de informação mas como mediadora (transformadora)
Na realidade, em linguagem (e, logo, em leitura) não há grau zero
entre o homem e sua realidade natural e sociál, a leitura deve ser conside-
assim como não há grau dez. Na dicotomia entre método de ensino e
rada no seu aspecto mais conseqüente, que não é o de mera decodifica-
processo de aprendizagem, a escola se coloca como se o aluno não tives-
ção, mas o da compreensão.
se já instalado um processo de aprendizagem e ao propor, dentro de suas
Dessa forma, o processo de compreensão de um texto certamente
perspectivas e funções, um método de ensino, coloca o aluno no grau
não exclui a articulação entre as várias linguagens que constituem o uni-
zero e o professor no grau dez. No entanto, assim como não se pára de
verso simbólico. Dito de outra maneira: o aluno traz, para a leitura, a sua
"aprender" a ler num momento dado (grau dez), também não há possibi-
experiência discursiva, que inclui sua relação com todas as formas de
lidade de se reconhecer um momento em que se começa do nada (grau
linguagem.
zero). Então, o que a escola faz, ao supor o grau zero, é utilizar um co-
nhecimento prévio, que o aluno tem, sem explicitar essa utilização. Dessa
forma esse conhecimento é, ao mesmo tempo suposto e recusado, ou
2. Cf. neste volume: "As histórias das leituras· e "A história do sujeito-leitor: seja, desvalorizado. Isto resulta em uma relação coercitiva do método de
uma questão para a leitura". ensino sobre o processo de aprendizagem.
40 DISCURSO ElflTURA 41

A proposta é, pois, questionar essa imagem do aluno-leitor. De que


forma? Explicitando essas relações que estão supostas e recusadas.
A ordem imposta pelo método de ensino ao processo de aprendiza-
gem - método este que se funda sobre presunções e constrói a repre-
sentação do aluno-leitor - aponta sempre para a não-relação com o ines-
perado, o múltiplo, o diferente. No entanto, esta relação deveria fazer
parte do processo de aprendizagem. Não estamos com isso propondo
que se entregue o projeto pedagógico ao espontaneísmo das relações já
estabelecidas pelo aluno. Mas tampouco aceitamos a imposição (onipo-
tente) do controle total exercido pela autoridade escolar. O que se pro-
põe é uma relação dialética entre aprendiz e professor na construção do
As histórias das leituras*
objeto de conhecimento, no caso presente, a leitura.
Assim como o aluno não está no grau zero, o professor não está no
grau dez e a relação entre eles pode ser fecunda para ambos. Tenho me proposto a reflexão sobre leitura basicamente com duas
No que diz respeito às diferentes formas de linguagem que consti- finalidades. Uma delas, dê caráter mais prático, e a de fornecer subsídios
tuem o universo simbólico desse aluno, seria interessante que, ao invés para o ensino de leitura em uma escola que se queira crítica. A outra
de ser uma relação suposta e recusada, ela fosse o ponto de partida, a finalidade, de caráter menos prático, liga-se ao fato de que a leitura é um
fonte de hipóteses para estimular e fazer a_vançar o processo do aprendiz. processo cuja explicitação envolve mecanismos de muita relevância para
a análise de discurso. Ao menos quando a leitura é vista como produzida
A convivência com a música, a pintura, a fotografia; o cinema, com
em condições determinadas, ou seja, em condições sócio-históricas que
outras formas de utilização do som e com a imagem, assim como a con-
devem ser levadas em conta.
vivência com as linguagens artificiais poderiam nos apontar para uma
inserção no universo simbólico que não é a que temos estabelecido na É nessa direção, isto é, na procura de explicitar alguns componen-
escola . Essas linguagens todas não são alternativas. Elas se articulam. E é tes das condições de produção da leitura, que vai esse meu trabalho.'
essa articulação que deveria ser explorada no ensino da leitura, quando Começo. então, por afirmar que toda leitura tem sua história.
temos como objetivo trabalhar a capacidade de compreensão do aluno. Para um mesmo texto, leituras possíveis em certas épocas não o
Do contrário, temos que torcer para que aconteçam alunos bem- foram em outras, e leituras que não são possíveis hoje serão no futuro.
sucedidos que sejam capazes de apresentar uma leitura típica de escola Isto pode ser observado em nós mesmos: lemos diferentemente um mes-
para o professor, e uma outra, que eles fazem dos seus jeitos, fora dela, e mo texto em épocas (condições) diferentes.
para seus mundos. Onde, historicamente, a linquagem verbal já não ocupa Há ainda a considerar outras formas de variação. Por exemplo, aquela
o centro. que é referida aos diferentes tipos de discurso: podemos lembrar aqui o
fato de que antigos textos sânscritos sagrados são hoje lidos como litera-
tura. Isso faz parte do processo de significação desses textos e, logo, do
Referências bibliográficas

ORLANDI, E. "A leitura: de quem, para quem?", in: A linguagem e seu * Publicado originalmente em Leitura: teoria e prática, Porto Alegre, Mercado
Aberto, ano 3, n. 3, 1984.
funcionamento . 2. ed. Campinas, Pontes, 1987.
1. Gostaríamos de enfatizar a importância que têm os estudos no domínio da
P~CHEUX, M. & GADET, F. La tangue introuvable. Paris, Maspero, 1983. hermenêutica e das literaturas - tais como os de P. Ricoeur, R. Coreth e outros -
cm relação à interpretação de textos. Nosso intento, porém, é contribuir com al-
guns aspectos da reflexão lingüística, mais especificamente, com a exploração de
otguns princípios e conceitos que derivam da análise de discurso.
42 DISCURSO E LEllURA ENI PULONEW ORIANDI

processo de sua compreensão. Uma variante deste fato pode ser observa- Nesse circuito da leitura de prestígio, o professor, por sua vez. reto-
da na alteração dos modos canônicos de leitura, por exemplo: quando se ma, e m seu trabalho pedagógico, uma leitura considerada como ideal e
lê a história em quadrinhos de forma diferente daquela tipicamente pro- que tem como modelo a de um crítico.
posta para histórias em quadrinhos.' Lê-se, então, essas histórias como Atualmente, a le!tur~ ideal do professor está amarrada àquilo que é
documentos, ou como textos literários etc. fornecido pe_lo livro didático. Ou seja, o professor orienta-se por aquilo
Outro fenômeno que pode entrar no domínio da variação, e que é de que é fornecido, pronto-a-mão, no livro de respostas do livro didático A
caráter social, é o que se refere à leitura de classe, ou seja, há um modo de a utoridade imediata, nesse caso, é o autor do livro didático adotado.;
leitura que pode ser remetido às distinções de classes sociais: um modo de _ Um outro as~ecto, também histórico, deve-se juntar a essa afirma-
leitura da classe média, por exemplo, que é o estabelecido e o mais propa- çao de .que toda le1t~ra t~m sua. história. Este outro aspecto é 0 d e que
gado (o dominante) pela escola. Nesse caso se poderiam propor outros todo leitor tem sua história de leitura. O conjunto d e leituras feitas confi-
modos de leitura diferentes daquele mais próprio à classe média. guram, em parte, a compreensibilidade• de cada leitor específico .
Em geral, portanto, há vários fenômenos de variação que podem . L~ituras já feitas configuram - dirigem, isto é, podem alargar ou
estar contidos na afirmação de que a leitura tem sua história. restnng1r - a c~mpr~ensão de texto de um dado leitor. O que coloca,
Por sua vez, essa afirmação resulta, entre outras coisas, e m que há também para.a história do leitor, tanto a sedimentação de sentidos como
leituras previstas para um texto, embora essa previsão não seja absoluta, a mtertextuahdade, como fatores constitutivos da sua produção.
uma vez que sempre são possíveis novas leituras dele. .Em suma, as leituras já feitas de um texto e as leituras já feitas por
Há vários elementos que podem determinar a previsibilidade das um leitor compõem a história da leitura em seu aspecto previsível.
leituras de um texto. Nesse trabalho, gostaria de indicar dois deles: . M.as a história também é capaz de produzir a imprevisibilidade. As-
1. Os sentidos têm sua história, isto é, há sed imentação de senti- sim, é ainda do contexto histórico-social que deriva a pluralidade possível
dos, segu ndo as condições de produção da linguagem. - e do meu ponto de vista, desejável - das leituras.
2. Um texto tem relação com outros textos (a intertextualidade) . O que me leva a dizer, então, que as leituras têm suas histórias, no
plural.
Ao afirmarmos que os sentidos têm sua história, estamos enfati- Nessa dinâmica entre as leituras previstas para um texto e as novas
zando que a variação tem relação com os funcionamentos distintos, ou leitur_as po~síveis ~ que tenho situado o limite difícil de ser traçado na
seja, com os contextos de sua utilização. E ao afirmarmos que um texto relaçao de mteraçao ~ue a leitura e nvolve: aquilo que o leitor não chegou
tem relação com outros, estamos apontando para o fato de o conjunto a ~empreender, o m1n1mo que se espera que seja compreendido (limite
de relações entre os textos mostrarem como o texto deve ser lido. m1rn~o) e aquilo que ele atribui indevidamente ao texto, ou seja, aquilo
A legitimação desse processo histórico da leitura se faz de formas que Já ultrapassa o que se pode compreender (limite máximo). o que
variadas nas diferentes instituições: na Igreja cristã está a cargo do teólo- t~nho coloca~o como o risco para menos, da leitura parafrástica, e 0
risco para mais, da leitura polissêmica.•
go; no Direito, do jurista etc.
Cremos que, em relação à escola, há especialistas com essa função
pa ra os diversos domínios científicos. Podemos exemplificar através de
3. Essa observação me foi feita por Ezequiel T. da Silva (1983), que trata desse
uma função geral a vários deles: a do crítico. Ao mesmo tempo que ava- assunto em um artigo de seu livro Leitura & realidade brasileira.
liam a importância de um texto, os críticos fixam -lhe um sentido que é 4. Evito o uso do ter.mo ·:inteligibilidade" porque seu uso, em lingüística tra-
considerado o desejado (o prestigiado) para a leitura . "ª a necessidade de d1stmgu1-lo de "interpretabilidade" (cf. M. A. K. Hallyday &
llassan, 1976). O modo como uso "compreensibilidade" pretende incluir em seu
r~paço ta_n_to a int~ligibilidade como a interpretabilidade. "Compreensibilidade"
2. Vale a pena lembrar a experiência levada a efeito por Joaquim Brasil, em deve significar aqui, aproximadamente, "capacidade de leitura".
um curso da Faculdade de Educação da Unicamp, onde ele propôs uma leitura das 5. _Leitura parafrástica é aquela que se caracteriza pelo reconhecimento (re-
histórias em quadrinhos que não partisse do pressuposto de que esta é uma espé- prod_uçao) do sentido dado pelo autor, e a polissémica se define pela atribuição de
cie menor. mult1plos sentidos ao texto.
44 DISCURSO E LEITURA ENI PULONEW otllANDl 4S

Então, em relação a esses limites, pode-se dizer que, para se decidir É, no entanto, preciso se fazer uma observação em relação a esse
de uma leitura se ela é, ou não, uma leitura possível (limite máximo) e/ou jogo entre leituras previstas para um texto e as leituras possíveis.
se ela chega a ser uma leitura razoável (limite mínimo), o critério está na Na modificação das condições de leitura do aprendiz, que resulta
observação da história tal como a colocada mais acima. do reconhecimento de que há leituras previstas para um texto, importa
Uma leitura não é possível e/ou razoável em si mas em relação às cuidar-se para que não se petrifiquem essas leituras previstas, a fim de
suas histórias. que possa acontecer a descoberta, a leitura nova, tanto quanto possível.
Assim, não há leituras previstas por um texto, em geral, como se o Isto só pode se dar, a nosso ver, se não se absolutizar o previsto
texto fosse um objeto fechado em si mesmo e auto-suficiente. através do conceito de autoridade.
No esquema reprodutor, a melhor leitura tem sido a leitura feita
Na escola, a colocação das leituras previstas (possíveis e/ou razoá-
por uma autoridade x, que é tomada como modelo estrito. Daí se repro-
veis) por um texto escamoteiam, em geral, o fato de que se dá uma leitu-
duzir a mesma leitura através dos anos e apesar dos leitores. Assim, pelo
ra prevista para ele, como se o texto, por si, a suscitasse inteiramente.
conceito de autoridade, há um deslize entre a função crítica e a censura,
Exclui-se, dessa forma. qualquer relação do texto, e do leitor, com o con-
ou melhor, desliza-se da crít ica para a censura. O que reverte em prejuízo
texto histórico-social, cultural, ideológico. do próprio papel do crít ico - e, conseqüentemente, impede a possibi li-
O que estamos propondo é que o possível e o razoável, em relação dade de se instaurar o leitor sujeito -, pois desloca-se a natureza da sua
à compreensão de um texto, se definam levando-se em conta as histórias (do critico) atividade: toma-se o crítico como juiz, como censor, imobi li-
da sua leitura, na forma de interação que o leitor estabelece, no processo zando-o em um momento dado de sua história de leituras. Não se dá ao
da leitura. " modelo" um direito elementar, que faz parte do cotidiano de qualquer
leitor: o de ler o mesmo texto de formas diferentes. Ele acaba por com-
prometer-se com uma leitura e a protegê-la institucionalmente. Por refle-
Algumas conseqüências: pedagógicas e teóricas xo, t ira-se também do leitor o que se tirou do crítico, isto é, sua dinâmica:
o leitor fica obrigado a reproduzir o seu modelo de leitura, custe o que
O reconhecimento desses elementos como constitutivos das condi- custar. O que, em geral, custa a sua capacidade de reflexão.
ções de produção da leitu ra leva-nos a algumas conseqüências. Enfim, em termos de escola, o que gostaria de ressaltar é que as
Para a escola, por exemplo, a contribuição disso está em que o pro- leituras previstas para um texto devem entrar como um dos constituintes
fessor pode modificar as condições de produção da leitura do aluno: de das condições de produção da leitura e não como o const ituinte determi-
um lado, propiciando-lhe que construa sua história de leituras; de outro, nante delas, uma vez que, entre outros, a história das leituras do leitor
estabelecendo, quando necessário, as relações intertextuais, resgatando também se constitui em fator muito relevante para o processo de intera-
ção que a leitura estabelece.
a história dos sentidos do texto.
Se há alguns fenômenos que podem ser detectados como sistemá-
O que significa dizer que a previsibilidade de alguns aspectos do
ticos na produção de leitura, o ensino desta deve ser capaz de operar
processo da leitura permite a sua sistematização, constituindo-se assim a
com esses fenômenos. Uma sugestão pedagógica seria os professores
proposta de um método de leitu ra.
proporem uma organização curricular que fosse capaz de provocar o alu-
Vale dizer: é possível ensinar-se leitura. O que não está claro na no a trabalhar em sua própria história de leitura. Colocar, portanto, desa-
forma como a escola atual trata disso: fios à sua compreensibilidade sem deixar de lhe propiciar as condições
a) através de julgamento de autoridade em que a avaliação cumpre para que esse desafio seja assumido de forma conseqüente.
sua função mecãnica, isto é, dá-se nota baixa até o aluno " mu- Essas seriam algumas observações a respeito das conseqüências
dar"; ou, pedagógicas.
b) pelo espontaneismo, em que o aluno acaba por aprender sozi- A conseqüência teórica diz respeito à polissemia, ou seja, ao fato
nho, o que talvez seja mesmo possível, sendo, nesse caso, dis- de ser próprio da natureza da linguagem a possibilidade da multiplicida-
pensável a escola. de de sentidos.
1

DISCURSO E LEllURA 47
46

Temos afirmado que uma unidade de linguagem tem tantos senti-


dos quantos puder efetivar no mundo.6
Por outro lado, há a sedimentação histórica dos sentidos (o produ-
to) em termos de sua dinâmica, isto é, em condições de produção deter-
minadas um sentido adquire estatuto dominante em relação aos outros.
No processo de significação desencadeado pela interação estabele-
cida pela leitura, procuramos estabelecer a forma de inclusão dessas con-
siderações, colocando, como componentes das condições de produção
da leitura, as histórias das leituras que abrangem o texto e o leitor con-
juntamente.
O ensino da leitura pode, dependendo das circunstâncias pedagó-
A história do sujeito-leitor:
gicas, colocar a ênfase tanto na multiplicidade de sentidos quanto no
sentido do dominante.
uma questão para a leitura*
Enfim, gostaria de fazer ainda duas observações. A primeira diz res-
peito ao fato de que não queremos fixar um valor ao modo de utilização
do conceito de história. O histórico, para nós, traz, em si, essa ambigüi- Em meus trabalhos, procurei destacar o fato de que a leitura é pro-
dade: porqu e é histórico, muda, porque é histórico, permanece. A se- duzida. A partir daí, dirigi minha reflexão para as condições de produção
gunda observação, e decorrente desta, é a de que não abandonamos, da leitura.
assim, o dominio da indeterminação, ao contrário, reconhecemos sua A exploração dessa via levou-me a colocar o que chamei " história da
existência e procuramos entender seu funcionamento. O que, em breve, leitura do leitor" e "história da leitura do texto" como pontos de reflexão
pode ser colocado da seguinte forma: pela inclusão do conceito de histó- necessários tanto para a programação do ensino como para a avaliação do
ria, procuramos estabelecer a maneira de levar em conta a indetermina- processo de interação da leitura na escola.
ção, em um método que se proponha o ensino de leitura.' A referência à história, segundo o que penso, faz-se necessária pois
só assim pode-se trabalhar com os limites fluidos e cambiantes entre o
que chamei "leitura parafrástica" (ou ad mentem auctoris) e "leitura
Referências bibliográficas polissémica" (ou livre interpretação).
Mais recentemente, fazendo algumas considerações sobre três es-
HALLYDAY. M. A. K. & HASSAN, R. Cohesion in English. Londres, Longnan, pécies de reducionismo - o pedagógico, o lingüístico e o social - . pro-
1976. curei chamar a atenção para o fato de que na constituição do sujeito-
SILVA, E. T. Leitura & realidade brasileira. Porto Alegre, Mercado Aberto, leitor, a escola tem excluído a relação dele com outras linguagens que
1983. não a verbal (a da música, da pintura, do cinema, da computação, etc.) e
VOLOSHINOV, V. EI signo ideologico y la filosofia dei lenguaje. Buenos a sua prática de leitura não-escolar.
Aires, Nueva Vision, 1976. A imagem de um sujeito-leitor que se relaciona somente com a lin-
guagem verbal e no interior da escola ' tem sido o fundamento para as
metodologias da leitura que são propostas.

6. Cf. Voloshinov e a noção de processo (1976).


• Publicado originalmente em Letras de Hoje, Porto Alegre, ano 19, n. 1, 1986,
7. Em "A produção da leitura e suas condições'', em Leitura: teoria & prática ,
n. 1, 1983, falamos sobre outros aspectos dessa indeterminação e de outros cons- pp. 45-48.
1. Refiro-me, aqui, mesmo à leitura fora da escola, mas que se faz à moda escolar.
tituintes das condições de produção da leitura.
DISCURSO ELEITURA ENI PULCINELU ORLANDI 49
48

Além disso, há a questão, já colocada anteriormente, de que como de que começa a aparecer explicitamente um sujeito. Esse processo atin-
não há grau zero, assim como não há grau dez, o aluno-leitor não pára de ge seu ponto máximo com o romantismo, no século XIX, século do indivi-
aprender a ler num momento dado, assim como não há possibilidade de dualismo triunfante.
se reconhecer um momento em que ele começa do nada. Na observação desse mecanismo de controle do sujeito pelo Estado
O que a escola faz, ao supor o grau zero, é utilizar o conhecimento da sua relação com a linguagem (o texto) e com o conhecimento, pode-
prévio que o aluno tem, sem explicitar essa utilização. É responsabilizá-lo mos perceber que joga sempre a maior ou a menor liberdade de se acres-
por uma certa forma de conhecimento. Ao fazer isso, a escola faz mais: centar, modificar, o que o texto diz.
ao mesmo tempo supõe e recusa (ou seja, desqualifica) essa forma de Há, historicamente, uma passagem do sujeito religioso (medieval)
conhecimento que o aluno já tem e que atesta o fato de que ele é sujeito- para o jurídico (do capitalismo), em que a subordinação explícita do ho-
leitor de outras formas de linguagem e também fora da escola. mem ao discurso religioso é substituída por uma subordinação menos ex-
Pois bem, pensando a formação dessa imagem do sujeito-leitor de plícita, que insiste precisamente na idéia de um sujeito livre e não determi-
uma perspectiva histórica mais ampla, é possível fazer-se um esboço nado quanto às suas escolhas: é o sujeito de direito. A ·submissão a Deus dá
diacrônico de sua formação, através dos conflitos e desenvolvimentos lugar a uma crença 2 menos visível, porque se aplica em preservar a idéia de
históricos que se deram (e se dão) na sua relação com a linguagem, com liberdade e é mais abstrata e característica do formalismo jurídico.
o poder e com o conhecimento. Para o homem ocidental das sociedades contemporâneas, a vonta-
Observando-se a história de algumas palavras podemos apreender
de (Vernant, 1977) é uma das dimensões essenciais da pessoa. Por isso o
como se constitui a relação do sujeito com o texto ao longo dos tempos
"eu", nas sociedades capitalistas, aparece como a origem da ação de um
(Haroche, 1984). sujeito autônomo que se manifesta em atos. Não há ação que não tenha
A palavra texto, no século XII, significa livro de evangelho. No um agente individualizado que seja seu centro, sua fonte.
século XIII, perde seu caráter estritamente sagrado para ter um sentido
Vimos como isso nem sempre foi assim, havendo, através da histó-
mais geral. Passa, então, a designar qualquer texto, sagrado ou profano.
ria, uma mudança que teve como referência a instituição do jurídico.
Isso acontece dada a pressão de textos profanos: a grande quantidade de
textos aristotélicos. Distingue-se, nessa época, entre textos autênticos (sa- A função psicológica, que é a vontade, não seria, pois, nem univer-
grados) e comentários (profanos). Mais tarde, autêntico vai-se referir não sal, nem permanente, sofrendo uma variação histórica e cultural.
mais à distinção entre sagrado e profano, mas entre o autor (ou aquele Resulta disso tudo uma ambigüidade inerente à noção de sujeito
que é reconhecido como autor) e o que não o é. moderno: ele é ao mesmo tempo submisso e autônomo (responsável). Como
Do mesmo modo, podemos observar que a palavra interpretar, as- diz Foucault (1977), as diferentes formas de poder fabricam diferentes ti-
sim como a palavra interpretação datam do meio do século XII. No entan- pos de individualidades: o Estado funda sua legitimidade e sua autoridade
to, é preciso notar que a interpretação era única (dada pelo mestre, na sobre o cidadão, levando-o a interiorizar a idéia de coerção, ao mesmo
determinatio) e não podia ser reivindicada como fato de um indivíduo. A tempo que faz com que ele tome consciência de sua autonomia.
palavra intérprete data do século XIV. Observando a formação desse sujeito, podemos refletir sobre a for-
Antes disso, pela observação dos exercícios pedagógicos religiosos mação da noção do sujeito-leitor. Os modos de assujeitamento em rela-
medievais - /ectio (leitura como mera e estrita repetição), quaestio (per- ção ao texto mudam profundamente no curso da história, do singular (à
gunta enquanto sinal de humildade), disputatio (questões alternativa.s) e letra) para o plural (às letras): a maneira como o juridicismo se apresenta
determinatio (a resposta única) - podemos perceber que, embora se1am hoje no sujeito-leitor é a do efeito da livre determinação do(s) sentido(s)
tentativas de assujeitamento do indivíduo (à religião, ao Estado), esses pelo sujeito da leitura. No entanto, ambigüamente, há uma espécie de
exercícios acabam por possibilitar um deslocamento no modo de relação
do sujeito com o signo, com a escrita, sem deixar modificar sua relação
com o conhecimento. 2. Segundo De Certeau (1980), a autoridade só se sustenta pela capacidade
No entanto, apesar desse modo de assujeitamento, começa a haver de crer. ou melhor, de faz er crer. Dai a crença em Deus ser substituída pela crença
uma intervenção cada vez maior do jurídico sobre o religioso, no sentido no Estado (e o amor a Deus pelo amor à pátria).
50 DISCURSO E lEllURA
51

imposição exercida de fora para que ele atribua vários (mas apenas al-
guns) sentidos e não outros.
Essa noção de sujeito-leitor acolhe, ao mesmo tempo, o individua-
lismo e o mecanismo coercitivo de individualização imposto pelas insti-
tuições.'
Finalmente, nossa questão: se sabemos, portanto, que há essa cons-
tituição histórica do sujeito na sua relação com a linguagem (logo, com a
leitura). e se sabemos que, ideologicamente, o sujeito-leitor se apresenta
como esse sujeito capaz da livre d eterminação dos sentidos ao mesmo
tempo que é um sujeito submetido às reg ras das instituições, como agir
na escola em relação à formação do sujeito-leitor? Ou mais simplesmen-
te: dada a configuração histórica do sujeito-leitor produzido pela socie-
dade capitalista, como trabalhar com a relação entre leitura parafrástica-
leitura polissémica?
2 ª parte

Referências bibliográficas Sujeito/Sentido


DE CERTEAU, J. f invention du quotidien. Paris, UGE, Col. 10/ 18, 1980.
FOUCAULT, M . Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1977.
HAROCHE, CI. Vouloir dire, faire dire. Paris , PUF, 1984.
VERNANT. J. P. Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo, Duas Cidades,
1977.

3. Um exemplo: o seu assujeitame nto à exigência de não-contradição, que é a


expressão mais clara das modalidades do seu assujeitamento ao saber.
53

Unidade e dispersão: Uma questão


do texto e do sujeito*

A heterogeneidade

Vamos partir da afirmação de que o discurso é uma dispersão de


textos e o texto é uma dispersão do sujeito.' Assim sendo, a constituição
do texto pelo sujeito é heterogênea, isto é, ele ocupa (marca) várias posi-
ções no texto.
Podemos então dizer que o discurso é caracterizado duplamente
pela dispersão: a dos textos e a do sujeito.
Uma outra maneira de afirmar essa heterogeneidade, inscrita na
noção de ·discurso, é definir o sujeito como descontinuidade e o texto
como espaço de dissensões múltiplas (Foucault, 1969).
Essas reflexões nos levam a afirmar que o texto é atravessado por
várias posições do sujeito.
Resta perguntar: o que revelam essas várias posições?
O que procuraremos mostrar nesse estudo e que essas diferentes
posições do sujeito no texto correspondem a diversas formações discursi-

• Texto apresentado em Seminário na PUC-SP (Psicologia Social) em 1985.


Este texto é em co-autoria com Eduardo Guimarães. Publicado originalmente em
Cadernos PUC, n. 31 , São Paulo. EDUC, 1988.
1. A palavra sujeito é usada em nosso trabalho referindo ao que Pêcheux
(1975) chama forma -sujeito, ou seja, o sujeito afetado pela ideologia.
s• DISCURSO E LEITURA ENI PULCINEW ORlANDI ss

vas. Isto se dá porque em um mesmo texto podemos encontrar enuncia- O discurso como prática
dos de discursos diversos, que derivam de várias formações discursivas.
A constituição do texto, do ponto de vista da ideologia, não é ho- As duas afirmações dos parágrafos iniciais dizem respeito à unida-
mogênea. O que é previsível, já que a ideologia não é uma máquina lógi- de do discurso frente à complexidade (diversidade de processos) da sua
ca, sem descontinuidades, contradições etc. É isto que as diferentes posi- constituição.
ções do sujeito representam no texto. Para entender essas colocações talvez seja preciso explorar em pro-
fundidade a definição de discurso como " regularidade de uma prática" ,
definição em que a unidade do discurso não está na " coerência visível e
Enunciação e ideologia horizontal dos elementos formados, ela reside bem aquém, no sistema
que torna possível e rege uma formação" (Fouca ult; 1969). Ou seja, para
A outra afirmação que nos interessa, e que deriva de Foucault (1969), caracterizar um discurso é menos importante (e possível) remeter a um
é a de que são as formas de assujeitamento ideológicas que governam os conjunto de textos efetivos do que a um conjunto virtual, o dos enuncia-
mecanismos enunciativos. dos produzíveis conforme às coerções da formação discursiva.
Daí que estes últimos são infinitamente mais complexos que aqueles O discurso não é um conjunto de textos, é uma prática. Para se
encontrar sua regularidade não se analisam seus produtos, mas os pro-
postulados pela liberdade do "sujeito falante" das teorias da enunciação.
cessos de sua produção.
Segundo essas teorias - que têm como autor fundamental E.
Enfim, há um sistema de regras que define a especificidade da enun-
Benveniste, postu lando a necessidade de se considerar o ato de produ-
ciação: há uma dispersão de textos, mas o seu modo de inscrição históri-
ção da linguagem - , o sujeito-locutor centraliza esse ato de produção e
ca permite defini-la como um espaço de regularidades enunciativas
aparece como fonte da linguagem. Além disso, há nos textos, segundo
(Maingueneau, 1984).
essas teorias, marcas que atestam a relação do sujeito com seu dizer e,
através dele, com o mundo. Na constituição da subjetividade, que é se- Resta dizer que, como vemos, fala-se sempre em discurso e enun-
gundo a teoria da enunciação a propriedade principal da linguagem, o ciado de modo a explicitar as suas relações, mas a noção de texto vem
sujeito dela se apropria "definindo-se ao mesmo tempo a si mesmo como sempre pressuposta e indefinida. Dado o fato de ser o texto uma unidade
complexa, tem sido dificilmente assimilada pelas diferentes teorias que
'eu' e a um parceiro como 'tu"' (Benveniste, 1976). As marcas da enun-
tratam do discurso. Um dos nossos propósitos nesse trabalho é esclarecer
ciação manifestam o jogo da intersubjetividade.
um pouco mais essa noção e suas relações com a de discurso.
Nas teorias da enunciação é como se o universo da enunciação se
tornasse o último refúgio da prob lemática ideológica da l iberdade
(Maldidier, 1972).
A produção do sujeito e do sentido
Na perspectiva da análise de discurso, ao contrário, não há essa
liberdade e as marcas que atestam a relação entre o sujeito e a lingua- Da mesma forma que pensar as marcas em si é uma postura que
gem, no texto, não são detectáveis mecâ nica e empiricamente. Os meca- revela o mecanismo e o empirismo de uma certa tendência lingüística,
nismos enunciativos não são unívocos nem auto-evidentes. São constru- também e essa mesma postura que se mostra quando se pensa a relação
ções discursivas com seus efeitos de caráter ideológico. automática do discurso com a situação. O discurso não é um reflexo da
As marcas são pistas (Gi nsburg, 1980). Não são encontradas dire- situação, nem está mecanicamente determinado por ela.
tamente. Para se atingi-las é preciso teorizar. Além disso, a relação entre Além disso, o discurso não tem como função constituir a "represen-
as marcas e o que elas significam é tão indireta quanto é indireta a tação fiel de uma realidade mas assegurar a permanência de uma certa
relação do texto com as suas condições de produção . No domínio dis- representação" (Vignaux, 1979). Por isso há, na gênese de todo discurso,
cursivo não se pode, pois, tratar as marcas ao modo " positivista ", como o projeto totalizante de um sujeito, projeto este que o converte em autor.
na lingüística. Este projeto é o de "assegurar a coerência e a completude de uma repre-
56 DISCURSO E LEílURA ENI PIJLONEW ORLANDI 57

sentação" (Vignaux, 1979). O sujeito se constitui como autor ao consti- duz o sujeito sob a forma de sujeito de direito Ourídico) que,
tuir o texto. O autor é o lugar em que se constrói a unidade do sujeito. É historicamente, corresponde à forma-sujeito do capitalismo: su-
onde se realiza o seu projeto totalizante. jeito ao mesmo tempo autônomo (e, logo, responsável) e deter-
Esta é uma das dimensões em que se revela a "interpelação do indi- minado por condições externas.
viduo em sujeito" (Althusser, 1970), interpelação que traz consigo, neces- 2. A evidência do sentido, de sua parte, esconde seu caráter mate-
sariamente, a aparência de unidade que a dispersão toma. rial, a historicidade de sua construção.
Podemos observar, dessa forma, os efeitos da ideologia: ela produz a
aparência da unidade do sujeito e a da transparência do sen~ido. Est~s
efeitos, por sua vez, funcionam como "evidências" que, na realidade, sao
Dispersão, unidade e textualidade
produzidas pela ideologia. Tomá-los como uma realidade é ficar submerso É a relação do sujeito com o texto, deste com o discurso, e a inserção
na ideologia, na sua construção enquanto evidências. Para não fazê-lo, isto do discurso em uma formação discursiva determinada que produz a im-
é, para exercer uma função critica, é preciso levar em conta dois fatos: pressão da unidade, a transparência, em suma, a completude do seu dizer.
a) o processo de constituição do sujeito; e Com os conceitos de paráfrase e polissemia, Orlandi (1983) procurou
b) a materialidade do sentido. deslocar a dicotomia paradigma/sintagma que sustentava tradicionalmente
a reflexão sobre o uso da linguagem.
Cremos que novo deslocamento se faz necessário teoricamente. Este
Autonomia e unidade de sujeito como efeitos ideológicos deslocamento é o que, ao invés de tratar, no domínio da enunciação, dos
modos de enunciação do discurso - como, por exemplo, os do discurso
Os fundamentos de uma teoria não-subjetiva do sujeito é que po- citado (Voloshinov, 1930) -, trata do próprio modo como a dispersão e a
dem dar conta da ilusão da autonomia e unidade enquanto efeitos ideo- unidade jogam na constituição da textualidade. Trata-se desta vez de se
lógicos da "interpelação do individuo em sujeito". considerar a unidade na dispersão: de um lado, a dispersão dos textos e a
Vale ressaltar que é em relação a tal constituição do sujeito que dispersão do sujeito; de outro, a unidade do discurso e a identidade do
também se pode pensar a relação entre inconsciente e ideologia: o recalque autor. As dicotomias são, pois: texto/discurso, sujeito/autor.
inconsciente e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados, Tratar da construção dessa unidade (do discurso) e dessa identida-
segundo Pêcheux (1975), no interior do que se poderia designar como de (do autor) é atingir o modo pelo qual o texto é atravessado por várias
processo do significante na interpelação e identificação do sujeito. Pro- formações discursivas.
cesso pelo qual se realizam as condições ideológicas. Neste estudo, procuraremos fazer isso, salientando, nesse modo de
Para compreender este processo comecemos por dizer que a cate- organização, a relação entre formação discursiva e polifonia. As marcas
goria do sujeito é a categoria constitutiva de toda ideologia: não há ideo- que tomaremos para observar essa relação são as conjunções, a negação
logia sem sujeito. e as formas de indeterminação gramatical.
A evidência de que "eu" e "tu" somos sujeitos, tal como a certeza Como dissemos, as várias posições do sujeito podem representar
da significação, isto e, a evidência da transparência da linguagem, é, como diferentes formações discursivas no mesmo texto. É preciso, no entanto,
dissemos, um efeito ideológico (elementar). ressaltar que a relação entre as diferentes formações discursivas no texto
Observar o processo de constituição do sentido e do sujeito é observar podem ser de muitas e diferentes naturezas: de confronto, de sustenta-
o "teatro da consciência". Paralelamente, podemos dizer que a unidade do ção mútua, de exclusão, de neutralidade aparente, de gradação etc.
discurso também é um espetáculo, é uma cena de teatro, em dois atos: Por outro lado, o resultado da relação de autoria do sujeito com
1. A evidência do sujeito, ou melhor, sua identidade, esconde que essa pluralidade de formações discursivas no texto não e necessariamen-
esta resulta de uma identificação, que é o que constitui sua in- te a de harmonizar, excluir etc. E isso pode ser observado pelo modo de
terpelação. Essa interpelação - que se dá pela ideologia - pro- existência da polifonia no texto.
DISCURSO Elfíl\JRA ENI PULCINEW ORlANDI 59
58

Em suma, tomamos a polifonia como um dos lugares de se obser- A relação entre texto e discu rso não é biunívoca {um discurso não é
var a relação entre as diferentes formações discursivas e a constituição do igual a um texto e vice-versa). Por outro lado, o texto é unidade de análi-
texto em sua unidade. se, mas não é unidade de construção do discurso. Nem-por isso deixa de
ser um conceito mediador imprescindível: a unidade de construção do
discurso é o enunciado, mas ele tem de ser referido ao texto para poder
Texto, sujeito e formação discursiva ser apreendido no processo de construção do discurso.
Um texto, tal como ele se apresenta enquanto unidade {empírica)
Observemos, agora, essa relação entre texto, sujeito e formação de análise, é uma superfície lingüística fechada nela mesma: tem come·
discursiva. ço, meio e fim.
De acordo com a análise de discurso, o sentido não existe em si mas Como diz Pêcheux (1969), é impossível analisar um discurso como
é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo texto, enquanto superfície fechada em si mesma, " mas é necessário refe-
sócio-histórico em que as palavras são produzidas. ri-lo ao conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido
As palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que das condições de produção". Ou seja, é preciso tomar o texto como dis-
as empregam. Elas tiram seu sentido dessas posições, isto é, em relação curso, enquanto estado determinado de um processo discursivo. O con-
às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. ceito de discurso deve aí ser entendido enquanto conceito teórico que
A formação discursiva se define como aquilo que numa fo'.mação corresponde a uma prática efeito de sentidos entre locutores.
ideológica dada {isto é, a partir de uma posição dada em .uma coniuntura O texto, de seu lado, se constitui de enunciados. O enunciado é
sócio-histórica dada) determina o que pode e deve ser dito. enunciado na medida em que aparece em um texto. compreendido este
As palavras recebem, pois, seu sentido da formação discursiva na na perspectiva discursiva. Os diferentes enunciados podem marcar dife-
qual são produzidas. rentes posições do sujeito no texto.
Se isto se dá com o sentido, por outro lado, também os indivíduos Isto se da de tal forma que pode haver enunciados de formações
são interpelados em sujeitos falantes {sujeitos de seus discurs~s) ~elas discursivas {PD) diferentes em cada texto efetivo. Assim:
formações discursivas que, por sua vez, representam as formaçoes ideo-
lógicas que lhes correspondem.
Uma palavra recebe seu sentido na relação com as outras da mes- texto texto

I~ rq::ol
ma formação discursiva e o sujeito-falante aí se reconhece.
A formação discursiva é, enfim, o lugar da constituição do sentido e
da identificação do sujeito. É nela que todo sujeito se reconhece ~e~ sua
relação consigo mesmo e com outros sujeitos) e ai está a cond1çao .d~ enunciados enunciados
famoso consenso intersubjetivo {a evidência de que eu e tu somos su1e1-
to) em que, ao se identificar, o sujeito adquire identidade {Pêcheux, 1975).
É nela também, como dissemos, que o sentido adquire sua unidade.
Esta é uma forma de explicitar o que dissemos no final do item "A
produção do sujeito e do sentido".

Um concerto polifónico
Pensando-se a relação dos textos com os funcionamentos discursi-
Resta estabelecer com alguma precisão a relação entre enunciado, vos que constituem os diferentes tipos de discurso {com suas proprieda-
texto, discurso e formação discursiva. des). podemos dizer que um tipo de discurso, como o jornalístico, por
60 DISCURSO ElflllJRA ENI PVLCINEW DRLANDI 61

exemplo, é constituído de uma pluralidade de textos efetivos que, por papel positivo e multiplicador é preciso se levar em consideração, tam-
sua vez, são marcados por formações discursivas diferentes. bém, sua função restritiva e coercitiva . Nesse sentido é que trazemos para
No entanto, como há a vocação totalizante do sujeito (autor), esta- a reflexão o princípio da autoria.
belece-se uma relação de dominância de uma formação discursiva sobre Trata-se de considerar o autor como princípio de agrupamento do
as outras, na constituição do texto. discurso, como unidade e origem de suas significações, como foyer de
Cada texto tem, assim, uma certa unidade discursiva com que ele se sua coerência.
i nscreve em um tipo de discurso determinado. Então, no discurso Segundo Foucault, o princípio da autoria não vale, entretanto, para
penalístico, por exemplo, temos textos da formação discursiva x, outros tudo nem de forma constante. Há discursos que circulam sem derivar seu
da formação discursiva y etc. sentido e eficácia de um autor ao qual se pode atribui-los: conversas,
Sem esquecer, portanto, que essa unidade textual, constituída en- decretos e contratos que necessitam de quem os assine mas não de auto-
quanto dominância, resulta ela mesma, segundo o que vimos colocando res, receitas técnica que se transmitem no anonimato etc. No sentido em
anteriormente, de um efeito discursivo: o texto é heterogêneo e se apre- que estamos tomando a noção de autoria, e que é uma extensão ao de
senta como uma unidade, dada sua relação com o discurso e sua inscri- Foucault, a própria unidade do texto é efeito discursivo que deriva do
ção em uma formação discursiva específica que se confronta com outras. princípio da autoria. Desse modo atribuímos um alcance maior e que
É esse efeito ideológico discursivo que procuraremos estudar na específica o princípio da autoria como necessário para qualquer discurso,
construção do texto, como unidade que se constitui de um concerto colocando-o na origem da textualidade. E af retomamos Foucault: o prin-
polifónico. cípio do autor limita o acaso do discurso "pelo jogo de uma identidade
que tem a forma da individualidade e do eu". ·
Pensando-se todas essas variedades de formas e funções inscritas
na multiplicidade de instâncias que caracterizam o discurso é que pode- Podemos pensar essa unidade que se faz a partir da heterogeneida-
mos entender Foucault (1969) quando propõe "fazer uma história dos de e que deriva d o princípio da autoria como uma fu nção enunciativa.
objetos discursivos que não os enterrasse na profundidade comum de Teríamos, então, as várias funções enunciativas do sujeito falante, como
um sob originário, mas desenvolvesse o nexo das regularidades que re- segue, e nessa ordem: locutor, enunciador e autor. Onde o locutor é aquele
gem sua dispersão. Ou melhor: "em lugar de reconstituir cadeias de infe- que se representa como "eu " no discurso, o enunciador é a perspectiva
rências (como se faz freqüentemente na história das ciências ou da filoso- que esse "eu " constrói, e o autor é a função social que esse " eu " assume
fia), em lugar de estabelecer quadros de diferenças (como fazem os lin- enquanto produtor da linguagem. O autor é, das dimensões enunciativas
güistas), descreveria sistemas de dispersão" (grifo nosso). do sujeito, a que está mais determinada pela exterioridade (contexto só-
cio-histórico) e mais afetada pelas exigências de coerência , não-contradi-
ção, responsabilidade etc.
Autor e função enunciativa De certo modo, explicitar o princípio da autoria é desvelar o que
produz o apagamento do sujeito.
Vejamos, finalmente, de forma mais direta, como se relacionam Esse é um lugar interessante para observar a relação dinâmica entre
noções como as de sujeito e autor. sujeito e discurso.
De acordo com Foucault (1971 ), há processos internos de controle Se é verdade, como diz a enunciação, que o· sujeito se marca no
e delimitação do discurso. Esses processos se dão a título de princípios de discurso por um mecanismo enunciativo, não é menos verdade que, por
classificação, de ordenação, de distribuição, visando domesticar a dimen- aí, em contrapartida, também o discurso se inscreve no sujeito. E essa
são do acontecimento e do acaso do discurso. Tal controle pode ser obser- inscrição, esse efeito discursivo, resulta no apagamento do sujeito.
vado em noção como as de comentário, autor e disciplina (Foucault, 1971 ). O falante é o material empírico bruto, e enquanto enunciador é o
Ver na fecundidade do autor, na multiplicidade de comentários e sujeito dividido em suas várias posições no texto. O autor, ao contrário, é
no desenvolvimento de uma disciplina recursos infinitos para a criação diferença (originalidade) sem ser divisão (individualidade). O autor, en-
dos discursos e um hábito e tem suas razões. Mas para se apreciar seu tão, enquanto tal, apaga o sujeito produzindo uma unidade que resulta
62 DISCURSO E lflTVRA ENI PULONEW ORLANDI 63

de uma relação de determinação do sujeito pelo seu discurso. Desse modo marcar-se como " eu" no texto; ocultar-se na impessoalidade; e mais que
vê-se a ação do discurso sobre o sujeito. representar-se como responsável pela enunciação, representar-se como
Portanto, é na relação entre discurso e sujeito que podemos apreen- locutor - enquanto - pessoa, como origem do d iscu rso, ao qual o dis-
der o jogo entre a liberdade (do sujeito) e a responsabilidade (do autor) . curso refere. Destas diferenças nos ocuparemos com mais detalhe na pró-
pria análise do texto.
Um segundo tipo de polifonia é quando se representa mais de um
Alguns tipos de polifonia enunciador num recorte, ou seja, mais de uma perspectiva de onde se
realizam as enunciações. Pode haver, para um recorte, um enunciador
Procuraremos, nesta parte, ilustrar a relação entre unidade e dis- que corresponde ao locutor e um enunciador genérico, por exemplo.
persão. Para isto faremos a análise enunciativa dos recortes' discursivos A análise que faremos dos recortes se baseará nas instruções que a
de um texto. Nesta análise será utilizado o conceito de polifonia, formu- semântica da enunciação oferece para explicar o modo como se cons-
lado inicialmente por Bakhtine (1963), e aqui utilizado na perspectiva da troem tais sentidos. Vale lembrar que esta teoria semântica não conside-
semântica da enunciação. Nesta perspectiva considera-se que na enun- ra que os conteúdos das estruturas lingüísticas são imediata e mecanica-
ciação há papéis diferentes assumidos pelo sujeito. mente explicáveis. Ao contrário, o que se procura explicar e como os sen-
tidos são constituídos nos pelos recortes discursivos, ou seja, na instância
Por um lado, consideramos o locutor e seu alocutário. O locutor é
de discu rso.
aquele que se representa como "eu" na enunciação, representando-se,
internamente ao discurso, como o responsável pela enunciação realiza-
da: o locutor é uma figura constituída internamente e marcada no texto
pelas formas gerais do paradigma do eu. O alocutário é o "tu" do discur-
Uma análise de texto
so, e o correlato do locutor.3
Analisemos agora o texto "A lição da greve", lstoÉ (456, p. 72). Para
Por outro lado, temos o nível da relação entre enunciador e destina- esta análise utilizaremos as descrições, portanto, as instruções produzi-
tário. O enunciador é a posição do sujeito que estabelece a perspectiva das pela semântica da enunciação para a explicação do sentido de diver-
da enunciação. Esta perspectiva pode ser a do próprio locutor; pode ser, sas estruturas lingüísticas como P, mas (no entanto) Q (Anscombre & Ducrot,
ao contrário, a do alocutário, e neste caso o locutor constitui um recorte 1977; Vogt & Ducrot, 1980); P, pois Q (Vogt, 1980a); a negação (Vogt &
enunciativo como se ele fosse enunciado da perspectiva de seu alocutário; Ducrot, 1980; Ducrot, 1984); e as formas de indeterminação que vimos
pode ser uma perspectiva de uma voz genérica,• do senso comum, por estudando mais recentemente (Guimarães, 1985b).
exemplo; pode ser a perspectiva de uma voz que apresenta o discurso
Faremos a análise considerando, inicialmente, e sem maiores deta-
como uma verdade inquestionável, é o que se pode chamar, assumindo
lhes, os quatro primeiros parágrafos do texto como um único recorte. Em
uma perspectiva correlata à de Perelman (1977) sobre os auditórios, de seguida nos deteremos na análise dos dois últimos parágrafos, notada-
enunciador universal. mente no do penúltimo.
Tomando estas categorias, caracteriza -se uma enunciação como Antes desta análise é indispensável localizar o texto em observação.
polifônica sob dois aspectos. No primeiro, tem-se polifonia se o recorte
Ou seja, dar algumas informações sobre as condições de sua produção. Ele
produzido representa mais de um locutor para o enunciado. E é preciso foi escrito por um banqueiro, durante a semana da greve dos bancários em
levar em conta o próprio modo de representação do locutor x, que: pode setembro de 1985. Esta greve se deu logo depois da queda de um ministro
de Estado (ministro da Fazenda) que era t ido como uma das peças não
muito homogêneas na máqu ina do governo. Registre-se que o próprio edi-
2. A noção do recorte aqui utilizada é estabelecida por Orlandi (1983, 1984).
torial deste número da lstoÉ considera que a entrada do novo minist ro deu
3. Ver, sobre a distinção entre locutor/alocutário em relação a enunciador/
destinatário. Ducrot (1980, 1984) e Guimarães (198Sa, 198Sb). coesão a equipe ministerial e que no episódio da greve, segundo o mesmo
4. Ver a este respeito Guimarães (198Sc). editorial, observou-se a primeira manifestação desta coesão.
64 DISCURSO E LEITURA ENI PUlCINEUJ ORIANDI 6S

Ressalte-se, ainda, que a revista não apresentou, neste mesmo nú- Ninguém contesta a necessidade de ser revista a legislação sa-J
mero, nenhum artigo de nenhum bancário. A larial, pois é injusto o aument~ que não cobrir a inflação,/ bem A1
Vamos à análise da organização do texto. Podemos tomar os qua- { como há de ser alterada a lei de greve, para compatibilizá-la
com o regime democrático. li Mas não é compreensível que se A2
J
tro primeiros parágrafos como correlatos de um recorte que apresenta no
primeiro parágrafo argumentos para uma conclusão como O Brasil está
B
violente a lei, se desprezem os legítimos direitos dos cidadãos e
qu~ o Estado ~e omita em suas obrigações constitucionais, li B
1
J
construindo sua democracia (C). O no entanto do início do segundo pará-
grafo inverte esta direção argumentativa e acumula um conjunto de ar- { pois democracia sem ordem e respeito à leis não é democracia,
mas campo aberto para submeter a vontade da maioria. 82
J
gumentos, todos na direção oposta à da concisão acima. Ou seja, argu-
menta-se, e estes argumentos são apresentados como predominantes,
para O Brasil está construindo sua democracia (-C). Podemos considerar, neste caso, um recorte que apresenta uma ar-
ticulação pelo " mas" entre duas seqüências do parágrafo, e que cada
É interessante notar que tanto os argumentos iniciais na direção de uma destas seqüências organiza-se em recortes internos a este recorte
C quanto os demais na direção -C são como construídos numa narrativa maior (Reco rt~ 1). Assim apresentaremos primeiro o Recorte 1, em segui-
quase impessoal dos fatos. A aparente impessoalidade só se desvela se da, o recorte interno correlato à primeira parte do Recorte 1, e depois o
observamos elementos de avaliação como obviamente e legitimamente recorte interno correlato à segunda parte.
no primeiro parágrafo; as aspas em "superior" no terceiro parágrafo; ou Antes da análise do Recorte 1, algumas·considerações sobre o "mas"
ainda avaliações como meros. argumentativo.
Estas observações nos levam a considerar que o locutor (figura res- As análises da semântica argumentativa têm mostrado que a cons-
ponsável pela enunciação e que se representa como tal no discurso) se tituição do sentido da enunciação da seqüência P, mas Q deve ser explica-
oculta neste caso. Diremos, então, que o locutor é um locutor impessoal, da por uma instrução que representamos como segue.
que representaremos como L-. E a perspectiva de onde fala é a de um
enunciador correspondente a L-.
É notável, no entanto, que enquanto o locutor (L-) se oculta, é pos-
sível encontrar neste recorte a representação do locutor-enquanto-pes-
~ -]
lXmas-t -~ ,
onde: X é conteúdo de P e V. o conteúdo de Q e r e -r e
as conclusões a que levam e que são preenchidas segun-
do a situação; E; e E; são dois enunciadores que em cada
situação são configurados também de modo específico.
L:.....J t..=___J
soa (Lp). Esta figura da enunciação é a pessoa no mundo que, entre suas
características, tem a de se apresentar no discurso como sendo sua ori- Ou seja, na perspectiva de um enunciador (E;) se argumenta com X
gem. Consideraremos que a caracterização de Lp não é meramente psico- a ~avor de uma conclusão r, mas na perspectiva que se apresenta predo-
lógica, mas social e histórica. Assim, neste caso, Lp e o banqueiro que se minante, de um segundo enunciador (E;). se argumenta para a conclusão
oposta -r; a perspectiva de E,, em geral; corresponde à do locutor.
apresenta como um L- que se oculta na impessoalidade. A representação
de Lp neste recorte aparece, exatamente, pelas avaliações que registra- Vejamos, então, o sentido do Recorte 1, considerando a instrução
especificada acima.
mos acima, obviamente, legitimemante e meros marcam a incursão de Lp
no texto. Mais interessante ainda é o caso de "superior". Aqui as aspas egitimidade da ilegitimidad}
fazem duas coisas. Por um lado L- relata a fala de outro locutor, L,, que L- greve da greve
Recorte 1 ilegitimidade
teria dito algo como: o banco está fechado por ordem superior. Por outro mas
da greve
lado Lp critica a ordem relatada por L1• Poderíamos dizer que há neste [ 1 A 1 8
caso três locutores: L-, que relata a fala de L,, a qual informa a ordem de
L,. E o que Lp critica é a ordem de L,. Eo (= l ") E,(= L")
Feitas estas observações acerca do movimento discursivo deste re-
corte inicial do texto, tomemos agora o quinto parágrafo e o analisemos 5. A seta e -+) significam argumento a favor de. Ou seja, X é argumento a
favo: d~ r, Y é argumento a favor de -r, e este último argumento é mais forte que
com mais detalhe. o primeiro. Desta forma o que se diz orienta argumentativamente para -r.
66 DISCURSO E LEITURA ENI PULCINEW ORIANOI
67

Consideramos que aqui também o locutor é um locutor impessoali- Consideramos também que bem como, ao articular argumentos, orienta-
zado, pelas mesmas razões apresentadas para o recorte em que se in- os na mesma direção e com igual força.
cluem os quatro parágrafos iniciais. Assim, L· realiza sua argumentação Tomemos o Recorte 3
representando a posição deste locutor impessoal, ou seja, tanto E, quan-
to E; são preenchidos na situação pela mesma perspectiva. É interessante
ressaltar que com o conteúdo A o locutor apresenta uma argumentação
tomada como de domínio público, mas o locutor apresenta B como argu-
mento mais forte e definitivo contra este primeiro argumento e assim e,
sustenta a ilegitimidade da greve. não é compreensível. ..
Observa-se, então, que na construção do texto, neste recorte, há
uma, diríamos, monofonização da polifonia enunciativa. Ou seja, as duas
possíveis perspectivas devem ser interpretadas, ambas, como a perspecti-
va do locutor, e especificamente de L- (um locutor impessoal). E2 (=bancários) - democracia sem ordem
Agora o Recorte 2 e respeito a leis injus-
tas é democracia
B2
E2 (=bancários) - há quem (empresários, governo)
não quer a revisão da legislação
eleitoral
A, E..,- 8 2
E,(= L·)
E0 (=L·) - ninguém contesta ... salarial
pois é injusto o aumento ...
t não cobrir a inflação

bem como A relação argumentativa entre B, e 82 é a de P, pois Q, como comen-


ta~os ~ntes. A duplicidade de enunciadores em 82 está também ligada à
polifonia da negação.

A {Eo (=L·) - há de ser alterada ... compatibilizá-la com Pela análise de Recorte 3 se pode observar que o locutor impede a
2 possibilidade de concluir a favor da greve sustentando o argumento con-
o regime democrático
tra a greve na voz de um enunciador universal (Eunl. ou seja, na perspecti-
va de uma voz inquestionável. E é esta voz que garante e, como argu-
mento a favor da ilegitimidade da greve. Esta voz universal sustenta em
A análise de A, está feita segundo a perspectiva da semântica da oposição à voz dos bancários, ou trabalhadores em geral, implícita.' que
enunciação de que a negação é sempre polifônica: um enunciador (E0 ) democracia é ordem, é lei. E é esta perspectiva universal que garante a
nega o conteúdo afirmado da perspectiva de outro enunciador (E2). Além argumentação contra a opinião generalizada a favor da greve. É extrema-
disso, utilizamos para A, a análise de seqüências como P, pois Q, que mente notável que para o locutor representar esta opinião generalizada
considera que seus conteúdos X e Y. respectivamente, têm a seguinte ele instala uma outra voz a ela oposta que mostra que há pessoas, insti-
orientação argumentativa: Y --.) X. Mais especificamente: Y sustenta o tuições etc. que não querem a mudança na lei do salário. E apaga a cate-
modo de enunciação sob o qual se diz X (no caso, ninguém contesta) . goria social de onde se produz esta voz pela contraposição de uma voz
DISCURSO E lEll\JRA ENI PULCINEW ORlANDI 69
68

impessoal (a perspectiva de L-). segundo a qual ninguém é contra as mu- Organização textual e mecanismos discursivos
danças. Em seguida, porém, se contrapõe a esta voz que ainda f~vore~e­
Dissemos que um t exto se constitui de enunciados. Diremos, agora,
ria a greve. Assim, o uso da perspectiva do locutor impessoal, inclusive
sustentada em E•• no Recorte 3, é uma forma de apagar a voz de E, (dos por outro lado, que o texto se organiza segundo os recortes constituídos
pela enunciação daqueles (Orlandi, 1984). E estes recortes têm o seu sen-
bancários), que seria então um forte argumento para a greve. Apagando
t ido constituído segundo instruções semântico-pragmáticas.
esta voz, apresenta um argumento a favor da greve, mas a ele ainda se
contrapõe apoiando-se numa voz universal cujo conteúdo é o slogan do As instruções para a interpretação dos sentidos dos recortes são
liberalismo: Democracia é ordem, é lei, mesmo que a lei seja inju sta. O instruções para se explicar a intenção atestada nos enunciados.
que se vê, então, é que a perspectiva de E, (=L-) mobiliza a perspectiva de É possível considerar a constituição dos sent idos dos recortes em
Eun a seu favor. É a voz de Eun que sustenta a voz de E, que se opõe ao seu aspecto d iscursivo. Tomarem os assim a questão da intenção e das
argumento favorável à greve. instruções como o lugar em que se pode ob servar a articulação ent re o
Uma outra questão importante: o fato de a perspectiva de E, (= ban- domínio discursivo e os mecanismos enunciativos.
cários) ficar ilhada no interio r da perspectiva de Eo (= L-) no primeiro caso, Antes de nos atermos a essa articulação, traremos para essa refle-
e no interior de E•• no segundo. mostra que o locutor constituiu o t exto xão o fato de que, na análise de discurso, se opera com a distinção entre
de modo a apagar estas vozes. Nota-se, então, que o locutor apaga est a semântica lingüística e semântica discursiva (Pêcheux & Fuchs, 1975).
perspectiva (a de E, (=bancários)] pela organização que dá ao texto: a Ao manter essa d ist inção , a análise de d iscurso visa atingir o lugar
perspectiva de E, não conta para a progressão do texto, nem como pressu- específico da língua que corresponde à construção do efeito-sujeito. O
post o, que daria o quadro do discurso, nem como posto que se articularia efeito-sujeito é o efeito ideológico necessariamente inscrito na lingua-
no encadeamento t extual. gem, pelo qual o sujeito tem a impressão 1°) de ser a fonte do sent ido do
Quanto a este apagam ento de E,. vemos que é mais um apagamen- que diz (quando na verdade retoma sentidos preexistentes); e 2º) da rea-
to da pluralidade possível de vozes da enunciação. Assim, esse texto vai lidade de seu pensamento, já que, para ele, o que diz só poderia ser d ito
se reduzindo a uma perspectiva única e impessoal que silencia a polifonia do modo como diz. Em suma, o efeito-sujeito coloca o sujeito como ori-
da enunciação. Ou seja, discu rsivamente ele estabelece o silêncio de to- gem d e seu dizer e representa o sentido como t ransparente.
das as vozes alternativas. A análise de discurso, ao levar em cont a a distinção ent re a semân-
Há uma coisa especial nisso tudo. Das pluralidades encontradas e tica lingüística e a discursiva, ao m esmo tempo q ue reconhece a existên-
que são articuladas no dizer estão a perspectiva de um E.., que su st enta cia do efeito-sujeito no seu objeto de estudo, evita reproduzi-lo no seu
a perspectiva de L- (E0) e ainda a incursão da perspectiva de Lp nesta int erior. Isto lhe permite d ar conta desse efeito, ou pelo menos, torná-lo
perspectiva impessoal. E isso mostra, então, que a perspectiva impesso- observável.
al é a máscara da perspectiva de Lp (o banqueiro, o representante dos Paralelamente, o que podemos destacar nesse nosso estudo, é que,
pela observação da relação entre mecanismos enunciativos e funciona -
banqueiros).
mentos d iscursivos, torna-se possível apreender um outro aspecto do efei-
Sobre o recorte correlato ao sexto parágrafo, seria interessante res-
to-sujeito: o da autonomia do sujeito na constit uição do sentido e sua
saltar que é só neste recorte que o locutor coloca uma marca tão direta
função na construção da un idade do text o.
de primeira pessoa (primeira pessoa do plural). Dest e modo, o locuto r
representa um enunciador que não corresponde mas inclui Lp (o locut or- Especificando um pouco mais, sabemos que a análise de discu rso
enquanto-pessoa), o banqueiro, que assim se apresenta junto com t odos considera que o sujeito é socialmente constituído e o discurso se dá no
os demais brasileiros. Por esta via o locutor apaga, neste final, as diferen- interior de formações ideológicas. Assim, o conceito de discurso despossui
ças sociais e ideológicas que seu próprio t exto representou para poder o sujeito falan t e d e seu papel central para integrá-lo no funcionamento
desenvolver a argumentação e, mais uma vez, mascara a perspectiva do- dos enunciados, cujas condições de possibilidade são sistematicamente
articuladas sobre formações ideológicas (M aingueneau, 1976).
minante do texto, a de Lp.
70 DISCURSO E LEITURA ENI PULCINELU OfUANOt
71

Pela observação do efeito-sujeito, na perspectiva discursiva, seques- te, mostram também que um texto não funciona compactamente em re-
tiona a autonomia e se relativiza a função da intenção. Então, como a lação à ideologia. No entanto, a formação dominante que rege as dife-
intenção do sujeito é representada no enunciado como autônoma, se rentes posições do sujeito no texto propicia-lhe unidade.
procura determinar os mecanismos discursivos pelos quais ela é produzi-
da na sua relação com a ideologia.
Dessa forma, diremos que as intenções que produzem a organiza- Algumas perspectivas
ção textual, e que resultam na unidade do texto, indicam aspectos cruciais
do funcionamento discursivo. Enfim, é preciso ressaltar que tratamos aqui de duas perspectivas: a
Podemos mesmo dizer que é a passagem da dispersão do sujeito da teoria polifónica da enunciação e a da análise de discurso.
(em suas diferentes posições) para a identidade do autor e da dispersão De um lado, a teoria polifónica da enunciação, ao tratar das inten-
dos textos para a unidade do discurso que podemos apreender a consti- ções representadas no texto, permite apreender o modo de organização
tuição da ilusão da autonomia (e unicidade) do sujeito. textual, consideradas as diversas posições do sujeito.
No caso do texto analisado, podemos ver como nele estão repre- Por outro lado, a análise de discurso procura mostrar, em relação a
sentadas várias posições do sujeito. De um lado, a de um locutor impes- organização textual, como se constrói a unidade do texto a partir do pro-
soal (L-). e a de Lp (o banqueiro) . Por outro lado, representa a perspectiva cesso de produção do sentido e do sujeito. Para tal, não prescinde do
ou de um enunciador universal ou de um enunciador correspondente a concurso da ideologia. Na perspectiva discursiva, o conceito de ideologia
da L- ou Lp, representando também um enunciador correspondente aos incorpora e faz avançar a noção de sujeito e a de implícito da semântica
trabalhadores. Vale lembrar ainda que o texto incorpora, no caso da ex- enunciativa.
pressão superior, dois outros locutores, L, e L2. cujas enunciações são Quanto ao sujeito, ela o faz, evidenciando o seu modo de constru-
relatadas e criticadas. Essas várias posições do sujeito permitem observar ção, a ilusão da sua unidade e autonomia; quanto ao implfcito, ela o
o jogo entre as várias formações discursivas que atravessam o t exto. coloca como efeito discursivo que se produz pelas posições que o sujeito
Ainda em relação ao texto, vemos também como tudo isso recebe ocupa no jogo entre os diferentes sistemas de representação em que o
uma organização tal que toda esta multiplicidade de posições do sujeito sentido se constitui. Tudo isso mostra sua materialidade, logo seu caráter
é subsumida pela perspectiva de Lp (banqueiro), que é contra a greve e histórico e a qualidade de sua não-transparência.
que se apresenta como tal (de dentro da perspectiva do discurso liberal)
através do enunciador universal que, para se constituir, silencia o discur-
so dos bancários (trabalhadores) . Assim, os apagamentos que observa- Apêndice
mos na análise mostram que a unidade deste texto, construída por seu
autor, se estabelece sobre uma ilusão bem específica: é a ilusão que, por A LIÇÃO DA GREVE
exemplo, encobre a voz dos bancários, representa uma opinião como
verdade inquestionável, quando o que há é a perspectiva de Lp (banquei-
Os últimos acontecimentos, decorrentes da greve dos bancários,
ro) e de sua classe. merecem meditação e exame. O movimento foi preparado com muita
Desse modo, podemos dizer que as várias formações discursivas antecedência, ao passo que os empresários e o próprio governo não tive-
que atravessam o texto podem ser apagadas, na organização do mesmo, ram a cautela de armar esquema que inviabilizasse, legalmente, a sua
em função de uma formação dominante (a que Lp representa) . deflagração. A Nova República - todos dizem - veio para mudar, presu-
Como dissemos, as diferentes posições do sujeito correspondem a mindo-se, obviamente, que para melhor. Por outro lado os pronuncia-
diferentes formações discursivas que, por sua vez, se configuram pelas mentos e discursos sempre falam em democracia, que se pretende, legiti-
diferentes relações que estabelecem com a ideologia. Desse modo, as mamente, ampliar e consolidar.
diferentes formações discursivas indicam que o sujeito é ideologicamente No entanto, a greve, além de ilegal, baseou-se na formação de pi-
heterogêneo (e muitas vezes, mesmo, contraditório) e, conseqüentemen- quetes, sem os quais ela não teria sucesso, a não ser mínimo. Ora o piquete
72 DISCURSO ELEITURA ENI PVLCINELU ORLANOI
73

que impediu, pela violência, a presença do bancário nas agências constitui BENVENISTE, E. Problemas de lingüística geral. São Paulo, Nacional, 1976.
gesto antidemocrático, pois cassou o direito de opção do trabalhador, pre- DUCROT, O. "Analyses de textes et linguistique d e l'énonciation ", in Les
valecendo, em conseqüência, o direito da força, e não a força do direito. mots du discours. Paris, Minuit, 1980, pp. 7-56.
Note-se ainda o comportamento do governador Brizola, que publi- ___. " Esquisse d 'une théorie polyphonique de l'énonciation" in Le
camente anunciou que o Estado cumpriria a sua função de assegurar a dire et le dit. Paris, Minuit, 1984, pp. 171 -233. '
ordem pública e impediria atos contrários ao exerclcio dos direitos indivi- FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Petrópolis, Vozes, 1972.
duais. Ocorreu, no Rio, exatamente o contrário: a Polícia Militar e a Polí- _ _ . Cordre du discours. Paris, Gallimard, 1971 .
cia Civil foram instruídas para não molestar os piquetes e as próprias
GINSBURG, C. " Signes, traces, p istes", in Le débat, n. 6, 1980, pp. 3-44.
agências do Banco do Estado do Rio de Janeiro, o Banerj, ficaram, por
determinação "superior", fechadas. GUIMARÃES, E. R. J. " Não só mas também: polifonia e argumentação", in
Cadernos de Estudos Lingüísticos, n. 8, 1985a, pp. 79-108.
É evidente que a greve teve objetivos políticos: comandada pela
CUT e pelo PT, foi o caminho que se encontrou para testar a ação (ou ___.Formas de indeterminação: um processo enunciativo , 1985b (iné-
dito).
omissão) do governo, a fim de que, no futuro próximo, o processo seja
repetido em outros setores económicos. Em plena campanha eleitoral ___. "As conclusivas, portanto", in Texto e argumentação, Campinas,
vários governadores adotaram postura neutra ou passiva, como meros Pontes, 1987.
espectadores de um drama do qual fazem parte, queiram ou não, mas MAINGUENEAU, D. lnitiation aux méthodes de l'analy se du discours. Pa-
preferiram colocar seus interesses partidários acima dos interesses da co- ris, Hachette, 1976.
munidade. Exceção especial merece o governador de Minas Gerais, Hélio _ __ . Geneses du discours. Bruxelas, Mardaga, 1984.
Garcia, que fez valer sua autoridade e ampliar a sua faixa de confiança na MALDIDIER, E. et ai., " Discours et idéologie: quelques bases pour une
sociedade. recherche" , in Langue Française, n. 15, 1972, pp. 116-42.
Ninguém contesta a necessidade de ser revista a legislação salarial, ORLANDI, E. P. Linguagem e seu funcionamento. As formas de discurso.
pois é injusto o aumento que não cobrir a inflação, bem como há de ser São Paulo, Brasiliense. 1983.
alterada a lei de greve, para compatibilizá-la com o regime democrático.
_ __ . " Seg".'entar ou recortar?" , in Lingüística : questões e co ntrovér-
Mas não é compreenslvel que se viole a lei, se desprezem os legítimos sias. Uberaba, FIUBE, 1984, pp. 9-26.
direitos dos cidadãos e que o Estado se omita em suas obrigações consti-
PÊCHEUX, M . Analyse automatique du discours. Paris, Dunod, 1969.
tucionais, pois democracia sem ordem e respeito às leis não é democra-
cia, mas campo aberto para submeter a vontade da maioria. ___ . Les vérités de la palice. Paris, Maspero, 1975.
Convém repensarmos os fatos, tirarmos as lições do passado e cons- _ __ & FUCHS, C. " Mises au point et perspectives à pro pos de l'analyse
truirmos um futuro que assegure tranqüilidade social duradoura, que automatique du discours", in Langages, n. 37, 1975, pp. 7-80.
permitirá o desenvolvimento do processo político, social e económico de PERELMAN, Ch. r empire rhétorique. Paris, Vrin, 1977.
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1979, pp. 67-86.
VOGT, C. " Indicações para uma análise semântico-a rgumentativa das con-
Referências bibliográficas junções porque, pois, já que". in Linguagem, pragmática e ideolo-
gia. São Paulo, Hucitec/Funcamp, 1980, pp. 43-60.
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BAKHTINE, M . La poétique de Dostoievski. Paris. Seuil, 1963. Aires, Nu eva Visión, 1980.
76 DISCURSO E LEllURA ENI P\JLONEW ORlANOI 77

bastante diversas num mesmo espaço textual. Isso nos leva a considerar a senta como eu no discurso e a de enunciador que é (são) a(s) perspectiva(s)
heterogeneidade como forte característica do universo discursivo. que esse eu constrói.
A relação do sujeito com o que diz, ou seja, com seu discurso, é De nossa parte, e ai está nossa contribuição específica para esta
complexa e não podemos abordá-la de maneira mecanicista e automáti- reflexão, gostaríamos de acrescentar, de acordo com o "principio da au-
ca. Dessa forma, para encontrarmos as regularidades e a unidade no dis- toria" de Foucault (1971), uma outra função: a de autor.
curso é preciso abrir mão de princípios categóricos, de generalizações O princípio de autoria de Foucault estabelece que o autor é o prin-
abstratas. Há regularidades e há unidade, mas elas são de outra nature- cipio de agrupamento do discurso, unidade e origem de suas significa-
za. Como diz Foucault (1972), no discurso, o que se encontram são "siste- ções. O autor está na base da coerência do discurso.• Nossa proposta é,
mas de dispersão". então, a de colocar a função (discursiva) autor junto às outras e na or-
E o que tem a ver toda essa reflexão sobre sujeito e dispersão com dem (hierarquia) estabelecida: locutor, enunciador e autor. Nessa or-
o ensino da linguagem na escola? dem, teríamos uma variedade de funções que vão em direção ao social.
Tem tudo a ver; mesmo Foucault se deu conta de que, quando fala- Dessa forma, esta última, a de autor, é aquela (em nossa concepção) em
va de poder e de instituição, falava era do sujeito. Essa noção, a de sujei- que o sujeito falante está ma is afetado pelo contato com o social e suas
to, na verdade está suposta em toda reflexão que procure problematizar coerções.
qualquer prática de conhecimento. Diríamos que o autor é a fu nção que o eu assume enquanto produ-
Sem explorar as conseqüências do que este autor diz, acerca de tor de linguagem. Sendo a dimensão discursiva do sujeito que está mais
disciplina, em Vigiar e punir (1977) ou mesmo em L:ordre du discours determinada pela relação com a exterioridade (contexto sócio-histórico),
(1971 ). queríamos aqui apenas colocar como objeto de nossa atenção a ela está mais submetida às regras das institu ições. Nela são mais visíveis
relação do sujeito com o texto que ele produz, tendo como contexto a os procedimentos disciplinares.
escola e tomando como cerne da observação o momento em que se ensi-
na a escrever.
Procuraremos assim trazer alguns esclarecimentos ao que temos A noção de sujeito é histórica
chamado as condições de produção da leitura e da escrita.
O sujeito se define historicamente: a relação do sujeito com a lin-
guagem é diferente, por exemplo, na Idade Média, no século XVII e hoje.
As formas de representação do sujeito É por isso que Pêcheux (1975), ao pensar o discurso, fala em forma-
sujeito (que é sempre historicamente determinada). A relação com a lin-
Vamos então nos ocupar do fato de que o sujeito está, de alguma guagem, da forma-sujeito característica das nossas formações sociais, é
forma, inscrito no texto que produz. constituída da ilusão (ideológica) de que o sujeito é a fonte do que diz
Não nos interessa, entretanto, falar das marcas que atestam essa quando, na verdade, ele retoma sentidos preexistentes e inscritos em for-
inscrição do sujeito - elas existem e são muitas -, mas do fato de que os mações discursivas determinadas.
diferentes modos pelos quais o sujeito se inscreve no texto correspondem Essa forma-sujeito é a de um sujeito ao qual se imputam, ao mes-
a diferentes representações que, por sua vez, indicam as suas diferentes mo tempo, autonomia e responsabilidade. O que é característico dele é
funções enunciativo-discursivas. que ele se define como sujeito-jurídico (Haroche, 1984): tem direitos e
A partir do que diz Ducrot,3 teríamos as seguintes funções
enunciativas do sujeito: a de locutor, que é aquela pela qual ele se repre-
4. Para Foucault o princípio da autoria não vale para qualquer discurso nem
de forma constante. O modo como o estamos utilizando aqui difere deste autor.
3. Cf. Le dire et /e dit (1985), de O. Ducrot, também C. Vogt (1980) e Eduardo Para nós, o princípio é geral. O texto pode não ter um autor específico, mas sempre
Guimarães (1985), em um estudo de " não só mas também". se imputa uma autoria a ele.
76 DISCURSO E LEITURA ENI PULONEW ORlANDI 77

bastante diversas num mesmo espaço textual. Isso nos leva a considerar a senta como eu no discurso e a de enunciador que é (são) a(s) perspectiva(s)
heterogeneidade como forte característica do universo discursivo. que esse eu constrói.
A relação do sujeito com o que diz, ou seja, com seu discurso, é De nossa parte, e aí está nossa contribuição especifica para esta
complexa e não podemos abordá-la de maneira mecanicista e automáti- reflexão, gostaríamos de acrescentar, de acordo com o "principio da au-
ca. Dessa forma, para encontrarmos as regularidades e a unidade no dis- toria" de Foucault (1971), uma outra função: a de autor.
curso é preciso abrir mão de princípios categóricos, de generalizações O princípio de autoria de Foucault estabelece que o autor é o prin-
abstratas. Há regularidades e há unidade, mas elas são de outra nature- cípio de agrupamento do discurso, unidade e origem de suas significa-
za. Como diz Foucault (1972), no discurso, o que se encontram são "siste- ções. O autor está na base da coerência do discurso.• Nossa proposta é,
mas de dispersão". então, a de colocar a função (d iscursiva) autor junto às outras e na or-
E o que tem a ver toda essa reflexão sobre sujeito e dispersão com dem (hierarquia) estabelecida: locutor, enunciador e autor. Nessa or-
o ensino da linguagem na escola? dem, teríamos uma variedade de funções que vão em direção ao social.
Tem tudo a ver; mesmo Foucault se deu conta de que, quando fala- Dessa forma, esta última, a de autor, é aquela (em nossa concepção) em
va de poder e de instituição, falava era do sujeito. Essa noção, a de sujei- que o sujeito falante está ma is afetado pelo contato com o social e suas
to, na verdade está suposta em toda reflexão que procure problematizar coerções.
qualquer prática de conhecimento. Diríamos que o autor é a função que o eu assume enquanto produ-
Sem explorar as conseqüências do que este autor diz, acerca de tor de linguagem. Sendo a dimensão discursiva do sujeito que está mais
disciplina, em Vigiar e punir (1977) ou mesmo em L:ordre du discours determinada pela relação com a exterioridade (contexto sócio-histórico).
(1971 ). queríamos aqui apenas colocar como objeto de nossa atenção a ela está mais submetida às regras das instituições. Nela são mais visíveis
relação do sujeito com o texto que ele produz, tendo como contexto a os procedimentos disciplinares.
escola e tomando como cerne da observação o momento em que se ensi-
na a escrever.
Procuraremos assim trazer alguns esclarecimentos ao que temos A noção de sujeito é histórica
chamado as condições de produção da leitura e da escrita.
O sujeito se define historicamente: a relação do sujeito com a lin-
guagem é diferente, por exemplo, na Idade Média, no século XVII e hoje.
As formas de representação do sujeito É por isso que Pêcheux (1975). ao pensar o discurso, fala em forma-
sujeito (que é sempre historicamente determinada). A relação com a lin-
Vamos então nos ocupar do fato de que o sujeito está, de alguma guagem, da forma-sujeito característica das nossas formações sociais, é
forma, inscrito no texto que produz. constituída da ilusão (ideológica) de que o sujeito é a fonte do que diz
Não nos interessa, entretanto, falar das marcas que atestam essa quando, na verdade, ele retoma sentidos preexistentes e inscritos em for-
inscrição do sujeito - elas existem e são muitas - , mas do fato de que os mações discu rsivas determinadas.
diferentes modos pelos quais o sujeito se inscreve no texto correspondem Essa forma-sujeito é a de um sujeito ao qual se imputam, ao mes-
a diferentes representações que, por sua vez, indicam as suas diferentes mo tempo, autonomia e responsabilidade. O que é característico dele é
funções enunciativo-discursivas. que ele se define como sujeito-jurídico (Haroche, 1984): tem direitos e
A partir do que diz Ducrot.' teríamos as seguintes funções
enunciativas do sujeito: a de locutor, que é aquela pela qual ele se repre-
4. Para Foucault o princípio da autoria não vale para qualquer discurso nem
de forma constante. O modo como o estamos utilizando aqui difere deste autor.
3. Cf. le dire et /e dit (1985), de O. Ducrot, também C. Vogt (1980) e Eduardo Para nós, o princípio é geral. O texto pode não ter um autor específico, mas sempre
Guimarães (1985), em um estudo de "não só mas também". se imputa uma autoria a ele.
DISCURSO ElflTURA ENI P\ILONEW ORLANDt 79
78

deveres. 5 Particularmente, em sua relação com a linguagem, esse sujei- relevância e, entre várias coisas, "unidade", "não-contradição", "progres-
são" e "duração" do seu discurso.
to é capaz de "uma liberdade sem limite e uma submissão sem falhas"
(Haroche, 1984), ele pode criar qualquer coisa, contanto que respeite Essas exigências têm uma direção: procuram tornar o sujeito visível
rigorosamente as regras da linguagem . (enquanto autor, com suas intenções, objetivos, direção argumentativa).
Um sujeito visível é calculável, controlável, em uma palavra, identificável.
É. entre outras coisas, nesse "jogo" que o aluno entra quando co-
Identidade e identificação meça escrever.
Para que o sujeito se coloque como autor, ele tem de estabelecer
A partir dessas considerações, podemos ver, nas diferentes funções uma relação com a exterioridade, ao mesmo tempo em que ele se remete
discursivo-enunciativas mencionadas acima - e que, do ponto de vista à sua própria interioridade: ele constrói assim sua ident idade como autor.
que aqui estamos assumindo, estão hierarquizadas - modos de "apaga- Isto é, ele aprende a assumir o papel de autor e aquilo que ele implica .
mento" do sujeito. 6 O autor é, pois, o sujeito que, tendo o domínio de certos mecanis-
Nessa perspectiva, o autor é a instância em que haveria maior "apa- mos discursivos, representa, pela linguagem, esse papel, na ordem social
gamento" do sujeito. Isto porque é nessa instância - mais determinada em que está inserido.
pela representação social - que mais se exerce a injunção a um modo de Não basta "falar" para ser autor; falando, ele é apenas falante. Não
dizer padronizado e institucionalizado no qual se inscreve a responsabili- basta "dizer" para ser autor; d izendo, ele é apenas locutor. Também não
dade do sujeito por aquilo que diz. É da representação do sujeito como basta enunciar algo para ser autor.
autor que mais se cobra sua ilusão de ser origem e fonte d e seu discurso.
É nessa função que sua relação com a linguagem está mais sujeita ao
controle social. Papel social e responsabilidade
Assim, do autor se exige: coerência; respeito aos padrões estabele-
cidos, tanto quanto à forma do discurso como às formas gramaticais; O que é preciso, então, para ser autor?
explicitação; clareza; conhecimento das regras textuais; originalidade; O que tem faltado, desse ponto de vista, quando se pensam as
condições de produção da escrita, na escola, é compreender o processo
em que se dá a assunção, por parte do sujeito, de seu papel de autor.
5. Essa definição do autor, referida à idéia de um sujeito jurídico (que tem Essa assunção impl ica, segundo o que estamos procurando mostrar, uma
direitos e deveres, sujeito responsável por seus feitos e gestos), que é característica inserção (construção) do sujeito na cultura, uma posição dele no contex-
do nosso contexto histórico-social, tem uma história cujo momento decisivo loca-
to h istórico-social.
liza-se no período que vai do século Xao século XIII (Haroche, 1984). Interessa-nos
aqui lembrar que aquele período é marcado por cruciais transformações na econo- Aprender a se colocar - aqui: representar - como autor e assumir,
mia (sedentarização do comércio, corporativismo dos comerciantes, reivindicações diante da instituição-escola e fora dela (nas outras instâncias institucio-
de emancipação por parte dos camponeses) que estão ligadas aos progressos da nais) esse papel social, na sua relação com a linguagem: constituir-se e
instrução, da escrita. Esses progressos, por sua vez, se inscrevem no avanço do mostrar-se autor.
aparelho jurídico e refletem-se, de forma importante, sobre a questão do sujeito.
Aí está uma tarefa importante da atividade pedagógica, na escola,
Não nos alongaremos sobre isso, nesse trabalho, mas vale a pena uma reflexão
mais demorada, em termos históricos, sobre a ligação entre a constituição do au- em relação ao universo da escrita: responder a essa questão - o que e
tor, o progresso da escrita, em sua relação com as estruturas económico-sociais. ser autor - é atuar no que define a passagem da função de sujeito-
6. O "apagamento" não tem um sentido negativo, pois: 1. ele é a própria enunciador para a de sujeito-autor.
possibilidade de transmutação do sujeito em suas múltiplas formas e funções; e 2. Eis onde deve incidir a reflexão lingüístico-pedagógica para que o
ao colocar-se socialmente, o sujeito-autor se percebe subjetivamente. O apaga- professor de língua possa atuar, dando a conhecer ao aluno a natureza
mento é constitutivo do sujeito. É um modo de existência do sujeito: um procedi-
desse processo no qual o "aprender a escrever" o engaja. E o momento é
mento pelo qual ele se constitui. Em resumo: o apagamento faz parte das condi-
exatamente o da passagem do enunciador a autor.
ções de produção do sujeito.
80 DISCURSO ElEllURA ENI PULONELU ORIANOI
81

Como passar da multiplicidade de representações possíveis do su- cas q~e façam com que ele tenha o controle dos mecanismos com os quais
jeito, enquanto enunciador, para a organização dessa dispersão num todo está lidando quando escreve. Estes mecanismos são de duas ordens:
coerente (e consistente) com que se apresenta o autor, responsável pela
a) Meca~is'.11os do domínio do processo discursivo, no qual ele se
unidade e coerência do seu discurso?
const1tu1 como autor.
Pode-se pensar as várias características que são diferentes entre
enunciado e autor. Quer-nos parecer que, nessa reflexão, basta conside- b) Mecanismos do domínio dos processos textuais nos quais ele
marca sua prática de autor.
rarmos uma das mais, senão a mais, importantes: a responsabilidade.
A responsabilidade do autor é cobrada em várias dimensões: quan-
to a unidade do texto, quanto à clareza, quanto à não-contradição, quan- _c~eio que ai está configurada uma função da escola com respeito
ao suie1to que escreve.
to à correção etc. Exige-se uma relação institucional com a linguagem.
Uma ilustração disso que estamos falando é a situação comum em que o . Gostaríamos de lembrar que, em termos de funcionamento ideoló-
professor considera certos textos de alunos, até compreensíveis mas ina- gico, o fato de se considerar como fonte do que diz é, segundo Pêcheux
ceitáveis. O que o professor está cobrando, e está faltando, é que o aluno (1975), uma ilusão necessária do falante. Quer dizer, é pelo funcionamen-
assuma a posição de autor.' to da ideologia que ele assim se "vê", quando na realidade seu discurso
Em um mesmo texto, o enunciador pode se representar de várias não nasce (nem termina) nele. Também o principio da autoria faz parte,
maneiras. Por exemplo, na descrição de uma ponte, o enunciador pode- s~gundo_Foucault (1971 ), dos processos internos de controle e delimita-
se representar como estando debaixo dela, do interior de um barco que ç~o do d1scurs~. São processos que vão domesticar (disciplinar) a dimen-
passa, e ao mesmo tempo da margem do rio sobre o qual ele está. Isso sao do acontecimento e do acaso do discurso.
não resulta em nenhuma inconsistência textual. Da mesma forma, em um O que estamos procurando mostrar é a construção e o funciona-
texto sobre salário, podemos ter o enunciador falando da perspectiva do mento dessa ilusão necessária e desse princípio, na escola, na produção
patrão, ao mesmo tempo que, em outro lugar do texto, ele representa a de autores.
posição de empregado. Isto também não cria problema algum. Diríamos
que cada posição representa um enunciador, podendo, pois, o texto ter
vários enunciadores. Mas, em um caso como no outro, é preciso que o Sujeito, escritor, autor
autor faça isso de maneira que o t exto apresente unidade. É dele que se
cobra essa unidade, não do enunciador.
, Quanto à questão do sujeito e do escritor, tal como enunciamos no
titulo deste trabalho, gostaríamos de dizer que:
a) Não se trata, pois, de tematizar a noção de sujeito em si, da sua
Escola e autoria
liberdade, etc.. mas da manifestação do problema da subjetivi-
dade na relação com a escrita, na escola (uma instituição).
Podemos, enfim, dizer que a escola deve propiciar essa passagem-
enunciador/autor - de tal forma que o aprendiz possa experimentar práti-
Diríamos que não há lugar, nessa reflexão, para o sujeito em si.
Paralelamente, também quando se fala na realidade, ou melhor, no fato
7. Gostaria mos de lembrar, só de passagem, que essa representação do sujei- de que a escola não tem relação com a realidade, se está cometendo um
to, ou melhor, essa função enunciativo-discursiva, que é a do autor, tem seu pólo eq uívoco. Não há realidade em si. A idéia de realidade passa, nessa nossa
correspondente que é o de leitor. De tal forma isso se dá que não é do ouvinte, ou
proposta, pela n?ção de institu ição e, mais especificamente, instituição
do destinatário, mas do leitor que se cobra um modo de leitura. O leitor está, tal
como o autor, afetado pela sua inserção no social. Assim, na preocupação da leitu- de ~ns_m_o. A realidade da escola, então, é a realidade possível para uma
1nst1tu1çao.
ra, o leitor entra com as condições que o caracterizam sócio-historicamente. Dessa
forma, ele terá sua identidade de leitura configurada pelo seu lugar social e é, em . Não se trata, po.is, ~qui, nem da realidade em si, nem do sujeito em
relação a esse lugar que se define a "sua" "leitura''. s1, mas do suie1to na instituição-escola.
82 DISCURSO El.IITURA
ENI PVlCINEW ORLANDI
83
Ora, na realidade (institucional) escolar, quando se fala da escrita,
está-se falando da formação do autor, de uma das formas de representa- própria transformação e a do aprendiz, assim como da forma de conheci-
mento a que tem acesso.
ção do sujeito (e não do sujeito em si).
Nesse s.entido~ esse texto que escrevi, e que se coloca como um
Se não se tem em mente essas diferenças, se fala monoliticamente
produto na c1rculaçao do saber, também não está pronto. É só parte d
do sujeito - assim como se tem ouvido falar em "métodos que resgatam processo. o
(?) o sujeito" - sem se pensar as diferentes instâncias de suas represen-
tações, como é o caso à que estamos nos referindo no ensino da escrita.
Não levando em conta essas diferenças, a escola, por um processo Referências bibliográficas
ideológico extremamente complexo, acaba por não permitir a passagem
do enunciador para o autor. Confunde os seus papéis e cobra um pelo DUCROT, O. Le dire et le di t. Paris, Minuit, 1984.
outro. Faz isso porque nã.o explicita sua própria função. FOUCAULT, M. t:ordre du discours. Paris, Gallimard, 1971.
Quanto ao escritor, o que gostaríamos de dizer é o seguinte: não é - - -· Arqueologia do saber. Petrópolis, Vozes, 1972.
a relação com a escola que define o escritor. Ela poderá ser útil, mas não ___ . Vigia r e punir. Petrópolis, Vozes, 1977.
é nem necessária, nem suficiente. Não é sua tarefa específica formar es-
GUIMARÃES E R J "N" ·
critores. • · · · ao so mas também: polifonia e argumentação" in
Cadernos de Estudos Lingüísticos, n. 8, JEL, 1985. '
Ao contrário, para ser autor, sim: a escola é necessária, embora não
H~ROCHE, CI., Vouloir dire faire dire . P. u. de Lille, 1984 _
suficiente, uma vez que a relação com o fora da escola também constitui
a experiência da autoria. De toda forma, a escola, enquanto lugar de PECHEUX, M. Les vérites de la palice. Paris, Maspero, 1975.
reflexão, é um lugar fundamental para a elaboração dessa experiência, a VOGT. C. ·:Por u_ma pra~má!ica das representações", in Linguagem, prag-
da autoria, na relação com a linguagem. mát1Ca e 1deolog1a . Sao Paulo, Hucitec, 1980.

Enfim

Estas reflexões que aqui fazemos, do ponto de vista discursivo, so-


bre a relação entre a escola e a escrita podem servir de subsidio para a
atividade pedagógica que tem como objetivo o ensino da língua.
No entanto, essa reflexão não se coloca como um artefato para ser
utilizado como tal no ensino.
Há mediações importantes entre a produção de uma forma de co-
nhecimento por determinado domínio de estudos, no contexto acadêmi-
co, e a aplicação desse conhecimento no ensino.
Assim como, para o aluno, o conhecimento não vem pronto, mas é,
ao contrário, um processo (da elaboração do qual ele faz parte funda-
mental), também para os que produzem conhecimento, programas e
métodos de ensino, existe um processo e uma divisão de trabalho.
Nessa divisão de trabalho, cabe ao professor, que está diretamente
comprometido com a atividade pedagógica, a elaboração de uma etapa
crucial da divisão de trabalho: propiciar, pela ação pedagógica, a sua
85

Significação, leitura e redação*

Introdução: significação

Temos procurado incorporar, na reflexão sobre leitura e redação,


contribuições que se inscrevem na teoria do discurso que, como se sabe,
trata da determinação histórica dos processos de significação (Pêcheux &
Fuchs, 1975).
A característica fundamental dessa teoria está em se trabalhar com
os processos de constituição do fenômeno lingüístico e não meramente
produto desta constituição. Portanto, no que diz respeito ao problema da
significação, procura-se estabelecer como a relação que liga os sentidos
às condições em que eles são produzidos é uma relação necessária, cons-
titutiva da própria significação (Haroche, Henry & Pêcheux, 1971). Essas
condições abrangem o contexto histórico-social, ideológico, a situação,
os interlocutores e o objeto de discurso, de tal forma que aquilo que se
diz significa em relação ao que não se diz. ao lugar social do qual se diz,
para quem se diz, em relação aos outros discursos etc.
Podemos tirar dessas reflexões duas conseqüências aparentemente
opostas: de um lado, dada a relação do discurso com sua exterioridade,
ou seja, com a situação (de enunciação e histórico-social), os sentidos são
múltiplos, há variação; de outro lado, dada essa mesma relação, há a
sedimentação histórica dos sentidos, sua legitimação em termos institu-
cionais, seu uso regulado.

• A versão inicial desse texto foi apresentada como conferência no 1Encontro


de Redação, promovido pela PUC do Rio de Janeiro, 1983.
DISCURSO EUITURA ENI PVLCINEUI ORLANDI 87
86

Embora, de direito, haja possibilidade de múltiplos sentidos, de fa~o Dessa forma, podemos dizer que há leituras previstas para um tex-
não podemos desconhecer que, enquanto parte do funcionamento soc~al to, embora essa previsão não seja absoluta, pois sempre são possíveis
novas leituras dele.
geral, a linguagem é regulada, ou melhor, as situaçõ_es d~ linguagem sao
reguladas: não se diz 0 que se quer, em qualquer s1tuaçao, de qualquer Em termos do processo de significação de que falamos acima, há
maneira. Também não se pode entender o que se quer, de qualquer ma- dois fatores determinantes para a previsibilidade:
neira, em qualquer situação. 1. os sentidos se sedimentam de acordo com as condições em que
Do reconhecimento dessa duplicidade da linguagem - a ~ar!aç.ão e são produzidos; e
a regra - decorre a polarização constante entre o processo po/1ssem1co e 2. dada a relação entre os textos, o conjunto dessas relações indica
processo parafrástico.' . . como o texto deve ser lido.
A t ensão entre estes processos manifesta-se de várias maneiras: na Ainda no escopo da previsibilidade, há o que chamamos legitima-
existência da regra e da exceção, do previslvel e do imprevisível'. ~o certo ção: algumas leituras são mais legitimas do que outras. Essa legitimação
e do indeterminado, do legitimo e daquilo que tem de se leg1t1mar, do ocorre de maneiras diferentes, de acordo com as várias instituições: na
que já é e do que pode ser, do estabelecido e do que muda etc. . . Igreja cristã, a leitura legítima está a cargo do teólogo; no Direito, a cargo
Tenho enfatizado a importância de se ter em conta a pohss~m~a, do jurista etc.
pois é a possibilidade de múltiplos sentidos para um~ mesma enunciaçao Em relação à escola, essa função de legitimar leituras está distribuída
que fundamenta a atividade do dizer. No entanto, nao se d~ve de~co~he­ pelas diferentes áreas de conhecimentos. Todas elas, entretanto, podem
cer a força do mesmo, da paráfrase, na linguagem. É-ª açao da 1~st1tu1· ser representadas pelas diferentes áreas de conhecimentos. Todas elas, en-
ção, da regra, da lei, e nela é que se sustenta a af1rmaçao de que a lingua- tretanto, podem ser representadas pela função do crítico. Ao mesmo tem-
gem é convencional. A convenção, segundo Weber (1964), é o ~ostume po em que avaliam a importância de um texto, os crlticos fixam-lhes um
que, dentro de um grupo, se considera como válido e está garantido pela sentido que passa a ser considerado o legitimo para a leitura.
reprodução da conduta discordante. Só para citar um exemplo dessa. va- No interior desse processo de legitimação, o professor retoma, em
lidade: não se pode fazer uma conferência como se fosse um comício e seu trabalho pedagógico, uma leitura considerada ideal, e que tem como
vice-versa. modelo a de um critico. Muitas vezes a leitura ideal do professor é forne-
Vejamos como f icam essas afirmações em relação ao processo da cida pelo livro didático. A autoridade imediata, nesse caso, é o autor do
leitura . livro didático adotado que, por sua vez, pode-se ter modelado no critico.
Na consideração do aspecto histórico da leitura há o outro lado:
trata-se do fato de que todo leitor tem sua história de leituras.
A leitura As leituras já feitas configuram - dirigem, isto é, podem alargar ou
restringir - a compreensão do texto de cada leitor especifico.
A leitura é produzida em condições determinadas, ou seja, em um A inclusão da história nas condições de produção da leitura apare-·
contexto sócio-histórico que deve ser levado em conta. ce, assim, caracterizando um dos seus aspectos: as leituras já feitas de
um desses mecanismos de produção da leitura pode ser expresso um texto e as leituras já feitas por um leitor compõem a história da leitura
na seguinte afirmação: toda leitura tem sua história.> quanto ao seu aspecto previsível.
Leituras que são posslveis, para um mesmo te~º·. em ~ertas é~ocas Mas também a imprevisibilidade resulta da história. Dessa forma, é
não 0 foram em outras e leituras que não são poss1ve1s hoje o serao no ainda do contexto histórico-social que deriva a pluralidade possível - e
futuro. desejável - das leituras.
Quando me refiro à pluralidade das leituras não estou pensando
1. A polissemia é a multiplicidade de sentidos e a paráfrase é a permanência
apenas na leitura de vários textos, mas, sobretudo, na possibilidade de se
ler um mesmo texto de várias maneiras. Este é um aspecto fundamental
do mesmo sentido sob formas diferentes.
2. Cf. E. Orlandi: "As hist órias das leituras", neste volume. do processo de significação que a leitura estabelece.
88 DISCURSO E LEllURA ENI PULONEW ORlANDI

O reconhecimento de que há um jogo, entre previsibilidade e im- e destinatário. Essa afirmação se estabelece sobre o princípio de que "quem
previsibilidade, deriva de uma concepção de história que, por sua vez, fala " e " quem ouve" se determinam mutuamente. A relação, então, é de
traz em si a dupla relação entre produto e processo. Essa concepção tem interdependência: quem fala, ao produzir, também está atribuindo senti-
sido tematizada nas diferentes ciências que trabalham com a história e já do; quem ouve ao atribuir, também produz sentido. E quanto a isto esta-
se faz presente até em artigos de penal: "a relação da obra literária com a mos inteiramente de acordo.
história e dupla, tem pelo menos duas mãos: é histórica, produto da épo- No entanto, essa relação está longe de ser direta e automática. E é
ca, mas também produz história, projeta-se na diacronia, influencia acon- para esse aspecto que chamo a atenção.
tecimentos futuros, atua sobre a linguagem e opera no plano da ideolo- Locutor e destinatário representam papéis diferentes e têm, pois,
gia, da percepção do mundo e representação do real " (C. Willer, Folha estatutos diferentes na interlocução: o de autor e o de leitor, com suas
Ilustrada, 30/ 13/ 1984, em artigo que fala sobre os beats). finalidades específicas.
Gostaria de enfatizar o fato de que, de acordo com a teoria do Feitas essas observações, gostaria de introduzir na reflexão sobre a
discurso, qualquer acontecimento lingüístico (inclusive o que constitui a relação entre leitura e redação a questão dos modelos. Graficamente
leitura) é histórico e, portanto, está sujeito a essa dupla relação. representaria essa relação como segue: '
Podemos mesmo dizer que as leituras tem suas histórias, no plural.
Não há leituras previstas por um texto, em geral, como se o texto
fosse fechado em si mesmo e auto-suficiente. Há leituras previstas para ele.
Mas mesmo ao se reconhecer que há leituras previstas para um
texto, importa cuidar-se para que não se petrifiquem essas leituras pre-
vistas, a fim de que possa acontecer a leitura nova, tanto quanto possível.
As leituras previstas devem entrar como um dos componentes das
condições de produção da leitura e não como o constituinte determinan-
te dela.
A contribuição do professor, em relação às leituras previstas para
um texto, é modificar as condições de produção de leituras do aluno,
dando oportunidade a que ele construa sua história de leituras e estabe-
lecendo, quando necessário, as relações intertextuais, resgatando a his-
tória dos sentidos do texto, sem obstruir o curso da história (futura) des-
Escrita Leitura
ses sentidos.
O professor deve colocar, portanto, desafios a compreensibilidade
do aluno sem deixar de lhe propiciar as condições para que esse desafio Obs: Tanto para a leitura como para a escrita, o crítico ocupa posição de destaque
em sua função mediadora.
seja assumido de forma conseqüente.
Seria desnecessário lembrar que o professor não deve perder de vista
que essa história de leituras do aluno não é necessariamente igual a sua.

A relação - autor/leitor - se faz através dos modelos ideais de


A relação entre leitura e redação escrita e leitura, ou das suposições que os interlocutores fazem a respeito
de suas relações recíprocas com esses modelos. Quer dizer: a relação se
Já há, em estudos da linguagem que tratam da interação, uma es- faz tendo como referência padrão aquilo que deve ser o bem escrito e a
pécie de consenso que diz que não há separação categórica entre locutor boa leitura (ou o bom autor e o bom leitor).
90 DISCURSO E LEITURA ENI PULCINEW ORLAN DI 91

Circuito A - Leitura -+ Escrita modelos. Ele pode produzir textos de acordo com o modelo ou pode
modificá-lo. Não é, pois, uma relação automática mas tensa.
A leitura é um dos elementos que constituem o processo de produ-
ção da escrita. Circuito B - Escrita -+ Leitura
Antes de tudo, gostaria de insistir na afirmação de que não se trata
de uma relação mecânica. Ou seja, não há uma relação automática entre Esta é outra face do processo. E pode ser vista em seu aspecto
ler-se muito e escrever-se bem. Pode ocorrer que, quanto mais se leia, mais mais usual que é o de que, afinal, quem lê, lê um texto produzido de
forte seja o bloqueio para a escrita. Os processos de leitura e de escrita são
uma certa maneira, num certo contexto, tendo uma certa forma; fazendo
distintos e revelam relações diferentes com a linguagem. Não se pode di-
parte de uma certa tradição cultural com suas formas valorizadas, seus
zer, então, categoricamente, que um bom leitor é alguém que escreve bem.
modelos etc.
Por outro lado, quem escreve bem não é necessariamente um bom leitor.
Para ilustrar essas colocações, recordo-me de uma afirmação de Interessa-me, entretanto, focalizar um outro aspecto: a escrita, ou
Sartre em que ele dizia não ser um bom leitor, pois no segundo parágrafo seja, a redação é o meio de se ter acesso à leitura do aluno.
de uma leitura já começava a produzir um outro texto e não seguia mais Também aqui há modelos mediando: como se faz um resumo, uma
o texto original da leitura. Esse exemplo serve, entre outras coisas, para dissertação, uma resenha etc.?
refletirmos sobre o que é ser um bom leitor. Sem esquecer que, na histó-
Essa forma (resumo, resenha, etc.) produzida não é o reflexo direto
ria de cada sujeito, há ciclos, fases variadas em que se podem alterar o
da leitura. Cabe perguntar qual é a relação entre a leitura e a redação, o
gosto pela escrita ou pela leitura etc.
resumo etc. Um mau resumo revela uma má leitura? Ou um mau domínio
Resguardada, pois, essa distinção, podemos observar dois aspectos
dessa forma de escrita?
da relação leitura/escrita que podem ser operacionalizados por uma pro-
posta escolar: O professor deve prestar atenção a essa relação para distinguir es-
ses processos - que necessariamente andam juntos - no aluno.
1. A leitura fornece matéria-prima para a escrita: o que se escrever. Em geral, então, a produção (oral ou escrita) é o meio pelo qual se
tem acesso a leitura do aluno. Embora seja uma relação indireta, é aí que
Em termos de significação, verifica-se aí o processo de sedimenta- se pode verificar a história do leitor em relação às significações, aos mo-
ção de sentidos: é porque são lidos de uma certa forma e compreendidos delos (etc.) de que ele tem domínio.
de uma maneira determinada que os sentidos adquirem unidade, tem Outro fator que eu gostaria de observar, e que distingue leitura e
um uso comum. redação, é o fato de que o aprendiz lê todas as épocas, mas escreve,
Aqueles que são considerados os leitores competentes - e, em toda automaticamente, na sua (e a sua). E não desconhecemos que há uma
sociedade, há mecanismos para institui-los - têm uma função determi- escrita de época, que incorporamos mais ou menos inconscientemente,
nante para o processo de cristalização de sentidos, homogeneização de
que revela a nossa absorção (ou, mais raramente, ruptura) de modelos no
usos. Esses sentidos sedimentados são a matéria-prima de leituras poste-
contexto sócio-histórico em que vivemos.
riores e também de redações.
O professor pode ter a tarefa importante de explicitar a história Creio que devemos, ainda, observar uma outra distinção que afeta
a relação do aluno com os modelos.
desses sentidos.
A reprodução de modelos é previsível e até desejável em certas si-
2. A leitura contribui para a constituição dos modelos: o como se tuações de linguagem que definem tipos como: cartas, ofícios, discurso
escrever. jurídico etc. Mas quando se trata da literatura já entram outros fatores
importantes, como o estético e a invenção. Não se deve, pois, perder de
Quanto a isso, é preciso questionar como o aprendiz vai operar com vista que temos diferentes relações com as diferentes formas de lingua-
os modelos. Trata-se de lhe dar condições de elaborar sua relação com os gem em termos de modelos. A escola tem igualado tudo.
92 DISCURSO E lErT\JRA ENI PULONEW ORIANOI 93

Observações específicas Não penso que se trata - para a solução desse problema - de um
simples esforço de cooperação. Trata-se de um aspecto de uma luta social
Essas considerações levam-nos a dizer que há algumas questões que não se resolve através de programas escolares produzidos pela clas-
que devem ser respondidas por aqueles que assumem responsabilidades se-média. Com a resposta da educação democrática, pode-se dizer que
pedagógicas: as classes populares estão na escola. No entanto, o d ireito que elas têm é
1. Qual é a relação da escola com os modelos? o de aprender as formas legítimas da cultura dominante. E as suas formas
2. Qual é a relação da escola com os autores e leitores competentes? como ficam? Têm ficado como alternativas. Alternativas para quem? Não
3. Qual é domínio de conhecimento do professor em relação aos para as classes populares pois, para elas, essas formas não são alternati-
modelos? vas, são principal, isto é, são a sua própria identidade cultural.
4. Qual é a posição do professor em relação aos modelos nas dife- É próprio da burguesia a produção do discurso da igualdade, ao
rentes situações de linguagem? mesmo tempo em que reorganiza a desigualdade em outros lugares. Por-
tanto. é preciso desconfiar desse discurso que pretende a aproximação
O que nos leva a pensar seriamente na distinção existente entre, de do conhecimento legítimo, o da classe dominante.
um lado, a função da escrita e da leitura na escola e de outro, a relação A objeção que coloco pode ser expressa como segue. Quando há a
do aluno com a escrita e a leitura em geral, já que nem a escrita nem a apropriação de um instrumento, o que acontece:
leitura se esgotam no espaço escolar. 1. com o instrumento: ele continua com o mesmo valor social?
Cabe, então, observar que a função da escrita, na escola, tem sido 2. com quem se apropria: muda sua condição social?
basicamente a de formar literatos. Tentativa esta frustrada através dos 3. com a relação entre a classe dominante e esse instrumento: ela
anos e dos alunos ("Samba não se aprende no colégio"). simplesmente o partilha com a outra classe?
Paralelamente, a leitura também tem sido tratada de forma homoge-
neizada (e homogeneizante): visam-se só modelos clássicos escolares: pode- Então, é inegável a importância do modo de apropriação desse ins-
se perguntar qual é a validade desses modelos e para quem são válidos. trumento assim como o espaço possível para a elaboração de outras for-
A resposta a esta questão, assim como às outras que colocamos mas de conhecimento.
mais acima, é condição prévia para que se estabeleçam programas e pro-
Dessa maneira, considero que se deva, de um lado, reivindicar, po-
cedimentos pedagógicos em relação à leitura.
liticamente, o direito de acesso ao conhecimento legítimo e, de outro,
estabelecer condições para que se elaborem outras forma s de saber que
não sejam a mera reprodução do conhecimento dominante. Já que as
Observações gerais diferentes formas de saber têm funções sociais distintas e que derivam
sua diferença dos antagonismos das classes.
Finalmente, caberia alguma reflexão em relação às condições, isto
é, ao contexto mais amplo, em que se dá a leitura. Há. já instituída, uma história de leitu ra das classes dominantes,
então é preciso se criar condições para que as classes populares elaborem
O que se tem proposto, em geral, em termos de escola, tem como
sua história de leituras que a classe dominante d esconhece, ou melhor,
ponto de partida e de chegada a classe média.
não reconhece.
As conversas em torno de so luções a respeito do problema da leitu-
Em resumo, quer nos parecer que não sucumbir aos apelos genero-
ra têm-se configurado como discurso da escola de classe-média .
sos das propostas bem-intencionadas da classe média pode significar,
A relação da leitura com as classes populares3 é outra conversa. por parte das classes populares, menos uma forma de ignorância irreme-
diável do que sua expressão de resistência cultural.
3. Cf. E. Orlandi, "A leitura: de quem, para quem?", texto apresentado em É esta, finalm ente, a questão mais radical que se põe para o pro-
mesa-redonda do IV COLE. Campinas. 1983. fessor.
94 DISCURSO E LEITURA 95

Referências bibliográficas

HAROCHE, CI.; HENRY. P. & PÊCHEUX, M . "La semantique et la coupure


saussurienne". Langages, n. 24, Paris, Didier/Larousse, 1971 .
PÊCHEUX, M . & FUCHS, M . "Mises au point et perspectives à propos de
l'analyses automatique du discours". Langages, n. 37, Paris, Didier/
Larousse, 1975.
WEBER, M . Economia y Sociedad. Madrid, Gredos, 1964.

Mosaico de falas:
muitos pontos de vista e de fuga*

Na convivência com a cultura indígena, eu aprendi a ver em nossas


situações de linguagem os rituais que elas constituem . Este é um momen-
to ritual. A pretexto de falar sobre jornalismo feminino e feminismo, nós
reafirmamos sua existência.
Momento mais solene ainda como ritual porque essa nossa fala
tem um contexto que é uma comemoração histórica.
Ao ser convidada a participar desse ritual, coloquei-me frente a al-
gumas questões.
Agrada-me muito falar sobre mulher numa fala de mulher, de mu-
lheres. Mas, por outro lado, não sou jornalista e não sou femini sta. Pelo
menos no rigor da palavra. Então, numa situação como essa, o que me
significa tomar a palavra?
Na minha convivência com o estudo da linguagem - e essa é
minha especificidade - eu aprendi que as palavras não significam por si
mas pelas pessoas que as falam, ou pela posição que ocupam os que as
falam. Sendo assim, os sentidos são aqueles que a gente consegue pro-
duzir no confronto do poder das diferentes falas.
Pensando nisso, resolvi entrar na disputa desses sentidos e correr o
risco de falar de fora, procurando, no entanto, não excluir e nem produzir
o efeito de minha exclusão.

* Mesa-redonda organizada pela jornalista Cristina Duarte no MASP (81411987)


sobre Jornalismo Feminino e Feminismo, em comemoração ao aniversário da Edi-
tora Abril.
96 DISCURSO E lflTURA
ENI PULONEW ORIANDI 97

Que há um jornalismo feminino não há dúvida. Empresarialmente,


prática, e isso não é verificável empiricamente, num lugar x específico.
ele está aí. Empiricamente, está aí, já que produz objetos culturais que
Isso é produzido por um conjunto de relações de sentidos e de forças, de
circulam pela sociedade com uma "cara", com uma identidade.'
mecanismos que funcionam até de forma dispersa, caótica. Os significa-
O feminismo, por sua vez, faz sua história com seus tropeços. seus dos não caminham em linha reta. Eles saem da linha, se é que se pode
avanços, seus recuos, sua tenacidade. dizer que eles tenham uma.
Ao invés de tentar negar a (inegável) especificidade do feminino e E agora vou entrar em um assunto meio "masculino": a questão
do feminismo, ao invés de falar a favor ou contra uma ou outra forma de política, jurídica.
fazer jornalismo feminino e feminismo, eu vou falar de seu modo de exis- Faz parte de quem pensa (ou deseja) a transformação social, a idea-
tência, de como eles existem em relação à mulher. lização da sociedade: assim, a gente pretende que ela resulte da estima
Eu diria então que a importância da existência do jornalismo femi- que cada um tem por si e da dignidade que atribui ao outro. Quando se vê
nino e do feminismo está em que ambos são parte da construção da as coisas desse ponto de vista, a felicidade não é propriamente um negócio
sociedade e se colocam como uma forma da mulher se relacionar com ela administrativo, mas é, em grande medida, uma questão do Estado.
mesma e, por aí, com a formação social em que vive. Como se pode ler em um texto bastante antigo (de Condorcet) fa-
Numa conjuntura sócio-política de uma sociedade como a nossa, a lando sobre o cidadão: "a lei não pode fazer minha felicidade, mas não se
mulher convive necessariamente com o jornalismo feminino e com o fe- pode deixar que ela faça minha infelicidade, me privando da liberdade e
minismo, em seu cotidiano. Se isso é algo que leva à consciência, à críti- me impedindo de fazer aqui lo que eu posso ser". No entanto, há muitas
ca, ou à mera reprodução de uma vida domesticada, é assunto para mui- maneiras de se impedir que alguém seja tudo que pode ser.
ta conversa. Aqui me basta lembrar que há jornalismos femininos no plu- E aí tocamos o espinhoso tema das igualdades e diferenças.
ral e há feminismos no plural, e a própria existência desse plural faz parte Que a mulher, ao aspirar à igualdade de direitos, está também con-
da realidade cotidiana da mulher. Nada é completo. fechado, absoluto, figurando sua diferença já está dito. Eu gostaria de tematizar esse direito
único, no cotidiano. A mulher, por sua vez, não é um autômato subjuga- à diferença.
do por uma posição ou outra (não é um saco vazio). É ela, afinal, que O direito à diferença tem sua ambigüidade: o " nós, mulheres esta-
também está produzindo essa história que ela vive, embora essa história
belece a possibilidade de promover a organização, pois as diferenças que
não lhe seja transparente. ai se anunciam (pelo próprio fato de serem explicitadas) têm a "virtude"
Frente a esse mosaico de discursos, ela alimenta essa ou aquela de fundar uma comunidade, mas também o "defeito" de autorizar exclu-
posição. Ela resiste, se entrega, volta atrás, avança. sões. O direito de ser mulher (de ser intelectual, etc.) traz junto, infeliz-
Assim. entre a postura que. em nome de uma forma de jornalismo mente, um certo gosto de "arrebanhamento".
feminino ou de feminismo, nega a transformação, e aquela que a afirma Um cidadão não deveria ter de ser antes de tudo mulher (intelec-
dogmaticamente, eu diria, pois, que não é o caso de se afirmar ou negar tual, etc.), mas ele deveria poder ser mulher porque o direito não lhe
a transformação. mas de se pensar que se opera continuamente com sua exige justamente que preste contas disso.
possibilidade, quer pelo jornalismo feminino quer pelo feminismo. É uma situação complicada esta que a história nos colocou.
Eles estão aí e têm seus efeitos, que não são nem automáticos nem Se não reivindicamos a diferença não podemos discutir a desigual-
tão visíveis diretamente. dade. Por outro lado, o " nós, mulheres". ao afirmar a particularidade do
O que funciona numa sociedade, na perspectiva da linguagem, não agrupamento, pode excluir (pastoralmente) ao mesmo tempo a universa-
é a coisa mas os efeitos imaginários que ela produz. Não é porque uma lidade do direito e a singularidade do sujeito.
mulher leu um artigo x que ela vai ser assim ou assado; é o modo como E tem mais, a gente sabe que a permissão expressa restringe mais
ela se relaciona com esse artigo, na sua história, que vai determinar sua que a proibição expressa. Então, a estratégia do discurso da mulher. a
meu ver, seria mais radical se não exigisse as permissões mas, isso sim,
negasse as negações (quando a mulher afirma, ela pressupõe uma nega-
1. Identidade que, para se definir, tem tido como condição seu confronto ne- ção e isso vem à tona). Quando ela diz: " as mulheres são tão capazes
cessário com o jornalismo da chamada grande imprensa (por direito, masculino).
quanto os homens", ela pressupõe uma afirmação do tipo " as mu lheres
98 DISCURSO E LEITURA ENI P\JlONEW ORlANDI 99

não são capazes", que preside a sua fala, a antecede. Quando ela nega, mulheres), o que dá origem a agrupamentos unânimes onde se
ela se posiciona frontalmente contra uma coisa (a que ela nega), abrindo, exercem as cobranças da "união": o chamado "espírito de equi-
no entanto, todas as outras possíveis. Negar a negação é trabalhar (ela- pe", a "renúncia de si", ou a propalada "educação do grupo"
borar) com a falta e com a cont radição. É atingir a retórica da denegação, que são toda essa fala do cortejo de educadores a prescrever
aquela que lida com os pressupostos. para a mulher as regras, muitas e ameaçadoras, de bem viver
Isso quanto às diferenças, às leis e direitos. Quanto à própria rela- (dormir, amar e até de ser felizes!).
ção com a linguagem - e quem trabalha com ela sabe que ela é o senti-
do, a identidade, a história, o cotidiano e tudo o mais -, o que eu vejo Falar da mulher, dependendo de como se fala, pode ser uma forma
como desejável numa postura aberta, crítica, é justamente a possibilida- de criar um silêncio mais profundo sobre outras determinações do femi-
de de manter um discurso, sustentá-lo, sem no entanto jamais impô-lo, nino, talvez mais importantes e decisivas.
na relação com os outros. Mas isso não é uma questão de essência. É uma questão da relação
O jornalismo feminino e o feminismo, em sua relação com as mu- que se estabelece com esses discursos: relação que pode ser tanto de
lheres, são, a meu ver, menos fecundos pelo que eles obrigam a mulher a subserviência quanto de soberania.
dizer (e fazer) e mais pelo fato de que fazem parte das possibilidades de Por isso é que, antes de terminar essa exposição, gostaria ainda de
discursos com que a mulher convive, no seu cotidiano. 2 E, como fazem dizer algo a respeito da relação da mulher com os sentidos "veicu lados"
parte das possibilidades de discurso, podem ser um jeito de desconstruir, pelas revistas femininas.
quer dizer, não obrigar a um discurso, mas ser um modo de romper com Evidentemente, não acredito que se tratem de sentidos " veicula-
aquilo que parece único, que nos discursos (mesmo no do "nós, mulhe- dos" meramente. Há a produção de sentidos que não são apenas " trans-
res") já refuncionaliza a fala da opressão. Pode ser um jeito de manter a mitidos" pelas revistas. Nelas se constituem e em uma relação que esta-
palavra que se toma sem no entanto exercê-la em cima dos outros. Pode belecem com um campo de leitores presumivelmente feminino.
ser uma forma das mulheres manterem sua relação com a linguagem no Gostaria, então, de fazer algumas observações acerca do lugar do
plural, enquanto esses discursos podem sustentar um projeto, enquanto estereótipo na questão feminina.
podem tematizar uma falta e, logo, falar e praticar o possível. Fala-se (de um lugar que se pretende crítico) que as revistas do
Na verdade, o que procurei fazer foi mostrar que, ao falar do jorna- jornalismo feminino estereotipam a mulher e a questão feminina, levan-
lismo feminino e do feminismo, podemos nos defrontar com armadilhas do à mera reprodução de padrões estabelecidos.
da identidade porque: Também a esse respeito, prefiro assumir uma posição menos "ilu-
1. As falas do grupo, de comunidade, trazem consigo uma ambi- minista" e não ver no uso do estereótipo toda essa coerência e unicidade.
güidade: ao falar " nós, mulheres" estamos nos organizando e Vejo aí muita contradição. Parece-me que o uso de estereótipos
essa é uma forma de resistência, no entanto, ao mesmo tempo, pode chegar até mesmo a ser uma forma de resistência : jogar o feitiço
pela forma como o Estado gerencia suas relações com os gru- contra o feiticeiro.
pos, estamos nos tornando mais visíveis, logo mais controláveis, Nesse sentido, eu diria que as mulheres fazem um " uso social" dos
sobretudo se reduzimos a fala do grupo à fala dos seus " porta- estereótipos. Isto é, apresentam palavras, comportamentos, imagens es-
vozes" e não nos apropriamos dessa fala, efetivamente (trans- tereotipadas, para consumo social imediato, enquanto elaboram em ou-
formando-a). t ro lugar práticas mais sutis de diferenciação.
2. Quando a gente fala em nome de grupos, a legislação, ao invés Dada a formação discursiva dominante que as categoriza de ante-
de ser um direito fundamental, pode se tornar um apanágio de mão de incapazes de critica, as mulheres jogam com esse preconceito,
uma categoria e se transformar em um dever ostentatório (nós, desconstruindo essa fala pelo próprio fato de responder ao estereótipo
com estereótipo (ah! então t á!). Os outros sentidos terão outro lugar,
não o confronto direto com o discurso dominante.

2. Já que existe jornalismo, melhor existir também o feminino. Assim se rela- Quer dizer, a relação da mulher com o estereótipo não é mecânica
tiviza o valor atribuído. nem unívoca. Vai depender da contextualização e do funcionamento do
100 DISCURSO E LEIT\JRA 101

estereótipo numa complexidade de elementos que constituem, em seu


conjunto, o processo de significação desencadeado pela leitura de um
texto qualquer do jornalismo feminino. Na retomada, a história particular
"fala" no estereótipo, deslocando-o.
Cabe, enfim, dizer algo a respeito dos modos de leitura propostos e
dos modos de leitura possíveis de textos que se podem definir como jor-
nalismo feminino.
Há, e isso é sobejamente sabido, uma fala sobre/contra a mulher,
contra o feminismo, contra o jornalismo feminino etc. É essa fala, que
também faz parte do mosaico de falas do feminino, que, por se colocar
na perspectiva do discurso dominante, tende a dar (fixar) os sentidos dos O inteligível, o interpretável e o compreensível
discursos da/sobre a mulher, categorizando-os e rebaixando-os.
É essa fala também que propõe um modo de leitura para as revistas
femininas, fixando esse modo como único. Quer dizer, se categoriza o
jornalismo feminino como fraco e se institui um modo de leitura para ele Introdução
que, evidentemente, reflete sua baixa qualidade.
Para esse modo de leitura, as mulheres aparecem como vítimas dos Minhas discussões a respeito da leitura, enquanto proposta para
estereótipos em sua (das mulheres) inércia e estupidez. Para esse modo considerá-la na perspectiva discursiva, têm objetivos externos e internos.
de leitura, o mosaico de falas (que estamos procurando mostrar com sua Um dos objetivos externos é problematizar, ou melhorar, questio-
pluralidade e dinamismo, no universo do discurso feminino) é reduzido a nar os processos de produção da leitura junto aos que trabalham com
uma chapa maciça que plasma a alma, o corpo e a cabeça da mulher, seu ensino.
irremediavelmente.
O objetivo interno é apreender, no domínio do discurso, o funcio-
Não só se produz "um" sentido para o feminino como se impõe namento da "compreensão": o que é, quais são seus mecanismos, o que
"um" modo de leitura para esse sentido (único).
representa em termos de discurso etc.
Essa é uma concepção de leitura e de linguagem que vem em linha
Por sua vez, a reflexão sobre o funcionamento discursivo da com-
reta do racionalismo e que pensa que a linguagem deve (ou pode) dizer o
preensão tem, como veremos, um retorno que incide sobre uma questão
que é (na realidade, na verdade, etc.). Ora, pode-se pensar discursiva-
crucial para a própria análise de discurso: a constituição dos processos de
mente a linguagem (e a leitura) e se verá que o estereótipo não é uma
significação. Não é só quem escreve que significa; quem lê também produz
questão de razão (é), mas de argumento (deve ser, pode ser, etc.). E é
sentidos. E o faz, não como algo que se dá abstratamente, mas em condi-
assim que a mulher pode encarar o estereótipo: como argumento para
ções determinadas, cuja especificidade está em serem sócio-históricas.
uma troca de linguagem "eficiente" (na sua posição subalterna, de mu-
lher). ou uma comunicação mais "econômica". Ela não estará necessaria- Temos, pois, procurado discernir o que é leitura no conjunto de
mente usando a linguagem para dizer a verdade, mas para argumentar reflexões do que se tem definido como teoria do discurso: a determina-
outros sentidos a partir de seu lugar de mulher. E, para isso, o estereótipo ção histórica dos processos de significação.
pode ser um argumento com o qual ela aprendeu a conviver. É pela reflexão sobre a determinação histórica desses processos que
E se, de um lado, a mulher vive historicamente uma situação tensa, vemos a (produção da) leitura como parte constitutiva deles. Quer dizer:
repleta de conflitos, cheia de duplicidades, por outro lado, ninguém mais quando lemos estamos produzindo sentidos (reproduzindo-os ou trans-
do que ela aprendeu historicamente a caminhar no interior das ambigüi- formando-os). Mais do que isso, quando estamos lendo, estamos partici-
dades, a trilhar as contradições, a exercer sua resistência num jogo em pando do processo (sócio-histórico) de produção dos sentidos e o faze-
que, na maior parte das vezes, não foi ela quem deu as cartas. mos de um lugar social e com uma direção histórica determinada.
102 DISCURSO ELEITURA ENI PULCINEW ORlANDI 103

Queiramos ou não, quando fazemos parte do conjunto dos chama- Os sentidos não nascem ab initio. São criados. São construídos em
dos sujeitos-leitores - além de constituir um " público" com suas impli- confrontos de relações que são sócio-historicamente fundadas e permea-
cações e conseqüências - estamos fazendo parte de um processo do das pelas relações de poder com seus jogos imaginários. Tudo isso tendo
qual resulta a institucionalização dos sentidos. como pano de fundo e ponto de chegada, quase que inevitavelmente, as
O cerne da produção de sentidos está no modo de relação (leitura) instituições. Os sentidos, em suma, são produzidos.
entre o dito e o compreendido.
Quando dizemos isso, não estamos, teoricamente, fazendo mais do
que levar em conta o principio da dialogia como fundamento da lingua- O modo de leitura e o sujeito-leitor correspondente
gem, de acordo com Voloshinov (1976): " o signo ( ... ) resulta(ndo) de um
consenso entre indivíduos socialmente organizados no curso de um pro- É uma afirmação elementar para o analista de discurso a de que, na
cesso de interação". O signo pede assim a co-presença de indivíduos (au- produção da linguagem, o que temos não é transmissão de informação
tor/ leitor) no quadro das relações sociais (e não fora delas). no confronto mas efeitos de sentido entre locutores (Pêcheux, 1969). Daí decorre o que
de forças políticas e ideológicas. se pode chamar de "efeito leitor" .
O homem faz história mas a história não lhe é transparente. Por A noção de efeito supõe, entre outras coisas, a relação de inter-
isso, acreditamos que uma metodologia de ensino conseqüente deve locução na construção de sent idos. Sem esquecer que os sentidos não
explicitar, para o processo de leitura, os mecanismos pelos quais a ideolo- são propriedades privadas : nem do autor, nem do leitor. Tampouco de-
gia torna evidente o que não é e que, no contrário, resulta de espessos rivam da intensão e consciência dos interlocutores. São efeitos da troca
processos de produção de sentido, historicamente determinados. A " na- de linguagem. Que não nascem nem se extinguem no momento em que
turalidade" dos sentidos é, pois, ideologicamente construída . A transpa- se fala .
rência dos sentidos que "brotam" de um texto é aparente, e tanto quem Essas nossas observações se voltam criticamente contra o imedia-
ensina quanto quem aprende a ler deve procurar con hecer os mecanis- tismo de algumas tendências interacionistas que não referem, como o faz
mos que aí estão jogando. Voloshinov (1976), o conceito de enunciação à formação social.
Desse modo, temos procurado, na perspectiva discursiva, trazer para Os sentidos são, pois, partes de um processo. Realizam-se num con-
a discussão o modo pelo qual, no funcionamento da ideologia, o leitor se texto mas não se limitam a ele. Têm historicidade, têm um passado e se
instala nesse processo de produção de sentidos fazendo parte da história projetam num futuro.
desse processo . Esse projeto significante, se assim podemos denominar, ao mesmo
Vale ressaltar que a historicidade é central para nossas considera- tempo que "desgruda" o sujeito do imediatismo de uma relação mecâni-
ções, uma vez que a "análise de discurso trabalha (... ) um objeto inscrito ca com a situação de enunciação, o " prende" na responsabilidade do
na relação da lingua com a história " (Courtine, 1982). dizer, o de ser autor (leitor) e, logo, o de ser a origem, não do discurso,
Para finalizar essa introdução, gostaríamos de dizer que levar em mas de sua unidade e coerência .
conta esses aspectos é uma maneira de reconhecer que a linguagem é Para esclarecer essa prática " responsável ", disciplinada, é que fare-
um fenômeno complexo que tem sua especificidade num modo de fun- mos considerações a respeito das noções de "interdiscurso", "memória"
cionamento que se dimensiona no tempo e no espaço das práticas do e de "formação discursiva", noções necessárias para o entendimento dos
homem. processos discursivos de significação.
Particularmente, no que se refere à relação que fazemos entre o
lingüístico e o ideológico, vale observar que "o discursivo materializa o
contato entre o ideológico e o lingüístico no sentido em que ele represen- O lugar social da leitura: O alocutário, o destinatário, o leitor
ta, no interior da língua, os efeitos das contradições ideológicas e, inver-
samente, ele manifesta a existência da materialidade lingüística no inte- À representação de unidade textual, efeito da relação do autor com
rior da ideologia" (Courtine, 1982). o texto (ver " Unidade e dispersão: uma questão do texto e do sujeito",
104 DISCURSO E LEITURA ENI PULCINELU ORlANOI 105

neste volume), corresponde a unidade da leitura (coerência, não-contra- Individualidade e individuação: as duas faces da subjetividade
dição, progressão, etc.) resultante do efeito-leitor.
Em grande medida, nossa tarefa nesse presente estudo é expor o O sujeito do discurso é constituído pela interpelação ideológica e
modo de constituição desse efeito e a forma como atuam esses " princí- representa uma "forma-sujeito" historicamente determinada.
pios" de coerência, consistência, não-contradição, progressão e unidade, Essa forma-sujeito, portanto, pode ser diferente nos diferentes
na leitura, enquanto configurações do efeito-leitor. momentos históricos. A forma-sujeito constituída pelas relações de uma
Assim como, na perspectiva da emissão ("formulação", para Pêcheux, formação social como a nossa é a de um sujeito ao qual se atribui auto-
1969), há três funções enunciativo-discursivas do sujeito - a de locutor, nomia (e, logo, responsabilidade), ao mesmo tempo que se considera
a de enunciador e a de autor (idem)-. consideramos na recepção ("com- que ele é determinado pela sua relação com a exterioridade.
preensão", para Pêcheux, 1969) também há três funções: o alocutá rio, o Há, assim, dupla determinação: uma determinação interna pelo su-
destinatário e o leitor. jeito e uma determinação externa do sujeito. E aqui vale lembrar Foucault
(1977), que nos mostra com mu ita lucidez como o poder se inscreve nos
Como sabemos (Ducrot, 1984), o locutor é aquele que se represen-
aparelhos disciplinares, pelo viés de mecanismos "individualizantes", con-
ta como "eu" no discurso; o enunciador corresponde às perspectivas com
tribuindo para fabricar um certo t ipo de " individualidade": no caso, a do
que esse "eu" se apresenta; e o autor (Foucault, 1971) é o princípio de
sujeito capitalista.
agrupamento do discurso, unidade e origem das suas significações. Nes-
sa perspectiva, o autor é a função que o "eu" assume enquanto produtor Nossa passagem por essas considerações é para lembrar que o su-
jeito de nossa formação social está, de certo modo, "amarrado" à ind ivi-
de linguagem, sendo a dimensão do sujeito mais determinada pela rela-
dualidade. Ou seja, esta não é a simples expressão de sua liberdade mas,
ção com a exterioridade, com o social.
até certo ponto, é uma injunção: injunção esta que, nos procedimentos
Pois bem, do lado da " recepção", o alocutário corresponde à fun- pedagógicos, aparece como a compulsão à "originalidade" ou obsessão
ção do locutor; o destinatário à do enunciador; e, em nossa proposta, o da "criatividade"' obrigatória. Essa exigência mostra, na realidade, a ne-
leitor é a função enunciativo-discursiva que corresponde à do autor. cessidade que temos de um sujeito individualizado, visível, calculável, logo,
O alocutário é o "tu" a quem o "eu " do locutor se dirige; o destina- ident ificável e, portanto, passível de controle. Um sujeito que se apresen-
tário é o "outro" da perspectiva do enunciador. ou seja, uma perspectiva
de leitor construída pelo enunciador, é o "leitor-ideal" inscrito no texto,
1. Quanto à crítica a esse conceito, gostaria de remeter a um fragmento de
por antecipação. E o leitor é aquele que se assume como tal na prática da
texto que apresentei em uma mesa redonda (6/11/ 1976) e que foi publicado poste-
leitura, numa ordem social dada, em um lugar específico. riormente na Série Estudos, n. 4 (1978): "Amarrada ao laço da produtividade - em
A função enunciativo-discursiva, que é a do leitor, constitui um su- que o insigne homem médio é o agente da aspiração da fábrica da cultura homo-
jeito afetado pela sua inscrição no social. Quer dizer que o efeito-leitor é geneizada -, a ambigüidade do conceito de criação tropeça na técnica e circula
mal entre um real fazer individual e a aceitação dos padrões do mercado consu-
determinado historicamente pela relação do sujeito com a ordem social.
midor. E a linguagem, passada a limpo pela sociedade de consumo, ganha seu
Isto se dá de tal modo que não é do alocutário (do "tu") ou do quinhão e se dá como produtividade infinita. Assim se fez a passagem da criação
destinatário (do leitor-ideal), mas do leitor (inscrito no social), que se para a produtividade. E o seu protagonista, o homem, sente-se realçado em sua
cobra um modo de leitura (coerência, unidade, etc.). Dessa forma, na especificidade de ser racional que manipula instrumento tão hábil e sem limites:
acredita criar linguagem. Mas estranha é esta criatividade que já considera, de
produção de leitura, ele entra com as condições que o caracterizam só-
início, a linguagem como produto. Mais estranha ainda é esta criatividade que
cio-historicamente. Ele t erá, assim, sua identidade de leitura configurada mantém o homem num retorno constante a um mesmo espaço dizível: a paráfra-
pelo seu lugar social e é em relação a esse "seu" lugar que se define a se. Nesta visão, melhor seria, pois, falar em produtividade e não em criatividade".
"sua" leitura. O efeito-leitor é, pois, relativo à posição do sujeito. Retomei posteriormente esta relação entre produtividade/criatividade e polissemia/
paráfrase em "O sentido dominante: a literalidade como produto da história", apre-
Das três funções - alocutário, destinatário, leitor - . esta última
sentado no Encontro Nacional do Rio de Janeiro, em 1981 , e publicado em A lin-
(como, na emissão, a de autor) é a que está mais determinada pelo social. guagem e seu funcionamento (1983).
106 DISCURSO E LEITURA ENI PULCINELU ORLANDI 107

te com coerência, com certa permanência (duração), certa especificidade, A instância do enunciado é, pois, a do " repetível", a que podemos
e do qual se pode dizer algo, podendo-se, conseqüentemente, ter dele chamar de interdiscurso: séries de formulações (verticalidade) que fazem
um certo domínio.2 parte de enunciações distintas e dispersas.
Esse sujeito é historicamente determinado e, no caso da leitura, Parafraseando, para a leitura, o que afirma Courtine (1982) para
que é o que nos interessa aqui, podemos expressar isso dizendo que o o dizível, afirmariamos que é nesse espaço do interd iscu rso - cor-
sujeito-leitor do século XI II, o do século XVII e o de hoje são diferentes respondente ao que se chama " domín io do saber" da formação discur-
(Ver "A história do sujeito leitor: uma questão para a leitura", neste volu- siva - que se constituiria a exterioridade do " legível" para o sujeito-
me). Por isso, quando falamos da função social do sujeito-leitor, estamos leitor, na formação dos " preconstruídos" (o repetível) de que sua leitura
falando do " nosso" sujeito-leitor. se apropria .
Esse sujeito leitor que, como dissemos, acolhe ao mesmo tempo a A voz que aí ressoa é uma voz sem nome, pois não há lugar para o
idéia de individualismo e o mecanismo coercitivo de individuação impos- sujeito específico. Esse repetível preexiste à situação de enunciação e o
to pela instituição (idem) e que produz sentidos, ao ler. O que nos interes- sujeito desta, ao produzir linguagem, se apodera dele e intervém no
sa finalmente, saber nesse passo é: que sentidos ele é capaz de produzir, repetível.
já que a constituição do sujeito (da linguagem) e a dos sentidos estão
materia lmente ligadas?
Formação discursiva, pré-construído e referencialidade

A relação entre o contexto de enunciação e o contexto histórico Como se dá, na leitura, essa inscrição do espaço do repetível?
Memória e esquecimento se misturam.
Há, como sabemos, duas instâncias de constituição do discurso a
que temos chamado, em geral, de contexto de situação em sentido estri- Como retoma Courtine: a luta do homem contra o poder é a luta da
to (ou circunstância de enunciação) e em sentido amplo (ou contexto memória contra o esquecimento (Kundera, apud, Courtine, 1981).
sócio-histórico). No entanto, na relação com o poder, o contrário também pode ser
No interior do domínio do contexto sócio-histórico é que podemos afirmado e, como diz Barthes (1977) : " se, pois, eu quero viver, devo es-
considerar a instância do enunciado que, por sua vez, tem seu contra- quecer que meu corpo é histórico, eu devo me lançar na ilusão de que
ponto na instância da enunciação que é a do eu-aqui-agora. sou contemporâneo dos jovens corpos presentes e não do meu próprio
O que se produz na instância do enunciado é uma forma indefini- corpo, passado (... ). Eu procuro, pois, me deixar levar pela força da toda
damente repetível, mas que pode dar lugar a enunciações as mais diver- vida viva: eu esqueço" .
sas e dispersas. Às vezes, lembrar é resistir e, às vezes, esquecer é que é resistir.
Essa forma está ligada a uma noção de repetição que, de acordo com Voltemos à ambigüidade do histórico e à sua relação com o que
Courtine (s.d.) se "endereça, segundo uma dimensão de algum modo ver- muda e o que permanece já que, como dissemos no início, a história não
tical, às condições de existência dos diferentes conjuntos significantes". é transparente. Essa ambigüidade, no nível de discurso, é a que se dá
entre o polissêmico (o diferente) e a paráfrase (o mesmo), entre a concre-
tude (contraditória) do corpo e o formalismo (ideal) do sistema . Que
2. Não devemos imobilizar a noção de individualidade no processo de seu mantém entre si a mesma relação tensa e necessária de constituição. Se
apagamento. Uma forma de evitar isso é resguardar o fato de que a identidade recobrem .
não se reduz ao processo de individuação (identificação). Este é apenas parte dela.
Mas é no processo de identificação que a linguagem age com toda sua violência Esquecer é mudar e também não mudar. Assim como lembrar, tan-
simbólica: gregaridade, repetição, autoridade da asserção. Eu digo, eu afirmo, eu to pode ser reproduzido como transformar. Não há nenhuma garantia a
"assento" aquilo que eu repito (Barthes, 1977). Daí a necessidade de refletir sobre priori. Depende de uma conjuntura da qual o sujeito não tem o privilégio
esse processo. de possuir a consciência plena ou o controle, mas na qual intervém .
108 DISCURSO E LEIT\JRA ENI PIJLCINEW ORIANDI 109

Memória e esquecimento estão irremediavelmente emaranhados. E uma proposição etc. não existe em si mesmo (isto é, em sua relação trans-
isso é visto pelos analistas de discurso como uma necessidade. Essa ne- parente com a literalidade do significante) mas é determinado pelas posi-
cessidade, por sua vez, tem sua razão na observação de uma trajetória ções ideológicas postas em jogo no processo social-histórico em que as
pela espessura estratificada (verticalidade) do discurso em suas possíveis palavras, expressões e preposições são produzidas (isto é, reproduzidas) .
transformações. Poder-se-ia resumir esta tese dizendo: as palavras, expressões, proposi-
ções etc. mudam de sentido segundo as posições mantidas pelos que as
empregam, o que significa que elas tomam seu sentido em referência a
Sujeito, memória, sentido essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas nas quais
essas posições se inscrevem" (Pêcheux, 1975).
Voltando à relação entre enunciado e enunciação, podemos dizer que A formação discursiva - em sua correspondência com a formação
ela está na base de processos discursivos importantes dos quais enunciare- ideológica - define as condições de exercício da função enunciativa . Ela
mos dois deles e que estão ligados à "ilusão do sujeito" (Pêcheux, 1975). é fundamental para o analista de discurso porque permite apreciar o modo
Como se sabe, essa ilusão se realiza por dois esquecimentos: a) o de de inscrição histórico pelo qual uma dispersão de textos pode ser defini-
que o discurso não nasce no sujeito, por isso, os sentidos não se originam da como um espaço de regularidades enunciativas (Maingueneau, 1984).
nele, são retomados por ele; b) o de que ao longo do seu dizer se formam Na formação discursiva é que se constitui o domínio de saber que
famílias parafrásticas com aquilo que ele poderia dizer mas vai rejeitando funciona como um princípio de aceitabilidade discursiva para um conjun-
para o não-dito, e que também constitui o seu dizer (enquanto "margens"). to de formulações (o que pode e deve ser dito) e, ao mesmo tempo, como
Do primeiro esquecimento se origina a ilusão do sujeito ser fonte princípio de exclusão do não-formulável.
de seu discurso (" o que eu digo tem o sentido que eu quero", onipotên- No entanto, é preciso enfatizar que a formação discursiva não fun-
cia do sujeito), e do segundo se origina a ilusão da realidade de seu pen- ciona como uma máquina lógica. Ao contrário, ela é uma unidade dividi-
samento ("o que eu disse só pode significar x", onipotência do sentido). da, uma heterogeneidade em relação a si mesma. Há um deslocamento
No primeiro se inscreve a "eficácia do assujeitamento" (ou ilusão da au- contínuo em suas fronteiras, em função das "jogadas" da luta ideológica,
tonomia do sujeito), no segundo, a " estabilidade referencial" (ou ilusão dos confrontos político-sociais.
da transparência dos sentidos). A especificidade da formação discursiva está justamente na contra-
Observando-se os esquecimentos à luz da relação entre enunciado/ dição que a constitui. Ela não é imóvel e fechada. Cada formação discur-
enunciação podemos melhor apreciar a construção desses seus efeitos. É siva define-se em sua relação com as várias outras formações, em sua
o que procuraremos fazer. articulação (contraditória) com a ideologia.
Para apreciar esse movimento constitutivo da noção de formação
a. Formação discursiva e constituição do sentido discursiva, consideremos o exemplo que segue, no qual teríamos:
1. Abraçar uma causa.
Vamos tornar mais preciso o uso que estamos fazendo da noção de 2. Assumir uma responsabilidade.
formação discursiva, pois esta noção é básica para essa reflexão. 3. Tomar uma posição.
As formações discursivas representam, na ordem do discurso, as
formações ideológicas que lhes correspondem. É a formação discursiva Em uma situação na qual o sujeito deve falar de sua opção diante
que determina o que pode e deve ser dito, a partir de uma posição dada de um projeto de ação, ao usar uma ou outra das possibilidades acima,
numa conjuntura dada. Isso significa que as palavras, expressões etc. re- estará definindo diferentes relações com a ideologia, ou seja, estará ins-
cebem seu sentido da formação discursiva na qual são produzidas. crevendo seu dizer em uma ou outra formação discursiva, as quais, por
Dito de forma mais direta, a formação discursiva e o " lugar da cons- sua vez, se relacionam, se confrontam, na produção de sentidos. Por isso
trução do sentido (sua 'matriz'. por assim dizer)" (Pêcheux, 1975). O que é que, em análise de discurso, se considera que o que define o sujeito é o
nos leva a entender que "o sentido de uma palavra, de uma expressão, de lugar do qual ele fala em relação aos diferentes lugares de uma formação
110 DISCURSO EUJTURA ENI PVLONEW ORLANDI 111

social. Para entender o sentido de cada uma das construções apresenta- curso: à enunciação corresponde a sua " horizontalidade", enquanto que
das acima é preciso pensar sua relação com as demais. No caso do pre- o enunciado dimensiona o discurso na "verticalidade" (interdiscurso).
sente exemplo, se poderia dizer que a diferença de sentido está em que
(1) remete a sentidos matizados pela ordem do discurso religioso, (2) ao É à verticalidade do discurso que se pode atribuir o dominio do
jurídico e (3) ao político. Estas distinções significam e dizem respeito tan- repetível, onde se trama a constituição do dizer (exterior ao sujeito).
to ao sujeito quanto ao(s) sentido(s) produzidos. Na dimensão horizontal se tem formulação discursiva, isto é, a pro-
Courtine fala da contradição com o princípio da formação discursi- dução da seqüência lingüística específica (onde o sujeito intervém).
va, e para isso retoma Foucault (1969): "Tal contradição, longe de ser Segundo Courtine (1982), "essa horizontalização da dimensão ver-
aparência ou acidente do discurso, longe de ser aquilo de que é preciso t ical de constituição do enunciado é contemporânea da apropriação por
livrá-lo para que ele libere enfim sua verdade desfraldada, constitui a um enunciador' que ocupa lugar determinado no seio de uma formação
própria lei de sua existência. A contradição funciona, então, no fio do discursiva, dos elementos de saber da formação d iscur~iva na enunciação
discurso, como princípio de sua historicidade". do intradiscurso de uma seqüência discu rsiva, em uma situação de enun-
Há as "condições de produção" de um enunciado - relação da ciação dada". Constituição e formulação são, pois, duas instâncias, mas
seqüência discursiva com o sujeito e com a situação, relação dos inter- são inseparáveis.
locutores com a ideologia numa conjuntura histórica dada etc. - e há as É assim que o sujeito intervém no repetível (e o repetível se inscreve
"condições de formação" da formação discursiva específica em que se nele). Isto, dito em outras palavras, significa que o interdiscurso (o repetível)
inscreve o enunciado - a constituição do saber próprio a essa formação está no intradiscurso (seqüência lingüística específica).
discu rsiva, na dependência do interdiscurso (o repetível).
Mais radicalmente, podemos dizer que toda caracterização em ter-
Da articulação entre as condições de produção com as condições mo de funcionamento ou efeitos discursivos engaja assim uma relação do
de formação é que deriva o domínio de memória da seqüência discursiva. enunciado (o repetível) com a formulação (a enunciação). Relação entre a
Esse domínio pode ser definido como "um conjunto de seqüências dis- dimensão vertical estratificada (desnivelada), onde se elabora o saber da
cursivas que preexistem à enunciação da seqüência discursiva em ques- formação discursiva com a dimensão horizontal, em que os elementos
tão, no seio de um processo" (Courtine, 1985). A partir do domínio de desse saber se linearizam, tornando-se objetos de enunciação. Dessa re-
memória é que se pode entender os efeitos que são produzidos numa lação se produz a realidade do discurso: sua historicidade.
seqüência discursiva. É nesse domínio (o da memória) que podemos obser-
Desse modo é que - diferentemente da lingüística, em que a repe-
var a " pluralidade contraditória" das seqüências discursivas já que, como
tição tem a ver com a noção de informação, de redundância, de comple-
vimos, estas se ligam (necessariamente) a diferentes formações discursi-
tude e de marcas formais - o repetível, na ordem do discurso, se instala
vas: a uma delas por dominância, mas também a outras por diferentes
como uma das dimensões da historicidade, da relação com a formação
relações, seja de antagonismo, recobrimento, aliança etc.
discursiva e com o seu domínio de saber: o enunciável.
Por aí se pode ver que a relação com a ideologia (através do jogo
entre as formações discursivas) não é homogênea, nem automática, nem O repetível (domínio de saber) é uma sistematicidade do discurso
estática . Como também não o é nem o sujeito, nem os sentidos. Contra- que não é abstrata, incorpórea - como as sistematicidades da língua - ,
dição, reprodução, transformação, memória, esquecimento, o mesmo e ao contrário, é histórica.
o diferente, jogam todo o tempo na produção de um discurso, ou de uma É na relação com a memória, assim concebida, enquanto espaço de
leitura. recorrência das formulações na relação com a ideologia, que os objet os
do discurso adqu irem sua estabilidade referencial. Como se dá isso?
b. Formação discursiva e repetível
3. Aqui, "enunciador" está sendo utilizado no quadrÕ teórico de Courtine,
Consideremos, como o fizemos mais acima, que a relação entre enun-
que não está, portanto, referido às distinções que propusemos acima . Seria equi-
ciado e enunciação corresponde a duas dimensões constitutivas de dis- valente a "sujeito".
112 ENI PULONEW ORIANOI 113
DISCURSO ELEITURA

Os objetos de discurso - que na enunciação são colocados por dade homogênea (ver "Unidade e dispersão: uma questão do texto e do
conta do sujeito - adquirem sua estabilidade referencial pelo repetível sujeito", neste volume). Na perspectiva da análise de discurso, o texto
(o pré-construido). Sem esquecer que o que joga na relação com o .repetível pode ser considerado como uma dispersão do sujeito. Ele é atravessado
não é o sujeito em si, mas as posições do sujeito• que regulam Já o pró- por várias formações discursivas e isso pode ser entendido dizendo-se
prio ato de enunciação. que, no texto, o sujeito pode aparecer em várias posições.
Como estamos vendo, não há como desligar o contexto de enuncia- No caso da leitura como seria?
ção do contexto do enunciado. Eles estão inextricavelmente ligados e se Para expor a questão da pluralidade possível de leituras e a hetero-
intercomunicam necessariamente. geneidade constitutiva da relação do leitor com os sentidos, vou lançar
O interdiscurso fornece os objetos do discurso de que a enunciação mão de uma aproximação metafórica. Para tal, gostaria de relatar o que
se sustenta, ao mesmo tempo que organiza o ajuste enunciativo que cons- aprendi a partir da reflexão sobre postura teórico-crítica de um artista
titui a formulação pelo sujeito. plástico, David Hockney.
Esse ajuste acaba por desaparecer aos olhos de quem enuncia, ga- Através do trabalho desse artista plástico, tomei conhecimento de
rantindo, na aparição de um eu - aqui - agora, a eficácia do assujeita- um fato, a meu ver, importantfssimo na relação com a linguagem: mesmo
mento: o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz (e do que lê). a percepção não é linear, completa, fechada, "plana". Esse trabalho foto-
Reencontramos o efeito discursivo da identificação, da constituição, gráfico mostra como nosso olhar, ao perceber, por exemplo, uma árvore,
da subjetividade. Ai está a interpelação do indivíduo pela ideologia, ai desloca-se de um detalhe para outro, de um lugar para outro, apreen-
está constituída a forma-sujeito com sua autonomia, sua responsabilida- dendo formas com dimensões, espessuras, brilhos etc., diferentes. Ele
de e sua determinação pela exterioridade. E aí está nosso sujeito-leitor. mostra isso produzindo fotos que são o resultado de uma espécie de
colagem de detalhes justapostos e que privilegiam como "entrada " do
O sujeito-leitor, constituído por esses efeitos, representa a conjun-
olhar ora um ora outro ponto. O resultado é que a foto não é mais uma
ção de duas historicidades: a história de suas (do leitor) leituras e a histó-
representação no sentido plano, e a árvore ganha em força de realidade.
ria de leituras do texto (ver "As histórias das leituras", neste volume), que
Eu diria que é uma árvore muito mais árvore.
atuam dinamicamente na constituição de uma "sua" leitura específica,
em um momento dado. A nossa percepção é "desorganizada", ou melhor, a percepção não
é fixa, não se faz de um lugar só. O olhar é móvel, atinge e se desloca por
Os sentidos são muitos, mas há sempre um enunciável - um legível,
pontos (posições) diferentes.
em nosso caso - exterior e preexistente, e é a partir dele que, como vimos,
cada um pode intervir. A fotografia tal como a conhecemos é, desse modo, uma represen-
tação achatada, "construída" (enquanto produto acabado), em uma pa-
Assim como o enunciável é exterior ao sujeito da enunciação, tam-
lavra; domesticada. Não dá a espessura, a " história" da nossa percepção.
bém o legível é exterior (preexiste) ao sujeito-leitor, ao mesmo tempo
O que podemos expressar, dizendo que há várias perspectivas que o olhar
que, no momento da leitura, coloca-se como contemporâneo a ele.. E no
assume (a polifonia, na linguagem verbal) e a foto fixa uma, idealizada.
interior dessa contradição entre o preexistente e a contemporaneidade
Por outro lado, há, correspondentemente, vários pontos de fuga .5 Pers-
que se produz a leitura com seu(s) sujeito(s) e seu(s) sentido(s).

5. Agradeço a J. Baptista C. Aguiar a oportunidade de conhecer esses traba-


Uma metáfora visual: texto e percepção lhos fotográficos. Quanto à noção de ponto de fuga, aqui a tomo em seu sentido
mais geral, como ponto em que se organiza a perspectiva. Gostaria também de
Tendo como objeto da reflexão a questão da autoria, pudemos che- lembrar o seu sentido de fuga em música: "composição polifônica, em estilo
gar a algumas elaborações que nos mostram que o texto não é uma uni- contrapontístico, sobre um tema único (sujeito) expostos sucessivamente em uma
ordem tonal determinada pelas leis da cadência. O estilo contrapontfstico da fuga
baseia-se (...) na reprodução sucessiva dos mesmos desenhos rítmicos ou melódi-
4 . As posições, é importante esclarecer, são da ordem das formações imagina- cos, de duas ou mais vozes, nos diversos graus de escala". Não é muito diferente
rias (Pêcheux, 1969) e correspondem a " lugares" na formação social. do que penso para a leitura.
114 DISCURSO EUITVRA
ENI PULCINELU ORLANOI 115

pectivas (ou pontos de entrada) e pontos de fuga estão correlacionados


Paralelamente à não homogeneidade do texto há a dispersão do
dinamicamente. Em conseqüência desse movimento, a unidade do todo
sujeito-leitor. O que temos, em termos de uma representação gráfica,
não é linear, plana. A unidade é "selvagem", díspar.
pode aparecer assim:
Pois bem, após ver as "fotografias" de D. Hockney "recuperei" o
sentido da imagem, sua espessura, sua historicidade; problematizei, por
assim dizer, minha percepção. E aprendi que se isso se dá com o olhar e
as imagens visuais, o mesmo também se passa com a linguagem verbal.
Problematizei, assim, mais um efeito da ideologia: o do "achatamento"
do leitor e da " domesticação" da unidade textual. Desse modo se poderia
apreciar que também a unidade do texto não é plana, nem simétrica, pontos de fuga
nem " bem comportada", e o "olhar" do leitor o atinge em diversos " pon-
tos" . A unidade do texto, para o leitor, é "fugaz".
TEXTO-
Essas considerações nos levam a pensar a pluralidade inscrita no
efeito-leitor da maneira que segue.
pontos de entrada
Todo texto em relação à leitura teria, pois, vários pontos de entrada e
vários pontos de fuga. Os pontos de entrada corresponderiam a múltiplas
posições do sujeito. Os pontos de fuga são as diferentes perspectivas de
atribuição de sentidos: ao relacionar-se com os vários pontos de entrada, o A relação entre o sujeito-leitor e o texto não é, pois, nem direta
leitor pode produzir leituras que encaminham-se em várias direções. Não nem mecânica. Ela passa por mediações, por determinações de muitas e
necessariamente previstas, nem organizadas, nem passiveis de cálculo. Há variadas espécies que são a sua experiência da linguagem.
várias perspectivas de leituras. Há diferentes posições do sujeito-leitor. Nem tampouco se pode separar, de forma estanque, a historicidade
Os pontos de entrada são efeitos da relação do sujeito-leitor com a do texto e a do leitor. Elas são relativas (entre si) e se entrecruzam de
historicidade do texto. Os pontos de fuga são o percurso da historicidade várias maneiras no processo de leitura. Os pontos de entrada e os de fuga
do leitor, em relação ao texto. não existem independentemente dessa relação (a prion).
O acontecimento-leitura poderia, então, ser descrito mais ou menos
da seguinte forma: diante de um texto, um sujeito x está afetado pela sua
historicidade e se relaciona com o texto por alguns pontos de entrada, que Conclusão: a forma-sujeito e a compreensão
têm a ver com a historicidade do texto e a sua. Como o texto não é transpa-
rente em sua matéria significante, há um efeito de " refração" em relação à A. Três relações do sujeito com a significação
sua (do leitor) história de leituras, efeito esse que é função da historicidade Todas essas considerações nos encaminham para uma distinção
do texto (sua espessura, sua resistência). Assim se dá o processo de produ- fundamental. A que existe entre o inteligível, o interpretável e o com-
ção dos sentidos, de forma a que o sujeito-leitor se apodere e intervenha preensível.
no legível (o repetível). É desse modo, portanto, que se pode entender a
relação dinâmica entre constituição e formulação do sentido. Essa distinção se organiza em torno da questão do assujeitamento
e põe em foco a relação entre individuação e individualidade, entre enun-
Em conseqüência, pela consideração dessa relação entre pontos de
ciação (formulação) e enunciado (constituição), entre pontos de entrada
entrada e pontos de fuga é que podemos dizer que os sentidos não cami-
e pontos de fuga.
nham em linha reta.6 Eles saem da linha. Em muitas e diversas direções.
Ao mesmo tempo. De forma dispersa. Caótica mesmo. Se nos reportarmos a Halliday (1976), podemos distinguir o que é
inteligível e o que é interpretável.
Segundo esse autor uma sentença como " Ele disse isso" é inteligí-
6. Isto leva à problematização tanto da linearidade, como da literalidade e da vel mas não é interpretável, pois, na falta de elementos que garantam
completude.
(especificam) sua coesão, ou seja, das relações semânticas que assegu-
116 DISCURSO E LEITURA ENI PULCINEW ORLANOI 117

rama coerência interna do texto, não se lhe pode atribuir uma interpreta- Quanto à interpretação e ao intérprete, eis o que se passa.
ção (Quem é ele? O que (isso) ele disse?). O intérprete formula apenas o(s) sentido(s) constituido (o repetível),
Mantendo ainda a concepção desse autor, quando fala que a estando ele (leitor) afetado tanto pela ilusão que produz a eficácia do assu-
textualidade resulta da coerência interna (coesão) e da coerência externa jeitamento quanto pela que institui a estabilidade referencial, de que resul·
(ou consistência de registro), podemos fazer uma extensão desse seu con· ta a impressão de que há uma relação direta entre o texto e o que ele
ceito, pensando uma dimensão de atribuição de sentidos que se reporta significa. Portanto, enquanto intérprete, o leitor apenas reproduz o que já
à exterioridade (à coerência externa). Trata-se agora do que podemos está lá produzido. De certa forma podemos dizer que ele não lê, é " lido",
chamar compreensão. uma vez que apenas " reflete" sua posição de leitor na leitura que produz.
Diríamos - partindo da perspectiva de Halliday e chegando no dis· Ao realizar uma relação direta e automática com o texto, a leitura
cursivo - que a compreensão é do nível da consistência de registro (coe· do intérprete não desconstrói o funcionamento ideológico de sua posi-
rência externa) . ção como (forma) sujeito-leitor, apenas a reflete, como dissemos.
Temos, assim : Pela noção de compreensão sabemos que não há essa relação di-
a) o inteligível: a que se atribui sentido atomizadamente (codifi· reta e automática, já que nem o sujeito nem o texto são transparentes e
cação); tampouco mantém uma relação unívoca, termo a termo, quanto à signi-
b) o interpretável: a que se atribui sentido levando-se em conta o ficação.
contexto lingüístico (coesão); Então, para chegar à compreensão não basta interpretar, é preciso
c) o compreensível : é a atribuição de sentidos considerando o pro· ir ao contexto de situação (imediato e histórico). Ao fazê-lo, pode-se apre·
cesso de significação no contexto de situação, colocando-se em ciar o lugar em que o leitor se constitui como tal e cumpre sua função
relação enunciado/enunciação. social. Podemos melhor apreciar a relação entre pontos de entrada e pontos
de fuga .
Do ponto de vista discursivo, e para além do proposto por Halliday. Ter acesso à compreensão é atingir (desconstruir) a relação enun-
assim caracterizada, a compreensão se instaura no reconhecimento de ciação/enunciado, formulação/constituição do sentido. É chegar no do·
que o sentido é sócio-historicamente determinado e está ligado à for· mínio em que se elaboram as conseqüências da ilusão do sujeito às quais
ma-sujeito que, por sua vez. se constitui pela sua relação com a forma- nos referimos anteriormente: o assujeitamento e a estabilidade referen-
ção discursiva. A partir desse reconhecimento pode-se levar em conta o cial. E isto só se dá, segundo nossa perspectiva, através da teoria.
chamado domínio de saber, o da constituição do sentido. É ainda atra- O sujeito que produz uma leitura a partir de sua posição, interpre·
vés desse reconhecimento, assim caracterizado, que também se pode ta . O sujeito-leitor que se relaciona criticamente com sua posição, que a
atingir a produção do efeito de estabilidade referencial, produzido pelo problematiza, explicitando as condições de produção da sua leitura, com-
interdiscurso. preende.
No nível da compreensão e que é possível apreender o fato de que Sem teoria não há compreensão.
o dominio de saber de qualquer formação discursiva está articulado com No seu trato usual com a linguagem, o sujeito apreende o inteligi-
o domínio da enunciação, podendo-se assim, mostrar que sujeito e for· vel. e se constitui em intérprete. A compreensão, no entanto, supõe uma
mação discursiva se relacionam contraditoriamente. relação com a cultura, com a história, com o social e com a linguagem,
Compreender, em suma, é refletir sobre a (e não refletir a) função que é atravessada pela reflexão e pela crítica.
do efeito do eu-aqui-agora. que é a instância das formulações (horizonta· Se é assim, perguntarlamos: a escola, quando ensina a ler, propicia
!idade), em sua necessária relação com a constituição (verticalidade) dos ao aluno condições para que se produza a compreensão? Atinge o fun·
sentidos, esclarecendo que estes são fundamentalmente contraditórios, cionamento ideológico da linguagem?
ou politicos, como o diz Geertz (1978). Tendo enfim em conta o fato de que compreender é desconstruir
Compreender, eu diria, é saber que o sentido poderia ser outro. teoricamente, chegamos à formulação de mais um aspecto da historiei-
118 DISCURSO E LEITURA ENI PVLCINEW ORlANDl 119

dade que caracteriza o discu rsivo: o conceito histórico (político) de com- FOUCAULT, M. i:archéologie du savoir . Paris, Gallimard, 1971.
preensão. O que nos leva a outra afirmação igualmente relevante: não há ___. r ordre du discours. Paris, Gallimard, 1971 .
compreensão sem historicidade. E isto está de acordo com a afirmação _ __ . Vigiar e punir. Rio de Janeiro, Vozes, 1977.
da análise de discurso de que a textualidade é histórica.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
B. A interpretação: hermenêutica e análise de discurso HALLIDAY. M. A. K. Cohesion in english. Londres, Longman, 1976.
A análise de d iscurso não se constitui em uma hermenêutica na MAINGUENEAU, D. Geneses du discours. Bruxelas, Mardaga, 1984.
relação com o texto. ORLANDI, E. P. " Ilusões da/na linguagem ", in Foucault Vivo . Campinas,
Na hermenêutica se visa uma forma de interpretação e como tal se Pontes, 1987 .
procura extrair um (vários) sentido(s) do texto. ___. " Protagonistas no/do discurso, in Série Estudos, n. 4, Uberaba,
A análise de discurso não é um método de interpretação' não atri- 1978.
bui nen hum sentido ao texto. O que ela faz é problematizar a relação VOLOSHINOV, V. EI Signo ideologico y la filosofia dei lenguaje. Buenos
com o texto, procurando apenas explicitar os processos de significação Aires, Nueva Visión, 1976.
que nele estão configurados, os mecanismos de produção de sentidos PÊCHEUX, M. Les vérités de la palice . Paris, Maspero, 1975.
que estão funcionando. Compreender, na perspectiva discursiva, não é,
pois, atribuir um sentido, mas conhecer os mecanismos pelos quais se
põe em jogo um determinado processo de significação.
Desse modo, podemos dizer que a análise de discurso visa a com-
preensão na mesma medida em que visa explicitar a história dos proces-
sos de significação, para atingir os mecanismos de sua produção.
O que temos a dizer, finalmente, é que, ao acolher a compreensão
entre seus objetos de reflexão, a análise de discurso pode fornecer uma
contribuição substancial para o trabalho sobre leitura. E foi isso que pro-
curamos fazer nesse nosso estudo.

Referências bibliográficas

BARTHES, R. Leçon . Paris, Seuil, 1977.


COURTINE. J. J. " La toque de Clementis", in Le discours psychanalytique,
s.d. (mimeo.).
_ __ . " Définition d'orientations théoriques et construction des procedures
en analyse de discours", in Philosophiques, v. XII, n. 2, Paris, 1982.
_ _. " Quelques problémes théoriques et méthodologiques in analyse
de discours", in Langages, n. 62, Paris, Larousse, 1981 .
DUCROT, O. Le dire et le dit. Paris, Minuit, 1981 .

7. Valeria a pena pensar essas distinções - inteligível, interpretável e com-


preensível - no interior da psicanálise.

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